VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010
Ironia e cómico na adaptação, por Renoir, de Une Partie de campagne,
de Maupassant
Kelly Basílio
FLUL
Mais do que uma imitação ou uma transposição servil, Partie de campagne é uma adaptação
da novela de Maupassant, de título quase igual, e neste “quase” está todo Renoir, a importância
fulcral que atribui à nuance, ao “je ne sais quoi” e ao “presque rien”, para além do mais, tão
franceses. E mais ainda do que de uma adaptação, é de uma verdadeira apropriação que se
trata.
Deste modo, a ironia e o cómico da narrativa maupassantiana não são pura e simplesmente
reproduzidos ou transpostos. A este nível, como a outros, a obra de partida é submetida a
processos transformacionais.
Embora seja complicado, às vezes, distinguir entre o cómico e o irónico, tendo ambos como
princípio o riso (sob as suas inúmeras formas), pode-se partir talvez das seguintes definições:
A ironia1 consiste numa atitude enunciativa2 que visa a ridicularização (podendo esta adoptar
os mais diversos graus e matizes), ao passo que o cómico é um efeito cénico (real ou
imaginado) que pode ou não visar essa ridicularização. Sendo assim, a ironia pode ou não
produzir efeitos cómicos e, reciprocamente, o cómico pode não advir da ironia nem contribuir
para ela; e, neste caso, proceder antes do humor, que, tal como a ironia, consiste numa atitude
distanciada que visa o riso, sendo este todavia mais desinteressado, pois o humor procura mais
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Ver nomeadamente Hamon (1996) e Genette (2002).
Embora exista também um tipo de ironia dita “objectiva” ou “ironia do destino” (ver Cahen, 1992).
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o riso pelo riso do que o rir de. Mas acontece amiúde uma sobreposição e interacção das duas
modalidades.
As transformações operadas pelo filme de Renoir tendem para um cómico mais lúdico do que
crítico, relevando assim mais do humor do que da ironia. Daí uma ironia e um cómico mais
leves, mais discretos e matizados do que na novela de Maupassant. Desta forma, podemos
destacar dois modos do cómico na película, sendo o primeiro mais crítico (embora, mais uma
vez, sem a causticidade maupassantiana) do que o segundo: o que chamaríamos burlesco e o
que podemos designar de lúdico.
O modo burlesco
De salientar, antes de mais, que este modo no filme, ao contrário do que acontece na novela,
nunca chega ao nível da farsa e raramente mesmo ao do grotesco. Ele sofre, portanto, um
processo geral de atenuação.
Se tomarmos o exemplo de uma das principais cenas burlescas da novela, a do almoço na
relva, notamos que o cineasta pratica uma elipse quase total desta, regressando à família no fim
da refeição, com a empregada do restaurante a levantar a “mesa” do piquenique. São, pois,
suprimidas, pela mesma via, as peripécias grotescas, de indecorosas, da Sra Dufour a agir desta
forma (lembramos): “Elle s’était éboulée sur l’herbe, les jambes pliées à la façon des tailleurs,
et elle se trémoussait continuellement, sous prétexte que des fourmis lui étaient entrées quelque
part” ; e da “tosse compulsiva” e desastrada do empregado – se é que Renoir as teria
conservado ao manter essa cena do almoço.
Aliás, mesmo no que se refere ao período pós-prandial, contemplado igualmente pelo filme, e
que na novela se ilustra pelo comportamento particularmente grosseiro dos dois homens da
família, apenas um traço inconveniente é recuperado pelo cineasta, o do soluço. Este, todavia,
transita do Sr Dufour para o seu aprendiz, perdendo, de resto, a “violência” que o tornava
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grotesco, mas conservando no entanto o seu cunho burlesco, pelo seu carácter irreprimível e,
pois, algo mecânico.
Porém, há mais burlesco nesta cena, que é das mais cómicas, senão a mais cómica, da película,
o qual foi, portanto, introduzido por Renoir.
De reparar que este burlesco se concentra exclusivamente no comportamento entontecido do
comerciante e do seu empregado, que acordam aturdidos com os gritos da Sra Dufour, enervada
pelo soluço do aprendiz. Este faz transbordar a paciência da patroa, já fora de si face à surdez
do marido, que persistiu obstinadamente no sono, em vez de atender as suas ternas solicitações
sussurradas ao ouvido.
O burlesco aqui releva, assim, do mesmo princípio do que na novela, o do clássico cómico de
carácter, neste caso, o do Sr Dufour e do seu empregado, que, pois, são, grosso modo,
respeitados, mas as suas concretizações não o são, ou quase, sendo substituídas por outras, não
grotescas, contribuindo desta forma para um cómico mais divertido e menos satírico.
O burlesco no filme advém, aliás, quase todo dos dois homens da família, se é que é sempre de
burlesco que se trata, nomeadamente no que toca ao patrão. Como na novela, mas de forma
menos acentuada, sobretudo no que concerne ao Sr Dufour, ele é causado pelos processos
gerais do mecânico no vivo e, ligado a este, pelo de repetição, sendo estes todavia
singularmente flexibilizados e matizados, pois, mais uma vez, o objectivo é menos
escarnecedor.
Deste modo, é sobretudo o empregado que produz o burlesco, reunindo para este efeito
requisitos, físicos e psicológicos, infalíveis.
Notemos que o cineasta conserva certos traços da personagem na novela, acentuando até
alguns deles, mas em contrapartida, suprime ou acrescenta outros.
Efectivamente, o aprendiz aparenta quase a debilidade mental, a qual se manifesta por uma
entoação, voz (acrescentos) e nível discursivo quase infantis, mas não apresenta as
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características bestiais pelas quais se impõe na narrativa, sendo nele, desta forma, atenuado,
senão talvez eliminado, o grotesco. Em compensação, Renoir atribui-lhe signos distintivos que,
no seu conjunto, aumentam a sua bizarria e, logo, o seu poder burlesco.
Antes de mais, dota-o de um nome (lembramos que na novela não tem nenhum), Anatole, que
soa ridiculamente em relação à pequena estatura, que também lhe inflige, ainda encurtada por
um chapéu que lhe dá um ar de velho, a contrastar, bem como a seriedade excessiva da camisa
e do casaco abotoados até ao pescoço, com a voz infantil que, incongruentemente, sai desse
conjunto díspar e constrangido.
Será, então, que o realizador renunciou até ao único e insistente traço físico ao qual o
empregado se encontra reduzido na novela, a sua cabeleira amarela, que, pela sua quase
anomalia, monopoliza quase todo o interesse semântico, simbólico e, até, dramático da
personagem? Não exactamente, mas acrescentou-lhe outro a competir com ele em estranheza,
o chapéu, e, deste modo, contribuir para a bizarria geral da figura. Notemos, aliás, que todos os
acrescentos do cineasta só consistem, na realidade, na expansão ou, antes, na explanação da
fórmula concentrada da narrativa maupassantiana. Porém, a adjunção do chapéu confere a essa
cabeleira um atributo que, a meu ver, não possuía no texto, o do burlesco, através da surpresa
causada pelo seu inesperado surgimento extravagante quando aparece na tela a cabeça
espantada do aprendiz a acordar aturdido com os gritos da patroa. Pois só um espectador muito
atento terá reparado no seu gesto de tirar o chapéu, apanhado de fugida num cantinho do ecrã,
quando a família se instala para o piquenique, ao qual, depois, como já foi dito, não assistimos.
Outra característica, que não ressai muito claramente da novela, a concorrer igualmente para o
burlesco: Anatole é um poltrão, que confessa ter medo de andar de barco, para além da sua
falta de jeito, esta até grotesca, como já se viu, na narrativa, mas que no filme é ilustrada por
um cómico de gestos multiplicado.
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Aliás, o seu aparente atraso mental manifesta-se logo de início, por uma fixação em canas de
pesca (repare-se aqui em mais esta transferência, em relação à novela, do patrão para o
empregado), o que produz um efeito cómico redobrado, o da repetição do seu desejo obcecado,
expressa, além disso, com a sua voz e entoação infantis; e o que sublinha logo uma diferença
importante na personagem, em relação à novela: ao invés do que acontece nesta, o aprendiz é
de uma relativa prolixidade, não parando de fazer perguntas ao patrão e pontuando todas as
afirmações, graças ou propostas deste com sistemáticas fórmulas aprovadoras, risos idiotas e
exclamações entusiastas, pois, como na novela, ele anda sempre colado ao Sr Dufour.
No entanto, mais uma vez, todos estes efeitos burlescos nunca são sublinhados, a câmara nunca
neles se demorando para permitir a sua apreciação, mas sucedem-se ao de leve, como que se
fundindo naturalmente no próprio ritmo da vida, onde tudo é fugaz.
Quanto ao Sr Dufour, o ridículo acentuado que o caracteriza na novela é singularmente
atenuado na película. O cómico da personagem nem sempre chega propriamente ao burlesco e
menos ainda ao grotesco. Nele (como aliás na sua esposa) o cineasta operou uma profunda
transformação, senão mesmo uma revolução.
Efectivamente, ele não conservou os seus principais defeitos, denunciados como vícios de
classe pelo escritor: a autosuficiência e a prepotência, pelas quais o pequeno burguês que
representa mal consegue disfarçar o seu complexo de inferioridade, pois esses vícios assentam
na ignorância e estupidez, a famosa “bêtise” burguesa, que Maupassant, através de um grotesco
jubilante, desmascara. Ora Renoir mantém na personagem esse complexo de inferioridade, mas
trata-o com muito mais indulgência e, até, benevolência. Com efeito, esse complexo leva o
pequeno comerciante a tentar exibir os seus conhecimentos, adoptando com a família e,
nomeadamente, com o seu aprendiz, um tom douto e didáctico, embora sem a grotesca
presunção que, aliás, de intelectual tem muito pouco, do seu modelo na novela. É, de resto, o
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seu principal traço risível, que resulta num cómico que proponho chamar pedagógico e num
cómico de linguagem, pois o Sr Dufour adora discursar, embora não seja propriamente o
palrador da novela. Mas essas suas demonstrações sábias, não ultrapassando a dose de
pedantismo e vaidade necessária para se tornarem divertidas, são enformadas por uma ironia
leve da qual não estará ausente, porventura, uma certa simpatia pela personagem. De facto,
esses seus excessos revelam ao mesmo tempo a sua paixão desinteressada por autênticos
valores culturais - a ciência, a eloquência - e o seu esforço louvável para se elevar acima do
normal nível intelectual da sua classe. Contrariamente a Maupassant, Renoir parece, portanto,
mais empenhado em evidenciar os lados, apesar de tudo, positivos e até enternecedores da
pequena burguesia.
Aliás, o Sr Dufour, no seu comportamento conjugal e familiar, não tem nada das impaciências
e falta de modos do seu homólogo na narrativa, manifestando também nesse plano a sua
preocupação em mostrar-se civilizado: sempre galante e atencioso com a mulher e, até, com a
avó, e carinhoso com a filha. Mas essas boas maneiras, sem nunca ceder à vulgaridade,
conhecem algumas falhas, e escondem algumas fraquezas, fonte precisamente de algum
burlesco.
O exemplo mais saliente de divertimento à sua custa integra-se na cena já referida, e mais
cómica, a meu ver, da película. O cómico do comportamento do Sr Dufour reside, nesta cena,
na sua cegueira – ou má fé!
O Sr Dufour, sempre tão preocupado em mostrar-se atencioso com a esposa, descuida essas
atenções quando mais são precisas! E quando acorda com os gritos da mulher a protestar contra
o soluço do empregado, não percebe - ou será que finge não perceber? - que, antes de mais, é
com ele que ela está enfurecida. Pior ainda: ele reassume então mecanicamente a sua
acostumada atitude atenciosa com a mulher – ou não será também receosa desta, que parece
impor-lhe algum respeito? -, apoiando a sua queixa contra o aprendiz, censurando este:
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“Anatole, vous êtes ridicule!”, sem se aperceber do seu próprio ridículo – ou transferindo-o
cobardemente no empregado, tomando-o, em suma, e como de costume, como bode expiatório.
Mas há mais: para tentar confortar o seu amor-próprio, ele recorre, automaticamente também,
ao seu remédio habitual, a exibição dos seus saberes, propondo ao rapaz acompanhá-lo ao
restaurante para pedir um copo de água, pois, afirma, peremptório: “não há nada como a água
para pôr fim ao soluço” - o que, ao mesmo tempo, lhe permite fugir do olhar de censura da Sra
Dufour. Mas esta não se deixa enganar tão facilmente, e não o deixará ir sem antes lhe dizer as
suas verdades, embora, ela também, com um disfarce, para salvar as conveniências, o que torna
este divertido, e a ela irresistível: “Oh! vous! si vous étiez un homme, vous m’apporteriez un
verre d’eau!” ; pois o contraste entre as duas partes da frase, para além de cómico, testemunha
ainda o seu génio feliz e pouco rancoroso. Desta forma é aliviada a atmosfera - e a culpa do
esposo! Incidentes normais na vida de um casal, que não perturbam no fundo o seu bom
entendimento…
O maior burlesco advém da parelha patrão-empregado, particularmente aprofundada e
aproveitada pelo filme em relação à novela.
É sobretudo, como seria de esperar, o cómico de repetição que, através dela, é explorado. Mas
essa repetição vem igualmente reforçar outros efeitos hilariantes.
A parelha é já por si risível, pela sua infalível sincronia, sobretudo quando um dos seus
membros aparenta uma relação de dependência em relação ao outro, e, neste caso, não será
bem certo que o mais dependente seja o empregado! E este, para além de seguir o rasto ao
patrão, qual cãozinho, como na novela, faz também de seu macaco. Ou, pelo menos, tenta,
porque nem disso parece capaz, de tão desajeitado e desastrado.
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Renoir, portanto, explorou mais as potencialidades do par original, operando nele, para além do
mais, um ligeiro desvio que de algum modo eleva o seu estatuto, espiritualizando-o, por assim
dizer, pois é mais de uma relação mestre-aluno que no seu filme se trata.
O Sr Dufour dispõe assim de um público permanente para as suas performances discursivas e
instrutivas. No entanto, não se pode negar, ao mesmo tempo, algum mérito à sua atitude, pois
demonstrará o seu intuito quase paterno de educar o seu aprendiz. O que não será talvez tão
desinteressado da sua parte, já que este se destina, segundo o costume, a tornar-se em breve o
seu genro. Tem, pois, que tratar, no mínimo, de o desemburrar. Mas para mal do pobre Sr
Dufour, o caso é mesmo desesperado! Para quem tanto preza a inteligência e o saber, é deveras
uma tortura ter de se contentar o dia todo com tal companhia! Daí o cómico do seu grito
exasperado e esganiçado que nunca tarda em fazer-se ouvir e que, invariavelmente, usa a
mesma estrutura gramatical, e o mesmo tema, com variações (até musicais, pelo matizar da
entoação): “Anatole, vous ne comprenez rien!”; “Anatole, vous êtes ridicule!”; “Anatole, vous
êtes fou!”; atingindo este burlesco da parelha o seu auge, como era de esperar, nessa cena
central da frustração do desejo da patroa, onde se sucedem os disparates do empregado
desnorteado e os consequentes gritos do patrão excedido: “Anatole, vous êtes fou? Vous allez
vers la rivière maintenant ? Vous voulez vous noyer ? ”
O modo lúdico
Este modo do cómico é inexistente na novela e constitui, portanto, uma total inovação do
cineasta em relação a esta.
Ele tende para o puro divertimento, tentando despojar-se de toda a intenção ridicularizante,
nele subsistindo todavia uma leve e subtil ironia, às vezes, quase imperceptível.
Mais ainda do que o outro, este tipo de cómico aproxima o cinema de Renoir do teatro,
nomeadamente, da tradição da comédia ligeira francesa, misturando-se nele alegremente
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reminiscências tanto do vaudeville como da comédia mais refinada e amorosa de Marivaux.
Temos, portanto, ainda o riso, mas igualmente o sorriso.
É a dupla vertente deste género de comédia que é aqui explorada: a primeira, que releva ainda
da modalidade cómica, e a segunda, de um outro lado do riso, o riso jovial e prazenteiro, o da
pura alegria de viver; estando, pois, as duas vertentes, na maioria das vezes, interligadas e
contaminando-se uma à outra nesse princípio comum de divertimento que as rege. Certamente
será nesses momentos de alacridade e jocosidade mais despreocupadas que o cineasta melhor
restituirá a atmosfera própria da “partie”, onde impera o desejo de aproveitamento epicurista
dos prazeres efémeros. Note-se que este modo lúdico do riso se concentra sobretudo na
segunda parte do filme, a partir do momento em que começa precisamente o “jogo”
marivaudiano “do amor e do acaso” entre as damas e os barqueiros.
Quanto aos processos usados, eles não são geralmente muito diferentes dos do outro modo;
apenas não são animados, mais uma vez, ou tendem para não ser, pelo intuito ridicularizante
dos primeiros.
O cómico de linguagem é de longe o que assume o maior papel na película. De salientar, aliás,
a particular relevância dos diálogos nesta, mais frequentes e, geralmente, mais extensos do que
na novela, onde sofrem a concorrência do discurso indirecto e, sobretudo, do indirecto livre
que, dando mais voz à enunciação, se presta mais por isso ao intuito irónico do escritor. Em
contrapartida, este cómico dialogado recorre mais ao humor que, como vimos, é, na sua
essência, mais lúdico e desinteressado – ou apenas interessado no prazer que o próprio jogo
proporciona.
Destaquemos, por exemplo, o elogio, pelo Sr Poulain, dos dotes físicos da Sra Dufour: “Parlezmoi d’un morceau! Avec elle au moins, on a de quoi s’occuper!”, onde sublinho as palavras
alegre e divertidamente desviadas do seu sentido próprio ou do seu uso habitual. Notemos que
esse desvio aqui, realisticamente alusivo, sem ser grosseiro, é marcadamente familiar ou
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mesmo popular, inclusive pelos idiotismos (“Parlez-moi de” e “on a de quoi”) e a entoação,
tipicamente sociolectais; o que o torna comunicativo e simpático. Lembremos também nesta
facécia, por assim dizer, assinada por quem a profere (o próprio Renoir!), o acrescento de
cómico propiciado pelo tom e argumentos do conhecedor em matéria… culinária!
Mesmo gozo retirado, pelo “canotier” Rodolphe, desse mesmo tipo de humor técnico, desta
feita, mais desenvolvido, no diálogo cúmplice, sempre retomado, que ele tem com o seu
companheiro, a metáfora, por ele empregue, pertencendo precisamente à área da sua ocupação
favorita, a pesca; a qual é aplicada ao domínio da sedução. Desta forma, o chapéu, esquecido
na relva por Henriette, deve servir de isco para “apanhar” esta… e a mãe! E o divertimento
atinge o seu auge com a ideia de usar a própria cana de pesca para o pai … cair no anzol, e
deixar ir as duas mulheres com os dois barqueiros. Lembremos até que o desajeitado
empregado, ou seja, o próprio prometido da filha, fica preso a esse mesmo anzol, realizando-se
assim à letra a metáfora piscatória, e propiciando-nos um dos momentos hilariantes do filme,
com o aprendiz a queixar-se como uma criança do sucedido e o patrão a tratá-lo de estúpido
(“cet abruti!”)! 3
Igualmente baseados no cómico de linguagem, os quiproquós sucedem-se também
alegremente. A tentativa de sedução, empreendida pelos dois “canotiers”, da Sra Dufour e de
Henriette, desencadeia, por exemplo, um desses diálogos divertidos, causados pela
interpretação ingénua por estas, devida à educação que receberam e à vida recatada que levam,
da iniciativa tomada pelos barqueiros de ligar conversa com elas.
Cito apenas o primeiro destes quiproquós, que se produz entre Rodolphe e a Sra Dufour. A
situação é já por si um tanto caricata: o “canotier” tenta executar a sua estratégia de
aproximação da filha, estando a mãe desta presente! Para resolver, pois, o seu embaraço, ele
dirige-se a Henriette indirectamente, falando dela, diante dela, à mãe. E a Sra Dufour, que não
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A metáfora piscatória no filme é também interpretada subliminarmente por certos críticos através do
jogo dos homónimos “pêcher” e “pécher”.
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percebeu a manobra e, portanto, não vê onde ele quer chegar, interpreta de maneira “inocente”
o discurso lisonjeiro do sedutor. Dai o efeito cómico, pois a inocência, nomeadamente, em
matéria de sexualidade, nas mulheres se presta tradicionalmente ao riso, por vezes,
enternecido, como aqui: veja-se o caso paradigmático de Agnès, de L’Ecole des femmes de
Molière. E o cómico é acentuado pelo facto de essa interpretação inocente ser, para além do
mais, bem terra a terra:
Rodolphe: Vous avez eu une bonne idée d’amener ici Mademoiselle.
Mme Dufour : Oh oui ! la friture est excellente !
R : Je veux dire une bonne idée pour nous parce qu’ici ça manque un peu de société (...)
Incluirei, finalmente, neste tipo de cómico divertido o que chamaria de paródias ligeiras.
Uma paródia é, como se sabe, uma imitação burlesca. A paródia a que aludo, a título de
exemplo, incide, para usar o vocabulário da mitocrítica, sobre um “mitema” da mitologia
clássica, transposto em cena.
De salientar que nos deparamos com uma situação de representação na representação, mais
precisamente de teatro no cinema ou, sendo o cinema de Renoir ele mesmo teatral, de quase
teatro no teatro. Lembremos igualmente que esta cena é representada por Rodolphe e pela Sra
Dufour, o que não será por acaso, sendo elas as personagens mais alegres e brincalhonas do
filme. Notemos finalmente que esta paródia é ligeira, pois o seu intuito é puramente lúdico e
hedónico. Se contém alguma ironia, ela será antes, para além de ténue, autoironia. As
personagens mitológicas nela contrafeitas proclamam por si só esse fim, e mensagem,
epicuristas.
Ela ocupa, a meu ver, um lugar de destaque no filme, sendo um lugar estratégico. Com efeito, é
a última cena feliz e despreocupada da película; a última, portanto, da comédia por esta
representada, a “comédia social” da “partie de campagne”. Logo a seguir, a cena será outra!
Deste modo, ela representa o momento de apogeu dessa comédia e, de certa forma, a sua
apoteose - de forma quase literal, notemos, pelo simulacro de divinização das suas personagens
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mais risonhas e divertidas - ou antes, a apoteose desse princípio hedonista que a anima e que
celebra.
Aliás, esse espírito de celebração é até marcado aqui por duas outras artes a que recorre esta
comédia na comédia, artes que são, de resto, parte integrante desta na origem, assim como da
tragédia: a música e a dança. Ora esta comédia representa precisamente, ainda que parodiandoo, esse regresso às suas origens, pelo tema mitológico encenado. A bem dizer, a própria
comédia antiga, que se apresentava amiúde, senão mesmo na sua essência, como a paródia da
tragédia (é o caso paradigmático, como se sabe, de As Rãs de Aristófanes), parodiava
precisamente, com esse intuito, cenas do Olimpo. Acrescentemos, para além da presença das
duas artes referidas, a de duas outras, mais específicas do género cómico, sendo processos do
riso que eventualmente podem nele intervir: a mascarada e a pantomima.
É, efectivamente, um dos raros momentos insonoros e mudos – ou quase – deste filme e da
comédia que representa, e que este filme é, pelo menos até, e inclusive, esse preciso instante; e,
deste modo, este momento é como que igualmente um regresso às origens, embora estas muito
próximas ainda, do cinema, esse cinema mudo que ainda há pouco o próprio cineasta praticava.
(De certa forma, portanto, teríamos aqui Renoir saudando Renoir, ou antes, parodiando-o,
parodiando-se). Momento até mais silencioso do que se fosse cinema mudo, não levando o
acrescento da música de fundo. Momento de (quase) pura pantomima, até da própria música. 4
E, paradoxalmente, na única sequência do filme onde a fonte dessa música está presente:
Rodolphe a tocar a flauta pastoril, mas não se ouve. Porque a flauta é fingida. Porque é o jogo
que nesse momento importa. O jogo, como o prazer, é autotélico. E é por isso que o jogo é
prazer puro. As crianças que o digam – e os amantes. Apollinaire bem o diz no seu poema
L’ermite, onde assimila precisamente o amor a um jogo:
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O que nos faz pensar no paradoxo destas duas artes condizerem tão bem uma com a outra, como
magistralmente o demonstra Diderot no "eveu de Rameau, sendo a segunda igualmente arte da
representação, qualidade que justamente, apagando o som, a pantomima por excelência põe a nu.
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Les humains savent tant de jeux l'amour la mourre
L'amour jeu des nombrils ou jeu de la grande oie
La mourre jeu du nombre illusoire des doigts
Seigneur faites Seigneur qu'un jour je m'énamoure
É, pois, a única cena cómica do filme, que combina a dança e a música com o riso, que explora
as virtualidades cómicas da dança e da música, ou antes, da sua pantomima; a única cena
cómica do filme sem cómico de linguagem – ou quase: só é nela pronunciada uma palavra, ou
antes, gritada repetidamente, o nome da filha, Henriette, pela mãe, Juliette; enquanto esta ninfa
novo modelo faz ouvir ainda outros gritos, de gozo - e de medo: do barqueiro-fauno, de ceder
às suas tentações.
A situação é engraçada: a mãe, prestes a cair em tentação, pede socorro à filha. Pois estão
juntas nesta aventura, na qual partilham uma cumplicidade no mínimo ambígua em relação ao
pai, e marido; situação, convenhamos, um tanto quanto atípica, daí a sua comicidade. A mãe
chama a filha em seu auxílio, ou seja a última pessoa que, em tais circunstâncias, deveria
ocorrer-lhe chamar! Mas a mãe grita pela ajuda da filha porque esta é precisamente o
testemunho vivo do seu compromisso com o marido, logo, da sua condição de mulher casada:
só a sua presença ali, nesse momento fulcral, produziria pois, por metonímia, nela como no
companheiro, o efeito proibitivo que a própria presença do marido teria.
A mãe grita para a filha a socorrer: situação caricata, por ser exactamente inversa da habitual;
nesse momento de fragilidade, é ela quem se sente como sendo a criança.
E no entanto, ironicamente, é a filha quem realmente mais precisaria de ajuda, nesse momento,
ao invés, por ela vivido, de suprema traição e abandono… Pois a ironia não é necessariamente
cómica; ela pode ser, como neste “fin de partie”, e como no fim da novela de Maupassant,
trágica.
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Deste modo, pode-se dizer que Partie de campagne de Renoir patenteia uma ironia e um
cómico mais prazenteiros e benévolos, em suma, mais humanos, e mais humanistas, do que a
obra de Maupassant que a inspirou. Daí o choque do seu desenlace, a comédia acabando em
tragédia, em naufrágio de duas vidas, em naufrágio do amor. Paradoxalmente, assim, a película
é seguramente mais indignada que a novela, o que talvez prove que o riso é tanto mais alegre
quanto o seu intuito é mais combativo.
Bibliografia
Maupassant, G. de, 1995, Une Partie de campagne, avec le scénario du film de Jean
Renoir, Paris, Le livre de poche.
Cahen, G. (dir.), 1992, L’Humour, un état d’esprit, Paris, Autrement, nº 131.
Genette, G., 2002, Figures V, Paris, Seuil.
Hamon, Ph., 1996, L’Ironie littéraire, Paris, Hachette.
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Ironia e cómico na adaptação, por Renoir, de Une Partie de