VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 Ironia e cómico na adaptação, por Renoir, de Une Partie de campagne, de Maupassant Kelly Basílio FLUL Mais do que uma imitação ou uma transposição servil, Partie de campagne é uma adaptação da novela de Maupassant, de título quase igual, e neste “quase” está todo Renoir, a importância fulcral que atribui à nuance, ao “je ne sais quoi” e ao “presque rien”, para além do mais, tão franceses. E mais ainda do que de uma adaptação, é de uma verdadeira apropriação que se trata. Deste modo, a ironia e o cómico da narrativa maupassantiana não são pura e simplesmente reproduzidos ou transpostos. A este nível, como a outros, a obra de partida é submetida a processos transformacionais. Embora seja complicado, às vezes, distinguir entre o cómico e o irónico, tendo ambos como princípio o riso (sob as suas inúmeras formas), pode-se partir talvez das seguintes definições: A ironia1 consiste numa atitude enunciativa2 que visa a ridicularização (podendo esta adoptar os mais diversos graus e matizes), ao passo que o cómico é um efeito cénico (real ou imaginado) que pode ou não visar essa ridicularização. Sendo assim, a ironia pode ou não produzir efeitos cómicos e, reciprocamente, o cómico pode não advir da ironia nem contribuir para ela; e, neste caso, proceder antes do humor, que, tal como a ironia, consiste numa atitude distanciada que visa o riso, sendo este todavia mais desinteressado, pois o humor procura mais 1 2 Ver nomeadamente Hamon (1996) e Genette (2002). Embora exista também um tipo de ironia dita “objectiva” ou “ironia do destino” (ver Cahen, 1992). 1 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 o riso pelo riso do que o rir de. Mas acontece amiúde uma sobreposição e interacção das duas modalidades. As transformações operadas pelo filme de Renoir tendem para um cómico mais lúdico do que crítico, relevando assim mais do humor do que da ironia. Daí uma ironia e um cómico mais leves, mais discretos e matizados do que na novela de Maupassant. Desta forma, podemos destacar dois modos do cómico na película, sendo o primeiro mais crítico (embora, mais uma vez, sem a causticidade maupassantiana) do que o segundo: o que chamaríamos burlesco e o que podemos designar de lúdico. O modo burlesco De salientar, antes de mais, que este modo no filme, ao contrário do que acontece na novela, nunca chega ao nível da farsa e raramente mesmo ao do grotesco. Ele sofre, portanto, um processo geral de atenuação. Se tomarmos o exemplo de uma das principais cenas burlescas da novela, a do almoço na relva, notamos que o cineasta pratica uma elipse quase total desta, regressando à família no fim da refeição, com a empregada do restaurante a levantar a “mesa” do piquenique. São, pois, suprimidas, pela mesma via, as peripécias grotescas, de indecorosas, da Sra Dufour a agir desta forma (lembramos): “Elle s’était éboulée sur l’herbe, les jambes pliées à la façon des tailleurs, et elle se trémoussait continuellement, sous prétexte que des fourmis lui étaient entrées quelque part” ; e da “tosse compulsiva” e desastrada do empregado – se é que Renoir as teria conservado ao manter essa cena do almoço. Aliás, mesmo no que se refere ao período pós-prandial, contemplado igualmente pelo filme, e que na novela se ilustra pelo comportamento particularmente grosseiro dos dois homens da família, apenas um traço inconveniente é recuperado pelo cineasta, o do soluço. Este, todavia, transita do Sr Dufour para o seu aprendiz, perdendo, de resto, a “violência” que o tornava 2 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 grotesco, mas conservando no entanto o seu cunho burlesco, pelo seu carácter irreprimível e, pois, algo mecânico. Porém, há mais burlesco nesta cena, que é das mais cómicas, senão a mais cómica, da película, o qual foi, portanto, introduzido por Renoir. De reparar que este burlesco se concentra exclusivamente no comportamento entontecido do comerciante e do seu empregado, que acordam aturdidos com os gritos da Sra Dufour, enervada pelo soluço do aprendiz. Este faz transbordar a paciência da patroa, já fora de si face à surdez do marido, que persistiu obstinadamente no sono, em vez de atender as suas ternas solicitações sussurradas ao ouvido. O burlesco aqui releva, assim, do mesmo princípio do que na novela, o do clássico cómico de carácter, neste caso, o do Sr Dufour e do seu empregado, que, pois, são, grosso modo, respeitados, mas as suas concretizações não o são, ou quase, sendo substituídas por outras, não grotescas, contribuindo desta forma para um cómico mais divertido e menos satírico. O burlesco no filme advém, aliás, quase todo dos dois homens da família, se é que é sempre de burlesco que se trata, nomeadamente no que toca ao patrão. Como na novela, mas de forma menos acentuada, sobretudo no que concerne ao Sr Dufour, ele é causado pelos processos gerais do mecânico no vivo e, ligado a este, pelo de repetição, sendo estes todavia singularmente flexibilizados e matizados, pois, mais uma vez, o objectivo é menos escarnecedor. Deste modo, é sobretudo o empregado que produz o burlesco, reunindo para este efeito requisitos, físicos e psicológicos, infalíveis. Notemos que o cineasta conserva certos traços da personagem na novela, acentuando até alguns deles, mas em contrapartida, suprime ou acrescenta outros. Efectivamente, o aprendiz aparenta quase a debilidade mental, a qual se manifesta por uma entoação, voz (acrescentos) e nível discursivo quase infantis, mas não apresenta as 3 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 características bestiais pelas quais se impõe na narrativa, sendo nele, desta forma, atenuado, senão talvez eliminado, o grotesco. Em compensação, Renoir atribui-lhe signos distintivos que, no seu conjunto, aumentam a sua bizarria e, logo, o seu poder burlesco. Antes de mais, dota-o de um nome (lembramos que na novela não tem nenhum), Anatole, que soa ridiculamente em relação à pequena estatura, que também lhe inflige, ainda encurtada por um chapéu que lhe dá um ar de velho, a contrastar, bem como a seriedade excessiva da camisa e do casaco abotoados até ao pescoço, com a voz infantil que, incongruentemente, sai desse conjunto díspar e constrangido. Será, então, que o realizador renunciou até ao único e insistente traço físico ao qual o empregado se encontra reduzido na novela, a sua cabeleira amarela, que, pela sua quase anomalia, monopoliza quase todo o interesse semântico, simbólico e, até, dramático da personagem? Não exactamente, mas acrescentou-lhe outro a competir com ele em estranheza, o chapéu, e, deste modo, contribuir para a bizarria geral da figura. Notemos, aliás, que todos os acrescentos do cineasta só consistem, na realidade, na expansão ou, antes, na explanação da fórmula concentrada da narrativa maupassantiana. Porém, a adjunção do chapéu confere a essa cabeleira um atributo que, a meu ver, não possuía no texto, o do burlesco, através da surpresa causada pelo seu inesperado surgimento extravagante quando aparece na tela a cabeça espantada do aprendiz a acordar aturdido com os gritos da patroa. Pois só um espectador muito atento terá reparado no seu gesto de tirar o chapéu, apanhado de fugida num cantinho do ecrã, quando a família se instala para o piquenique, ao qual, depois, como já foi dito, não assistimos. Outra característica, que não ressai muito claramente da novela, a concorrer igualmente para o burlesco: Anatole é um poltrão, que confessa ter medo de andar de barco, para além da sua falta de jeito, esta até grotesca, como já se viu, na narrativa, mas que no filme é ilustrada por um cómico de gestos multiplicado. 4 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 Aliás, o seu aparente atraso mental manifesta-se logo de início, por uma fixação em canas de pesca (repare-se aqui em mais esta transferência, em relação à novela, do patrão para o empregado), o que produz um efeito cómico redobrado, o da repetição do seu desejo obcecado, expressa, além disso, com a sua voz e entoação infantis; e o que sublinha logo uma diferença importante na personagem, em relação à novela: ao invés do que acontece nesta, o aprendiz é de uma relativa prolixidade, não parando de fazer perguntas ao patrão e pontuando todas as afirmações, graças ou propostas deste com sistemáticas fórmulas aprovadoras, risos idiotas e exclamações entusiastas, pois, como na novela, ele anda sempre colado ao Sr Dufour. No entanto, mais uma vez, todos estes efeitos burlescos nunca são sublinhados, a câmara nunca neles se demorando para permitir a sua apreciação, mas sucedem-se ao de leve, como que se fundindo naturalmente no próprio ritmo da vida, onde tudo é fugaz. Quanto ao Sr Dufour, o ridículo acentuado que o caracteriza na novela é singularmente atenuado na película. O cómico da personagem nem sempre chega propriamente ao burlesco e menos ainda ao grotesco. Nele (como aliás na sua esposa) o cineasta operou uma profunda transformação, senão mesmo uma revolução. Efectivamente, ele não conservou os seus principais defeitos, denunciados como vícios de classe pelo escritor: a autosuficiência e a prepotência, pelas quais o pequeno burguês que representa mal consegue disfarçar o seu complexo de inferioridade, pois esses vícios assentam na ignorância e estupidez, a famosa “bêtise” burguesa, que Maupassant, através de um grotesco jubilante, desmascara. Ora Renoir mantém na personagem esse complexo de inferioridade, mas trata-o com muito mais indulgência e, até, benevolência. Com efeito, esse complexo leva o pequeno comerciante a tentar exibir os seus conhecimentos, adoptando com a família e, nomeadamente, com o seu aprendiz, um tom douto e didáctico, embora sem a grotesca presunção que, aliás, de intelectual tem muito pouco, do seu modelo na novela. É, de resto, o 5 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 seu principal traço risível, que resulta num cómico que proponho chamar pedagógico e num cómico de linguagem, pois o Sr Dufour adora discursar, embora não seja propriamente o palrador da novela. Mas essas suas demonstrações sábias, não ultrapassando a dose de pedantismo e vaidade necessária para se tornarem divertidas, são enformadas por uma ironia leve da qual não estará ausente, porventura, uma certa simpatia pela personagem. De facto, esses seus excessos revelam ao mesmo tempo a sua paixão desinteressada por autênticos valores culturais - a ciência, a eloquência - e o seu esforço louvável para se elevar acima do normal nível intelectual da sua classe. Contrariamente a Maupassant, Renoir parece, portanto, mais empenhado em evidenciar os lados, apesar de tudo, positivos e até enternecedores da pequena burguesia. Aliás, o Sr Dufour, no seu comportamento conjugal e familiar, não tem nada das impaciências e falta de modos do seu homólogo na narrativa, manifestando também nesse plano a sua preocupação em mostrar-se civilizado: sempre galante e atencioso com a mulher e, até, com a avó, e carinhoso com a filha. Mas essas boas maneiras, sem nunca ceder à vulgaridade, conhecem algumas falhas, e escondem algumas fraquezas, fonte precisamente de algum burlesco. O exemplo mais saliente de divertimento à sua custa integra-se na cena já referida, e mais cómica, a meu ver, da película. O cómico do comportamento do Sr Dufour reside, nesta cena, na sua cegueira – ou má fé! O Sr Dufour, sempre tão preocupado em mostrar-se atencioso com a esposa, descuida essas atenções quando mais são precisas! E quando acorda com os gritos da mulher a protestar contra o soluço do empregado, não percebe - ou será que finge não perceber? - que, antes de mais, é com ele que ela está enfurecida. Pior ainda: ele reassume então mecanicamente a sua acostumada atitude atenciosa com a mulher – ou não será também receosa desta, que parece impor-lhe algum respeito? -, apoiando a sua queixa contra o aprendiz, censurando este: 6 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 “Anatole, vous êtes ridicule!”, sem se aperceber do seu próprio ridículo – ou transferindo-o cobardemente no empregado, tomando-o, em suma, e como de costume, como bode expiatório. Mas há mais: para tentar confortar o seu amor-próprio, ele recorre, automaticamente também, ao seu remédio habitual, a exibição dos seus saberes, propondo ao rapaz acompanhá-lo ao restaurante para pedir um copo de água, pois, afirma, peremptório: “não há nada como a água para pôr fim ao soluço” - o que, ao mesmo tempo, lhe permite fugir do olhar de censura da Sra Dufour. Mas esta não se deixa enganar tão facilmente, e não o deixará ir sem antes lhe dizer as suas verdades, embora, ela também, com um disfarce, para salvar as conveniências, o que torna este divertido, e a ela irresistível: “Oh! vous! si vous étiez un homme, vous m’apporteriez un verre d’eau!” ; pois o contraste entre as duas partes da frase, para além de cómico, testemunha ainda o seu génio feliz e pouco rancoroso. Desta forma é aliviada a atmosfera - e a culpa do esposo! Incidentes normais na vida de um casal, que não perturbam no fundo o seu bom entendimento… O maior burlesco advém da parelha patrão-empregado, particularmente aprofundada e aproveitada pelo filme em relação à novela. É sobretudo, como seria de esperar, o cómico de repetição que, através dela, é explorado. Mas essa repetição vem igualmente reforçar outros efeitos hilariantes. A parelha é já por si risível, pela sua infalível sincronia, sobretudo quando um dos seus membros aparenta uma relação de dependência em relação ao outro, e, neste caso, não será bem certo que o mais dependente seja o empregado! E este, para além de seguir o rasto ao patrão, qual cãozinho, como na novela, faz também de seu macaco. Ou, pelo menos, tenta, porque nem disso parece capaz, de tão desajeitado e desastrado. 7 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 Renoir, portanto, explorou mais as potencialidades do par original, operando nele, para além do mais, um ligeiro desvio que de algum modo eleva o seu estatuto, espiritualizando-o, por assim dizer, pois é mais de uma relação mestre-aluno que no seu filme se trata. O Sr Dufour dispõe assim de um público permanente para as suas performances discursivas e instrutivas. No entanto, não se pode negar, ao mesmo tempo, algum mérito à sua atitude, pois demonstrará o seu intuito quase paterno de educar o seu aprendiz. O que não será talvez tão desinteressado da sua parte, já que este se destina, segundo o costume, a tornar-se em breve o seu genro. Tem, pois, que tratar, no mínimo, de o desemburrar. Mas para mal do pobre Sr Dufour, o caso é mesmo desesperado! Para quem tanto preza a inteligência e o saber, é deveras uma tortura ter de se contentar o dia todo com tal companhia! Daí o cómico do seu grito exasperado e esganiçado que nunca tarda em fazer-se ouvir e que, invariavelmente, usa a mesma estrutura gramatical, e o mesmo tema, com variações (até musicais, pelo matizar da entoação): “Anatole, vous ne comprenez rien!”; “Anatole, vous êtes ridicule!”; “Anatole, vous êtes fou!”; atingindo este burlesco da parelha o seu auge, como era de esperar, nessa cena central da frustração do desejo da patroa, onde se sucedem os disparates do empregado desnorteado e os consequentes gritos do patrão excedido: “Anatole, vous êtes fou? Vous allez vers la rivière maintenant ? Vous voulez vous noyer ? ” O modo lúdico Este modo do cómico é inexistente na novela e constitui, portanto, uma total inovação do cineasta em relação a esta. Ele tende para o puro divertimento, tentando despojar-se de toda a intenção ridicularizante, nele subsistindo todavia uma leve e subtil ironia, às vezes, quase imperceptível. Mais ainda do que o outro, este tipo de cómico aproxima o cinema de Renoir do teatro, nomeadamente, da tradição da comédia ligeira francesa, misturando-se nele alegremente 8 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 reminiscências tanto do vaudeville como da comédia mais refinada e amorosa de Marivaux. Temos, portanto, ainda o riso, mas igualmente o sorriso. É a dupla vertente deste género de comédia que é aqui explorada: a primeira, que releva ainda da modalidade cómica, e a segunda, de um outro lado do riso, o riso jovial e prazenteiro, o da pura alegria de viver; estando, pois, as duas vertentes, na maioria das vezes, interligadas e contaminando-se uma à outra nesse princípio comum de divertimento que as rege. Certamente será nesses momentos de alacridade e jocosidade mais despreocupadas que o cineasta melhor restituirá a atmosfera própria da “partie”, onde impera o desejo de aproveitamento epicurista dos prazeres efémeros. Note-se que este modo lúdico do riso se concentra sobretudo na segunda parte do filme, a partir do momento em que começa precisamente o “jogo” marivaudiano “do amor e do acaso” entre as damas e os barqueiros. Quanto aos processos usados, eles não são geralmente muito diferentes dos do outro modo; apenas não são animados, mais uma vez, ou tendem para não ser, pelo intuito ridicularizante dos primeiros. O cómico de linguagem é de longe o que assume o maior papel na película. De salientar, aliás, a particular relevância dos diálogos nesta, mais frequentes e, geralmente, mais extensos do que na novela, onde sofrem a concorrência do discurso indirecto e, sobretudo, do indirecto livre que, dando mais voz à enunciação, se presta mais por isso ao intuito irónico do escritor. Em contrapartida, este cómico dialogado recorre mais ao humor que, como vimos, é, na sua essência, mais lúdico e desinteressado – ou apenas interessado no prazer que o próprio jogo proporciona. Destaquemos, por exemplo, o elogio, pelo Sr Poulain, dos dotes físicos da Sra Dufour: “Parlezmoi d’un morceau! Avec elle au moins, on a de quoi s’occuper!”, onde sublinho as palavras alegre e divertidamente desviadas do seu sentido próprio ou do seu uso habitual. Notemos que esse desvio aqui, realisticamente alusivo, sem ser grosseiro, é marcadamente familiar ou 9 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 mesmo popular, inclusive pelos idiotismos (“Parlez-moi de” e “on a de quoi”) e a entoação, tipicamente sociolectais; o que o torna comunicativo e simpático. Lembremos também nesta facécia, por assim dizer, assinada por quem a profere (o próprio Renoir!), o acrescento de cómico propiciado pelo tom e argumentos do conhecedor em matéria… culinária! Mesmo gozo retirado, pelo “canotier” Rodolphe, desse mesmo tipo de humor técnico, desta feita, mais desenvolvido, no diálogo cúmplice, sempre retomado, que ele tem com o seu companheiro, a metáfora, por ele empregue, pertencendo precisamente à área da sua ocupação favorita, a pesca; a qual é aplicada ao domínio da sedução. Desta forma, o chapéu, esquecido na relva por Henriette, deve servir de isco para “apanhar” esta… e a mãe! E o divertimento atinge o seu auge com a ideia de usar a própria cana de pesca para o pai … cair no anzol, e deixar ir as duas mulheres com os dois barqueiros. Lembremos até que o desajeitado empregado, ou seja, o próprio prometido da filha, fica preso a esse mesmo anzol, realizando-se assim à letra a metáfora piscatória, e propiciando-nos um dos momentos hilariantes do filme, com o aprendiz a queixar-se como uma criança do sucedido e o patrão a tratá-lo de estúpido (“cet abruti!”)! 3 Igualmente baseados no cómico de linguagem, os quiproquós sucedem-se também alegremente. A tentativa de sedução, empreendida pelos dois “canotiers”, da Sra Dufour e de Henriette, desencadeia, por exemplo, um desses diálogos divertidos, causados pela interpretação ingénua por estas, devida à educação que receberam e à vida recatada que levam, da iniciativa tomada pelos barqueiros de ligar conversa com elas. Cito apenas o primeiro destes quiproquós, que se produz entre Rodolphe e a Sra Dufour. A situação é já por si um tanto caricata: o “canotier” tenta executar a sua estratégia de aproximação da filha, estando a mãe desta presente! Para resolver, pois, o seu embaraço, ele dirige-se a Henriette indirectamente, falando dela, diante dela, à mãe. E a Sra Dufour, que não 3 A metáfora piscatória no filme é também interpretada subliminarmente por certos críticos através do jogo dos homónimos “pêcher” e “pécher”. 10 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 percebeu a manobra e, portanto, não vê onde ele quer chegar, interpreta de maneira “inocente” o discurso lisonjeiro do sedutor. Dai o efeito cómico, pois a inocência, nomeadamente, em matéria de sexualidade, nas mulheres se presta tradicionalmente ao riso, por vezes, enternecido, como aqui: veja-se o caso paradigmático de Agnès, de L’Ecole des femmes de Molière. E o cómico é acentuado pelo facto de essa interpretação inocente ser, para além do mais, bem terra a terra: Rodolphe: Vous avez eu une bonne idée d’amener ici Mademoiselle. Mme Dufour : Oh oui ! la friture est excellente ! R : Je veux dire une bonne idée pour nous parce qu’ici ça manque un peu de société (...) Incluirei, finalmente, neste tipo de cómico divertido o que chamaria de paródias ligeiras. Uma paródia é, como se sabe, uma imitação burlesca. A paródia a que aludo, a título de exemplo, incide, para usar o vocabulário da mitocrítica, sobre um “mitema” da mitologia clássica, transposto em cena. De salientar que nos deparamos com uma situação de representação na representação, mais precisamente de teatro no cinema ou, sendo o cinema de Renoir ele mesmo teatral, de quase teatro no teatro. Lembremos igualmente que esta cena é representada por Rodolphe e pela Sra Dufour, o que não será por acaso, sendo elas as personagens mais alegres e brincalhonas do filme. Notemos finalmente que esta paródia é ligeira, pois o seu intuito é puramente lúdico e hedónico. Se contém alguma ironia, ela será antes, para além de ténue, autoironia. As personagens mitológicas nela contrafeitas proclamam por si só esse fim, e mensagem, epicuristas. Ela ocupa, a meu ver, um lugar de destaque no filme, sendo um lugar estratégico. Com efeito, é a última cena feliz e despreocupada da película; a última, portanto, da comédia por esta representada, a “comédia social” da “partie de campagne”. Logo a seguir, a cena será outra! Deste modo, ela representa o momento de apogeu dessa comédia e, de certa forma, a sua apoteose - de forma quase literal, notemos, pelo simulacro de divinização das suas personagens 11 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 mais risonhas e divertidas - ou antes, a apoteose desse princípio hedonista que a anima e que celebra. Aliás, esse espírito de celebração é até marcado aqui por duas outras artes a que recorre esta comédia na comédia, artes que são, de resto, parte integrante desta na origem, assim como da tragédia: a música e a dança. Ora esta comédia representa precisamente, ainda que parodiandoo, esse regresso às suas origens, pelo tema mitológico encenado. A bem dizer, a própria comédia antiga, que se apresentava amiúde, senão mesmo na sua essência, como a paródia da tragédia (é o caso paradigmático, como se sabe, de As Rãs de Aristófanes), parodiava precisamente, com esse intuito, cenas do Olimpo. Acrescentemos, para além da presença das duas artes referidas, a de duas outras, mais específicas do género cómico, sendo processos do riso que eventualmente podem nele intervir: a mascarada e a pantomima. É, efectivamente, um dos raros momentos insonoros e mudos – ou quase – deste filme e da comédia que representa, e que este filme é, pelo menos até, e inclusive, esse preciso instante; e, deste modo, este momento é como que igualmente um regresso às origens, embora estas muito próximas ainda, do cinema, esse cinema mudo que ainda há pouco o próprio cineasta praticava. (De certa forma, portanto, teríamos aqui Renoir saudando Renoir, ou antes, parodiando-o, parodiando-se). Momento até mais silencioso do que se fosse cinema mudo, não levando o acrescento da música de fundo. Momento de (quase) pura pantomima, até da própria música. 4 E, paradoxalmente, na única sequência do filme onde a fonte dessa música está presente: Rodolphe a tocar a flauta pastoril, mas não se ouve. Porque a flauta é fingida. Porque é o jogo que nesse momento importa. O jogo, como o prazer, é autotélico. E é por isso que o jogo é prazer puro. As crianças que o digam – e os amantes. Apollinaire bem o diz no seu poema L’ermite, onde assimila precisamente o amor a um jogo: 4 O que nos faz pensar no paradoxo destas duas artes condizerem tão bem uma com a outra, como magistralmente o demonstra Diderot no "eveu de Rameau, sendo a segunda igualmente arte da representação, qualidade que justamente, apagando o som, a pantomima por excelência põe a nu. 12 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 Les humains savent tant de jeux l'amour la mourre L'amour jeu des nombrils ou jeu de la grande oie La mourre jeu du nombre illusoire des doigts Seigneur faites Seigneur qu'un jour je m'énamoure É, pois, a única cena cómica do filme, que combina a dança e a música com o riso, que explora as virtualidades cómicas da dança e da música, ou antes, da sua pantomima; a única cena cómica do filme sem cómico de linguagem – ou quase: só é nela pronunciada uma palavra, ou antes, gritada repetidamente, o nome da filha, Henriette, pela mãe, Juliette; enquanto esta ninfa novo modelo faz ouvir ainda outros gritos, de gozo - e de medo: do barqueiro-fauno, de ceder às suas tentações. A situação é engraçada: a mãe, prestes a cair em tentação, pede socorro à filha. Pois estão juntas nesta aventura, na qual partilham uma cumplicidade no mínimo ambígua em relação ao pai, e marido; situação, convenhamos, um tanto quanto atípica, daí a sua comicidade. A mãe chama a filha em seu auxílio, ou seja a última pessoa que, em tais circunstâncias, deveria ocorrer-lhe chamar! Mas a mãe grita pela ajuda da filha porque esta é precisamente o testemunho vivo do seu compromisso com o marido, logo, da sua condição de mulher casada: só a sua presença ali, nesse momento fulcral, produziria pois, por metonímia, nela como no companheiro, o efeito proibitivo que a própria presença do marido teria. A mãe grita para a filha a socorrer: situação caricata, por ser exactamente inversa da habitual; nesse momento de fragilidade, é ela quem se sente como sendo a criança. E no entanto, ironicamente, é a filha quem realmente mais precisaria de ajuda, nesse momento, ao invés, por ela vivido, de suprema traição e abandono… Pois a ironia não é necessariamente cómica; ela pode ser, como neste “fin de partie”, e como no fim da novela de Maupassant, trágica. 13 VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010 Deste modo, pode-se dizer que Partie de campagne de Renoir patenteia uma ironia e um cómico mais prazenteiros e benévolos, em suma, mais humanos, e mais humanistas, do que a obra de Maupassant que a inspirou. Daí o choque do seu desenlace, a comédia acabando em tragédia, em naufrágio de duas vidas, em naufrágio do amor. Paradoxalmente, assim, a película é seguramente mais indignada que a novela, o que talvez prove que o riso é tanto mais alegre quanto o seu intuito é mais combativo. Bibliografia Maupassant, G. de, 1995, Une Partie de campagne, avec le scénario du film de Jean Renoir, Paris, Le livre de poche. Cahen, G. (dir.), 1992, L’Humour, un état d’esprit, Paris, Autrement, nº 131. Genette, G., 2002, Figures V, Paris, Seuil. Hamon, Ph., 1996, L’Ironie littéraire, Paris, Hachette. 14