Mariana Martins Villaça Brasil A política cultural cubana e o movimento da Nova Trova1 A trajetória do movimento musical Nova Trova (ou, em Cuba, Nueva Trova) é particularmente interessante para a análise da política cultural empreendida pelo governo de Fidel Castro no final da década de sessenta, pois a constituição da identidade estética e política desse movimento se deu no bojo de uma intensa relação – de mão dupla – entre as aspirações dos seus integrantes, suas referências musicais e as determinações e orientações governamentais . Apesar de difundida no mercado internacional como canção de protesto, a Nova Trova não surgiu propriamente como um gênero engajado ou “comprometido”, como se costuma designar a música voltada a temas e questões de caráter político-ideológico, identificada, em Cuba, aos ideais do governo instituído após a Revolução. Ao contrário, diversas canções que foram posteriormente designadas como Nova Trova, compostas pelo Grupo de Experimentación Sonora do ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos), entre 1969 e 1972, incomodaram bastante o governo e as instâncias 1 Essa comunicação é um desdobramento de minha pesquisa de Mestrado intitulada Tropicalismo (19671969) e Grupo de Experimentación Sonora (1969-1972): engajamento e experimentalismo na canção popular, no Brasil e em Cuba, realizada com apoio da Fapesp e apresentada ao Depto de História da FFLCHUniversidade de São Paulo, em dezembro de 2000. A política cultural cubana e o movimento da Nova Trova oficiais às quais os músicos estavam submetidos. Não obstante o início polêmico dessa produção musical coletiva, objeto de censuras e embates dentro e fora do ICAIC, foi criado oficialmente, em 1972, cerca de três anos após a eclosão da Nova Trova, o MNT – Movimiento de la Nueva Trova2, organismo que incorporou muitos dos integrantes do Grupo de Experimentación Sonora, orientou-os ideologicamente em relação à escolha de temáticas para as composições e foi responsável pela divulgação do viés particularmente engajado da obra por eles produzida. As transformações observadas ao longo da história da Nova Trova são indicativas de um processo gradual de implementação de política cultural que atinge intensamente a todo o meio artístico e estabelece um interessante jogo de tolerância, adesão e resistência entre músicos e dirigentes, jogo esse intermediado por figuras que transitam entre o meio artístico e político, exercendo certo mecenato através das instituições que comandavam. Nesse processo, pode-se observar a trajetória de um movimento originalmente marcado por uma postura de crítica e contestação política e social que, apesar da identificação de seus integrantes com os ideais revolucionários, não poupava as contradições das medidas de inserção de Cuba no socialismo e as restrições impostas ao meio artístico. Esse mesmo movimento, permeado por tensões estéticas e ideológicas, e marginalizado dos meios de comunicação estatais, é posteriormente alçado à categoria de porta-voz do próprio governo, com a anuência de seus integrantes. Façamos, então, um breve apanhado dos fatores que propiciaram essas transformações. Ao criar o Grupo de Experimentación Sonora do ICAIC, em 1969, o diretor desse Instituto, Alfredo Guevara, pretendia dinamizar a música popular cubana, em crise devido ao esgotamento causado pela prioritária difusão de hinos e marchas desde a Revolução, reunindo, sob sua proteção, músicos talentosos que, naquele momento, estavam banidos dos meios de comunicação por serem considerados suspeitos em relação à postura comportamental e ideológica face à Revolução. Além disso, Guevara esperava aprimorar as trilhas sonoras dos filmes produzidos pelo ICAIC e criar condições para que em Cuba 2 Fundado em dezembro de 1972, em Manzanillo, sob direção da UJC. Cf.: “Declaración del Primer Encuentro de Jóvenes Trovadores” in Movimento de la Nueva Trova en su X Aniversario. Biblioteca Nacional José Martí, 1982, pp. 7-13. http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html 2 Mariana Martins Villaça ocorresse um fenômeno semelhante ao por ele visto numa viagem que fizera ao Brasil: o pleno envolvimento e identificação da juventude com uma música popular ao mesmo tempo contagiante, plural, criativa e veiculadora de um “conteúdo revolucionário”.3 Esses objetivos que orientaram a escolha de Leo Brouwer como diretor musical, e a seleção de integrantes polêmicos como Silvio Rodríguez, Pablo Milanés, Leo Pimentel, Pablo Menéndez, dentre outros4, esbarraram num primeiro obstáculo: vários desses músicos estavam proibidos de serem veiculados por rádio, televisão ou participarem do circuito autorizado de shows e espetáculos. Guardadas as particularidades de cada caso, essas restrições se inserem num contexto em que, ao ser realizado o Congreso Cultural de La Habana, no ano anterior (4 a 11 de janeiro de 1968), eram reafirmadas as proposições lançadas por Fidel Castro em seu discurso “Palabras a los intelectuales”5 de 1961, a despeito do protesto de inúmero intelectuais estrangeiros presentes no evento. Nesse Congresso, enfatizava-se o compromisso do artista em defender a Revolução e o de submeter-se incondicionalmente às deliberações das instâncias superiores, mesmo em se tratando de opções estéticas. Nas entrelinhas de seu primeiro discurso dirigido ao meio artístico-intelectual, de 1961, Fidel endossava a polêmica proibição de um filme considerado “inadequado” (o documentário em curta-metragem P.M., de Sabá Cabrera Infante e Orlando Jiménez Leal), o fechamento de uma revista ousada política e esteticamente – Lunes de Revolución 6- e medidas restritivas semelhantes que, a partir de então, passariam a ser encabeçadas pelo Consejo Nacional de Cultura e pela recén-fundada UNEAC - Unión Nacional de Escritores y Artistas de Cuba. Muito mais explicitamente, no Congresso de 3 Sobre a história do GES e, naturalmente, a da Nova Trova, ver PÉREZ, Clara Díaz. 1994. Sobre la guitarra, la voz.; ACOSTA, Leonardo. 1989. Del tambor al sintetizador; BROUWER, Leo. 1989. La música, lo cubano, la innovación. 4 A composição oficial do GES, datada de 1972, é a seguinte: Carlos Aberhoff - sax, flauta; Eduardo Ramos bajo, guitarra elétrica, violão; Sergio Vitier - cordas; Silvio Rodríguez - vocais, violão; Emiliano Salvador teclado, percussão; Genaro Garcia Caturla - flauta; Leo Pimentel - percussão, violão; Pablo Menéndez violão, harmônica, trombone; Pablo Milanés - vocais, violão; Noel Nicola - vocais, violão; Leo Brouwer direção musical. Parte técnica: Jeronimo Labrado, José Borras e Ricardo Iztueta; Lidia Herrero (produtora). Participaram durante cerca de un ano e meio como professores: Juan Elósegui (solfejo), Frederico Smith (harmonia), Jerónimo Labrada (eletroacústica) e Leo Brouwer (análise musical, orquestração e estética musical). 5 CASTRO, Fidel. 1961. Palabras a los intelectuales. 6 Ver excelente análise histórica do surgimento e fim dessa revista em MISKULIN, Sílvia C. Cultura e política em Cuba: os debates em Lunes de Revolución. 3 Actas del IV Congreso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular A política cultural cubana e o movimento da Nova Trova 1968, passava a ser exigido que o artista respeitasse as convenções estéticas autorizadas pelo governo e assumisse o discurso ideológico da conscientização política, através de formas claras de linguagem. Desde 1961, muitas mudanças haviam ocorrido no cenário político cubano e a ação governamental sobre todas as esferas da arte se tornara cada vez mais incisiva, apesar dos critérios para a avaliação do caráter comprometido das obras musicais nunca terem sido propriamente objetivos, na prática7. A adoção do socialismo, a fundação do Partido Comunista (1965) e a tentativa de definição de um realismo socialista cubano, que regulamentasse a produção artística e restringisse os chamados “devaneios estéticos” presentes em obras inacessíveis às massas e pouco convenientes à propaganda política, configuravam medidas importantes na implementação de uma política cultural de inspiração soviética. Nessa perspectiva, a criação do Centro de la Canción Protesta da Casa de las Américas, em 1967, já anunciava a prioridade do momento no âmbito da política cultural: o estímulo à música engajada ou comprometida. Esse estímulo se inseria numa iniciativa de aproximação da música cubana aos movimentos de canção de protesto latinoamericanos, ação que, no plano cultural, se realizava em consonância com a política internacional de promoção e difusão da revolução explicitada no I Encuentro de la OLAS - Organización Latinoamericana de Solidariedad, nesse mesmo ano. Apesar das balizas determinadas pela política cultural apresentada em 1968, a tradição criativa da música popular cubana extrapolava as tentativas de cerceamento. Mesmo proibidos, discos dos Beatles circulavam clandestinamente entre os músicos e a juventude universitária, mesmo condenados, instrumentos eletrificados eram artesanalmente confeccionados e continuavam contaminando com “células rítmicas imperialistas” a música de compositores jovens que, mesmo sob o rótulo da canção de 7 Os músicos eram orientados a valorizar a tradição, a evitar o “cosmopolitismo desfigurador” (elementos estrangeiros), adotar uma linguagem acessível e acima de tudo, ser otimista e defender a Revolução. Cf.: ARDÉVOL, J.1966. “La música y su orientación en el presente cubano” in Música y Revolución., p. 128; e AGUIRRE, Mirta. “Realismo, realismo socialista y la posición cubana” in ESCALONA, J. F. 1987. Estética. Selección de Lecturas., p. 306. http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html 4 Mariana Martins Villaça protesto, questionavam, direta ou indiretamente, a censura vigente e as deliberações governamentais para o meio artístico8. Os canais através dos quais essa produção musical controvertida chegava a um determinado público (majoritariamente universitário, freqüentador de apresentações ao vivo, em salas fechadas) eram mantidos em instituições que exerciam certo mecenato para com artistas banidos do circuito oficial. A Casa de las Américas e o ICAIC eram espaços institucionais que possuíam esse caráter, uma vez que seus respectivos diretores – Haydeé Santamaría e Alfredo Guevara – gozavam de grande prestígio político devido ao passado militante e, graças a isso, detinham alguma autonomia de ação patronal. Podemos entender melhor a atuação da Casa e do ICAIC a partir do perfil traçado por Raymond Williams para as chamadas “instituições privilegiadas”, terminologia que usa para destacar organizações incorporadas ao sistema que apresentam, entretanto, certo nível controlado de contestação9. Entretanto, o protecionismo exercido aos músicos e artistas, mesmo no âmbito dessas instituições, tinha seus limites. A polêmica travada na imprensa cubana, em 1970, entre o grupo chileno Quilapayún e o GES, por exemplo, nos ajuda a ilustrar essa situação. Segundo depoimentos dos músicos, os integrantes do Quilapayún, ao se encontrarem em Cuba para participar do Festival Internacional de la Canción Popular, em Varadero (8 a 22 de novembro de 1970) haviam sido alertados de que o GES era “um grupo de indisciplinados, de desviados politicamente”. Influenciados por essa posição e assumidamente contrários `a estética musical do grupo cubano, caracterizada pela mistura eclética de elementos nacionais e estrangeiros, os músicos chilenos declararam ironicamente à imprensa que se admiravam de que “algunos en Cuba hicieran canciones con textos revolucionários y con música imperialista”, produzindo, em vez de uma cultura roja, uma cultura rosa.10 A resposta a essa declaração, redigida pelos músicos do GES, 8 SARUSKY, Jaime. "Entrevista con Noel Nicola, Eduardo Ramos y Sergio Vitier" in El tiempo y el mito Dossier sobre el GES del ICAIC. La Jiribilla, núm. 3, Año I, La Habana, 28 de julio de 2001. 9 WILLIAMS, Raymond. 1992.“Instituições” in Cultura. pp. 54-5. 10 SARUSKY, Jaime. "La época, la música, lo humano" (fragmentos de una entrevista a Silvio Rodríguez realizada por Revolución y Cultura, s/f) in Causas y Azares: la canción. (Dossier sobre Silvio Rodríguez) Revista electrónica La Jiribilla, núm. 3, Año I, La Habana, 28 de julio de 2001. 5 Actas del IV Congreso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular A política cultural cubana e o movimento da Nova Trova nunca chegou à imprensa por determinação do próprio mantenedor do grupo, Alfredo Guevara, que provavelmente temendo maiores repercussões, já que o embate tornara-se público, proibiu sua divulgação e declarou aos músicos que as regras do jogo deveriam ser por ele estabelecidas, sempre. Mesmo limitado aos meios de difusão propiciados pelos filmes (para os quais compunham trilhas sonoras) e por apresentações periódicas na Cinemateca do ICAIC, o Grupo de Experimentación Sonora, justamente em função de seu ecletismo estético, suas letras metafóricas e a presença de ritmos e estilos provenientes do jazz, do rock e da música brasileira (Tropicalismo e Bossa Nova), ganhou o gosto do público jovem e em pouco tempo já não podia ser simplesmente ignorado pelos veículos de comunicação mantidos pelo governo. A imprensa, a essa altura, já batizara o novo estilo de Nova Trova, numa tentativa de associá-lo convenientemente a um gênero popular tradicional (a trova das primeiras décadas do século XX), e os músicos passavam a ser entrevistados e indagados a respeito das características de suas composições11. A solução encontrada pelo governo para o problema do crescimento da popularidade de um grupo visivelmente pouco convencional em relação aos padrões estéticos e políticos desejados, viria após a realização do I Congreso Nacional de Educación y Cultura, em 1971 (23 a 30 de abril), evento que se converteu em marco do recrudescimento da política cultural e da intolerância com os artistas que não seguissem os parâmetros morais e ideológicos estabelecidos pela Declaração Final do Congresso. A partir desse evento, teve início o processo conhecido como “parametraje”: artistas, intelectuais e cidadãos que não se adequassem às normas estéticas e comportamentais vigentes, perdiam o direito de exercer suas funções ou eram punidos. Julgamentos, delações e incentivos ao reconhecimento público de culpa e arrependimento pelos “desvios” cometidos passaram a ser praticados como forma efetiva de controle sobre o 11 Sobre essas características ver NICOLA, Noel. “Por qué Nueva Trova?”. El Caimán Barbudo, núm. 92, julio de 1975, pp. 10-12. e PEREIRA, M. “En busca del sonido americano”. Revista Cuba Internacional, año 4, núm. 29, enero de 1972, pp. 22-25. http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html 6 Mariana Martins Villaça meio cultural. A flexibilidade antes existente devido à pouca exatidão dos critérios de censura era substituída, então, por parâmetros muito mais rígidos.12 Uma vez que qualquer tipo de represália direta ao meio musical não seria politicamente estratégico, dada a popularidade dos artistas, o governo procurou resolver o caráter pouco comprometido da produção do GES, criando um organismo que fosse controlado pelo Partido Comunista e re-aproveitasse os músicos em missões de caráter político. Assim, em 1972, os principais músicos do GES (já astros da Nova Trova) passam a ser membros também do MNT e a eles são atribuídas duas metas fundamentais: compor canção de protesto e atrair outros jovens para as fileiras da UJC (Unión de Jóvenes Comunistas), através da realização de encontros e festivais de Nova Trova em todo território nacional. Essa institucionalização não encontra resistência por parte dos músicos, à medida que o apoio governamental representava a oportunidade de gravação de discos, a divulgação massiva de suas obras e o reconhecimento público ansiado por todo artista. É válido destacar, fazendo um breve parêntese, que esse tipo de intervenção ocorreu não apenas no meio musical: em 1973, de forma semelhante à criação do MNT, foi criado o MTN – Movimiento de Teatro Nuevo, com o objetivo de suplantar o chamado “teatro de autor” e incentivar produções voltadas para o grande público13. No meio musical, objeto de nosso enfoque, passaram a ser realizados inúmeros eventos de difusão da Nova Trova (principalmente as músicas de caráter comprometido) e outros estilos de canção de protesto, tais como os Encuentros de Música Latinoamericana, os Encuentros Nacionales de Jóvenes Trovadores, as Jornadas de la Canción Política, dentre outros festivais de médio e grande porte. Os músicos mais famosos do GES passaram a realizar turnês internacionais, tornando-se “embaixadores da música cubana no exterior” e o grau de experimentalismo antes presente nas canções e trilhas sonoras do GES diminuiu consideravelmente com a substituição da direção musical de Leo Brouwer pela de Eduardo Ramos, também em 1972. 12 Sobre o processo de “parametraje”, ver BARQUET, Jesús. "El teatro cubano en la encrucijada sociopolítica (1959-1990)" in La palabra y el hombre, Xalapa (México): núm. 108, out-dic/1998, p.70. 13 Idem, p.75. 7 Actas del IV Congreso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular A política cultural cubana e o movimento da Nova Trova Apesar da produção musical ter sido intensa entre 1969 e 1972 (sendo boa parte desta produção ainda hoje inédita), somente a partir da institucionalização do movimento foram gravados os primeiros discos coletivos do GES e da Nova Trova, para os quais selecionaram-se fundamentalmente as canções engajadas, muitas delas feitas sob encomenda oficial para comemorações e aniversários de efemérides da Revolução. A criação, pelo governo cubano, de organismos especiais para legitimar produções pouco adequadas aos parâmetros por ele estabelecidos marca a peculiaridade de sua política cultural, que teve no processo de institucionalização da arte uma de suas principais estratégias. Entretanto, freqüentemente o resultado de imposições ideológicas ao campo artístico se delineia através de contornos inesperados e, no caso da Nova Trova cubana, apesar de todo o controle que se pretendeu exercer sobre essa produção musical, surgiram brechas através das quais alguns traços estéticos “não permitidos” se impuseram e acabaram sendo, gradativamente, tolerados pelas instâncias oficiais. Os timbres provenientes do rock, a orquestração inspirada nos arranjos dos Beatles, os recursos possibilitados pelo uso de instrumentos elétricos e eletrônicos, o aproveitamento nada ortodoxo dos gêneros tradicionais da música cubana, a ousadia presente na incorporação de ruídos, atonalismos e elementos que extrapolavam a categoria do “facilmente assimilado pelas massas”, além da ambigüidade característica de boa parte das letras de alguns compositores, dentre os quais se destaca particularmente Silvio Rodríguez, são traços estéticos da Nova Trova que fugiram à regra estabelecida pela política cultural e se consolidaram no cenário da música popular cubana. O caráter híbrido da música popular, a interação com as múltiplas influências que constituem o “ajiaco” da cultura cubana14 não foram - e nem poderiam ter sido completamente abafados por diretrizes ideológicas, razão pela qual se constituiu, nesse país, uma canção de protesto original em relação aos padrões do que se convencionou chamar de nova canção latino-americana. Em condições diversas, no Brasil, notamos um fenômeno semelhante em relação à canção de protesto nacional, que assume formas e 14 O termo cultura híbrida é apresentado em GARCÍA CANCLINI, Néstor. 1998. Culturas Híbridas . Estratégias para entrar e sair da Modernidade, enquanto a metáfora do “ajiaco” para a mestiçagem característica da cultura cubana é tratada em ORTIZ, Fernando. 1973. Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar. http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html 8 Mariana Martins Villaça estilos múltiplos, apresenta certa dose de ambigüidade e, como em Cuba, se converteu em alvo de polêmicas e debates dentro do próprio meio musical. Para além do discurso consagrado pela historiografia oficial, a trajetória da Nova Trova vem sendo felizmente revista, motivada pelas gravações em CD da produção do GES e por dossiês publicados dentro e fora do país15. Nos últimos anos, alguns dos novos-trovadores cujas carreiras se consolidaram dentro e fora de Cuba, caso de Silvio Rodríguez e Pablo Milanés, passaram a gravar antigos repertórios16 e canções inéditas das décadas de sessenta e setenta. Concomitantemente, o debate da trajetória histórica e das facetas da identidade da música popular cubana ganhou recente relevância a partir do sucesso internacional dos músicos do Buena Vista Social Club e da curiosidade internacional que esse fenômeno acarretou. Finalizando, acreditamos que discutir o caráter estético e ideológico da música popular cubana e esmiuçar cuidadosamente alguns mitos e imaginários consolidados historicamente dentro e fora da Ilha (para não falar das variadas formas de recepção dessa música, terreno ainda por ser desvendado), é uma tarefa que não só colabora para por às claras os bastidores da política cultural do governo de Fidel Castro, como deixa transparecer cruzamentos de tradições, referências e influências de uma forma de 15 No período em que essa comunicação foi escrita, a imprensa cubana anunciava a realização, na Facultad de Filosofia de la Universidad de La Habana, do Seminário Internacional “La trova cubana desde sus orígenes hasta la actualidad”, entre 15 e 19 de julho de 2002, evento de celebração e discussão dos 30 anos do surgimento da Nova Trova (marcado oficialmente pela fundação do MNT, em 1972). Esse seminário, apesar de não contar, na programação oficial, com palestristas e convidados internacionais, revela o empenho governamental em propiciar condições para atrair pesquisadores e público estrangeiros (dado para o qual corroboram interesses econômicos e políticos) , e possibilitar, ainda que timidamente, uma releitura da história da música popular cubana. 16 Por antigo repertório entendemos as primeiras gravações coletivas do GES e LPs individuais dos músicos da Nova Trova. Como discografia básica, poderíamos listar: - Canciones del Grupo de Experimentación Sonora (LDA 3401, Areíto, 1973) - Grupo de Experimentación Sonora (LD 3450, Areíto/EGREM, 1975) - Grupo de Experimentación Sonora - 2 (LDA 3456, EGREM, 1975) - Grupo de Experimentación Sonora - 3 (LDA 3460, EGREM, 1975) - Grupo de Experimentación Sonora - 4 (LDA 3482, EGREM, 1975) o - Grupo de Experimentación Sonora - XXV aniversario del Cine Cubano (LDA 4175, EGREM, 1984) Obs.: As regravações do GES foram parcailmente editadas pela EGREM, em 1997, numa coleção de quatro CDs chamados Grupo Experimentación Sonora del ICAIC - vol. I, II, III e IV - Silvio Rodríguez - Días y Flores (Ojalá, MCO - 0001, 1975 ou EGREM, LD3467, 1975) - Silvio Rodríguez 1968/1970 - Al final de este viaje... (Alerce, ALCL 093, 1978) - Pablo Milanés – (Areito, 6538, 1974 - 45 rpm) - Pablo Milanés - Su nombre es pueblo (LD3547, EGREM, 1975) - Noel Nicola -De un pájaro las dos alas – (LD3530, EGREM, 1975) 9 Actas del IV Congreso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular A política cultural cubana e o movimento da Nova Trova expressão musical eclética, complexa e de sonoridade extremamente rica, em cujo sentido cifrado reside um dos principal atrativos à análise histórica. Bibliografia Acosta, Leonardo. 1989. Del tambor al sintetizador. La Habana: Letras Cubanas. Aguirre, Mirta. 1987. “Realismo, realismo socialista y la posición cubana” in Escalona, J. F. 1987. Estética. Selección de Lecturas. La Habana: Editorial Pueblo y Educación. Ardévol, J.1966. “La música y su orientación en el presente cubano” in Música y Revolución. La Habana: Ediciones Unión/UNEAC. Barquet, Jesús. 1998. "El teatro cubano en la encrucijada sociopolítica (1959-1990)" in La palabra y el hombre. Xalapa (México), 108: 70. Brouwer, Leo. 1989. La música, lo cubano, la innovación. La Habana, Letras Cubanas. Castro, Fidel. 1961. Palabras a los intelectuales. La Habana: Ediciones del Consejo Nacional de Cultura. García Canclini, Néstor. 1998. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da Modernidade São Paulo: Edusp. Miskulin, Sílvia C. 2000. Cultura e política em Cuba: os debates em Lunes de Revolución. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Depto. de História –FFLCH–Universidade de São Paulo. Nicola, Noel. 1975. “Por qué Nueva Trova?”. El Caimán Barbudo 92: 10-12. Ortiz, Fernando. 1973. Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar. Barcelona: Ariel. Pereira, M. 1972. “En busca del sonido americano”. Revista Cuba Internacional, 4/29: 22-25. Pérez, Clara Díaz. 1994. Sobre la guitarra, la voz. La Habana: Letras Cubanas. Sarusky, Jaime. 2001. "Entrevista con Noel Nicola, Eduardo Ramos y Sergio Vitier" in El tiempo y el mito - Dossier sobre el GES del ICAIC. La Habana. Revista Electrónica La Jiribilla, 1/3. http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html 10 Mariana Martins Villaça Sarusky, Jaime. 2001. "La época, la música, lo humano" (fragmentos de una entrevista a Silvio Rodríguez realizada por Revolución y Cultura, s/f) in Causas y Azares: la canción. (Dossier sobre Silvio Rodríguez). La Habana. Revista electrónica La Jiribilla, 1/3. Williams, Raymond. 1992. “Instituições” in Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 11 Actas del IV Congreso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular