Sobre a avaliação:
uma reflexão acerca dos desafios e das possibilidades de enfrentá-los 1
José Heleno Ferreira2
A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
Voltava igualmente com meio perfil
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela
E carecia optar. Cada um optou conforme
Seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(Verdade – Carlos Drummond de Andrade
– do livro "O corpo", editora Record, 1984)
A história da avaliação se confunde, no mundo ocidental, com a história do exame, quase
sempre visto como sinônimo do ato de avaliar. A aproximação entre os dois conceitos leva,
inclusive, à equivocada ideia de que o exame, bem como a quantificação de seus resultados,
é inerente ao sistema de ensino e, mais ainda, à prática educativa. Isso não é, porém, o que
evidencia uma rápida análise da história do exame e dos sistemas avaliativos.
1
Texto elaborado para o debate em sala de aula com as alunas do quarto período do curso de Pedagogia
ISEC/ISED
2
Professor do curso de Pedagogia – ISEC/ISED
A prática do exame é uma herança da burocracia chinesa, nos séculos XI e XII, que utilizou
esse recurso para selecionar os novos integrantes da administração imperial. Antes disso, no
mundo ocidental, as universidades que surgiam na Europa não tinham ainda a prática de
examinar seus alunos, pelo menos não na acepção geral que se tem de exame: instrumento
de classificação dos sujeitos que a ele se submetem a partir de critérios estabelecidos por
aqueles que aplicam-no.
Os estudantes universitários medievais candidatavam-se ao exame sobre um determinado
tema quando sentiam-se aptos a serem examinados. O resultado desse processo não tinha
como objetivo definir a vida futura do aluno (a passagem de um nível a outro de ensino, por
exemplo, era definida pelo professor que acompanhava o estudante em todo o seu percurso
de formação e não dependia de resultados obtidos em testes ou procedimentos
equivalentes). O objetivo do exame era orientar o professor quanto aos passos futuros a
serem propostos ao aluno.
Um outro elemento histórico que se associa ao exame e à avaliação é a nota – também esta
considerada, muitas vezes, como algo inerente ao processo educativo. Sabe-se, no entanto,
que a nota é uma herança da pedagogia inglesa do século XIX, momento marcado pela
hegemonia dos princípios positivistas. Antes disso, não havia a prática de quantificação de
resultados nos processos avaliativos (ou mesmo nos exames).
Isso posto, ou seja, afirmado o caráter histórico e cultural do exame e da nota, torna-se
possível discutir a avaliação – que não pode ser confundida com os recursos que podem ser
utilizados (se assim for o interesse do avaliador) para aplicá-la.
Avaliar, ao contrário de examinar, pressupõe acompanhar um determinado processo. O
exame identifica o que o examinado é capaz de fazer (o que sabe, o que não sabe etc) num
determinado momento. Esse instrumento não serve, porém, para dizer do processo, como
também não é capaz de dizer por que o sujeito que se examina demonstra esta ou aquela
dificuldade. Em síntese: o exame consegue apenas responder se o examinado sabe
responder/fazer aquilo que o examinador propõe da forma como foi proposto naquele exato
e estanque momento.
Avaliar, no entanto, supõe analisar o processo de construção – de um saber, de uma
habilidade, de uma competência. Esse acompanhamento poderá mostrar o que o sujeito
avaliado sabe, o que ele é capaz de fazer, o que ele ainda não sabe (mas pode vir a saber), o
porquê das dificuldades e das potencialidades demonstradas. Mas o ato de avaliar
pressupõe, também, emitir um parecer sobre os resultados obtidos a partir da realização de
um trabalho. Esse acompanhamento e a emissão desse parecer necessariamente estarão
embasados no olhar que o avaliador tem sobre o mundo – assim como não existe uma
experiência ateórica, não é possível uma avaliação que não esteja fundamentada em um
posicionamento político.
Instaura-se, pois, o conflito, uma vez que, via de regra, o olhar do avaliador e o olhar do
avaliado sobre o mundo são diversos, por vezes, contraditórios, dicotômicos... Partindo do
pressuposto de que o ser humano é um ser de aprendizagem, um ser que se faz humano,
torna-se imprescindível reconhecer que cada sujeito carrega sua individualidade e suas
construções coletivas – que só podem ser compreendidas a partir da história de cada um.
O que acontece, muitas vezes, é a sobreposição do olhar do avaliador sobre o avaliado. A
relação que se estabelece entre esses dois polos (avaliador e avaliado), num processo em
que as decisões são tomadas unilateralmente, como é comum no ambiente escolar, pode ser
comparada à relação que os conquistadores espanhóis estabeleceram com os indígenas da
América Central. Ao conquistarem um determinado território, os espanhóis ergueram os
templos católicos sobre os templos indígenas, com a clara intenção de aniquilar uma
cultura, sobrepondo, a ela, a cultura dominante. Os templos católicos majestosamente
erguidos sobre as ruínas dos templos indígenas continuam ainda de pé. Porém, a ação do
tempo, dos ventos e das chuvas, as escavações de historiadores e arqueólogos cada dia mais
deixam evidentes os sinais das construções indígenas.3
3
Mailsa Carla Passos e Carlos Roberto Carvalho (2003) apresentam, através de uma análise acurada, a
metáfora dos colonizadores espanhóis sobre os indígenas para discutir a avaliação no artigo “Templos sobre
templos: a história da América Latina e o cotidiano da escola”.
No mundo escolar, muitas vezes uma cultura se sobrepõe à outra, impedindo-a de se
mostrar tal como é. Assim, a cultura escolar inibe ou aniquila a cultura dos escolares.
Porém, tal como os templos indígenas, essa cultura não se deixa soterrar totalmente.
Sempre que possível, mostra-se, às vezes de forma virulenta e sarcástica, às vezes de forma
poética... mas sempre mostrando a impossibilidade de destruição completa de um modo de
ver e viver a vida.
A reflexão sobre a história da América Latina, o cotidiano escolar e as práticas avaliativas
leva-nos, ainda, a outros questionamentos. Entre eles, o questionamento quanto à
necessidade de romper com uma postura epistemológica centrada na busca da quantificação
dos resultados e do controle sobre todos os processos. Afinal, nos lembra Esteban (2003),
tudo aquilo que pode ser controlado não é de todo verdadeiro, bem como aquilo que se
controla nunca é a totalidade de um determinado fenômeno. Os processos avaliativos
centrados na tentativa de controle e mensuração dos saberes dos escolares não nos
permitem, por exemplo, lidar com “os-ainda-não-saberes”, premissa necessária ao(à)
professor(a) que acredita na possibilidade de os educandos construírem seus saberes a partir
do ponto em que se encontram. Acreditar que o aluno “ainda-não-sabe”, diferentemente de
decretar que ele “não-sabe”, significa acreditar e investir na possibilidade de ele “vir-asaber”.
Como construir uma prática avaliativa que não se caracterize pela anulação da cultura dos
sujeitos avaliados? Que não se restrinja à verificação do que se sabe num determinado
momento? Que não se contente com a classificação dos sujeitos a partir das ações em
momentos estanques, sem que estabeleçam relações com o universo ao seu redor? Que não
priorize a quantificação de resultados?
Responder a todas essas questões não é tarefa fácil, mas algumas posições podem ser
sinalizadas.
Há que se reconhecer, inicialmente, que o avaliador parte de um determinado ponto de
vista, de uma determinada construção cultural. É preciso que o sujeito avaliado saiba que
ponto de vista é esse, quais os objetivos do trabalho que se realiza, quais os pressupostos a
partir dos quais será avaliado. Nesse sentido, determinar os objetivos do trabalho realizado
e esclarecer como será realizada a avaliação é condição para uma prática avaliativa em que
todos sejam considerados sujeitos. Os pressupostos teóricos a partir dos quais se organiza o
trabalho e o processo avaliativo precisam, assim, ser discutidos com aqueles que são
avaliados.
Há que se reconhecer também que a avaliação de um determinado sujeito, de um
determinado processo não pode ater-se a um único instrumento, a uma única ação, a um
único trabalho. Se se quer realizar uma prática avaliativa que vá além da prática do exame,
da quantificação e da classificação, é preciso analisar o processo, a construção dos saberes,
a aquisição de competências e habilidades, considerando, logicamente, todos os acidentes
de percurso, as individualidades, as subjetividades, os interesses coletivos.
Reconhecendo a complexidade do ato de avaliar faz-se necessário negar o reducionismo
presente nas práticas de quantificação de resultados – através de notas e ou conceitos. Não é
possível avaliar um processo, um sujeito durante um processo, e resumir o resultado nessa
avaliação num mero conceito ou num simples número. Para ser coerente com o que aqui se
anuncia enquanto conceito de avaliação, a explicitação de seus resultados precisa também
expressar a complexidade do trabalho realizado.
Por último, é preciso reconhecer que a palavra final não cabe ao avaliador ou ao avaliado...
A quem então? Talvez, ao processo... Afinal, a verdade, como diz o poeta mineiro – cujo
poema serve de epígrafe a este texto – está sempre cingida ao meio... E sempre submetida a
um determinado olhar, a uma determinada ilusão, aos caprichos, às miopias daquele que
avalia.
Afirmar tudo isso não significa, porém, afirmar que o avaliador deva se furtar à emissão de
um parecer ou de um juízo sobre aquilo que avalia. Significa, sim, dizer que cabe ao
avaliador estar ciente de (e explicitar) suas miopias, seus caprichos, suas ilusões... seu olhar
sobre o mundo.
Referências bibliográficas:
BARRIGA, Angel Díaz. Uma polêmica em relação ao exame. In: ESTEBAN, Maria Teresa
(org.). Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro, RJ: DP&A
Editora, 1995. p. 51-82.
ESTEBAN, Maria Teresa (org.). Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Rio
de Janeiro, RJ: DP&A Editora, 1995. 142 p.
ESTEBAN, Maria Teresa (org.). Escola, currículo e avaliação. São Paulo: Cortez, 2003.
167 p.
PASSOS, Mailsa Carla; CARVALHO, Carlos Roberto. Templos construídos sobre
templos: a história da América Latina e o cotidiano da escola. In: ESTEBAN, Maria Teresa
(org.). Escola, currículo e avaliação. São Paulo: Cortez, 2003. p. 83-100.
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