1 INDÍCIOS DE PRÁTICAS EDUCATIVAS DO GRUPO ESCOLAR MARIA TERESA EM SÃO JOÃO DEL-REI, MG (1930-1950) Laerthe de Moraes Abreu Junior professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail: [email protected]. Paula Cristina David Guimarães Acadêmica do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de São João del-Rei, bolsista CNPq. E-mail: [email protected]. Palavras-chave: Cultura material escolar – Práticas escolares – Arquivos escolares INTRODUÇÃO Nas últimas duas décadas, as pesquisas em história fizeram uma forte inflexão: ao questionar investigações pautadas pela historiografia tradicional com o viés da filosofia da história que buscavam as origens e causas determinantes dos fenômenos históricos numa perspectiva totalizadora, muitos historiadores passaram a reivindicar não só uma autonomia epistemológica como direcionaram sua atenção para fenômenos e objetos em campos de intersecção da história com outras áreas do conhecimento, principalmente com a sociologia e a antropologia. Essas aproximações formaram o campo de pesquisa denominado história cultural. Nas pesquisas em história da educação também houve essa aproximação do campo educativo com a história cultural. Esta nova abordagem, porém, não redundou numa unidade quer seja nos fundamentos epistemológicos, nem nos procedimentos metodológicos. Neste contexto, um dos planos de investigação mais promissor é aquele que investiga as instituições educacionais a partir de dentro de suas formas de organização. Espalhados pelo mundo inteiro esses pesquisadores valem-se de métodos bastante diversos (Berrio, 2000; Julia, 2001; Hébrard, 2001; Magalhães, 2004; Viñao, 1998). Estes trabalhos se caracterizam por pesquisar a cultura escolar em suas diversas modalidades: valores, saberes, práticas, estratégias, desde o interior das instituições, sem desconsiderar, obviamente o contexto (ou os contextos) sócio-político-histórico. Investigam a cultura escolar a partir de um repertório grande e difuso de atividades sociais específicas das instituições educacionais que abrangem atores diversos: professores e alunos, assim como ex-professores e exalunos e a comunidade escolar envolvida nessas ações sociais que têm na escola o ponto de partida e o argumento constitutivo de um discurso específico. É nesse contexto que se encontra o presente trabalho voltado para pesquisar a cultura escolar e suas práticas a partir de um recorte bem específico e delimitado: compreender e interpretar a formação das práticas escolares da Escola Maria Teresa em São João del-Rei, durante as décadas de 1930 a 1950. Para isso, foram investigados documentos do arquivo escolar com a intenção de analisar os indícios das práticas escolares encontrados naquele acervo. 2 Assim, o trabalho se voltou prioritariamente para analisar documentos do cotidiano escolar tais como livros de registro de matrículas, atas de reuniões, diários de classe entre outros para indagar: O que esses documentos dizem de significativo e de relevante sobre as práticas escolares? Mesmo reconhecendo de antemão que tais documentos cumprem uma função mais político-administrativa – para não dizer burocrática – do que didático-pedagógica, verificar se esses documentos servem como testemunhos fidedignos da história cotidiana da vida escolar daquela instituição. Pesquisas em acervos escolares apresentam lacunas e descontinuidades tanto por perda como por desinteresse em guardar documentos que não sirvam para comprovação legal da vida acadêmica dos alunos e da experiência profissional dos professores. A Escola Maria Teresa não tinha, até então, a catalogação do arquivo existente, todo ele acumulado em um pequeno armário. A primeira fase da pesquisa foi fazer um registro formal do material existente, que data desde 1930 até 2005. Foram catalogados mais de 300 documentos, que mostram de maneira direta e indireta a educação empreendida em São João del-Rei durante um período bastante conturbado, heterogêneo e dinâmico na política social e educacional do nosso país. O segundo passo foi selecionar o material encontrado que fosse pertinente ao recorte temporal da pesquisa e organizá-lo com o intuito deliberado de fazer escolhas pois sabemos da dificuldade de tomar opções neutras em pesquisas dessa natureza, para entender a escola e suas práticas. “O simples fato de selecionarmos determinados documentos e não outros, colocando-os dentro de uma certa sintaxe expositiva de qualquer natureza, induz a uma certa leitura, colocando por terra o mito da neutralidade, de fundo positivista”. (Peixoto, 2000, p.37). Foi realizado também, o cruzamento das informações contidas do Livro de Atas/Termos de Promoção, que trata basicamente da descrição das formas de avaliação e classificação dos alunos do grupo escolar, com os Livros de Matriculas disponíveis a cada ano das décadas pesquisadas, onde eram registrados dados pessoais e situação sócio-econômica da família dos alunos matriculados. Com o cruzamento de informações foi possível observar a relação do rendimento escolar dos alunos com o grupo social ao qual a família pertencia na cidade naquela época. Ainda como propósito dessa pesquisa e como complemento às fontes documentais, realizamos entrevistas com ex-alunos e uma ex-professora, tendo como principal meta o preenchimento de lacunas, pois não foram encontrados no arquivo da escola nenhum material didático pedagógico como cadernos e trabalhos de alunos ou professores, que pudesse apontar para indícios da materialidade das atividades cotidianas em sala de aula. Os depoimentos orais, apesar da grande dificuldade em localizar os sujeitos, mostraram-se valiosos ao objetivo principal da pesquisa, a investigação das práticas escolares empreendidas no Grupo Escolar Maria Teresa. O recorte temporal do trabalho - de 1930 a 1950 - se justifica pelo forte impacto político e social que estas décadas tiveram na história de nossa república, assim como foi grande a importância desse período para os processos de escolarização pública em nosso país (Sousa, 2000; Carvalho, 2002). PEQUENO HISTÓRICO DO GRUPO ESCOLAR MARIA TERESA O Grupo Escolar Maria Teresa foi criado em 13 de Março de 1925, pelo Decreto 6.818 do Governo de Estado de Minas Gerais. Inicialmente a escola foi instalada no prédio de número 36 na rua Municipal, hoje, Ministro Gabriel Passos. Em 1937, estando 3 o imóvel em precárias condições de segurança, as classes passaram a funcionar em vários locais: no térreo do sobrado de André Bello, numa casa ao lado do colégio Nossa Senhora das Dores e na casa de número 293 da então rua Municipal. Outra parte da escola passou a funcionar no sobrado do atual Mosteiro São José, na Rua Padre José Maria (Guimarães, 1975, p.28). Em 1939, a escola se estabeleceu no casarão do Largo São Francisco e em 1942, após uma reforma determinada pelo Governo do Estado, a escola passou a funcionar no prédio situado à Praça dos Expedicionários, onde permanece até hoje com o nome de Escola Municipal Maria Teresa. O imóvel histórico que atualmente abriga a escola Municipal Maria Teresa, acomodou inicialmente a casa da Intendência e Fundição do Ouro (1735-1833), a Aula Régia de Latim (1774), o Colégio Duval (1848), o Externato de São João del-Rei (1861), a escola Normal (1883), os quartéis do 28º Batalhão (1897 – 1920), a Enfermaria Militar do extinto 51º Batalhão de Caçadores, e finalmente em 1942, após reformas empreendidas pelo governo do estado e prefeitura municipal, passou a ser o Grupo Escolar Maria Teresa, depois Escola Estadual Maria Teresa, para finalmente chamar-se Escola Municipal Maria Teresa. Atualmente, após sua municipalização, a Escola Municipal Maria Teresa atende, em sua maioria, crianças e jovens carentes de São João del-Rei. O ARQUIVO DA ESCOLA Segundo Moraes, Zaia e Vendrameto (2005), o acervo arquivístico de uma escola é decorrente de suas atividades administrativas e pedagógicas. As atividades administrativas são atribuições específicas da secretaria, do departamento pessoal, da tesouraria e da diretoria. A sala de aula, ao lado da oficina, constituem os principais locais de desenvolvimento das atividades pedagógicas, onde são produzidos materiais relacionados à situação de ensino-aprendizagem – materiais de uso didático e artefatos técnicos, além de registros sobre as classes e sobre cada aluno individualmente. O arquivo do Grupo Escolar Maria Teresa está disposto em um armário de parede sem muitos cuidados com a conservação do material ali depositado. Os documentos e livros estão empilhados em prateleiras, embalados em sacos plásticos e amontoados em caixas de papelão sem nenhum tipo de limpeza. O armário fica sempre trancado e de acordo com a diretora, ele só é aberto para o depósito de materiais que não terão mais serventia no arquivo vivo. Essa escola, assim como muitas outras instituições escolares, não tem, de uma maneira geral, preocupação com a guarda de materiais escolares como fontes primárias históricas. A falta de locais adequados nesses estabelecimentos, a ausência de funcionários especializados para a organização dos papéis, propicia a conceituação de “papel velho”, seguido de descarte prematuro. Talvez isso aconteça pela ânsia da modernização das instituições escolares, ou pelo zelo de alguns funcionários que “ao levar para casa alguns documentos”, detêm informações preciosas para a pesquisa em história da educação. “A conservação dos materiais arquivísticos e museológicos, para além do seu valor patrimonial e memorístico, constitui um contributo fundamental para a didática e para a epistemologia dos vários domínios do conhecimento que formam o currículo escolar”. (Magalhães, 2001, p.15). No caso do acervo da escola pesquisada, nenhum material especificamente didático foi encontrado. Assim como em outras escolas, estes vieram a se perder pela 4 pouca importância dada à documentação do cotidiano escolar que não seja para fins administrativos. Segundo a bibliotecária, a escola já havia descartado materiais importantes quando ocorreu sua municipalização em 1996. A maioria dos materiais didáticos como livros, cartilhas, trabalhos de alunos e professores, assim como móveis antigos – que poderiam mostrar com mais clareza a cultura material escolar - foram doados à Superintendência Regional de Ensino, para serem distribuídos entre as escolas rurais da região. De acordo com a responsável pela biblioteca da escola, “estávamos sem condições de armazenar tanta coisa e não tínhamos outro lugar pra esse tipo de material que não serve para mais nada”. O acervo existente no armário da escola é composto somente de registros obrigatórios e exigidos pelo Estado, como livros de atas, livros de matrículas, diários de professores, caixa escolar, livro de ponto de professores e serventes escolares. Apesar de serem materiais com finalidade burocrática, percebe-se a grande riqueza de informações ali contidas sobre práticas escolares desenvolvidas naquela época. Essa documentação quando vista com um olhar diferenciado permite que se encontrem indícios valiosos sobre o cotidiano do ensino e da aprendizagem, pois “... os materiais têm um valor incontestável, pois é principalmente através deles que se pode ressignificar a vida escolar em suas várias facetas: da composição e organização das salas de aula, analisadas a partir dos livros de registros de matrícula, que trazem dados importantes sobre a origem dos alunos, da profissão dos pais e responsáveis até as experiências mais claramente pedagógicas, encontradas no planejamento de professores, nos manuais escolares e nos cadernos de alunos”. (Abreu Jr., 2004, p.73). O LIVRO DE ATAS E TERMOS DE PROMOÇÃO Uma das principais fontes primárias de investigação do acervo da escola é o livro de Atas e termos de promoção de alunos do Grupo Escolar Maria Teresa. Trata-se de um caderno de capa dura, retangular, encapado e etiquetado com o nome Atas e termos de promoção - 1930 a 1951. Possui cinqüenta folhas numeradas e rubricadas pela primeira diretora da escola. Contém documentos manuscritos pelas diretoras regentes de cada época, explicando passo a passo como eram realizados as promoções e os exames dos alunos do curso primário da escola. Nele encontram-se três tipos de documentos feitos durante cada ano letivo, de 1930 até 1951. O primeiro documento, que era redigido a cada ano pela escola, é o Termo de reabertura solene das aulas do Grupo Escolar Maria Teresa. Nesse documento, a diretora da época, escreve a mão o nome completo dos mais de 500 alunos matriculados no início de fevereiro de cada ano, sendo o número de alunos do sexo feminino e masculino bastante equilibrado. A ata é preenchida dentro dos rigores que exige tal documento, ou seja, não há nenhum espaçamento entre as palavras e assinaturas realizadas pela própria diretora, professoras regentes e pelo inspetor escolar municipal. O segundo documento contido no livro é o Termo de promoção dos alunos do Grupo Escola Maria Teresa. Nesse termo, eram escritos os nomes dos alunos aprovados do 1º ao 3º ano do ensino primário dos dois turnos da escola, manhã e tarde. Os exames ocorriam sempre em meados do mês de novembro. Nesse documento, os resultados obtidos pelos alunos estão expostos através de médias que variavam de 5 a 10. As promoções eram realizadas por classes, na seguinte seqüência: primeiramente, escrevia-se o nome da professora regente e logo em seguida o nome completo de seus 5 alunos e a média obtida no exame. A forma pela qual eram realizados os exames nos alunos do 1º ao 3º ano não está explicitada em tal documento, mas nota-se apreocupação em classificar e ordenar, de acordo com as notas, os estudantes da escola.t Ao analisar os primeiros termos de promoção contidos no livro, percebe-se a entrada de grande número no ensino primário, o que levou o grupo escolar a oferecer sete primeiras séries em 1930, não variando muito esses número nos anos posteriores. Uma das explicações seria a existência de poucos colégios públicos na cidade: o Grupo Escolar João dos Santos e o próprio Grupo Escolar Maria Teresa. Por outro lado, tal fato se deve também aos impactos político e educacional dos movimentos ocorridos nesse período, como a revolução de 1930, o Manifesto dos Pioneiros da Educação e o movimento da Escola Nova. Percebe-se também o grande número de reprovações ocorridas naqueles anos. Em algumas turmas, apenas metade da classe era aprovada. Há também ocorrências singulares como a reprovação de toda uma turma de primeira série. Nota-se, no registro da diretora, o uso de expressões bem duras a respeito dos reprovados: “A classe da professora C. S. não foi aprovada por se tratarem de retardados pedagógicos (sic). Todos os alunos da classe da professora Elizabeth Mendes foram aprovados do primeiro ano atrasado ao primeiro ano adiantado”. De acordo com Peixoto (2000), em 1937 já havia na escola primária um número de repetentes maior do que o de aprovados. Esse aumento da reprovação começou tem um impacto significativo nos índices de escolarização quando as classes populares começam a freqüentar (mesmo que de forma incipiente) a escola. Percebe-se a grande incidência de reprovações no Grupo Escolar Maria Teresa, pois se havia sete primeiras séries, esse número decresce nas séries seguintes até chegar a duas ou três salas de quarta série. Mesmo sem ter como obter uma resposta consistente, é necessário perguntar: Que caminhos seguiam esses alunos matriculados no início do ensino primário que não chegavam à quarta série? Além das reprovações, percebe-se através do registro de presença nos dias dos exames finais, quando se compara com o número de matriculados no início do ano. Assim é forçoso constatar que muitos ficaram pelo caminho, talvez pela pouca familiaridade das classes populares com a cultura escolar, suas práticas, hábitos e rotinas. Ao final de cada termo de aprovação eram produzidos resumos que classificavam os alunos de acordo com as médias obtidas. Os alunos que obtiveram nota 10, recebiam o título de “aprovados com distinção”; os alunos que tiravam notas finais de seis a nove, eram “aprovados plenamente”; e aqueles que obtinham nota mínima, cinco, recebiam o título de “aprovados simplesmente”. Também no resumo, eram publicados os números de alunos reprovados e desistentes. O terceiro e último documento contido no livro e lavrado a cada ano pela diretora regente é a “Ata de exames dos alunos do Grupo Escolar Maria Teresa”. Nessa ata era redigida a forma pela qual se davam os exames realizados com os alunos concluintes do ensino primário, alunos do 4º ano. A ata é iniciada com a data, sempre ao final do mês de novembro, logo em seguida a diretora redigia a forma pela qual se dava a formação das mesas examinadoras. O inspetor escolar nomeava três mesas examinadoras, compostas por uma presidente e duas examinadoras. Sempre eram convocadas a própria diretora e professoras de outras séries. Depois de nomeadas, a diretora e professoras declaravam ser representantes legais do Governo do Estado para proceder aos exames e promoções dos alunos concluintes do ensino primário. As respectivas examinadoras realizavam a chamada dos alunos matriculados. Como já foi mencionado, havia grande desistência de alunos para realização dos exames finais, e as chamadas eram realizadas por turmas conforme está registrado pela diretora: “Em 6 seguida o inspetor escolar ordenou que as respectivas professoras procedessem à chamada dos alunos acima referidos. Compareceram 20 dos 35 matriculados na classe do 4º ano da professora S. R., 23 dos 42 matriculados da classe da 4º ano da professora L. S.”. Após a chamada, eram realizadas as provas escritas, orais e manuais. Para as provas escritas, eram postos em urnas os pontos de sorte de Língua Pátria (ditado, verbos, pronomes e invenção de uma história), Aritmética (problemas sobre juros, juros, sistema métrico, frações e organização de um problema com cinco sinais). Cada classe sorteava um número correspondente a alguma matéria para que todos os alunos escrevessem sobre o assunto sorteado. Terminadas as provas escritas, iniciavam-se as provas orais, que eram realizadas individualmente. O aluno tirava um ponto de sorte e discorria sobre o assunto de uma das matérias acima referidas e mais conteúdos de Leitura, História do Brasil, Ciências Naturais, Higiene, Geografia, Noções de Cousas, Moral e Cívica, Geometria e também fatos singulares como a descrição de um arrabalde da cidade. As provas práticas constavam de trabalhos manuais, ginástica, canto e desenho, mas pouco são mencionadas nas atas. Após a realização dos exames, a presidente de cada banca, depois de conferenciar com as examinadoras, divulgava os resultados de cada aluno naquela classificação acima mencionada: aprovado com distinção, aprovado plenamente, aprovado simplesmente ou reprovado. Ao final de todos os exames, as mesas examinadoras expediam o certificado de conclusão do ensino primário. Percebe-se, pela análise das médias obtidas pelos alunos, que as classes com menor desempenho cognitivo eram delegadas às professoras recém contratadas ou às professoras estagiárias. Tal fato, ainda hoje se repete nas escolas públicas, onde as professoras com mais “anos de casa” podem escolher a classe em que darão aula, deixando para as recém chegadas ao magistério e na maioria das vezes sem uma experiência prévia, o comando de uma turma tida como “fraca” ou a “turma problema da escola”. De todas as atas e termos escritos, era extraída uma cópia autenticada e assinada, que era encaminhada à Inspetoria Geral da Instrução Pública. Para Ribeiro (1992) é importante destacar que esses documentos - livro de atas, estatutos, regimentos e programas ( que são mais raramente preservados) - apesar do seu valor informativo, até hoje não têm proteção legal ou recomendação específica de guarda. OS LIVROS DE MATRÍCULA DO GRUPO ESCOLAR MARIA TERESA Os livros de matrículas, retangulares e de capa dura eram preenchidos manualmente. Eram usados pela diretora para o registro de matrícula e apesar de haver espaço para as observações, algumas vezes as notas são escritas nas laterais do caderno, na maior parte das vezes para indicar a desistência de um aluno matriculado. Dentro do recorte temporal proposto para realização da pesquisa, foram encontrados no arquivo da escola, seis livros de matrículas que datam de 1938 a 1948. Estes livros apresentam uma grande variedade de informações não só dos alunos matriculados, mas também dados minuciosos de sua família como veremos adiante. Os livros eram preenchidos a cada ano com o nome do aluno, idade, nacionalidade, se era repetente, se tinha registro civil, se morava perto do perímetro escolar, se o aluno já sabia ler e escrever, ano do curso a ser matriculado, nome dos pais, profissão dos pais, grupo social a que a família pertencia, número de filhos e endereço. Nem sempre todos os dados eram preenchidos da mesma forma, pois em 7 alguns anos determinadas informações eram acrescentadas, a mão mesmo, e em outros anos, alguns dados nem eram preenchidos. O grupo social mencionado anteriormente, variava de 1(grupo social considerado mais alto) até 4 (grupo social mais baixo), e era determinado pela reunião de informações fornecidas no ato da matrícula, sendo a mais importante a profissão do pai mas também era levado em conta nessa categorização a profissão da mãe (geralmente na ausência do nome do pai no registro de matrícula) e o número de filhos na família. As profissões eram previamente classificadas no inicio de cada livro de matrícula. Pertenciam aos grupos sociais mais altos (1 e 2) as profissões de médico, dentista, militar, engenheiro, educador (o que indica uma provável valorização social do professor naquela época) entre outras. Os grupos sociais 3 e 4, considerados mais baixos, eram indicados por profissões como a de mascate, caixeiro viajante, carpinteiro, carroceiro, guarda-freios, entre outras. Percebe-se também o elevado número de filhos nas famílias desses grupos sociais 3 e 4 - média de 7 - assim como era significativo, também, o número de mães que trabalhavam fora sendo as profissões de lavadeira, costureira e operária as mais comuns. A menção da nacionalidade dos pais também é um dado relevante que mostra como os registros escolares podem ser uma fonte primária importante para caracterizar a composição da sociedade da época. São registradas nacionalidades diversas: Portugal, Itália, Alemanha, Líbano, Polônia e em maior incidência, Síria. Um dado curioso está relacionado ao grande número de sírios que matriculavam seus filhos tinham registro de profissão, na maior partes das vezes, como comerciantes, profissão ainda comum na cidade de São João del-Rei, de descendentes desses imigrantes. ANÁLISE DAS FONTES PRIMÁRIAS (LIVRO DE ATAS/TERMOS DE PROMOÇAO E LIVROS DE MATRÍCULAS) Através do cruzamento das informações contidas no Livro de Atas/Termos de Promoção (1930-1950) com os Livros de Matriculas dos anos de 1938 a 1948, é possível perceber a relação entre o desempenho acadêmico e a situação sócioeconômica do aluno e assim verificar não só o grau de inserção como a composição social dos alunos do Grupo Escolar Maria Teresa. Nos primeiros anos do recorte temporal, 1930 a 1937, não foram feitos ou não foram encontrados, livros de matrículas referentes a esse período. Só a partir de 1938 e se estendendo até 1948, há tais livros que apesar de terem a mesma forma de estruturação, foram preenchidos de forma diferente em cada ano, sugerindo assim a influência das mudanças educacionais ocorridas nesse período, o que sugere a necessidade de diferentes formas de registro de informações pelas também diferentes formas de colher e administrar a cultura escolar. Nos anos de 1930 a 1938, somente o Livro de Atas e Termos de Promoção pode esclarecer sobre o passado da escola. Nesse período, como foi mencionado anteriormente, os nomes dos matriculados a cada ano eram escritos no termo de abertura solene das aulas, pela própria diretora. Daí pode-se explicar a inexistência de livros de matrícula neste período. Talvez os dados econômicos da família não fossem tão importantes nesse momento onde a república Vargas através da constituição de 1934 pregava a plena gratuidade do ensino, onde o Estado era o único responsável pela educação. No entanto, a partir do ano de 1938, os livros de matrículas começam a ser preenchido pela diretora da escola e dados de cunho pessoal como número de filhos e de 8 cunho econômico como profissão dos pais, começa a determinar a classe social, classificada pela escola, das famílias que matriculavam seus filhos no grupo escolar Maria Teresa. Esse dado se associa de forma direta ao surgimento do “Estado Novo”, quando a ditadura implantada por Vargas trouxe com a Nova Constituição de 1937, modificações significativas em relação à gratuidade do ensino público no Brasil. Ë interessante comparar trechos dos textos legais das Constituições de 1934, período da república Vargas, e de 1937, onde ele permaneceu no poder então, com ditador à frente do “Estado Novo”. Texto de 1934: “Artigo 150 – parágrafo único – a) ensino primário integral é de freqüência obrigatória extensiva aos adultos; b) tendência a gratuidade do ensino educativo anterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível (...)”. Texto de 1937: “Artigo 130’- O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente, não puderem alegar, escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar”. Como se pode notar, a carta de 1937 inverteu as tendências democratizadoras da carta de 1934. Com o artigo 130, o “Estado Novo” forneceu indícios de não desejar carrear os recursos públicos provindos dos impostos para a democratização das oportunidades de educação para a população. (Ghiraldelli, Jr., 2001, p.73). Neste contexto sócio-político-econômico, pode-se indagar: Seria a Caixa Escolar o motivo pelo qual a situação socioeconômica das famílias dos alunos matriculados no Grupo Escolar Maria Teresa fosse tão especificada no ato da matrícula? A partir das análises realizadas a seguir poderemos tentar responder a essa pergunta, caracterizando através do cruzamento dos dados obtidos, o perfil do aluno matriculado no Grupo Escolar Maria Teresa e o que definia a sua continuidade (ou não) nos estudos, o grau social familiar ou as práticas escolares desenvolvidas e narradas no livro de temos de promoção. Para essa análise, foram considerados todos os alunos que freqüentaram a 4ª série do grupo escolar nos anos de 1938 a 1944, período e categoria escolhidos haver documentação mais completa, com dados claros e relevantes para tal averiguação. Em 1938, ano em que o Grupo só mantinha uma sala de 4ª série com 20 alunos, constata-se que a maioria deles pertencia aos grupos sociais 1 e 2, ou seja, grupos sociais considerados como os mais altos. Também nesse ano, 30% dos alunos não compareceram aos exames finais, sendo que quase todos pertenciam aos grupos considerados baixos (3 e 4). A maioria dos aprovados com “distinção”, nota 10, estavam em idade escolar adequada, ou seja, houve permanência na vida escolar, mas o mesmo acontecia, da forma inversa, com os desistentes, ou seja, a maioria já estava fora da idade escolar proposta para aquela série, sugerindo assim repetências anteriores ou desistências, bem como atraso no ingresso na escolarização. Também podemos perceber naquele ano fatos significativos como a maioria dos desistentes serem do sexo masculino e na maior parte dos casos, quando as mães desses alunos trabalhavam fora. Em 1939, o grupo escolar também mantinha somente uma sala de quarta série, com 28 alunos. Nesse ano percebe-se uma maior presença das classes sociais consideradas baixas, 68% dos alunos pertenciam aos grupos sociais 3 e 4 e as mães de alunos apareciam muitas vezes como mantenedoras e responsáveis pelo lar. Não houve 9 nenhum aluno aprovado com distinção, a maior parte deles teve notas inferiores a sete, ou seja, foram simplesmente aprovados, em sua maior parte. A maioria era de repetentes ou de alunos que estavam fora da idade escolar convencional. O índice de desistência nesse ano também pode se associar ao grande número de mães que trabalhavam fora. Já em 1940, o Grupo Escolar Maria Teresa manteve 3 salas de 4ª série durante o ano. Percebe-se nitidamente a grande diferença na composição de cada sala, tanto no aspecto social quanto no rendimento escolar de cada aluno. Havia uma sala que era composta de alunos visivelmente mais adiantados, outra sala era composta de alunos que pertenciam a grupos sociais mais altos e a havia a sala dos alunos considerados mais fracos no rendimento escolar. A primeira sala analisada, onde os alunos apresentavam as melhores notas, percebe-se que a maior parte deles também pertenciam aos grupos sociais mais altos, mas muitos que pertenciam aos grupos sociais considerados baixos, também obtinham boas notas. Um fato interessante que percebemos nessa sala onde as notas em sua maioria são melhores que as de outras salas é que, nenhuma das mães de alunos trabalhava fora. Percebe-se, também, que a maioria desses alunos estava em idade escolar recomendada para aquela série. Na segunda sala analisada, onde se percebe a maior incidência de grupos sociais mais altos, as notas dos alunos também se destacam em aprovações com distinção; a maioria dos alunos estava em idade escolar adequada e o único desistente pertencia ao grupo social mais baixo da sala. Na terceira sala, considerada a “mais fraca”, todos os alunos foram aprovados, mas obtiveram notas baixas, que variavam de 5 a 7. A grande maioria da sala, 70%, pertencia aos grupos sociais mais baixos e quase todos os alunos estavam fora da idade escolar recomendada. Em 1941 e 1943, o grupo escolar manteve duas salas de 4ª série em funcionamento. Nesses anos era nitidamente visível a segregação de alunos de grupos sociais baixos em relação aos grupos sociais mais altos, pois na primeira sala analisada mais da metade dos alunos pertencia aos grupos sociais altos e a maioria dos alunos da sala estava na idade escolar adequada. Já na segunda sala, quase todos os alunos eram dos grupos sociais 3 e 4, e constata-se que antes de terminar o curso primário, mais da metade da sala desistiu dos estudos, ou os alunos foram transferidos da escola, ou não compareceram aos exames finais. Talvez esses alunos não se adaptaram àquela realidade excludente ou não se consideravam suficientemente preparados o suficiente para enfrentar as avaliações finais. Nessa sala, percebe-se também o grande número de mães que trabalhavam fora, fator já mencionado como grande norteador das análises realizadas. Em 1942 e 1944, a situação é semelhante à de 1941: duas salas de 4ª série com alunos separados, aparentemente, pela ocupação social dos pais e pela situação econômica. Nesse ano não foi feita a ata de aprovação dos alunos no livro de Atas/termos de promoção, mas pode-se observar um fato que se destaca em relação aos outros anos pesquisados. Na sala composta por alunos de grupos sociais considerados baixos, em sua maioria, estes não tinham registro civil, ao contrário da sala composta por alunos dos grupos sociais 1 e 2, onde todos os alunos, sem exceção, eram registrados. Como podemos perceber, em todos os anos analisados, havia uma forte tendência da escola em classificar, ordenar seus alunos de acordo com o rendimento escolar bem como o grupo social a que ele pertencia. Esse acontecimento além de uma opção pedagógica, associava-se ao fato da escola poder justificar a cobrança da caixa escolar. Talvez se a escola mantivesse uma sala reservada ao grupo social que tinha condições de pagar a taxa mensal da escola, fosse mais fácil justificar o pagamento, evitando-se possíveis reclamações dos pais, que almejavam assim um ensino 10 diferenciado para seus filhos ao pagar a caixa escolar. Mas isso é uma suposição que não pode ser comprovada, pois não há elementos suficientes para tal. Percebemos ainda, que o desempenho escolar da maioria dos alunos estava ligado diretamente à presença da mãe dentro do lar, pois constatamos que em mais de 80% dos alunos desistentes, reprovados ou com notas baixas, para além do fator social, o fato de a mãe trabalhar fora esteve presente e pode ter influenciado de forma direta ou indireta no desempenho escolar do filho. DAS FONTES ORAIS: ANÁLISE DAS ENTREVISTAS. As entrevistas realizadas na pesquisa tiveram como propósito complementar as fontes escritas e, assim, tentar preencher lacunas que os documentos analisados não puderam esclarecer, bem como pela ausência de informações mais específicas sobre as práticas em sala de aula no dia a dia. Foram realizadas quatro entrevistas, sendo três com ex-alunos e uma com uma ex-professora do então Grupo Escolar Maria Teresa. É importante mencionar alguns problemas na realização das entrevistas, seja pela dificuldade de localização das pessoas, pelo falecimento de muitos dos possíveis entrevistados, pela desconfiança de alguns que se negaram a fornecer seus relatos ou pela perda da memória, pois eram sujeitos de idades que variavam de setenta a oitenta e sete anos.Os entrevistados foram localizados através de cadastro telefônico e por indicação de outros entrevistados. Em um primeiro momento foi realizado um contato prévio com a pessoa a ser entrevistada, uma conversa informal a fim de explicar a pesquisa e esclarecer sobre a importância do seu testemunho para a investigação. Em seguida, foram realizadas e gravadas as entrevistas, com a prévia autorização do entrevistado. As quatro entrevistas foram realizadas seguindo um roteiro de perguntas, mas não se restringindo a ele, deixando com que o entrevistado se sentisse livre para falar sobre determinados assuntos à medida que sua memória relembrava os acontecimentos do passado escolar. A primeira entrevista foi realizada com um sujeito de oitenta e seis anos, exaluno do Grupo Escolar Maria Teresa. Ele estudou na escola no ano de 1930, no primeiro ano do curso primário, época em que tinha sete anos de idade. Através do seu depoimento, não foi possível esclarecer suficientemente dados sobre a escola e suas prática. Além de ter estudado na escola apenas por um ano, o entrevistado também se queixa da memória que segundo ele: “ já não estava ajudando mais”. Ele recorda-se vagamente sobre o uniforme usado na época: “Tinha o casquete, era meio cáqui assim (com as mãos na blusa), calça curta, uma botinha...um negócio assim. O casquete parece esses casquete do exército mesmo”. Apesar de não ter muitas lembranças sobre o Grupo Escolar Maria Teresa, o entrevistado relata muitos fatos da época como, por exemplo, o contexto político daquele período, a revolução de 1930: “... lembro de soldados nas ruas com umas armas nas mãos quando ia pra escola, aquilo era normal pra gente... minha mãe apertava minha mão quando a gente passava perto...”. O entrevistado também falou de algumas características sócio-econômicas da época tais, como a profissão do pai e sobre a irmã que foi trabalhar em outra cidade: “Aí ele ia viajando pelo sertão, parava nas fazendas, atendia aqui, nas vilas, depois de três, quatro meses ele vinha de volta com o dinheiro e vendeu a mercadoria toda (risos). Ele 11 andava com... ele tinha um revólver que tá com um dos meus irmãos e ele nunca deu um tiro. Mas também na época não tinha ladrão. Se enfiava nesse sertão com dinheiro. “A minha irmã naquela época era uma mulher fora do comum e minha mãe deu muito apoio a ela, ela foi trabalhar em Belo Horizonte e foi morar numa república de moças naquela época. Então naquela época muita gente criticou isso. Não era comum isso na época, as famílias achavam que as moças não podiam saí. Quanta coisa mudou hoje né? Mas a minha mãe deu força pra ela, minha mãe era uma mulher positiva sabe? Chegava as coisas pra frente e oh, se surgisse um casamento pra você, isso era uma coisa natural, se não surgir você vai ser alto suficiente com o seu trabalho vai ser dona da sua vida né? Era isso que ela falava pra ela. A segunda entrevista foi realizada com um sujeito de setenta anos, que estudou todo o primário no Grupo Escolar Maria Teresa. Ele nos deu seu relato no local onde trabalha e demonstrou ter bastantes lembranças de várias situações da escola, tanto de nomes de pessoas, práticas escolares desenvolvidas, como também alguns procedimentos comuns na época como, por exemplo, os castigos: “(A professora) punha a gente em pé na frente do quadro. Então tinha o quadro negro. A gente tinha que ficar de pé de frente pra turma, sem poder nem rir. Tinha que ficar sério olhando pra turma. Eles tudo(sic) fazia careta, mas a gente tinha que ficar sério. (risos). A professora Dona I, essa aí era impossível (risos), era brava ela... ela batia nos alunos com o sapato, com o sapato! Ela tirava o sapato e batia. Vira e mexe eu encontro um colega que foi aluno dela e que fala que passou por isso.(risos). Talvez por ser o entrevistado de menor idade entre todos, ele pode nos fornecer detalhes que não estavam claros nos documentos, como as atividades manuais: “A gente tinha aula de canto, ginástica e aprendia a fazer bainha, pregar botões. Eu sei até hoje pregar botões”. O entrevistado quando indagado se a escola não era elitizada na época em que estudou, disse: “Ah... acho que nem lá nem cá. Tinha gente pobre na minha sala, mas tinha gente rica também. Eu ficava no meio (risos)”. Ele relata o que se aprendia em sala de aula quando estudou o segundo ano do ensino primário: “Na segunda série a gente desenvolvia mais a tabuada, os ditados também já estavam lá presentes e então ela ditava e a gente tinha que escrever. Aí ela falava lá e a gente ia escrevendo. Aí começou a aprender noções de história gerais, os trabalhos manuais e vinha os cânticos e aí já entrou o catecismo”. A terceira entrevistada foi uma senhora de oitenta anos, pessoa que também relata dados minuciosos sobre as práticas escolares do Grupo Escolar Maria Teresa. Este depoimento nos surpreendeu pela riqueza de detalhes. A entrevistada além de possuir uma memória muito nítida sobre os fatos e acontecimentos da época, também guarda até hoje seu certificado do curso primário expedido pelo Grupo Escolar Maria Teresa no ano de 1938. De acordo com seu depoimento, percebe-se que se tratava de uma aluna estudiosa, e que vivenciou uma situação que lhe traz até hoje tristes recordações: uma professora afirmou que se conseguisse tirar nota 10 nos exames finais do curso primário teria uma bolsa de estudos no Colégio Nossa Senhora das Dores. Por causa de sua timidez, alegou, não conseguiu responder corretamente as questões da prova oral e lamenta a nota obtida, 9, pois a professora ficou irredutível em sua posição 12 e não concedeu a bolsa, o que denota a importância que se dava às notas e a rigidez na postura docente. Ela também nos revela sobre a materialidade escolar do tempo em que estudou na Grupo, de 1935 à 1938: “...tinha aqueles cadernos com letra assim oh... de caligrafia, pra melhorar a letra da gente, tinha a tinta também. Era uma pena que a gente molhava na tinta... tinha tinta na própria carteira, o lugar de por a tinta...”. “A gente levava o material numa malinha assim (faz gestos para demonstrar o tamanho), era uma malinha de madeira, de tampa redonda, mas não era pesada não”. Quando indagada se na época em que ela estudou havia cantilena do b-a-ba, ela sorriu e respondeu com firmeza: “tinha, tinha sim, eu fazia (risos), a gente sempre ia repetindo isso até aprender, e tinha a tabuada também, tinha que decorar e ficar tipo cantando.” Ela também mencionou por diversas vezes, que o ensino de hoje está muito diferente do de sua época de estudo e comentou: “Eu não entendo a aritmética de hoje, tem uma sobrinha minha que mora aqui em baixo, ela tá na quinta série, mas quando ela era menor, ela vinha aqui pra eu ajudar ela, mas eu não entendia nada o modo de fazer, o resultado era o mesmo, mas o jeito de fazer é totalmente diferente e olha que eu era boa em aritmética”. Relatou, ainda, que a classe era separada por sexo, meninas de um lado, meninos do outro e que o silêncio era constante dentro de sala de aula, graças às freqüentes ameaças de castigo proferidas pela professora. Também lembrou, de forma saudosa, a rixa existente entre os alunos do Grupo Maria Teresa e do Grupo João dos Santos, que apelidavam e insultavam uns aos outros, na saída da aula de “Maria Torresmo” e “João Sabão”. Questionada sobre como eram as aulas das diversas matérias respondeu: “Ah... era apertado, tinha que estudar mesmo. No dia de fazer prova tinha que saber mesmo. Não era igual hoje. A professora era muito boa professora, mas era muito exigente.” Através desse relato foi possível perceber algumas práticas daquele período (e muitas permanecem até hoje como rezar antes de iniciar a aula). Havia aulas de canto uma vez por semana, e aulas de catecismo eram dadas na escola. Havia, ainda trabalhos manuais com argila e tricô e o clube de leitura que acontecia aos sábados. A última entrevista realizada, foi com uma ex-professora do grupo escolar. Ela lecionou na escola em 1949, quando deu aula para um dos ex-alunos entrevistados. Foi através dele que a localizamos. Pela entrevista, pode-se notar a perda da memória de quase toda sua experiência como professora, pois manifestou-se com muitas lacunas e intervalos, quase sempre só respondendo a perguntas - e assim mesmo de maneira vaga. Quando indagada sobre os materiais escolares da época em que lecionava, disse com muita naturalidade: “Não... não tenho nada não. Não guardei nada não...joguei tudo fora, alguns eu acho que queimei”. A antiga professora, além de não ter guardado nenhum material, também não se lembrava dos nomes dos livros nem dos autor que utilizava em suas aulas, mesmo tendo mencionado que gostava de dar aulas de Geografia e História. Numa visão geral, percebe-se tanto o descompromisso de instituições escolares com os materiais das práticas escolares, quanto o desinteresse dos sujeitos em preservar 13 e manter viva sua memória social, seja através de antigos cadernos, livros, fotos e outros materiais que ajudariam a preservar essas preciosas lembranças do trabalho escolar. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa procurou investigar, articular e organizar as fontes documentais para o resgate da memória educacional do período pesquisado. É a partir de trabalhos como este que poderemos compreender a formação e a organização do ensino público no Brasil no primeira metade do século XX e entender porque certas práticas educativas permanecem arraigadas no cotidiano escolar até hoje. É importante afirmar que sem uma visão crítica do passado, não poderemos contextualizar significativamente o que acontece na sala de aula nos dias atuais. As considerações aqui feitas ressaltam aspectos relevantes para a compreensão da história da educação em São João del-Rei. É importante esclarecer que o exame de documentação como o que foi feito é apenas uma entre muitas formas de lidar com tão rico e significativo material. A intenção desta pesquisa foi mostrar a complexidade que investigações desse gênero trazem. Um material aparentemente simples e burocrático pode levar a questionar por que certas formas de proceder na escola praticamente se cristalizaram como práticas aparentemente naturais e universais como se não houvessem se produzido em determinado contexto histórico-cultural. Em suma, este trabalho tentou ilustrar a singularidade do acervo do Grupo Escolar Maria Teresa através de uma abordagem que privilegiou aspectos metodológicos da cultura material escolar (Abreu Jr, 2005). É fundamental ficarmos atentos para a importância do cuidado com a memória dos sujeitos escolares, pois se boa parte da história das instituições educativas se perdeu, a memória desses sujeitos também está prestes a se perder, correndo o risco de passarmos involuntariamente uma borracha sobre o conhecimento de nossa história cultural da educação. FONTES PRIMÁRIAS Atas e Termos de promoção dos alunos do Grupo Escolar Maria Teresa – 1930 a 1950. Arquivo da Escola Municipal Maria Teresa de São João del-Rei, MG. Livros de Matrículas do Grupo Escolar Maria Teresa – 1938 a 1950. Arquivo da Escola Municipal Maria Teresa de São João del-Rei, MG. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU JR., Laerthe de Moraes. O caderno de recortes sobre educação do “Diário Official do Estado de São Paulo”: Indícios de cultura material na Escola Primária “Dr. Jorge Tibiriçá” (1930-1947). Revista Brasileira de História: Produção e divulgação de saberes históricos e pedagógicos, São Paulo, ANPUH, v. 24, n. 48, p. 171-188, jul-dez, 2004. ABREU JR., Laerthe de Moraes . Apontamentos para uma metodologia em cultura material escolar. Pro-posições. V. 16, n.1 (46), p. 145-164, jan./abr., 2005. BERRIO, Julio Ruiz (Ed.). La cultura escolar de Europa: Tendencias históricas emergentes. Madrid: Biblioteca Nueva, 2000. GUIMARÃES, Fábio Nelson.Cinqüentenário da Escola Estadual D. Maria Teresa, 1925-1975. São João del-Rei, 1975. GHIRALDELLI JR., Paulo. Introdução e Educação Escolar Brasileira: História, Política e Filosofia da Educação. 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Reconstruindo o percurso de construção do Museu da Escola de Minas Gerais. In: FERNANDES, Rogério, FELGUEIRAS, Margarida Louro. A escola primária: entre a imagem e a memória. Porto: Gráficos Reunidos, 2000. RIBEIRO, Marcus Vinício Toledo. Os arquivos das escolas. In: NUNES, Clarice (coord.). Guia preliminar de fontes para a história da educação brasileira. Brasília: INEP, 1992. SOUSA, Cynthia Pereira de. Saúde, educação e trabalho de crianças e jovens: a política social de Getúlio Vargas. In: GOMES, Angela de Castro (org.). Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000, p. 221-249. VIÑAO, Antonio. Tiempos escolares, tiempos sociales. Barcelona: Ariel, 1998.