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NÃO HÁ ‘NADA’ DE NOVO DEBAIXO DO SOL DE CARTER1
Fabio Jarbeson da Silva Trajano
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo: O objetivo deste artigo é investigar e analisar os dois últimos romances de Angela Carter,
Nights at the Circus e Wise Children, à luz das principais teorias que tratam da intertextualidade. Para
tal fim, realiza-se um exame de várias linhas de pensamento em paralelo a uma análise comparativa
a fim de se verificar até que ponto os romances de Carter dialogam com tais teorias. A principal
contribuição deste artigo está em sua tentativa de relacionar a escritura pós-moderna de Carter à
jornada intertextual.
Palavras-chave: Intertextualidade; Pós-modernismo; Pluralidade.
Sou totalmente a favor de que se coloque vinho novo em garrafas velhas,
especialmente se a pressão do vinho novo faz as garrafas velhas
explodirem.2
Angela Carter
Como se pode inferir do título, este artigo tem por fim discutir a intertextualidade e sua natureza como
processo contínuo que envolve a participação do autor do texto, dos leitores e do próprio texto, bem
como sua relação com textos anteriores na construção de significados. É claro, é simplesmente
impossível fazer menção a isso e não pensar no pós-modernismo, já que uma de suas principais
características é o retorno ao passado de modo a apropriar material textual que é usado para instalar e
desafiar concomitantemente representações passadas conhecidas do leitor. De fato, tal processo é
muito bem ilustrado pela epígrafe acima, que sintetiza a principal característica do oeuvre de Angela
Carter e explica por que seus últimos dois romances, Nights at the Circus (1984) e Wise Children
(1991), foram escolhidos para exemplificar os pontos principais. Em resumo, Carter mostra
esplendidamente como uma escritora pode usar o poder potencialmente destrutivo e ao mesmo tempo
criativo encontrado em relações intertextuais, dotadas de pelo menos dois códigos, a fim de dotar seu
trabalho de uma arte autônoma ainda que uma pluralidade de outras vozes possa habitá-lo.
Muito já foi dito da aventura intertextual: Ferdinand de Saussure, Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva, Roland
Barthes, Gérard Genette, Michael Riffaterre, Harold Bloom, todos já ponderaram sobre este assunto e
contribuem consideravelmente para a elaboração das proposições que permeiam este artigo.
1 Eclesiastes 1:9: “[...] não há nada de novo debaixo do sol”.
2 Carter, 1983, p. 69, tradução nossa. Verificar Mateus 9:17 a fim de se observar a subversividade intertexual de Carter.
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Desnecessário dizer que uma vez que o conceito de relações intertextuais é considerado aqui, a
própria intertextualidade se configura já que as palavras e ideias, em maior ou menor grau, ecoam
outras fontes textuais que já foram pronunciadas e/ou escritas em algum lugar do passado pelos
autores mencionados e outras pessoas que também se propuseram a refletir sobre a questão.
Contudo, os posicionamentos e considerações do autor, a bagagem cultural e informacional de cada
leitor, bem como de que forma este processo de se mover entre textos acontece neste artigo,
certamente determinará como este encontro de material textual passado acontece, ou divergindo um
do outro ou convergindo à medida que eles se misturam com novos elementos providos pelo escritor e
o leitor. Em outras palavras, como a produção de significados ocorre.
Esta conexão intrínseca entre cultura pós-moderna e intertextualidade é categórica no modo em que
alguns escritores, como Carter, dialogam com textos passados para desmascarar as várias formas nas
quais o discurso patriarcal é construído e inscrito como ‘natural’. Nenhuma novidade, então, que esta
constante presença do passado seja sugerida desde o começo em Wise Children à medida em que a
narradora septuagenária Dora leva seus leitores a uma retrospectiva viagem no tempo: “[à]s vezes
penso que se olhar com firmeza, posso ver o passado. [...] Estou no momento trabalhando nas minhas
memórias e pesquisando a história da família – veja o processador de texto, o arquivo, o fichário, mão
direita, mão esquerda, lado direito, lado esquerdo, a sujeira em todos” (Carter: 1993b, p. 3, tradução
nossa). No entanto, a questão é que ela está escrevendo do “caminho do erro [...], o lado bastardo do
Velho Pai Tâmisa” (Ibid, p. 1: tradução nossa). Como Linda Hutcheon declara sobre o pós-modernismo:
Voluntariamente contraditória, então, a cultura pós-moderna usa e abusa das convenções do
discurso. [...] Não há momento externo. Tudo que ela pode fazer é questionar de dentro. Ela
só pode problematizar o que Barthes (1973) chama de “certo” ou “o que é desnecessário
dizer” na nossa cultura. A História, o eu individual, a relação da língua com seus referentes e
dos textos com outros textos – há algumas noções que, em vários momentos, aparecem
como “natural” ou senso comum de forma não-problemática. E são estas as questionadas
(HUTCHEON, 1990, p. xiii: tradução nossa).
Por meio destas estratégias Carter põe em ação sua intenção de minar o discurso monológico
naturalizado por simultaneamente denunciar os mecanismos opacos que retratam o ‘outro’ como
vítima, monstro e aberração, e liberar o fantástico poder ‘demoníaco’ 3 do texto dialógico. Por exemplo,
o poeta vitoriano Alfred, Lord Tennyson descreve dicotomicamente no poema “A Princesa” quais seriam
os papéis sociais ideais de homens e mulheres 4. Em clara oposição a esta figura do ‘Anjo do Lar’ 5 e
suas oposições binárias por gênero, a protagonista de Carter, Fevvers, em Nights at the Circus, cuja
história se passa na virada de século vitoriana (1899), também vai para o ‘campo’, usa sua ‘espada’
para lutar e sua ‘cabeça’ para ‘comandar’ e tomar decisões até o momento em que seu riso, símbolo de
subversão máxima, toma o mundo inteiro. Ao fazer isso, Carter se apropria destas imagens de
feminilidade disponíveis na cultura ocidental do século XIX e as subverte por meio de sua femme fatale
aerialiste. Em suma, é exatamente assim que a rede de relações textuais é usada por escritores pósmodernos para solapar culturas dominantes que utilizam pontos-de-vista recebidos e estabelecidos que
normalmente representam o ‘perigoso outro’ em seu detrimento em termos de, por exemplo, gênero,
raça e classe. Igualmente, para prover uma análise crítica de como, entre outras coisas, a arte
3 Marcos 5:9: “Mas, [Jesus] começou a perguntar-lhe: ‘Qual é teu nome?’ E ele [um homem sob o poder dum espírito
impuro] lhe disse: ‘Meu nome é Legião, porque há muitos de nós.’”
4 “O homem para o campo e a mulher para o lar: / O homem para a espada e ela para a agulha: / O homem com a cabeça
e a mulher com o coração: / O homem para comandar e a mulher para obedecer” (tradução nossa).
5 Esta conhecida expressão tem origem no famoso poema de Coventry Patmore.
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‘elevada’, a cultura popular, o filme, a história, a literatura, os mitos e símbolos também ajudam a
legitimizar a autoridade das culturas hegemônicas.
Entretanto, a forma como o processo intertextual acontece, seu resultado, bem como a forma e até
onde os elementos envolvidos o influenciam, e um ao outro, está aparentemente longe de um
consenso geral. De fato, alguns questionamentos já podem ser levantados, tais como: que elemento
prevalece no processo intertextual: o autor, o leitor, as relações intertextuais ou o próprio texto? Até
onde vai a questão de influência na relação entre autores? Até onde e de que maneira a
intertextualidade influencia a interpretação? Até que ponto podem textos originais ser rastreados? O
conceito de intertextualidade e seu potencial de produzir significados são uma ameaça à existência do
autor? Em uma tentativa de chegar a conclusões pelo menos razoáveis, é uma boa ideia dar uma
olhada nas suposições mais conhecidas até agora sobre o assunto.
Primeiramente, diferente de Saussure que afirma que “[a] língua não constitui, pois, uma função do
falante: é o produto que o indivíduo registra passivamente; não supõe jamais premeditação”
(SAUSSURE, 1973, p. 22), sugerindo assim que cada ato de comunicação e suas escolhas inerentes
provêm de um sistema que veio a ser antes do falante, Bakhtin acredita que “a linguagem adquire vida
e evolui historicamente [...] em comunicação verbal concreta, e não no sistema linguístico abstrato, não
no psique individual dos falantes” (BAKHTIN; VOLOSINOV, 1986, p. 95: tradução nossa). Ou seja,
diferente de Saussure que vê o significado subsequente como algo generalizado que preexiste e está
além do alcance do leitor já que o mesmo depende de um sistema linguístico abstrato, Bakhtin endossa
a ideia de que o significado é obtido em comunicação verbal concreta. Mais ainda, pode-se inferir do
conceito de Saussure que é deste sistema abstrato que os escritores obtêm toda sorte de elementos
textuais (ALLEN, 2000, p. 11). Portanto, não importa o quão razoável a teoria de Bakhtin possa parecer
em comparação a de Saussure já que a construção de significado realmente varia de acordo com os
contextos e os participantes envolvidos, o que importa até aqui é que a proposição de Saussure de fato
reconhece desde o princípio que os textos estão interconectados de alguma forma, mesmo que no
psique dos falantes, e que os escritores invariavelmente recorrem a esta fonte sempre jorrante.
No entanto, Bakhtin se faz notável pela concepção do dialogismo, conceito que chama a atenção à
relação existente entre textos – potencializando a pluralidade de vozes e destacando a natureza
instável da palavra em termos de significado. Por meio dele, Bakhtin desbanca o conceito de um
significado original único e solapa ‘verdades absolutas’ usadas para praticar todo tipo de repressão e
dominação (BAKHTIN, 1986, p. 94). Com o propósito de abrir caminho para o dialogismo em Wise
Children, Carter estabelece um tom de conversa desde o princípio já que sua narradora em primeira
pessoa abertamente convida o leitor a adentrar a história e deixa claro que seu ponto de vista é
alternativo: “Bom dia! Deixa eu me apresentar. Meu nome é Dora Chance. Bem-vindo ao caminho do
erro. [...] sempre moramos na parte esquerda, a parte que o turista raramente vê” (CARTER, 1993, p.
1: tradução nossa). Não é de surpreender que esta diversidade de vozes também perpassa Nights at
the Circus. Talvez o momento no qual isso se torna evidente é quando está claro que o discurso
jornalístico masculino de Jack Walser não prevalecerá uma vez que Fevvers and Lizzie usurpam o
controle hegêmico da narrativa e começam a emasculá-lo pouco a pouco (CARTER, 1993a, p. 32).
Após estas considerações iniciais sobre a inevitável inter-relacionalidade entre textos, outra voz ruidosa
que indubitavelmente se destaca na multidão teórica é a de Kristeva, primeira pessoa a usar o termo
intertextualidade. Com relação à sua proposição, Kristeva é uma defensora do dialogismo de Bakhtin e
sustenta que o mesmo ocorre no sistema linguístico abstrato e não em situações sociais específicas.
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Contudo, Kristeva reconhece a importância e a intrínseca presença e influência do texto social por meio
de lutas e estruturas ideológicas. Outrossim, Kristeva defende que a produção de significado acontece
em parte dentro e fora do texto, no próprio texto e no texto social simultaneamente, de uma maneira
em que o cenário passado é sempre levado em conta à medida que o significado é construído (ALLEN,
2000, p. 35-9). De forma similar, os trabalhos de Carter espelham o momento no qual eles foram
escritos e a correspondente estética do pós-modernismo, mas jamais deixando de ecoar o texto social
passado. Tanto o é que ela se apropria de imagens prevalecentes de feminilidade do século XIX e, ao
escrevê-las, também tem por meta desconstruí-las como construtos humanos. Em outras palavras, ela
“se reapropria de formas do passado com a intenção de falar com uma sociedade a partir dos próprios
valores e história desta sociedade enquanto ainda a questiona” (HUTCHEON, 1995, p. 12: tradução
nossa). Sendo assim, é por se usar os discursos dominantes provenientes do texto passado apropriado
que o atual texto social concomitantemente subverte o texto social de outrora e desvela os
mecanismos opacos que operam na sociedade de hoje. Deste modo, é devido a este processo
contínuo que o termo bakhtiniano ‘romance polifônico’ é tão apropriado e Kristeva adota o mesmo
raciocínio.
No entanto, ao sugerir o falecimento do autor em seu famoso artigo “A morte do autor” (BARTHES,
1977, p. 142-148), o pós-estruturalista Roland Barthes é muito provavelmente aquele que fornece o
postulado mais controverso. Para começo de conversa, Barthes não nega a ‘permutação de textos’ de
Kristeva (ALLEN, 2000, p. 35). Muito pelo contrário, ele reconhece a dependência que o texto tem em
relação à linguagem e as imemoriais contínuas histórias de significado do último. Além do mais, duas
imagens são de significativa importância para sua proposição: o texto como um tecido infindável “feito
de numerosos discursos e fiado de significado já existente” (ALLEN, 2000, p. 67: tradução nossa) e o
poder ‘demoníaco’3 do texto dialógico.
Efetivamente, ao defender que o conceito de autor é antes de mais nada um construto moderno e
capitalista que não dá tanta proeminência ao texto abstrato e seu conteúdo como o faz para com o
trabalho concreto e o nome atrelado a este por questões de lucro, o objetivo principal de Barthes, que
está totalmente de acordo com a linha de pensamento de Kristeva, é minar o ‘mito da filiação’, que
engloba noções de paternidade, texto fonte tradicional, origem e influência (Ibid, p. 69). Isto é,
discursos que corroboram a existência de uma consciência individual e unificada do autor que dota
todo e qualquer texto de um significado central e legítimo. Interessantemente, por meio de um enredo
que lembra tal atitude para com a linha de pensamento dominante, Carter também relativiza as
fronteiras entre legitimidade e ilegitimidade em Wise Children por questionar a legitimidade e cultura
‘elevada’ dos descendentes dos Hazards, que é composta de atores shakespearianos tradicionais que
se gabam de uma reputação teatral hierárquica que remonta ao século XIX e ao antepassado e
patriarca Ranulph Hazard. Na verdade, por se levantar dúvidas sobre a paternidade de Ranulph que
metaforicamente o ‘mito da filiação’ é desafiado e recusado desde o início pela exposição de várias
paternidades falsas trazidas à tona ao longo do romance. No fim das contas, o que acontece é uma
democratização de classes, língua e cultura que termina com Melchior reconhecendo publicamente sua
paternidade, pondo um fim à condição de bastardas das irmãs Chance e, de certa forma,
desmascarando de uma vez por todas o ‘mito da filiação’.
Não obstante, a fim de cumprir seu objetivo principal como mencionado acima, Barthes claramente
questiona a existência do autor no que parece ser uma negação completa de sua voz no texto. Com
efeito, Barthes afirma que é a língua que fala, ‘atua’, e não o autor, o que torna o próprio ato de
escrever em algo impessoal (BARTHES, 1977, p. 143). Ao fazer isso, Barthes aparentemente concede
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ao leitor de longe a parte mais importante na construção do significado e na produção do texto antimonológico para o detrimento do autor, e reforça tal posicionamento quando declara que “a unidade de
um texto não está em sua origem, mas em seu destino” (BARTHES, 1977, p. 148: tradução nossa). Tal
declaração está indubitavelmente precisa até certo ponto já que o número de significados será
certamente proporcional ao de leitores, o que respalda a pluralidade de vozes em oposição à palavra
sagrada e inquestionável que provém do autor deiforme, bem como a ideia de que o significado oscila
de leitor para leitor.
De mais a mais, tanto Barthes como Kristeva entendem que o autor enquanto sujeito está ‘perdido’ no
texto, que o ‘eu’ autor deixa de ser um ‘sujeito de pronunciamento’ e se torna um mero ‘sujeito de
enunciação’ (Ibid, p. 40-42). Contudo, até que ponto o autor está ‘perdido’ parece discutível já que, por
exemplo, vários elementos autobiográficos podem ser observados no trabalho de Carter, o que a torna
nem totalmente ‘morta’ e tampouco ‘impossível de rastrear’. Na realidade, a gigante Fevvers lembra
muito de como Carter deve ter se sentido durante a sua experiência de viver no Japão, para ela uma
terra estrangeira semelhante à terra de Brobdingnag de Jonathan Swift (Gulliver’s Travels), um lugar no
qual sua altura, pele e cor de cabelo a fizeram se sentir uma verdadeira aberração: “Na loja de
departamento havia uma prateleira de vestidos etiquetada: ‘Apenas Para Meninas Jovens e Bonitas’.
Quando os vi, senti-me enorme como a [gigante] Glumdalclitch 6. Eu usava sandálias masculinas... os
maiores tamanhos [...]”(CARTER, 1981, p. 8: tradução nossa). Por esta razão, a proposição de Barthes
de que o autor está morto soa um tanto exagerada.
Dois teóricos muito conhecidos que também contribuem enormemente para a compreensão da jornada
intertextual são os estruturalistas Genette e Riffaterre. Primeiro, Genette não vê de forma alguma
trabalhos literários como textos originais. Pelo contrário, ele entende que cada elemento é obtido de um
sistema fechado transcendente e a maneira pela qual isso é feito é de algum modo mascarado pelo
autor. Como resultado, o crítico recebe uma maior proeminência por conta de sua presumível tarefa de
desvelar e tornar conhecido o modo pelo qual este emprestar de elementos e articulações entre textos
são realizados (ALLEN, 2000, p. 96-7). Além do mais, ao recorrer ao dialogismo de Bakhtin e à
intertextualidade de Kristeva, que para ele ocorrem no sistema linguístico abstrato, Genette fornece o
que pode ser visto como um parecer mais minucioso do processo intertextual. Assim, ao invés da
‘intertextualidade’ de Kristeva, ele usa o termo ‘transtextualidade’ para fazer menção a “tudo aquilo que
coloca um texto em relação, seja manifesta ou secreta, com outros textos” (STAM, 2005: p. 27:
tradução nossa; GENETTE, 1997a, p. 1), e a divide em cinco categorias: intertextualidade,
paratextualidade, metatextualidade, hipertextualidade e arquitextualidade.
Em poucas palavras, a primeira categoria se resume à conexão entre dois ou vários textos e mesmo à
presença de um dentro do outro “em forma de citação, plágio e alusão” (STAM, 2005, p. 27: tradução
nossa; GENETTE, 1997a, p. 1-2).
Em seguida, paratextualidade tem a ver com a existência de material textual extra que pode influenciar
a compreensão do leitor do texto principal. Para dotar um trabalho destes elementos ‘externos’, não
apenas o autor mas também editores podem recorrer a peritextos e epitextos: o primeiro composto de
“títulos, títulos de capítulos, prefácios e notas [...] dedicatórias, inscrições, epígrafes”, e o segundo de
“entrevistas, anúncios de publicidade, revisões de críticos e comentários a estes, cartas privadas e
outros posicionamentos de autores e editores – [literalmente] ‘fora’ do texto em questão” (ALLEN, 2000,
p. 103-6: tradução nossa). De fato, um exemplo muito bom de material epitextual é um artigo no qual
6 Glumdalclitch é a gigante que toma conta de Gulliver e de quem ele passa a gostar.
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Carter fala sobre sua avó materna, que a levou para o vilarejo de Wath-upon-Dearne mal ela tinha
nascido em 1940 para que pudesse estar sã e salva durante o período de guerra: “[Ela] era uma
mulher de tamanha intensidade física e espiritual que ela parecia ter nascido com um grau de
seriedade maior que a maioria das pessoas. Ela veio de uma comunidade onde as mulheres que
mandam no poleiro...” (CARTER, 1977, p. 43-44: tradução nossa).
Após ler essa passagem, não é surpresa alguma que diferente da figura materna ausente, a avó seja
uma presença marcante para a narradora de Wise Children, principalmente durante os bombardeios
alemães: “[e]la [Vovó Chance] era nosso abrigo antiaéreo; ela era nossa diversão; ela era nosso seio”
(CARTER, 1993b, p. 29: tradução nossa). Portanto, é simplesmente impossível não admitir que a
posse desta experiência autobiográfica exerce uma considerável influência sobre a subsequente leitura
do romance, o que também mostra que componentes paratextuais podem ser usados para
intencionalmente restringir o significado (GENETTE, 1997b, p. 407).
Terceiro, a metatextualidade é um tipo de transtextualidade na qual um texto de forma aberta ou velada
faz menção a outro anterior e estabelece com este uma relação que pode ir de elogio a crítica (Ibid, p.
102). Interessantemente, como Stam destaca:
Nas eras coloniais e pós-coloniais, a literatura frequentemente “escreveu em resposta”
contra o império, frequentemente sob a forma de reescritura crítica de textos chaves da
tradição de romances europeus. [...] Outra tendência recente na literatura envolve a
reescritura de um romance a partir da perspectiva de personagens adicionais secundários ou
mesmo imaginários (STAM, 2005, p. 28-29: tradução nossa).
Carter dota Wise Children deste aspecto pós-colonial por reescrever o texto social do século XIX no
século XX e derrubar Shakespeare do pedestal no qual ele costumava ser colocado durante a
expansão vitoriana da cultura inglesa através das colônias a qual tinha o bardo como seu símbolo
principal: “o zelo evangélico de Ranulph para disseminar a Palavra de Shakespeare é tão grande que
ele ‘cruza, entrecruza’ o globo, viajando ‘aos confins do império’ em seu esforço de vender a religião de
Shakespeare e os valores ingleses que ele representa” (WEBB, 1995, p. 283: tradução nossa;
SANDERS, 2008, p. 52). De fato, todo o romance está recheado de referências shakespearianas de tal
modo a se retratar o bardo em sua condição pré-canonizada ao imitar grotescamente o mesmo em
outras mídias tais como o cinema e a televisão. Ao fazê-lo, Carter desafia as tradicionais fronteiras
entre culturas ‘elevadas’ e ‘depreciadas’, representadas pela dinastia dos Hazard e as irmãs Chance,
respectivamente, para provar seu ponto de que “Shakespeare simplesmente não é um intelectual”
(SAGE, 1992, p. 186: tradução nossa). No fim das contas, o que resta é um império decadente na
figura do mendigo Gorgeous George tatuado com um mapa do mundo destacando as outrora colônias
britânicas em rosa. Antes ‘Palhaço Número Um do Império Britânico’, agora vê-lo faz Dora exclamar:
“Olhai como caíram os poderosos” (CARTER, 1993b, p. 150, 196: tradução nossa; 2 SAMUEL 1:27).
Afinal, “George nos mostra um império decadente: tendo uma vez dominado o mundo, este homem
inglês pode ser mestre de apenas um único espaço: seu próprio corpo” (WEBB, 1995, p. 286: tradução
nossa).
A quarta transtextualidade explica a natureza da interdependência entre um texto tal e seu antecessor,
o ‘hipertexto’ e o ‘hipotexto’, respectivamente, na qual o primeiro “transforma, modifica, explica ou
estende” o último (ALLEN, 2000, p. 107-8: tradução nossa; STAM, 2005, p. 31). Com relação a esta
categoria, uma questão que é geralmente levantada é a de até que ponto a ignorância ou mesmo a
inexistência do texto anterior pode detrair da apreciação de um trabalho e influenciar a construção de
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significado. De acordo com Genette, isso não tem de ser um problema já que textos podem ser lidos
tanto autonomamente como em relação ao texto de origem (GENETTE, 1997a, p. 397). Em Nights at
the Circus, por exemplo, pode haver por parte do leitor desconhecimento da referência intertextual à
lenda de Leda e o Cisne, bem como ao nascimento de Helena de Tróia. Embora tal fato certamente
influencie o entendimento do leitor e torna sua leitura diferente da de um que conheça o hipotexto, o
próprio texto pode ainda ser lido e apreciado por méritos próprios. Além disso, como Wisker declara, “o
talento particular de Carter é tornar o complexo acessível e divertido. O leitor não tem de saber as
referências, embora isso ajude a enriquecer a leitura, porque ela explica o que cada referência sugere”
(WISKER, 2003, p. 10: tradução nossa).
Finalmente, a arquitextualidade se refere a taxonomias genéricas que despertam a expectativa do leitor
com relação a, entre outras coisas, gênero, modo e tema devido ao fato de que todo o sistema literário
está baseado em componentes invariáveis ou de pelo menos transformação gradativa (STAM, 2005, p.
30; ALLEN, 2000, p. 100-103). Contudo, estas mesmíssimas expectativas são consideravelmente
subvertidas de várias formas por Carter. Prova disso é o que ela faz com o gótico, que foi muito
influente nos escritos do século XIX e é principalmente caracterizado pela análise crítica de uma
aparente segurança e estabilidade social que lá no fundo mascara dúvida e logro por desarmar suas
vítimas. Apesar disso, no fim a ordem é normalmente restaurada às custas daqueles que permanecem
sob o jugo das “crenças e atitudes da masculinidade branca da classe média dominante” (WISKER,
2003, p. 18: tradução nossa). No entanto, Carter escreve em sintonia com a escritura gótica feminista
contemporânea e, portanto, não o reproduz inteiramente já que seu ponto de vista tende a ser cumplíce
do da futura vítima. Como resultado, Carter não restabelece o status quo anterior pois isso implicaria
na perpetuação das crueldades veladas praticadas e impostas pelo patriarcalismo. Portanto, embora
Fevvers pudesse se transformar em alvo de adulação destrutiva por se tornar em um pássaro dourado
numa gaiola dourada para o Grão Duque em Nights at the Circus, “nas mãos [de Carter], a
aparentemente adorada mas por fim trancafiada, desarmada e sexualmente vitimizada ‘boneca viva’
escapa da armadilha doméstica e celebra sua própria identidade e força sexual” (WISKER, 2003, p. 1819, 28-30: tradução nossa).
Com relação à teoria de Riffaterre, a mesma é mormente baseada em pressuposições de que os textos
sinalizam como eles podem ser decodificados sem qualquer necessidade de se recorrer a referências
textuais passadas e que os leitores têm conhecimento suficiente da tradição literária e dos discursos
normativos da sociedade para desempenhar tal tarefa (ALLEN, 2000, p. 125). Ou seja, sua tese apoia
a unicidade de um texto literário e sua auto-suficiência. Com efeito, ele provê uma abordagem
semiótica anti-referencial em oposição a uma mimética referencial que caracteriza principalmente o
conceito pós-estruturalista de intertextualidade. Deste modo, ele favorece o textual em detrimento do
intertextual ao argumentar que a construção de significado é apenas possível graças às estruturas
semióticas que conectam e inter-relacionam os inúmeros elementos que compõem o texto literário, que
vai de uma simples palavra a uma oração inteira. Em outras palavras, ele de alguma forma admite a
existência das relações intertextuais, mas ele não vê como necessário rastrear os intertextos para
produzir significado. Além disso, ele afirma que está a encargo do leitor lidar com o problema de uma
eventual necessidade de leitura mimética. Na verdade, ele concebe que a leitura e a interpretação de
texto ocorrem primeiro em um nível mimético. Contudo, uma vez que o leitor se depara com as
indeterminações e ingramaticalidades do texto, que não tem a ver necessariamente com construção de
oração, ele recorre a um nível semiótico no qual ele tenta identificar as unidades semióticas que
subjazem o texto (ALLEN, 2000, p. 115-16).
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Para Riffaterre, não há espaço para ambiguidade ou ingramaticalidade em um nível semiótico, apenas
decisão final. De acordo com ele, o que pode haver são ‘silepses’, ou palavras cujo significado podem
variar de um contexto para outro já que o mesmo não está intrínseco a elas. Além disso, a fim de se
resolver qualquer ingramaticalidade para identificar a relação entre as unidades semióticas, o leitor
pode também recorrer a um ‘interpretante’, termo emprestado do linguista C. S. Pierce que se refere a
uma palavra que esclarece o tipo de conexão ou natureza comum que estas unidades compartilham
(ALLEN, 2000, p. 117-18). De fato, este ‘interpretante’ parece ser nada mais que a hipotética ‘matriz’ de
Riffaterre, a qual pode ser uma palavra que não aparece no texto e sintetiza o que o leitor entende
como sendo a unidade semiótica do texto, que é resultado da transformação que o ‘idioleto’ ou a arte
do autor realiza no ‘socioleto’ ou dos discursos normativos que permeiam e prevalecem na esfera
social (Ibid, p. 119). Em resumo, a fim de se realizar uma interpretação semiótica, o leitor tem que
pressupor o intertexto, ou o texto em seu estado pré-transformacional, também chamado hipograma,
que em suma é o que Barthes chama de ‘já lido’ que “não está situado no próprio texto, mas é o
produto de prática semiótica e literária passada” (Ibid, p. 121-22, 124: tradução nossa).
Em acordo com a teoria de Riffaterre, o leitor pode desfrutar os trabalhos de Carter independente de
sua falta de conhecimento dos intertextos porque ela os torna acessíveis ao fornecer informações que
torna pressuposições possíveis, por exemplo, em Nights at the Circus. Prova disto são as várias
referências diretas e indiretas à lenda de Leda e o Cisne bem como ao nascimento de Helena de Tróia
desde o começo: Fevvers diz que ela foi chocada tal qual Helena e seus ombros são comparados
àqueles de seu suposto pai, o cisne; a bebê Fevvers foi encontrada em um cesto “dormindo entre
restolhos de cascas de ovo quebradas”; Walser levanta a controvérsia do umbigo já que Fevvers
declara ter sido chocada como os ovíparos o são; sobre o consolo da lareira da Vó 7 Nelson há um
quadro retratando o lendário encontro entre Leda e o Cisne; no jogo que o Grão Duque joga com
Fevvers, o último ovo “era de ouro branco e em cima havia um adorável cisnezinho, um tributo, talvez,
à sua suposta paternidade” (CARTER, 1993a, p. 7, 12, 17-18, 28, 192: tradução nossa).
Enfim, a intertextualidade de Bloom é principalmente caracterizada por um foco na natureza relacional
do texto, na qual o próprio texto representa uma sinédoque para um todo maior (ALLEN, 2000, p. 136).
Interessantemente, ele define como as únicas exceções em termos de ‘escritores verdadeiramente
originais’ o escritor Jeovista, Shakespeare e Freud no sentido de que eles são dotados de um status de
fato ou ‘facticidade’ já que é impossível evitar a influência deles. E mais, ele declara que Shakespeare
é o escritor mais factitivo, pois o mesmo é uma constante fonte de inspiração mesmo para a vida
pessoal de seus leitores: “Shakespeare não pensou um pensamento e um pensamento apenas; um
tanto escandalosamente, ele pensou todos os pensamentos para todos nós” (BLOOM, 1997, p. xxviixxviii: tradução nossa). Curiosamente, é exatamente esse emblema que costumava simbolizar o
imperialismo britânico do século XIX que Carter adota em Wise Children como a espinha dorsal
patriarcal a ser despedaçada.
Entretanto, talvez o que mais chame a atenção na teoria de Bloom é a suposição de que o processo
intertextual se origina de duas motivações concomitantes: a necessidade de imitar escritores
precursores e um desejo de ser original, o que abre espaço para o que ele denomina de ‘ansiedade de
influência’ que, a propósito, ocorre de forma diferente com a escritora, que sofre do que Gilbert e Gubar
7 Ainda que a palavra Ma seja uma forma antiga e informal de se dizer ‘mamãe’, tendo em conta a idade avançada de Ma
Chance e Ma Nelson, bem como a intencionalidade de Carter nas duas obras, mormente em Wise Children, onde Ma
Chance não deixa as irmãs Chance chamá-la de mother/mãe (Carter: 1993b, p. 26), aparentemente a melhor tradução para
Ma nas duas obras é ‘Vó’.
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chamam de ‘ansiedade de autoria’: “Filho de muitos pais, o escritor de hoje se sente irremediavelmente
atrasado; filha de pouquíssimas mães, a escritora de hoje percebe que ela está ajudando a criar uma
tradição viável que está finalmente emergindo de forma definitiva” (GILBERT; GUBAR, 1979, p. 50:
tradução nossa).
Além disso, Bloom destaca a ‘inversão de poder e autoridade’ que ocorre uma vez que as mulheres
desconsideram a acusação de condição não-natural e pegam a caneta fálica para dar voz à sua
experiência feminina e pôr em ação uma resistência articulada contra as construções de feminilidade
que imperam. Efetivamente, é exatamente isso que acontece em Wise Children e Nights at the Circus,
nos quais a voz feminina desmascara os conceitos dominantes acerca da feminilidade por solapar de
muitas formas o discurso patriarcal que é instalado apenas para ser finalmente subvertido.
Em conclusão, é inevitável se deparar com dúvidas e posições divergentes quando se lida com a
intertextualidade já que as mesmas são por definição imanente à natureza dialógica de todo texto
(ALLEN, 2000, p. 59). Contudo, algumas conclusões podem ser tiradas deste panorama das principais
teorias que lidam com o material textual. Primeiro, parece que todos os elementos analisados, o autor,
o leitor, as relações intertextuais e o próprio texto, contribuem de alguma forma e em diferentes graus
para a construção de uma multidão de significados. Além disso, como Bakhtin declara, o resultado final
também varia de acordo com o contexto, o que envolve tempo, lugar e cultura. Com relação à
influência de (um) autor(es) sobre outro, tal fato é aparentemente tão provável de acontecer quanto o é
que a interpretação final de um texto é influenciada pelas infinitas vozes que o predece e o compõe.
Com respeito à preocupação em rastrear fontes textuais, isso parece tão desnecessário para o que é
mais importante que é a compreensão e apreciação do texto como mostram Genette e Riffaterre. Além
disso, sempre haverá fontes que se perderão no tempo quanto mais se aproxima do nascimento da
linguagem como ela é conhecida. Finalmente, a existência do autor jamais será ameaçada já que sua
voz sempre será parte das inúmeras barulhentas vozes que compõem cada texto. No fim, como Allen
afirma, “nunca há uma única ou correta forma de se ler um texto, já que cada leitor traz consigo
diferentes expectativas, interesses, pontos de vista e experiências de leitura anterior” (ALLEN, 2000, p.
7: tradução nossa).
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