Lei de licitações
"Legalidade, ética e interesse público são os
três princípios fundamentais que devem nortear
a conduta numa licitação pública"
Maçahico Tisaka
O princípio da legalidade mostra que tudo deve ser feito dentro da lei e
especialmente da chamada Lei de Licitações e Contratos. Sem o princípio da ética não haveria o respeito
e o equilíbrio necessários nas relações entre os participantes do pleito. E, finalmente, há que se buscar
incessantemente o interesse público que é o objetivo final do processo licitatório. Mas, será que esses
princípios estão sendo devidos e integralmente respeitados?
Não resta a menor dúvida de que na questão da legalidade não há muito que discutir. Salvo casos de
interpretação de determinados artigos, a lei deve ser aplicada com rigor, sem contemplação,
independente de ser justa ou injusta.
Superada essa questão da legalidade, resta saber se - sendo legal - a ética e o interesse público podem
ter menos relevância em uma licitação pública. A prática mostra que nem uma nem outra estão sendo
devidamente respeitadas, tanto pela parte dos proponentes quanto pela direção dos órgãos, talvez por
deficiência da própria lei que rege essa matéria. É o que vamos analisar, mas não sem antes rememorar
em que circunstância foi criada a Lei de Licitações.
A Lei Federal no 8666/93, também chamada de Lei de Licitações e Contratos, vai completar em junho 12
anos de existência. De lá para cá, houve algumas alterações e emendas que aclararam alguns pontos
duvidosos. A estrutura e os pontos fundamentais, porém, mantiveram-se intocáveis. Essa lei foi
aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Itamar Franco em meio a um intenso clamor da
opinião pública, traumatizada pela revelação de várias falcatruas descobertas em inúmeros casos de
favorecimento a algumas empresas ligadas a determinados políticos e ao governo.
A intenção do legislador ao aprovar a lei foi impedir esses supostos favorecimentos, sem deixar
nenhuma brecha para que o dirigente público pudesse decidir pela melhor proposta no sentido mais
amplo, condicionando-o a aceitar obrigatoriamente aquela que oferecesse o menor preço, sem qualquer
outra análise.
Essa rigidez partiu do pressuposto de que não se pode confiar em ninguém e tirou do dirigente toda a
responsabilidade de decisão, fazendo com que seja apenas uma engrenagem de uma máquina,
subtraindo-lhe a capacidade de analisar e escolher o melhor no aspecto global. Tolheu o que há de maior
valor no julgador: inteligência, lisura e experiência profissional. Talvez tenha sido um grande erro
subestimar esses valores.
A lei que teve como foco a construção civil é genérica para todo e qualquer tipo de licitação que vai de
uma simples compra de lápis até casos de contratação de serviços de natureza intelectual, como é o
caso de consultoria e projetos ou grandes e complexas obras de engenharia.
A diferença principal é que os primeiros são produtos acabados e passíveis de ter uma amostra concreta
e o outro depende de especificações para cada serviço ou cada obra para entrega futura, sujeitos a
inúmeros fatores e circunstâncias. Tanto os projetos de engenharia quanto os produtos resultantes são
literalmente "obras de arte" e como tal não podem ser nivelados apenas pelo preço mais baixo. É como
equiparar uma obra de pintura de um artista famoso a um outro qualquer, apenas pelas dimensões do
quadro.
Todos nós sabemos que o setor da construção civil é um dos segmentos de maior importância para a
economia e desenvolvimento do País e a administração pública nas três esferas do governo é a
responsável pela maior parte dos investimentos. Para isso, é imprescindível que hajam leis que estejam
adequadas à realidade do País e do momento.
Lamentavelmente, na atualidade, o setor da construção civil pública está desmantelado e só não
enxerga essa realidade quem estiver alheio ao problema. Não é exagero afirmar que a maioria das
empresas encontram-se num impasse entre a sucumbência e a sobrevivência, principalmente aquelas
que lidam só com os órgãos públicos. E culpa-se duramente a Lei de Licitações por esse retrocesso.
Não podemos negar que sob muitos aspectos a Lei de Licitação trouxe diversos avanços no ordenamento
jurídico do processo de escolha da suposta "proposta mais vantajosa para a administração", mas
ironicamente a questão mais polêmica ficou por conta do critério de escolha do vencedor pelo preço mais
baixo, não permitindo nenhuma possibilidade de alternativas ao gestor da licitação e do contrato para
atender o principal objetivo que é exatamente a proposta mais vantajosa para a administração.
Depois de todos esses anos de experiência na aplicação da Lei de Licitações, sobressaem algumas
questões polêmicas que merecem uma profunda reflexão e analisar se os objetivos iniciais do legislador
foram alcançados ou não.
1 - Saber se essa lei realmente acabou ou não com os favorecimentos e irregularidades cometidas por
determinadas empresas e dirigentes públicos, motivo que deu origem à lei.
As recentes manchetes nos jornais e revistas não confirmam isso: "TCU aponta irregularidades em 70
grandes obras", "Máfia da Sudam pode ter desviado R$ 2 bi", "Esquema frauda R$ 27,8 mi no DNER",
"União perde R$ 7,1 bi com fraudes, revela PF", "Lobistas cobram até 25% de propina", "Brasil é o 14o
em corrupção, diz ONG".
O Jornal O Estado de S. Paulo em seu editorial de 21 de março de 2004 considerou que a corrupção
continua endêmica no País. Tem-se a impressão de que nada mudou e, se mudou, talvez tenha sido
para pior.
2 - Leis excessivamente rígidas, que destoam da realidade retiram a liberdade de criação e ignoram o
compromisso pela qualidade, não atendem os objetivos da licitação, obrigando os proponentes a
recorrerem de iniciativas nem sempre éticas. Em outras palavras, induz-se ao uso de recursos de
espertezas, fraudes, esquemas, subornos e outras práticas contrárias à ética profissional. A tendência é
a de buscar as mais variadas formas e artifícios para burlar a lei. Isso vale para ambos os lados.
3 - Verificar até que ponto está sendo atendido um dos princípios basilares de "selecionar a proposta
mais vantajosa para a administração", conforme estabelecido no art. 3o da lei.
A questão é saber qual é o real significado da "proposta mais vantajosa para administração". Se for
aquela que oferta o menor preço ou se há outras condições que precisam ser observadas para que seja
considerada mais vantajosa para a administração.
Essa é uma decisão difícil para o administrador público pois, pela lei atual, mesmo sabendo que o
proponente vencedor não tem competência e nem experiência empresarial para executá-la, fica o
administrador obrigado a adjudicar a empresa que deu o menor preço.
O preço mais baixo pode encerrar ou envolver uma série de outros problemas como o baixo nível de
qualidade, redução da vida útil da obra, risco de defeitos graves, atendimento deficiente, falta de
garantia no cumprimento dos prazos, riscos elevados de abandono da obra, entre outros que, como
conseqüência, impõem um pesado ônus para o erário público.Onde estão os maiores problemas?
• Critério de escolha do vencedor pelo menor preço: esse talvez seja o ponto mais controvertido de toda
a Lei de Licitações. Escolher pelo menor preço não é o melhor critério para cumprir com os objetivos da
licitação. É nivelar por baixo a qualidade da construção ou do serviço causando a
• Orçamento do órgão: o licitante deve apresentar um orçamento estimado em planilhas quantitativas e
preços unitários (alínea II, parágrafo 2o do art. 40). Aí está um foco de irregularidades que muitas vezes
passa desapercebido pela maioria dos licitantes. Muitos dos órgãos licitantes estão despreparados para
elaborar um orçamento adequado e justo. Alguns não apropriam os custos devidos, outros confundem
custo direto com indireto e até omitem ou subestimam as taxas de tributos que seriam devidos ao fisco.
Há casos gritantes onde o órgão deixa de considerar as Leis Sociais incidentes na mão-de-obra e outros
omitem o BDI (Beneficio e custos indiretos, inclusive tributos) e consideram a planilha de custos diretos
como sendo a Planilha Orçamentária como limite da proposta. Essa atitude, além de mostrar má-fé e
ignorância é ilegal, pois induz os participantes à prática de sonegação e constitui-se um caso típico de
falta de ética do administrador público em prejuízo dos eventuais desavisados concorrentes
• As empresas estão desestruturadas: pelo lado dos proponentes, acontecem coisas piores. Além de
aceitar tais exigências ficam na esperança de que durante a vigência do contrato possam tentar reverter
a situação com aditivos, muitas vezes mancomunados com o próprio gestor irresponsável.
Atualmente, devido à margem estreita de lucro, a grande maioria das empresas médias e pequenas não
tem mais orçamentistas e nem planejadores e se valem dos orçamentos do órgão licitante, nem sempre
corretos, levando algumas empresas a darem grandes descontos sem nenhum critério no afã de ganhar
a licitação, sem saber que estão cometendo o próprio suicídio ou já premeditando sonegar os encargos e
os tributos devidos
• Critérios de desclassificação de propostas por preço inexeqüível -parágrafo 1o itens a) e b) e
parágrafo 2o, da alínea II do art. 48: os critérios de desclassificação desses proponentes são
excessivamente amplos e propiciam aos aventureiros uma larga margem para mergulhos nos preços,
alijando e prejudicando as empresas sérias do certame. O atual critério de desclassificação por
inexequibilidade nos preços induz os concorrentes a uma espécie de prática de suicídio comercial, pois a
lei parte do pressuposto de que as margens de lucro possam atingir percentuais acima de 30% (não
confundir com BDI), o que está totalmente fora da realidade, pois hoje essas margens estão cada vez
mais apertadas
• Manutenção do nível de qualidade: o critério único de decisão pelo menor preço choca-se frontalmente
contra os princípios do Movimento pela Qualidade e Produtividade que o Instituto de Engenharia iniciou
há 15 anos e que tinha como objetivo elevar o nível de qualidade de todos os produtos.
Essa exigência legal acabou nivelando por baixo todas as ações a favor da melhoria da qualidade das
construções, do desenvolvimento tecnológico, da competitividade, do fortalecimento das empresas, da
elevação do nível dos recursos humanos, entre outros. Esse critério de menor preço também penaliza
brutalmente aquelas empresas que aderiram ao PBPQ-H, ao Qualihab, ao ISO-9.000, 9001, 9002 e
assim por diante, que ficam alijadas do processo licitatório, porque o esforço e a manutenção da
qualidade têm custos que não podem ser descartados. Essas empresas que primam pela qualidade de
suas obras não conseguem concorrer pelo menor preço pois muitas vezes incorporam alta tecnologia e
grandes responsabilidades dos autores e executores, além da difícil questão de avaliação do nível de
qualidade que não pode ser medida no momento da licitação por se tratar de contratação para entrega
futura
• Prazo do processo licitatório: uma questão pouco lembrada nas discussões é o prazo excessivamente
longo que leva uma licitação a partir da abertura do processo administrativo até a contratação do
proponente vencedor, principalmente no caso de Tomada de Preços e Concorrência. O rigor excessivo da
lei leva, não raras vezes, a recursos e demandas judiciais que impedem os órgãos de realizar com
rapidez e eficiência os projetos de governo prejudicando a população a ser atendida
• Aumento da informalidade como forma de sobrevivência: atualmente as empresas sérias funcionando
de acordo com a legislação, com contrato formal de todos os empregados, com estrutura técnica bem
composta, pagando corretamente os tributos, podem se dar por satisfeitas se conseguirem equilibrar as
suas contas, sendo que o menor cochilo pode ser fatal para a continuidade no mercado.
Essa intrigante situação está levando muitas empresas pequenas e médias a optar pela informalidade,
ou se utilizar de muitos outros subterfúgios, às vezes ilegais e pouco éticos, como forma de ¿empurrar o
problema com a barriga¿, e não raras vezes desaparecer do mercado, deixando um rastro de dívidas
perante o fisco e fornecedores.
Segundo recente levantamento feito pelo IBGE a pedido do Jornal O Estado de S. Paulo, 72,80% dos
trabalhadores na construção civil não têm vínculo empregatício com seus empregadores, contribuindo
para o aumento cada vez maior da informalidade, da ilegalidade, da sonegação e do incremento de atos
de corrupção no País.
Essa situação tende a se agravar, se não houver uma urgente reformulação da Legislação Trabalhista
pelo Congresso Nacional, pois para cada salário pago ao trabalhador há mais 1,26 vez de encargos
básicos e incidências, além de outras obrigações trabalhistas e sindicais (refeições, transportes, EPI,
entre outros), que elevam para mais de 1,76 vez os encargos sociais por cada trabalhador ou, para cada
salário o empregador paga quase mais duas vezes de encargos, tornando excessivamente oneroso o
registro formal para as empresas, que é um outro fator de desequilíbrio nas licitações.
Este artigo tem o objetivo de alertar os políticos e as autoridades para a necessidade de uma profunda
reflexão sobre os pontos levantados, pois a persistir a mesma situação, o prejuízo não será somente do
setor da construção civil, mas afetará profundamente a própria retomada do desenvolvimento
econômico da Nação que precisa ter empresas fortes e preparadas para enfrentá-la.
Maçahico Tisaka é consultor, ex-presidente do Instituto de Engenharia de São Paulo e conselheiro do
Crea-SP
E-mail: [email protected]
Construção Mercado 43 - fevereiro de 2005
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