1 Ensino de/com Literatura: objetivos e desafios Márcia Marques de Morais A literatura aponta para um muito além do status de disciplina informativa, embora a tenham confinado – sujeito indeterminado, mas, indubitavelmente, ideológico, a esse lugar diminuto, considerada sua dimensão... Ainda hoje, ela se ressente disso, razão pela qual, nos currículos escolares – e aqui evito, para não manchar o sintagma “ projeto político-pedagógico”, que, por sua própria natureza é formador, ela figure, quase sempre, como um apêndice, um quisto incômodo, desalojando outros conteúdos mais importantes e pragmáticos; razão pela qual, quase nunca, ela merece a abordagem que tem, circunscrita a um desfile de estilos de época e suas características, nome e biografia de autores representativos de cada um deles, leitura de resumos de obras importantes, “pesquisas” enlatadas na internet e que repetem sempre o mesmo dito por um outro que não o aluno e até o professor..; razão pela qual, ela é quase sempre uma segunda opção no desejo do aluno de se aperfeiçoar, especializar, atualizar ou pós-graduar-se, pois que sua não imediatez ou o seu não-pragmatismo não atendem ao século da velocidade, do saber hoje para aplicar amanhã, ou mais, do saber aqui para despejar ali. São muitos os equívocos em relação ao lugar da literatura, em parte pela descrença nela que grassa por aí, com se literatura fosse algo diletante, algo que lembra o 2 belletrismo, perfumaria, supérfluo..., em parte porque a maneira como é conduzida pela escola, conforme já se disse aqui, não atingindo o seu cerne, soa como alguma coisa inútil, um assunto, um conteúdo desvinculado da realidade e descontextualizado em relação a outros conteúdos ou, pelo avesso, um conteúdo que apenas ilustra outros conteúdos escolares ou confirma, exemplifica vivências sociais ou mazelas humanas... Em outras palavras, se ela vale por si, é mero conteúdo sem rendimento prático; se ela não vale por si, confirma, de forma mais estética, outros saberes – saberes?; em parte, porque ainda se marca por sua origem genética como matéria de currículo escolar. Não está assim tão distante o tempo em que se estudava a literatura atrelada à idéia de ser ela a mais alta manifestação da língua culta, da línguapadrão, da escrita de um povo – lembremo-nos de que a própria existência de uma língua oficial era circunscrita a uma primeira manifestação literária, a um primeiro texto de literatura escrito naquela língua. Foi assim com o nosso português cuja certidão de nascimento se lavrou com a Cantiga da Ribeirinha, de Pai Soares de Taveirós, em 1189, no século XII. Naquele tempo, ironicamente, In illo tempore, a literatura exemplificava – frise-se o termo, para dizer que, infelizmente, ela continua só exemplificando, os fatos da gramática, que, normativa, sobretudo, pinçava nos clássicos exemplos de orações coordenadas sindéticas isso assim assim, subordinadas adverbiais etc., concordância, regências, pontuações e que tais...Esse tempo não está tão longe assim, e os espaços em que isso ainda ocorre estão quase no nosso nariz. No entanto, é justo anunciar um novo tempo para as letras, aqui tomadas como interseção entre a teorias lingüísticas e literárias, as línguas e as literaturas. Se, há três décadas passadas, a língua portuguesa viveu brava crise de identidade, insurgindo-se contra as funções prescritivas que lhe faziam as vezes da função 3 paterna, representadas, então, pela gramática como nomenclatura e conteúdo a serem dominados para se aprender o código, analogamente, a literatura agora vivencia essa crise, no contexto da escola. Assim, a língua portuguesa puxou o cordão da reflexão sobre o estudo do código lingüístico e, claro, ficou esperando que a literatura se repensasse como disciplina, disciplina aqui tomada com os dois significados mais flagrantes, para que se reencontrassem efetiva e afetuosamente, sem que uma fosse a “técnica” e a outra a vitrine e/ou confirmação dessa técnica. Certamente, a língua portuguesa saiu na frente, porque a lingüística, cinqüentenária, quase recém-nascida como ciência, crioulhe condições propícias: buscou, na comunicação social, uma parceria com a teoria da comunicação e cunhou outro nome, nova identidade para o ensino da língua – Comunicação e Expressão -, nome, que, por mais equivocado que tenha sido, num primeiro momento, fez que se pensasse grande a língua como área, não como disciplina; pôs a gramática do bem falar, a normativa, aquela do beletrismo em questão e buscou, no Estruturalismo, uma descrição mais convincente para o código lingüístico, tendo aí se reencontrado com a literatura, que, segundo o mesmo paradigma estruturalista, trabalhava o texto e a linguagem do texto literário; fez mágica para pensar numa gramática universal e, mesmo não convencendo com sua descobertas, mostrou outros universais em relação às letras; desenhou árvores chomskianas que vieram a frutificar em outros terrenos; descobriu saussurreanamente, que a língua não é nomenclatura, que o signo é entidade de duas faces, fazendo que figurasse em néon uma nova e imprescindível personagem, uma metapersonagem, o significante, tanto tempo toldado pela supremacia do significado que, em sua face perversa, substituíra, muitas vezes, o texto e o texto literário em si; refletiu sobre o preconceito sociolinguisticamente e, pasmem, acolheu a oralidade com status próprio e “ substrato” da própria língua oficial 4 autoritária; correu o risco de impor outra gramática, a da oralidade...; dialogou psicolinguisticamente com a psicanálise, para descobrir o sujeito, não o já sublinhado pela análise sintática – mas aquele que se faz representar pela subjetividade como marca de emissor e receptor, enunciador e enunciatário, autor e leitor, polifonias que fazem do texto foucaultianamente uma dispersão de sujeitos; acolheu a filosofia e a da linguagem; tricotou com a antropologia, até porque deu status de língua às línguas ágrafas; equilibrou-se entre o signo motivado e o arbitrário e repensou a extensão de sentido e a linguagem figurada; debateu-se entre a língua potencial e abstrata e a língua atualizada e concretizada pela voz humana; fez da enunciação parceira do enunciado na produção dos efeitos de sentido, privilegiando as condições, sobretudo sociais, mas, ainda, históricas, políticas, ideológicas e econômicas, dessa produção; vive o áureo tempo da língua como interação e intersubjetividade... Embora o desenvolvimento da ciência lingüística tivesse sido acompanhado de perto pelos conhecimentos literários, sobretudo a partir do Estruturalismo, este se atrasaram para chegar à escola, até porque pagavam o preço daquele início bem alienado a que já me referi. Desconfio, só desconfio, que o entrelugar aí da literatura, entre saber escolar e arte, tenha contribuído para a defasagem em relação aos efeitos das novas teorias no ensino literário, uma vez que a crítica literária que tinha sob sua égide essas preocupações era uma crítica muito mais voltada para a sociedade como um todo e menos especificamente para a escola, embora se deva sublinhar que os professores formados pela universidade, certamente, tinham acesso à Crítica e aos críticos; de qualquer modo, há, parece, uma idéia, ainda que longínqua, de crítica meio elitizada e de críticos que criticam para si mesmos ou entre “sis”. 5 Para contrariar essa desconfiança, a justiça faz que se faça representar a Crítica engajada com a questão da educação literária através do nome de Antônio Cândido, formador de toda uma geração de críticos e de professores de literatura. Por isso mesmo, fomos buscar um texto dele, datado de 1972 início mesmo daquela revolução lingüística a que nos vimos referindo -, algumas reflexões sobre a função da literatura na formação humana e, ipso facto, a sua importância no contexto escolar. O nome do texto é “ A literatura e a formação do homem”e foi pronunciado em conferência na XXIV Reunião Anual da SPBC, em São Paulo, em julho de 1972. O objetivo da palestra, segundo o autor, é “ apresentar algumas variações sobre a função humanizadora da literatura, isto é, sobre a capacidade que ela tem de confirmar a humanidade do homem.” (realce meu p.77). Depois de discorrer, não por acaso, sobre estrutura (vivia-se o Estruturalismo) e função da literatura, Candido decide fixar-se na função da literatura, não sem antes ressalvar que esse conceito estaria meio fora de moda; perceba-se aqui que o Estruturalismo hard de então via como incompatíveis a noção de estrutura e história e, portanto, função da literatura como “papel que a obra literária desempenha na sociedade” seria mesmo desastroso!!! Mas, nada com transgredir ( vide a fala do Audemaro), e o crítico porque grande transgride e vaticina: “ Mas vai ficando cada dia mais claro que uma visão íntegra da literatura chegará a conciliar num todo explicativo coerente a noção de estrutura e a de função(...)”(p.79) Aqui abrimos breve parêntese para, num viés otimista, apostar que esse tempo está aqui conosco, em nossas mãos. 6 Diante disso, daqui a pouco, vamos tentar, em curtíssimos textos poéticos, apontar estrutura e função lendo o texto literário. Mas, voltemos à função da literatura com Cândido. No “bom combate” entre a visão científica do texto literário, que o crítico reconhece ter tido o seu maior avanço sob o rótulo estruturalista, e a literatura como “experiência humana”, em contexto marcado pela preocupação com a identidade e o destino do homem, é preciso distinguir duas direções de trabalho: uma de viés analítico, de cunho científico e que suspende questões relativas a autor, valor, atuação psíquica e social, buscando a obra literária como objeto de conhecimento e outra de viés crítico, à medida que “indaga sobre a validade da obra e sua função como síntese e projeção da experiência humana.” (p.80). Sem deixarmos de lado aquilo que constitui o conhecimento literário, até por que se partirá dele para fundamentar a vertente crítica e é como a Escola, na maioria das vezes equivocadamente, faz tentativas de focalizar a literatura, vamo-nos ater ao viés crítico que nos faz a sempre pergunta sobre a experiência humana, sintetizada e projetada no texto literário. Isso por que a nossa ênfase sobre a literatura na formação e na formação do professor, deverá sublinhá-la como saber, isto é, como conhecimento que transforma (vale a alusão ao mote publicitário da Puc), como expressão do humano que atua na própria formação do humano. Já se vê, com nitidez,que a sua tônica não está na informação, como vínhamos frisando no início desta fala. Pensar, pois, a literatura como um dínamo propulsor da formação crítica do discente faz que a reflexão tenha nos cursos de letras como que seu habitat natural... 7 O ser humano é, por sua natureza, um ser prenhe de necessidade da fantasia, seja ele primitivo ou civilizado, criança ou adulto, instruído ou analfabeto, como frisa Antonio Cândido. Produzir e fruir ( repele-se “consumir”, pois que estamos no âmbito semântico do que não se descarta...) literatura responde a essa necessidade vital do humano, e ela representa, aqui e agora, as inúmeras “ formas simples”, trabalhadas por Jolles. Sem nos esquecermos de Freu quando aponta o devaneio como resquício da própria infância lúdica e nos aponta, a todos e a cada um de nós, neuróticos, por natureza, autores potenciais dos “romances familiares”, “escritores criativos” também a projetarmos para nós uma família de mentira, uma família imaginária e ficcional, que nos traga compensações para a angústia de estar-no-mundo...Assim, “a necessidade da ficção se manifesta a cada instante”, segundo o Crítico e se vai revestindo das mais diversas formas e, na contemporaneidade, com um apelo bem imagético, como no cinema, na televisão, enfim, no material audiovisual. Em todas essas formas de ficção a quererem dar conta do desejo da imaginação, a literatura é, indubitavelmente, a expressão mais rica. Assim, para além de ter uma função catártica ou projetiva no âmbito da experiência humana, legando a cada um de nós, fantasias compensatórias de nos percebermos criativos/criadores e possibilidades imaginárias de adiar a dor e privilegiar o prazer, a literatura, é, ela mesma, o mais que nos habilita a tratarmos as outras formas de ficção, incluindo-se aí toda e qualquer manifestação de linguagem. Sintetizando, por aí se vê o seu duplo caráter funcional: o de experiência e o de criação humana, manifesta na produção e na leitura, cujas habilidades serão tão mais desenvolvidas quanto maior for o convívio com a literatura. Acrescente-se a esse fantasiar inerente ao gênero humano que ele não brota do nada, que se apóia sempre em dados da realidade para proceder ao salto da 8 imaginação. Ora, isso faz pensar em outra vertente dos efeitos da literatura sobre nós: ao lado do desejo da ficcionalização que, sem nos darmos conta, inculca em nós marcas indeléveis, a partir mesmo de leituras literárias, o pé da fantasia, calcado na concretude do mundo, aponta o caráter integrador e transformador da literatura relativamente a seus pontos de referência na realidade. Dessa forma, o contexto social ao lado da construção da subjetividade e das identidades individuais também é visado pela literatura. A formação do indivíduo e sua travessia para a cidadania, para a condição de sujeito societário, encontram, na literatura o seu melhor, ousamos dizer, modus operandi. O texto literário, por sua própria natureza, mimetiza todo um processo social à medida em que ele mesmo encena a urdidura de muitas vozes, a atividade dialogal e dialética, ensejando, a um só tempo, a participação do leitor como uma da vozes e a necessidade de ele, leitor, estar atentíssimo à escuta de cada uma das outras vozes do coro de sujeitos. Dessa forma , a literatura é a própria figuração da sociedade e de suas tensões, seus conflitos, seus paradoxos que, aceitos porque continuam “só” textos, acabam desenvolvendo habilidades e formando atitudes importantes para o convívio e a crítica sociais. Poder-se-ia contra argumentar que essas implicações são inerentes a quaisquer textos e não privativas do literário. Se tudo o que dissemos antes, ainda não convenceu da importância do que é peculiar à literatura para a formação humana e social, vale um outro argumento, este da ordem do quantitativo. Se todo e qualquer texto é uma encenação de múltiplos sujeitos, podemos provar que enquanto o número de vozes, nos textos nãoliterários, existe em proporção numérica, na literatura, a polifonia se marca por um crescimento geométrico. 9 Se, ainda assim, não fomos convincentes, resta-nos apontar, em brevíssimos textos literários, como a literatura ensina, tal qual a vida também ensina, razão por que é tão complicado ensinar literatura e vida.