A EDUCAÇÃO INFANTIL E A INCLUSÃO ESCOLAR
Rita Vieira de Figueiredo
Doutora (PhD) em Psicopedagogia
Professora da Universidade Federal do Ceará
É da marginalidade, filha da diferença e sentida com uma conotação positiva, que nasce
verdadeiramente a diferença, o progresso e o desenvolvimento sustentados
Agostinho da Silva
Neste trabalho, tecerei algumas considerações acerca da importância da educação
infantil para a inclusão escolar. Pretendo fazer essa discussão entrelaçando os resultados de duas
pesquisas: uma em educação infantil1 e a outra no ensino fundamental. A primeira procurou fazer
um panorama geral sobre a qualidade do atendimento oferecido às crianças de 0 a 6 anos, em
creches comunitárias e/ou públicas e em escolas de educação infantil do Município de Fortaleza. A
segunda2, visando ao aprimoramento institucional para a escola inclusiva, foi feita com a amostra de
463 professores do ensino fundamental das redes municipais de ensino de São Paulo, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte e Vitória. Neste estudo, dentre outras questões, foi perguntada aos
professores a opinião deles a respeito de alunos com deficiência estudarem nas turmas de ensino
regular, se eles aceitariam uma criança com deficiência nas suas salas de aula, que providências
deveriam ser tomadas pelo sistema de ensino para auxiliar os professores que trabalham com alunos
com deficiências nas turmas de ensino regular.
A pesquisa em educação infantil indagou 71 instituições sobre a qualidade do
atendimento, verificando desde a infra-estrutura até as ações pedagógicas e forma de
funcionamento. Uma das perguntas do questionário era se crianças com necessidades educativas
especiais eram aceitas na instituição. Referida indagação será objeto de análise neste trabalho. A
maioria, 66,2%, respondeu que não aceitava. Dessas, 61,7% correspondem a instituições públicas e
38,3% a particulares. Do total de instituições que não aceitam crianças com necessidades educativas
especiais, 51% justificam o não-atendimento ao fato de não terem infra-estrutura, nem pessoal
especializado para trabalhar com essas crianças. 19% respondem que não há procura, também 19%
respondem que não atendem, mas se mostram flexíveis a essa possibilidade, enquanto 11% chegam
ao extremo de responder que não aceitam sequer crianças que tomam remédio controlado: “Não,
não aceitamos, são todas perfeitas. Não recebemos crianças que tomam remédio controlado”
(creche pública). Aquelas que se mostraram mais flexíveis diante da possibilidade de atender
crianças com deficiência justificam: “Ainda não atendemos estas crianças porque não temos
profissionais especializados na área, mas já sentimos a necessidade de fazer um estudo voltado para
esta questão da inclusão”(escola particular). Quando os pais vêm aqui, nós somos bastante honestos,
dizendo que não temos profissionais qualificados na área, mas caso eles queiram nós poderemos
tentar como experiência”(escola particular). É interessante observar que este percentual de 19%
considerado flexível diante da possibilidade de vir a atender crianças com necessidades educativas
especiais também faz referência ao fato de não ter pessoal especializado, nem infra-estrutura
adequada para este tipo de atendimento. Se na nossa categorização tivéssemos usado como critério
apenas o fato de a instituição não receber a criança e aludir à preparação profissional, bem como à
infra-estrutura, o percentual dessa categoria de resposta subiria de 51% para 70%, o que representa
um índice elevadíssimo. A única instituição, que também argumenta não ter professores
1
Coordenada pela professora Sílvia Helena Vieira Cruz, da Universidade Federal do Ceará
Pesquisa financiada pela Capes, coordenada pela professora Maria Tereza Eglér Mantoan, e realizada pelo Laboratório
de Estudos e Pesquisa em Diversidade/LEPED da Unicamp. Integrei o grupo de pesquisadores desse projeto. O
relatório das análises foi apresentado em 1999, tendo sido todas atividades concluídas em 2000.
2
especializados, faz referência ao aspecto legal, dizendo reconhecer que “a legislação”3 estabelece a
inclusão de crianças com necessidades educativas em sala de aula e que as escolas e os professores
terão que se preparar para esta realidade”(escola pública federal). O fato de a maioria das
instituições responder que não aceita a criança com necessidades educativas especiais porque não
tem estrutura, nem pessoal qualificado, não deve restringir a luta em favor da inclusão dessas
crianças, mas, pelo contrário, é preciso ampliar a discussão e exigir que essas instituições assumam
seu dever, cumprindo inclusive com a determinação legal de atendimento a essas crianças.
Dentre as instituições que aceitam crianças com necessidades educativas especiais, que
representam 33,8% da amostra, 29% estão na rede pública e 71% pertencem à rede particular.
Vejamos que houve aqui uma inversão relativamente ao percentual apresentado anteriormente.
Enquanto a grande maioria (61,7%) das instituições que não aceitam a criança com necessidades
educativas especiais se concentra na rede pública, a maior concentração das que aceitam está na
rede particular. Estes dados indicam que as chances de as crianças serem atendidas na rede regular,
que já é reduzida, se restringem bastante àquelas cujas famílias podem pagar pelo seu atendimento.
As respostas que justificam o ingresso dessas crianças nas instituições foram classificadas nas
seguintes categorias: amizade, inexistência de outros espaços, isenção de responsabilidade, aceite
condicional e o reconhecimento da importância da inclusão. As quatro primeiras categorias
correspondem a 54% das respostas, a última a 46%.
Na primeira categoria, 8,3% de respostas as instituições justificam a presença dessas
crianças em casos excepcionais: “somente em alguns casos, geralmente por profissionais que
mantêm algum vínculo com a escola. Também por amizade”(escola particular). Ou seja, o direito da
criança freqüentar a escola regular é ignorado e o seu possível ingresso na escola depende da
relação de amizade de sua família com os profissionais da escola, ou ainda, no caso de um dos pais
da criança pertencer ao seu quadro de profissionais.
Na segunda e na terceira categorias, que representam respectivamente 16,6% e 25% das
respostas, fica evidente a falta de compromisso com a educação da criança, conforme ilustram os
depoimentos a seguir: “aceitamos porque não existem escolas para crianças especiais”(creche
comunitária), “sim, mas não são trabalhadas em sua individualidade”(creche comunitária
conveniada com a prefeitura), “o atendimento a esta criança é feito porque a mãe pediu para que a
criança tivesse o mesmo tratamento das crianças normais, porém o colégio não oferece um
atendimento especial...” (escola particular). Ou seja, a criança foi aceita por falta de outra opção
para ela, mas não que a instituição tome para si a responsabilidade por esse atendimento. Somadas
as duas categorias, esse índice subirá para 41,6%, o que representa um elevado número de
instituições que não toma como sua a tarefa pela educação da criança.
Aquelas que aceitam condicionalmente (4,1%) justificam que a “escola não tem restrição
à inclusão, mas isso só ocorre quando a equipe pedagógica percebe que consegue dar apoio as
crianças especiais que procuram a escola”(particular).
Finalmente, encontro um número significativo de respostas (46%) que sinaliza para o
reconhecimento do valor da inclusão: “sim porque é necessário integrá-las com crianças ditas
normais”(escola particular), “sim porque com isso está inserindo a criança na sociedade”(escola
particular), “porque não teria motivo de serem excluídas, merecem tanto como as outras crianças
uma aprendizagem de qualidade”(escola particular), “as mesmas têm tanta capacidade quanto as
outras”(particular). Algumas escolas já criaram inclusive critérios para a matrícula: “uma em cada
sala”(particular). Se, por um lado, este aspecto é positivo, pois significa que a instituição já começa
a se organizar estabelecendo critérios para receber essa criança, por outro, pode ser limitador do
ingresso das crianças com deficiência no ensino regular, uma vez que a escola, já tendo uma criança
em cada sala, pode se ver no direito de recusar novas matrículas. Neste caso, o problema poderia se
resolver garantindo-se que cada escola reservasse um determinado número de vagas para as
crianças com necessidades educativas especiais. Esta medida ampliaria a oferta e as opções quanto
à escolha da instituição. No entanto, já pode ser considerado um grande avanço o fato de 46% das
3
A Resolução .n.361/2000 do Conselho de Educação do Ceará determina que as crianças com necessidades especiais
sejam atendidas na rede regular de seus respectivos sistemas de ensino.
instituições, dentre aquelas que atendem crianças com necessidades educativas especiais,
reconhecerem o direito dessas crianças serem educadas nos mesmos espaços que as demais
crianças. Isto já acena para a eliminação do preconceito quanto à especificidade do
desenvolvimento e da aprendizagem dessas crianças.
Considerando que o período da educação infantil é propício às interações efetivas das
crianças, pelas trocas que se estabelecem entre elas e com o meio; considerando ainda que o
trabalho na educação infantil é muito mais voltado para o desenvolvimento e as aquisições de
ordem lingüísticas, atitudinais, afetivas, sociais e psicomotoras, este período é a porta de entrada da
inclusão escolar; ou seja, é um período em que as crianças podem interagir com muito mais
liberdade, sem a preocupação permanente de ter um currículo para cumprir. O direito ao
desenvolvimento e as propostas pedagógicas que o assegurem estão, respectivamente,
contemplados:
a) Na LDB, Art. 29 - A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como
finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade em seus aspectos
físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da sociedade.
b) Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil: Art. 3o., I, a) - As
propostas pedagógicas das instituições de educação infantil devem respeitar os princípios
estéticos da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da diversidade de manifestações
artísticas e culturais. III – As instituições de educação infantil devem promover em suas
propostas pedagógicas práticas de educação e cuidados que possibilitem a integração entre
os aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivo/lingüísticos e sociais da criança.
É, portanto, um período ideal para a quebra dos preconceitos e o aprendizado do respeito
às diferenças.
A inclusão na opinião de professores do ensino fundamental
Discuto, a seguir, alguns itens dos resultados da pesquisa4 “Aprimoramento institucional
para a escola inclusiva”, realizada com professores do ensino fundamental, citada anteriormente. O
texto seguinte tenta traduzir a opinião desses professores sobre a inclusão de alunos com deficiência
no ensino regular e sobre a organização do espaço escolar para a inclusão. Foi perguntado aos
professores o que eles pensam de alunos com deficiência estudando nas turmas do ensino regular, se
eles aceitariam uma criança com deficiência nas suas salas de aula, se a presença do aluno com
deficiência na sala do ensino regular contribui ou não para o desempenho escolar dos demais
colegas, que providências devem ser tomadas pelo sistema de ensino para auxiliar os professores
que trabalham com alunos com deficiência nas turmas de ensino regular, e que estratégias devem
ser adotadas pelas redes de ensino, visando à melhoria da qualidade da educação escolar no Brasil.
Veremos a seguir que, tal como as instituições de educação infantil, a escola fundamental também
marginaliza e exclui de seus espaços educativos grande parte das crianças com deficiências. Estas
atitudes decorrem de preconceitos e principalmente de uma política nacional que estende os
benefícios da educação apenas a uma parcela da população.
Dos 463 professores que responderam ao questionário da nossa pesquisa, 42,1% são
favoráveis à presença de alunos com deficiência na sala de aula do ensino regular e 40,4% não são.
É interessante observar que, embora este último percentual seja considerado alto, o índice de
professores que aceitariam crianças com deficiência nas suas turmas é também elevado: 70%.
Apenas 19% dos professores responderam que não as aceitariam.
4
O questionário da referida pesquisa inclui 27 questões com subquestões. Neste trabalho, me deterei apenas em cinco
delas.
Os professores favoráveis à presença do aluno com deficiência no ensino regular
justificam suas opiniões com base nos aspectos: sociais (53,8%), condicionais5 (30,7%) e cognitivos
(15,5%). Nos aspectos sociais são ressaltadas com maior freqüência a integração social e a
eliminação de preconceitos. Os professores cujas respostas são desfavoráveis à presença de alunos
com deficiência nas turmas regulares justificam suas respostas com base nos aspectos cognitivos
(31,5%), funcionais (32,8%) e nos aspectos estruturais (34,6%). Apenas 1% das respostas se refere
a aspectos emocionais. Nos aspectos cognitivos, são mencionadas, dentre outros, necessidade de
atenção especial, ritmos diferenciados de aprendizagem e maiores dificuldades desses alunos. Os
aspectos funcionais são referentes à formação profissional, a metodologias e técnicas pedagógicas.
Os estruturais se reportam ao sistema, à escola e à estrutura física inadequada.
Conforme Santos6(1999), esses resultados parecem indicar que os professores tendem a
ser desfavoráveis à presença de alunos com deficiência em suas salas, por três razões principais. A
primeira diz respeito ao preconceito que consideram existir na própria instituição escolar e nos
outros alunos, e ainda a estrutura organizacional da escola que inviabiliza a presença de deficientes
na sala regular. A segunda razão é o fato de não se sentirem preparados ou capacitados para o
trabalho que, pensam, deveriam realizar (p.99). E, por último, as justificativas desfavoráveis são
atribuídas a uma atenção especial que os professores julgam ser necessário dispensar a esses alunos
e que eles se sentem impossibilitados de prestar, em decorrência dos problemas estruturais da escola
e da própria falta de formação para atender esta demanda. É importante ressaltar que esses fatores
são contextuais e, como tal, possíveis de serem alterados. É como bem observou Santos: “o quadro
geral referente à pergunta “o que você acha de alunos com deficiência estudando nas turmas do
ensino regular?” parece indicar que há uma tendência nos professores a serem favoráveis a tal
presença, principalmente por acreditarem na importância e nos benefícios da integração social”
(p.99-100).
Ainda explorando a opinião dos professores a respeito da presença do aluno com
deficiência no ensino regular, a pesquisa perguntava se a presença desse aluno contribui (ou não)
para o desempenho escolar dos demais colegas de classe. 46% dos professores responderam que
sim e 40% deles responderam que não. Os que disseram que a presença do aluno com deficiência
contribui para o desempenho escolar dos demais alunos, justificaram suas respostas com base nos
aspectos sociais, especialmente com respeito à eliminação de preconceitos, ao desenvolvimento de
atitudes solidárias, à integração social e também aos aspectos cognitivos, relacionados com o
estímulo para os colegas.
Os professores que acreditam na não-contribuição tomaram como justificativa os
aspectos cognitivos, com 64% das respostas, seguidos de aspectos estruturais, 21,3% . Os aspectos
funcionais e emocionais responderam por 8% e 6,7% das respostas, respectivamente.
Dos aspectos cognitivos, destacam-se as respostas relativas ao prejuízo aos outros
alunos (24,5%), seguindo-se de necessidade de atenção especial (13,3%) e prejuízo ao próprio
processo de aprendizagem do deficiente (10,2%). De acordo com Santos (1999) esses resultados
sugerem que
Os professores consultados tenderam a achar, entre outras coisas, que a presença de
alunos com deficiência nas salas de aula do ensino regular não contribui para o
desempenho escolar dos demais colegas porque tal presença poderia prejudicar o ritmo e
andamento do programa regular, causando assim prejuízos no andamento das demais
crianças (106).
A segunda justificativa da não-contribuição, relacionada aos aspectos estruturais, parece
indicar que os professores tendem a atribuir essa não-contribuição ao despreparo do sistema/escola
5
Neste item, os professores respondem que aceitariam o aluno desde que.../só se...
Mônica Pereira dos Santos respondeu pela análise das questões sobre a opinião dos professores quanto à presença do
aluno com deficiência nas turmas do ensino regular, na pesquisa Aprimoramento institucional para a escola
inclusiva.
6
e dos docentes, apontando para problemas estruturais ligados à organização do sistema educacional,
que não se preparou para receber crianças com deficiência, e à preparação da comunidade escolar
em termos atitudinais. Os depoimentos a seguir ilustram a opinião desse grupo de professores:
Estes trazem consigo uma cultura forte de discriminação, o que colocam barreiras que
inviabilizam a socialização entre eles e que faz com que as experiências vivenciadas
com e pelos deficientes não sejam devidamente valorizadas.
O professor não tem especialização e a escola não possui infra-estrutura de apoio, muito
menos em termos de encaminhamentos específicos que poderiam nortear o trabalho.
Argumentos dessa natureza indicam ainda forte resistência à presença do aluno com
deficiência no ensino regular. Estes professores não percebem contribuição na presença do aluno
com deficiência para o desempenho escolar dos outros alunos porque acreditam que essa
convivência prejudica a aprendizagem dos não-deficientes e que os sistemas educacionais e a
sociedade como um todo não se encontram preparados para essa convivência (Santos, 1999).
No entanto, de modo geral, os dados dessa pesquisa parecem indicar que há uma
tendência de os professores acreditarem que esta presença contribui para o desempenho escolar dos
outros alunos, principalmente porque provoca a eliminação de preconceitos, seguido da crença de
que os alunos se estimulam, inclusive no plano cognitivo (Santos, 1999). De acordo com Santos, do
conjunto das questões por ela analisadas, observa-se não somente uma predominância nos
professores a serem favoráveis à presença de alunos com deficiência no ensino regular, mas
também a aceitarem esses alunos em suas salas, bem como a acharem que esta presença contribui
para o desempenho acadêmico dos demais colegas.
Das malhas do preconceito ao tecido da inclusão
Segundo Agostino da Silva, grande teórico da pedagogia portuguesa, o mundo cresce e
avança graças à marginalidade e à vagabundagem de alguns, sendo que o caráter negativo que se a
atribui a estas palavras resulta fundamentalmente de uma incapacidade de entendimento da forma
como perspectivas diferentes podem alterar a nossa percepção em face do fenômeno observado. De
acordo com Henriques (1999), com base num posicionamento correto, qualquer situação, por mais
estranha e ilógica que nos pareça, pode vir a se transformar num importante incentivo ao
desenvolvimento. A escola, prossegue Henriques, "entendida no seu sentido mais tradicionalista,
assume-se quase sempre como produtora de igualdade e, dessa igualdade, só pode resultar numa
continuidade que a médio ou em longo prazo se vai transformar em estagnação" (p.16). Essa
certamente não é a escola para a qual queremos contribuir a fim de construir, tão pouco é a escola
que os professores desta pesquisa pretendem fazer sua. No entanto, ela é ainda palco da realidade
cotidiana da maioria do alunado brasileiro.
Entretanto, para transformar essa escola produtora de igualdades em espaço rico de
crescimento da diversidade, é preciso educar as crianças, permitindo que elas vivam o curso do
desenvolvimento inseridas em uma rede rica de interlocuções. A qualidade dessas interlocuções
depende essencialmente da pluralidade das trocas estabelecidas. Quanto mais a criança tiver
oportunidade de conviver com diferenças e semelhanças, mais se tornará apta como sujeito social.
A escola constitui espaço privilegiado para as manifestações de ordem afetiva, social e cognitiva
dos sujeitos em seu enfrentamento com o outro e com a cultura. Pelo enfrentamento do outro, se
aprendem as regras básicas de convivência da sociedade humana, indispensáveis à sobrevivência
social. É também no enfrentamento do outro, através de variadas formas de mediação, que se
adquirem os instrumentos culturais legados de uma geração a outra. Se a escola permite o
desenvolvimento de atitudes, bem como o acesso aos conhecimentos que torna as pessoas mais
aptas a interagirem no espaço da sociedade, ela é então elemento indispensável para todas as nossas
crianças. Neste caso, o rito da passagem da educação infantil ao ensino fundamental perde o caráter
de ruptura e se torna um movimento ondular, contínuo e normal.
Nas entrelinhas das falas dos professores do ensino fundamental que participaram desta
pesquisa, percebe-se claramente que eles não estão contentes com este espetáculo que é a educação
brasileira. Pretendem reconstruir palcos, enredos e cenários. Mas, para o redimensionamento desse
grande espetáculo, se faz preciso também dar nova interpretação a todos os que se constituem
atores. Professores e alunos como sujeitos principais dessa nova escola que todos queremos,
enfrentam o desafio de abandonar os velhos modelos e partem embora com dúvidas e incertezas, na
busca da construção com renovação. A fala dos professores entrevistados reflete o desejo de trilhar
a trajetória da busca de segurança no risco de viver o novo.
Na busca de construir essa outra escola, a escola da inclusão, os professores sentem
necessidade de maior investimento em sua formação. Tanto em relação às providências que devem
ser tomadas pelo sistema de ensino para auxiliar o professor no trabalho com o aluno com
deficiência, quanto no que concerne às estratégias a serem adotadas pelas redes de ensino, visando à
melhoria da educação no Brasil7, o item formação acumula o maior índice de resposta: 39,3% e
29,6%, respectivamente.
A solicitação dos professores neste item indica a necessidade de maior aprofundamento
teórico, bem como a necessidade de maior conhecimento de métodos e técnicas que otimizem a
ação pedagógica. Dentre as solicitações dos professores no sentido de formação, aparecem com
grande freqüência a demanda de: cursos de preparação, foros deliberativos, debates e encontros com
especialistas, seminários para trocas de experiências, cursos que permitam ao professor atuar com
segurança e capacitação, com ajuda de psicólogos médicos e profissionais da área de saúde, dentre
outros.
Percebe-se nas solicitações dos professores a urgência em construir outro modelo
educacional e pedagógico. A indicação de suas demandas, tal como as demandas das instituições de
educação infantil, reflete dois aspectos principais que, no fundo, constituem peça de um mesmo
cenário: a própria fragilidade da formação e os preconceitos em face da deficiência. A fragilidade
da formação é evidenciada quando apontam a necessidade de maior fundamentação teórica, maior
conhecimento de métodos e técnicas que possibilitem a otimização do trabalho
pedagógico/educativo. Os preconceitos em relação à deficiência se manifestam na demanda de
capacitação com ajuda de psicólogos médicos e profissionais da área de saúde que refletem a visão
da pessoa com deficiência mais próxima de um doente do que de uma pessoa, como tantas, que
apresenta possibilidades e limitações a afetarem seu desenvolvimento e sua aprendizagem escolar,
diferenciando-a mais talvez em grau do que em gênero de dificuldades. Muitos professores do
ensino fundamental, como aqueles da educação infantil, não percebem ainda o aluno ou a criança
com deficiência como um ator do próprio processo de aprendizagem que precisa enfrentar desafios
e solicitações. Não percebem também a possibilidade de interação das crianças como recurso vital
para a aprendizagem e de constituição dos alunos como sujeitos. Na visão desses profissionais, o
aluno/a criança com deficiência é dependente e transformará sua sala e a sua ação pedagógica quase
em um sacrifício. Essa crença muitas vezes é fruto de preconceitos ou de experiências profissionais
mal-sucedidas, vividas por eles ou por colegas seus no âmbito de escolas despreparadas para
receber e atender qualquer que seja a criança e não somente a criança com deficiência.
Segundo Amaral (1998), os preconceitos são filtros da percepção “colorindo o olhar,
modulando o ouvir, modelando o tocar (p.17). De acordo com a autora, dois são os componentes
básicos do preconceito: atitudes (predisposições psíquicas favoráveis ou desfavoráveis em relação a
algo ou a alguém) e desconhecimento concreto e vivencial desse algo ou alguém. O
desconhecimento desses profissionais em relação ao aluno com deficiência ocorre pela ausência de
informação e de vivência. A desinformação reflete a fragilidade na formação do professor,
especialmente sobre o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças, mascarando as
possibilidades de os professores perceberem os alunos com deficiência como sujeitos de
aprendizagem. A ausência de vivência com as crianças com deficiência decorre da exclusão dessas
crianças do contexto da escola fundamental e de educação infantil, o que não possibilitou aos
7
Questões da pesquisa Aprimoramento institucional para a escola inclusiva, analisadas pela professora Rita Vieira
de Figueiredo
educadores tê-las como alunos ao longo da história da educação. Deste modo, construiu-se a
imagem do aluno com deficiência como alguém “que é doente” e que precisa de todo um aparato
dos profissionais da área de saúde, bem como de professores munidos de conhecimentos específicos
neste campo de saber. Este estereótipo da pessoa com deficiência personifica o preconceito que se
tem dela. A necessidade de orientação específica para tratar com o deficiente pressupõe a
concepção de que essa criança aprende por processos diferenciados8 da criança dita normal, logo,
requer métodos e técnicas especializadas.
A fragilidade na formação do professor não se refere apenas ao trabalho com a criança
com deficiência mas ao trabalho pedagógico de modo geral. Na pesquisa de Scoz (1998), realizada
com professores da rede pública de São Paulo, a formação foi também uma das maiores solicitações
dos professores. A ausência de formação e informações de conteúdos da Psicologia e da área
médica apontada pelos professores desta pesquisa como um impedimento para o desenvolvimento
do trabalho pedagógico reflete a idéia de deficiência como problema patológico. Inclusive, foi
ressaltado9 ser importante que o professor tenha condições emocionais para trabalhar com crianças
com deficiência. Em relação à demanda de aperfeiçoamento que gostariam de ter, muitos se
expressam como este professor: "queremos não aquele embasamento teórico que nem sempre nos
ajuda, mas sim algo prático muita ênfase na prática"(prof. RJ) . Percebe-se, pela fala do professor,
que a dificuldade enfrentada no desenvolvimento do trabalho com a criança desloca o foco da
atenção das questões pedagógicas para questões que supostamente seriam inerentes a criança
(patologia). O discurso do professor reflete a necessidade de seguir caminhos nos quais sente maior
segurança no lugar de construir renovadas estratégias de trabalho.
A ausência de conhecimentos abrangentes sobre o desenvolvimento e a aprendizagem,
bem como de outros campos de conhecimentos, deu margem ao preconceito em relação ao aluno
com deficiência. Estes são elementos de um mesmo cenário porque um influi diretamente no outro.
A formação do professor, se enriquecida de conteúdos diversificados, de aprofundamentos teóricos,
de reflexões sobre novas propostas pedagógicas, confrontando-as com a prática, ampliaria suas
possibilidades de enriquecimento o que garantiria maior segurança diante do risco de experimentar
o novo. Entretanto, esse novo não se construirá se não houver a vivência real com o aluno. A
formação é importante sem dúvida, mas é a presença do aluno na escola que vai colorir,
redimensionar e dar vida a esse espetáculo chamado educação.
A ênfase apontada pelo professor sobre a sua formação demonstra a necessidade de se
constituir também como sujeito, no processo de constituir o outro. A formação pedagógica
implicaria a sua formação pessoal e profissional, bem como a sua condição de sujeito.
Nas respostas dos professores percebi que, embora já apareça o reconhecimento de que
a criança com deficiência tem direito à educação na rede regular de ensino, ainda existe um longo
caminho a ser trilhado para a efetivação desse direito. O levantamento de dados feito junto às
instituições de educação infantil permite constatar que a maioria dos espaços coletivos de educação
infantil ainda não se dispõe a receber crianças com necessidades educativas especiais, e aqueles que
recebem não se comprometem e não se sentem responsáveis pela educação dessas crianças.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, L. A. Sobre crocodilos e avestruz: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua
superação. In: AQUINO, J.G. Diferenças e preconceitos na escola. São Paulo, Summus
Editorial, 1998.
8
Este aspecto é bastante polêmico, sobretudo no que se refere à aprendizagem da pessoa com deficiência mental. No
entanto, há forte tendência na literatura especializada a sugerir que esses processos se diferenciam mais em ritmo do que
em condições estruturais para a aprendizagem.
9
Professores que responderam à pesquisa da UNICAMP.
MANTOAN, M.T.E. Aprimoramento institucional para a escola inclusiva. Relatório de pesquisa
apresentado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade/ LEPED,
Unicamp, Campinas, 1999.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares para e Educação Infantil.
Resolução da C.E.B.n.1/99. Diário Oficial da União, Brasília, 13/04/99, sessão 1,p.18.
BRASIL.Ministério da Educação e Cultura .Lei de Diretrizes e Bases da Educação.Brasília,1997.
CEARÁ. Conselho de Educação do Ceará. Resolução 361/2000: Educação infantil no âmbito do
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HENRIQUES, J. A. Observatório psicopedagógico das minas de panasqueira: uma intervenção
psicopedagógica. Lisboa, Universidade Moderna de Portugal, 1999.
FIGUEIREDEDO, R. F. Aprimoramento institucional para a escola inclusiva. Relatório de
pesquisa apresentado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade/
LEPED, Unicamp, Campinas, 1999.
SANTOS, M .P. Aprimoramento institucional para a escola inclusiva. Relatório de pesquisa
apresentado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade/ LEPED,
Unicamp, Campinas, 1999.
SCOZ, B. Psicopedagogia e realidade escolar. Petrópolis, Vozes, 1998.
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