MINISTÉRIO DA SAÚDE
F o r m a ç ã o
Pedagógica
em
Educação
Profissional na
Área de Saúde:
Enfermagem
2a edição revista e ampliada
4
Brasília – DF
2003
Educação/
Trabalho/Profissão
© 2001. Ministério da Saúde.
Todos os direitos desta edição reservados à Fundação Oswaldo Cruz.
Série F. Comunicação e Educação em Saúde
Tiragem: 2.ª edição revista e ampliada – 2003 – 4.000 exemplares
Elaboração, distribuição e informações:
MINISTÉRIO DA SAÚDE
Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde
Departamento de Gestão da Educação na Saúde
Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem
Esplanada dos Ministérios, bloco G, edifício sede, 7º andar, sala 733
CEP: 70058-900, Brasília – DF
Tel.: (61) 315 2993
Fundação Oswaldo Cruz
Presidente: Paulo Marchiori Buss
Diretor da Escola Nacional de Saúde Pública: Jorge Antonio Zepeda Bermudez
Curso de Formação Pedagógica em educação Profissional na Área da Saúde: Enfermagem
Coordenação – PROFAE: Valéria Morgana Penzin Goulart
Coordenação – FIOCRUZ: Antonio Ivo de Carvalho
Colaboradores: Milta Neide Freire Barron Torrez, Lilia Romero de Barros, Carmen Perrota, Maria Inês do
Rego Monteiro Bomfim, Elaci Barreto, Helena David, Gisele Luisa Apolinário, Zenilda Folly
Capa e projeto gráfico: Carlota Rios e Letícia Magalhães
Editoração eletrônica: Paulo Sérgio Carvalhal Santos
Ilustrações: Flavio Almeida
Revisores: Alda Lessa Bastos, Ângela Dias, Maria Leonor de Macedo Soares Leal, Mônica Caminiti
Ron-Réin e Nina Ulup
Impresso no Brasil/ Printed in Brazil
Ficha Catalográfica
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde.Departamento de Gestão da
Educação na Saúde. Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem. Fundação Oswaldo Cruz.
Formação Pedagógica em Educação Profissional na Área de Saúde: enfermagem: núcleo contextual: educação, trabalho,
profissão 4 / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde.Departamento de Gestão da
Educação na Saúde, Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem, Fundação Oswaldo Cruz;
Francisco José da Silveira Lobo Neto (Coord.), Adonia Antunes Prado, Dalcy Angelo Fontanive, Percival Tavares da Silva. –
2. ed. rev. e ampliada. – Brasília: Ministério da Saúde, 2002.
72 p.: il. – (Série F. Comunicação e Educação em Saúde)
ISBN 85-334-0690-8
1. Educação Profissionalizante. 2. Auxiliares de Enfermagem. I. Brasil. Ministério da Saúde. II. Brasil. Secretaria de Gestão
do Trabalho e da Educação na Saúde.Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Projeto de Profissionalização dos
Trabalhadores da Área de Enfermagem. III. Fundação Oswaldo Cruz. IV. Lobo Neto, Francisco José da Silveira. V. Prado,
Adonia Antunes. VI. Fontanive, Dalcy Angelo. VII. Silva, Percival Tavares da. VIII. Título. IX. Série.
NLM WY 18.8
Catalogação na fonte – Editora MS
MINISTÉRIO DA SAÚDE
Secretaria de Gestão do TTrabalho
rabalho e da Educação na Saúde
Departamento de Gestão da Educação na Saúde
Projeto de PProfissionalização
rofissionalização dos TTrabalhadores
rabalhadores da Área de Enfermagem
F o r m a ç ã o
Pedagógica
em
Educação
Profissional na
Área de Saúde:
Enfermagem
2a edição revista e ampliada
Série F. Comunicação e Educação em Saúde
4
Brasília – DF
2003
Educação/
Trabalho/Profissão
Autores
Núcleo Contextual
Francisco José da Silveira Lobo Neto – Coordenador do Núcleo
Módulos 1, 2, 3 e 4
Adonia Antunes Prado
Módulos 1, 2, 3 e 4
Dalcy Angelo Fontanive
Módulos 1, 2, 3 e 4
Percival Tavares da Silva
Módulos 1, 2, 3 e 4
Núcleo Estrutural
Maria Esther Provenzano – Coordenadora do Núcleo
Carlos Alberto Gouvêa Coelho
Módulo 5
Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim
Módulo 6
Alice Ribeiro Casimiro Lopes
Módulo 7
Maria Esther Provenzano
Nelly de Mendonça Moulin
Módulo 8
Núcleo Integrador
Milta Neide Freire Barron Torrez – Coordenadora do Núcleo
Módulos 9, 10 e 11
Maria Regina Araujo Reicherte Pimentel
Módulos 9, 10 e 11
Regina Aurora Trino Romano
Módulos 9, 10 e11
Valéria Morgana Penzin Goulart
Módulos 9, 10 e 11
Colaboradores
Cláudia Mara de Melo Tavares
Elaci Barreto
Helena Maria Scherlowski Leal David
Izabel Cruz
Guia do Aluno
Carmen Perrotta – Coordenadora
Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim
Milta Neide Freire Barron Torrez
Livro do Tutor
Maria Inês do Rego Monteiro Bomfim – Coordenadora
Carmen Perrotta
Milta Neide Freire Barron Torrez
Coordenação geral da 2 a edição
Carmen Perrotta
Módulo
Módulo
Módulo
Módulo
Educação
Educação/
Sociedade/
Cultura
Educação/
Conhecimento/
Ação
Educação/
Trabalho/
Profissão
Módulo
Módulo
Módulo
Módulo
Proposta
pedagógica:
o campo da
ação
Proposta
pedagógica:
as bases da
ação
Proposta
pedagógica:
o plano da
ação
Proposta
pedagógica:
avaliando
a ação
2
1
5
3
6
4
7
8
Módulo
Módulo
Módulo
Imergindo na
prática
pedagógica em
Enfermagem
Planejando uma
prática
pedagógica
significativa
em Enfermagem
Vivenciando uma
ação docente
autônoma e
significativa na
educação
profissional
em Enfermagem
9
10
11
Sumário
Apresentação do Módulo 4 – Educação/Trabalho/Profissão
9
Tema 1 – A organização do trabalho e das profissões
11
Tema 2 – O trabalho como princípio educativo
33
Tema 3 – O educador de profissionais
43
Texto complementar
60
Síntese
63
Atividade de Avaliação do Módulo
65
Bibliografia de referência
66
A organização
A organização
do do
trabalho
trabalho
e das
e das
profissões
profissões
Apresentação do Módulo 4 –
Educação/Trabalho/Profissão
Com este módulo se encerra o Núcleo Contextual, cujo objetivo é
oferecer informações, oportunidades e estímulos para que você possa construir
referenciais teóricos e histórico-sociais de análise e reflexão crítica sobre a prática
docente e sobre novas contribuições teórico-práticas no campo da Educação, para
atualizar-se com a perspectiva de promover mudanças e transformações que resultem
em melhoria de sua ação no processo de formação de profissionais de nível médio.
Desde o primeiro momento, o seu perfil de profissional da saúde na
área de Enfermagem vem sendo considerado: nas reflexões, nos
questionamentos, na apresentação dos diversos enfoques de análise da Educação
e da tarefa docente. Afinal, na proposta de formação que estamos
desenvolvendo, a intenção de que você se constitua na relação pedagógica
como enfermeiro-educador, como enfermeiro-docente, reúne, em um mesmo
profissional, competências da área da Saúde e da área da Educação.
Revendo nosso caminho até aqui, podemos identificar os seguintes passos:
!
!
!
no primeiro módulo, procuramos entender o processo da Educação como
uma prática social, que se define a partir de um processo histórico em um
conjunto de relações diferenciadas, sempre interpessoais;
no segundo módulo, começamos uma reflexão com o objetivo de tornar
mais visível a relação da educação com a sociedade – em uma realidade
caracterizada por desafios e por projetos políticos de enfrentamento que,
em sua realização coletiva, articulam e integram projetos e realizações
pessoais –, destacando-se, no nosso caso, as políticas públicas de Educação
e Saúde;
no terceiro, analisando a relação da Educação com o conhecimento e a
ação, apresentamos fundamentos capazes de elucidar a dimensão humana
– e, portanto, necessariamente social – dos atos de aprender e de ensinar.
Neste módulo, especificamente, pretendemos ajudar você a reconhecer
no trabalho um princípio educativo, uma vez que ele concretiza – como conceito
e ação – a relação humana com o mundo da natureza e com o mundo social.
O módulo tem como objetivo, portanto, apresentar o trabalho como
princípio educativo, entendendo-o como elemento essencial da manifestação
humana de expressão pessoal e coletiva, assim como de transformação do
mundo em ambiente de existência da humanidade.
77
4
Educação/Trabalho/Profissão
Educação/Trabalho/
Profissão
São as seguintes as competências a serem desenvolvidas com o seu
estudo:
! analisar a concepção de trabalho como princípio educativo, identificando
– na discussão contemporânea sobre a centralidade do trabalho como
categoria de análise e como fundamento da vida social – o conflito de
interesses presentes na sociedade;
! reconhecer, na constituição das profissões, o processo histórico-social da
organização do trabalho na sociedade, situando, em especial, esse processo
na realidade brasileira;
! discutir as bases conceituais da relação trabalho–educação–profissão,
apontando o perfil do professor de educação profissional no âmbito
específico da Enfermagem, caracterizando a ação docente que supera o
entendimento do senso comum e da ideologia em relação à realidade,
privilegiando como enfoque sistematizador a concepção de práxis;
! formular e discutir questões referidas às relações da Educação com o
mundo do trabalho e com as profissões, em geral, e à formação dos
profissionais de Enfermagem, em particular.
Para que você possa construir essas competências, assim se desenvolvem
os temas que articulam o conteúdo do módulo:
Tema 1 – A organização do trabalho e das profissões
A partir de uma abordagem da organização do trabalho no processo
histórico-social, com referências específicas ao caso brasileiro, analisamos a
caracterização das profissões, cuja definição de competências vem servindo
de parâmetro para a educação profissional.
Tema 2 – O trabalho como princípio educativo
Retomando e aprofundando a reflexão sobre a centralidade do trabalho
na análise da vida social, propomos o estudo do trabalho como princípio
educativo, promovendo a crítica das atuais concepções de educação técnicoprofissional.
Tema 3 – O educador de profissionais
Com base no que foi tratado nos temas anteriores, encaminhamos as
propostas de fundamentar uma coerente e conseqüente prática docente na
formação de profissionais a partir da concepção da práxis e de questionar o
senso comum e a ideologia no desafio do exercício profissional docente com
responsabilidade formadora.
8
A organização do trabalho e das profissões
TEMA 1
A organização do trabalho e das profissões
Para refletirmos sobre o trabalho, como atividade humana específica,
devemos ter presentes alguns aspectos fundamentais. É preciso:
! manter sempre a referência da prática, melhor dizendo, das múltiplas e
diferenciadas práticas que constituem o trabalho no cotidiano, tal como se
apresenta no convívio da sociedade;
! acompanhar com atenção crítica os “discursos” que sobre ele se
desenvolvem, em níveis diferenciados – e, portanto, também múltiplos –
como descrições das práticas ou elaborações conceituais, explicitações
normativas ou análise de tendências, formulações de propostas e
encaminhamentos de solução a problemas...
Sobretudo, é preciso ter presente que o trabalho humano se realiza sempre
em uma situação concreta e, no caso da sociedade brasileira, é um processo
histórico em que:
! as maneiras de trabalhar nativas foram substituídas e depois subordinadas
por outros modos, impostos – com violência – por um projeto
colonizador;
! a ocorrência do trabalho escravo introduziu e manteve, por longo tempo,
as distorções de valor, de distribuição e organização da produção da
existência;
! os ciclos de produção – sempre e muito dependentes das injunções externas
– manifestam-se com atraso em relação às sociedades que ocupam o
cenário central da economia e, principalmente, marcam de forma peculiar
as diferentes expressões do trabalho.
9
4
Educação/Trabalho/Profissão
Essas observações iniciais, se por um lado apontam para a necessária
contextualização do trabalho na diversificada e múltipla realidade
socioeconômica, política e cultural brasileira, por outro lado também
indicam que não se pode analisar, em toda a sua particularidade, a questão
do trabalho fora de uma perspectiva que considere a realidade mais ampla
do trabalho no mundo, isto é, as diferentes expressões humanas, através
do trabalho, nas diversas sociedades.
O texto a seguir reflete uma preocupação que ultrapassa a economia
e a análise de sociedade. O ser humano, em sua relação com o mundo,
fundamenta uma reflexão que necessariamente inclui o social e o econômico,
mas vai além.
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um
processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla
seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria
natural como uma força natural.
Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade,
braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de se apropriar da matéria natural
numa forma útil para a própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento,
sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo
tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas
e sujeita o jogo de suas forças a seu domínio. (...)
Releia atentamente o texto,
destacando-lhe as idéias
principais. A seguir, relacione
essas idéias à realização do seu
trabalho na área da Saúde.
No Módulo 1
1, você identificou
a intencionalidade da atividade
educativa. Reflita sobre o que este
texto acrescenta àquela
abordagem, tendo em vista seu
trabalho como docente de futuros
profissionais da Enfermagem.
Se julgar conveniente, comece a
sistematizar, no Diário de Estudo,
as reflexões suscitadas por este
módulo.
Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao
homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a
abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos
favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto
da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de
construí-lo em cera.
No fim do processo de trabalho, obtém-se um resultado que já no início
deste existiu na imaginação do trabalhador.
(...) Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural;
realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural, seu objetivo, que ele sabe
que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual
tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado.
Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada
a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho.
(...) Os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada
a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios (Marx, 1984,
p.149).
Na expressão de Konder, é pelo trabalho que:
o sujeito humano se contrapõe e se afirma como sujeito, num movimento realizado
para dominar a realidade objetiva: modifica o mundo e se modifica a si
mesmo. Produz objetos e, paralelamente, altera sua própria maneira de estar
na realidade objetiva e de percebê-la. E – o que é fundamental – faz a sua
própria história. ‘Toda a chamada história mundial – assegura Marx –
não é senão a produção do homem pelo trabalho humano (apud Frigotto,
1995, p.113).
10
A organização do trabalho e das profissões
Marx tem uma preocupação com a dimensão ontológica do trabalho
que é sempre histórica – como nos ensina Frigotto (ibidem).
O processo histórico-social de organização do
trabalho
Ao ler o texto de Marx, você encontrou uma concepção de trabalho,
fruto de um processo reflexivo e crítico sobre o significado do trabalho na
história da humanidade.
Podemos dizer que, desde que o mundo é mundo, o homem e a mulher
executam atividades para a manutenção da vida (caçar, pescar…). O trabalho
surge com o nascimento do homem e da mulher. Por isso, falar do trabalho é
algo que parece ser tão natural, tão unido à própria existência da humanidade,
que às vezes não percebemos o quanto ele pode variar historicamente de forma,
e de conteúdo.
Nada mais comum, para nossos ouvidos e olhos, do que a palavra
trabalho. No entanto, quantos significados diferentes para essa expressão usual
de nosso cotidiano!
!
!
Seu João, da enfermaria 4, dá muito trabalho!
Olhe bem! Que trabalho perfeito o desta ficha de acompanhamento da
evolução do caso de Dona Maria!
!
Dr. Silva fez um bom trabalho, nem aparece a cicatriz!
!
O tutor gostou muito do meu trabalho sobre o Módulo 2!
!
O trabalho na área de Saúde tem severas exigências éticas.
!
O trabalho é fundamental para entender a estrutura da sociedade!
!
Eu só trabalho porque preciso!
Quantas outras expressões você poderá encontrar com o uso da palavra
trabalho em sentidos diversos...
Certamente, como profissional enfermeiro e como cidadão que se
preocupa em acompanhar a grande discussão relativa ao trabalho no mundo
de hoje, você já está atento a essas questões. Mas, apesar disso, vamos procurar
sistematizá-las. Elas são muito importantes para você e também serão para
aqueles que você terá responsabilidade de formar.
11
4
Educação/Trabalho/Profissão
A primeira dessas questões é ter presente que a compreensão do trabalho
sempre foi – e ainda é – um desafio, embora
!
!
!
Retorne às reflexões sobre a
ação
3 Elas
ação, no Módulo 3.
fundamentam esta análise da
questão do trabalho.
Advertindo os alunos a respeito
desse tipo de raciocínio, é
próprio, às vezes, do professor
tentar uma simplificação, para
ir avançando, junto com o
grupo, no enfrentamento da
complexidade das questões
estudadas.
o trabalho seja uma condição fundamental da vida humana;
o ser humano sempre tenha experimentado e continue experimentando
concretamente o trabalho;
haja um grande esforço para se chegar a uma sistematização de conceitos
articulados sobre o trabalho.
Todos concordam quanto à palavra trabalho significar uma forma de
ação humana. Para além disso, desde tempos os mais remotos, e até hoje, seus
significados se diferenciam, gerando discussões que, não raras vezes, se
concretizaram em lutas políticas.
Mesmo correndo o risco de simplificar, podemos dizer que o trabalho é
concebido, ao mesmo tempo, como necessidade do ser humano e como
violência feita ao ser humano. Essa contradição, tanto de fatos como de
conceitos, é a base de todas as complexas questões que envolvem o trabalho.
Essa contradição se reflete na variedade de termos que designam o
trabalho
trabalho. A palavra trabalho provém do vocábulo latino tripalium que,
conforme referido pela socióloga Suzana Albornoz (1986), era uma espécie
de instrumento feito de três paus aguçados, no qual os agricultores bateriam
o trigo, as espigas de milho, o linho, para rasgá-los e esfiapá-los.
Posteriormente, esse instrumento de trabalho teria servido como instrumento
de tortura de escravos (o verbo tripaliare passou a significar torturar
torturar).
Por isso a associação entre trabalho e tortura. Os gregos usavam ponéin
(de pónos = esforço, fadiga, peso, necessidade
necessidade) e ergázestai (de
érgon = obra, eficiência
eficiência). Os latinos usaram labor (= trabalho,
fadiga, cansaço
= fazer
cansaço) e facere (= fazer
fazer,, executar
executar) e fabricare (=
com artifício
artifício).
A cultura do povo grego é considerada historicamente uma das culturas mais
politizadas das que se tem conhecimento. Nela se originou a palavra democracia,
para designar o tipo de governo em que o povo (demos) exercia o poder.
Entretanto, como observa Pessanha (1991, p.8):
A democracia ateniense era, na verdade, uma forma atenuada de oligarquia
(governo de poucos), já que somente aquela pequena parcela da população
– os cidadãos – usufruía dos privilégios da igualdade perante a lei e do direito
de falar nos debates da Assembléia (isegoria). As decisões políticas estavam,
porém, na dependência de interferências ainda mais restritas, pois na própria
Assembléia nem todos tinham os mesmos recursos de atuação. Lido o relatório
dos projetos levados à ordem do dia, o arauto pronunciava a fórmula tradicional:
‘quem pede a palavra?’. Segundo o princípio da isegoria, qualquer cidadão
tinha o direito de responder a esse apelo. Mas, de fato, apenas poucos o
faziam. Os que possuíam dons de oratória associados ao conhecimento dos
negócios públicos, os hábeis nos raciocinar e no usar da voz e o gesto, estes é que
obtinham ascendência sobre o auditório, impunham seus pontos de vista através
da persuasão retórica e lideravam as decisões.
12
A organização do trabalho e das profissões
Em decorrência dessa forma de organização da sociedade, quem
participava dos destinos da cidade – os cidadãos – eram apenas os homens,
excluindo-se as crianças-jovens, as mulheres, os estrangeiros, os escravos e,
também, os trabalhadores manuais (artesãos, ferreiros…). Estabelece-se a
distinção entre trabalho intelectual-racional e trabalho manual-operacional. Para o filósofo
grego Platão (428 a.C.), a finalidade dos melhores homens é a contemplação
das idéias.
Entre os romanos, em oposição ao otium (pronuncia-se “ócium” ) surge
o conceito de negotium, estabelecendo a oposição entre negócio e ócio:
negotium é ausência de lazer.
No limiar da Idade Média, São Bento de Núrsia (480-547) organiza
a vida monástica do Ocidente cristão, fundamentando sua regra na
indissociabilidade da oração e do trabalho (Ora et labora) como meio de
dignificação e aperfeiçoamento da pessoa humana. No entanto, isso não
garantiu, ao longo do tempo, uma superação da dicotomia do trabalho
intelectual e manual. Nos mosteiros medievais uns – os letrados –
desenvolviam o primeiro, ficando o segundo a cargo dos servos e dos
conversos – não letrados.
Ainda na Idade Média, apesar de São Tomás de Aquino (1227-1243)
desenvolver uma teologia que procura reabilitar o trabalho manual, dizendo
que todos os trabalhos se eqüivalem, a própria construção teórica de seu pensamento,
calcada na visão grega, tende a valorizar mais a atividade contemplativa (Aranha e Martins,
1991, p.56).
Na leitura do texto a seguir, continue a conhecer o pensamento dessa
época.
Trabalho e educação na Idade Média
Antes do século XII, o que hoje entendemos por trabalho, ainda tinha como
referência, quase exclusiva, a fadiga física ou moral, vista como muito útil,
para purificar o ser humano do pecado original com o bíblico ”suor do
próprio rosto”.
Contudo, não é para salvar a própria alma, mas para ganhar e lucrar, que
os comerciantes e artesãos trabalham.
A atividade intelectual continuava considerada a atividade humana máxima,
e que se servia da palavra como instrumento de comunicação e de
conhecimento. Mas era um sacrilégio servir-se dela – que se acreditava
propriedade divina – para especulação mental ou material. Os primeiros
mestres não-clérigos das universidades esbarram exatamente na acusação
de usurpadores da palavra divina.
13
4
Educação/Trabalho/Profissão
A superação dessa mentalidade pode ser atribuída ao fato de que mercadores
e artesãos, gradativamente, vinham adquirindo mais importância do que
os teólogos.
No século XIII, um frade dinamarquês propõe uma distinção entre as
atividades das Artes Mecânicas e das Artes Liberais. As primeiras
compreendiam todas as atividades artesanais, até mesmo a dos médicos.
Já as Artes Liberais se referiam a atividades relacionadas com gramática,
retórica e lógica (matérias do Trivium) e com matemática, geometria,
astronomia e música (matérias do Quadrivium).
O problema é que o próprio autor, João da Dinamarca, fazia derivar a
palavra mecânica de mecor, mecaris (do latim clássico = rebaixar, adulterar,
depreciar).
Talvez por isso, embora vencendo essa desvantagem, as faculdades de
Medicina estiveram, até o século XVII, mais próximas de estudos filosóficos
e literários do que daqueles naturalístico-científicos. Provavelmente foi a
maneira que os médicos encontraram para ter acesso à academia e ser
artistas liberais, e não apenas simples mecânicos.
Se você procurar as Decisões
Régias de criação dos Cursos de
Cirurgia no Brasil – que estão
no Módulo 1 –, você vai
constatar isso.
Tal sorte não tiveram os cirurgiões (agiam demais com as mãos, em
alguns casos usavam de força física) também chamados de
barbeiros-cirurgiões, conserta-ossos, sangradores, massagistas,
flogistas, simplicistas. Só no século XIX a Cirurgia e Medicina se
equipararam em uma única faculdade.
Texto adaptado de Nostalgia do mestre artesão,
de Antonio Santoni Rugiu (1998).
Como afirma Le Goff (1993, p.57), em seu livro Os intelectuais na
Idade Média:
No Módulo 3
3, trabalhamos
o conceito de
olhares
epistemológicos para a
compreensão da capacidade
de conhecimento do homem e
seguimos os caminhos de
concepção e interpretação da
ação humana. Sugerimos que
você volte a esses assuntos,
porque eles poderão ajudar
bastante no estabelecimento de
relações com as concepções de
trabalho.
14
É como um artesão, como um profissional comparável aos demais citadinos,
que se sente o intelectual urbano do século XII. Sua função é o estudo e o
ensino das artes liberais. Mas o que é uma arte? Não é uma ciência, é uma
técnica. Arte é a especialidade do professor, assim como o têm as suas o
carpinteiro ou o ferreiro... São Tomás de Aquino, no século seguinte, extrairia
todas as conseqüências dessa proposição. Arte é toda atividade racional e justa
do espírito, aplicada tanto à produção de instrumentos materiais como
intelectuais: é uma técnica inteligente do fazer “Ars est recta ratio factibilium”.
Assim, o intelectual é um artesão ... No dia em que Pedro Abelardo, reduzido
à miséria, constata que é incapaz de cultivar a terra e tem vergonha de
mendigar, retorna ao magistério: “Voltei ao ofício que eu conhecia; incapaz de
trabalhar com minhas mãos, fui reduzido a me servir de minha língua.
Vemos, então, várias maneiras de conceituar trabalho. Há uma concepção
que o enfatiza como uma arte da ação produtiva, cuja finalidade se estabelece
com base na obra produzida. Outra dá ênfase à atividade mesma do trabalhador.
Assim, a primeira se diferencia da ação em sentido estrito, que é uma “atividade
dotada de finalidade”, em cuja execução se manifesta a perfeição do agente, o
que se expressa mais na segunda concepção.
O que caracteriza essas concepções é a suposição de que as possibilidades
de ação do ser humano já estão mais ou menos predeterminadas e, por isso, a
A organização do trabalho e das profissões
suposição de que o confronto homem-natureza já é um processo estabelecido
e concluído. Mesmo no caso de uma conclusão futura, esta ocorrerá nas bases
da cultura agrária ou urbana já estabelecida.
Na sociedade pós-feudal, entretanto, com o surgimento e ascensão da
burguesia – em um tempo de descoberta das ações naturais, das invenções
técnicas e de seu uso comercial – se inicia um processo de modificação dessa
idéia de trabalho. Em primeiro lugar, porque começa a ser afastada a idéia de
estabilidade entre o presente e o futuro, impondo-se a visão de que a relação
do homem com a natureza não está pronta, concluída de uma vez por todas,
mas está aberta para o futuro. Em segundo lugar, o trabalho – antes uma
atividade de escravos e de servos – passa a ser gradativamente valorizado
como uma atividade geral: trabalho das mãos e da mente honrados em igual
medida.
A Idade Moderna (séculos XVI a XVIII) caracteriza-se:
! pela valorização da técnica, do comércio, das artes mecânicas, dos
empreendimentos marítimos (colonialismo);
!
!
!
!
pela preocupação em dominar o tempo e o espaço (aperfeiçoamento do
relógio e da bússola, respectivamente);
Procure sistematizar no Diário de
Estudo (em um quadro-resumo,
por exemplo) a concepção de
trabalho na Antigüidade grecoromana e na Idade Média da
“cristandade ocidental”, indicando aspectos que você
considera importantes na relação
com a organização social da
época.
À luz dessa sistematização, reflita
sobre como as concepções de
trabalho se expressam nas
práticas da Saúde e da
Educação em nossa sociedade.
Dê continuidade a suas
anotações.
pela ampliação da capacidade de comunicar informações, no
desenvolvimento da imprensa (Gutemberg), graças ao aperfeiçoamento
da tinta, do papel e dos tipos móveis;
pelo desenvolvimento das ciências da natureza, especialmente da Física e
Astronomia (Galileu);
pela montagem das máquinas de cálculo (Pascal).
Ao mesmo tempo, observa-se, então, o enfraquecimento do modo
familiar e artesanal de produção. Com o surgimento das fábricas de tecido,
impulsionadas pelas máquinas de tear – cujo uso não exige força física tão
intensa –, empregam-se cada vez mais mulheres e crianças, principalmente na
produção têxtil.
Como afirmou Marx (1984, p.7):
Aliviar a labuta diária de algum ser humano não é, também, de modo algum
a finalidade da maquinaria utilizada como capital. Igual a qualquer outro
desenvolvimento da força produtiva do trabalho, ela se destina a baratear
mercadorias e a encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador
precisa para si mesmo, a fim de encompridar a outra parte da jornada de
trabalho que ele dá de graça para o capitalista. Ela é meio de produção de
mais-valia.
15
4
Educação/Trabalho/Profissão
É nesse quadro que John Locke (1632-1704) concebe que o trabalho,
como intervenção do homem sobre a natureza, cria direitos e lança as
bases do liberalismo burguês dos séculos XVIII e XIX, ao estabelecer as
seguintes teses:
! o trabalho dá ao homem uma propriedade “natural” sobre as coisas,
sobre a terra e sobre o solo;
!
Não é por acaso que a economia
política se desenvolve a partir de
pensadores ingleses. Se você
consultar um livro de História,
encontrará um fato que explica
isso: é na Inglaterra que começa
a chamada Revolução Industrial.
16
o trabalho confere valor às coisas.
Prosseguindo a reflexão de Locke, Adam Smith (1723-1790), o fundador
da economia política, generaliza e estende à cultura a concepção do trabalho
como gerador de direitos, evidenciando que o trabalho é criador de valor como riqueza
objetiva de uma nação.
Ele introduz a distinção entre “ação produtiva = trabalho” e “ação improdutiva
= ação em sentido estrito”. Esclarece que a ação carente de valor = improdutiva é
aquela que não se realiza em um objeto duradouro, em uma obra. Identifica a
ação improdutiva dos grupos sociais dominantes da cultura pré-industrial e a
exemplifica com os guerreiros, políticos e juristas, aos quais acrescenta os
filósofos. Dessa maneira, para Smith, essa práxis – interpretada como
improdutiva – perde o lugar principal que ocupava na hierarquia das atividades
humanas, na Antigüidade.
É com David Ricardo (1772-1823) que o trabalho – concebido como
“fator de produção” – é colocado como base na determinação do salário, da
renda e do lucro, ficando, assim, esvaziado, apesar da relevância “social” crescente, da
significação filosófico-prática (Riedel, 1979, p.544), isto é, de fator de construção
humana.
O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)
apóia-se no conceito de trabalho da economia política, mas isto não
significa que ele aceite plenamente as concepções de Smith. Mantendo a
distinção entre trabalho e ação, elabora uma “teoria do trabalho”,
estabelecendo sua união com uma “teoria da ação”. Seu objetivo é interpretar
a origem, o sentido e a função do trabalho no todo da vida e atividade humanas
(Riedel, 1979, p.545), e mais, no contexto conjunto daquele espírito, entendido
como ‘totalidade’ histórica, que possibilita e justifica, pela primeira vez,
semelhante atribuição de sentido.
Hegel não foge do quadro de seu sistema de pensamento. Por isso,
entende a ação prática de maneira dialógica (isto é, ação de sujeitos opostos
que se identificam como o eu que é o nós, e como o nós, que é o eu, por meio da
linguagem, do instrumento e da instituição social), as ações relacionadas à
linguagem, ao instrumento e à instituição social estão unidas na constituição do
“eu”. O trabalho – processo de apropriar-se da natureza e submetê-la – representa
um estágio da constituição do “eu” e da obra. O trabalho é, ainda, um dos “meios”
que permite ao “espírito” objetivar- se e formar-se.
Assim, trabalho e formação (esta última entendida como autoformação de
indivíduos, grupos e instituições humanos) passam a ser momentos que podem
movimentar e mudar a trama histórica do espírito (isto é, as estruturas de domínio
e liberdade, o marco institucional de uma determinada totalidade cultural). Trabalho
A organização do trabalho e das profissões
e formação fundamentam a produção da existência das e nas sociedades, porque
fundamentam a produção da existência de mulheres e homens.
Com a teoria de uma mediação crítica entre trabalho e ação, Hegel
corrobora as suposições de Locke e Smith, para quem o trabalho é fundamento
da cultura da humanidade, ao mesmo tempo em que torna mais fácil interpretar
o sentido da atividade humana no quadro da filosofia prática tradicional. O
pensamento antigo, como vimos, não conhecia aquele movimento mediador
entre trabalhador e objeto, que passa a se tornar mais claro quando se explicita
o trabalho como formação.
O modelo aristotélico da filosofia prática tradicional é o esquema de
um período cultural pré-industrial (agrário-urbano) da sociedade européia. O
“conceito de trabalho”, em Hegel, recebe finalmente justificação filosófica no
chamado “trabalho do conceito” ou “trabalho do espírito”.
O advento do capitalismo, paralelamente às conquistas das ciências, cujos
avanços passam a ser aplicados aos problemas do cotidiano e, também, aos
objetivos econômicos, faz com que o ser humano deixe de ser considerado
“alma” – propriedade ou protegida do senhor de escravos ou do senhor
feudal – e passe a ser considerado força de trabalho, impessoal, “livre”, mais
uma mercadoria da sociedade burguesa.
No século XIX, Marx propõe uma reflexão sobre o trabalho,
abordando mais claramente os seus problemas essenciais. Nele, não se encontrará
um significado positivo para a expressão trabalho – nem quando significa atividade
do trabalhador, nem quando indica o produto dessa atividade.
Desde os seus primeiros escritos, Marx entende trabalho como um termo
historicamente determinado, que indica a condição da atividade humana no
que ele denomina “economia política”, ou seja, a sociedade fundada sobre a
propriedade privada dos meios de produção e a teoria ou ideologia que a
expressa.
Verifique no fragmento de texto de Jean Jacques Rousseau (1712-1778),
a seguir, o que ele já assinalara no século anterior:
O homem que primeiro cercou um terreno e atreveu-se a dizer “isto me
pertence”, encontrou ingênuos que o acreditaram. Foi este homem o
verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e
assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero
humano aquele que, arrancando as estacas e entulhando os fossos, tivesse
gritado aos seus semelhantes: “Não atendas a esse impostor. Estarás
perdido se esqueceres que os frutos pertencem a todos e que a terra é de
ninguém!” Mas é muito provável que as coisas já tivessem chegado ao
ponto de não mais se conservar como estavam. Porque a idéia de
propriedade (...) não se formou de repente no espírito humano. (...) Desde
O “espírito” é um conceito que
se refere a realidades distintas
da “matéria”, porque indivisíveis e não dotadas de extensão.
É assumido como constitutivo
da realidade do ser humano,
explicando condutas humanas.
Em Hegel, entretanto, esta
noção de Espírito se esgota no
“espírito subjetivo”, identificando-se ainda suas noções de
“espírito objetivo” (as instituições
fundamentais do mundo
humano – o direito, a eticidade,
a moralidade) e de “espírito
absoluto” (o mundo da arte, da
religião, da filosofia). Nessas
duas concepções – afirma
Abbagnano (1970, p. 336) – o
espírito deixou de ser atividade
subjetiva para tornar-se
realidade histórica, mundo de
valores. (...) As três formas do
espírito – continua – são, para
Hegel, manifestação da Idéia,
isto é, da Razão infinita; mas só
no espírito objetivo e no espírito
absoluto a Idéia ou Razão
realiza plenamente a si mesma
ou chega à sua manifestação
acabada ou adequada.
(ibidem).
Com base no que você estudou
sobre a época moderna,
destaque, no texto, as idéias que
apresentam a concepção de
trabalho na era industrial,
identificando a construção
conceitual que, partindo de Locke,
é aprofundada na economia
política por Adam Smith e David
Ricardo, para reencontrar-se com
uma nova fundamentação
filosófica em Hegel.
Volte à atividade da página 17 e
dê continuidade à sistematização
iniciada no Diário de Estudo.
17
4
Educação/Trabalho/Profissão
o instante em que o homem teve necessidade do auxílio de outro, desde
que se apercebeu que seria útil a um só possuir provisões para dois,
a igualdade desapareceu e a propriedade se introduziu. O trabalho
tornou-se necessário e as enormes florestas transformaram-se em
campos aprazíveis, que foi mister irrigar com o suor dos homens e nos
quais, bem depressa, a escravidão e a miséria germinaram e cresceram
com a seara. (...)
Concorrência e rivalidade, de um lado; de outro oposição de interesses e
sempre o desejo oculto de alcançar o proveito à custa de outrem. Todos
estes males são o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável
da desigualdade nascente (...).
(Rousseau, In Rolland,1943, p.42-54)
Subsumir – conceber um
indivíduo como compreendido
em uma espécie; considerar um
fato como aplicação de uma lei.
O trabalho é, como princípio da economia política, a essência subjetiva
da propriedade privada e está para o trabalhador como propriedade alheia,
estranha e prejudicial.
Assim, o trabalho se manifesta concretamente como uma atividade
humana completamente estranha a si mesma, ao homem e à natureza. Portanto,
estranha à consciência e à vida. Historicamente determinado, o único trabalho
existente é o trabalho alienado de si mesmo, constituindo o devir por si do homem
na alienação ou como homem alienado.
Marx, como nos diz Manacorda (1991, p.44-45), acaba resumindo
essa determinação do trabalho, segundo a qual a manifestação de vida é
em si mesma expropriação de vida, através da formulação, peremptória e
inequívoca, de que o trabalho é o homem que se perdeu a si mesmo.
Mesmo quando ele emprega o termo trabalho junto à “vida produtiva”
ou à “atividade vital humana”, ele aponta para o fato de que essa atividade
– que como atividade livre, consciente, é o caráter específico do homem – está
degradada como “meio para a satisfação de uma necessidade”.
Na verdade, para Marx, “o trabalho subsume” os indivíduos sob uma
determinada classe social, predestina-os, desse modo, a (passarem) de “indivíduos” a
“membros de uma classe”: uma condição que apenas poderá ser eliminada pela superação da
propriedade privada e do próprio trabalho ... como tem sido até hoje (idem, p.45).
Todo homem, subsumido pela divisão do trabalho, aparece unilateral e
incompleto. Essa divisão se torna real quando se apresenta como divisão entre
trabalho manual e trabalho mental, porque aí “se dá a possibilidade, ou
melhor, a realidade de que a atividade espiritual e a atividade material, o
prazer e o trabalho, a produção e o consumo se apliquem a indivíduos distintos”.
O problema é, pois, para MARX, de “voltar a abolir a divisão do trabalho”
Manacorda, 1991, p.45-46).
(
Até aqui, portanto, procuramos entender o sentido negativo de trabalho,
em Marx. Esse trabalho alienado é a forma de trabalho existente, produzida
historicamente: o trabalho assalariado, que – na concepção de Marx – precisa
ser suprimido.
18
A organização do trabalho e das profissões
Entretanto, o trabalho é também atividade vital ou de afirmação do ser
humano, em si mesmo, atividade que se produz como trabalho, mas sem a
qual a vida não subsistiria. E, nessa perspectiva, assume duas dimensões distintas
e sempre articuladas: a primeira se subordina às necessidades imperativas do
ser humano como um ser que necessita produzir os meios de manutenção e
desenvolvimento de sua vida biológica e social; a segunda dimensão se realiza,
uma vez atendidas tais necessidades imperativas, pelo trabalho criativo e livre
ou trabalho não delimitado pelo reino da necessidade (Ciavatta e Frigotto,
2002, p.11-27).
Essa outra dimensão do trabalho, Marx não vai buscá-la na imaginação
mítica do homem primordial ou do “bom selvagem”, ele a encontra implícita
na própria atividade alienada, ou trabalho existente.
Para “fazer história”, os homens precisam viver e, portanto, a
primeira ação histórica é a produção da própria vida material. Eles começaram
a distinguir-se dos animais quando começaram a produzir os seus meios de subsistência.
Mas o que torna o homem um homem, em confronto com os animais, é
que o animal se faz de imediato uno com a sua atividade vital, dela não se distingue, é
ela, enquanto que o homem faz da sua própria atividade vital o objeto do seu querer
e da sua consciência. Tem uma atividade vital consciente: não existe uma esfera determinada
com a qual ele imediatamente se confunda (Marx, apud Manacorda, 1991, p.48).
Agindo voluntária e conscientemente, não vinculada a qualquer esfera
particular, a universalidade do homem se manifesta praticamente na universalidade pela qual
toda a natureza se torna seu corpo inorgânico (ibidem, p.49).
A divisão do trabalho, portanto, dividiu o homem e a sociedade humana,
mas – apesar disso – o trabalho tem sido a forma histórica do desenvolvimento
de sua atividade vital, de sua relação com a natureza, de seu domínio sobre a
natureza.
Essas mesmas concepções dos anos da juventude vão acompanhar o
pensamento de Marx e explicitar-se em suas obras posteriores.
Assim é que Manacorda (1991, p. 52-53) sintetiza a questão:
No texto de O Capital,
destacado no início deste
tema, está clara essa concepção de Marx. Sugerimos que
você o releia.
A nós interessa (...) destacar, com igual vigor, ambos os aspectos dessa
contraposição.
Por um lado, que nas condições historicamente determinadas, as quais (...) não
estão, de fato, destinadas a durar eternamente, o trabalho é verdadeiramente
“o homem perdido de si mesmo”, a negação de toda manifestação humana, a
miséria absoluta. Não se trata de palavras ou fórmulas. Marx, nunca disposto
às lágrimas sentimentais, recolheu durante a sua vida toda os testemunhos
dessa miséria absoluta e dedicou-se todo à tarefa de indagar-lhe as razões e de
suprimi-la.
19
4
Educação/Trabalho/Profissão
Por outro lado, que a atividade do homem se apresenta como humanização da
natureza, devir da natureza por mediação do homem, o qual agindo de modo
voluntário, universal e consciente, como ser genérico ou indivíduo social, e fazendo
de toda a natureza o seu corpo inorgânico, liberta-se da sujeição à causalidade,
à natureza, à limitação animal, cria uma totalidade de forças produtivas e
delas dispõe para desenvolver-se omnilateralmente.
Se não se compreende essa natureza contraditória da atividade humana, não
se compreende nada de Marx; compreender essa antinomia significa por-se no
centro de todo o seu pensamento.
A concepção de trabalho em Marx é absolutamente central para o
entendimento de sua concepção de homem e de sociedade, justamente porque
o trabalho é central na vida humana e social.
Se é incontestável a importância da concepção marxista de trabalho, é
também verdade que fundamental nela é sua vinculação ao processo histórico
de construção da humanidade. A complexidade desse processo jamais foi
minimizada por Marx. Nem o foi, também, a diferenciação imposta pelos
diversos modos de produzir a existência em diferentes espaços e tempos, em
variadas “conjunturas”.
Assim é que, seja como busca de um entendimento teórico-crítico-reflexivo
do trabalho, seja como esforço de superar novos desafios provocados pelo
desenvolvimento científico e tecnológico, pelo dinamismo das relações
socioeconômicas e por novas configurações político-culturais, outras contribuições
vêm sendo trazidas à análise do trabalho no quadro da organização social. Essas
contribuições aparecem tanto como desdobramento do pensamento marxista,
quanto em uma linha de crítica a este pensamento.
É, ainda, Manacorda (1991, p.53) quem nos aponta duas vertentes críticas
importantes:
! a primeira se refere ao fato de Marx, por um lado, fundamentar no trabalho
toda a problemática de emancipação do homem e, ao mesmo tempo,
indicar que o trabalho é, nas condições históricas dadas, destruição do
homem, criação de um poder estranho ao homem e que o domina. Como
pode o trabalho libertar o homem, se é a causa de sua servidão?
!
a outra vertente crítica surge do próprio centro das posições de Marx e
observa que, se o trabalho é a atividade vital e a manifestação do homem,
a sua relação voluntária, consciente e universal com a natureza, não se
pode compreender como, mesmo quando obtidas todas as condições
para sua plena manifestação, seu reino permaneça um reino da necessidade
e que o espaço da liberdade tenha que ser procurado, então, para além do
trabalho. Marx, afinal, afirmou que, colocada à disposição do homem
uma totalidade de forças produtivas, trabalho e manifestação de si
coincidem!
Mas a grande questão que nos mobiliza, na atualidade, é uma objeção
que não se apresenta com qualquer argumento, proclamando apenas a
“inevitabilidade” do quadro histórico dado e que Frigotto (1995, p.53-54) tão
bem descreve:
20
A organização do trabalho e das profissões
As mudanças na base técnica da produção e o impacto sobre o
conteúdo do trabalho, divisão do trabalho e formação humana geram um
desafio teórico e político prático para os que tomam a categoria trabalho
como eixo de compreensão. Esse desafio se manifesta em dois níveis:
!
Compreensão e ação relativas às novas formas de sociabilidade do capital,
cuja base é o controle e monopólio do progresso técnico e do conhecimento,
!
!
!
que redefinem tanto a competição intercapitalista quanto a subordinação
do trabalho ao capital,
que se expressam por novas representações reveladoras das formas
de conceber a realidade, como uma sociedade pós-industrial,
pós-capitalista, sociedade global sem classes, pós-histórica, marcada
pelo fim das ideologias, tendo como pressuposto um novo modelo
de organização social – a sociedade do conhecimento.
Compreensão e ação diante de um novo tipo de organização industrial,
!
!
!
baseada em tecnologia flexível (microeletrônica associada à informática,
à microbiologia e a novas fontes de energia),
gerando novos conceitos ou categorias, no plano da ordem econômica,
como flexibilidade, participação, trabalho em equipe, competência,
competitividade e qualidade total,
com os correspondentes conceitos e categorias no plano da formação
humana, como pedagogia da qualidade, multihabilitação, policognição ,
polivalência e formação abstrata.
Tanto em um quanto no outro nível, a questão básica consiste em não
mais considerar o trabalho categoria central para compreensão do processo
social, para o entendimento do processo de humanização e, por conseqüência,
do processo de educação.
Trataremos dessa questão com maior aprofundamento mais adiante.
Organização do trabalho e definição das
profissões
Como mencionamos acima, cabe um olhar específico sobre o caso
brasileiro de organização do trabalho e, mais ainda, sobre sua organização nas
áreas de Saúde e de Educação. Afinal, é nesse quadro concreto que você será
enfermeiro-professor, desenvolvendo trabalho docente na educação
profissional de trabalhadores no campo da enfermagem.
Policognição – poli = polys,
pollé – prefixo grego, que indica
muito. No caso, significa muitos,
múltiplos conhecimentos.
Tendo presente o que você
estudou até aqui, elabore um
pequeno texto, apontando:
as características de uma
significação “negativa” e de
uma significação “positiva” de
trabalho de Marx;
!
as razões que tornam o
trabalho uma categoria
fundamental para a análise do
homem e da sociedade.
!
21
4
Educação/Trabalho/Profissão
Confira, por exemplo, quando
tratamos, anteriormente, do
trabalho na concepção
medieval.
Estamento – na literatura
histórica, entende-se por
estamento as categorias
hierarquicamente sobrepostas
que compunham as sociedades
feudais européias.
22
Especialmente nos Módulos 5 e 9, que abrem, respectivamente, os
Núcleos Estrutural e Integrador, particular atenção estará sendo dada a
essas questões relevantes para um profissional enfermeiro, disposto a ser
formador daqueles profissionais, que comporão as equipes de saúde como
auxiliares de enfermagem. Aqui, estaremos apenas iniciando uma discussão
e procurando fundamentar aspectos que, para além dos que vierem a surgir
no âmbito deste nosso curso, certamente estarão nos desafiando sempre
em nossa prática educativa e de profissionais de saúde.
Cabe-nos, portanto, pelo menos de uma forma introdutória e sistemática,
abordar a questão da organização do trabalho. A verdade é que, ao percorrer
o desenvolvimento da concepção de trabalho, na seção anterior, várias vezes
nos deparamos com as linhas básicas da organização do trabalho nos diversos
tempos e lugares.
Desde tempos bem antigos, encontramos registros da organização do
trabalho nas sociedades, os quais nos revelam a íntima relação da organização
do trabalho com a própria organização social.
Por que, historicamente, ocorreu assim? A razão é que, pelo trabalho de
cada um e de todos os membros do grupo social, se produziam os meios de
sobrevivência, os meios de existência, o modo de vida. De maneira diferenciada,
os grupos se instituíam, distribuindo ocupações, atribuindo tarefas diversas
por sexo, idade, características físicas. Assim, organizavam o trabalho de
produção, organizavam a vida do grupo para o trabalho, hierarquizava-se o
trabalho, hierarquizavam-se as pessoas na vida do grupo.
Em sociedades mais antigas, uma organização social rígida, alcançada
por meio de grupos ou castas, definia-se menos por organização de trabalho
e mais pelo pertencimento familiar, ou qualquer outro critério (que se
transformava em indiscutível valor) de identificação. Ainda assim, sempre
encontraremos fatores econômicos, que estabeleciam essa hierarquização.
Uma vez estabelecida e garantida pela institucionalização, havia quase
sempre a possibilidade de uma aproximação ou de um afastamento do estamento
dominante, através de atividades mais, ou menos, valorizadas culturalmente.
A variedade desses elementos definidores de tarefas e posições na
estrutura social manifesta-se nas mais antigas sociedades. Se é verdade que, em
um esforço de generalização, podemos distinguir valor positivo para os que
desempenham atividades relacionadas ao “sacerdócio”, à “medicina”, à
“advocacia/justiça” e, depois, à “defesa/guerra”, é também verdade que o
acesso a essas “profissões” reconhecidas se fazia de maneira diferenciada.
Algumas vezes, a hereditariedade familiar era o critério (exemplo: os
membros da tribo de Levi – os “levitas” – eram os únicos admitidos no
exercício do sacerdócio em Israel); outras vezes usava-se o recrutamento
baseado, ou não, em outros indicadores.
Na definição daquilo que hoje chamamos de profissões, os critérios
mais antigos de hierarquização eram o da menor incidência de uso da força
física e o de maior exigência de aquisição de conhecimentos. Mesmo quando
os militares se inserem na organização da sociedade como profissão valorizada,
os postos de comando e prestígio são ocupados com base nessa dupla de critérios.
A organização do trabalho e das profissões
A organização do trabalho tem sua base nas ações empreendidas e no
objeto em que se aplicam essas ações, que hoje denominamos ocupações. Antes
de maneira menos rigorosa e específica, desenvolveu-se gradativamente a
definição dessas ocupações, gerando perfis ocupacionais dos trabalhadores. E,
logo, essas definições passaram a ser objeto de controle por parte dos governos
das sociedades, que estabeleciam direitos e privilégios, deveres e obrigações
dos que iriam exercer tais ocupações.
Veja, abaixo, alguns exemplos em trechos extraídos de atos
oficiais, credenciando pessoas para o exercício de algumas
ocupações.
1 – Boticário
Dom Affonso, por graça de Deus Rey de Portugal e do Algarve d’aquem e
d’alem mar em Africa, Senhor de Guiné e da Conquista (...) A todos os
Corregedores, provedores, Ouvidores, Juizes de fora ordinarios e especiaes,
Senados das Cameras d’este meo Reino ... a quem o conhecimento d’esta
pertencer, faço-vos saber que à mim me enviou dizer Domingos da Costa
Moreyra, filho de João Moreyra e de Catherina da Costa (...) que elle
havia aprendido o officio de Boticario na dita Cidade com Belchior da
Costa Bravo, como constada de sua Certidão, se queria examinar, e que
sendo visto por mim com o meo físico mór do Reino o mandei por elle
examinar e sendo por elle examinado o achou apto (...) no dito officio de
Boticario (...) mando por esta Carta de exame a todas as pessoas a quem
for apresentada lhe dêm toda ajuda e favor para que o dito Domingos...
possa exercitar o dito officio de Buticario, e abrir buticas em sua casa,
em praças públicas e fazer cumprir e sublimar todas e quaisquer
drogas e medicamentos que lhe forem necessários para sua butica e
receytas... poderá viver de todas as Leis, previlégios e liberdades que por
mi lhe são concedidas, segundo a forma de minha ordenação ... El Rey
nosso Senhor o mandou pelo Doutor Sebastião Corrêa de Mendonsa, físico
mór do Reino pelo dito Senhor dada n’esta Cidade de Lizboa em o ano do
nacimento de Nosso Senhor Jesu Christo de mil e seizcentos e sincoenta
annos aos dezaseis dias do mes de Janeiro do dito anno.
2 – Cirurgião
Dona Maria por Graça de Deos Raynha de Portugal e dos Algarves daquem
e dalem Mar (...) Faço saber que Joaquim de Souza de Jezus, filho de pais
incognitos, natural do Rio de Janeiro e morador na Freg.a de S. Sebastião da
Pedr.a , termo desta Cidade de Lisboa, me Reprezentou, que elle pertendia
23
4
Educação/Trabalho/Profissão
uzar da Arte de Cirurgia, nestes meos Reinos, e seos Senhorios, pela ter
aprendido e praticado ... o qual foy examinado na prezença do Comissario
Manoel da Siva Paulino de Figr.do pelos examinadores (...) os quaes o
derão por aprovado debaixo do Juram.to, que tnhão recebido, por bem do
qual me pedio lhe mandace expedir Carta para que Livremente pudece uzar
della na forma do Regimento e Leis deste Reyno ...para que em Sua
observancia possa curar de Sirurgia
Sirurgia, em estes meus Reynos e Senhorias
... pelo qual poderá demandar os Salários, que lhe forem devidos... Dada e
pasada nesta Côrte, e Cid.e de Lisboa aos 24 de 8br.o de 1792.
3 – Sangrador
Os Deputados da Junta do Protomedicato ... Fazemos saber a todos os
Corregedores ... que damos Licensa a João Corr.a de Mello, filho natural
do P.e João Corr.a de Mello, da Villa de S. João D’El Rey, da Com.ca do
R.o das mortes, e ao prez.e morador na Cid.e do Porto, p.a q.e elle possa
Sangrar
ansar ventosas, e Sanguexugas
Sangrar,, Sarjar
Sarjar,, LLansar
Sanguexugas, e q.e poderá
exercitar em todos estes Reynos e Senhorios de Portugal, por quanto foi
examinado (...) e q.e o derão por aprovado (...) e requeremos da p.te de
Sua Mag.e, q.e não procedão p.r via alguma contra o d.o , antes Livrem.te
o deixarão uzar de todo o sobredito, e não Sangrará sem ordem de Medico
ou cirurgião aprovado... não tirará dentes sem ser examinado(...) Dada e
pasada nesta Côrte e cid.e de Liz.a aos 24 de 7br.o de 1788.
4 – A Parteira
O Doutor José Correa Picanço do Conselho do Príncipe Regente Nosso
Senhor, Commendador das Ordens de Christo, e da Torre Espada, Fidalgo
Cavaleiro, Medico da Real Camara, Primeiro Cirurgião della, Cirurgião
Mór do Reyno, Estados e Domínios Ultramarinos, e Lente Jubilado pela
Universidade de Coimbra... Faço saber a todos os Provedores (...) que eu
por esta Carta de Confirmação dou Licença a Romana de Oliveira, preta
forra, moradora na Freg.a de São Gonçalo, para que possa usar do officio
de Parteira, o que poderá exercitar, em todos estes Domínios, e Senhorios
de Portugal por quanto foi examinada na presença de meo Delegado o
Cirurgião aprovado e da Real Camara Antonio José Martins, o qual a deo
por aprovada Nemine discrepante [expressão latina = ninguém
discordando], pelo que lhe mandei passar a presente Carta e requeri da
parte de S. A. R. [Sua Alteza Real] que Deus guarde, as sobreditas Justiças
que não procedão contra (...) antes livremente a deixarão usar da sobredita,
e haverá juramento dos Santos Evangelhos dentro dos tres meses na
Camera onde pertencer (...) para que bem e verdadeiramente use como
convém ao Serviço de S.A.R. Dada e passada nesta Corte do Rio de Janeiro
aos 13 de Dezembro de mil oitocentos quinse ...
(apud Almeida, 1989, p.315-320)
Esses exemplos de organização (e divisão!) do trabalho na área de Saúde,
nos tempos em que começa a aplicação do avanço científico e tecnológico,
indicam a necessidade de verificar conhecimentos e habilidades, para certificar
24
A organização do trabalho e das profissões
a competência em artes e ofícios anteriormente simples, mas que,
gradativamente, vão se tornando complexos.
!
!
!
!
O boticário pode, em sua botica, instalada em sua casa ou na praça pública
“sublimar todas e quaisquer drogas e medicamentos”.
O cirurgião só pode curar pela cirurgia, porque a cura por remédios é
tarefa própria dos médicos.
Também, o sangrador só pode agir por ordem do médico. Nem “tirará
dentes sem ser examinado”.
Finalmente, a parteira – porque examinada e reconhecida como apta por
um Cirurgião do Reino – pode exercer seu “officio”.
É muito importante que você, profissional que se prepara para formar
outros profissionais, observe que esse procedimento vai acompanhar a evolução
da organização do trabalho nas diversas áreas e vai determinar normas
reguladoras das formações dos trabalhadores, nos diversos níveis em que se
hierarquiza a área de atuação.
Assim é que se vai constituindo a sistematização dos perfis ocupacionais
e profissionais do trabalhador, que nada mais são do que o reflexo da divisão
do trabalho, da organização deste nas diversas sociedades, em seus diversos
momentos, manifestando-se, também, na dinâmica da organização social.
Mais recentemente, no caso brasileiro, você poderá encontrar exemplo
esclarecedor desse processo, em dois momentos.
O primeiro deles, na reforma do ensino de 1º e 2º graus de 1971, quando
se estabelece a universalização da profissionalização no nível de 2º grau: o Conselho
Federal de Educação, no Parecer nº 45, de 1972, estabelece 130 possibilidades de
habilitação, das quais 52 no nível de técnico e 78 no nível de auxiliar técnico
(preparo para exercício de uma habilitação parcial, correspondente à parte da de
nível técnico). Desse modo, aos técnicos em agropecuária correspondiam os
auxiliares de adubação, de forragens e rações; aos técnicos em alimentos,
correspondiam os auxiliares de inspeção de alimentos, de inspeção de leite e
derivados, de carnes e derivados; aos técnicos em artes gráficas, correspondiam
os desenhistas de artes gráficas, os fotógrafos de artes gráficas... O Parecer nº 76,
de 1975, encaminha um terceiro nível de profissionalização: “a habilitação básica”
(preparo para determinada área de atividade, que requer conhecimento tecnológico
básico e amplo dessa área, sem prévia definição em relação à ocupação específica).
Assim, por exemplo, a habilitação básica em construção civil desdobra-se em
nada menos que 17 ocupações que nela se fundamentam.
De certa forma, o que se explicita é uma visão de organização do trabalho,
de análise de perfis profissionais, na definição do papel da escola de nível
Muitas vezes, é passada a idéia
de que o “avanço extraordinário
da ciência e da tecnologia” é o
fator das mudanças de perfis
ocupacionais e profissionais. E,
isso, como algo incontornável,
como fatalidade inevitável. O
que, necessariamente, também
exige mudanças nas propostas
de formação profissional. Não
é o caso de pararmos para
refletir sobre essas afirmações
de “certezas inabaláveis”? Se
você espera encontrar aqui
uma resposta...
Volte ao Módulo 2
2, sobretudo
ao Tema 2
2, e ao Tema 1 do
Módulo 3,
3 quando se trata
dos olhares epistemológicos e
menciona um olhar incerto
incerto.
No Parecer 76/75, há uma
interpretação ampla do
preceito de profissionalização
universal no 2º grau, contido
na Lei nº 5.692, de 1971, e
que não encontrava caminhos
de viabilização. Ao admitir a
habilitação básica, remetia-se
para depois (ou para nunca!)
a concretização de uma
habilitação profissional
definida em nível de ensino de
2º grau.
25
4
Educação/Trabalho/Profissão
médio e de um currículo “adequado” às funções “profissionalizantes” que se
atribuía a esse nível de ensino.
O segundo momento é o que se vive após a aprovação da Lei 9.394, de
20 de dezembro de1996, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. De certa forma independente das discussões e dos avanços da
pesquisa no campo das Ciências Sociais, da Pedagogia e, até mesmo, do texto
da Lei, tanto o Decreto regulamentador quanto a opção encontrada para a
definição de diretrizes curriculares submeteram-se mais que tudo aos ditames
das análises econômicas. Apesar de precedida por um longo e bem sustentado
parecer (Parecer nº 16/99, da Câmara da Educação Básica do Conselho
Nacional de Educação, aprovado em 05/10/1999), uma edição revista e
atualizada das habilitações básicas da década de 70 enumera 20 áreas
profissionais, que se desdobram em um número variável de habilitações
específicas, não fechado, porque deixado a critério das escolas.
Para exemplificar, selecionamos a área profissional da Construção Civil,
que nos permite comparar os dois momentos.
Parecer CFE nº 76/75
Habilitação básica
Construção Civil
Ocupações correlatas:
Calculista
Técnico em Edificações
Técnico em Estradas
Técnico em Obras
Desenhista de Arquitetura
Desenhista de Construção Civil
Desenhista Copista
Desenhista de Estruturas
Desenhista de Estradas
Desenhista de Instalações Elétricas
Desenhista de Instalações Hidráulicas
Encarregado do Arquivo Técnico
Técnico em Agrimensura
Técnico em Topografia
Topógrafo de Estradas
Laboratorista de Solos e Pavimentação
Desenhista Projetista
26
A organização do trabalho e das profissões
Parecer CNE/CEB nº 16/99
Área profissional
Construção Civil
Caracterização da área
Compreende atividades de planejamento, projeto, acompanhamento e
orientação técnica relativas à execução e à manutenção de obras civis,
como edifícios, aeroportos, rodovias, ferrovias, portos, usinas, barragens e
vias navegáveis. Abrange a utilização de técnicas e processos construtivos
em escritórios, execução de obras e prestação de serviços.
Competências profissionais gerais do técnico da área
Aplicar normas, métodos, técnicas e procedimentos estabelecidos visando
à qualidade e produtividade dos processos construtivos e de segurança
dos trabalhadores.
!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
Analisar interfaces das plantas e especificações de um projeto, integrandoas de forma sistêmica, detectando inconsistências, superposições e
incompatibilidades de execução.
Propor alternativas de uso de materiais, de técnicas e de fluxos de
circulação de materiais, pessoas e equipamentos, tanto em escritórios
quanto em canteiros de obras, visando à melhoria contínua dos processos
de construção.
Elaborar projetos arquitetônicos, estruturais e de instalações hidráulicas
e elétricas, com respectivos detalhamentos, cálculos e desenho para
edificações, nos termos e limites regulamentares.
Supervisionar a execução de projetos, coordenando equipes de trabalho.
Elaborar cronogramas e orçamentos, orientando, acompanhando e
controlando as etapas da construção.
Controlar a qualidade dos materiais, de acordo com as normas técnicas.
Coordenar o manuseio, o preparo e o armazenamento dos materiais e
equipamentos.
Preparar processos para aprovação de projetos de edificações em órgãos
públicos.
Executar e auxiliar trabalhos de levantamentos topográficos, locações e
demarcações de terrenos.
!
Acompanhar a execução de sondagens e realizar suas medições.
!
Realizar ensaios tecnológicos de laboratório e de campo.
!
Elaborar representação gráfica de projetos.
Apesar de a área de Saúde
estar presente tanto no Parecer
76/75 quanto no Parecer 16/99,
optamos por trazer como
referência a área da
Construção Civil. A razão é
simples: aqui se trata, apenas,
de discutir a divisão e
organização do trabalho e sua
presença nas propostas de
formação profissional.
Nos Núcleos Estrutural e
Integrador – de forma mais
abrangente e, ao mesmo
tempo, específica –, serão
abordados os temas da
formação do profissional de
Enfermagem de nível médio.
27
4
Educação/Trabalho/Profissão
Cabe notar que a preocupação em traçar perfis profissionais através de
explicitação de competências é um avanço. Mas o que lemos no quadro anterior
parece não corresponder ao próprio conceito de competência adotado no
Parecer nº 16/99:
O conceito de competência vem recebendo diferentes significados, às
vezes contraditórios e nem sempre suficientemente claros para orientar a
prática pedagógica das escolas. Para os efeitos desse Parecer, entende-se
por competência profissional a capacidade de articular, mobilizar e colocar
em ação valores, conhecimentos e habilidades necessários para o
desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do
trabalho.
O conhecimento é entendido como o que muitos denominam simplesmente
saber. A habilidade refere-se ao saber fazer relacionado com a prática do
trabalho, transcendendo a mera ação motora. O valor se expressa no
saber ser, na atitude relacionada com o julgamento da pertinência da
ação, com a qualidade do trabalho, a ética do comportamento, a
convivência participativa e solidária e outros atributos humanos, tais como
a iniciativa e a criatividade.
Pode-se dizer, portanto, que alguém tem competência profissional quando
constitui, articula e mobiliza valores, conhecimentos e habilidades para a
resolução de problemas não só rotineiros, mas também inusitados em seu
campo de atuação profissional. Assim, age eficazmente diante do inesperado
e do inabitual, superando a experiência acumulada transformada em hábito
e liberando o profissional para a criatividade e a atuação transformadora.
Ao lado dessa concepção, bastante rica, a formulação de competências,
apresentada no anexo ao mesmo Parecer, mais se assemelha a um elenco
burocrático de tarefas a serem cumpridas.
Para os profissionais de Saúde e de Educação – e você está neste
curso porque quer integrar, em um só perfil profissional, essas duas
dimensões – é ainda menos aceitável uma abordagem descritiva de suas
competências, que deixe de expressar essa liberação para a criação
transformadora, resultante da articulação de conhecimentos, habilidades e
atitudes que assegure ação adequada diante do inesperado e do não habitual.
Neste sentido, você encontra, na Resolução nº 02/99, de 09 de abril de
1999, da mesma Câmara da Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação sobre Curso Normal de Nível Médio, uma formulação que atende
ao que se deve considerar competências de um professor de Educação Infantil
e Fundamental:
I – integrar-se ao esforço coletivo de elaboração, desenvolvimento e avaliação da proposta
pedagógica da escola, tendo como perspectiva um projeto global de construção de um
novo patamar de qualidade para a educação básica no país;
II –
28
investigar problemas que se colocam no cotidiano escolar e construir soluções criativas
mediante reflexão socialmente contextualizada e teoricamente fundamentada sobre a
prática;
A organização do trabalho e das profissões
III – desenvolver práticas educativas que contemplem o modo singular de inserção dos
alunos futuros professores e dos estudantes da escola campo de estudo no mundo
social, considerando abordagens condizentes com as suas identidades e o exercício da
cidadania plena, ou seja, as especificidades do processo de pensamento, da realidade
sócio-econômica, da diversidade cultural, étnica, de religião e de gênero, nas situações
de aprendizagem;
IV – avaliar a adequação das escolhas feitas no exercício da docência, à luz do processo
constitutivo da identidade cidadã de todos os integrantes da comunidade escolar, das
diretrizes curriculares nacionais da educação básica e das regras da convivência
democrática;
V – utilizar linguagens tecnológicas em educação, disponibilizando, na sociedade de
comunicação e informação, o acesso democrático a diversos valores e conhecimentos.
Ao concluir a leitura deste tema,
proponha-se a discutir com o
grupo de enfermeiros-docentes de
sua escola:
o processo histórico da
organização do trabalho e da
constituição das profissões
relacionadas à área da Saúde;
!
o entendimento de “competência
profissional” e o papel da definição
e explicitação de competências
nas propostas de formação
profissional;
!
! as concepções de “competência
profissional” relacionadas à
formação dos enfermeiros,
presentes em documentos oficiais,
tanto do âmbito da Saúde quanto
do da Educação.
29
4
Educação/Trabalho/Profissão
TEMA 2
O trabalho como princípio educativo
A satisfação das necessidades humanas constitui a condição fundamental de
toda história. O trabalho – atividade de toda a vida do homem, que visa a satisfazer
as suas necessidades – é uma atividade central e historicamente determinada.
Como você teve oportunidade de ver no Tema 1, o trabalho teve
significações diferentes no transcorrer da história e tem concepções diversas,
dependentes do “olhar” mais filosófico, sociológico, econômico. Isto para não
mencionar os “olhares” pragmáticos, ideologicamente marcados.
Neste sentido, podemos dizer que trabalho:
! é uma atividade que envolve não só a necessidade vital, mas também a utilidade;
! é uma atividade mediata, pois usa de meios não naturais (artifícios,
“instrumentos”) para produzir resultados:
!
produção de objetos (artesanal/industrial) e
!
produção de serviços (setor terciário);
!
!
30
é uma atividade cujo resultado, o produto, contém valor de uso e pode ter
valor de troca . O produto resulta de todo um processo de trabalho (tempo
+ planejamento + mão-de-obra + ferramentas + matéria);
é a atividade de transformação da natureza, de sua humanização (=dando
características humanas à natureza), mas também de transformação do
próprio homem, de sua própria natureza de ser humano. Enquanto por esse
movimento opera sobre a natureza exterior, modificando-a, transforma igualmente sua
própria natureza (Marx, O Capital, cap.5).
Valor de uso – é a utilidade de
um objeto. As coisas que têm
maior valor de uso possuem, em
geral, pouco ou nenhum valor
de troca. A água, por exemplo.
Valor de troca – ou simplesmente valor, é a faculdade que a
posse de determinado objeto
oferece de comprar com ele
outras mercadorias.
O trabalho como princípio educativo
Nesse contexto, a palavra
solidário não tem o significado
que se encontra em sexto lugar
no Dicionário Aurélio, mas o
segundo registrado na palavra
solidariedade: laço ou vínculo
recíproco de pessoas ou coisas
independentes. Qual é o sexto
significado assinalado pelo
célebre dicionarista para a
palavra solidário? É importante
saber a esse respeito e registrar
esse conhecimento como
inspiração e meta. Diz o
Aurélio: 6. Que partilha o
sofrimento alheio, ou se
propõe mitigá-lo.
O trabalho está intimamente ligado à ciência e à técnica. (...) temos sempre
mais consciência que todo poder, no sentido humano do termo, implica o emprego de uma
técnica (Marcel, G. , apud Buzzi, 1998, p.110).
Entendem-se, então, as razões que deram tanta importância à transmissão
da ciência e das técnicas de produção na educação moderna. Havia uma
convicção de que, pelo domínio da ciência e da técnica, a sociedade seria capaz
de satisfazer suas necessidades, proteger-se contra a hostilidade do ambiente
físico e biológico e trabalhar de forma ordenada e pacífica.
Entretanto, essa convicção de uma educação técnico-científica – mesmo
quando explicita sua abertura à finalidade de melhorar as condições de vida e
sua preocupação em desenvolver nos indivíduos a iniciativa e a capacidade de
corrigir e aperfeiçoar a própria técnica e ciência que ela transmite – não consegue
dar conta da formação do ser humano em sua totalidade (Marx e os marxistas
diriam “omnilateralidade”) como indivíduo e ser social. Para além da ênfase
técnico-científica, torna-se, portanto, imprescindível assumir essa totalidade do
ser humano como o fim primeiro da educação.
Do trabalho em comum surge o novo mundo, diferente da natureza, mais
solidário, pois o produto do trabalho é sempre social. O resultado, produto,
em sua apresentação objetiva, pede que sejamos participantes não só em sua
produção, mas também em seu uso e fruição.
A relação entre trabalho e educação é uma preocupação crescente.
Entretanto, como não há consenso quanto à concepção de trabalho nem quanto
ao conceito e às finalidades da educação, seria ingênuo esperar convergências na
relação entre essas práticas, ambas definidoras do que é próprio dos seres
humanos. Contudo, apesar das divergências e discordâncias, até aqui ainda não
se contestou a importância de levar em conta a relação entre ambos.
Já em 1986, na IV Conferência Brasileira de Educação, Gaudêncio
Frigotto, coordenador do Simpósio sobre Trabalho e Educação, falava sobre
uma crise de aprofundamento teórico na discussão da relação trabalho – educação (Frigotto,
1989, p.13). Essa crise se manifestava por um discurso crítico que incorporava
perspectivas, valores e concepções da “sociedade das mercadorias” como
limite da análise e da ação. Basicamente, deixa-se de lado
!
!
o fato de que o trabalho é uma relação social e que esta, no concreto da
história e na realidade da sociedade capitalista, é uma relação de força, de
poder e de violência;
o fato de que o trabalho é a relação social definidora do modo humano de
existência e que, como tal, não se reduz ao mundo da necessidade (atividade
de produção material), mas envolve também o mundo da liberdade
(dimensões sociais, estéticas, culturais, artísticas, de lazer...) (idem, p.14).
Ora, essa dupla omissão vicia o discurso e a prática da relação trabalho
e educação, uma vez que, “mesmo em quadros progressistas”, se reduz essa
relação às seguintes dimensões:
!
moralizante, valorizando igualmente o trabalho manual e o intelectual,
considerados ambos formadores do caráter e da cidadania;
31
4
!
!
Educação/Trabalho/Profissão
dimensão pedagógica, considerando o trabalho um espaço de
experimentação, laboratório do aprender fazendo;
dimensão social e econômica, em que o trabalho dos filhos de
trabalhadores, em escolas de produção, pode autofinanciar sua educação.
Se forem levadas em conta apenas essas três dimensões, não há lugar
para considerar o trabalho um princípio educativo, porque não há lugar para
que ele seja princípio de vida em sociedade, ou princípio de cidadania. E,
mesmo quando se utilize a expressão “trabalho como princípio de...”, certamente
estaremos diante de uma expressão falaciosa.
Contudo, é inaceitável limitar, reduzir, o trabalho a essas três dimensões
e não considerá-lo algo que as ultrapassa para se identificar com a própria
essência do homem. O trabalho compreende todas essas dimensões, mas as
transcende. E quando não conseguimos – nem no discurso, nem na prática –
ultrapassá-las, é porque continuamos a concebê-lo como coisa, como objeto, jamais
como verdadeiro princípio de cidadania e de educação (idem, p.16-17).
Ninguém nega o fato, historicamente construído, de um trabalho
subordinado a outros objetivos – ou a objetivos de outros – e estranho ao
projeto do ser humano como indivíduo e membro de uma coletividade. Isto
é evidente em uma sociedade em que predominam os interesses do capital
sobre os do trabalho, ou sobre os da vida humana.
O que precisamos reconhecer é a possibilidade histórica de desconstruir
este fato, porque, mesmo na condição prevalente de trabalho-necessidade,
existem, de fato, manifestações de trabalho-liberdade.
Retomando esse tema recentemente, Frigotto (1999; 2002 ) lembra-nos
de que o fato de se considerar mais importante a produção material não deriva
de uma superioridade da atividade material, mas da necessidade que mulheres
e homens têm de produzir bens materiais que atendam às suas necessidades
biológicas. Assim, não se pode negar que o trabalho humano responde ao
imperativo da necessidade, e não apenas ao da liberdade.
Contudo, a luta dos seres humanos é para abreviar esse tempo de trabalho
submetido à necessidade, para conquistar tempo realmente livre, esfera em que
as capacidades humanas podem efetivamente se desenvolver.
Justamente porque o trabalho tem essas duas dimensões, que não se
excluem, mas, na contradição, se buscam, tendendo à complementação e
integração, é possível vê-lo como fundamento e princípio educativo.
Antonio Gramsci (1891-1937) nos trouxe uma importante contribuição,
nesse aspecto. Para além da visão de Marx, para quem o ensino se integra ao
trabalho produtivo da fábrica, ele concebe a integração do trabalho como momento
educativo, parte do processo de educação, totalmente autônomo e primário.
32
Gostaríamos que você refletisse
conosco sobre essas questões um
pouco mais e soubesse que não
estamos negando que o
trabalho, tanto intelectual quanto
material, seja digno e formador
do cidadão,um espaço
privilegiado de formação
concreta do “fazer” competente,
uma possibilidade de, em sendo
educativo, ser também produtivo.
Antonio Gramsci (1891-1937),
intelectual, escritor e político, um
dos fundadores do Partido
Comunista Italiano, esteve na
União Soviética em 1922 e 1923.
Naqueles dias, um educador
soviético, Antón Makárenko
(1888-1939), estava à frente da
Colônia Máximo Gorki,
inspiração de sua obra-prima,
Poema Pedagógico, onde viveu
uma experiência da relação
trabalho-educação.
O trabalho como princípio educativo
Neste sentido, não há como confundir a concepção gramsciana com a
prática das “escolas de ofícios” preconizadas por Locke para os filhos dos
operários, nem com os métodos de “aprender fazendo”, por meio do trabalho,
das escolas experimentais. As primeiras se espalharam no Ocidente, às vezes
como manifestação autêntica, porém equivocada, de filantropia, outras vezes
com o indisfarçado objetivo de liberar mães para um trabalho “mais produtivo
do que ficar tomando conta de duas ou três crianças”. Quanto aos métodos de
“trabalhos manuais”, a maioria das vezes eram justificados pela conveniência de
aprender algumas habilidades e, até mesmo, pela possibilidade de oferecer
alternativas de lazer útil.
Para além de um instrumento de formação de mão-de-obra, ou de um
instrumento metodológico/didático, o trabalho, como conceito e fato, se
apresenta como princípio educativo. A verdade é que a educação, fundamentada
no trabalho, expressa a ênfase, ao mesmo tempo, do momento factual e
conceitual, do momento teórico e prático.
A relação entre trabalho e educação, em que o primeiro é assumido
como princípio, e não como ornamento ou instrumento, reúne as possibilidades
formativas do trabalho e da educação em relação ao homem omnilateral (outros,
talvez, preferissem a expressão homem integral).
Veja este trecho de Antón Makárenko, na primeira de uma série
de conferências pronunciadas em janeiro de 1938 e publicadas
sob o título de Problemas da Educação PPopular
opular Soviética
Soviética..
Na própria palavra trabalho há tanta coisa agradável e sagrada para nós
que também a educação pelo trabalho nos parecia absolutamente exata,
concreta e acertada. Depois percebemos que a palavra mesma trabalho
não encerra nenhuma lógica justa, acabada.
Analise as idéias do texto sobre
o trabalho como princípio
educativo. Se desejar, registre
a sua síntese no Diário de
Estudo.
O Diário de Estudo é um recurso
importante para sua avaliação
a cada módulo do Curso e para
referenciar sua prática como
docente. Ele é, sobretudo, o
registro para você mesmo(a) de
seu desenvolvimento como
profissional que busca, no
estudo e na reflexão, se tornar
mais competente como pessoa,
como cidadão e como
trabalhador.
No começo, o trabalho se entendeu como uma atividade simples, como
trabalho a seu próprio serviço, e depois, como um processo laborativo
inútil, improdutivo, como exercício no qual se gasta energia muscular. E a
palavra trabalho dava tal brilho à lógica que a fazia parecer infalível,
apesar de que a cada passo se descobria que não existia essa autêntica
infalibilidade. Mas se acreditava tanto na força ética do próprio termo que
até a lógica parecia sagrada.
Certamente a minha experiência e a de outros muitos companheiros de
escola demonstrou que era impossível extrair qualquer meio do revestimento
ético do próprio vocábulo, e também o trabalho, aplicado à educação,
pode ser organizado da forma mais variada e, em cada caso concreto,
pode ter resultados diferentes.
De qualquer modo, se o trabalho não é acompanhado do ensino, se não
está unido à educação política e social, não trará proveito educativo, será
um processo neutro.
Podemos obrigar o homem a trabalhar o quanto queiramos, mas se
simultaneamente não o educamos política e moralmente, se ele não
participa da vida social e política, este trabalho será simplesmente um
processo neutro, sem resultados positivos.
Como meio educativo, o trabalho só é possível, formando parte do sistema
geral (de educação). (Makárenko, 1963, p.29-30)
33
4
Educação/Trabalho/Profissão
Como você pôde acompanhar, até aqui estivemos relacionando o
trabalho à educação em geral. Com muito mais razão, cabe-nos propor, agora,
de forma mais específica, uma abordagem da educação profissional em sua
relação com o trabalho.
Antes, desejamos que você saiba que este é o assunto privilegiado do
seu curso. Afinal, você está se preparando para ser agente educador em um
processo de educação profissional. Aqui estaremos iniciando um diálogo que
você retomará algumas vezes, no decorrer dos Núcleos Estrutural e
Integrador deste nosso curso, de diferentes pontos de vista, tendo objetivos
diversos e variados enfoques.
Vamos voltar juntos ao Módulo 2, quando focalizamos nossa atenção na
sociedade contemporânea, no mundo de hoje, com suas exigências, para
chegarmos a alguns referenciais sobre as políticas públicas de Educação e de
Saúde. Não estamos voltando para repetir. Vamos, sim, procurar e encontrar, no
“modo hodierno” de ser, o concreto perfil dessa crise que, em tudo interferindo,
influencia também a relação trabalho – educação, objeto de nossa análise e reflexão.
A velocidade da geração e da aplicação de conhecimento, reconfigurando
perfis profissionais e reorganizando o trabalho, são certamente importantes
elementos críticos a serem considerados. Mas, assim como o trabalho e a
educação não se esgotam nestas manifestações, não são estes os elementos
definidores dos desafios que enfrentamos para relacioná-los.
A crise que vivemos é, também, mais do que a crise de aprofundamento
teórico na análise. Na verdade, o que se enfrenta é a imprecisão ou fluidez de
objeto de análise, uma vez que:
! no campo social e econômico, as manifestações se definem por uma
desordem dos mercados, por uma hegemonia do capital especulativo,
pelo monopólio da ciência e da técnica, pelo desemprego estrutural e pela
maximização da exclusão;
! no campo ético-político, as manifestações se definem por uma enorme
insensibilidade diante dos fatos da exclusão, da violência e da miséria
humana, vistos e tidos como tão “naturais” e “inelutáveis” como os
terremotos e tufões;
! no campo teórico, as manifestações não mais se definem por falta de
aprofundamento, mas por uma incapacidade de estabelecer referenciais
de análise que dêem conta desses desafios do presente.
E, nessas circunstâncias – adverte Frigotto (1999, p.31) – tanto no plano
da sociedade, no sentido mais amplo do termo, quanto em políticas específicas,
como é o caso da formação técnico-profissional, corre-se o risco de atitudes e
medidas oportunistas, simplificadoras e reducionistas, ou de pseudo-soluções
mais capazes de agravar do que de resolver problemas.
34
O trabalho como princípio educativo
Embora saibamos que as
comparações são quase
sempre perigosas, essa fluidez
ou imprecisão do objeto de
análise pode ser comparada a
um mal-estar difuso e não
diagnosticado, cujos sintomas
se apresentam como claros
indicadores de ausência de
saúde, mas que, devido à
ignorância de suas causas, são
minimizados como simples
indisposição a ser vencida com
doses mais intensas de
aspirina. Como o mal-estar era
manifestação alérgica à
própria, as doses suplementares o agravam.
Você terá dificuldades em
encontrar tais palavras no
dicionário. Elas foram criadas e
vêm sendo empregadas para
significar “novas” perspectivas de
solução para o trabalho, em
uma sociedade sem emprego.
Empregabilidade seria a
condição de quem possui um
conjunto de competências e/ou
habilidades que o tornam apto a
conseguir (ou manter) um
emprego. Trabalhabilidade e
laborabilidade seria a aptidão
para trabalhar, mesmo sem
emprego. Por isso é que, muitas
vezes, vêm associadas a
empreendedorismo, que significa
a capacidade de empreender
(que você encontra no
dicionário).
A imprecisão ou fluidez do objeto de análise, que vimos sublinhando
como ponto focal da nossa crise, exige esforço diagnóstico, busca conceitual
precisa, análise profunda de fatos, estabelecimento de correlações e ruptura
com a acomodação do senso comum, demasiadamente confundido com o
bom senso.
O diagnóstico corrente é de que se vivencia uma reestruturação produtiva
de economia competitiva e de globalização. E isto seria uma realidade
“irreversível”. Assim, a vida cultural, política, social e pessoal tem como único
caminho o ajustamento. Logo, também a Educação e, nela, por ainda maior
razão, a educação profissional.
Essa realidade, considerada irreversível, passa a exigir da Educação,
como se fossem uma necessidade, ajustes para formar um “novo
trabalhador”: flexível, polivalente e competitivo (tanto para competir com
os outros trabalhadores como para promover a competitividade de sua
empresa no mercado).
Assim, esse novo perfil promove uma redefinição e, mais do que isso,
um elenco de variadas e diferenciadas competências e habilidades gerais,
específicas e de gestão. Todas voltadas para algo totalmente diferente da
anterior finalidade de “formar para o posto de trabalho”. Com a crise
estrutural do emprego, a finalidade passa a ser “formar para a empregabilidade”,
ou mais radicalmente “formar para a trabalhabilidade ou laborabilidade” em
uma perspectiva de empreendedorismo (como o desemprego é considerado
“natural”, cada um procure capacidade de trabalhar como empreendedor
autônomo).
Esses termos vêm sendo muito usados nos documentos governamentais
de educação, especialmente de educação técnico-profissional; muitas vezes,
nós os absorvemos em nossa linguagem de todos os dias e os consideramos
“normais”.
Entretanto, se pararmos para refletir e para confrontar essas noções
com a realidade de um bilhão de pessoas que, no mundo todo, estão à procura
de um emprego, certamente não as usaremos como meta a ser atingida, mas
como denúncia de uma situação que nada tem de promissora.
Empregabilidade, trabalhabilidade ou laborabilidade são conceitos ao menos
falaciosos (Frigotto prefere chamá-los, com razão, de “mistificadores e cínicos”).
Uma coisa é certa: eles
mais nos dificultam do que ajudam a enfrentar o desafio de buscar alternativas
de construção de uma sociedade democrática comprometida em assegurar os
direitos de educação, saúde, habitação, transporte, lazer, cultura, emprego e
seguridade social (idem,1999b).
Assim, é preciso que os profissionais – e, com maior razão, os
formadores de profissionais – não cometam o pecado da ingenuidade na
análise da relação trabalho e educação, ao construir suas propostas de educação
profissional. Formar profissionais, simplesmente para o que aí está, como se
esta fosse uma realidade imutável – ainda que indesejável – nem é mais uma
atitude ingênua. É uma atitude irresponsável!
35
4
Educação/Trabalho/Profissão
Não tem qualquer consistência essa repetida proclamação de ausência de
alternativas ao modo de produção da existência hoje vigente. E, o que é pior, a
inculcada “naturalização” de suas conseqüências, desde a destruição da natureza até
a destruição, pela exclusão e pela coisificação, da dignidade humana.
A questão que se apresenta aqui não é respondida por uma receita
simplificada. Ela supõe um processo de progressivas superações, sendo que a
primeira delas é a não aceitação de uma educação para o trabalho associada a
uma concepção de trabalho sem significado humano e social.
Uma pergunta possível: isso não seria antes uma ilusão e um jogo de
palavras do que uma possibilidade real?
É preciso assumir a responsabilidade de educar para a vida, para o
enfrentamento dos problemas a partir de uma honesta abordagem de sua
gênese, de sua origem. E educar para a vida não é propriamente negar a busca
de alternativas, mas estimulá-la.
Jamais faltaram e não faltam encaminhamentos alternativos. Por exemplo,
Antunes (1999, p.179–183), depois de uma bem fundamentada análise de Os
sentidos do trabalho, em capítulo conclusivo, apresenta como “uma necessidade
imperiosa”, a construção de um novo sistema de metabolismo social, de um novo modo de
produção. Ao tratar dos princípios constitutivos centrais dessa nova vida, destaca:
! o sentido da sociedade seja voltado exclusivamente para o atendimento das efetivas
necessidades humanas e sociais;
!
o exercício do trabalho se torne sinônimo de auto-atividade, atividade livre, baseada no
tempo disponível.
Certamente, trata-se de uma proposta de confronto profundo e que
não se realiza de repente, naquele curto prazo que também nos impõem como
única medida de tempo possível para construir o futuro. Contudo, trata-se de
uma proposta de novo rumo que, em curtíssimo prazo, pode ser iniciada. E
que não é utópica (lembrando que utopia significa não-lugar), pois tem um espaço
privilegiado e definido em que pode começar: o espaço educativo.
Além disso, mesmo enquanto não se substitui plenamente o atual modo
de produção, podem ser encaminhadas algumas medidas que iniciem o processo
de mudança.
Se considerarmos, por exemplo, a sociedade brasileira, vários estudos
apontam para uma opção de vinculação com o mundo, mas de forma
soberana. Citando Celso Furtado, Frigotto (1999b) recupera os fundamentos
de um projeto de desenvolvimento balizado nos objetivos estratégicos de
preservação do patrimônio natural e o pleno desenvolvimento dos seres humanos concebidos
como um fim, portadores de valores inalienáveis.
36
O trabalho como princípio educativo
As condições de viabilidade desse projeto exigem um conjunto de
decisões, plenamente possíveis, como:
! uma análise da posição diante da dívida externa, que todos sabem ser
impagável econômica, social, ética e politicamente;
! uma concreta e ampla desconcentração e democratização da renda (uma
das mais desiguais do mundo hoje);
! a ampliação e proteção do mercado interno, objetivando a criação de
empregos;
! uma efetiva reforma agrária;
! a adoção de impostos progressivos e estancamento da sonegação fiscal e
dos mecanismos antidemocráticos de renúncia fiscal;
! a taxação das grandes fortunas;
! um investimento maciço em educação, ciência e tecnologia, etc.
Essas medidas apontam para a necessidade de ampliar de forma substantiva
o fundo público e a criação de mecanismos de seu controle democrático.
No que se refere à educação, é necessário reconhecer sua função
estratégica central dentro da construção do projeto alternativo de
desenvolvimento acima aludido. Trata-se, primeiramente, de conceber a
educação escolar básica como direito subjetivo de todos e o espaço social de
organização, produção e apropriação dos conhecimentos mais avançados
produzidos pela humanidade.
A melhor preparação para a vida, para a cidadania ativa, para a
democracia e para o direito ao trabalho moderno é uma educação básica que
tenha como referência todas as dimensões da vida humana, e não o pragmatismo
imediatista do mercado de trabalho.
Naquilo que se refere particularmente à educação técnico-profissional,
é importante entender seu papel específico diretamente ligado à produção de
bens e serviços, e este é o caso da profissão-docente e da profissão-enfermeiro.
Contudo, é fundamental reconhecer que sua efetividade está condicionada a
duas precondições essenciais:
!
!
existência de uma escolaridade básica de qualidade, entendida em sua
dimensão de formação humana e social, portanto não subordinável ao
mercado;
existência de uma política econômica e social, centrada na geração de
emprego e com mecanismos de distribuição justa da renda nacional.
O que se pretende com essa afirmação? Deixar de levar em consideração
a realidade – indesejável, mas aí, presente e determinante – da divisão do
trabalho no mundo atual?
De forma alguma. O que se pretende é a não aceitação de uma
atitude passiva diante de uma realidade que, sendo indesejável, pode ser
mudada. Não é admissível renunciar à possibilidade de mudança desta
realidade, renunciar ao enfrentamento de seus desafios, principalmente
aqueles que vêm comprometendo as condições de vida e de dignidade
humana.
37
4
Educação/Trabalho/Profissão
Formar profissionais competentes, capazes de dominar os conhecimentos
e as estratégias, as habilidades e as atitudes para o melhor desempenho de seu
trabalho é uma reafirmação constante da educação, é uma condição permanente
de vida humana digna e de afirmação de cidadania.
Mas a formulação dessas competências, o estabelecimento de objetivos,
a definição de conteúdos e a própria escolha da metodologia na educação
profissional são processos humanos e críticos, capazes de construir propostas
consistentes e coerentes de produção de uma existência e coexistência
humanamente digna.
Trabalho e Educação se colocam, portanto, como termos de uma relação,
em que ambos são atividades próprias do ser humano, ambos estão referidos
ao ser humano que neles se constrói, que por meio deles se expressa diante do
outro como ser de convívio social, produzindo existência própria e coletiva.
Assim, na educação, o trabalho é princípio educativo, porque mais radicalmente
é princípio de cidadania e princípio de humanização do ser humano que se realiza na
superação de si mesmo, na continuidade do processo histórico que lhe cabe
responsavelmente e conscientemente assumir como “ator” e “agente”. Esse é
o trabalho das mulheres e dos homens, dos grupos humanos, da humanidade
como um todo, no qual todos os sentidos de trabalho encontram referência: o
trabalho de construir sua história, a história de seu grupo, a história da
humanidade.
O futuro não pode ser uma continuação do passado, e há sinais, tanto
externamente quanto internamente, de que chegamos a um ponto de crise
histórica. As forças geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientemente
grandes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida
humana. As próprias estruturas das sociedades humanas, incluindo mesmo
algumas das fundações sociais da economia capitalista, estão na iminência de
ser destruídas pela erosão do que herdamos do passado humano. Nosso mundo
corre o risco de explosão e implosão. Tem de mudar.
Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe
até este ponto. (...) Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um
futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente.
Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o
preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é
a escuridão (Hobsbawm, 1996, p.562).
38
Você vem de uma longa
experiência como aluno, tendo
vivenciado várias propostas
pedagógicas. Da mesma forma,
seus colegas e amigos
enfermeiros passaram por
experiências semelhantes.
Procure, conversando com eles,
lembrar-se de situações em que
o seu processo educativo
– assim como o deles – esteve
relacionado ao trabalho.
Em um pequeno texto, registre
as situações lembradas e a
maneira
como
estava
concebida a relação entre
trabalho
e
educação,
analisando-a à luz dos desafios
que você enfrenta na
atualidade como agente de
educação profissional.
O educador de profissionais
TEMA 3
O educador de profissionais
Em que consiste este trabalho para o qual estamos sendo convocados
e nos estamos preparando? Que competências nos estarão sendo requeridas
para que possamos desenvolver com qualidade as nossas tarefas de educar
profissionais da área de Enfermagem? Não seria suficiente reforçar os
conhecimentos que adquirimos em longos anos de estudo e prática
supervisionada na Faculdade? Para formar profissionais de enfermagem de
nível médio, não nos basta passar para eles uma parte de conteúdo que já
temos e uma parte da prática que já dominamos? Afinal, por que e para que
vamos educar? Não é para prepará-los para aprovação nos exames? Para
conceder-lhes certificados de qualificação que regularizem seu exercício
profissional e organizem melhor a nossa profissão? Para melhorar sua inserção
socioeconômica e ampliar suas oportunidades de acesso aos postos de
trabalho? Ou para ser uma mulher ou um homem mais livre, autônomo,
crítico, criativo e solidário no exercício de seu trabalho, reconhecendo-se
como um profissional competente, que em seu trabalho se expressa como
pessoa humana, relacionando-se com o outro, construindo um ambiente social
humanamente digno?
Ao abordar essas questões, estamos encaminhando uma discussão sobre
que espécie de educador de profissionais desejamos ser: um docente acrítico,
mero transmissor de conteúdos, ou um educador que continuamente se interroga
sobre o porquê, o para quê, os limites, os fins da ação educativa, as necessidades do
aluno?
39
4
Educação/Trabalho/Profissão
Perfil do educador de profissionais
Pelo simples fato de ter chegado até aqui, você já sabe a proposta de
educador de profissionais que este curso vai lhe fazer. Não se trata de alguém
que se encarregará da mera transmissão de conhecimentos prontos que se
antepõem à realidade vivida, experimentada pelo educando. Muito ao contrário,
o educador que propomos é o que desenvolve sua ação no exercício da
produção-desconstrução do saber. Isto porque nosso entendimento de
educação – e, portanto, da educação profissional em que você profissionalmente
estará envolvido como sujeito educador – é o de uma prática social construída
na interação manifesta e explicitamente intencionada para a mudança /
transformação da realidade.
Não qualquer mudança, não qualquer transformação, mas sempre aquela
que, indo além das aparências, busca a realização de condições cada vez mais
humanas para a humanidade. Sempre aquela que, comprometida com a prática
concreta, concebe a teoria como sistematização reflexiva da prática, à qual
deve voltar como fundamento.
Aqui você encontrará um ponto de convergência do educador, que lhe
propomos considerar, com o profissional enfermeiro competente que você já
é. Estamos falando dessa atenção especial em perceber a realidade do aluno,
em relacioná-la com a realidade da educação e da saúde, com a realidade mais
ampla do contexto que envolve o educando. Vamos utilizar uma expressão
que você ouve muito e sabe que diz respeito a uma capacidade que todo
profissional de enfermagem deve cultivar imensamente: o “bom senso”.
Também o educador.
Mas qual seria o caminho do bom senso em nossa ação educativa?
Na poesia O destrinchador de boi, Chuang Tzu ensina que o bom senso é
uma prática que, em si mesma, é também teoria, porque se mostra como é.
Bom senso é machadinha que se afia no uso. Aprendemos a educar,
educando. É no cotidiano da educação que o educador se faz merecedor do
bom senso, a machadinha afiada:
O cozinheiro do Príncipe Wen Hui
Estava destrinchando um boi.
Lá se foi uma pata,
Pronto, um quarto dianteiro.
Ele apertou com um dos joelhos,
O boi partiu-se em pedaços.
Com um sussurro,
A machadinha murmurou
Como um vento suave.
Ritmo! Tempo!
Como uma dança sagrada,
Como a floresta de arbustos.
Como antigas harmonias!
“Bom trabalho!”, exclamou o Príncipe.
“Seu método é sem falhas!”
40
O educador de profissionais
“Método?” disse-lhe o cozinheiro
Afastando a sua machadinha.
“O que eu sigo é o Tao,
Acima de todos os métodos!
Quando primeiro comecei
A destrinchar bois,
Via diante de mim
O boi inteiro,
Tudo num único bloco.
Depois de três anos,
Nunca mais vi este bloco,
Via as suas distinções.
Mas, agora, nada vejo com os olhos.
Todo o meu ser apreende.
Meus sentidos são preguiçosos.
O espírito livre para operar sem planos
Segue seu próprio instinto
Guiado pela linha natural.
Pela secreta abertura, pelo espaço oculto,
Minha machadinha descobre seu caminho.
Não corto nenhuma articulação,
Não esfacelo nenhum osso.
Todo bom cozinheiro precisa de um novo
Facão, uma vez por ano – ele corta.
Todo cozinheiro medíocre precisa de um novo
Cada mês – ele estraçalha!
Eu uso a mesma machadinha
Há dezenove anos.
Cortou mil bois.
Sua lâmina é tão fina
Como se fosse afiada há pouco!
Não há espaços nas articulações;
A lâmina é fina e afiada:
Quando sua espessura encontra
Aquele espaço
Lá você encontrará todo o espaço
De que precisava!
Ela corta como uma brisa!
Por isso tenho esta machadinha há dezenove anos
Como se fora afiada há pouco!
41
4
Educação/Trabalho/Profissão
Realmente, há, às vezes,
Duras articulações. Vejo-as aparecendo.
Vou devagar, olho de perto,
Seguro a machadinha atrás, quase que não movo a lâmina,
E, vapt! a parte cai
Como um pedaço de terra.
Então retiro a lâmina,
Fico de pé, imóvel,
E deixo que a alegria do trabalho
Penetre.
Limpo a lâmina,
E ponho-a de lado”.
Disse o Príncipe Wan Hui:
“É isso mesmo! Meu cozinheiro ensinou-me
Como devo viver
A minha própria vida!”
(apud Buzzi, 1988, p.200)
A pedagogia, na qualidade de reflexão sobre a prática educativa, não
existe previamente como conjunto de fórmulas a serem aplicadas à realidade,
mas se constitui como ciência na própria práxis educativa.
Isso não significa, porém, que você não encontre na pedagogia um saber
sistematizado, feito saber com base em práticas que foram objeto de reflexões
críticas e permitiram conclusões. Você está lendo um texto que sistematiza reflexões
sobre diversas práticas, reflexões que levam a algumas formulações teóricas e que
estão dando suporte à formação de seu “bom senso” de educador de profissionais.
A pedagogia supõe uma prática educativa que fundamente a teoria, a
qual por sua vez sustenta a atividade prática do ato de educar. Na pedagogia,
teoria e prática educativas se interpenetram, se supõem, se determinam.
O educador é aquele que se exercita continuamente nesse processo de
busca e de sistematização teórico-prática. Neste sentido, o educador de
profissionais tem uma atitude aberta, não dogmática, de aproximação
teórico-prática do educando, pois a ação educativa nunca está plenamente
dada. Mesmo quando se está ensinando uma fórmula de um produto químico,
o ato pedagógico não se completa no educador, mas necessita da interação do
educando para completar-se como prática educativa.
Mais do que isso, o educador de profissionais pretende propiciar ao
educando os recursos necessários à compreensão e à intervenção na sua prática
cotidiana, local e global. Isto é, se é importante para o educador que o futuro
profissional saiba a fórmula do produto químico, conheça a seqüência das fases de
um procedimento, muito mais importante é saber que o seu aluno se apropriou da
fórmula e do procedimento, estando apto para agir, em uma situação real, com
competência e, se necessário, com competência criativa.
Se você tiver presentes as análises que juntos vimos fazendo até aqui,
você já percebeu por que precisamos refletir sobre esse aspecto. Nem o
enfermeiro de hoje é o mesmo de ontem, nem o educador de profissionais de
42
O educador de profissionais
enfermagem de nível médio será o mesmo de anos atrás. Como também não é o
mesmo o professor regente da primeira série do ensino fundamental. Há um
contexto social, político, econômico, científico, tecnológico, cultural, que nos diferencia
no tempo e no espaço. Podemos até dizer que uma mudança radical aconteceu:
!
!
antes o professor ensinava e educava com base em suas certezas, com o
objetivo de criar certezas;
hoje, o professor ensina a partir de problemas, desafios e incertezas, com
o objetivo de criar competências de enfrentamento das incertezas.
Conseqüentemente, o educador de profissionais lida muito com a
relatividade das respostas, quase sempre destinadas a uma superação de
dificuldades em tempo mais ou menos curto. Isso faz com que ele desnaturalize
os caminhos, exija de seus alunos mais capacidade de formulação de problemas,
de identificação de desafios, estando sempre atento para provocar uma atitude
de busca de alternativas.
Neste sentido, o Parecer 16/99 da Câmara de Educação Básica do
Conselho Nacional de Educação menciona que o profissional de quem você
será o educador precisa formar-se:
para lidar com situações esperadas e inesperadas, previsíveis e imprevisíveis,
rotineiras e inusitadas,
! em condições de responder aos novos desafios propostos diariamente ao
cidadão trabalhador,
!
de modo original e criativo,
!
de forma inovadora, imaginativa, empreendedora,
!
de forma eficiente no processo e eficaz nos resultados, que demonstre
senso de responsabilidade, espírito crítico, auto-estima compatível,
autoconfiança, sociabilidade, firmeza e segurança nas decisões e ações,
capacidade de autogerenciamento com autonomia e disposição
empreendedora, honestidade e integridade ética.
Por isso, em educação profissional quem ensina deve saber fazer, quem sabe fazer e
quer ensinar deve aprender a ensinar, – prossegue o Conselho Nacional de Educação
no mesmo Parecer nº 16/99.
Logo adiante, o aprender a ensinar (que poderia induzir algumas pessoas a
pensar em fórmulas e receitas prontas) é complementado pela menção a outros
conhecimentos e atributos necessários, para além das competências mais diretamente voltadas
para o ensino de uma profissão e que devem ser objeto de uma continuada educação
do docente. São eles:
!
!
!
!
conhecimento das filosofias e políticas da educação profissional;
43
4
Educação/Trabalho/Profissão
conhecimento e aplicação de diferentes formas de desenvolver a
aprendizagem dos alunos em uma perspectiva de autonomia, criatividade,
consciência crítica e ética;
! flexibilidade com relação às mudanças, com a incorporação de inovações
no campo de saber já conhecido;
! iniciativa para buscar o autodesenvolvimento, tendo em vista o
aprimoramento do trabalho;
! ousadia para questionar e propor ações;
! capacidade de monitorar desempenhos e buscar resultados;
! capacidade de trabalhar em equipes interdisciplinares.
!
Segundo consta no parecer, cumpre ressaltar, ainda, o papel reservado
aos docentes envolvidos na educação profissional. Não se pode falar de
desenvolvimento de competências, de busca da polivalência, e da identidade
profissional, se o mediador mais importante desse processo, o docente, não
estiver adequadamente preparado para a ação educativa.
Pressupondo que esse docente tenha, principalmente, experiência
profissional, seu preparo inicial para o magistério se dará em serviço ou em
cursos de licenciatura e programas especiais de formação pedagógica. Em
caráter excepcional, o docente não habilitado nessas modalidades poderá ser
autorizado a lecionar, desde que a escola lhe proporcione adequada formação
em serviço para esse magistério.
Para o desenvolvimento dos docentes, a escola deve incorporar ações
apropriadas ao seu projeto pedagógico. Outras instâncias de cada sistema de
ensino deverão, igualmente, definir estratégias de estímulo e cooperação para
esse desenvolvimento, além da própria formação inicial desses docentes.
Por polivalência – explica o Parecer do CNE/CEB – aqui se entende o atributo de
um profissional possuidor de competências que lhe permitam superar os limites de
uma ocupação ou campo circunscrito de trabalho, para transitar para outros campos
ou ocupações da mesma área profissional ou de áreas afins. Supõe que tenha
adquirido competências transferíveis, ancoradas em bases científicas e tecnológicas,
e que tenha uma perspectiva evolutiva de sua formação, seja pela ampliação, seja
pelo enriquecimento e transformação de seu trabalho. Permite ao profissional
transcender a fragmentação das tarefas e compreender o processo global de produção.
A conciliação entre a polivalência e a necessária definição de um perfil profissional
inequívoco e com identidade é desafio para a escola. Na construção do currículo
correspondente à habilitação ou qualificação, a polivalência para trânsito em
áreas ou ocupações afins deve ser garantida pelo desenvolvimento das
competências gerais, apoiadas em bases científicas e tecnológicas e em atributos
humanos, tais como criatividade, autonomia intelectual, pensamento crítico,
iniciativa e capacidade para monitorar desempenhos. A identidade, por seu
lado, será garantida pelas competências diretamente concernentes ao requerido
pelas respectivas qualificações ou habilitações profissionais.
Visto que estamos nos referindo a um documento oficial normativo,
queremos chamar sua atenção para alguns aspectos importantes.
44
O educador de profissionais
Em primeiro lugar, você notará a presença de algumas palavras, cujo significado
precisa ser cuidadosamente esclarecido para não nos envolver em uma proposta de
educação profissional descomprometida e equivocada. Referimo-nos, por exemplo,
à menção à “capacidade empreendedora” e à “polivalência”, cujo sentido, adotado
pelo Parecer 16/99, fizemos questão de transcrever acima.
Apesar de contemplar o que Rodrigues (1998, p. 139-140) denomina
dimensão infra-estrutural da “politecnia”, o conceito de “polivalência” adotado no
Parecer não contempla, segundo o autor acima mencionado, a dimensão utópica e
pedagógica de educação politécnica: a concepção do homem omnilateral.
Em outras palavras, a concepção de educação politécnica se contrapõe firmemente à
instrumentalização e redução da formação humana aos desígnios do mercado. (...)
Ou seja, a formação humana (educação e formação profissional) deve se apoiar
necessariamente na base material da produção da vida – trabalho. No entanto, o
conceito de trabalho transcende, em muito, o mundo da necessidade. Na verdade,
o trabalho humano encerra dimensões que o fazem penetrar definitivamente no
mundo da liberdade (ibidem).
Você notará, também, a ausência de menção clara à responsabilidade
efetiva dos poderes públicos para correção, mudança e transformação de
modelos econômicos e modos de produção desviantes do atendimento aos
interesses e necessidades sociais – que são as autenticamente humanas –, quase
que atribuindo exclusivamente ao profissional uma responsabilidade que
evidentemente não lhe poderá caber. Neste sentido, a valorização do espírito
empreendedor, menos do que uma qualidade humana de iniciativa no contexto
da sociedade, parece coincidir com uma proposta de estratégia individualizada
de minoração dos estragos causados pelas políticas de desemprego programado.
Ao levantar esses aspectos, estamos revelando que não há pleno consenso
quanto ao perfil profissional do docente. A razão disso está na inexistência de
consenso quanto aos objetivos do processo educativo. E mais especificamente,
no caso da educação profissional, temos dúvidas e, até, divergências fundamentais
quanto à maneira pela qual a política governamental no campo da educação está
conduzindo a relação entre a educação básica e a educação profissional.
Fica, assim, evidenciada – como conclui Rummert (2000, p.188) – a sua
pesquisa sobre a educação e a identidade dos trabalhadores:
a importância da educação como espaço de luta, onde seja possível propiciar, a
cada um, as condições de conhecer as múltiplas possibilidades da vida e as suas
potencialidades sufocadas, ou mesmo desconhecidas – ou ainda como diria
Roncière, das muitas vidas que lhes [dos trabalhadores] são roubadas. É
esse, a meu ver, um dos elementos essenciais que deve orientar a formulação dos
princípios, objetivos e métodos da educação de qualidade.
45
4
Educação/Trabalho/Profissão
Evidencia-se também a necessidade de aprofundar a análise das
disposições que traçam – pela via das competências explicitadas – o perfil
profissional do magistério. Não se tem um documento oficial específico sobre
a formação do docente da educação profissional. Mas, no nosso caso, será
muito adequado conhecer e analisar as normas que passaram a definir a
formação de professores da educação básica.
Em agosto de 1999, o Grupo de Trabalho, instituído pela Secretaria de
Educação Superior do Ministério da Educação, apresentou um documento
norteador para a construção das Diretrizes Curriculares para a Formação de
Professores. Em maio de 2000, é feita uma versão final no âmbito do MEC
e segue para análise do Conselho Nacional de Educação que, através do
Parecer 09, aprovado em 8 de maio de 2001, estabelece as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em Nível Superior.
Nesse parecer estão apresentadas, em um elenco não exaustivo, as
competências esperadas de um professor da educação básica. Abaixo,
transcrevemos o trecho em que o documento trata de tais competências.
2.2 – Competências a serem desenvolvidas na formação da
educação básica
O conjunto de competências ora apresentado pontua demandas
importantes, oriundas da análise da atuação profissional e assenta-se na
legislação vigente e diretrizes curriculares nacionais, mas não pretende
esgotar tudo o que uma escola de formação pode oferecer aos seus alunos.
Elas devem ser complementadas e contextualizadas pelas competências
específicas próprias de cada etapa e de cada área do conhecimento a ser
contemplada na formação.
2.2.1 – Competências referentes ao comprometimento com os
valores inspiradores da sociedade democrática
Pautar-se por princípios da ética democrática: dignidade humana,
justiça, respeito mútuo, participação, responsabilidade, diálogo e
solidariedade, para atuação como profissionais e como cidadãos;
Orientar suas escolhas e decisões metodológicas e didáticas por valores
democráticos e por pressupostos epistemológicos coerentes;
Reconhecer e respeitar a diversidade manifestada por seus alunos,
em seus aspectos sociais, culturais e físicos, detectando e combatendo
todas as formas de discriminação;
Zelar pela dignidade profissional e pela qualidade do trabalho escolar
sob sua responsabilidade.
!
!
!
!
2.2.2 – Competências referentes à compreensão do papel
social da escola
Compreender o processo de sociabilidade e de ensino e aprendizagem
na escola e nas suas relações com o contexto no qual se inserem as
instituições de ensino e atuar sobre ele;
Utilizar conhecimentos sobre a realidade econômica, cultural, política
e social, para compreender o contexto e as relações em que está
inserida a prática educativa;
Participar coletiva e cooperativamente da elaboração, gestão,
desenvolvimento e avaliação do projeto educativo e curricular da
escola, atuando em diferentes contextos da prática profissional, além
da sala de aula;
!
!
!
46
O educador de profissionais
!
!
Promover uma prática educativa que leve em conta as características
dos alunos e de seu meio social, seus temas e necessidades do mundo
contemporâneo e os princípios, prioridades e objetivos do projeto
educativo e curricular;
Estabelecer relações de parceria e colaboração com os pais dos alunos,
de modo a promover sua participação na comunidade escolar e a
comunicação entre eles e a escola.
2.2.3 – Competências referentes ao domínio dos conteúdos a
serem socializados, de seus significados em diferentes
contextos e de sua articulação interdisciplinar
Conhecer e dominar os conteúdos básicos relacionados às áreas/
disciplinas de conhecimento que serão objeto da atividade docente,
adequando-os às atividades escolares próprias das diferentes etapas
e modalidades da educação básica;
Ser capaz de relacionar os conteúdos básicos referentes às áreas/
disciplinas de conhecimento com: (a) os fatos, tendências, fenômenos
ou movimentos da atualidade; (b) os fatos significativos da vida pessoal,
social e profissional dos alunos;
Compartilhar saberes com docentes de diferentes áreas/disciplinas de
conhecimento, e articular em seu trabalho as contribuições dessas
áreas;
Ser proficiente no uso da Língua Portuguesa e de conhecimentos
matemáticos nas tarefas, atividades e situações sociais que forem
relevantes para seu exercício profissional;
Fazer uso de recursos da tecnologia da informação e da comunicação
de forma a aumentar as possibilidades de aprendizagem dos alunos.
!
!
!
!
!
2.2.4 – Competências referentes ao domínio do
conhecimento pedagógico
Criar, planejar, realizar, gerir e avaliar situações didáticas eficazes para
a aprendizagem e para o desenvolvimento dos alunos, utilizando o
conhecimento das áreas ou disciplinas a serem ensinadas, das
temáticas sociais transversais ao currículo escolar, dos contextos sociais
considerados relevantes para a aprendizagem escolar, bem como as
especificidades didáticas envolvidas;
Utilizar modos diferentes e flexíveis de organização do tempo, do espaço
e de agrupamento dos alunos, para favorecer e enriquecer seu processo
de desenvolvimento e aprendizagem;
Manejar diferentes estratégias de comunicação dos conteúdos, sabendo
eleger as mais adequadas, considerando a diversidade dos alunos, os
objetivos das atividades propostas e as características dos próprios
conteúdos;
Identificar, analisar e produzir materiais e recursos para utilização
didática, diversificando as possíveis atividades e potencializando seu
uso em diferentes situações;
!
!
!
!
47
4
Educação/Trabalho/Profissão
!
!
!
Gerir a classe, a organização do trabalho, estabelecendo uma relação
de autoridade e confiança com os alunos;
Intervir nas situações educativas com sensibilidade, acolhimento e
afirmação responsável de sua autoridade;
Utilizar estratégias diversificadas de avaliação da aprendizagem e, a
partir de seus resultados, formular propostas de intervenção
pedagógica, considerando o desenvolvimento de diferentes
capacidades dos alunos.
2.2.5 – Competências referentes ao conhecimento de
processos de investigação que possibilitem o
aperfeiçoamento da prática pedagógica
Analisar situações e relações interpessoais que ocorrem na escola,
com o distanciamento profissional necessário à sua compreensão;
Sistematizar e socializar a reflexão sobre a prática docente, investigando
o contexto educativo e analisando a própria prática profissional;
Utilizar-se dos conhecimentos para manter-se atualizado em relação
aos conteúdos de ensino e ao conhecimento pedagógico;
Utilizar resultados de pesquisa para o aprimoramento de sua prática
profissional.
!
!
!
!
No PROFAE, o componente I é
responsável pela qualificação
profissional e, ainda, pela
complementação da educação
básica. Por isso, nele também
atuam professores da rede de
ensino. Aprecie, com esses
parceiros, as competências
estabelecidas pelo Parecer 09/01,
identificando características e
compromissos comuns àqueles
requeridos do educador de
profissionais.
2.2.6 – Competências referentes ao gerenciamento do
próprio desenvolvimento profissional
Utilizar as diferentes fontes e veículos de informação, adotando uma
atitude de disponibilidade e flexibilidade para mudanças, gosto pela
leitura e empenho no uso da escrita como instrumento de
desenvolvimento profissional;
Elaborar e desenvolver projetos pessoais de estudo e trabalho,
empenhando-se em compartilhar a prática e produzir coletivamente;
Utilizar o conhecimento sobre a organização, gestão e financiamento
dos sistemas de ensino, sobre a legislação e as políticas públicas
referentes à educação para uma inserção profissional crítica.
!
!
!
(Conselho Nacional de Educação, Parecer 09/01)
Como você pode perceber, as competências explicitadas nos itens 2.2.4,
2.2.5 e 2.2.6 são as que mais diretamente dizem respeito a este Curso. Contudo,
é importante notar o que – apesar de algumas imperfeições de formulação
que você poderá identificar – as competências citadas em 2.2.1, 2.2.2 e 2.2.3
indicam na perspectiva de contextualização de sua docência como prática social.
Especialmente, apesar de você já ser um profissional-enfermeiro atuante,
que conhece os conteúdos relacionados à sua profissão, será necessário
utilizá-los, agora, de uma forma diferente (ver o item 2.2.3). Isto é, além de
sabê-los como usuário, irá trabalhá-los na interação pedagógica com a
responsabilidade profissional de ser educador de profissionais. Certamente
esse fato não vai alterar o conteúdo, mas os modos de tratá-lo, para que também
seus alunos construam o conhecimento deles.
Há um dito popular que, maldosamente, afirma: Quem sabe faz, quem
não sabe ensina. Embora reconhecendo que a frase expressa um preconceito
contra os professores, podemos, com base nela, levantar questões bastante importantes.
Poderíamos, logo de início, identificar uma crítica frontal ao ensino
descomprometido com o fazer ou, o que é pior, com a realidade e a vida. E,
48
O educador de profissionais
todos nós sabemos – porque vivenciamos em nosso próprio processo
educativo – quantas vezes o ensino foi, e ainda é, ministrado sem qualquer referência
ao fazer, à realidade, à vida.
No caso específico da educação profissional, essa questão assume
importância fundamental e traz implicações variadas para quem, ao se propor
como futuro docente, está empenhado em construir competências que o
habilitem como educador.
Já apontamos acima: o professor de profissionais precisa ter
competências – ser competente! – na profissão que exerce e desenvolver outras
competências que o tornem um educador. Mas que competências são essas?
Como elas são construídas? Como se manifestam?
Antes de qualquer outra consideração, precisamos ter presente que o
processo de definição das profissões e – dentro de cada uma delas – o processo
de definição e construção de competências são dinâmicos, culturalmente
marcados. A geração e a difusão do conhecimento, sua aplicação e conseqüente
criação de tecnologia, mudam procedimentos. Mais do que isso, mudam a
relação entre diferentes profissões que atuam em uma mesma área e entre
diferentes áreas de conhecimento de exercício profissional. Mudam, até mesmo,
os modos de conhecer.
Veja este exemplo: estamos em um hospital público de grande e
diversificado atendimento. Para fazê-lo funcionar, há profissionais da área de
Saúde, mas também da área de Administração. Além disso, um sistema
informatizado foi implantado e já há computadores em algumas enfermarias.
Há profissionais de Informática (analistas de sistemas, programadores,
digitadores) dando cursos para os profissionais da área de Saúde. Papeletas e
fichas sofrem modificações, mudando então a maneira de registrar... Aparelhos
digitalizados começam a substituir os eletrônicos e os mecânicos, mas dentro
do mesmo hospital convivem todos, em razoável estado de funcionamento. É
fundamental saber operá-los. Nesse local definido de trabalho, começam a
manifestar-se alterações que vêm marcando o trabalho no mundo de hoje:
!
!
!
!
!
Considerando tudo o que você
estudou neste tema, até aqui, e
levando em conta, também, a
análise que você faz de seu
tempo de aluno de um curso de
formação profissional, elabore
um quadro-resumo indicando as
competências que você entende
já ter atingido (parcial ou
totalmente) e aquelas que você
pretende priorizar, para ser um
educador de profissionais de
enfermagem.
Ao estruturar esse quadro,
lembre-se de professores que
atuaram em sua formação
profissional e o marcaram
positivamente
por
sua
competência docente, podendo
inspirá-lo/desafiá-lo em alguns
aspectos de desempenho.
a hierarquização profissional rígida, vigente em um campo de atuação,
pode estar completamente subvertida em outro;
uma multiplicidade de competências concorrentes;
procedimentos anteriormente executados por um único profissional
passam a ser desenvolvidos por equipes interprofissionais;
constantes redefinições diante de novas e inesperadas situações;
antigas fronteiras nítidas entre ocupações são transformadas em zonas de
transição;
49
4
Educação/Trabalho/Profissão
aproximação de pólos contrários, como o técnico e o humano, o trabalho
encadeado e o espírito de cooperação, comando e sugestão, informação
e comunicação, afirmação e questionamento, imposição e negociação,
especialidade e generalidade.
Quadros como este podem gerar confusões. Não raras vezes, voltamos a
ouvir expressões que mal escondem uma resistência passiva ou um ativismo
inconseqüente: “Temos de ser pragmáticos” ou “A realidade do terceiro milênio nos
impõe...” Pior ainda, a frase cínica: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Usam-se termos que nos remetem à realidade e à prática, mas não
explicitam as condições de leitura, ou de discussão das leituras, dessa realidade e
dessa prática. E não é por falta de material de análise, já que a humanidade vem
acumulando seus conhecimentos e julgamentos ao longo de sua caminhada.
A realidade e a prática ora se confundem com a própria expressão
humana dessa humanidade que pratica a produção da realidade, ora se
contrapõem ao ser humano que se afirma na consciência de sua distinção
– ainda que a ela relacionada – da realidade que é espaço de sua prática.
Ao abordar esta questão, estamos reencontrando momentos anteriores
que nos fizeram refletir sobre o agir humano e sobre a especialíssima forma
do agir humano, o trabalho.
!
Práxis pedagógica e competência docente
Neste momento, precisamos retomar nossa reflexão sobre a realidade e a
prática, buscando uma concepção que explicite o fato de que elas se relacionam
estreitamente, porque estão objetivamente vinculadas ao ser humano, ao
trabalhador, ao sujeito agente da práxis. E – isso é importante – a busca conceitual
não é um exercício teórico vazio, mas uma condição básica para que você construa,
com a autonomia de quem assume uma perspectiva crítica e libertadora, seu agir
de profissional de Saúde, que se está tornando, também, profissional-docente.
Apenas para recordar o que abordamos no Módulo 3, a palavra práxis,
entre os gregos, não tinha um significado tão preciso. Estava, porém, mais
vinculada àquelas ações configuradoras da existência social, voltadas para as
formas ideais de vida. Uma coisa é certa: a práxis se distingue da theoría, que é
um outro tipo de atividade, cujo objetivo é buscar a verdade.
Contudo, é bom lembrar que essa interpretação tem sido muito polêmica.
Os filósofos – diz Konder (1992, p. 98) – têm divergido, apaixonadamente, a respeito da
ênfase que deve ser posta num dos termos ou no outro; e têm divergido acerca da articulação
existente ou desejável entre ambos. Também as pessoas e os grupos se posicionam
sobre essa ênfase e essa relação entre práxis e theoría, de acordo com suas
percepções e necessidades, sempre marcadas pelas diferenças de épocas e lugares.
De certa maneira, se podemos dizer que o mundo antigo e medieval pendeu
para a theoría e valorizou a práxis, a Modernidade valorizou a poiésis (a ação
relacionada à produção material, à produção de objetos), subordinando a ela a
práxis (ética e política) e a theoría (como conhecimento para aplicação direta na
ação de produção objetiva). Mas tanto a Antigüidade quanto a Modernidade
mantêm a dicotomia teoria e prática e a distinção entre práxis e poiésis.
50
O educador de profissionais
A tentativa de superação dessa dicotomia e dessa separação das formas
de agir vai se dever a Marx, que instaura o entendimento da práxis como
a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo,
modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se
a si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais conseqüente,
precisa da reflexão, do autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete
à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejandoos com a prática (Konder, 1992, p.115).
Neste sentido, práxis e teoria são interligadas, interdependentes. A teoria é um
momento necessário da práxis; e essa necessidade não é um luxo: é uma característica que
distingue a práxis das atividades meramente repetitivas, cegas, mecânicas, “abstratas” (idem,
p.116).
Essa concepção da práxis, portanto, vai para além do conceito de trabalho.
Como explicitou Kosik (1969, p.204), ela compreende também o momento
existencial, quando a subjetividade humana se constitui através de sentimentos
que fazem parte do “processo da realização da liberdade humana”. E, mais
ainda, a práxis – como atividade política e ética, na concepção da antiga filosofia
grega, especialmente de Aristóteles – reúne-se à theoría e à poiésis.
Espera-se aqui que o resgate dessa significação ajude o profissional
– que se torna professor na área do exercício de sua profissão – a formular os
problemas e a encaminhar soluções que reflitam seu compromisso humano de
agir conscientemente e totalmente sobre a realidade, transformando-a e
transformando-se em algo sempre novo e melhor.
Quando tomamos os dados que essa reflexão nos ofereceu e nos propomos
a aplicá-los a uma prática pedagógica específica, precisamos estar cientes de que
estamos lidando – seja no campo da Saúde, seja no campo da Educação – com
uma prática na qual a interação interpessoal ocupa uma posição privilegiada.
Assim, alguns pressupostos de uma concepção da práxis adquirem uma
conotação específica, como:
!
!
!
!
o conhecimento advém da prática refletida e, no caso, essa prática é sempre
cooperativa;
a prática do educando, refletida e sistematizada por ele, é o lugar
privilegiado do conhecimento, mesmo que ela se complete na interação
com o educador e sua prática;
o processo de produção do conhecimento é contínuo;
o conhecimento que é produzido reflete necessariamente a situação
histórica em que se vive, com suas perspectivas, interpretações, pontos
de vista, trazendo uma marca de parcialidade, fragmentação e, sobretudo,
de abertura para a mudança, para o novo, para inesgotáveis
possibilidades;
51
4
Educação/Trabalho/Profissão
!
a relação pedagógica é a que se realiza entre educando e educador, os
dois se apropriando do conhecimento, em um processo em que ambos
estão efetivamente se educando, ainda que, objetivamente, o educador já
tenha uma experiência acumulada parcialmente sistematizada e
aprofundada, enquanto o educando a tenha ainda não sistematizada, ou
sincrética.
Nossa reflexão nos leva, portanto, à convicção a ser necessariamente
traduzida na objetividade da ação:
!
!
Com base em seus estudos,
inclusive o que você resgatou das
reflexões realizadas quando se
tratou, no Módulo 3
3, da relação
da Educação com o conhecimento e a ação, procure
sistematizar seu entendimento
sobre:
a evolução da concepção da
relação entre a teoria e a prática
até a concepção de práxis;
!
a aplicação da concepção de
práxis ao fazer pedagógico.
!
Ao final deste tema, você
encontra uma leitura complementar, que desafia ao fazer
social do fazer pedagógico.
Trata-se de um trecho extraído da
palestra de abertura do Seminário
Anual promovido pela Associação Brasileira de Tecnologia
Educacional (ABT), em 1999.
Busque-o.
de que o educador é, sobretudo, um guia na sistematização de conteúdos, um provocador,
um indicador de conteúdos universais acumulados;
de que a educação se dá a partir da totalidade do educando e do educador, enquanto
seres omnilaterais e omnidimensionais que são e que conscientemente vivenciam ser
(Arruda, 1988).
Trata-se, portanto, de exercitar a capacidade para apreender no real a
relação teoria-prática e, assim, se perceber como construtor de conhecimentos.
Neste sentido, cabe ao educador uma atitude aberta, não dogmática
em relação à ação educativa, buscando conhecer as questões e exigências novas
que vão surgindo em seu cotidiano escolar. A concepção de educação e a
prática educativa são interdependentes. Isto é: o ato educativo é conduzido
por uma diretriz pedagógica, assim como a concepção de educação vem de
uma práxis educacional anterior (Qual conteúdo? Para que público? Como?).
Educador e educando trazem para a relação pedagógica a sua prática social, refletida
por ambos em todas as suas dimensões e articulações. E, ao trazê-la, fazem dela a fonte
privilegiada – embora não única – da produção de novos conhecimentos (Arruda, 1988, p. 2).
Como tivemos amplamente oportunidade de ver, o problema é a
permanente interferência externa de outros modos de interpretar, que se
sobrepõem impositivamente, por meio de mediações poderosas, por exemplo,
interpretações da prática social como “naturais”, “aceitas” ou “consensuais”.
Neste sentido é que a concepção de práxis como integração – criadora
do novo, da reflexão, da produção material e da ação ético-política – aponta
para uma perspectiva de construção do ser humano e da humanidade em
liberdade e solidariedade. E, por isso, deve ser atentamente considerada pelos
que pretendem desenvolver um trabalho profissional docente voltado para a
formação de profissionais.
Responsabilidade formadora, senso comum e
ideologia
O educador de profissionais, ao refletir sobre a realidade e a prática,
defronta-se ainda com alguns desafios. O primeiro deles é, sem dúvida alguma,
a sua responsabilidade formadora.
Já tivemos oportunidade de abordar esse tema em vários momentos
neste módulo e nos módulos precedentes. De formas variadas, o assunto
voltará durante todo este curso, durante toda a vida. Afinal, que outra razão
justificaria esta mobilização de esforços para formar um docente?
52
O educador de profissionais
A sua responsabilidade formadora exige o suporte educativo deste curso,
assim como a responsabilidade profissional dos auxiliares de enfermagem que
serão formados exigirá o seu esforço como professor no curso que lhes formarão.
A responsabilidade formadora exigirá de você as competências para
estabelecer a mediação entre a realidade e o futuro auxiliar de enfermagem,
com o objetivo de ajudá-lo a apropriar-se dessa realidade, para nela interferir,
como agente de uma práxis transformadora. Assim como você, seu aluno não
se constitui como um “prático”, mas como o sujeito que na autonomia de
uma perspectiva crítica e libertadora exerce sua atividade profissional como
uma prática refletida e, por isso, transformadora da realidade e de si mesmo.
Para tanto, será necessário buscar entender claramente a realidade na
qual vivemos, da qual nos aproximamos, como quem vai interrogá-la para
melhor conhecê-la, como quem precisa conhecê-la para poder agir sobre ela.
E, no caso daqueles que têm responsabilidade formadora, para poder mediar
a relação entre ela e os futuros profissionais em processo de formação.
Embora você veja uma enorme diversidade e complexidade na realidade
e na prática, você também identifica a possibilidade de instituir uma dinâmica
de ação, aberta à mudança e, portanto, transformadora, na perspectiva de uma
concepção de práxis, em que o fazer é fonte e destino da teoria.
E como essa realidade é percebida?
Em primeiro lugar, pelo senso comum, isto é, por aquilo que o
historiador e filósofo italiano Giambattista Vico (1668-1744) conceituou como
um julgamento sem qualquer reflexão, comumente sentido por toda uma ordem, por todo um
povo, toda uma nação, ou por todo o gênero humano (Vico, apud Abbagnano, 1970,
p.841).
O senso comum existe porque, na convivência de um grupo social,
vai-se adquirindo espontaneamente sua maneira de entender a realidade e os
modos de sobre ela agir. Neste sentido é que Vico usa a expressão “sem qualquer
reflexão”. O senso comum se propaga das vivências do grupo, inclusive do
acervo construído no passado. Como explica Luckesi (1990, p.95): Lentamente,
esses elementos explicativos penetram em nossas mentes, em nossa afetividade, em nosso
modo de agir, em nossa prática diuturna.
Sua característica é um descompromisso com a criticidade, isto é, com
a ação de interrogar a realidade para desvendá-la. A realidade está aí, e o senso
comum a explica, sem qualquer questionamento, pelas explicações já prontas e
que foram passadas de geração em geração.
Podemos dizer com Konder (2002), que o senso comum é, em si mesmo,
“difuso e incoerente”. A percepção da realidade, no âmbito desse campo visual
estreito, não poderia deixar de ser – segundo o teórico italiano – drasticamente
“empírica”, restrita à compreensão imediata, superficial. Mesmo que se admita
53
4
Educação/Trabalho/Profissão
que nele se abriguem elementos de “bom senso”, sobre os quais se possa
desenvolver espírito crítico.
Em segundo lugar, precisamos citar a ideologia, como uma forma de
entender a realidade. Embora, inicialmente, o termo tenha sido usado por
Antoine Destutt de Tracy (1754-1836) para indicar a análise das sensações e das
idéias, passou a ser utilizado para indicar uma doutrina , mais ou menos destituída de
validade objetiva, porém mantida pelos interesses claros ou ocultos daqueles que deles se servem
(Abbagnano, 1970, p.506).
A ideologia consiste precisamente – segundo Marilena Chauí
(1984, p.93) – na transformação das idéias da classe dominante em
idéias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a
classe que domina no plano material (econômico, social e político)
também domina no plano espiritual (das idéias).
Quando a reflexão se volta para a produção da ideologia é que se
encontra seu ponto de intercessão com o senso comum. A ideologia se produz
em três momentos fundamentais:
! em seu início, como conjunto de idéias que os pensadores de um grupo
ascendente produz, com o objetivo de mostrar que essa classe social
representa a sociedade como um todo;
! depois ela se difunde, tornando-se senso comum, passando suas idéias e
valores a ser internalizados por todos os que compõem uma sociedade;
! finalmente ela permanece, interiorizada como senso comum, mesmo quando
as idéias e valores não se realizam, ou só se realizam para os dominantes
(Chauí, 1984, p.108-109).
Assim, a
ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e
valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos
membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem
valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o
que devem fazer e como devem fazer.
Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas,
regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é
dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional
para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças
à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção.
Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças de classes e de
fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando
certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a
Humanidade, a Liberdade, Igualdade, a Nação, ou o Estado (ibidem, p.113).
Segundo Gramsci, para Marx as ideologias não são meras ilusões e
aparências; são uma realidade objetiva e atuante. Isso, entretanto, não as torna
manifestações verdadeiras e definitivas da apreensão da realidade. O mesmo filósofo
italiano apontava a necessidade de distinguir as diferenças internas da ideologia. De
maneira particular, dizia ser preciso distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, que
são necessárias a uma certa estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalizadas, desejadas.
54
O educador de profissionais
Estas últimas devem ser submetidas a uma crítica que, apoiada nas ciências
e na filosofia, desqualifique-as pela instauração do máximo de “objetividade”
na produção do conhecimento. Já, em relação às ideologias “historicamente
orgânicas”, Gramsci as aponta como constituindo o campo no qual se realizam
os avanços da ciência, as conquistas da “objetividade”, quer dizer, as vitórias da
representação daquela realidade que é reconhecida por todos os homens, que é independente
de qualquer ponto de vista meramente particular ou de grupo (apud Konder, 2002).
A responsabilidade formadora do docente de educação profissional
exige uma permanente superação da ideologia e do senso comum, através
de mediações que busquem um entendimento crítico da realidade. Isto
significa uma constante preocupação em desvendar os significados das
explicações “prontas”, uma permanente atenção para mobilizar análises
capazes de concretamente aprofundar, para além das aparências, o
entendimento da realidade.
Em conversa com colegas,
procure trocar idéias e experiências relativas às linhas de
conduta de um educador de
profissionais consciente de suas
responsabilidades formadoras.
Sintetize em seu Diário de Estudo:
a) as características do senso
comum e da ideologia no
processo de entendimento da
realidade;
b) os resultados da discussão
sobre as linhas de conduta do
educador de profissionais.
Outras Leituras
Quem desejar ampliar seus conhecimentos nesse tema, poderá ler:
!
!
KONDER, Leandro. O que é dialética. Coleção Primeiros Passos
nº 39. São Paulo: Abril Cultural / Brasiliense, 1985.
KONDER, Leandro. O futuro da filosofia da práxis: o
pensamento de Marx no século XXI. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1992.
Leandro Konder, com doutorado nas universidades de Marburg e Bonn
(Alemanha), desenvolveu suas atividades de magistério na Universidade Federal
Fluminense e, depois, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Nas duas obras sugeridas como leitura de aprofundamento, Konder, usando
uma linguagem acessível e, ao mesmo tempo, rigorosa, oferece uma reflexão
crítica sobre o marxismo, resgatando as bases do seu pensamento filosófico,
com elementos esclarecedores sobre a relação teoria e prática.
55
4
Educação/Trabalho/Profissão
Texto complementar
Fazer pedagógico – Fazer social
Enfrentar o desafio de buscar no fazer social a chave do encontro de
um fazer pedagógico significativo pode parecer, à primeira vista, uma armadilha.
Concretamente, o fazer social está bastante decepcionante. Ou decepcionantes
têm sido os seus resultados:
!
!
!
!
1 bilhão de mulheres e homens estão desempregados ou subempregados;
30 milhões, anualmente, morrem de fome e 800 milhões são
subalimentados em um mundo cuja produção de alimentos de base
representa mais do que 110% das necessidades;
os 20% mais ricos têm um rendimento 82 vezes maior que o dos 20%
mais pobres, quando em 1960 era já o correspondente a escandalosas 30
vezes;
dos 6 bilhões de pessoas humanas que habitam o planeta, apenas 500
milhões vivem comodamente, enquanto 5 bilhões e 500 mil permanecem
em necessidade.
É preciso reconhecer que os comportamentos geradores desses
resultados foram cultivados em uma prolongada estratégia de fragmentação
do convívio social, em uma encadeada elaboração conceitual dissociada da
prática, em uma recorrente formulação abstrata de valores sem referência ao
outro. Esses são os produtos de um fazer não-social, ainda que apresentado
como o mais social dos fazeres.
Talvez, de tanto tê-la visto citada em frases isoladas (destino de quem
persegue, na profundidade do conteúdo, a boniteza da forma), tenhamos
esquecido a mensagem fundamental de Paulo Freire na Pedagogia do oprimido:
não há convívio, não há diálogo, não há fazer social e sequer fazer humano na
relação de dominação. Seja ela física, econômica, política ou cultural, intelectual
ou afetiva, a dominação exclui a interpessoalidade, instituinte do social como
espaço de coexistência coletiva, condição de existência individual.
E, na expulsão do fazer social como fazer humano, há o vazio
pedagógico. Não há hipótese de ocorrer educação fora da prática social.
Pode-se até ter um prédio arquiteturalmente diferenciado, em cuja fachada se
pespegou uma placa dizendo “escola”. Pode-se até ver adultos, jovens, crianças,
aos quais se dá nomes de professores e alunos. Pode-se também observar
cadernos e livros, quadros-de-giz e apagadores, televisões e vídeos,
computadores de última geração, “interneteados” 24 horas por dia, 7 dias por
semana, 4 semanas e meia por mês, 12 meses por ano, aos quais denominamos
material didático-pedagógico. Não havendo prática social, não há educação.
Sobra (quem sabe?) um mais ou menos rápido e eficiente adestramento.
A questão que nos desafia é a de construir o fazer social do fazer pedagógico
em um momento particularmente crítico, em que, em escala mundial, se impõe
o fazer não-social como critério e norma de qualidade, de produtividade e de
êxito. Nunca se advertiu tanto a todos sobre o perigo da utopia.
56
O educador de profissionais
E os tecnicistas e tecnocratas de todos os matizes chamam de u-topia
(não-lugar) o projeto de humanização. Esquecem-se de que a humanização é o
processo que se desenvolve em definidíssimo lugar: esta mulher (e são bilhões!)
e este homem (e são bilhões!) que querem ser mais – mesmo que tenham que
pagar o preço da exclusão do fechadíssimo círculo dos que só querem ter
mais, com o sacrifício de sua própria humanidade.
Para este conversar sobre o fazer social do fazer pedagógico, a Associação
Brasileira de Tecnologia Educacional quis trazer diversidade de pontos de vista,
capazes de manifestar a possibilidade pedagógica do diálogo na saudável
multiplicidade de nossas respeitosas divergências.
Se nos queixamos da arrogância com que se impõe a ideologia do fazer
não-social, é porque esta se revela no totalitarismo da simplificação do mundo,
da valorização da aparência, do desprezo pelas idéias, ideais e sentimentos.
Sobretudo, pela busca sôfrega do pensamento único, urdido em forjados
consensos, meros disfarces a encobrir as mais profundas cisões. Não de idéias,
nem de sentimentos, nem de éticos valores. Cisões que se concretizam em
rumorosas lutas pelo ganho material, totalmente descompromissado com a
produção da existência humana de todos os seres humanos.
Acreditamos, porém, que este Seminário – colocando-nos virtualmente
presentes, cada um de nós nos outros grupos geograficamente distantes –
apresenta um espaço aberto para a discussão de novas formas de manifestar o
fazer social do fazer pedagógico.
Este é um convite para construir um futuro diferente do tormento deste
presente, no qual se globaliza, flexibiliza, compete e qualifica não para promover
e incluir, mas tão somente para excluir.
Apropriando-nos dessas novas mediações, podemos nos aproximar
para construir novos fazeres sociais dos fazeres pedagógicos, cuja qualidade se expresse
no projeto de inclusão social.
Um projeto que nasce e cresce como enfrentamento de tudo o que vem
sendo feito pelo fazer não-social do fazer não-pedagógico, cujo objetivo é o
desenvolvimento do capital humano para servir às demandas do mercado.
Um projeto nascido e criado nos trabalhos dos que vêm refletindo e
praticando a educação e que vêm constituindo um importante acervo de
patrimônio crítico sobre o fazer social do fazer pedagógico.
Um trabalho que tem sido também desta Associação que reúne
educadores – que fazem, refletem e comunicam – para dizer, anualmente, que
o Projeto Pedagógico da Sociedade Brasileira
! não é um projeto de dependência, mas de soberania,
!
não é um projeto de exclusão, mas de inclusão social,
Teoria do capital humano –
parte do pressuposto de que
todas as pessoas são capitalistas,
havendo apenas uma diferença
de grau e não de natureza entre
elas. Algumas possuem capital
material, outras, capital humano
(homem + educação) e outras,
ainda, tanto um quanto outro.
Segundo essa teoria, a
educação é entendida como um
investimento, como o que se faz
em instalações físicas, máquinas,
matéria-prima, sendo, portanto,
produtora de capacidade de
trabalho. Leia a respeito no
Módulo 5
5.
57
4
Educação/Trabalho/Profissão
!
!
Visite o site:
http://www.intelecto.net/abt/
58
não é um projeto de atendimento ao mercado, mas de construção da
nação,
não é um projeto de desenvolvimento de capital humano, mas de
desenvolvimento integral de mulheres e homens livres e sujeitos de direitos.
Estes são os critérios de avaliação que, com rigor e exigência, os
educadores brasileiros desejam ver aplicados aos investimentos do fundo
público e ao seu próprio trabalho como instituidores desta nação, através de
seu compromisso com um verdadeiro fazer pedagógico, porque verdadeiro
fazer social (Lobo Neto, 1999).
O educador de profissionais
Síntese
Com o objetivo de identificar o trabalho como princípio educativo, como elemento essencial
da manifestação humana de expressão pessoal e coletiva, assim como de transformação do mundo, tratamos,
neste módulo, de oferecer elementos de reflexão sempre referidos à prática.
1 – Inicialmente, nos detivemos na concepção de trabalho e de sua organização através dos tempos,
chegando até às questões que se apresentam hoje relativas à sua centralidade como categoria de análise ou
como fundamento da vida social. Identificamos a dificuldade de definir com clareza o trabalho e a necessidade
de relacioná-lo à ação.
Entre as constatações no processo histórico, convém mencionar as seguintes: a dupla e contraditória
significação do trabalho como escravidão e liberdade, como estranhamento e realização pessoal; a antiga
distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual e sua complexificação em diferentes tempos e espaços; a
dignificação do trabalho como elemento libertador, paralelamente à sua desvalorização como mercadoria
obediente aos ditames do mercado.
Contudo, é na concepção de Marx que as formas contraditórias de manifestação do trabalho vão
encontrar sua superação na afirmação mesma de que o trabalho é ao mesmo tempo o homem perdido de si mesmo
e o homem intervindo na natureza para humanizá-la e humanizar-se no desenvolvimento omnilateral.
A organização do trabalho significou uma repercussão na organização social e o “privilegiamento” e
hierarquização de profissões e áreas profissionais. A lógica das tarefas a serem cumpridas vem se manifestando
como critério de estabelecimento de competências, quando na verdade é possível e desejável que estas devam
obedecer à lógica dos objetivos humanos e sociais da produção de bens e serviços.
2 – Propusemos, então, uma análise do trabalho como princípio de cidadania e de educação, partindo
de considerações tanto relacionadas à educação em geral quanto referidas mais especificamente à educação
técnico-profissional, procurando estabelecer, através de reflexões críticas, relações entre as propostas
governamentais e da sociedade civil.
Essas reflexões nos levaram a constatar uma tendenciosa submissão da educação aos ditames de um
mercado que coloca acima de tudo as exigências de empregabilidade e capacidade empreendedora. Passam,
então, a aparecer nas propostas educacionais uma terminologia econômica e uma terminologia técnica, de
significados discutíveis.
3 – Em seguida, mantendo uma linha de coerente envolvimento com a prática, discutimos as linhas
gerais do perfil do professor de educação profissional, desenvolvendo análise comparativa de suas competências
e buscando um “espelhamento” no profissional de enfermagem.
Foi desenvolvida uma reflexão sobre a complexidade da prática pedagógica e a necessidade de exercitar
a docência em uma relação de cooperação com o estudante.
Com base nessa reflexão, passamos a analisar criticamente o Parecer nº 16/99, relativo à educação profissional
técnica, naquilo que diz respeito ao perfil do professor de futuros profissionais. No parecer, existem conceitos
bastante duvidosos sobre política de formação de trabalhadores, como “capital humano” a serviço das demandas
mercadológicas, mas também se encontram competências docentes bastante instigantes, como:
! conhecimento das filosofias e políticas da educação profissional;
59
4
!
!
!
!
!
Educação/Trabalho/Profissão
conhecimento e aplicação de diferentes formas de desenvolver a aprendizagem dos alunos em uma perspectiva
de autonomia, criatividade, consciência crítica e ética;
flexibilidade com relação às mudanças, com a incorporação de inovações no campo de saber já conhecido;
iniciativa para buscar o autodesenvolvimento, tendo em vista o aprimoramento do trabalho;
ousadia para questionar e propor ações;
capacidade de monitorar desempenhos e buscar resultados; capacidade de trabalhar em equipes
interdisciplinares.
Complementamos a análise do educador de profissionais trazendo à reflexão:
a) a relação trabalho–educação–profissão, privilegiando como enfoque sistematizador a concepção de práxis,
como a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para
poderem alterá-la, transformando-se a si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais conseqüente, precisa da
reflexão, do autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e
desacertos, cotejando-os com a prática (Konder, 1992, p.115);
b) o enfrentamento da realidade a ser desvendada pelo professor/mediador, com a superação dos entendimentos
do senso comum e da ideologia – o primeiro, um julgamento sem qualquer reflexão, comumente sentido por todo um
povo, toda uma nação, ou por todo o gênero humano (Vico, apud Abbagnano, 1970, p.841); a segunda, a transformação
das idéias da classe dominante em idéias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no plano
material também domine no plano espiritual (Chauí, 1984, p.93) – pelo pensamento e análise críticos.
60
O educador de profissionais
Atividade de Avaliação do Módulo
Para que seu tutor possa continuar a acompanhá-lo em sua formação neste curso (educação só
acontece quando aquele que se educa realiza sua própria transformação), ao término deste módulo você
deverá realizar a atividade de avaliação.
Conheça as três proposições abaixo, escolha aquela (apenas uma) em que você se sente mais à vontade
para demonstrar o avanço de suas reflexões e ação, desenvolva a atividade e, finalmente, envie-a ao tutor.
1 – O olhar sobre o trabalho e a produção da existência nos aproximou da teoria da formação e da teoria da educação
porque as formas como nos percebemos a nós mesmos como sujeitos de direito ao saber, à cultura, à dignidade estão estreitamente
vinculados às formas de viver, de produzir, de trabalhar, de comunicar-nos. As formas de conhecer, de aprender o conhecimento, tão
centrais na pedagogia escolar, não são uma mera projeção das faculdades intelectuais separadas do mundo exterior. Nossos alunos
não são espírito, inteligência, consciência que aprendem ou não isolados dos outros seres humanos, da condição corpórea e biológica, da
produção material da existência. Prestar atenção a esse tecido social em que os indivíduos se formam ou deformam nos leva a uma
visão rica e mais integrada do ser humano, de sua formação e da educação escolar. Enriquece a teoria pedagógica porque recuperamos
matrizes que são constitutivas (Arroyo, 1999, p.145).
Em um pequeno texto (de duas a quatro páginas), utilizando as reflexões realizadas durante o estudo
deste módulo e sua experiência e vivência como profissional da enfermagem e sujeito em processos educativos,
comente o trecho acima, abordando, entre outros, os seguintes aspectos:
a) discussão do trabalho em suas diferentes dimensões;
b) caracterização do trabalho como princípio educativo e contextualização da relação trabalho–educação na
sociedade.
2 – Tendo presente sua vivência profissional e seu aprofundamento de análise sobre o trabalho docente
neste módulo, redija um pequeno texto (de duas a quatro páginas), contemplando os seguintes tópicos:
a) breve caracterização do trabalho docente como práxis transformadora;
b) indicação de alguns aspectos (ao menos três) que reflitam, na prática do enfermeiro educador de profissionais,
a seguinte competência proposta para os professores de educação básica: Orientar suas escolhas e decisões
metodológicas e didáticas por valores democráticos (CNE, Parecer 09/01).
3 – Entreviste alguns alunos (no mínimo, cinco, e no máximo, dez) de um curso de auxiliar de enfermagem,
colhendo suas percepções sobre a seguinte competência que, entre outras, deverão adquirir em sua formação
para exercer ações na promoção da saúde: capacidade de realizar ações educativas para o usuário e
grupos populacionais.
Escreva, depois, um pequeno relatório (de duas e quatro páginas):
a) registrando as percepções colhidas nas entrevistas; e
b) indicando linhas de ação pedagógica a serem adotadas por você, com base no diagnóstico resultante da
análise dessas percepções.
Observação importante: para a realização da atividade de avaliação que você escolher entre as três
propostas, recorra, como importante fonte de consulta, ao seu Diário de Estudo. Resgate as idéias que você foi
registrando nas atividades que lhe foram sugeridas; retome as reflexões feitas durante o transcurso de seu
estudo neste módulo e em módulos anteriores.
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Educação/Trabalho/Profissão
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