ASPECTOS ÉTICOS NA PESQUISA EM ANIMAIS Andy Petroianu * RESUMO Nos últimos trinta anos, o comportamento social em relação aos animais modificouse consideravelmente. As mudanças decorrentes desse fenômeno refletiram-se como críticas ao uso de animais em pesquisas e no ensino. O controle sobre tais experimentos induziu à formulação de normas legais voltadas à experimentação animal em ciências biomédicas. O autor comenta alguns temas éticos, legais, sociais e científicos controversos sobre o emprego de animais em trabalhos científicos e na educação médica. § Reflexões humanísticas § Determinações legais § Repercussões sociais § Ponderações sobre o ensino § Escolha do modelo animal § Limitações às pesquisas em animais § Considerações finais § Referências bibliográficas REFLEXÕES HUMANÍSTICAS Na cadeia alimentar, os animais superiores, em menor número, devem procurar, para se nutrir, os menos desenvolvidos, que geralmente são mais abundantes, mantendo assim o equilíbrio natural. O homem, em sua evolução, passou a utilizar os animais não somente como alimento, mas também para aumentar o seu conforto, transformando-os em agasalhos e empregando-os como auxiliares em seu trabalho. A sua superioridade intelectual e consequente facilidade em dominá-los fez com que o homem aproveitasse os animais com objetivos menos básicos, tais como cerimônias religiosas, atividades esportivas e de lazer, sem se importar com o sofrimento imposto a eles . As menções de ética na utilização de animais para as mais diversas finalidades são muito vagas no decorrer da história. A Bíblia, tanto judaica quanto cristã e muçulmana, ao estimular o sacrifício de animais, impõe que esse ato seja feito somente por pessoas escolhidas, utilizando a forma mais rápida e menos dolorosa. Outras religiões também seguem esses preceitos, incumbindo os sacerdotes desse procedimento. Tal atitude mostra que havia a consciência do Mal, ao se matar sem ser para sobreviver, pois esse sacrifício era proibido ao povo, para não estimular instintos agressivos, naturais no ser humano. O incômodo de utilizar animais nas mais diferentes atividades humanas obrigou a uma postura moral explícita. Dentro da religião cristã, no século IV, Santo Agostinho preconizou o livre desejo, de acordo com a consciência de cada homem. Na mesma época, São Crisóstomo ensinou que os animais deveriam ser tratados com gentileza, por terem a mesma origem que nós. Por outro lado, São Tomás de Aquino (século XIII) afirmou que a lei moral era conferida pela razão humana, excluindo assim os direitos dos animais, por não terem alma. Dessa forma, segundo o teólogo Pe. Ritchie, os animais poderiam ser igualados à madeira e às pedras, estando à mercê dos homens para os mais diversos abusos, como se verificou nos séculos seguintes. Os filósofos, em geral, abstiveram-se de fazer considerações sobre a relação entre homem e animal. Descartes, no século XVII, considerava que os animais eram máquinas com tropismos para o desejar e o evitar. Já no século XVIII, Kant propôs o "princípio de autonomia", pelo qual o homem teria direito à posse universal, agindo com base em seus próprios valores. Portanto, como os animais não possuem valores, perderiam a liberdade individual e estariam à disposição do homem. Esse princípio foi reforçado por Hegel que, no início do século seguinte, escreveu que a ética é uma consequência da participação humana autoconsciente, não se aplicando aos animais já que estes não têm consciência. Somente em nosso século, os pensadores voltaram-se mais aos direitos dos animais. Assim, Schweitzer, em sua reverência à vida, cita: "eu sou uma vida que deseja viver, no meio de vidas que desejam viver". Finalmente, para não estender muito este tópico, é importante lembrar as palavras de Bentham: "os animais não podem raciocinar nem falar, mas podem sofrer". DETERMINAÇÕES LEGAIS A primeira manifestação social que tentou doutrinar as pesquisas que provocavam dor em animais vertebrados denominou-se Cruelty to Animals Act, redigida em Londres, em 1876, um ano após a anestesia geral ter sido introduzida como parte da atividade médica. Os idealizadores desse documento tiveram o objetivo de autorizar o Governo a licenciar cientistas, a regularizar os experimentos e a inspecionar as instituições de pesquisa. Os tópicos principais desse ato são: 1 - Os experimentos devem visar a novas descobertas ou conhecimentos de fisiologia e ser úteis para salvar ou prolongar a vida e aliviar sofrimentos. 2 - Experimentos devem ser feitos por pessoas licenciadas e registradas. 3 - Anestésicos devem ser usados para prevenir a dor. 4 - Se o animal vier a sofrer após o experimento, deve ser morto antes do fim da anestesia. 5 - O experimento não deve servir como ilustração de aula. 6 - Experimentos com dor não devem ser exibidos ao público em geral. 7 - Os experimentos não devem servir para se adquirir adestramento manual. 8 - Experiências em cães, gatos e cavalos devem ser proibidas. A falta de receptividade pela comunidade científica e o desinteresse governamental, aliados ao despreparo social da época e extremismo dos parágrafos do documento resultaram em seu insucesso. O mesmo ocorreu com as declarações seguintes: Protection of Animals Acts (Escócia, 1911-1912 e Londres 1954, 1964). Pode-se considerar que a primeira legislação contemporânea sobre a Ética na Medicina, com boa aceitação internacional, foi o Código de Nüremberg (1949). O item 3 desse documento dispõe que "...o experimento com humanos deve ser baseado em resultados de experimentação com animais...". Essa norma foi incorporada pela maioria dos países e reforçou uma atitude que já existia na prática desde Hunter, Cuvier e Claude Bernard, mais de um século antes desse Código. Em 1959, Russell e Burch publicaram o livro The principles of humane experimental technique, no qual afirmaram que a boa pesquisa com animais deve respeitar três Rs: replacement, reduction e refinement. A substituição significava que, em vez de animais superiores, dever-se-iam utilizar formas de vida filogeneticamente mais primitivas ou experimentos simulados, com base em avanços tecnológicos. A redução sugeria que as pesquisas fossem realizadas com o menor número de animais e de procedimentos, que permitisse alcançar os objetivos do trabalho. O refinamento significava para esses autores a capacidade que os pesquisadores deveriam ter para improvisar métodos que reduzissem o sofrimento dos animais, oferecendo-lhes o maior conforto possível. Os três Rs repercutiram tão favoravelmente que foram incorporados de imediato pela Royal Commission of Ethics do Reino Unido e adotados pelo governo dos Estados Unidos para a liberação de verbas aos projetos de pesquisa em áreas biomédicas. Um dos mais importantes códigos de ética médica é a Declaração de Helsinque. Esse documento foi criado em um simpósio do qual participaram muitos países, na capital da Finlândia, em 1964. Revisões desse ato foram realizadas em 1975, 1983 e 1989, em novos encontros internacionais. Entre as suas sugestões, destaca-se no Artigo I, Item 1: "A pesquisa biomédica envolvendo seres humanos deve estar adaptada aos princípios científicos e basear-se em experiências de laboratório e com animais, adequadamente desenvolvidas". Essa norma é uma nítida adaptação do Código de Nüremberg. Outro documento internacional que legisla a pesquisa em animais constitui os "Princípios Básicos do Código Internacional", redigido no Reino Unido, 1985. Sobressai na parte da "Ética para Animais de Laboratório": I - Experimento com animais é necessário ao desenvolvimento científico. II - Substituir os animais, quando possível, por modelos alternativos. III - Todos os experimentos devem ser relevantes. IV - Utilizar o mínimo de animais necessário para se obterem resultados válidos. V - Preferir as espécies filogeneticamente menos desenvolvidas. VI - Oferecer aos animais conforto adequado e aliviar a sua dor. IX - Realizar sob anestesia os procedimentos que causam dor. X - Matar o animal que vier a sofrer em decorrência do experimento. XI - Não ensinar em aula procedimentos que provoquem dor. XIV - Os experimentos devem ser realizados ou supervisionados por pessoas preparadas cientificamente. XV - A instituição em que se realiza o experimento é responsável por ele. A legislação voltada às pesquisas com animais no Brasil segue as normas internacionais, encontradas em diversos regulamentos. A Lei Federal nº 6638 de 08/05/1979 estabelece que: - Todos os biotérios e centros de pesquisa devem ser registrados. - A vivissecção de animais somente pode ser realizada sob anestesia, em locais credenciados e sob supervisão especializada. - Os animais devem ser alojados em gaiolas apropriadas, com conforto e nutrição adequada e ser mantidos em observação por, pelo menos, 15 dias antes de iniciar-se a pesquisa. - É proibida a vivissecção em presença de menores de idade. O Ministério da Saúde, através do Conselho Nacional de Saúde estabeleceu na Resolução 1 de 15/07/1988, Decreto 93.933, de 01/1987, Capítulo II, Artigo 5, Item II, que: "A pesquisa em ser humano deve estar fundamentada na pesquisa experimental prévia, realizada em animais". Essa determinação existe na maioria dos códigos internacionais. O Código de Ética Médica, Resolução CFM 1246/88 estabeleceu no Capítulo VIII (Da Pesquisa em Farmacologia), Artigo 52: "Os estudos devem ser planejados de maneira a obter o máximo de informação, utilizando-se o menor número possível de animais e devendo ser utilizados igual número de machos e fêmeas. Estudos préclínicos devem ser realizados em três espécies de mamíferos, sendo, pelo menos uma, não roedor. Os animais devem pertencer a linhagens bem definidas, evitandose cepas com características genéticas especiais." Por último, o Colégio Brasileiro de Experimentação Animal determinou, em seus Princípios Éticos de Pesquisa, de 1988, além do que já foi apresentado em outros códigos, que: Artigo IV - Os animais selecionados para um experimento devem ser de espécie e qualidade apropriadas e apresentar boas condições de saúde, utilizando-se o número mínimo necessário para obtenção de resultados válidos. Avaliar a possibilidade de utilização de métodos alternativos. Artigo IX - Os investigadores e funcionários devem ter qualificação e experiência adequadas para exercer procedimentos em animais vivos. REPERCUSSÕES SOCIAIS A ascensão do homem sobre os animais é uma situação que perdura há milênios. A utilização de animais na alimentação é uma necessidade natural não questionada sob ponto de vista social. Mesmo as agremiações de defesa dos animais mais rigorosas pouco se interessam pelos métodos de confinamento ou pelas técnicas utilizadas para o abate. Há, entretanto, indivíduos que não se alimentam de carne de mamíferos, como uma forma de protesto contra o extermínio da vida. Por outro lado, essas pessoas comem aves, peixes e todos os vegetais, além de utilizarem objetos de madeira e de couro, todos resultantes da morte de seres vivos. Portanto, não há como questionar que a sobrevivência do homem e o seu conforto dependem diretamente da destruição de animais ou vegetais. A sociedade também aceita e até estimula a utilização de animais como meio de transporte e em vários esportes ou diversões, entre os quais se destacam a caça e pesca, touradas e contendas entre animais. Esses "esportes", absolutamente covardes e que levam os animais a grandes sofrimentos antes de serem mortos, são "ignorados" pela maioria das sociedades protetoras de animais que, no máximo, protesta de forma tímida e fugaz. Quando a lei proíbe algum tipo de caça ou pesca, não visa evitar o sofrimento ou a morte do animal, mas previne o extermínio da espécie. Tanto isso é verdade, que a maioria das proibições são temporárias. Também não há qualquer manifestação contra as religiões que utilizam animais em suas cerimônias, por se tratar de um tema "sagrado" ou tabu intocável. Todavia, são cada vez mais freqüentes os movimentos dos antiviviseccionistas contra os pesquisadores que utilizam animais em seus trabalhos. É difícil acreditar que essas pessoas estejam imbuídas apenas de ideais nobres ao defenderem os animais, quando há outros benefícios oriundos de suas agremiações. O poder dos líderes de tais associações pode levá-los a uma rápida e segura ascensão econômica, e política, à custa de uma massa de indivíduos que pouco refletem sobre a sua luta contra o progresso científico. O mais curioso é que os pesquisadores dos países mais desenvolvidos são os que mais sofrem com esse problema. Observa-se, na legislação voltada à pesquisa em áreas biomédicas, o absurdo de ser mais fácil realizar estudos com voluntários humanos do que com animais. Nos códigos de direito dos animais, com poder de lei, há artigos que podem comprometer qualquer pesquisador, independente de suas boas intenções ou importância de seu trabalho para a humanidade. Mesmo dentro da classe médica, os trabalhos com humanos são muito mais valorizados e é fácil perceber a segregação de médicos, enquanto pesquisadores em nível experimental, pelos seus colegas que lidam com atividade clínica. O desestímulo à pesquisa é mundial, pois, excluindo os empregados dos grandes laboratórios farmacêuticos, a maioria dos médicos-pesquisadores é mal remunerada, comparando-se com os honorários recebidos por atividade clínica. Os irrisórios recursos investidos na pesquisa em nosso país e que obrigam ao financiamento das investigações pelo próprio pesquisador são um outro capítulo, mas que deve ser lembrado, para destacar que o pesquisador é um verdadeiro idealista, cujo trabalho é o que mais contribui para o progresso da Medicina. É evidente, que em todos os campos de atividade humana, existem pessoas com desvios de caráter. Há também, entre os pesquisadores, alguns despreparados que exercem um trabalho imoral e que atende apenas a instintos cruéis. Tais indivíduos não devem ser considerados pesquisadores e constituem uma extrema minoria, que não pode, de forma alguma, ser utilizada para manchar toda uma classe de profissionais íntegros e indispensáveis à sociedade. Não há dúvida de que se deve ter respeito pela vida e pelo sofrimento dos animais, reduzindo-lhes a dor, sempre que for possível, mas não se pode esquecer que o objetivo maior da pesquisa biomédica é aliviar o homem de seus males. Modelos alternativos, como os experimentos com órgão isolados, seres inferiores e os ligados à tecnologia são muito limitados e raramente substituem os animais apropriados a cada trabalho científico. Para fortalecer a sua imagem diante dos colegas e da sociedade, o pesquisador deve submeter-se aos códigos legais. Lamentavelmente, a maioria dos legisladores não têm qualquer envolvimento com pesquisa científica e esse despreparo resulta na formulação de leis dificilmente obedecidas. Para evitar tais distorções, têm sido criadas comissões de ética que reúnem pessoas de diferentes ramos profissionais e com pontos de vista variados, para legislarem com menos arbítrio. Todavia, apesar de sempre convidados, os pesquisadores dispõem de pouco tempo para participar dos longos debates, que ordinariamente ocorrem em tais comissões. Por outro lado, os antiviviseccionistas são os que mais têm tempo para defender os seus interesses e se posicionarem, de princípio, contra a atividade científica. O primeiro país a criar comissões de ética para pesquisa com animais foi a Suécia, em 1979. Os Estados Unidos adotaram essa prática em 1984, enquanto o Brasil somente passou a constituir tais grupos nesta década. É importante que dessas comissões façam parte pessoas capazes de avaliar a natureza e as conseqüências que determinado trabalho pode trazer. Os membros das comissões de ética e os legisladores têm a difícil tarefa de conciliar os aspectos éticos com os interesses científicos, econômicos, comerciais e legais. Observa-se, portanto, que existe ainda um longo caminho a percorrer antes de se atingir uma perfeita harmonia entre os pesquisadores e a sociedade. PONDERAÇÕES SOBRE O ENSINO Além de ser um elemento fundamental e indispensável ao progresso da Medicina, a vivissecção é também de extrema utilidade na educação médica. O ensino nos cursos de Biologia, Farmácia e Veterinária também são inconcebíveis sem as aulas práticas em animais. Até o final da década de oitenta, as disciplinas de Fisiologia, Farmacologia e Técnica Operatória eram amplamente ilustradas com experimentos em diferentes animais. Tais aulas não somente tornavam reais as explicações teóricas, muitas vezes difíceis de serem compreendidas, mas também ofereciam oportunidade de adestramento manual e despertavam nos alunos interesse pela pesquisa. Nos Estados Unidos, foram entrevistados médicos formados nos últimos 20 anos. Desses, 90 % tiveram experimentos em animais durante o curso de graduação, sendo que 91 % deles atribuíram grande valor a tais aulas e 93 % insistiram na necessidade de sua continuação no curso médico. Em relação à disciplina de Ética, ainda nos Estados Unidos, 93 % dos cursos de Medicina a oferecem a seus alunos. A sua duração varia entre dois e três meses, com uma a duas aulas semanais. Desses cursos, 71 % abordam a ética aplicada à pesquisa, com 74 % dos alunos assistindo a tais aulas. Não há dúvida quanto ao valor da disciplina de Ética para despertar nos alunos a consciência sobre o sofrimento do animal, apesar de sua necessidade para o ensino e pesquisa. Outro aspecto a ser abordado por essa disciplina é a importância do animal no contexto social, dando ênfase também aos aspectos legais. Embora haja quase uma unanimidade entre os médicos sobre a importância dos cursos de Medicina com aulas práticas em animais, a forte influência da sociedade reduziu essas aulas consideravelmente. Assim, nos Estados Unidos, atualmente, 53% dos cursos de Fisiologia, 25 % dos de Farmacologia e 19 % dos de Cirurgia ainda "ousam" ensinar em animais vivos. Em contraposição, as escolas de Medicina têm aprendido cada vez mais a ministrar aulas com modelos alternativos, como filmes e outros recursos tecnológicos. Essa situação é intolerável, pois, da mesma forma que não há como ensinar a escrever ou a dirigir automóvel através de filmes e simuladores, também é tosco o curso de Medicina sem os experimentos em animais vivos. Os eventuais abusos que possam ocorrer durante essas aulas práticas são facilmente controlados pelos professores com o auxílio da maioria dos alunos, que possuem um alto poder de crítica. Espera-se que não passe pela cabeça dos antiviviseccionistas a substituição dos animais por seres humanos, mostrando-se aspectos de fisiologia e farmacologia em doentes, ou ensinando-se técnica operatória durante procedimentos cirúrgicos em nossos semelhantes. É interessante lembrar a existência de alguns docentes universitários que, para negligenciar suas obrigações com os alunos, fazem discursos tendenciosos sobre as aulas práticas. Urge que as universidades de nosso país atuem com rigor junto aos órgãos legisladores e jurídicos para prevenir as distorções já existentes em outros países, prejudicando ainda mais o nosso ensino nas áreas biomédicas. ESCOLHA DO MODELO ANIMAL Ao se planejar qualquer prática em animais, seja para ensino ou para pesquisa, deve-se ter claro quais os objetivos do experimento. Os animais vivos somente devem ser utilizados nos casos em que forem indispensáveis. Os experimentos que não forem prejudicados por modelos in vitro ou por outras alternativas devem ser conduzidos desta forma. Antes de se escolher o animal, é preciso buscar na literatura subsídios para a opção mais adequada. Havendo mais de uma alternativa, utilizar os animais menos desenvolvidos filogeneticamente e que puderem ser obtidos em número suficiente, com maior facilidade. Esses princípios são responsáveis por serem os roedores, em especial os ratos, os animais empregados rotineiramente na maioria dos trabalhos científicos. Nos Estados Unidos, 88 % das práticas são realizadas com ratos, camundongos, cobaias e coelhos, enquanto cães são utilizados em 0,35 %, porcos, em 0,28 %, gatos, em 0,14 % e macacos, em 0,03 % das pesquisas e/ou aulas. Outros animais fazem parte de pesquisas especiais ou estão no domínio da Veterinária. Na Inglaterra, a proporção aproximada do uso de animais em pesquisa e ensino é: camundongos (65 %), ratos (22 %), coelhos (6 %), cobaias (4 %), cães (2 %), gatos (1 %) e macacos (< 0,1 %). Outros animais não foram registrados. O pesquisador deve conhecer bem as particularidades dos animais com os quais trabalha. Dados biológicos, como o tempo de vida, fases do desenvolvimento e características reprodutivas são parâmetros fundamentais a serem controlados. As necessidades nutricionais e o alojamento mais adequado, bem como o comportamento do animal frente aos agentes ambientais são outras particularidades prioritárias a serem dominadas pelo pesquisador, para evitar desconforto ao animal ou interferir no trabalho a ser realizado. Os animais apresentam peculiaridades fisiológicas características a cada espécie. Tomando como exemplo a temperatura corpórea, na maioria dos mamíferos ela se encontra entre 38 e 39oC. Já a freqüência cardíaca varia desde 70 batimentos por minuto, no porco, e 80, no cão, até acima de 400, no rato e camundongo, passando pelo gato, com 120, e coelho, com 200 batimentos por minuto. O abdome dos mamíferos é, no geral, parecido com o humano, mas o fígado apresenta morfologia lobular diferente e o baço é proporcionalmente maior e mais móvel do que o humano, na maioria das espécies. No rato, o estômago é dividido em duas partes (pré-estômago e estômago), o apêndice cecal é muito maior do que o ceco e a vesícula biliar é quase inexistente. Diante de tantas variações morfológicas, podem-se esperar que as diferenças fisiológicas sejam ainda mais complexas entre os animais e em relação ao homem. Contudo, a maioria das pesquisas realizadas com os animais adequados resultam em informações próximas das que podem ser esperadas no homem. Existem subsídios na literatura para a escolha do melhor modelo animal. Dessa forma, o camundongo se presta mais às práticas de choque, sepse, queimaduras, obesidade, megacólon e câncer. Como já foi mencionado, o rato é o animal mais utilizado nas práticas científicas, porém ele é mais apropriado para trabalhos envolvendo choque, sepse, obesidade, peritonite, câncer, úlceras gástricas, operações intestinais, estudos do sistema mononuclear fagocitário, baço, cicatrização e transplantes de órgãos. O coelho é empregado para estudos sobre a pele, pesquisas imunológicas, choque, inflamação, colites ("Crohn"), operações vasculares e transplantes. O cão é outro animal muito útil à pesquisa e ao ensino de técnica operatória; as investigações mais comuns nesse animal são choque, má absorção, megas, colites, pancreatites, operações hepáticas e esplênicas, além de transplantes. Os outros animais não fazem parte da rotina de pesquisa. Assim, os porcos são estudados em trabalhos com fígado, úlcera péptica e transplantes; os cavalos em hematologia; e os macacos, em investigações comportamentais e nas pesquisas mais sofisticadas, com vista a aplicações subsequentes no homem. Os sapos e pombos são mais úteis em aulas práticas básicas. LIMITAÇÕES ÀS PESQUISAS EM ANIMAIS Além das agremiações de antiviviseccionistas, já discutidas neste artigo, existem outros fatores que interferem nas pesquisas em animais. Os valores íntimos do pesquisador são, talvez, o maior obstáculo ao trabalho com animais. Qualquer ser humano que não tenha distúrbios de comportamento, sente uma grande dificuldade em provocar o sofrimento de um animal, por mais importante que seja o objetivo de seu trabalho. É necessário um penoso processo de supressão emocional em relação ao animal para que se possa realizar qualquer investigação. Essa situação torna-se ainda mais grave nos trabalhos de longa duração, em que é inevitável o envolvimento emocional do pesquisador com o animal. Se a pressão psicológica for insustentável, o pesquisador deverá afastar-se da investigação, porém divulgando as suas idéias, para que outras pessoas tenham a oportunidade de desenvolver o trabalho que possa resultar em uma contribuição científica importante. Um fato completamente imoral e inaceitável é o pesquisador, incapaz de realizar o trabalho, em decorrência de obstáculos individuais, obrigar seus subalternos a realizá-lo. A maior vantagem das pressões sociais sobre os pesquisadores foi a melhoria da alimentação e das condições de alojamento dos animais. Com vista também à proteção das pessoas envolvidas na pesquisa, tornou-se obrigatório vacinar os animais, tratá-los de eventuais doenças e assegurar a sua procedência. Em contrapartida, essas exigências oneraram substancialmente as investigações. Se for ponderado que a maioria dos recursos investidos em pesquisa são parcos e que os pesquisadores raramente são abastados, concebe-se o obstáculo que essa conjuntura traz à realização do trabalho. Nos Estados Unidos, por exemplo, cada cão custa, no mínimo, 30 dólares. Considerando o tipo de pesquisa realizada, sua duração, a alimentação e o ambiente a ser oferecido, o orçamento com cada animal pode alcançar várias centenas de dólares. Esse valor não inclui os demais gastos com a investigação. Em nosso país, ainda não se atingiu esse exagero, em contrapartida, o dinheiro investido aqui na pesquisa representa uma fração insignificante, comparando-se com a maioria dos outros países. Mesmo o objetivo do trabalho sendo importante, o pesquisador deve ser capaz de realizá-lo com o mínimo de animais necessário à obtenção das respostas às indagações que originaram a pesquisa. Como a vigilância à investigação científica no Brasil ainda é muito precária, uma forma de se controlar o abuso contra os animais é através das instituições de fomento às pesquisas e das revistas especializadas em divulgá-las. Em ambos os setores existem profissionais competentes e com profundo conhecimento científico que limitam o fornecimento de recursos ou impedem as publicações dos trabalhos de pesquisadores afoitos que julgam, de forma errada, que a investigação científica se mede pelo volume de sua amostragem. CONSIDERAÇÕES FINAIS O pesquisador, como homem de ciência, tem como objetivo maior a busca da verdade através dos fatos objetivos inerentes ao seu trabalho. A Ética é subjetiva e, entre seus preceitos, tenta estabelecer a relação entre o Bem e o Mal, portanto, ela jamais pode ser considerada científica. Aliás, a Ética é, em si, tão complexa, que é difícil enquadrá-la em qualquer dos ramos do saber, apesar de pertencer a toda atividade humana. Assim sendo, alcançar o equilíbrio entre a pesquisa científica e a Ética é muito difícil. A experimentação animal é um dos principais alicerces do progresso da Medicina. Sabe-se também que o progresso altera os códigos de ética e a sua interpretação, já que, por definição, as normas são subjetivas e arbitrárias. Diante desse fato, é preferível evitar-se qualquer extremismo, tanto por parte dos pesquisadores quanto daqueles que, por suas verdades transitórias, tentam alterar os caminhos do avanço científico. O progresso científico está longe de poder substituir os experimentos em animais por métodos alternativos. Por outro lado, não se devem ignorar os "direitos dos animais", que talvez não raciocinem e certamente não têm como se defender do homem, mas desejam viver sem sofrimento. A utilização dos animais nas investigações científicas deve ser vista sob três aspectos: científico, ético e legal. Se o pesquisador mantiver a sua atividade equilibrada nesse tripé, terá maiores chances de progredir sem comprometer o seu trabalho e o seu nome. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. AUGUSTINUS, A. - As confissões. São Paulo, Edameris, 1964. 2. BACHELARD, G. - O novo espírito científico. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968. 3. BALLS, M. - Replacement of animal procedures. Lab. Animals, 28: 193-211, 1994. 4. BELLENGER, C.R. - The ethics of using animals in biomedical research. Med. J. Aust., 158: 222-224, 1993. 5. BOWD, A.D. - Ethics and animal experimentation. Am. Psychol., 35: 224-225, 1980. 6. 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