Estaremos mais seguros com uma polícia mais moderna?
Rodrigo Lages e Silva
A internet é um meio que às vezes nos faz lamentar pela “alma humana” e às
vezes nos brinda com boas doses de humor e de sagacidade. Anda circulando por aí uma
foto do Robocopa. Uma paródia do clássico do cinema policial dos anos 90 - que tem
uma continuação recente filmada pelo brasileiro José Padilha - com a preparação das
polícias militares para garantir a “segurança” do megaevento de futebol. A foto traz um
policial da corporação carioca aparamentado com uma nova indumentária high tech que
lembra muito o personagem do cinema.
O fato curioso sobre essa imagem é que ela poderia servir muito bem para
ilustrar uma das palavras que vem rondando a proposta de reestruturação das polícias no
Brasil. Num certo sentido, fico surpreso que o debate sobre a PEC-51/ 2013, conhecida
como o da desmilitarização das polícias, seja também articulado com esse termo.
A noção de modernidade carrega consigo dois pressupostos basilares. Um
otimismo idealista, o qual estaria sendo gestado desde a filosofia socrática, segundo
Nietzsche em O nascimento da tragédia. E uma racionalidade ordenadora propriamente
iluminista e humanista-renascentista que coloca o homem como consciência superior
capaz de ordenar o mundo a sua imagem e semelhança, naquela velha lógica teísta e
idólatra que se faz rebater fractalmente sobre o humanismo e depois sobre o
cientificismo.
As modernizações sempre carregam consigo essa perspectiva otimista de que
estamos no caminho mais correto e que os eventuais desvios ou deslizes fazem parte do
processo. No fim tudo ficará em ordem. A ordem é tanto a cura como o remédio da
modernidade. Estamos mal, estamos doentes, estamos fracos? O diagnóstico: falta de
ordem. O remédio: ordenação.
É em nome da modernidade que muitas injustiças e opressões vêm-se tornando
aceitáveis. Os escravos chegaram ao Brasil colônia para abastecer o moderno sistema da
plantation que os europeus tinham desenvolvido na América Central e desejavam
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expandir para cá. Depois a mão-de-obra negra foi empregada nas modernas usinas de
cana-de-açúcar. E foi sob a inspiração da modernização do Estado que foram criadas as
polícias para capturar os escravos fujões, substituindo as antiquadas práticas do capitãodo-mato. A modernização das cidades, desde a reforma do Barão Haussmann em Paris
em meados do século XIX, da criação do metrô de Londres nessa mesma época,
passando pelas reformas de Pereira Passos no Rio de Janeiro no início do século
passado e, culminando na preparação das cidades brasileiras para a Copa do Mundo
vem expulsando pobres de zonas valorizadas e bem comunicadas da cidade e expandido
os bolsões de miséria periféricos, ou encimados nos morros, como nas favelas cariocas.
Tudo em nome da modernidade.
Em nome da modernidade foram travadas guerras, foram espalhadas epidemias,
foram dizimados indígenas, foram decapitadas cabeças, foram criadas as prisões e as
polícias para abastecê-las.
Por isso eu temo quando o remédio para as polícias se apresenta sob a alcunha
da modernidade.
Parece-me que há uma palavra muito mais potente e muito mais interessante e
que anda um pouco esquecida nesse debate sobre a reestruturação das polícias: a palavra
democracia. No maio espanhol em 2011, durante os acampamentos nas praças em
Madri e Barcelona, democracia era a palavra mais pronunciada. Democracia real,
reinventar a democracia, democracia nas ruas, etc.. No Brasil, desde junho de 2013, se
tem algo em que as mídias corporativas tiveram êxito, foi em converter a vitalidade das
ruas num senso comum maniqueísta, divido entre agressivos e desordeiros versus
pacíficos cidadãos de bem, fazendo desaparecer a palavra democracia dos enunciados.
A mídia moralizou a radicalidade democrática dos coletivos. Desqualificou, infantilizou
e, por fim, impingiu periculosidade às manifestações, fabricando o alvo das
intervenções policiais.
E se a polícia foi frouxa, é porque precisa se modernizar, em equipamentos e
técnicas: blindados, armas “não letais”, uniforme à prova de fogo e outras inovações. E
se a polícia se excedeu, podemos modernizá-la, na sua formação, nos seus processos, na
sua gestão: a polícia comunitária, a polícia cidadã, a polícia humanizada, etc. Sempre a
modernidade, a cura e o remédio.
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As manifestações de junho, num certo sentido, constituem uma insistência
trágica da nossa vida coletiva, solapando o otimismo modernizador. E colocaram na
mesa do cidadão de bem o paradoxo de que as políticas socais promovidas recentemente
por um governo de centro-esquerda apenas energizaram esse povo cujas políticas
sociais pretendiam manter de boca cheia e fechada. O sempre atual refrão titânico: “a
gente não quer só comida...”.
Mas a cura pela ordem não perdeu o prestígio e nesse momento tramitam três
projetos de lei - Garantia da Lei e da Ordem (PN 3.461/2013), Lei Antiterrorismo (PL
499/2014) e a Lei Geral da Copa (12.663/2012) - que em algum sentido buscam dar
acolhida legal para iniciativas punitivas por parte do Estado em relação às ações
coletivas. E num sentido totalmente oposto apresenta-se essa proposta da Emenda
Constitucional 51 que pretende reestruturar as polícias estaduais, integrando-as em um
regime civil de ciclo único, no qual a mesma polícia faça o policiamento ostensivo e o
investigativo.
Pela pungência dos temas que são mobilizados por esses embates legais e
discursivos, é muito importante que não deixemos esse tema ser polarizado nas velhas
categorias simplistas. Não se trata de defensores de bandidos e baderneiros (a acusação
reacionária que acompanha todo militante em Direitos Humanos) que querem
desarticular as polícias militares para abrir caminho ao caos e à violência. Também, de
outro lado, seria equivocado pensar que o projeto é contra os policiais ou que não
encontre apoio dentro dos próprios membros das polícias. A PEC 51 é um projeto que
busca dar resposta aos anseios de muitos policiais que são dedicados e compromissados
com sua atividade, embora a prevalência do apoio à lei esteja nas patentes mais baixas
em relação ao alto oficialato, conforme demonstrou a pesquisa de Luis Eduardo Soares,
Silvia Ramos e Marcos Rolim, em 2010.
A democratização da polícia é um processo que fala menos das consequências
imediatas e práticas em relação ao aumento ou a diminuição dos índices criminais e
mais sobre a relação entre sociedade e Estado que pretendemos ter.
Se o Estado de Polícia foi no período pré-revolução francesa a tentativa de
retomada dos soberanos da ordem pública abalada pela burguesia nascente, conforme o
Dicionário de Politica de Bobbio. Podemos dizer que a nossa época pós-revolucionária
é a de um Estado de Segurança, seguindo as pistas deixadas por Foucault em
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Segurança, Território e População. Em nome da segurança e da garantia de direitos
mínimos, sobretudo os de propriedade, alienamos os outros direitos (de privacidade, de
livre circulação, de livre associação) a um Estado que não se faz de rogado em reclamálos.
As maiores possiblidades que se anunciam pela PEC 51/2013 não são as de um
aumento da eficiência das polícias e nem as de um aumento da segurança. Num certo
sentido, penso que a aprovação dessa proposta pode ter um impacto no campo da
segurança pública similar ao efeito que a criação do SUS teve para o campo da saúde a
partir de 1989. E similar tanto em suas possiblidades quanto em seus obstáculos.
O movimento de criação do SUS, assim como essa proposta de desmilitarização
das polícias, foi fruto do empenho de diversos setores da sociedade, trabalhadores da
saúde, intelectuais, usuários, representantes políticos, etc. O SUS foi criado, não
simplesmente para modernizar a saúde, isto é, para construir mais hospitais, comprar
equipamentos mais avançados ou reformar postos de saúde. O SUS foi criado para
democratizar o acesso à saúde. E democratizar o acesso à saúde significou – e vem
significando – repensar o próprio conceito de saúde. Não se tratou apenas de incluir
todos os que não eram trabalhadores ou familiares, tal como no antigo INAMPS, o
movimento de criação do SUS é marcado pelo entendimento de que a saúde é um
processo muito mais amplo do que a mera ausência de doenças e de incapacidades
laborais, mas uma construção permanente e coletiva, a qual não pode ser medida
simplesmente pelo tempo de espera nas filas ou pelos índices epidemiológicos. O SUS
representa uma apropriação da questão da saúde pela democracia participativa.
É nesses termos que gostaria que pensássemos a PEC 51/2013. Seu texto vai
muito além da mera desmilitarização das polícias. É menos uma proposta de
modernização do que um projeto de democratização da segurança pública,
democratização, sobretudo, das polícias. Seu texto prevê em diversos momentos a
inclusão da sociedade civil nas instâncias de gestão e controle da segurança pública.
Para muitos, tenho certeza de que a proposição de uma polícia totalmente civil
remeta à ideia de que haverá mais desordem, mais corrupção e, consequentemente,
menos segurança. Para esses muitos, a mera comparação com os SUS pode reforçar a
ideia de uma má gestão de recursos ou de ineficiência. Mas é preciso entender que
quando se muda o modelo, devem-se mudar também os critérios de avaliação. A
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concorrência do setor privado, que é uma realidade da saúde e é também uma realidade
da segurança e que se intensifica cada vez mais, amparada pela mídia coorporativa, a
qual compartilha muitos interesses com estes setores, quando menos ao nível comercial,
vendendo anúncios, faz-nos crer numa impossibilidade de que a política pública retorne
resultados práticos e econômicos comparáveis à iniciativa privada.
Para estes que temem pelo crescimento da insegurança, quero dizer que essa
proposta tem mais a ver com justiça do que com segurança. E gostaria de contar um
episódio da minha vida escolar.
Na terceira série do primeiro grau (na época chamava-se assim), uma professora
estagiária realizou uma experiência com a turma. Decidimos experimentar a criação e
uma sociedade democrática na nossa aula. Então elegemos vereadores que criaram leis,
tais como a proibição de conversa durante a aula e do lançamento de bolinhas de papel
na direção do colega, entre outras. Foram eleitos também juízes para julgar os delitos e
um delegado para prender os infratores. A mim coube a última função. E foi trabalhosa.
Em menos de duas semanas a turma toda estava autuada e punida pelos diversos
castigos que nossos legisladores tinham aprovado. Chegou ao ponto de que eu tive de
autuar o próprio juiz (afinal eu não podia prevaricar), os vereadores, e, por fim, ser
autuado por um levante de criminosos que me flagraram também caindo em delito.
Durante muito tempo eu recordei esses episódios com a constatação reprovatória
de que fomos muito tolos ou ingênuos de ter criado, só porque nos tinha sido dado esse
poder, demasiadas leis que vieram em nosso prejuízo. A nossa sanha ordenadora e
moralizadora acabou por voltar-se contra a gente, mais ou menos como no conto O
Alienista de Machado de Assis.
A oportunidade de falar sobre o tema da reestruturação das polícias me fez ver
esse episódio com outros olhos. Hoje invejo aquela ingenuidade, hoje eu concordo cada
vez mais com a sabedoria popular que elogia o senso de solidariedade das crianças.
Porque pelo menos naquela turma de terceira série, fomos todos igualmente punidos,
negros e brancos, pobres e ricos.
Nós, adultos e civilizados, nós modernos, ao contrário, temos um sistema de
justiça que prende 1 branco a cada 11 negros. Que possui uma população carcerária
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majoritariamente pobre e com baixa escolaridade. Nós somos muito piores que aquela
minha turma de terceira série e também muito piores do que o alienista do conto.
Eu quero dizer, enfim, que eu não temo que a desmilitarização das polícias
diminua a minha segurança, porque eu não quero uma polícia que sirva para eu viver em
segurança com o suficiente para uma vida digna, enquanto estou rodeado de pessoas que
não têm o mínimo suficiente. Sobretudo, porque não aceito essa proposta que vem
sendo decantada desde os governos neoliberais e que se formula perversamente nas
sociais-democracias, qual seja, a de que os cidadãos abram mão de seus Direitos
Humanos fundamentais em troca de direitos sociais.
O que nós não percebemos quando vamos abrindo mão dos nossos direitos
fundamentais; direito de expressão política, direito de ir e vir, direito de contestar,
direito de não ser tratado por todas as instituições como um devedor em potencial,
quando nós abrimos mão de todos esses direitos que são, num certo sentido, também
direitos políticos, em troca da distribuição de renda, do crédito para a moradia, do
ensino gratuito, do acesso ao consumo e, sobretudo, da segurança pública, não
percebemos que nós estamos ampliando a lógica prisional para fora das penitenciárias e
generalizando a prisão como um modelo de relação Estado-sociedade.
Ao realizar essas trocas cotidianas, ao naturalizar a distribuição desigual de
direitos e de ocupação dos espaços públicos, vamos progressivamente aceitando tomar
parte na constituição do que eu gostaria de chamar da comunidade carcerária dos
indivíduos livres. Indivíduos que têm trabalho (porque o trabalho é educativo e o ócio
pernicioso), têm comida na mesa, têm abrigo para dormir, têm vestuário para cobrir sua
nudez e têm entretenimento para distrair suas ideias. Mas indivíduos que retribuem
essas proteções sociais ao Estado com uma bovina obediência.
Quando um sujeito muito pobre, famélico, comete um crime e pede para ser
preso para que ele possa fazer três refeições por dia, em geral, nós nos espantamos. No
limite, nós ainda cobramos dele que deveria trabalhar no presídio para pagar o custo da
sua “abrigagem”. E o que não nos damos conta é que ao nos afastarmos dessa vitalidade
das ruas, às vezes turbulentas, às vezes confusa, às vezes caótica, nós vamos fazendo
esse pacto silencioso e ingressando nas nossas detenções a céu aberto.
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Na comunidade carcerária dos homens livres em que vamos vivendo toda a
liberdade é uma semiliberdade, toda a prisão é domiciliar, todo o trabalho é
socioeducativo e toda educação é uma socioeducação.
O que gostaria de dizer para concluir é, que a rigor, o modelo militar das polícias
não é o da guerra, como muitos dizem, que a polícia militar precisa sempre de um
inimigo já que ela foi criada para guerra. O problema das polícias militares é que seu
estatuto disciplinar não lhes permite fugir do encargo que a contemporaneidade lhes
endereça. E o que esse encargo deseja e que tem sido aceito, porque o estatuto da
obediência hierárquica impede que seja rejeitado, é que o policial militar tenha cada vez
mais algo de um agente carcerário.
É por essas razões que eu sou favorável à desmilitarização das polícias.
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