O BAILARINO, DE BERNARDO SANTARENO:
SOBRE O MENINO QUE USAVA O XAILE DA AVÓ, DANÇAVA E SE
MAQUIAVA EM FRENTE AO ESPELHO DE UM LAR HETEROCENTRADO
Solange S. Santana (UFBA/IF-BA)1
RESUMO: Em sua dramaturgia, Bernardo Santareno traz à baila sujeitos desejantes que rasuram as
normas regulatórias de sexo/gênero/desejo (BUTLER, 2013), para problematizar os dispositivos
regulatórios por meio dos quais as personagens são formadas e levadas a “assumir” um sexo. Em razão
disso, no âmbito desse trabalho, busca-se problematizar, especificamente, questões de gênero e de
sexualidade, por meio dos atos performativos da personagem Paulo Ivanov, protagonista de O bailarino
(1957). Não obstante ser um sujeito que vive num lar heterocentrado (BENTO, 2008), Ivanov sempre se
viu na iminência de transgredir as normas de gênero, principalmente na infância, quando não estava
cônscio de todos os interditos e suas consequências. Este trabalho, pois, tem como suporte teórico os
Estudos de Gênero e os Estudos Culturais, além de aportes pós-estruturalistas.
PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia; corpo; gênero; identidade; diferença.
Antes de tudo, faz-se necessário enfatizar que, mesmo lidando com uma forte
censura literária, que postulava um vocabulário autorizado e a abordagem de temas que
fortalecessem os preceitos do Estado Novo, o dramaturgo português, Bernardo
Santareno (1920-1980), conseguiu produzir textos que trazem à tona sujeitos desejantes
que rasuram as normas regulatórias de sexo/gênero/desejo (BUTLER, 2013). Logo, se
problematiza os dispositivos regulatórios por meio dos quais as personagens são
constituídas e levadas a “assumir” um sexo.
Com isso, pode-se encontrar em textos dramáticos como O pecado de João
Agonia e em O bailarino, diversas formas de (auto) tortura àqueles que ousavam rasurar
os valores sociais e culturais, além trazer à baila as formas como os sujeitos percebem
sua homossexualidade ao mesmo tempo em que singularizam sua diferença; como seus
corpos são atravessados por discursos que os marcam devido ao vocabulário degradante,
à culpabilização do desejo, ao sentimento de medo, ao silêncio e segredos que
permeiam suas trajetórias. No âmbito desse trabalho, contudo, busca-se discutir
questões de gênero e de sexualidade, especificamente por meio dos atos performativos
da personagem Paulo Ivanov, protagonista de O bailarino (1957).
Logo, importa salientar que as ações dramáticas desenvolvem-se, conforme
esclarece o dramaturgo na apresentação do texto, em “uma grande capital”, com
expressiva atenção às cenas que têm como cenário a Companhia de Ballet Conde de
1
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Literatura e cultura (UFBA) e professora do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA). E-mail: [email protected]
Arcos. A história, por sua vez, se passa no final da década de 50. Entretanto, não
obstante o tempo parecer preciso, no decorrer desse texto santareniano, ele é
relativizado, diretamente pela invocação às recordações de Ivanov, que busca
reconstituir, diante de outras personagens, suas experiências na infância e na
adolescência, além de suas venturas após abandonar o Ballet. Nesse sentido, a atmosfera
sombria e o ambiente lúgubre que perpassam O bailarino já sinalizam para a trajetória
de uma identidade em crise e para o esforço em se abrir uma instância de enunciação
para o sujeito homossexual.
Levando em consideração que há uma pedagogia cultural, ou como prefere De
Lauretis, “tecnologias de gênero” – agenciadas pelas instituições sociais como a família,
a escola e a igreja –, que produzem as masculinidades dos homens, pode-se dizer que
Paulo Ivanov habita o reino da diferença desde a infância, porque, vivendo numa
sociedade tradicional e preconceituosa2, que associava a prática do ballet à
homossexualidade3, o menino insistia em ser dançarino. Nesse aspecto, importa lembrar
que a dança, como qualquer prática social, está fortemente implicada na construção
cultural do corpo. Assim, o sexo do menino, como “ideal regulatório” – porque produz
seu corpo antecipadamente, determinando sua constituição física, a identidade, o lugar
seu papel social –, é o primeiro empecilho à realização de seu sonho.
Em razão de as performances corporais se entrelaçarem às identidades de
gêneros preestabelecidas, e porque o círculo familiar associava a dança à feminilidade, o
filho de Clotilde e José Silva começou a praticar ballet somente aos 15 anos, ainda
contra a vontade de seu pai que, por não aceitar a atividade, tentava vetar a prática. No
caso da oposição paterna, Giuliano Andreoli enfatiza que “o obstáculo familiar aparece
frequentemente atrelado a essa associação entre dança e homossexualidade, num sentido
negativo, ou seja, dentro de um registro simbólico de heteronormatividade e
homofobia” (ANDREOLI, 2010, p. 86). No entanto, após a insistência e apoio de
Clotilde, a família supera o preconceito, permitindo que Ivanov alcançasse o sucesso
dos grandes bailarinos aos 20 anos de idade.
2
Entende-se preconceito como “o conjunto de crenças, atitudes e comportamentos que consiste em
atribuir a qualquer membro de determinado grupo humano uma característica negativa, pelo simples fato
de pertencer àquele grupo” (MEZAN, 1998, p. 226).
3
De acordo com Vargas, inicialmente, o ballet clássico foi considerado como um estilo de dança
masculino, praticado nas cortes como forma de entretenimento para os reis franceses. Mais tarde, a dança
foi levada para a toda a Europa e, logo em seguida, ultrapassou os limites dos reinos, sendo oferecido para
o público como forma de espetáculo. Em consequência, o primeiro espetáculo realizado apenas por
bailarinas mulheres ocorreu em 1681, chamado “Triomphe de L’Amour”. Ainda assim, os bailarinos
carreguem o estigma de homossexuais e sofrem constantemente com preconceitos da sociedade
(VARGAS, 2007).
Considerado a grande promessa do Ballet Conde de Arcos, a história desse
jovem se entrelaça ainda com as de Saul e Sónia, importantes bailarinos com os quais
mantinha uma relação conflituosa no que tange aos seus desejos sexuais e amorosos.
Antes, contudo, no 1º ato, após a apresentação de O Espectro da Rosa, de Weber, em
entrevista concedida ao repórter Adriano de Mascarenhas, Ivanov declara a si mesmo
como objeto de conhecimento, construindo uma imagem de si a partir de sua infância.
Com isso, ele nos permitirá compreender que o cerne de sua angústia não se encontrava
apenas no triângulo amoroso, uma vez que sua história já era permeada, desde a
infância, por conflitos e medos que foram camuflados até então. Por isso, no que tange
ao processo de definição de uma posição de sujeito, também no caso de Paulo Ivanov, é
possível falar do sujeito como processo, uma vez que lidamos com sujeitos complexos e
múltiplos (BRAIDOTTI, 2004), que vivem o questionamento corporal da identidade e
do lugar que ocupam na sociedade (BUTLER, 2012), devido a não aceitação de si e ao
medo de ser rechaçado.
Nesse sentido, sua mãe, ainda que tenha o incentivado a dançar, promove uma
relação cheia de conflitos e mágoa, principalmente porque, depois de perder sua
primeira filha (com apenas 8 meses de vida), passou a chamá-lo de “minha filhinha”.
Assim, a complexidade inerente à personagem, que acreditava que tinha vindo ao
mundo para substituir a irmã morta, deve-se, inicialmente, ao fato de Santareno criar
uma mãe que pode ser considerada nociva, uma vez que seu padrão negativo de
comportamento foi dominante e ainda o é na vida Paulo. Prova disso é que, devido ao
hábito de fazê-lo durante a infância, ela o chama mais uma vez de “sua menina”, não
mais no plano da rememoração, mas logo após sua apresentação no Ballet.
Se Anthony Giddens aponta que “um passado com pais tóxicos impede o
indivíduo de desenvolver uma narrativa do eu, compreendida como um ‘relato
biográfico’ em que ele se sente emocionalmente confortável” (GIDDENS, 1993, p.
122); no caso de Paulo, ao repetir e restaurar tais momentos, percebe-se que ele sofre
diante de todos, porque acredita que as atitudes da mãe já sinalizavam para uma
“tendência interior” ao homoerotismo. Ademais, se “definir alguém como homem ou
mulher, como sujeito de gênero e sexualidade significa, pois, necessariamente nomear e
classificar seu corpo no interior da cultura” (LOURO, 2008, p. 89); em contrapartida,
Paulo investia numa posição de sujeito que não reiterava as normas regulatórias de
gênero e de sexualidade, porque usava o xaile da avó, dançava e se maquiava em frente
ao espelho.
Sabe-se que em espaços simbólicos como um lar heterocentrado, por exemplo, a
associação entre os gêneros e as vestimentas precisa ser mantida para fortalecer a matriz
cultural heteronormativa. Por consequência, usar roupas femininas e se comportar como
alguém do gênero oposto funcionam como significantes importantes da diferença e da
identidade (HALL, 2013), já que essas expressões corporais desfazem uma série de
expectativas sociais, dentre elas, a constituição futura de uma família heterossexual e
reprodutiva. No entanto, se as ações de Ivanov, quando criança, borram o binarismo
homem/mulher inerente à heteronormativadade, não se pode dizer que a personagem
subverte a lei com fins políticos e reivindicativos, em razão de a inocência perpassar
suas ações e por não ter noção dos papeis sexuais predefinidos.
Por outro lado, as experiências de Ivanov no seio familiar fazem alusão ao
processo de assumir um gênero pelo qual passamos desde o exame de ultrassonografia,
que transforma o bebê, antes de seu nascimento, em “ele” ou “ela”, na medida em que
torna possível enunciados performativos iniciadores do tipo: “é um menino” ou “é uma
menina” (BUTLER, 2002a; 2002b). Por meio dessa interpelação de gênero, a menina,
por exemplo, é “feminilizada” e inserida nos domínios inteligíveis da linguagem por
meio da predeterminação de seu sexo. Ademais, para que a significação se mantenha
estável, é preciso reiterar aquela interpelação inicial através do tempo com o intuito de
reforçar seus efeitos naturalizantes.
Contudo, é preciso levar em consideração que é “sem justificativa alguma e sem
possibilidade de questionamento [que] os pronomes pessoais [ele/ela] introduzem o
gênero na linguagem, modelando-o em seus deslocamentos de forma natural, em
qualquer discurso, conversação ou tratado filosófico” (WITTIG, 2006, p. 106, tradução
minha)4. Por isso, logo depois da interpelação iniciadora, é preciso por em prática o ato
de nomear o ser – Márcio, Solange, Renata, Verônica, Gilson – marcando a repetição da
norma e estabelecendo fronteiras. E se para construir um gênero é preciso reiterar
sempre as marcas que o constitui, o processo não termina por aí. Meninas brincam com
bonecas, casinhas, panelas; meninos, com carros e bolas. Em outras palavras, “o mundo
infantil se constrói sobre proibições” que objetivam “preparar as crianças para a vida
4
Monique Wittig, ao tratar das formas pelas quais os gêneros se inscrevem na linguagem por meio dos
pronomes pessoais, enfatiza que “los pronombres personales son la única instancia linguística que designa
a los hablantes en el discurso, y sus situaciones diferentes y sucesivas em relación con este discurso. Por
tanto, son también el caminho y el médio de entrada en el lenguaje. Y por eso – porque representan
personas – nos interesan. Sin justificación alguna y sin posibilidad de cuestionamiento, los prononbres
personales introducen el género en el lenguaje, lo modelan em sus desplazamientos de forma natural, em
cualquier discurso, conversación o tratado filosófico” (WITTIG, 2006, p. 105-106).
heterossexual” (BENTO, 2002, p. 75, tradução minha)5. E caso o sujeito cruze o espaço
simbólico predeterminado pela matriz heteronormativa, a repreensão virá de toda a
comunidade, sempre atenta aos desvios, às rasuras que podem se insinuar já na infância.
No caso do homoerotismo, em El deseo homosexual, Guy Hocquenghem
enfatiza ainda que “a grande maioria dos ‘homossexuais’ não têm nem sequer a
existência consciente, porque desde a infância, o desejo homossexual é eliminado
socialmente
por
uma
série
de
mecanismos
familiares
e
educativos”
(HOCQUENGHEM, 2000, p. 21, tradução minha)6. Por isso, em O bailarino, no
decorrer da entrevista concedida no 1º ato, Paulo Ivanov afirma que, de um lado
completamente oposto ao de sua mãe, estava sua avó que, ao observar seu
comportamento, o constrangia, enfatizando que não concordava “com o carmim [nos
lábios e no rosto], com o xaile espanhol, com ‘a minha menina’ da mãe”
(SANTARENO, 1987, p. 96). Ainda que o jovem não tivesse consciência de seus atos e
das normas que deviam regê-los, a avó, buscando regular seu gênero e suas
performances corporais, assume um discurso que oprime, de forma muito particular, as
lésbicas, os homossexuais, as travestis e os transexuais.
Em consequência, ao reiterar a heterossexualidade como a força fundante da
sociedade, busca-se moldar o corpo de Ivanov de acordo com as normas culturais e
sociais. Não é à toa que Monique Wittig, em El pensamiento heterosexual (2006), é
categórica ao reafirmar que esses tipos de discursos nos oprimem na medida em que nos
negam toda possibilidade de falar de si e agir, a não ser a partir e dentro do regime
heteronormativo. Contudo, se esses discursos tentam nos impedir de fugir da norma, por
consequência, suas ações sobre os sujeitos são sempre feroz e incessante. Interpela-se,
nomeia-se e limita-se; regula-se para materializar a identidade e a diferença. Talvez, em
decorrência da tensão entre as expectativas familiares e as normas sociais, Paulo
continue a expressar carinho por aquela que ele considerava “uma grande mulher”,
como se agradecesse seu investimento ao tentar mantê-lo no lugar destinado a seu
gênero.
No entanto, e guardadas todas as proporções, pode-se entrever em O bailarino o
quanto “a figura do menino afeminado concentra com particular virulência a
5
De acordo com Berenice Bento, “el mundo infantil se construye sobre prohibiciones. Esta pedagogía de
los géneros tiene como objetivo preparar a los pequeños para la vida heterossexual construida desde la
ideología de la complementariedad de los sexos. Es como si las confusiones en los roles provocasen, de
una forma directa e inmediata, perturbaciones en la orientación sexual” (BENTO, 2002, p. 75).
6
Guy Hocquenghem enfatiza que “la gran mayoría de los ‘homosexuales’ no tiene ni siquiera existencia
consciente. Desde la infancia, el deseo homosexual es eliminado socialmente por una serie de
mecanismos familiares y educativos” (2000, p. 21).
patologização da homossexualidade” (SEDGWICK, 2007 apud CORNEJO, 2013, p.
73)7, o que o desloca para uma posição de sujeito inferiorizada e estigmatizada. Nesse
caso, devido às representações hegemônicas de gênero que impõem regulações sobre os
corpos, não há lugar para um sujeito inviável como Paulo, tampouco lhe é dada a
chance de reivindicar uma posição singular de sujeito para si, porque outros lhe
impunham uma identidade predefinida, tida como a única aceita socialmente.
Desse modo, parece-me que uma das consequências da marcação de seu corpo
pela dor e pela abjeção é uma espécie de rejeição de si no outro. Dessa forma, ainda que
tenha superado inúmeros obstáculos para dançar, Ivanov traz à tona a homofobia
quando se lembra de um jovem que frequentava sua casa quando ele ainda era uma
criança. Veja-se um trecho da entrevista:
PAULO: Continuemos, pois... Onde ia eu? Ah, na minha avó... Ó mãe, como se chamava aquela
mulherzinha que ia lá a casa trabalhar?... Já me lembro: Ubalda... era isso! Pois a Ubalda tinha
um filho esquisito: percebe, senhor repórter?
SAUL: Não há-de perceber? É tão inteligente...
PAULO: O rapaz lavava casas, cosia roupa, pintava os olhos e ...
SAUL (intencional): ... o resto, é claro!
PAULO (riso violento, angústia): Seria ainda vivo o filho da Ubalda? (Pausa. Ironia triste) A
minha avó dizia que eu me parecia com o outro, com o filho da Ubalda... (SANTARENO, 1987,
p. 97).
Defendendo a necessidade de regulação dos gêneros e agindo por meio do
policiamento e da censura, a avó de Paulo vê o filho de Ubalda como um sujeito cujo
gênero era degradado, principalmente, porque agia de uma forma inaceitável para as
normas vigentes: lavava casas, cosia roupas e se maquiava. Logo, se todos os corpos são
“generificados” desde o começo de sua existência, conforme salienta Butler (2013), o
filho de Ubalda, tanto quanto Ivanov, promovem uma sequência de atos, no interior de
um sistema regulatório altamente rígido, o que problematiza o modo como as
identidades inteligíveis precedem e precisam ser reiteradas para constituir os sujeitos.
Levando em consideração que a performatividade de gênero toma como
parâmetro o sexo biológico para determinar um comportamento social específico
(masculino/feminino), identidades diferentes podem ser vistas como estranhas ou
desviantes, porque desnaturalizam e deslocam modelos fundacionais identitários.
Assim, em culturas heteronormativas, sujeitos como o filho de Ubalda não são
considerados autênticos, porque a construção de sua identidade de gênero não se
sustenta no modelo hegemônico de masculinidade. Por conseguinte, se palavras são atos
e fazem ascender a existência da realidade que parecem designar (AUSTIN, 1990), as
7
Giancarlo Cornejo cita o artigo How to Bring your Kids up Gay, de Eve Sedgwick.
palavras da avó de Ivanov promovem a violência e estabelecem fronteiras, porque
fazem entrar em sua vida as hierarquias de gênero, além de marcá-lo com a
discriminação.
Ao esforçar-se para disciplinar a sexualidade de seu neto, estigmatizando o filho
de Ubalda para compará-los, a avó patologiza tanto o corpo desses sujeitos quanto as
suas performances de gênero (CORNEJO, 2013). Logo, ao demarcar um limite entre os
jovens e os outros, a personagem acaba também por provocar a aversão de Paulo àquele
sujeito e a si mesmo porque, ao se distanciarem da norma, foram lançados para o
terreno da abjeção. Por isso, se “o sentimento de identidade de uma criança surge da
internalização das visões exteriores que ela tem de si própria” (WOODWARD, 2013, p.
64), Paulo, cheio de angústia e tristeza, é levado a alcançar o sentimento do “eu” a partir
do lugar ocupado pelo filho de Ubalda, aquele que carregava o peso de uma vida abjeta,
que não importa; vida precária, dirá Butler (2011), pela qual não vale a pena dedicar
respeito ou derramar uma lágrima. Nesse caso, a subjetividade de Paulo, ou seja, “os
pensamentos e emoções conscientes e inconscientes que constituem sua concepção
sobre quem ele é” (Idem, 2013, p. 55-56), é constituída em contextos social e familiar,
nos quais a linguagem e a cultura dão um significado negativo às experiências que se
afastam da heterossexualidade compulsória.
Ademais, a interpelação da avó, como um enunciado performativo, ao mesmo
tempo em que constitui o filho de Ubalda e Paulo, também os assujeitam ao discurso
homofóbico, porque lança mão de enunciados citacionais que se apoiam na convenção e
no contexto para serem efetivos. Num certo sentido, ela cita a convenção ao chamá-los
de excêntricos e diferentes, tanto quanto reitera que a constituição linguística do sujeito
pode se dar sem que o sujeito registre a operação de interpelação (BUTLER, 1997). Por
isso, Paulo, ainda que se recuse a ser comparado ao filho de Ubalda, sabe que os nomes
pelos quais foram interpelados e, por consequência, a homofobia, continuarão a
subjugá-los.
Por isso, Ivanov rememora mais uma vez, no terceiro ato, suas angústias e dores
para Sónia, Saul e outras personagens do Ballet Conde de Arcos. Ao transformar sua
vida em uma dança, no primeiro quadro, ele retoma suas experiências quando ainda era
guiado pela inocência, a qual será destruída pelo mundo circundante:
PAULO (a sofrer, cínico): [...] Primeiro quadro: trata-se de um menino só, sem irmãos,
sufocantemente mimado pelo pai e principalmente pela mãe... O menino nunca foi capaz de vibrar
com o futebol, nunca conseguiu dizer, convicentemente, uma obscenidade e... todos os dias, em
segredo, dançava diante do espelho, envolvido no grande xaile multicolor da avó! (Pausa) Foi nesse
tempo que ele ouviu, pela primeira vez, uma certa palavra, um nome, que nele ficou como uma
marca, como um estigma... (riso dorido, seco) [...] (SANTARENO, 1987, p. 145-146).
Observe que Paulo elenca algumas características do que seria um sujeito
inteligível e “generificado” – gostar de futebol e dizer obscenidades –, em contraposição
ao seu comportamento, uma vez que já tinha consciência de que se distanciava das
práticas regulatórias que materializam o sexo (BUTLER, 2002a). Na passagem acima,
também se pode vislumbrar que os sujeitos de sexualidade desviante são insultados a
qualquer momento, inclusive antes de ter consciência de sua homossexualidade.
Em razão disso, Didier Eribon enfatiza que a homofobia, inscrita no cerne da
ordem social, pauta-se muitas vezes no poder da injúria, já que haverá sempre alguém
que se sentirá no direito de dizer ao sujeito que ele é “anormal” e inferior. Nesse
sentido, “a injúria é, pois, a expressão da assimetria entre os indivíduos, entre os que são
legítimos e aqueles que não são, e que por essa razão, são vulneráveis” (ERIBON, 2000,
p. 55, tradução minha)8. Em virtude de se tornar um dos poderes constituintes da
identidade do sujeito, Paulo enfatiza que aquela “certa palavra, um nome”,
provavelmente um xingamento homofóbico, ficou gravado em seu ser como se fosse
uma marca, como um estigma. Ou como diria Butler (2002a), a injúria o deslocou do
espaço dos corpos inteligíveis para aqueles, muitas vezes inomináveis, que são
disponibilizados para os corpos ditos abjetos.
Outra observação importante a se fazer, a partir do trecho acima, é o fato de, em
nossa cultura, “uma vez identificado como ‘homossexual’, o sujeito dificilmente
consegue proteger sua privacidade sexual do espaço do público, pelo simples fato de ser
sistematicamente interpelado em nome de sua preferência erótica” (COSTA, 1992, p.
37). Além disso, as palavras que produzem Paulo Ivanov possuem uma violência inata,
sem que seja necessário repeti-las constantemente. Inscreveram-se em seu corpo como
marcas do poder que ameaçam sua existência, definem suas relações interpessoais e
instituem, por consequência, o lugar desse sujeito numa categoria considerada inferior.
Nessa perspectiva, o fato de Paulo Ivanov ter vivenciado a homofobia,
inicialmente, no seio familiar, e depois na adolescência, sem dúvidas, são experiências
que o marcam como um sujeito que não se enquadra nos ideais heteronormativos. Logo,
8
Ao tratar da linguagem e sua relação com a constituição das identidades gays e lésbicas, Eribon é
categórico: “lo que la injuria me dice es que soy alguien anormal o inferior, alguien sobre el que outro
tiene el poder, y, em principio, el poder de injuriarme. La injuria es, pues, la expresión de la asimetria
entre los indivíduos, entre los que son legítimos y los que no lo son, y por la misma razón, son
vulnerables” ((ERIBON, 2000, p. 55).
a violência que permeia sua vida não pode ser vista como pontual e esporádica, mas
como força fulcral de sua existência, posto que é revivida sempre como uma marca
inerente à sua identidade. Prova disso é que, na adolescência, Ivanov continuou a sofrer
por se sentir diferente:
PAULO – [...] Segundo quadro: o menino cresceu, sempre solitário, com o fel da tal palavra no
coração, e um perturbante segredo escondido em cada uma das suas horas: queria ser bailarino!
Queria vestir fatos estranhos, irreais, pintar o rosto até à beleza sufocante dum deus, queria ser
pássaro, ou tigre... tudo menos homem. E o menino venceu a resistência familiar, esmagou o
próprio terror íntimo... e foi dançarino. [...] (SANTARENO, 1987, p. 145).
Mais uma vez, o bailarino dá provas de como a homofobia pode marcar o sujeito
e constituir sua subjetividade, ainda que se invista para deixar na sombra uma definição
de si que foi produzida por outros sujeitos. Contudo, pode-se flagrar que, ao denunciar
tal violência simbólica, Ivanov também borra sua eficácia, na medida em que “os
mecanismos de opressão são mais efetivos quando permanecem ocultos ou não são
denunciados” (ERIBON, 2000, p. 57)9. Nesse sentido, Bernardo Santareno dá voz a um
sujeito que traz à tona memórias de constrangimento e de opressão oriundas das
classificações legitimadas no círculo familiar, tanto quanto chama a atenção para o
estabelecimento dos critérios de certo e errado, lícito e ilícito no que tange ao gênero e à
sexualidade.
Por isso, o bailarino é uma personagem de recorte trágico que vivia cindido entre
dois símbolos: ser pássaro, o que representa a leveza e a libertação do corpo das
vivências terrestres; ou ser tigre, o que evoca as ideias de poder e ferocidade
(CHAVALIER; GHEERBRANT, 2012). De um lado, a vontade de fugir, voar, ir além.
De outro, o desejo de enfrentar, do embate. Indo por um caminho ou por outro, eis o
desejo de se libertar das forças circundantes sempre opressoras e moralmente
constrangedoras – seja como pássaro seja como fera.
Ademais, o dualismo que impregna O bailarino nos faz lembrar de que, no cerne
do tratamento discriminatório, “a homofobia desempenha um papel importante na
medida em que ela é uma forma de inferiorização, consequência direta da
hierarquização
das
sexualidades,
além
de
conferir
um
status
superior
à
heterossexualidade, situando-a no plano do natural” (BORRILLO, 2010, p. 15). Nessa
9
Consoante Eribon, se a injúria é umas das forças que marcam as identidades gays e lésbicas, “no
reconocerla refuerza evidentemente su eficácia, en la medida em que los mecanismos de la opresión
funcionam tanto mejor cuando permanecem ocultos o no son denunciados” (ERIBON, 2000, p. 57).
perspectiva, pode-se dizer que Ivanov configura-se como o resultado da violência de ser
identificado como “homossexual” logo na infância, o que lhe causou um mal-estar
intermitente e o levou a se tornar um jovem solitário.
Nota-se, assim, que Bernardo Santareno investe em sujeitos que, não obstante
reivindicarem sua pertença a um grupo identitário, não obtêm êxito porque são
marcados pela diferença. Nessa perspectiva, pode-se dizer também que o dramaturgo
promove, antes de tudo, a desmontagem de certos comportamentos interiorizados pela
sociedade portuguesa, uma vez que as identidades gays põe em crise o sistema binário
de gênero, a heterossexualidade compulsória, assim como denunciam que a constituição
identitária dos sujeitos é constrangida constantemente. As vias escolhidas são as
trajetórias de sujeitos, como Paulo Ivanov, que se apresentam, ao mesmo tempo, como
periféricos, ambíguos, fragilizados, estigmatizados e rechaçados socialmente.
Referências bibliográficas
ANDREOLI, Giuliano Souza. Representações de masculinidades na dança
contemporânea. 2010. 137 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Educação. Porto Alegre.
2010. Disponível em:<http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/24158>. Acesso em: 25
de maio de 2014.
AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer. Tradução de Danilo Marcondes de Souza
Filho. Porto Alegre: Editora: Artes Médica, 1990.
BENTO, Berenice. Cuerpo, performance y género en la experiência transexual.
Anuário de Hojas de Warmi. v. 13, p. 69-94, 2002. Disponível em:
<http://revistas.um.es/hojasdewarmi/article/view/166211/144751>. Acesso em: 10 jan.
2014.
BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Tradução de
Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
BRAIDOTTI, Rosi. Feminismo, diferencia sexual y subjetividad nómade. Barcelona:
Editorial Gedisa, 2004.
BUTLER, Judith. Lenguaje, poder e identidad. Madrid: Sintesis, 1997.
______. Cuerpos que importan: sobre los límites materialesy discursivos del “sexo”.
Tradução de Alcira Bixio. Buenos Aires: Paidós, 2002a.
______. Criticamente subversiva. RAFAEL, Mérida Jiménez (Ed.). In: Sexualidades
Transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Editorial Icaria, 2002b. p.
55-79.
______. Vida precária. Contemporânea. nº1, v.1, jan-jun 2011, p. 13-33.
______. Sujetos del desejo. Reflexiones hegelianas en la Francia del siglo XX.
Tradução de Elena Luján Odriozola. Buenos Aires: Amorrortu, 2012.
______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, número). Tradução de Vera da Costa e Silva et
al. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
CORNEJO, Giancarlo. A guerra declarada contra o menino afeminado. In: MISKOLCI,
Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica;
editora UFOP, 2012, p. 69-78.
COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. 3 ed.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.
ERIBON, Didier. Identidades - Reflexiones sobre la cuestión gay. Barcelona:
Bellattera, 2000.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo
nas sociedades modernas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da UNESP,
1993.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 13 ed. Petrópolis:
Vozes, 2013. p. 103-133.
HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homosexual. Espanha: Melusina, 2000.
LOURO, Guacira Louro. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e Teoria
queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
MEZAN, Renato. Tempo de muda: ensaios de psicanálise. São Paulo: Cia das Letras,
1998.
SANTARENO, Bernardo. O bailarino. In: SANTARENO, Bernardo. Obras
Completas. Organização, posfácio e notas introdutórias de Luiz Francisco Rebello.
Lisboa: Ed. Caminho, 1987. v. 1, p. 75-154.
VARGAS, Lisete A. Machado de. Escola em dança: movimento, expressão e arte.
Porto Alegre: Mediação, 2007.
WITTIG, Monique. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Tradução de Javier
Sáez e Paco Vidarte. Barcelona: Egales, 2006.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.
In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. 13 ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 7-72.
Download

sobre o menino que usava o xaile da avó, dançava e se