Mariana Augusta Pinheiro Di Salvio Almeida Bolaño em contraponto: trânsitos performáticos em Los detectives salvajes Belo Horizonte Faculdade de Letras/ UFMG 2014 1 Mariana Augusta Pinheiro Di Salvio Almeida Bolaño em contraponto: trânsitos performáticos em Los detectives salvajes Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e vinculada à área de concentração Literaturas Modernas e Contemporâneas e à linha de pesquisa Literatura e Políticas do Contemporâneo para a obtenção do título de mestre. Orientadora: Prof. Dra. Graciela Inés Ravetti de Goméz. Belo Horizonte Faculdade de Letras – UFMG 2014 2 3 4 Para minha querida e admirada avó, a Maroca. 5 Agradeço à minha família, pelo incentivo e apoio de sempre; à querida Graciela Ravetti, que, além da leitura sensível e atenta, levou-me a refletir sobre o meu próprio lugar de enunciação e seus compromissos éticos, provocando deslocamentos no meu modo de pensar e agir. Muito, muito obrigada por tudo, Graciela! Agradeço também aos queridos professores do Espanhol. À Elisa, pela postura ética. À Sara Rojo, por me colocar em estado de busca. Ao Cristiano e à Elzimar, pelas reflexões sobre o complexo contexto de sala de aula. À Ana Lúcia, pelos meandros de significação da língua espanhola. E ao Marcos Alexandre, com quem só tive contato na pós-graduação, quando trouxe as vozes de artistas marginais. Vocês todos me mostraram um sentido de educação transformador e revolucionário, que está além do aprendizado formal. Muito, muito obrigada! Agradeço também à banca (Denise Pedrón, Sara Rojo e Natalino Oliveira) pela leitura atenta e pelas valiosas e construtivas considerações. Muito obrigada! Agradeço aos amigos que tiveram muito próximos nestes últimos dois anos: à Ana Bahia, pelo carinho de irmã e pelo amor imenso. À Maíra Nassif, por compartilhar nuances e percepções tão nossas. Ao Be RB e ao Gui Morais, grandes amigos performers, meus professores, com vocês descobri universos paralelos acessados pelo uso do corpo. À querida amiga e escritora Mariana Lage, pelas discussões em torno do material e do imaterial da existência. À também escritora e queridíssima Mariana Palomino, minha melhor amiga literária, com quem sempre troquei muitos textos e, com eles, confissões sobre os enigmas da vida. Ao Carlos Andrei, pelo senso de humor, pelo afeto, pela escuta, por tudo que o faz tão incrível. À Claudia, pela grande amizade. À Clarota, pela naturalidade do querer. À Amel, tão querida. À Flávia e ao Aruan, que escolheram o caminho do meio, um devaneio compromissado, extremamente lúcido. À Alê, pelo carinho. Ao Thiago Leão, pela irreverência do olhar. Aos amigos da FALE: À Nanda e ao Juan, pelos jogos de linguagem, pelo senso de humor, pela perspicácia e, principalmente, pelo afeto e companheirismo. À Vivi, pelas palavras carinhosas e pelo apoio na reta final da pesquisa. À Gabi e à Cris, por buscar sempre. Todos vocês contribuíram muito com meu processo de escrita, com o qual pude fazer um pequeno e difícil deslocamento. Muito obrigada! 6 Al dar un salto hacia lo inverificable, la ficción multiplica al infinito las posibilidades de tratamiento. No vuelve la espalda a una supuesta realidad objetiva: muy por el contrario, se sumerge en su turbulencia, desdeñando la actitud ingenua que consiste en pretender saber de antemano cómo esa realidad está hecha. No es una claudicación ante tal o cual ética de la verdad, sino la búsqueda de una un poco menos rudimentaria. (Juan José Saer, El concepto de ficción.) Un amor desbocado. Un sueño dentro de otro sueño. Y la pesadilla me decía: crecerás. Dejarás atrás las imágenes del dolor y del laberinto y olvidarás. Pero en aquel tiempo crecer hubiera sido un crimen. (Roberto Bolaño, fragmento do poema Los perros románticos). 7 Resumo: Partindo da hipótese de que a literatura de Roberto Bolaño constitui-se como um modo de acessar o real, incidindo olhares múltiplos sobre ele sem realizar, contudo, uma leitura fechada e definitiva, vamos analisar o romance Los detectives salvajes (1998) a partir da performance. No primeiro capítulo, iremos abordar como o romance, que expõe traços autobiográficos do autor, realiza uma espécie de trânsito performático rumo a uma coletividade em constante abertura para o outro. No segundo capítulo, vamos analisar como o romance, sendo um ato performático, percebido em seu processo de realização, trava uma interessante relação com o tempo presente, despertando nele estratos temporais outros. E finalmente, após termos abordado as dimensões espacial e temporal do romance, e com a hipótese proposta em vista, estudaremos o trânsito performático rumo ao “real indomável”. Palavras- chaves: Literatura Latino-Americana, performance, coletividade, “real indomável”. 8 Resumen: Partiendo de la hipótesis de que la literatura de Roberto Bolaño se constituye como un modo de acceso al real, incidiéndole miradas múltiples sin realizar, sin embargo, una lectura cerrada y definitiva sobre él, vamos a analizar la novela Los detectives salvajes (1998) a partir del performance. En el primer capítulo, vamos a abordar como la novela, que expone rasgos autobiográficos del autor, realiza una especie de tránsito performático rumbo a una colectividad en constante apertura para el otro. En el segundo capítulo, vamos a analizar como la novela, siendo un acto performático, percibido en su proceso de realización, establece una interesante relación con el tiempo presente, despertándole estratos temporales otros. Finalmente, tras haber abordado las dimensiones espacial y temporal de la novela, y teniendo en vista la hipótesis propuesta, estudiaremos el performático tránsito rumbo al “real indomable”. Palabras-claves: Literatura Latinoamericana, performance, coletividad, “real indomable”. 9 Sumário Introdução: I. Primeira aproximação 11 II. Sobre Bolaño e os trânsitos performáticos 17 Capítulo 1: Sobre o incessante trânsito performático rumo à coletividade 24 1.1 Comunidade sem rosto 33 1.2 Experiência e ética 43 Capítulo 2: Sobre o incessante trânsito performático rumo ao tempo presente 52 2.1 Arquivo em contraponto 60 2.2 O diário 69 Capítulo 3: Sobre o incessante trânsito performático rumo ao real indomável 75 3.1 Os detetives selvagens 82 Breve consideração final 94 Referências bibliográficas 99 10 Introdução I. Primeira aproximação Detenho-me, para começar, em um enigma gerado pela primeira leitura que tive de Roberto Bolaño, durante as aulas de Literaturas modernas e contemporâneas latinoamericanas, ministradas por Graciela Ravetti em 2008. Tratava-se do romance Nocturno de Chile (2000), cujo enredo se passa na atmosfera da ditadura chilena e é narrado em primeira pessoa por Sebastián Urrutia Lacroix, padre e crítico literário, quem, com tom desesperado e febril, desabafa sobre os dilemas éticos que atravessaram a sua vida. Os encontros com Pinochet e outros militares, para os quais o sacerdote dava aula de comunismo, trouxeram-me não apenas um desconcerto com relação aos limites éticos que envolvem o meio intelectual e a vida do narrador – que tem seu contraponto com a figura de um jovem envelhecido, personagem fantasmagórico que o atormenta pela culpa – mas também me fizeram refletir sobre um enigma, talvez um pouco ingênuo, que envolve a leitura. A partir da percepção de que obras como as de Marx e Engels, cujas ideias foram capazes de mobilizar muitas pessoas, não produziram, obviamente, nenhuma empatia nos militares, o que pode tornar essa minha primeira leitura de Bolaño um tanto quanto ingênua, multiplicaram-me questões concernentes aos modos de leitura. Como um mesmo livro pode alterar a percepção de mundo de um leitor e até levá-lo a algum tipo de ação e de outro não modificar nada ou quase nada? Quais são as diferenças entre esses modos de leitura? Sem conseguir dar uma resposta definitiva a essas questões– tendo em vista que ler é um ato extremamente complexo, pois envolve desde as afinidades afetivas, os diferentes objetivos e o conhecimento de mundo do leitor1, – e com outros livros de Bolaño em mãos, comecei a notar que este tema atravessava toda a obra do autor, o da literatura imersa em situações limítrofes desde o ponto de vista ético, refletindo , por um lado, sobre o próprio fazer literário, e , por outro, inquirindo sobre os limites entre 1 Ver: KOCH; ELIAS, Ler e compreender (2006), p.184. 11 ficção e realidade, o que faz com que suas obras demandem do leitor uma postura política (e responsável) com relação ao que lê. Roberto Bolaño Ávalos, que nasceu em Chile no ano de 1953, se mudou com sua família ainda aos 15 anos para México D.F, onde teve uma vida boêmia e intensa, marcada por uma postura irreverente com relação à política, tendo fundado junto com o amigo Mario Santiago Paspaquiaro , nos anos 1970, o movimento de vanguarda poética Infrarrealista, que é revisitado em Los detectives salvajes (1998), objeto desta dissertação e, portanto, será melhor referenciado no capítulo 1. No entanto, já podemos entrever nessa época uma certa postura performática e valente do autor, a de tomar recorrentemente posições pouco convencionais quando, por exemplo, invadia recitais de poesia para contestar os textos que giravam em torno de poetas consagrados, como Octavio Paz e Pablo Neruda, o que o levou a ser considerado pela amiga Carmen Boullosa como o “terror del mundo literário”(BOULLOSA, 2006, p.112) ou o “terrorista de las buenas costumbres” (ibidem, p.113). Essa postura já indica então, a nosso entender, ainda em sua juventude como poeta, uma reivindicação que se manteve para o Bolaño romancista, a de sempre tomar posições diante não apenas da literatura, mas sobretudo do contexto social em que se inseria. Isso porque vida e literatura se misturam para o nosso autor que, aos 20 anos, decidiu voltar a seu país natal para fazer resistência ao golpe militar, mas que, no entanto, acabou preso pelos militares, sendo solto após oito dias porque, por casualidade, alguns dos soldados que tomavam conta de sua cela foram seu colegas de escola.2 Experiência que é retomada no conto Carnet de baile (2001), no qual o narrador, que parece coincidir com a figura do autor, descreve os dias de cárcere. No me torturaron, como temía, ni siquiera me robaron. Pero tampoco me dieron nada para comer ni para taparme por las noches, por lo que tuve que vivir de la buena voluntad de los presos que compartían su comida conmigo. De madrugada escuchaba cómo torturaban a otros, sin poder dormir, sin nada que leer, salvo una revista en inglés que alguien había olvidado allí y en la que lo único interesante era un artículo sobre una casa que en otro tiempo perteneció al poeta Dylan Thomas.3 (Ibidem, p.212). 2 Ver: ALVARÉS, Eliseo. “Las posturas son las posturas y el sexo es el sexo”, 2011, p.38. “Não me torturaram, como temia, nem sequer me roubaram. Mas tampouco me deram algo para comer, nem para cobrir-me de noite, e tive que viver da boa vontade dos presos que dividiam sua comida comigo. De madrugada, escutava como torturavam os outros, sem poder dormir, sem nada para ler, a não ser uma revista em inglês que alguém tinha esquecido ali e na qual a única coisa interessante era um 3 12 Latino-americano antes que chileno, mexicano ou espanhol4, Bolaño deixa México em 1977, quando viaja por Europa e finalmente decide ficar em Blanes, um pequeno povoado no litoral, ao norte de Barcelona. Nesses primeiros anos na Europa, trabalha como lavador de pratos, vigia e outras funções que parecem reforçar sua condição de latino-americano no velho mundo: trabalhos mal remunerados e destinados aos imigrantes ilegais. Ao mesmo tempo lê e escreve incessantemente, participa de concursos, e a partir de 1992, quando descobre uma doença hepática, passa a viver exclusivamente de literatura5. Com Los detectives salvajes ganha dois prêmios, o Herralde (1998) e o Rómulo Gallegos (1999). Em 2003, com apenas cinquenta anos, morre na fila de transplante de fígado. Um autor que sempre se posicionou longe de posições unânimes, se dizia trotskista, mas acabou adotando um discurso anarquista, por estar profundamente incomodado com qualquer prática que tentava estabelecer hegemonias6. Sem formação acadêmica, em torno da figura de Bolaño gira uma biografia de aura marginal, o que alimenta, ironicamente, a criação de um mito pelos meios editoriais. Situação irônica porque o autor sempre fez questão de escrever fora das projeções ideológicas requeridas pelo stablishment literário: o verdadeiro escritor, para ele, escreve fora da lei. No entanto, embora esse mito em volta do escritor marginal infelizmente solape, muitas vezes, nuances de um personagem tão enigmático quanto Bolaño, ele nos ajuda a construir a figura de um escritor extremamente contestador, que não se cansou de lançar críticas ferrenhas e ácidas sobre o meio intelectual, o qual enxergava como um “ejercicio de cortesanos o que fabrica cortesanos” (BOLAÑO, 2011, p.100), mas sem nunca abrir mão da lucidez, sempre amparado por um vasto conhecimento de literatura e de mundo. Rápido e perspicaz, Bolaño acredita que a literatura é um exercício arriscado e de orientação ética – “los riesgos, en la literatura, son de orden ético, básicamente ético” (BOLAÑO apud SWINBURN, 2011, p.85) – riscos que se expressam somente quando há também um risco formal, ou seja, de ordem estética. (Ibidem). Como Jorge Luis artigo sobre uma casa que em outro tempo pertenceu ao poeta Dylan Thomas.” (BOLAÑO, 2006, p.212). (As traduções desta dissertação serão feitas por mim). 4 Ver: MARISTAIN, Mónica. “El mundo está vivo y nada tiene remedio”, 2011, p.70. 5 Ver: ALVARÉS, Eliseo. “Las posturas son las posturas y el sexo es el sexo”,2011, p.43. 6 Ver: Ibidem, p.37 13 Borges, de quem foi grande leitor e admirador, o latino-americano exilado pensa que a literatura, desde sempre, trata de uma pequena variação de temas, mas que a estrutura, o “envoltório” que se pode dar a esses temas, é potencialmente infinito7. “La estructura es la música de la literatura” (ibídem, p.83), nos diz o autor. Deve ser por isso que Bolaño construiu um coro tão vasto em seus romances, nos quais são incorporadas vozes marginais, dissonantes entre si, formando um canto extremamente complexo, que reúne distintos pontos de enunciação provenientes do complexo contexto contemporâneo das diferenças. Com isso, o latino-americano se dirige a uma inovação estética, pela qual busca, por um lado, sempre inserir o político em suas narrativas – constantemente a atmosfera de seus relatos paira sobre referentes reais pautados pelo mal e pela incompreensão humana em torno de barbáries cometidas pelo homem ao longo da história, como nas ditaduras latino-americanas, frequentemente referenciadas em seus romances, que se reverberam ainda nos rastros de desaparecidos e na impossibilidade de contar e elaborar esse momento catastrófico, devido a seu caráter traumático; e, por outro, o autor se apropria, como um performer, de vozes e lugares ainda pouco explorados pela literatura, com o intuito de lançar olhares variados sobre as tramas complexas do real. De acordo com Celina Manzoni, organizadora de Roberto Bolaño: la escritura como tauromaquia (2006), uma das poucas obras críticas sobre o autor, o que é justificado pela recente “descoberta” de Bolaño, que se consagra de forma definitiva no mundo literário somente a partir de Los detectives salvajes, em 1998: Su proyecto de escritura, sustentado en la pasión de contar, propone una poética en la que confluyen y se cruzan con libertad, formas culturales que de manera tradicional han sido catalogadas y discriminadas por su condición, de cultas o de populares. Al mismo tiempo se propone preguntas que resuelve con originalidad y audacia: de qué manera la ficción puede contar lo político, cómo narrar el horror, cómo construir una memoria y una escritura que trastornen los límites entre lo manifiesto y lo subyacente. Esta propuesta, que se adueña de tradiciones heterogéneas y las refuncionaliza, se despliega con un ritmo arrollador, contradice imágenes estereotipadas y perturba espacios canónicos consagrados tanto por la academia como por algunas pautas del mercado ancladas en un macondismo repetido hasta la exasperación o en una cultura que en nombre de la masa 7 Ver. AGOSIN, Gabriel. “No sé quién soy yo, pero sé lo que hago”, 2011, p.26. 14 envuelve en la banalidad y la pobreza de ideas y recursos.8 (Ibidem, p.13- 14 – grifo da autora). Sua obra, em conjunto, faz parte, para o autor, de um mesmo texto literário. Os personagens, reais e fictícios, se repetem em seus romances, como seu alter ego confesso, o poeta Arturo Belano, que atravessa várias de suas narrativas, dentre as quais citamos, Estrella distante (1996), Los detectives salvajes (1998) e Amuleto (1999), o que cria muitos jogos metaliterários. Esses cruzamentos entre as narrativas, como também o enigma do mal que, como já mencionamos rapidamente, paira sobre seus relatos, inquirindo uma posição ética da própria literatura, fazem então com que seus livros ganhem uma nuance detetivesca, cujos fios são buscados pelo leitor atento, astuto, o que, segundo Bolaño, dificulta o acesso a sua obra. Estoy condenado, afortunadamente, a tener pocos lectores, pero fieles. Son lectores interesados en entrar en el juego metaliterario y en el juego de toda mi obra, porque si alguien lee un libro mío no está mal, pero para entenderlo hay que leerlos todos, porque todos se refieren a todos. Y ahí entra el problema.9 (BOLAÑO, 2011, p.127). O que Bolaño não desconfiava, porém, é que seu romance póstumo, 2666 – composto por 1120 páginas que formariam para o autor uma série de cinco romances – quando traduzido para o inglês, tornou-se, inesperadamente (e também ironicamente), uma espécie de best-seller entre os intelectuais, o que fez o autor a ser considerado por uma matéria intitulada “Bolaño- mania” (2008)10 , do jornal inglês The economist, que discutia a explosão de vendas de seus romances, como um Harry Potter intelectual11. No entanto, apesar das muitas ressalvas que temos com essa matéria, por acreditar que ela foca demasiadamente no fenômeno literário, transformando-o, por vezes, em ícone 8 “Seu projeto de escritura, sustentado na paixão de contar, propõe uma poética na qual confluem e se cruzam, com liberdade, formas culturais, que de maneira tradicional têm sido catalogadas e descriminadas por sua condição de cultas ou de populares. Ao mesmo tempo, se propõe perguntas que resolve com originalidade e audácia: de que maneira a ficção pode contar o político, como narrar o horror, como construir uma memória e uma escrita que transtornem os limites entre o manifesto e o subjacente. Esta proposta, que se apropria de tradições heterogêneas, refuncionalizando-as, se desdobra com um ritmo demolidor, contradiz imagens estereotipadas e perturba espaços canônicos consagrados tanto pela academia como por algumas pautas do mercado ancoradas em um macondismo repetido até a exasperação ou em uma cultura que em nome da massa envolve a banalidade, a pobreza de ideias e recursos.” (MANZONI, 2006, p.13-14 – grifo da autora). 9 “Estou condenado, felizmente, a ter poucos leitores, mas fieis. São leitores interessados a entrar no jogo metaliterário e no jogo de toda minha obra, porque se alguém ler um livro meu não está mal, mas para entendê-lo tem que ler todos, porque todos se referem a todos. E é aí que entra o problema.” (BOLAÑO, 2011, p.127). 10 Disponível em: http://www.economist.com/node/12633117 . 15 pop nos moldes da indústria cultural, o texto ajuda – ao mostrar a grande procura pelos livros do chileno – a reforçar o que diversos críticos consideram, o fato de que Bolaño talvez seja a voz latino-americana mais importante e impactante de sua geração. Tal representatividade se deve, talvez, porque Bolaño tenha elaborado na literatura uma máquina ficcional que transcende os próprios limites, um modo de acessar o real que aponta, de algum modo, para aquilo que é irredutível a uma só abordagem, sugerindo, por um lado, a reformulação das análises pautadas por totalizações, como boa parte do discurso científico, e, por outro, germinando em seus textos a insistência do parcial e do aberto como possibilidades de discorrer sobre o conflitante, o assimétrico e o marginal. Com outras linhas, reclamamos que a obra de Bolaño está atravessada por um espaço pelo qual irrompe de modo oblíquo aquilo que não se deixa conhecer por inteiro, e, sendo assim, a literatura se mostra como um campo privilegiado para bordejar, desde as mais diversas perspectivas, o não compreensível da experiência humana, o que pode apontar, de algum modo, para a construção de um horizonte de perspectiva, apesar do enigma do extermínio e da violência que paralisa e mina os desejos de transformação social. Essa é a hipótese sobre a qual gira esta dissertação. II. Sobre Bolaño e os trânsitos performáticos Se, no início desta introdução, a vida pessoal de Roberto Bolaño veio tanto à tona, é porque ela se transforma em ficção e Bolaño, como já aludimos, em personagem. Sem aqui muito nos deter em questões teóricas que atravessam esse tema, que será tratado ao longo da dissertação, nos interessa agora apenas lançar um breve olhar nessa postura performática do autor, a de levar ao espaço coletivo seus próprios traços biográficos mediante a ficção e outras intervenções públicas, inquirindo de algum modo a si mesmo um posicionamento ético no mundo – trânsito que permeia a escolha do tema. O que nos interessa aqui, primeiramente, é o efeito que nos gerou o modo polifônico e ambíguo (e, portanto, criativo) com o qual Bolaño incessantemente construiu sua identidade nos romances e nas entrevistas. Um personagem impossível de se capturar, seja pelo desdobramento de si, que o transforma em uma terceira pessoa do 16 discurso a partir de um olhar estranhado, seja pelo uso recorrente de ironias ou pelo tom de deboche, mostrando-se sempre avesso a classificações taxativas. Quando perguntado, por exemplo, quem é Bolaño, o autor simplesmente responde mediante o que já foi dito sobre ele, colocando-se como uma terceira pessoa, como se fosse uma personagem, sem agregar informações às já conhecidas pelo meio literário, o que esvazia, de algum modo, a questão proposta pelo entrevistador. ¿Quién eres tú, Bolaño? De Bolaño se ha dicho tanto como se ha escrito. Que cultiva el género negro, que es heredero del boom, que es exitoso, que es el mejor exponente de la narrativa latinoamericana de su generación, que es polémico por su ácida crítica a los escritores chilenos, sobre todo a Luís Sepúlveda y Hernán Rivera Letelier.12 (BOLAÑO apud AGOSIN, 2011, p.26). A mesma postura irreverente, que parece pouco se importar com o que o público vai opinar, principalmente o especializado, orientando-se muito mais por questões éticas do que por demandas que giram em torno do mito de um escritor, ocorre, por exemplo, em entrevista concedida a Mónica Maristain para a revista Playboy, quando a entrevistadora pergunta ao autor se sente medo de alguém querer fazer uma versão cinematográfica de Los detectives salvajes – “Ay, Mónica, yo les tengo miedo a otras cosas. Digamos: cosas más terroríficas, infinitamente más terroríficas” (BOLAÑO apud MARISTAIN, 2011, p.78), responde Bolaño, referindo-se provavelmente ao enigma do mal que permeia a história da humanidade, principalmente a das ditaduras militares na América Latina, o que o faz colocar, de algum modo, essas questões sobre a literatura, as que giram em torno do mito do escritor preocupado com a própria obra, em um lugar frívolo. Talvez a pergunta tenha soado, nesse sentido, um pouco fútil ao autor. E tudo isso conforma o conjunto das ferramentas que Bolaño foi criando para sua batalha pessoal contra o stablishment: desestruturar os entrevistadores, ridicularizar alguns intelectuais consagrados e midiáticos etc. Não apenas nessas entrevistas, mas em outras reunidas na coletânea Bolaño por sí mismo: entrevistas escogidas (2011), se sobressai então um escritor muito mais preocupado com o processo de criação e seus meandros éticos, do que com a recepção 12 “De Bolaño se tem falado tanto como se tem escrito. Que cultiva o gênero negro, que é herdeiro do boom, que é bem-sucedido, que é o melhor expoente da narrativa latino-americana de sua geração, que é polêmico por sua ácida crítica em relação aos escritores chilenos, sobretudo a Luís Sepúlveda e Hernán Riviera Letelier.” (BOLAÑO apud AGOSIN, 2011, p.26). 17 crítica de suas obras. É como se Bolaño estivesse permanentemente questionando a si mesmo e, também, ao meio crítico – extremamente especializado, restringido, muitas vezes, a parâmetros formais como procedimento de legitimação de uma obra – sobre o lugar da arte no mundo, sem nunca resolver a questão de modo definitivo. Procedimento que é incorporado a suas narrativas, as quais se parecem muito mais interessadas na vida dos escritores, sobretudo na dos verdadeiros poetas – que surgem, como já mencionamos, longe das demandas do poder, frequentemente em situações de buscas, muitas delas limítrofes desde o ponto de vista ético, o que faz com que a identidade desses poetas estejam também em constante reformulação, tornando-se polissêmicas – do que na investigação baseada em parâmetros puramente formais das obras desses artistas. A arte é assim percebida por Bolaño em seu processo de realização, inserida nas relações do mundo, e o artista, como um aprendiz, um sujeito que busca sentidos para a própria vida e também para a alheia, pois se percebe imerso na experiência da coletividade – o que aproxima a obra do nosso autor à performance. Yo escribo desde mi experiencia, tanto mi experiencia, digamos, personal como mi experiencia libresca o cultural, que con el tiempo se han fundido en una sola cosa. Pero también escribo desde lo que solía llamarse la experiencia colectiva, que es, contra lo que pensaban algunos teóricos, algo bastante inaprensible.13(BOLAÑO apud SWINBURN, 2011, p.84). Tendo em vista então essa aproximação, nesta dissertação a performance será a lente pela qual leremos a obra Los detectives salvajes . Termo de difícil definição, uma vez que , como veremos ao longo da pesquisa, abrange várias áreas do saber, passando pela arte, pelas ciências sociais e pelo politico, no âmbito artístico, seus germes estão, para muitos teóricos, nos movimentos de vanguarda do início do século XX, “en las prácticas de los futuristas, dadaístas y surrealistas que se enfocaban más en el processo que en el producto final.”14(TAYLOR, 2011, p.20). No entanto, como expressão artística sedimentada e de características próprias, a performance se consolida somente nos anos 1950 e 1960, quando muitos artistas 13 “Escrevo desde a minha experiência, tanto da minha experiência, digamos, pessoal, como da minha experiência livresca ou cultural, que com o tempo se fundiram em uma coisa somente. Mas também escrevo desde o que se acostumava chamar a experiência coletiva, que é, ao contrário do que pensavam alguns teóricos, algo bastante inapreensível.” (BOLAÑO apud SWINBURN, 2011, p.84). 14 “nas práticas dos futuristas, dadaístas e surrealistas que se enfocavam mais no processo do que no produto final.” (TAYLOR, 2011, p.20). 18 decidem “sacar el teatro del teatro, (...) desplazar el arte de las galerías y borrar las fronteras entre actos artísticos y el drama cotidiano de la vida real”15 (ibidem, p.9 - grifo da autora), suprimindo as barreiras entre ficção e realidade. Considerando então o caráter antielitista da performance, de supressão das barreiras entre vida e arte, que oblitera, muitas vezes, a institucionalização do objeto artístico que abandona a forma tradicional de exposição para tornar-se acontecimento em um espaço coletivo, um dos aspectos mais idiossincráticos dessa expressão artística é, para Graciela Ravetti, sua interação entre o próprio e o alheio, o individual e o coletivo, “com a clara tendência a mexer e revelar temas controversos em seus aspectos mais revoltantes e impalatáveis.” (RAVETTI, 2011, p.17). Trata-se, para a teórica que desenvolveu o conceito de “narrativas performáticas” na esfera da teoria literária, do artista transferir para o âmbito público, mediante suas publicações, traços autobiográficos, os quais, ao evocar uma construção proveniente do mundo em comum, ou seja, em interação com outras singularidades, servem de veículo para as manifestações corpóreas e incorpóreas da coletividade. Uma espécie de arquivo com vocação de repertório, como sublinha Ravetti. (Ibidem, p.11). É sobre esse trânsito performático do artista à coletividade que trataremos no capítulo 1. A partir das concepções de dialogismo e polifonia desenvolvidas por Mikhail Bakhtin, que apontam para a indissociabilidade entre o eu e o outro na formação da subjetividade, perceberemos a performance, em diálogo com Graciela Ravetti e Leonor Arfuch, como um ato político, ao obstruir o que Ravetti entende por “vínculos performativos”, ou seja, os chamados a ser provenientes de posições hegemônicas, configurando-se como um modo responsivo e criativo de formação da subjetividade e da coletividade. Evocaremos também os estudos de Jean-Luc Nancy para discutir uma espécie de comunidade literária exposta em Los detectives salvajes, a qual é pensada menos por parâmetros universais de identificação e mais por um estado de abertura para o outro, uma espécie de comunidade desprovida de uma origem essencializante e única, uma comunidade sem rosto e em porvir. E, finalmente, em diálogo com Agamben, perceberemos que a performance, ao evidenciar uma linha de fuga aos mandatos identitários, sublinha uma não-aderência do homem à linguagem, ou seja, o sujeito, que 15 “tirar o teatro do teatro, (...) deslocar a arte das galeras e rasurar as fronteiras entre atos artísticos e o drama cotidiano da vida real.” (Ibidem, p.9 – grifo da autora). 19 se constitui na e pela linguagem, mediante o ato performático, acaba por promover um estranhamento de si e, em contato com o outro, transforma a experiência artística em um ato vital, no qual os sujeitos envolvidos são transformados. Já considerando então o caráter responsivo e histórico da linguagem, de retomada e refutação dos enunciados, no capítulo 2, a partir da percepção de que a performance, entendida como arte processual, trava um interessante diálogo com sua contemporaneidade, estudaremos o performático trânsito rumo ao tempo presente, temporalidade que traz consigo outros estratos temporais. Ora, sendo a performance um ato discursivo, que retoma e refuta posições ideológicas presentes na linguagem, ela, ao travar uma relação com o agora do seu acontecimento, acaba por evocar outros tempos que persistem na temporalidade do presente. Rompe-se, por um lado, com a concepção de história linear e teleológica instaurada pela modernidade e, por outro, se estabelecem relações entre os tempos outros que ecoam no processo de sua realização, pelo qual novos sentidos são evocados. Ela é então percebida, em diálogo com Walter Benjamin, em seu “traço de vida”. Relaciona-se assim com o arquivo, uma vez que carrega uma espécie de “temporalidade palimpséstica”(RAVETTI, 2011, p.13), na qual estão depositados tempos diversos. Desse modo, em um segundo momento, reclamaremos para o romance, como ato performático de elaboração da memória, um modo de transmissão de conhecimento baseado não apenas em restos materiais, mas também na evocação, pela ficção, de restos imateriais, como a imaginação e os sintomas provocados por situações traumáticas, aspectos imprescindíveis para narrar e tentar entender aquilo que, devido a seu caráter traumático, não se deixa conhecer por inteiro (Rebecca Schneider e Jacques Derrida). Finalmente, baseados nas primeira e segunda partes do romance, que são constituídas pelo diário de um poeta adolescente, vamos nos propor a leitura do livro como um diário de uma geração que, percebido por um viés performático, elabora um modo de memória pautada pela improvisação e pelo inacabamento (Phillippe Lejeune). Por fim, no capítulo 3, após termos analisado as dimensões espacial e temporal do romance e tendo em vista a hipótese da dissertação, a de que Los detectives salvajes constitui uma forma de se aproximar do real, daquilo que é irredutível a uma só abordagem, estudaremos o performático trânsito rumo ao real indomável. Em um primeiro momento, com Jacques Rancière, discutiremos como os modos de 20 configuração das dimensões visíveis e dizíveis da experiência se constituem pela ficção, ou seja, pela textualização e interpretação daquilo que se mostra governado por leis caóticas e inapreensíveis, sublinhando uma distância incontornável entre as experiências e as formas de inteligibilidade que as tornam pensáveis e visíveis. Se o que entendemos por realidade se dá, assim, pela criação e ficcionalização da experiência, reivindicaremos que o romance em questão, ao justapor, como veremos, vozes que se divergem e se convergem entre si em torno de uma história ausente, relacionada com o enigma do mal, ele acaba por enriquecer o mundo mediante a implementação do que Rancière entende por “cenas de dissenso” : territórios nos quais às singularidades, embora em conflito, são asseguradas os intervalos que marcam sua diferença, formando um coro de muitas vozes. Desse modo, com Peggy Phelan, argumentaremos que Los detectives salvajes, mediante o procedimento metonímico da performance – o de aproximação de uma história ausente (pelo caráter inapreensível) através de uma associação criativa em um eixo de contiguidade – demarca sempre uma diferença e um deslocamento com relação ao que realmente aconteceu, o que faz com que o romance transcenda os seus próprios limites, colocando, por um lado, em xeque a possibilidade representativa da linguagem e, por outro, paradoxalmente, deixando que o real indomável atue na própria narrativa por meio das lacunas que fragmentam o romance, tornando-o inacabado. Já na segunda parte deste capítulo, que se propõe a ler a obra a partir da perspectiva do crime, com Ricardo Piglia, refletiremos sobre uma característica idiossincrática dos relatos policiais, o fato de essas narrativas se construírem em torno da solução de um enigma, da cena do crime, cuja ausência dos fatos a serem reconstruídos mediante o inquérito funciona como motor narrativo. Essa possibilidade de leitura se abriu na medida em que o pano de fundo do romance parece ser governado por referentes históricos trágicos, como as ditaduras militares na América Latina e algumas guerras no continente africano, referentes que se constituem como enigmas para a história da humanidade. Nesse contexto, com Ravetti, veremos que os personagens detetives se aproximam dos performers e dos paranoicos, na medida em que essas figuras tentam exaurir o real indomável por meio da construção incessante de histórias. E, finalmente, terminaremos o capítulo analisando a figura do verdadeiro poeta na visão de Bolaño, aquele que suprimiu as barreiras entre arte e realidade, 21 arriscando-se para dar voz ao outro, para fazer falar uma boa parte da história, o que nos fará ler a performance, com Paul Ricouer, como um ato ético e generoso, de doação do artista à coletividade. Como breve consideração final, evidenciaremos como a literatura de Bolaño deixa entrever que as aspirações revolucionárias e vanguardistas do início do século passado ainda se mostram como potência que não se esgotou em todas as suas possibilidades de vida e, por isso, a literatura bolaniana pode converter-se em um lugar fecundo de crítica e transformação social, tanto por trazer, como fez nosso autor no romance em questão, os vários modos de narrar uma mesma história (a que gira em torno do Realvisceralismo e dos protagonistas), como também, como veremos em Los detectives salvajes, por de algum modo convocar o leitor a posicionar-se eticamente no mundo. 22 Capítulo 1 – Sobre o incessante trânsito performático rumo à coletividade Probablemente eran fantasmas. Pero caminaban y no volaban, como dicen que vuelan los fantasmas. Así que puede que no fueran fantasmas. Supe también que pese a caminar juntos no constituían lo que comúnmente se llama masa: sus destinos no estaban imbricados en una idea común. Los unía sólo su generosidad y su valentía. (Roberto Bolaño, Amuleto) Quando o artista transfere vivências provenientes do universo pessoal para o objeto artístico, à esfera pública são convocadas perguntas que lhe interpelam por novos sentidos e contornos. O privado, excedendo as experiências de um corpo singular para adquirir vida no espaço coletivo, parece indagar-nos sobre o estatuto mesmo do público, não mais pensado tanto em termos aglutinadores capazes de atender às diferentes demandas de uma trama social tecida por interesses controversos – inclusive quando se trata da ideia de um bem comum – mas como uma rede cujo esfacelamento do ponto de vista unívoco provoca a multiplicidade de vozes, ideologias e posições. É sobre esse trânsito performático, o da exposição de traços biográficos do artista em um espaço em comum que, na contemporaneidade, aponta para o caráter indissociável entre as fronteiras do privado e do público, que trataremos neste capítulo. Mikhail Bakhtin (2006) já nos alertara sobre a natureza social e dialógica da linguagem, abrindo caminho para se pensar sobre essa indissociabilidade do eu e do outro na formação da subjetividade. Para o russo, o indivíduo se constrói ouvindo e assimilando as palavras e os enunciados dos outros. Ele não possui “um território interior soberano” (ibidem, p.341), mas, antes disso, está sempre em um limiar cuja natureza dialógica, atravessada pela interação com outras vozes, viabiliza a própria existência do sujeito para si mesmo. Ou seja, para o autor, a intersubjetividade é contemporânea à subjetividade, e por isso o indivíduo só tem consciência de si no momento em que tem consciência do outro. Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro. Os atos mais importantes, que constituem a autoconsciência, são determinados pela relação com outra consciência (com o tu). (...)Não se trata do que ocorre dentro mas na fronteira entre a minha consciência e a consciência do outro, no limiar. Todo interior não se basta a si mesmo, está voltado para fora, dialogado, cada vivência interior está na fronteira, encontra-se com outra, e nesse encontro 23 tenso está toda a sua essência. (...) Ser significa conviver. (Ibidem, p.341 – grifo do autor) Cada enunciado, então, entendido nessa perspectiva como um fenômeno social, histórico e ideológico – sendo realizado em contextos concretos da dinâmica comunicativa – , constitui “um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados.” (Ibidem, p.272). Com isso, ele emerge inevitavelmente na interação com outros discursos, reiterando ou refutando posições em um cenário onde contracenam a ambiguidade e a contradição entre as múltiplas vozes que participam do diálogo da vida. Esse princípio, o do sujeito formado pelo diálogo de diferentes enunciados, é um ponto essencial da dialogia, e evidencia a natureza polifônica da linguagem e, consequentemente, do espaço social. Ora, sendo a consciência humana construída mediante a polifonia inerente à linguagem, na fronteira entre aquilo que é próprio e aquilo que é do outro, ela é um constructo histórico e social – e, portanto, um enunciado, necessariamente , revela traços culturais que caracterizam uma determinada época e sociedade, trazendo à tona, por seu caráter responsivo, uma pluralidade de vozes alheias, mesmo quando o ato de linguagem é marcadamente biográfico. No habrá entonces, al producirse un enunciado, ningún Adán bíblico dueño de su palabra, sino más bien una pluralidad de voces ajenas – polifonía – que habitan la propia voz, así como el fluir mismo de la comunicación en una lengua vernácula que supone en verdad una pluralidad de lenguas – heteroglosia – que remite a diferentes registros, jergas, niveles, marcas culturales e identitarias.16 (ARFUCH, 2005, p.30 – grifo da autora). É sobre as condições desse campo interdiscursivo de pugna política entre as vozes provenientes do espaço social da linguagem, evidenciado, na contemporaneidade, tanto pela vertiginosa abrangência da indústria cultural, que, em busca de mercado consumidor e estimulada pelo desenvolvimento das tecnologias da comunicação, colocou em circulação uma quantidade sem precedentes de relatos biográficos, como os blogues, a entrevista, o reality show etc; como também pela constatação, em vários âmbitos das ciências humanas, do esfacelamento das concepções universalizantes 16 “Não haverá, então, ao produzir um enunciado, nenhum Adão bíblico dono de sua palavra, mas sim uma pluralidade de vozes alheias – polifonia – que habitam a própria voz , assim como o fluir da comunicação em uma língua vernácula supõe, na realidade, uma pluralidade de línguas – heteroglossiaque remete a diferentes registros, gírias e jargões, níveis, marcas culturais e identitárias.” (ARFUCH, 2005, p.30 – grifo da autora). 24 mediante o descentramento do sujeito e a não realização das promessas da modernidade, diluindo, por um lado, a ideia essencialista que supostamente agregaria diversas vozes em torno de uma coletividade comum e, por outro, trazendo à tona as vozes de sujeitos minoritários no intento de iluminar uma realidade heterogênea e em permanente processo de hibridação, que trata Leonor Arfuch no livro O espaço biográfico (2010). A autora, em diálogo com Bakhtin, desconstrói a clássica antinomia grega entre público e privado, na qual o primeiro termo estaria relacionado ao “reino da liberdade”, onde prevalece “a ação, o discurso, a participação na ágora sobre os assuntos comuns (...) em oposição ao doméstico, reino da necessidade – a produção material pelo trabalho dos escravos e a reprodução da vida.” (Ibidem, p.85 – grifo da autora). No lugar dessa oposição, Arfuch postula que a noção de interdiscursividade social bakhtiana inviabiliza a possibilidade de se pensar o indivíduo fora da relação com o outro, ou seja, como um “ser primigênio, livre de intenção e vontade, cuja somatória conformaria o social.” (Ibidem, p.92). Tampouco se pode considerá-lo, de acordo com a teórica, como puro desenlace proveniente das engrenagens do espaço público; mas, antes disso, a partir de uma interação dialógica, na qual o indivíduo se inscreve, adquire contornos, somente nas tramas das relações sociais mediante um processo metonímico, de associação, intervindo no espaço público. Um enfoque não dissociativo entre essas esferas, a do privado e a do público/ a do individual e a do social, “o que ocorre num registro está dialogicamente articulado com outro, sem que se possa definir, com rigor de verdade, um princípio.” (Ibidem, p.99 – grifo da autora). Arfuch, dessa maneira, longe de perceber, na contemporaneidade, a emergência desmesurada das narrativas do eu como um simples processo fagocitário da esfera privada sobre a pública, estimulado, sobretudo, pelas transformações políticas das últimas décadas e pelo capital em busca de mercado consumidor (leitura que faz persistir, de algum modo, a oposição entre os pólos)17, conjetura sobre as condições históricas que possibilitaram, na modernidade, com a emergência da ideia de democracia, a visibilidade dessa trama interdiscursiva aberta à multiplicidade de vozes 17 Aludimos aqui, principalmente, ao avanço da globalização capitalista, que diluiu a ideia de nação, trazendo à tona o binômio universal/ regional com uma acentuada exacerbação do individualismo. Ou seja, com a ideia da coletividade nacional diluída, como também com a incredulidade em relação aos grandes relatos modernos, que giravam em torno da coletividade, como o principio de “igualdade, fraternidade e liberdade”, houve uma alteração da ideia de saber, isto é, o que antes era percebido de modo essencializante e dotado de valores coletivos e universais, foi transferido, para muitos estudiosos, ao indivíduo. (Ver: Lyortad, A condição pós-moderna, 2002). 25 que se reiteram, se refutam e negociam os sentidos sociais. Sob essa perspectiva, o espaço biográfico é sobretudo percebido como um lugar político, no qual é possível trazer modos de vidas que não se centram tanto na construção narcísica do eu, mas que busquem possibilidades de autocriação e afirmação das diferenças, rejeitando “o modelo único das vidas felizes (o casamento heterossexual, a descendência, as linhagens ...).” (Ibidem, p.99). (...) o espaço biográfico, tal como o concebemos, não somente alimentará o mito do eu como exaltação narcisista ou voyeurismo – tonalidades presentes em muitas de suas formas –, mas operará, prioritariamente, como ordem narrativa e orientação ética nessa modelização de hábitos, costumes, sentimentos e práticas, que é constitutiva da ordem social. (Ibidem, p.32 – grifo da autora). Cabe aqui ressaltar, no entanto, que nesse cenário de pugna política há certas posições hegemônicas, que, ao serem investidas de valores universais, são percebidas como “naturais” e, desse modo, continuamente iteradas mediante o ato de linguagem 18, o que acaba por violentar e silenciar as diferenças. Lembrando Foucault, pensamos aqui nos modos de organização que “fixam , logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar.” (FOUCAULT, 2007, p. XVI), ou seja, em dispositivos que de antemão configurariam a nossa maneira de perceber o mundo; percepção que nos leva a ação e a reprodução desses mecanismos hegemônicos. Desse modo, ainda sob essa perspectiva foucaultiana, a da existência de um a priori histórico que é, segundo o filósofo, constituído por relações de forças informes – as quais tornam possível “a condição de realidade para um enunciado” ( FOUCAULT, 2012, p.155), para as dimensões do dizível e do visível da experiência – Graciela Ravetti, no artigo “Narrativas performáticas” (2002) , argumenta que existiriam “duas expressões complementares: narrativas performáticas e vínculos performativos.”(Ibidem, p.48 – grifo da autora). Para a teórica, as primeiras, a partir da exposição de algum elemento do universo biográfico do artista no espaço coletivo, 18 No artigo “Problemáticas de la identidad” (2005), Arfuch, de modo breve, comenta que uma das definições possíveis para se pensar a hegemonia é tratá-la dentro de um campo de forças onde, em algum momento particular (e de modo contingente), uma singularidade consegue ser percebida como universal. Desse modo, ela é incorporada ao nosso sistema de valores, sendo reiterada por meio da linguagem.(Ibidem, p.34). No entanto, é justamente por essa reiteração “en la trama incesante y siempre abierta de la interdiscursividad social” (Ibidem, p.35), ou seja, em diferentes contextos e mediante distintas vozes, que tal “universalidade” pode ser “desnaturalizada”. 26 funcionariam como um modo de resistência ou resposta aos segundos, aos vínculos performativos, provenientes de posições hegemônicas, constituídas como “formas aceitas de interpelação.” (Ibidem, p.48). As narrativas performáticas estariam, então, em consonância com a concepção de espaço biográfico de Arfuch, quando esta aponta para a possibilidade de se ler a proliferação de vozes e modelos de vida na contemporaneidade como uma postura ética e responsiva aos mandatos identitários hegemônicos, o que põe em releve o dialogismo e o caráter contingente e histórico da interdiscursividade social. A concepção de narrativas performáticas mostra, desse modo, a extrapolação do privado no público (mediante o objeto artístico), o que torna a definição interessante para se pensar na literatura contemporânea, cuja enorme recorrência de obras que trazem traços autobiográficos do autor e referentes históricos – tornando indiscerníveis os limites entre realidade e ficção (tema do último capítulo) – parece reclamar por uma sociedade mais plural no horizonte em contínuo processo de reificação (ou de estereotipização) do atual estado democrático baseado no mercado de consumo. É essa postura performática, a de recorrentemente tomar posições responsivas e subversivas mediante a exposição de si, evidenciando não somente a trama polifônica e dialógica do cenário contemporâneo, mas também o caráter ficcional e, portanto, criativo da construção de um eu que se transforma na medida em que vai adotando diferentes lugares de enunciação nos jogos de linguagem, que adota Roberto Bolaño na construção de Los detectives salvajes. O romance, constituído por mais de trinta narradores, gira em torno de dois poetas iconoclastas, os quais nunca emergem na superfície textual como narradores: Arturo Belano e Ulises Lima – o primeiro, uma espécie de alter ego do autor e o segundo uma homenagem a seu amigo Mario Santiago Paspaquiaro – personagens cuja presença-ausência funciona como uma espécie de elo dialógico na trama. Com outras linhas, as múltiplas vozes convocadas pela busca dos protagonistas que o texto empreende entram em diálogo entre si a partir de um processo de rotação centrífuga, não se limitando a contar seus encontros e desencontros com essas personagens, o que traz para a narrativa relatos inacabados, que, quando se cruzam, é de modo oblíquo diante das múltiplas perspectivas presentes no romance. Não há, então, apenas uma imagem bem delineada de Belano e Lima ao final da narrativa, mas múltiplas, que se confirmam e se contradizem , sugerindo uma 27 incessante construção identitária sempre atravessada pelo outro na contínua peregrinação dessas personagens pelo mundo, como parte da América Latina, Europa e África, ao longo de vinte anos. E cabe aqui ressaltar que, como já mencionamos, sendo Belano uma espécie alter ego de Bolaño19 , a literatura surge, para o nosso autor, como uma maneira de dialogar com sua experiência de poeta marginal em México D.F, quando, juntamente com o amigo Mario Santiago Paspaquiaro , fundaram o Movimiento Infrarrealista nos meados da década de 1970. Com postura antielitista e corajosa frente ao “miedo a los desequilibrios no previstos” (BOLAÑO, 1976) que tinham, segundo os infras, os espaços do poder , e em diálogo com diversos movimentos vanguardistas da América latina, como o Hora Zero (1970) no Peru, o Infrarrealismo postulava uma poesia afastada da cultura oficial, acusada de produzir “un proceso de museificación individual.” (Ibidem). Ao invés disso, o movimento, tendo como pares figuras marginais e revolucionárias, entendia o fazer artístico como um “acontecer cultural vivo” (ibidem), comprometido com a subversão e a decomposição da própria realidade mediante uma poesia que é transformada, no manifesto do grupo redigido por Bolaño em 197620, não somente em um ato vital – “la poesía produciendo poetas produciendo poemas produciendo poesía” (ibidem) – , mas também em uma forma de luta frente aos “cementerios-que-seexpanden” (ibidem) por toda a América Latina na década de 1970, com as ditaduras militares. Desde o título, que faz referência aos versos de André Breton – “Déjenlo todo, nuevamente: primer manifiesto infrarrealista” (ibidem – grifo nosso)– e ao longo de todo o manifesto, o poeta é incumbido a abandonar tudo, a arriscar-se e a sair às ruas com o intuito de buscar nelas uma nova sensibilidade poética para transtornar a “realidad condicionada, de mil maneras, a un constante fluir.” (Ibidem). A poesia funciona assim como um modo de visão e de revolução – “el poema desplazándose lentamente de su Visión a su Revolución.” (Ibidem). Uma espécie de exercício testemunhal dotado de um viés premonitório por estar na linha de frente em uma batalha 19 Este tema, o do uso dos próprios traços biográficos na ficção, será melhor analisado mais adiante . No entanto, já adiantamos que não se trata de uma subordinação da narrativa a uma identidade exterior à ela, ou seja, de um “eu” produtor da escrita, mas, antes disso, se trata da identidade gerada pelo ato de escrever, como efeito desse processo. 20 Além do redigido por Bolaño,o Infrarrealismo possui mais dois manifestos : o de José Vicente Anaya – “Por un arte sin límites” (1975) – e o de Mario Santiago Paspaquiaro – “Manifiesto Infrarrealista” (1975). 28 onde o poeta surge comprometido com os explorados pelo estado de convulsão social governado para o bem-estar de uma minoria – “Los burgueses y los pequenos burgueses se la pasan en fiesta. Todos los fines de semana tienen una. El proletariado no tiene fiesta. Sólo funerales con ritmo. Eso va a cambiar. Los explotados tendrán una gran fiesta.”21(Ibidem). É nesse sentido que, com clara alusão aos movimentos de vanguarda artística do início do século passado – como o já mencionado surrealismo de André Breton e, principalmente, o Estridentismo, que surgiu em México na década de 1920, considerado pelos infras como seu grande precursor – o Infrarrealismo defendia uma espécie de diálogo entre as imaginações com o intuito de subverter um cotidiano e uma ideia de homem cristalizados, que ignoravam certos aspectos condicionantes da realidade histórica, naturalizando-a. Portanto, perceber o dialogismo entre as vozes da vida mediante a poesia se configurava, para o Bolaño neo-vanguardista, um modo de transformação do sujeito e da própria realidade. La verdadera imaginación es aquella que dinamita, elucida, inyecta microbios esmeraldas en otras imaginaciones. En poesía y en lo que sea, la entrada en materia tiene que ser ya la entrada en aventura. Crear las herramientas para la subversión cotidiana. Las estaciones subjetivas del ser humano, con sus bellos árboles gigantescos y obscenos, como laboratorios de experimentación.22 (Ibidem) Apesar do pouco impacto que teve o Infrarrealismo, considerado, por muitos críticos, como um movimento de pouca abrangência no panorama literário latinoamericano da década de 1970, nele já podemos entrever a postura neo-vanguardista das intervenções críticas de Bolaño, que se manteve em toda a sua carreira literária: a preferência por estratégias panfletárias e pelo uso de um senso de humor crítico – que o levou, nesses anos, como dissemos na introdução, a invadir recitais de poesia e a desdenhar da literatura que se identificava com Octavio Paz e Pablo Neruda, ícones da cultura oficial – ao invés do uso de um tom reflexivo, acadêmico ou teórico. 21 “Os burgueses e os pequenos burgueses sempre têm festas. Todos os fins de semana têm uma. O proletariado não tem festa. Somente funerais com ritmo. Isso vai mudar. Os explorados terão uma grande festa.” (BOLAÑO, 1976. Disponível em: http://manifiestos.infrarrealismo.com/primermanifiesto.html). 22 “A verdadeira imaginação é aquela que dinamita, elucida, injeta micróbios esmeraldas em outras imaginações. Na poesia e no que seja, a entrada na matéria tem que ser já a entrada na aventura. Criar as ferramentas para a subversão cotidiana. As estações subjetivas do ser humano, com suas belas árvores gigantescas e obscenas, como laboratórios de experimentação.” (BOLAÑO, 1976. Disponível em: http://manifiestos.infrarrealismo.com/primermanifiesto.html ). 29 Revisitando então esse movimento poético mediante a exposição de seus próprios traços autobiográficos em um romance constituído por diversas vozes que se convergem e se divergem em diferentes posições ideológicas, Bolaño parece performar o processo de identificação como um constructo ficcional, dialógico e polifônico, em constante hibridação – o que pode ser lido como um modo de resistência aos chamados identitários provenientes dos roteiros preestabelecidos pelos códigos hegemônicos. Pensamos aqui, sobretudo, na abertura pela qual são construídas as identidades de Lima e Belano, personagens que, posicionando-se na margem e tendo como “parientes más cercanos”23 (ibidem) figuras minoritárias, como prostitutas, vendedores de drogas, poetas marginais, dentre outros, são mostrados de maneira polifônica, desde inúmeras perspectivas, não sucumbindo ao poder de domesticação da razão totalizadora, a qual assume uma postura de compartimentalização do mundo com o interesse de regular e normatizar as vidas e os corpos humanos inscritos na linguagem. (...) pues yo era sin ninguna duda uno de los que estaba en el bando de Octavio Paz, aunque el panorama tenía más matices, en cualquier caso los real visceralistas no estaban en ninguno de los dos bandos, ni con los neopriístas ni con la otredad, ni con los neoestalinistas ni con los exquisitos, ni con los vivían del erario público ni con los que vivían de la Universidad, ni con los que se vendían ni con los que compraban, ni con los que estaban en la tradición ni con los que convertían la ignorancia en arrogancia, ni con los blancos ni con los negros, ni con los latinoamericanistas ni con los cosmopolitas.24 (BOLAÑO, 1998, p.352). É sobre esse processo híbrido e contínuo de subjetivação, pelo qual o eu é atravessado por diversos lugares de enunciação, limítrofes, de perspectivas minoritárias, assumindo uma atitude dialógica e responsiva em relação aos códigos hegemônicos, que trata José Esteban Muñoz no artigo “Introducción a la teoria de la desidentificación”(2011). O autor, com a noção de identidade reclamada pela psicanálise, que postula o processo de identificação como a realização de uma série de assimilações de acordo com o modelo que proporciona o outro, ressalta que o processo 24 “(...) pois eu era, sem nenhuma dúvida, um dos que estava no bando de Octavio Paz, ainda que o panorama tivesse mais matizes, de qualquer modo os real-visceralistas não estavam em nenhum dos dois bandos, nem com os neopriístas, nem com a alteridade, nem com os neoestalinistas ,nem com os sofisticados, nem com os que viviam com o erário público,nem com os que viviam da Universidade, nem com os que se vendiam nem com os que compravam, nem com os que estavam na tradição, nem com os que convertiam a ignorância em arrogância, nem com os brancos nem com os negros, nem com os latinoamericanistas nem com os cosmopolitas.” (BOLAÑO, 1998, p. 352). 30 de desidentificação, entendido por Muñoz como resposta a esses chamados a ser, também faz parte da formação do sujeito, aproximando-se da noção de narrativas performáticas cunhada por Ravetti. No artigo, Muñoz, partindo da ideia de que “los guiones de identidad socialmente codificados a menudo se elaboran con energia fóbica en torno a la raza, a la sexualidad y otras distinciones identificatorias”25 (ibidem, p.561), analisa algumas performances que realizam processos responsivos a esses roteiros, as quais caducam e desdobram os significados identitários ,convertendo o elemento fóbico em possibilidade de resistência e autocriação. Salienta-se assim o caráter ficcional de toda construção identitária na contramão de uma concepção fixa e naturalizada. E cabe aqui ressaltar que essas performances, ao obstruir, mediante a inserção do artista no espaço público, as concepções essencialistas que pensam as identidades de modo plano e acabado, parecem afirmar-se não como um elemento exógeno à coletividade, mas a partir de um lugar de enunciação constitutivo da trama social interdiscursiva, que foi e segue sendo violentado e silenciado pelos códigos hegemônicos. Segundo Muñoz: La desindentificación negocia estrategias de resistencia dentro del flujo del discurso y del poder. Entiende que los contradiscursos, como el discurso, siempre fluctúan según diferentes fines ideológicos, y que una línea política debe tener la capacidad de adaptarse y cambiar tan rápido como lo hace el poder dentro del discurso.26 (Ibidem, p.578). Assim, ao mesmo tempo em que se opera uma política das diferenças, o artista, paradoxalmente se insere na esfera coletiva afirmando-se como um elo constituinte de um “nós”. Gera-se, por um lado, subjetividades híbridas e em movimento, que se transfiguram a partir dos diferentes diálogos sociais, e, por outro, sugere-se uma coletividade não mais pensada em torno de uma essência comum, mas como um espaço polifônico, aberto ao devir. Desse modo, para uma obra como a de Bolaño, que mediante o performático trânsito dos traços autobiográficos do autor ao espaço coletivo desvela-se um processo dialógico, a partir do qual o jogo ambíguo de vozes provenientes de diferentes posições 25 “os roteiros de identidade socialmente codificados, com frequência, se elaboram com energias fóbicas em torno da raça, da sexualidade, do gêneros e de outras distinções identificatórias.” (MUÑOZ, 2011, p.561). 26 “A desidentificação negocia estratégias de resistência dentro do fluxo do discurso e do poder. Entende que os contradiscursos, como o discurso, sempre flutuam segundo diferentes fins ideológicos, e que uma linha política deve ter a capacidade de adaptar-se e mudar tão rápido como faz o poder dentro do discurso.” (MUÑOZ, 2011, p.578). 31 ideológicas – inclusive contrárias ao lugar de enunciação em que se coloca o chileno – faz com que surjam na narrativa subjetividades abertas, híbridas e em trânsito que negociam e reelaboram continuamente os sentidos de identidades sociais, uma chave interessante de leitura seria pensar Los detectives salvajes como performance de uma espécie de comunidade sem rosto, polifônica e em constante devir. La mejor pintura de América Latina es la que aún se hace a niveles inconscientes, el juego, la fiesta, el experimento que nos da una real visión de lo que somos y nos abre a lo que podemos será la mejor pintura de América Latina es la que pintamos con verdes y rojos y azules sobre nuestros rostros, para reconocernos en la creación incesante de la tribu.27 (BOLAÑO, 1976). 1.1 Comunidade sem rosto Se alguém levou muito a sério a questão da literatura como experiência radical de alteridade, esse alguém é Roberto Bolaño, para quem o ato de escrita corresponde a “saber meter la cabeza en lo oscuro, saber saltar al vacío, saber que la literatura es básicamente un oficio peligroso.” 28 (BOLAÑO, 2006, p.211). Em discurso em Caracas, quando recebeu o prêmio Rómulo Gallegos (1999) pela obra Los detectives salvajes, diz o autor: (…) en gran medida todo lo que he escrito es una carta de amor o de despedida a mi propia generación, los que nacimos en la década de cincuenta y los que escogimos en un momento dado el ejercicio de la milicia, en este caso sería más correcto decir la militancia, y entregamos lo poco que teníamos, lo mucho que teníamos, que era nuestra juventud, a una causa que creímos la más generosa de las causas del mundo y que en cierta forma lo era, pero en realidad no lo era. (…) Toda Latinoamérica está sembrada con los huesos de estos jóvenes olvidados. Y es ese el resorte que mueve a Cervantes a elegir la militancia en descrédito de la poesía. (…) Escoger era escoger la juventud y escoger a los derrotados y escoger a los que ya nada tenían.29 (Ibidem, p. 212-213). 27 “A melhor pintura da América Latina é a que ainda se constrói mediante os níveis inconscientes, o jogo, a festa, o experimento que nos dá uma real visão do que somos e nos abre ao que podemos será a melhor pintura da América Latina é a que pintamos com verdes e vermelhos e azuis sobre nossos rostos, para nos reconhecer na criação incessante da tribo.” (BOLAÑO, 1976. Disponível em: http://manifiestos.infrarrealismo.com/primermanifiesto.html ) 28 “saber meter a cabeça no escuro, saber saltar no vazio, saber que a literatura é basicamente um oficio perigoso.” (BOLAÑO, 2006, p.211). 29 “(...) em grande medida tudo que escrevi é uma carta de amor ou de despedida a minha própria geração, os que nasceram na década de cinquenta e os que escolhemos em um momento determinado o exercício da milícia, seria mais correto dizer militância, e entregamos o pouco que tínhamos, o muito que tínhamos, que era nossa juventude, a uma causa que pensávamos ser a mais generosa das causas do mundo e que de 32 Um modo de conceber literatura, portanto, como assunto coletivo, como máquina polifônica e revolucionária cujo centro se apresenta despedaçado, fragmentado em suas origens; um modo de construção literária que empreende processos de marginalização que colocam a escrita em uma zona ameaçada pelo silêncio, desde onde, o traço autoral, não mais atrelado a uma identidade fixa e bem delimitada, se expõe a um espaço limiar de devir, no qual pululam singularidades em constante desaparecimento e (re)articulações. Apontamos aqui à necessária passagem do individual ao coletivo, reclamada por Graciela Ravetti, ao movimento performático, em Nem pedra na pedra, nem ar no ar (2011). O comportamento performático, diz a teórica, não aceita a separação interioridade-exterioridade; pelo contrário, ele exprime uma dimensão em que a potência , a intencionalidade e a força de realização – o corpo atualiza-se no espaço – compõem seu além de si, seus contatos com os outros, seu ser em comunidade (...).(RAVETTI, 2011, p.30). Uma condição então para que noções a princípio tão díspares como literatura e performance possam dialogar, seria o abandono, por parte do escritor, de demandas provenientes de espaços institucionalizados, como, por exemplo, os meios acadêmicos e editoriais, demandas estas que , por alimentar o mito em torno do autor, acabam por dificultar a inserção criativa do artista no espaço público. Ou seja, pensamos aqui no trânsito pelo qual o artista se insere na esfera pública propriamente dita, pensada não de modo totalizante, mas como uma zona de atrito mediante a qual, o escritor, em contato com outras singularidades, pode imaginar intervenções possíveis na comunidade, abrindo-se, por um lado, para o “além de si” mencionado por Ravetti, e, por outro, sustentando “um sentido de identidade cujo vazio produz vertigem” (Ibidem, p.28). A performance, comenta a autora, “atua como ligação em permanente do que é chamado de relações entre literatura e mundo, biografia e obra, referente e ficção, escrita e vida , e tantas outras denominações.” (Ibidem, p.34). Um romance pode ser considerado, portanto, performático quando procura uma aproximação direta com a vida, tendo a experiência do artista como evidência dessa certa maneira era, mas na realidade não era (...). Toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos. E é isto que move Cervantes a escolher a militância em descrédito da poesia. (...) Escolher era escolher a juventude e escolher os derrotados e escolher os que já nada tinham.”(BOLAÑO, 2006, p. 212-213). 33 relação; quando se coloca em um entre-lugar no qual a representação confunde-se com a ação, extrapolando os limites de espaços destinados a práticas artísticas; quando, enfim, não se afirma como pura ficção, mas que se deixa atravessar, sendo um ato artístico transgressor, por experiências nas quais a interação entre o individual e o coletivo – a do ser em diálogo com outras singularidades – acaba por tocar em temas impalatáveis ao olhar de uma sociedade que se fundamenta a partir de um princípio de identidade supostamente compartilhado por todos, a partir do qual as diferenças, reduzidas a arquétipos identitários do que viria a ser nossa origem como povo, são homogeneizadas. Desse modo, ainda de acordo com Ravetti, os romances cunhados por ela como narrativas performáticas abrigam, por um lado, aquilo que “é rebelde à representabilidade e refratário à necessidade de elaborar enredos para conferir inteligibilidade ao representado” (ibidem, p.45) e, por outro, evidenciam (...) a disponibilidade do autor de se entregar a diversas personagens, o que permite multiplicar as agências no mundo, assumindo diversas intensidades e perspectivas e deixando-se levar por elas. O autor, mediante sua primeira performance como narrador, propõe-se a si mesmo como veículo para a representação das transformações corpóreas e incorpóreas dos corpos em sociedade e o faz, muitas vezes, mediante o aparecimento de si mesmo, o que confere à escrita uma nuance mais ou menos autobiográfica, confessional ou testemunhal. Trata-se de uma interação entre o público e o privado, o pessoal e o comunitário. (Ibidem, p.38). As narrativas performáticas seriam assim capazes de incorporar vozes alheias a do autor mediante o aparecimento de si em uma zona limiar, de contato com o outro: o autor – “como veículo (...) das transformações corpóreas e incorpóreas dos corpos em sociedade”, como nos lembrou Ravetti – se colocaria em um entre-lugar de errância, de exílio, marcado por diálogos sociais , movimento cujo motor residiria no surgimento do artista no texto, o que pode travar uma interessante leitura com a construção de Los detectives salvajes. Nesse romance, como já mencionamos, traços biográficos de Bolaño se cruzam inúmeras vezes com os do protagonista Arturo Belano: ambos nasceram no Chile; ambos, na juventude, fundaram um movimento de poesia vanguardista em México D.F (Bolaño, com o amigo Mario Santiago Paspaquiaro, o Infrarrealismo; e Belano, juntamente com Ulises Lima, o já mencionado grupo com o sugestivo nome de Realvisceralismo) ; ambos trabalharam como vigias noturno em um camping próximo a Barcelona, dentre outras aproximações. Uma espécie de construção 34 de identidade que, como vimos, sem buscar a síntese dialética, é atravessada pelos mais de trinta narradores do romance, tornando-a aberta às múltiplas possibilidades de diálogos criativos em um contexto que insiste em minar as vozes das minorias mediante a interpelação dos códigos hegemônicos. É, portanto, nessa permeabilidade do “eu” que Bolaño tece o fazer artístico, o que faz com que suas obras girem em torno de questões que extrapolam o estritamente literário, uma espécie de linha de fuga representacional que se propõe a discorrer sobre uma realidade histórica aberta a um real cuja agitação caduca as amarras paralisantes de uma suposta objetividade pautada pelo que é consensual e previsível. O surgimento de traços autobiográficos em suas obras não deve, portanto, ser lido, tendo em vista as demandas dos campos editoriais, como um modo do artista se construir em volta do mito do escritor aclamado pela crítica , mas sim como uma maneira de ele estar no desdobramento de si como outro, em um entre-lugar polifônico e dialógico onde o fazer literário se converte na possibilidade de intervir em um espaço limítrofe, nem completamente próprio, nem completamente alheio, que não aceita a distinção entre interioridade e exterioridade, como mencionou Ravetti. Sobre o uso de dados autobiográficos na ficção, Bolaño, em entrevista a Carmen Boullosa, afirma que “la literatura está llena de autobiografias”30 (BOLAÑO apud BOULLOSA, 2006, p. 111), mas que, no entanto, se diferem do autorretrato, que “exige cierta voluntad, un ego que se mira y remira, un interés manifiesto por lo que uno es o ha sido.”31 (Ibidem, p.111). Os traços autobiográficos presentes no exercício literário então, ao não estarem subordinados à autoridade do ego do autor, ou seja, da noção de sujeito ancorada em uma identidade bem delimitada e exterior à palavra literária, seriam revirados, desdobrados: abriria, assim, uma passagem para um espaço alheio ao eu do artista, o que faz surgir na superfície narrativa uma coletividade exposta mais em termos de singularidades em constante devir do que pensada em termos essencializantes e gerais. Dito de outro modo, esses jogos referenciais presentes em Los detectives salvajes são construídos não para propor uma construção simétrica entre o romance e os dados empíricos nele presentes, mas sim para evidenciar, na literatura, um espaço 30 “a literatura está cheia de autobiografias”. (BOLAÑO apud BOULLOSA, 2006, p. 111). “exige certa vontade, um ego que se olha uma e outra vez, um interesse manifesto pelo que um determinado indivíduo é ou tenha sido.” (Ibidem, p. 111). 31 35 propulsor no qual o escritor possa se colocar em contato com o outro, delineando uma espécie de comunidade literária em permanente fuga, a qual é imbricada, no romance, à experiência de vida de poetas que, assim como Bolaño, nasceram na década de 50, perceberam na arte uma possibilidade de mudar o mundo mediante a criação de “un movimiento a escala latinoamericana” (BOLAÑO, 1998, p.36) e, por isso, entregaram o próprio corpo para dar voz a “los derrotados” e a “los que ya nada tenían” (BOLAÑO, 2006, p.213); poetas cujas palavras “son las palabras de la tribu que no cesan de indagar, de investigar, de referir todas las historias. Pese a que esas palabras estén circundadas por el silencio, minuto a minuto erosionadas por el silencio(...)”32 (BOLAÑO,1998, p. 205 – grifo nosso) Uma comunidade literária, portanto, que se funda em torno de uma heterogeneidade constitutiva, a qual, desprovida de um discurso fundador único e bem delimitado, mantém-se em permanentemente estado de abertura para o outro. Pensamos aqui na concepção de comunidade adotada pelo filósofo Jean-Luc Nancy, em La comunidad inoperante (2000). O autor, buscando refletir sobre a experiência de exterminação efetuada pelos nazistas durante o século passado no continente europeu, comenta sobre o risco de se pensar a comunidade em volta de um mito fundador, o qual sugere uma comunhão perdida e, consequentemente, uma comunidade idêntica a si mesma, essencializante, totalizadora e totalitária. El mito comunica lo común, el ser-común de lo que revela o de lo que relata. Al mismo tiempo, por consiguiente, (…)revela también la comunidad a sí misma, y la funda. El mito es siempre mito de la comunidad, vale decir, es siempre mito de la comunión – voz única de muchos – capaz de inventar y de compartir el mito.33 (Ibidem, p.64grifo nosso). É na contramão desse invento mitológico postulado pelo sentimento nostálgico característico da era moderna34 que Nancy defende uma comunidade em aberto, a qual 32 “são as palavras da tribo que não cessam de indagar, de investigar, de referir a todas as histórias. Apesar de que essas palavras estejam circundadas pelo silêncio, minuto a minuto corroídas pelo silêncio (...).” (Ibidem, p.205) 33 “O mito comunica o comum, o ser-comum do que revela ou do que relata. Ao mesmo tempo, por conseguinte, (...) revela também a comunidade a si mesma, e a funda. O mito é sempre mito da comunidade, ou melhor, é sempre mito da comunhão – voz única de muitos – capaz de inventar e de compartilhar o mito.” (NANCY, 2000, p.64 – grifo nosso) 34 De acordo com Nancy, foi no romantismo que se deu o reinvento moderno da mitologia, ou seja, da crença em uma cena originária fundadora da comunidade, cujos traços característicos são a simultânea 36 interrompe a ideia de um mito comum e, justamente por isso, obstrui as ideias de progresso, destino comunitário e história teleológica. A comunidade inoperante, desprovida de um projeto totalizador, se define então mais pela exposição de singularidades do que pela comunhão de uma essência que pudesse levar à fusão de si mesma, tornando-se assim imanente. Ela é, para o filósofo, comum na medida em que se localiza na lacuna entre seres cuja finitude constitui sua singularidade essencial (ibidem, p.92) e, sendo assim, esse modo de pensar a comunidade pressupõe a abertura e o inacabamento – um vazio constitutivo que lhe permitiria estar em constante processo de obrar-se, “en el sentido que siempre está viniendo, sin parar, al seno de una colectividad (es porque no deja de venir que resiste sin fin a la propia colectividad y al individuo.”35 (Ibidem, p.86 – grifo do autor). E cabe aqui salientar que nessa perspectiva, a da exposição da finitude dos seres, o filósofo percebe a literatura como a experiência dessa noção de comunidade, uma vez que seu discurso se constrói no espaço dialógico da escrita e da fala. Ora, na medida em que, como vimos, não se pode conceber a construção de um enunciado fora da trama interdiscursiva, o espaço literário, que evidencia a voz e, portanto, a subjetividade, é considerado por Nancy como o desvelamento do limite em que ocorre a comunicação propriamente dita, pensada não enquanto uma mensagem a ser transmitida, mas como “la línea de reparto donde los unos están expuestos a los otros”36 (Ibidem, p.79): um entre-lugar no qual surgem seres finitos, infinitamente, incessantemente. La literatura no acaba en el lugar mismo en que acaba: en su borde, justo en la línea del reparto – una línea a veces recta (el borde, el reborde de un libro), a veces increíblemente contorneada o quebrada (la escritura, la lectura). No acaba en el sitio en que la obra pasa de un autor a un lector, y de este lector a otro lector, y de este lector a otro lector o a otro autor. (…) No acaba allí donde su relato pasa a otros relatos, su poema a otros poemas, su pensamiento a otros pensamientos, o a la suspensión inevitable del pensamiento o del poema. Porque inacabada e inacabante, ella es literatura.37 (Ibidem, p.79). consciência da perda de poder desse mito e o desejo nostálgico de voltar a encontrar esse mito fundador. (NANCY, 2000, p.58). 35 “no sentido que está sempre vindo, sem parar, ao seio de uma coletividade (é porque não deixa de vir que resiste sem fim a própria coletividade e ao individuo).” (Ibidem, p.86 – grifo do autor). 36 “a linha de distribuição onde uns estão expostos a outros” (Ibidem, p.79). 37 “A literatura não acaba no lugar mesmo em que acaba: na sua beirada, justo na linha de distribuição – uma linha às vezes reta (a beirada, a borda de um livro), às vezes incrivelmente encurvada ou quebrada (a escritura, a leitura). Não acaba no lugar em que a obra passa de um autor a um leitor, e deste leitor a outro leitor, y deste leitor a outro leitor ou a outro autor. (...) Não acaba ali onde seu relato passa a outros 37 Sobre essa ideia de ausência de fim na literatura, Giorgio Agamben, no ensaio “O fim do poema”(2002) , nos fala do paradoxo que gira em torno do final de um texto poético. Para o filósofo, o que distingue a poesia da prosa é o fato de que a primeira, ao trazer a tensão (e a possível interferência) entre o som e o sentido, se funda necessariamente na possibilidade do enjambement. No entanto, nos adverte Agamben, como pensar sobre o “fim do poema” como poesia se, no último verso, ou seja, na “última estrutura formal perceptível de um texto poético” (ibidem, p.144), é inconcebível a possibilidade do enjambement ou da tensão entre som e sentido que seria, de algum modo, retomada no próximo verso? Nesta perspectiva, o “fim do poema” se transformaria em uma prosa? A partir dessas questões, o italiano então problematiza o conceito de finitude, deixando entrever que embora o “fim do poema” não possa tomar forma definitiva devido a impossibilidade da própria linguagem de fazer coincidir plenamente forma e sentido, ele se dá, paradoxalmente, pela sua própria suspensão mediante o último verso, ou seja, mediante aquilo que o texto institui como fim. Com outras palavras, se o que constitui o texto poético é a tensão nunca resolvida entre os fluxos semióticos e semânticos, o “fim do poema” ocorre quando há a ameaça da anulação da forma frente ao império do sentido. O desarranjo do último verso é um indício da relevância estrutural e não contingente que tem, na economia poética, o evento que denominei o fim do poema. Como se o poema, enquanto estrutura formal, não devesse findar, como se a possibilidade do fim lhe fosse radicalmente subtraída, já que implicaria esse impossível poético que é a coincidência exata de som e sentido. No ponto em que o som está prestes a arruinar-se no abismo do sentido, o poema procura uma saída suspendendo, por assim dizer, o próprio fim, numa declaração de emergência poética. (Ibidem, p.146 – grifo do autor). Reclamamos assim que o romance em questão parece apontar para a suspensão dos seus próprios contornos (os quais delimitariam os limites de uma comunidade literária) mediante tanto a performática exposição dos traços autobiográficos do autor como via de se inserir na comunidade enquanto ser finito, em comum e em contato com o outro, o que multiplica e problematiza uma possível origem dessa comunidade, como também pela exposição de um movimento literário que nunca toma forma definitiva, e, relatos, seu poema a outros poemas, seu pensamento a outros pensamentos, ou a suspensão inevitável do pensamento ou do poema. Porque inacabada e inacabante, ela é a literatura.” (Ibidem, p.79). 38 exatamente por isso, torna-se ambíguo, isto é, sublinha a tensão entre forma e conteúdo, suspendendo, por um lado, o seu próprio fim, como nos lembra Agamben , e , por outro, abrindo-se para caminhos imprevistos de criação: o que o faz adquirir contornos performáticos, ou seja, como veremos no capítulo 2, ele é percebido mais por seu processo de realização em contato com as várias vozes do romance do que por um sentido fixo e bem delimitado, que o transformaria em um produto acabado. É nesse sentido que o vagar nômade que empreendem os real-visceralistas, Belano e Lima, por várias regiões do mundo, acaba por tecer uma obra cujo caráter inacabado e, portanto, inacessível em sua totalidade, faz reverberar inúmeras vozes e relatos propiciados por uma comunidade literária selvagem, que transcende as amarras paralisantes dos nacionalismos, trazendo à tona “uma estética transnacional que permita o híbrido de intensidade poética e historicidade.” (RAVETTI, 2002, p. 50). A narrativa parece então conceder à literatura latino-americana, que surge no romance mediante a aparição e desaparição do Realvisceralismo, um espaço que performa uma origem impossível e, exatamente por isso, múltipla e incompleta: afinal, os testemunhos organizados e recolhidos por um editor oculto – constituídos, grande parte das vezes, por vozes de pessoas ligadas ao mundo literário, como editores de revistas, acadêmicos, poetas marginais, dentre outras personagens – estão dispersos no tempo e no espaço, o que faz com que o romance, que continuamente persegue os rastros de Belano e Lima em zonas degeneradas pela guerra e pela miséria humana, entre em um progressivo processo de marginalização, culminando na interrupção de “la escena originaria de nuestra comunión” (NANCY,2000,p.79) e, consequentemente, da ideia de uma comunidade idêntica a si mesma, acabada e totalizante. Em outras palavras, ao diário do poeta real-visceralista Juan García Madero que inicia e finaliza o romance constituído por três partes, é interposta a segunda parte da narrativa (1976-1996), a qual cronologicamente está situada em um momento posterior ao da terceira (1976), onde a presença das inúmeras histórias que evidenciam a errância dos protagonistas por boa parte da América Latina, África e Europa parece ter sido desatada pela interrupção de uma espécie de mito de comunhão literária, se percebemos, o que nos parece bastante plausível, a morte de Cesárea Tinajero nos desertos de Sonora, poetisa considerada pelos protagonistas precursora do Realvisceralismo , como a interrupção da busca de uma origem (e, portanto, de um destino comunitário 39 compartilhado) para a literatura latino-americana. Afinal, a partir desse episódio, que corresponde à terceira e última parte do livro, quando, junto com Madero, Ulises e Lima empreendem a busca da mãe do Realvisceralismo pelos desertos de Sonora, abre-se o trânsito, se pensarmos na sequência cronológica do romance, para a segunda parte, para a fala incessante das dezenas de vozes finitas inseridas em um território em comum – as quais são bem delimitadas no tempo e no espaço através da introdução de cada uma delas pelo nome de quem está narrando , pela data e pelo local em que foi dado o depoimento. No romance, a atmosfera de imprecisão e de falta de sentido existencial instaurado pela não realização dos projetos revolucionários (encenada mediante a morte de Cesárea), parte onde há o trânsito de inúmeras personagens na “(...) triste e irremediable condición de sudamericanos perdidos en Europa, perdidos en el mundo (…) (BOLAÑO, 1998, p.234), parece traçar uma comunidade literária pautada pela orfandade, como em certo momento diz um dos narradores – “todos los poetas, incluso los más vanguardistas, necesitan un padre. Pero éstos eran huérfanos de vocación” (Ibidem, p.177) ; uma geração de poetas vanguardistas que “iba cambiar la poesía latinoamericana” (Ibidem, p.17) e, por isso, ia também transformar o mundo, se considerarmos a íntima relação entre poesia, vida e política presente nos movimentos artísticos de vanguarda latino-americanos do século passado, como o Hora Zero no Peru, o Infrarrealismo no México, o Nadaísta em Colômbia (ibidem, p.241), dentre outros muitos mencionados na narrativa – mas, que, no entanto, se deparou com o fracasso dos seus projetos em meio à violência e aos cadáveres multiplicados pelo horror da repressão dos regimes ditatoriais em grande parte da América Latina. É então entre o uso de seus traços autobiográficos – como a sua experiência de poeta vanguardista na década de 1970 em México D.F – e o desdobramento de si como outro – seja se transformando em personagem, o que “já implica um pensar estranhado que o multiplica e que, ao mesmo tempo, o diferencia de si mesmo, assemelhando-o ao outro” (RAVETTI, 2011, p.33), seja dando voz às dezenas de personagens reais e ficcionais que sobressaltam no romance – que Bolaño traça o lugar do fazer literário, o qual se encontra, para o autor, afastado do ideal romântico da literatura como expressão da essência de um povo, mas, antes disso, concebendo-a como um espaço que afirma o estar em comum entre as diversas vozes que a constitui enquanto um obrar-se em aberto 40 – retirada de toda sua essência, a literatura surge como agenciadora da dinâmica compartilhada entre as finitudes – o que faz com que o objeto artístico assimile a crítica ao caráter totalitário da comunidade apontado por Nancy e possibilite a constituição da vida em comum sem qualquer barreira do tipo identificável, seja ela de raça, religião, geografia etc . Durante un tiempo la Crítica acompaña la Obra, luego la Crítica se desvanece y son los Lectores quienes la acompañan. El viaje puede ser largo o corto. Luego los Lectores mueren uno por uno y la Obra sigue sola, aunque otra Crítica y otros lectores poco a poco vayan acompañándose a su singladura. Luego la Crítica muere otra vez y los Lectores mueren otra vez y sobre esta huella de huesos sigue la Obra su viaje hacia la soledad. Acercarse a ella, navegar a su estela es señal inequívoca de muerte segura, pero otra Crítica y otros Lectores se le acercan incansables e implacables y el tiempo y la velocidad los devoran. Finalmente la Obra viaja irremediablemente sola en la Inmensidad. Y un día la Obra muere, como mueren todas las cosas, como se extinguirá el Sol y la Tierra, el Sistema Solar y la Galaxia y la más recóndita memoria de los hombres.38 (BOLAÑO, 1998, p.484). Percebemos assim no romance em questão, uma crítica de Bolaño aos regimes totalitários de um modo em geral, não apenas aos de direita, mas também uma profunda desilusão em relação à esquerda, que, segundo o autor, amparada por modelos que são, de certo modo, fechados e totalizantes, “de haber vencido nos habrían enviado de inmediato a un campo de trabajos forzados, (...) un ideal que hacía más de cincuenta años que estaba muerto”39 (BOLAÑO, 2006, p.212), o que instaura um ponto de inflexão no modo de entender o real a partir de dicotomias que tentam categorizar o mundo, como, por exemplo, norte/sul, esquerda/direita etc. Livre de parâmetros universais de identificação, a força vanguardista da comunidade literária que Bolaño parece traçar em Los detectives salvajes reside então menos em um projeto literário bem delineado por padrões formais, e mais na obstrução 38 “Durante um tempo a Crítica acompanha a Obra, logo a Crítica se desvanece e são os Leitores que a acompanham. A viagem pode ser longa ou curta. Logo, os leitores morrem um por um e a Obra segue sozinha, ainda que outra Crítica e outros leitores pouco a pouco vão acompanhando a sua singradura. Logo a Crítica morre outra vez e os Leitores morrem outra vez e sobre esta pegada de ossos segue a obra rumo a solidão. Aproximar-se dela, navegar em seu rastro é sinal inequívoco de morte, mas outra Crítica e outros leitores aproximam-se incansáveis e implacáveis e o tempo e a velocidade os devoram. Finalmente a Obra viaja irremediavelmente sozinha na Imensidão. E um dia a Obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirá o Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia e a mais recôndita memória dos homens.” (Ibidem, p. 484). 39 “se houvesse vencido, nos enviariam imediatamente a um campo de trabalhos forçados, (...) um ideal que fazia mais de cinquenta anos que estava morto.” (BOLAÑO, 2006, p.212) 41 no modo de pensar a literatura como um produto acabado, em cujo centro estaria a essência do que viria a ser a arte latino-americana e, consequentemente, do que viria a ser a própria literatura, que, pautada pela exclusão de discursos e temas considerados externos à ela – como as artes visuais, a ciência-ficção, a pornografia e também as temáticas vinculadas a vozes de pessoas consideradas marginais – criaria um efeito de interioridade com o intuito de delinear um espaço canônico e autônomo , tema que será melhor abordado no segundo capítulo . No entanto, cabe aqui ressaltar que na contramão dessa ideia da arte como essência de um povo, reiterada até os dias atuais por grande parte do mercado editorial que insiste em reduzir a literatura latino-americana a “un macondismo repetido hasta la exasperación” (MANZONI,2006, p.14), Bolaño parece reivindicar ao escritor uma certa postura valente, que, longe das demandas provenientes do stablishment oficial, seria capaz de localizar-se na margem e de incorporar, mediante o performático trânsito entre público e privado, uma comunidade literária pautada pela multiplicidade tanto no que se refere aos lugares de enunciação, como também às formas menosprezadas por grande parte da crítica literária – uma comunidade selvagem, em permanente fuga, cujos limites não são demarcados por características meramente estéticas, mas sim por uma aproximação direta com a vida, abrindo-se paulatinamente para a exposição de singularidades finitas : seja mediante as vozes dos narradores em torno da obra ausente fulgurada pela presença-ausência dos protagonistas, seja mediante os leitores de Los detectives salvajes , os quais, diante do romance inacabado, são convocados a acompanhar a obra em sua singradura “hacia la soledad”, estabelecendo caminhos imprevistos para a literatura latino-americana. 1.2 Experiência e ética Quando Giorgio Agamben, em Infância e História (2008a), nos introduz na discussão sobre experiência, afirma que além das catástrofes mundiais apontadas por Benjamin como o estopim que desatou nos homens a mudez e a incapacidade de transmitir suas vivências, a “pacífica existência cotidiana em uma grande cidade” (ibidem, p.22) também fez com que o homem se visse expropriado da possibilidade de ter e fazer experiência: a ele lhe é interditado apropriar-se de sua vivência, e de nela fundamentar sua autoridade de fala. 42 A experiência, diz o filósofo, “tem o seu correlato não no conhecimento, mas na autoridade” (ibidem, p.23) e “o que caracteriza o tempo presente é que toda autoridade tem o seu fundamento no inexperienciável” (ibidem, p.23 – grifo do autor), no espaço abstrato e infinito da ciência. Altera-se assim não somente a noção de sujeito clássica, formada pela oposição entre os sujeitos empírico (psyqué) e cognitivo (nous), que na modernidade foram unidos sob a figura do sujeito cartesiano, mas também a noção de experiência. Com a instauração do homem da ciência, a experiência foi transferida para fora do indivíduo, efetuando-se no experimento – que traduz “as impressões sensíveis na exatidão de determinações quantitativas e, assim, prever impressões futuras.” (Ibidem, p.26). A autoridade então deixa de ser algo experienciável, passando a ser da ordem daquilo que pode apenas ser conhecido. A transformação de seu sujeito não deixa imutável a experiência tradicional. Enquanto o seu fim era o de conduzir o homem à maturidade, ou seja, a uma antecipação da morte como ideia de uma totalidade consumada da experiência, ela era de fato algo essencialmente finito, e logo, era algo que se podia ter e não somente fazer.Mas, uma vez referida ao sujeito da ciência, que não pode atingir a maturidade, mas apenas acrescer os próprios conhecimentos, a experiência tornar-se-á, ao contrário, algo de essencialmente infinito, (...) algo que se pode somente fazer e jamais ter : nada mais, precisamente, do que o processo infinito do conhecimento. (Ibidem, p.32-33 – grifo do autor). Se a autoridade que fundamentava a experiência foi conduzida ao abstrato e infinito espaço dos instrumentos e dos números, tornando o indivíduo cada vez mais incapaz de traduzir suas vivências, ao homem contemporâneo, embora não lhe seja mais possível, como vimos na passagem mencionada, possuir experiência, ainda lhe é possível fazê-la, desde que ele se coloque, segundo Agamben, na infância – entendida não como uma idade cronológica, mas como um hiato a partir do qual é exposta a relação entre experiência e linguagem, ou seja, a relação pela qual o homem se constitui pela e na linguagem. A infância, como espaço descontínuo e intransponível entre voz e discurso, natureza e cultura, é então a condição da experiência humana, onde o sujeito se arrisca para tornar possível a si mesmo “algo como um ethos e uma comunidade” (ibidem, p.16 – grifo do autor). Uma descontinuidade, portanto, que, por um lado, nos alerta para os elementos libidinal e contingente que atravessam a emergência e constituição do sujeito no espaço linguístico do qual deve apropriar-se, designando-se eu e, por outro, aponta para o caráter aberto e intermitente da linguagem. 43 Pois é óbvio que, para um ser cuja experiência da linguagem não se apresentasse desde sempre cindida em língua e discurso, um ser que já fosse, portanto, sempre falante e estivesse sempre em uma língua indivisa, não existiriam nem conhecimento, nem infância, nem história: ele seria desde sempre unido à sua natureza linguística e não encontraria em nenhuma parte uma descontinuidade e uma diferença nas quais algo como um saber e uma experiência poderiam produzirse. (Ibidem, p.14). Como não aderência do ser à linguagem, ou seja, como condição permanente do homem de aprender a falar e a ser falado, a aposta na infância, desse modo, faria emergir “o ser-na-linguagem-do-não-linguístico” (AGAMBEN, 1993, p.76), isto é, o ser se inscreveria, a cada vez que se lançasse nessa lacuna, como singularidade que se distingue das outras simplesmente pelo fato de estar também viva, como ser no vazio da existência impartilhável e solitária (avesso a qualquer possibilidade de delimitar-se a um conceito), atravessado por pulsões e desejos de um corpo em sua idiossincrasia. O não-linguístico, a singularidade que irrompe a partir da experiência na infância, sob essa perspectiva, não existiria enquanto tal, mas somente quando exposto na linguagem – elemento cuja opacidade acaba por transformar o próprio espaço linguístico, inserindolhe fraturas e descontinuidades. A ideia de uma infância como uma substância psíquica pré-subjetiva revela-se então um mito, (...) e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste círculo que devemos procurar o lugar da experiência enquanto infância do homem. Pois a experiência, a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se em palavra (...), mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito.(AGAMBEN, 2008a, p.59 – grifo do autor). Abrimos assim um diálogo com a ideia de comunidade inoperante de Nancy, quando o filósofo a concebe, como vimos, a partir da abertura e do inacabamento, apresentando-se, a nosso ver, como um espaço passível de experiência. Com outras palavras, como possibilidade de deslocamento que o sujeito realiza em relação ao próprio discurso com o intuito de localizar-se mais uma vez na infância, a experiência, que se constitui, para Agamben, como experimentum linguae, acaba por manter em movimento a comunidade inoperante descrita por Nancy, fazendo irromper, a cada 44 deslocamento dos sujeitos, singularidades que não cessam de vir enquanto essa comunidade for o espaço pelo e no qual o homem se constitui, ou seja, enquanto estiver viva mediante os falantes. Sob essa perspectiva, a literatura, concebida por Nancy como uma forma de experiência dessa comunidade em aberto, é pensada então como algo que não cessa de abrir caminhos. Nessa concepção, a da experiência como modo de deslocar os limites da linguagem, Ricardo Piglia, em “Uma proposta para o novo milênio” (2012), com um desafio um tanto quanto menardiano, escreve sobre a sexta e última proposta que faltou à série de conferências realizadas por Italo Calvino, cujo título era Seis propostas para o próximo milênio. Piglia, aproveitando de uma certa vantagem que a perspectiva da margem lhe oferecia, postulou que o lugar da literatura requer um olhar enviesado propiciado por um deslocamento do centro. A linguagem literária é entendida assim como território limítrofe onde o escritor se lança em direção ao ponto cego da experiência mediante um diálogo de alteridades. Trata-se de pensar a literatura, comenta Piglia, não apenas como fim – “os fins da história, dos grandes relatos, como se diz –, mas como algo que começa, que abre caminho” (ibidem, p.270), que torna visível a rede múltipla de sentidos. A literatura seria o lugar em que é sempre outro quem vem dizer. Eu sou outro, como dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse outro é o que se deve saber ouvir para que aquilo que se conta não seja mera informação, mas tenha a forma de experiência. Creio, então, que poderíamos imaginar que há uma sexta proposta. A proposta que eu chamaria, então, de distância, deslocamento, mudança de lugar. Sair do centro, deixar que a linguagem fale também na margem, no que se ouve, no que chega de outro. (Ibidem, p.273). A partir então das observações de Agamben, Nancy e Piglia, apontamos a um certo tipo de fazer literário que , por meio do deslocamento que o escritor realiza em relação a si mesmo, seja se desdobrando em personagem, o que pressupõe um olhar estranhado, seja se colocando na margem para escutar o outro a partir de um distanciamento da tradição cultural hegemônica, o induz a posicionar-se, talvez, na infância apontada por Agamben: afinal, escutar o outro é situar-se nesse limiar entre natureza e cultura, onde franqueiam-se caminhos para apropriar-se de uma língua que não é própria, constituindo-se uma vez mais como sujeito; sobretudo quando esse outro faz parte de uma tradição cultural violentada e silenciada pelos processos 45 modernizatórios, de cujo experimentum linguae restam poucas singularidades e, desse modo, apresenta-se, talvez, como um território menos explorado que outros pela literatura. Entra-se então não só em contato com outras singularidades e posições ideológicas da linguagem, mas também em contato com a idiossincrasia presente naquela brecha instransponível entre natureza e cultura, voz e discurso, e, tendo em vista a performance40, acrescentamos aqui, entre corpo e identidade. A arte como lugar de deslocamento dialógico e também de irrupção do não-linguístico na linguagem41 colocaria em xeque então a identidade do próprio artista, que se abriria ao caráter contingente da experiência. É essa postura de risco que reclama Bolaño ao verdadeiro poeta. Nas palavras do autor: El riesgo siempre está en otra parte. El verdadero poeta es el que siempre está abandonándose. Nunca demasiado tiempo en un mismo lugar, como los guerrilleros, como los ojos blancos de los prisioneros a cadena perpetua.42(BOLAÑO, 1976). Partimos assim da hipótese de que Bolaño, localizando-se nessa brecha entre experiência e linguagem, entre seus próprios traços biográficos e o espaço histórico e polifônico da linguagem, abriria, na literatura, o âmbito público da ética. Ora, na medida em que é na infância em que se encontra o espaço onde o homem para falar, para designar-se eu e constituir-se como sujeito singular, deve operar uma descontinuidade na língua, inserindo-se em um espaço em comum, em contato com outras singularidades, a experiência configura-se como possibilidade de intervenção ética no espaço social da linguagem. Dito de outro modo, é somente a partir da idiossincrasia do 40 No artigo “Narrativas performáticas”(2002), Graciela Ravetti nos chama atenção para o desvelamento do caráter ficcional da identidade mediante o já mencionado trânsito performático entre privado e público. Segundo a autora, a performance não somente desnaturaliza os chamados a ser, como também expõe “singularidades pessoais que se negam a ser representadas sob títulos racionalizados”(ibidem, p.61), o que demonstra essa brecha, essa dissociação entre corpo e identidade. 41 Em O que resta de Auschiwitz (2008b), Agamben, tendo como fonte a tese central do fisiologista Bichat, concebe a vida cindida em si mesma, mediante uma “desconexão entre o orgânico e o animal”(ibidem,p.154), ou seja, entre a vida biológica (de assimilação e excreção) e a vida de relação com o mundo exterior. Segundo o filósofo, as tecnologias biopolíticas operam justamente nessa fratura constituinte do homem, efetivando “o pesadelo de uma vida vegetativa que sobrevive indefinidamente à vida de relação, de um não-homem infinitamente separável do homem” (ibidem,p.155). Assim, esse modo de controle levado ao extremo, que infiltra em uma zona humana regulada pela dinâmica da contingência das pulsões e dos desejos, colocaria em risco a possibilidade de cintilar uma impossibilidade de dizer, o inefável, o não lingüístico,o que pode obstruir, a nosso ver, a possibilidade de experiência. 42 “O risco sempre está em outra parte. O verdadeiro poeta é quem sempre está abandonando-se. Nunca muito tempo em um mesmo lugar, como os guerrilheiros, como os óvnis, como os olhos brancos dos prisioneiros a cadeia perpétua.” (BOLAÑO, 1976, disponível em: http://manifiestos.infrarrealismo.com/primermanifiesto.html). 46 corpo do artista – daquilo que transcende qualquer categoria linguística e que está, portanto, pressuposto em cada enunciado, condicionando toda a linguagem no ato discursivo – que se pode apropriar-se do espaço linguístico, e nele produzir não só uma experiência humana – em que o falar e o ser falado não estão determinados a priori – mas também um conhecimento ou uma história que intervém na própria realidade interdiscursiva, a qual se mostra aberta e inacabada, assim como o sujeito falante. No romance em questão, literatura e experiência fazem parte de uma mesma disciplina comparada. A fulguração das memórias de Bolaño – as quais, deslocadas ao universo ficcional, encontram-se livres de um a priori narrativo na estrutura labiríntica e aberta dos jogos de identidades (estes, em diálogo com elementos pulsionais e com a imaginação) –encena, como já mencionamos, um movimento literário cujo fundamento parece girar ao redor do “Manifiesto Infrarrealista” (1976), que em determinado momento diz: “Nuestra ética es la Revolución, nuestra estética la Vida: una-sola-cosa.” (BOLAÑO, 1976). Os verdadeiros poetas, aqueles que fazem da literatura uma experiência de vida, transformam assim a poesia em algo visceral, poetas da intempérie, que operam, mediante o vagar nômade que empreendem por zonas degeneradas pelas guerras, pelo submundo das drogas, da criminalidade e da miséria humana, um certo “desplazamiento del acto de escribir por zonas nada propicias para el acto de escribir”43(ibidem), tema que será melhor discutido no terceiro capítulo. No entanto, cabe aqui salientar que em Los detectives salvajes o labor poético é um labor de risco e a literatura é transformada em algo vital. Não são raras as cenas em que os protagonistas estão em situação de perigo, como a do duelo de esgrima entre Belano e um crítico literário em uma praia catalana (BOLAÑO, 1998, p.463-483), episódio cujo desenlace é deixado em aberto, como se o perigo de morte ficasse suspendido a um relato futuro. Ou seja, por não sabermos qual foi o desfecho desse episódio, o efeito de morte na narrativa prolonga-se por algumas páginas, quando Belano surge novamente nas memórias de Felipe Müller, ex-poeta real visceralista, quem nos conta uma história que lhe contou o protagonista sobre dois escritores, aos quais lhes foi revelado “lo que suele ocurrirles a los mejores escritores de Latinoamérica o a los mejores escritores nacidos en la década del cincuenta: se les reveló, como una 43 “deslocamento do ato de escrever para zonas nada propícias para o ato de escrever.” (Ibidem). 47 epifanía, la trinidad formada por la juventude, el amor y la muerte.” 44 (BOLAÑO, 1998, p.497) . É como se Belano, ao longo da narrativa, houvesse se dirigindo à morte. Afinal, a sua última fulguração na obra, já em 1996, ocorre na Libéria, país africano em guerra civil, onde o protagonista acaba por se arriscar nos confrontos. E depois desse episódio, nada mais sabemos sobre ele. O espaço literário no romance é, portanto, apresentado como um meio de imersão na experiência, na contramão do projeto moderno de ciência que, como vimos, a conduz ao experimento científico, apresentando-a a partir do que ela tem de calculável e presumível. A arte adquire então contornos performáticos. Ora, na medida em que o Realvisceralismo implica, além da exposição do próprio artista na obra de arte, uma experiência em uma atmosfera governada pela “inminencia de algo desconocido” (BOLAÑO, 1998, p.492) – sensação que atravessa grande parte da narrativa mediante o performático trânsito dos protagonistas rumo à coletividade, à escuta do outro, pelo qual devem operar uma descontinuidade na língua e arriscar a própria individualidade para poder falar e escutar, sem um roteiro dado de antemão – a arte, desde seu aspecto performático, parece assim romper com a fronteira que a separa da vida, possibilitando-a de incidir eticamente na realidade. Sobre a performance, comenta Ravetti: Tornar-se social, coletivo, sem deixar de ser e de se sentir singular e único, é um dos anseios mais destacados na arte das últimas décadas do século XX e início do XXI; tornar-se um sujeito que não quer se ver simplesmente como agente social previsível porque definido pelas determinações do campo em que atua. O que predomina é um querer enxergar-se, antes, como ator que produz, embora imerso em conjuntos flexíveis, a comunidade, a sociedade, a multidão, o campo no qual interactuam as subjetividades. (RAVETTI, 2011,p.32). Os protagonistas, por meio da tomada de posição performática de não aderência à linguagem com o intuito de produzir experiência para ser “ator que produz”, como mencionou Ravetti, vão delineando assim o espaço literário como um campo de luta política. Belano e Lima, muitas vezes, agem como performers, isto é, como se estivessem atuando mediante ações insólitas, dotadas de um viés teatral, no plano da realidade. Dito de outro modo, na narrativa é como se os protagonistas performers se 44 “o que costuma acontecer com os melhores escritores da América Latina ou aos melhores escritores nascidos na década de cinquenta: foi-lhes revelada, como uma epifania, a trindade formada pela juventude, pelo amor e pela morte.” (BOLAÑO, 1998, p.497). 48 houvessem descolado de um real naturalizado pela linguagem para nele desvelar seu caráter fictício, como no episódio em que Ulises Lima e Octavio Paz – quem é literaturalizado no romance para ser o ícone da cultura oficial, contra a qual o verdadeiro poeta deve lutar – têm a atitude inusitada e excêntrica (e um tanto quanto teatral) de caminhar algum tempo em círculos contrários em um parque de México D.F, sem dizer uma palavra um ao outro (BOLAÑO, 1998,p.505). É como se o movimento da anti-arte, da arte que suprimiu o seu próprio estatuto representacional para agir na realidade, operasse continuamente contra a cultura oficial, estabelecendo com esta , portanto, de algum modo, um elo dialógico, uma atitude responsiva no plano político da linguagem. Se a literatura é então um espaço de pugna entre as diversas posições ideológicas inscritas no espaço linguístico, as metáforas bélicas são recorrentes nas obras literárias de Bolaño , assim como a figura do escritor valente, aquele que trava uma batalha contra as expectativas do mercado e das demandas do poder político. De acordo com Giraldo (2010, p.72-73 – grifo do autor): Lo que prima en las jerarquías de valor bolaniano parece ser una cierta postura valiente del escritor frente a la institución literaria, el poder político y el mercado, unida a un compromiso ético en la práctica literaria relacionado con la innovación formal, por un lado, y con no cerrar los ojos ante el horror; generalmente Bolaño se refiere con esto el horror de las dictaduras latinoamericanas, pero también a la violencia urbana y más ampliamente al mal, uno de los temas que atraviesa toda su obra.”45 Assim sendo, como espaço polifônico de pugna, a literatura nos é apresentada como um campo minado, um espaço repleto de trapaças e conspirações, atravessada pela figura não somente do escritor valente, marginal (e ético), que deseja transformar o mundo, mas também pelo escritor best seller e por situações que muitas vezes beiram ao ridículo e ao perverso. Este percebido como parasitário, pois enxerga na literatura um modo de ascensão social, afastado do exercício ético que reclama Bolaño para o artista. Hoy los escritores de España (y de Hispanoamérica) proceden en número cada vez más alarmante de familias de clase baja, del 45 “O que ressalta nas hierarquias de valor bolaniano parece ser uma postura valente do escritor frente à instituição literária, ao poder político e ao mercado, unida a um compromisso ético na prática literária relacionado com a inovação formal, por um lado, e com não fechar os olhos diante do horror; geralmente Bolaño se refere com isto ao horror das ditaduras latino-americanas, mas também à violência urbana e mais amplamente ao mal, um dos temas que atravessa toda sua obra.” (GIRALDO, 2010, p.72-73, grifo do autor. Disponível em: http://www.catedrabolano.cl/docs/Tesis_Rafael_Gutierres.pdf). 49 proletariado y del lumpenproletariado, y su ejercicio más usual de la escritura es una forma de escalar posiciones en la pirámide social, una forma de asentarse cuidándose mucho de no transgredir nada.46(BOLAÑO, 1998, p.485). É então comum vermos não só no romance em questão, mas em toda a obra ficcional de Bolaño, o interesse por questões éticas que rodeiam o universo literário. O que nosso autor parece reivindicar é a aproximação da literatura a um compromisso social e político e, nesse contexto, a arte funcionaria como possibilidade de experiência ética em um espaço que insiste em minar a autocriação de si mediante os vínculos performativos, os chamados a ser, mencionados por Ravetti. O objeto artístico adquire então um aspecto performático, responsivo, de tomada de palavra, localizando-se na lacuna apontada por Agamben, aquela pela qual o homem expõe a relação entre natureza e cultura, voz e discurso, experiência e linguagem, para constituir-se como sujeito no espaço linguístico, condicionando-o. É nesta possibilidade do corpo, da experiência idiossincrática que atravessa os atos discursivos, daquilo que, enfim, “a linguagem deve pressupor para poder significar” (Agamben, 2008a, p.11), que Bolaño parece apostar na literatura como ato performático, como modo de intervir no real, na rede interdiscursiva das singularidades e assim, de modo contingente e em diálogo com a multiplicidade de pontos de vista, constituir um nós afastado de qualquer mandato hegemônico. É, portanto, nesta natureza selvagem da linguagem, atravessada, para tornar-se ato, pela vivência impartilhável escreve, e pelas pulsões do corpo daquele que que reside, para Bolaño, a resistência à naturalização dos códigos hegemônicos. 46 “Hoje os escritores da Espanha (e da Hispano-América) procedem em número cada vez mais alarmante de famílias de classe baixa, do proletariado e do lumpemproletariado, e seu exercício mais usual da escritura é uma forma de escalar posições na pirâmide social, uma forma de se estabelecer tendo cuidado para não transgredir nada.” (BOLAÑO, 1998, p.485). 50 Capítulo 2: Sobre o incessante trânsito performático rumo ao tempo presente “Los días que transcurran incubarán por siempre este momento & los hijos de mis hijos transmitirán a su manera mi visión.” (Mario Santiago Papasquiaro) A partir do momento em que a literatura, em seu movimento performático rumo ao espaço polifônico do estar em comum, abandona as débeis fronteiras instituídas pelos campos autônomos da modernidade, ela acaba por travar um íntimo vínculo com o tempo presente. Trânsito que franqueia não apenas agenciamentos entre as vozes provenientes do espaço dialógico da linguagem, mas, sendo esta um constructo histórico, de retomada e refutação dos vários enunciados que tecem a sua trama, estabelece também, mediante a experiência com o presente, uma íntima relação com outros tempos entrelaçados no espaço polifônico do agora performático. Ravetti, a propósito dessa conexão da performance com sua contemporaneidade, comenta que as obras consideradas por ela performáticas carregam uma espécie de “temporalidade palimpséstica” (RAVETTI, 2011,p.13) avivada no agora, não se tratando, segundo a autora, “de a escrita funcionar como testamento ou palavras dos mortos que venha determinar o presente” (ibidem, p.13), mas, antes disso, de se relacionar com “a memória como suporte imprescindível do presente.” (Ibidem, p.13). Pensando então nesse performático trânsito da escrita rumo à densidade histórica do presente, a performance, como ato de enunciação na trama discursiva, passa a ser percebida como um modo de inserir, por meio da experiência com o que lhe é contemporâneo, uma descontinuidade no tempo inerte e linear, despertando estratos de tempos que, como veremos mais adiante, acabam por desdobrar sentidos não antevistos no momento de criação da narrativa performática. Sendo assim, na contramão de uma concepção de história linear e teleológica instaurada pela modernidade que, em nome do futuro, fecha os olhos para as contradições do presente, a obra de arte desvela como contemporâneos à nossa experiência tempos outros, sugerindo uma espécie de persistência de um passado heterogêneo e polifônico no agora. É nesse sentido que Agamben (2009), no intento de responder a questão de quem ou do que somos contemporâneos, nos fala da luz emanada pelos séculos, sendo que, da palavra século, extrai duas acepções: o tempo 51 histórico coletivo e o tempo de vida do indivíduo. O poeta, diz o filósofo, ao mesmo tempo em que opera essa fratura entre temporalidades, deve suturá-la – a autêntica poesia, não estando plenamente aderida a sua época, relaciona-se com o tempo, portanto, mediante um anacronismo e uma dissociação. Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo apenas com a condição de cindi-la em mais tempos, de introduzir no tempo uma essencial desomogeneidade. Quem pode dizer: o meu tempo divide o tempo, escreve neste uma cesura e uma descontinuidade; e, no entanto, exatamente através dessa cesura, dessa interpolação do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o contemporâneo coloca em ação uma relação especial entre tempos. (Ibidem, p.71 – grifo do autor). Contemporâneo é então, para Agamben, aquele que, mediante a experiência com o que lhe é contemporâneo, insere no tempo homogêneo o “limiar inapreensível entre um ainda não e um não mais” (ibidem, p.67 – grifo do autor) próprio do presente, e justamente por essa cesura que temporaliza a própria existência, ele é capaz de estabelecer “um encontro entre os tempos e as gerações” que persistem no agora. (Ibidem,p.71). Dito de outro modo, contemporâneo – e aqui o filósofo recorre à temporalidade inapreensível da moda – é aquele que, ao dividir o tempo entre sua atualidade ou inatualidade, entre um ainda não e um não mais, acaba por instituir “com esses outros tempos – certamente com o passado e, talvez, também com o futuro – uma relação particular.” (Ibidem, p.68 – grifo do autor). Ou seja, ele “pode colocar em relação aquilo que inexoravelmente dividiu, (...) re-vocar e revitalizar aquilo que tinha até mesmo declarado como morto.” (Ibidem, p.69). Assim, a partir dessas breves observações sobre o presente, pode-se dizer que Bolaño opera uma fratura em sua própria experiência para nela tentar suturar diversas temporalidades mediante o surgimento anacrônico das vanguardas históricas, se pensarmos na não realização dos projetos revolucionários do século passado, fulgurado no romance pela presença-ausência dos real-visceralistas. Em Los detectives salvajes é a poesia temporalizada entre a iminência de acontecer nos sonhos dos ainda jovens protagonistas evidenciados no diário do adolescente Juan García Madero, e o seu abandono como fim, cujos indícios são percebidos na segunda parte, quando essas personagens têm suas histórias desconstruídas pelas vozes de mais de trinta narradores, que faz com que diversas temporalidades entrem em colapso, rompendo com o tempo 52 teleológico, homogêneo e vazio instaurado pela modernidade. O tempo no romance, como já foi mencionado, se constrói mediante uma descontinuidade: enquanto a sua última página é constituída pelo diário (1976), cronologicamente, a sua parte final se localiza no desdobramento desse movimento literário ao longo de vinte anos, na fala incessante própria da literatura contemporânea, parte compreendida entre os anos de 1976-1996. Em meio aos escombros e às ruínas multiplicadas por um ideal de modernização levado a cabo pelos regimes totalitários que assolaram grande parte do território latinoamericano – os quais se justificaram, muitas vezes, por promessas progressistas que mantinham o olhar fixo no futuro – a força vanguardista do Realvisceralismo parece então surgir na obra como potência negativa47 que ainda sobrevive no desamparo de sua não realização no século XXI, se considerarmos as promessas em torno das projeções igualitárias preconizadas por esses movimentos no século passado. Trata-se, dessa maneira, de um movimento literário que se dirigindo ao presente e, por isso, experimentando a sua própria temporalidade na “forma de um limiar inapreensível entre um ainda não e um não mais”(Ibidem, p.67 – grifo do autor), acaba por abandonar um projeto com determinado fim, trazendo à tona novos sentidos que muitas vezes entram em choque com o sentido inicial que o fez nascer. A potência dessa abordagem anacrônica das vanguardas históricas parece residir, assim, em um desdobramento de suas possibilidades de existência enquanto traço de vida, “que incessantemente excede as suas formas e as suas realizações.” (AGAMBEN, 2006).48 47 No texto “A potência do pensamento” (2006), Agamben propõe-nos a pensar sobre a potência em relação a sua privação. A partir de Aristóteles, que indaga sobre o porquê dos sentidos não provocarem uma sensação na ausência de objetos externos, “mesmo tendo em si o fogo, a água e os outros elementos dos quais há a sensação”(ARISTÓTELES apud AGAMBEN, 2006) , Agamben comenta que “ter uma potência, ter uma faculdade significa: ter uma privação.”(AGAMBEN, 2006). É por isso que “a sensação não sente a si mesma, como o combustível não queima a si mesmo”(Ibidem), pois a potência não pode ser confundida com o ato, ela se conserva, não se esgota nele. Ou seja, mesmo quando passada ao ato, a potência mantém essa relação de privação com esse estímulo externo, que é separado de si mesmo e continuamente absorvido apenas como faculdade, como virtualidade destinada a uma singularidade. “A potência (...) não passa ao ato sofrendo uma destruição ou uma alteração; (...) a sua passividade consiste, na verdade, em uma conservação e em um aperfeiçoamento de si (...).”(Ibidem) . Desse modo, entender a potência como distinta do ato, em sua negatividade, é importante para este estudo na medida em que acreditamos que o Realvisceralismo , embora se veja desiludido frente a um mundo em permanente estado de degradação, segue existindo como potência – como a maneira “em que um ser vivo tem a sua práxis vital.”(Ibidem). Devido a isso, como veremos a seguir, esse movimento literário é passível de ser concebido em seu traço de vida, que excede as suas realizações. 48 AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/51497096/Agamben-A-potencia-do-pensamento 53 Evocamos então aqui, de modo breve, para se pensar sobre esse traço de vida, o conceito de origem desenvolvido por Walter Benjamin no prefácio do livro Origem do drama trágico alemão (2011). Para o autor, uma forma originária se constitui quando há uma espécie de cristalização do momento histórico da gênese, que interrompe o curso da história e absorve uma dada configuração . Ela não é, para o filósofo, um ponto rígido localizado em um passado cronológico, mas uma potência que é atualizada enquanto persistir no presente. Constitui-se assim como uma configuração que contempla um pré-histórico móvel ao encontrar-se dialeticamente posicionada a um pós-histórico em estado de inacabamento, de incompletude: ou seja, no momento em que dada configuração absorve um momento histórico específico, ela tende à atualização dessa origem, que segue operando mediante as formas originárias, interrompendo-se somente quando houver completado a totalidade de sua história, de todas as suas possibilidades de desdobramento e de multiplicação de sentidos despertados no seu processo de realização. Nas palavras de Benjamin (ibidem, p.34): Mas, apesar de ser uma categoria plenamente histórica, a origem (Ursprung) não tem nada em comum com a gênese. Origem não designa o processo de devir de algo que nasceu, mas antes aquilo que emerge do processo de devir e desaparecer. (...) O que é próprio da origem nunca se dá a ver no plano fatual, cru e manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restauração e reconstituição, e por outro como algo de incompleto e inacabado. Em todo o fenômeno originário tem lugar a determinação da figura através da qual uma ideia permanentemente se confronta com o mundo histórico, até atingir a completude na totalidade da sua história. A origem, portanto, não se destaca dos dados fatuais, mas tem a ver com a sua pré e pós-história. É nesse sentido que Suzana Scramim, a partir de Benjamin, comenta a propósito desse traço de vida (que se configura, para autora, como uma forma originária) despertado na literatura que se dirige ao agora. Para a teórica, as obras contemporâneas, longe de se definirem por algum dado cronológico, são aquelas cuja temporalidade é avivada nos efeitos que o inapreensível presente, enquanto meio, lhe produz. Com isso – mais além de ela coexistir com outros tempos, contemporâneos a sua existência – a literatura do presente é pensada em sua vida interior, em um processo que ainda não se realizou, que se desdobra como potência negativa – ou seja, nunca esgotada no ato, mas que persiste em sua experiência com o presente. (SCRAMIN, 2007,p.32). 54 Pensar a literatura na sua experiência sem garantia de um caminho seguro já trilhado é assumi-la em sua vida interior, sua vida a meio caminho, que ainda-não-se-realizou na sua realização, vida essa composta por formas originárias que se caracterizam por serem a soleira da potência do mundo empírico da literatura frente à sua correlação entre tantas formas de vida interior. (Ibidem,p.32 – grifo da autora). O que abre um diálogo com Agamben, que concebe a contemporaneidade como um ser arcaico e fugidio que não cessa de fulgurar no agora. O que nos é contemporâneo, diz o italiano, “se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico” (AGAMBEN, 2009, p.69). A contemporaneidade tem assim seu fundamento nessa arké , isto é, nessa origem que, paradoxalmente, se dirige a nós e de nós se afasta, “que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente” (ibidem, p.69), como “o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto.” (ibidem, p.69). Sob a forma de um “escuro especial”, a contemporaneidade, por seu caráter fugidio, é desse modo, aquilo que não podemos viver em sua completude no presente e, justamente por isso, não cessa de interpelar o agora. (...)o presente não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido, e aquilo que impede o acesso ao presente é precisamente a massa daquilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema proximidade), neste não conseguimos viver.(Ibidem, p.70). Partimos então da hipótese de que o ser fugidio da poesia, fulgurado na presença ausência de um movimento literário cujos ideias são desmantelados pelas catástrofes de uma realidade política e social em débito com o passado , atua, em seu ser diáfano e arcaico, como um “escuro especial” no presente da enunciação, o que obstrui a ideia de uma totalidade narrativa que pudesse oferecer uma solução simbólica ao enigmático presente . Pensamos aqui, sobretudo, na vertigem de uma noite que se repete no amontoado de vozes da segunda parte, a do provável encontro dos protagonistas, ainda em 1976, com Amadeo Salvatierra, personagem narrador que pode ser lido como uma espécie de vínculo com Cesárea Tinajero, relato que promove um dentre outros cortes na temporalidade narrativa, sugerindo, ao longo dos vinte anos em que esse relato irrompe na superfície textual, o limiar inapreensível entre o “ainda não” e o “não mais” apontado por Agamben: ora, embora seja reiterado cronologicamente após a peregrinação de Ulises e Belano nos desertos de Sonora (entre 1976 e 1996) – quando a 55 narrativa já está sob os efeitos da derrocada dos movimentos de vanguarda – o relato de Amadeo é anterior à esse momento, quando os jovens protagonistas, ainda ensejando a revolução em prol de um mundo mais igualitário, iniciam a busca de Cesárea por México D.F, a poetisa do Estridentismo da década de 20, movimento vanguardista que tem seu nome trocado, muitas vezes, na narrativa, por Realvisceralismo do norte, cujos ideias são retomados por Belano e Lima com o intuito de estabelecer um vínculo com o Realvisceralismo fundado por eles, na década de 1970. Uma origem, portanto, que com sua estrutura em myse-en-abyme não cessa de fulgurar como presença-ausência na narrativa e , dessa maneira, nunca se funda de modo definitivo, ou seja, uma potência que, embora se desdobre continuamente no romance, não se esgota no ato de sua irrupção, o que pode insinuar um débito das vanguardas históricas com o agora, uma espécie de “não vivido em todo vivido”, própria da configuração do presente. Los real visceralistas del D.F. Claro, porque ya había habido otro grupo de real visceralistas, allá por los años veinte, los real visceralistas del norte. ¿Eso no lo sabía? (...) Aunque de esos sí que no hay mucha documentación. No, no fue una coincidencia. Más bien fue un homenaje. Una señal. Una respuesta. Quién sabe. De todas formas, yo prefiero no perderme en esos laberintos.49 (BOLAÑO, 1998, p.551). Essa abordagem anacrônica do Realvisceralismo, que leva em conta seu traço de vida, sua incessante repetição temporalizada entre um “ainda não” e “um não mais”, faz com que à narrativa se sobrevenha uma torrente de eventos que não respeita a nenhuma cronologia linear. Os acontecimentos que irrompem progressivamente no livro não se dirigem a um futuro apaziguador, mas à desilusão que representa a morte de Cesárea no final da terceira parte, o que nos joga, cronologicamente, novamente, à segunda parte do romance, à nossa contemporânea “condición de sudamericanos perdidos en Europa, perdidos en el mundo”. (Ibidem,p.234). Pressupõe-se, desse modo, o abandono da literatura como um projeto bem delimitado, ou seja, como um caminho pelo qual se pudessem encontrar maneiras para se chegar a um futuro livre das contradições do inapreensível presente. Ao contrário disso, é mediante a ausência de uma finalidade dada de antemão, inclusive a de ser arte – como se pode perceber na 49 “Os real- visceralistas de DF. Claro, porque já havia existido outro grupo de real-visceralistas, lá pelos anos 20, os real- visceralistas do norte. Não sabia? Pois é. Ainda que desses não há muita documentação. Não, não foi uma coincidência. Foi provavelmente uma homenagem. Um sinal, uma resposta. Quem vai saber. De qualquer maneira, prefiro não me perder nesses labirintos.” (BOLAÑO, 2008, p. 551). 56 segunda parte, quando a grande maioria dos poetas real-visceralistas vai abandonando pouco a pouco o movimento, tornando-o cada vez mais caduco e carente de sentido , “creo que fue en aquel verano cuando ambos, de común acuerdo, nos separamos del realismo visceral. (...) estábamos muy ocupados trabajando e intentando sobrevivir”50 (ibidem, p.243) – que o Realvisceralismo, enquanto força anacrônica, rompe definitivamente com o campo autônomo da literatura, dirigindo-se ao presente e persistindo no tempo mediante a multiplicação das possibilidades de agenciamento com as camadas temporais depositadas no agora. Essa recusa de um fim bem delimitado, bem como seu desdobramento ao longo do tempo fazem então com que esse movimento iconoclasta adquira um aspecto performático – o de se inserir no imprevisível agora – desde onde, a memória, latente nas camadas temporais entrelaçadas no romance, não surge fora da temporalidade da experiência, ou seja, como algo a ser cultuado. Longe disso, o passado irrompe como a pulsação de uma origem cujo caráter provisório e incompleto, permanentemente avivado no presente da enunciação, acaba por trazer um modo de permanência performática que se insere fora da lógica objetual51: ora, se pensarmos que a verdadeira poesia, fulgurada mediante a persecução do Realvisceralismo, nunca toma uma forma definitiva no romance, o objeto artístico, embora seja retomado de modo contraditório pelas diversas perspectivas presentes no romance, não se apresenta como um produto acabado – afinal, ao longo das 609 páginas da narrativa, o leitor não tem acesso a nenhum poema do grupo. Mas, antes disso, se considerarmos as dimensões visível e palpável da realidade, esse movimento apresenta-se como um processo que persiste enquanto ausência invocada, a qual se reverbera de modo heterogêneo e fragmentado. Trata-se – como diz em algum momento um dos narradores – do paradoxo de “una 50 “acho que foi naquele verão quando ambos, de comum acordo, nos separamos do realismo visceral. (...) estávamos muito ocupados trabalhando e tentando sobreviver.” (Ibidem, p.243). 51 Como veremos a seguir, no ensaio “El performance permanece” (2011), Rebecca Schneider, sem descartar o caráter efêmero e imaterial da arte performática – tema que será tratado no terceiro capítulo – propõe-nos a pensar a performance como um modo de permanência que sempre se difere no ato. Dito de outro modo, como prática ritualística, a performance, segundo a autora, diferentemente do arquivo tradicional que gira ao redor de uma origem documental (percebida a partir da imobilidade e da localização no passado), faz reaparecer, no presente de sua enunciação, uma memória coletiva inacabada, em constante processo de (re)elaboração– uma memória, portanto, sempre reiterada pela diferença dos atos performáticos, assunto que será melhor explorado no próximo subtítulo deste capítulo. 57 historia de poetas perdidos y de revistas perdidas y de obras sobre cuya existencia nadie conocía una palavra.”52 (Ibidem, p.240). A intermitente aparição do Realvisceralismo na heterogênea temporalidade do romance, ao constituir-se como um meio sem finalidade que faz com que a arte imerja na sua experiência com o presente, através de sua retomada em diversas temporalidades, obstrui, desse modo, a ideia de um progresso que, pautado pela homogeneidade e linearidade, acaba por levar ao horror da lógica de eliminação em campos de concentração; como também inebria o estado no qual estamos submersos na contemporaneidade, o de acúmulo de memória que nos leva a uma contemplação melancólica da vida e, consequentemente, à paralisação. De todas las islas visitadas, dos eran portentosas. La isla del pasado, dijo, en donde sólo existía el tiempo pasado y en la cual sus moradores se aburrían y eran razonablemente felices, pero en donde el peso ilusorio era tal que la isla se iba hundiendo cada día un poco más en el río. Y la isla del futuro, en donde el único tiempo que existía era el futuro, y cuyos habitantes eran soñadores y agresivos, tan agresivos, dijo Ulises, que probablemente acabarían comiéndose los unos a los otros.53 (BOLAÑO, 1998, p. 367) Longe disso, Bolaño parece reclamar por uma memória que irrompe na experiência mediante a imersão do artista na temporalidade coletiva e heterogênea do presente, insinuando um débito de uma reminiscência que, lembrando Agamben, por não ter sido vivida em sua completude no passado, é paradoxalmente contemporânea ao agora, persistindo nele e nele sofrendo as marcas dessa interação. Dito de outro modo, enquanto traço de vida que permanentemente sobrevém à narrativa, o Realvisceralismo não surge como uma memória localizada em um ponto estático do passado, mas como um fazer artístico que, por seguir atuando no presente, rompe com a pretensa ideia de uma origem idêntica a si mesma, evidenciando-se pela multiplicidade de formas na interação com o agora. Propõe-se assim um modo de transmissão de memória corpo a corpo, localizada na experiência, fora da lógica objetual das atividades arquivísticas. Referimo-nos aqui ao fato de que a memória construída na narrativa não se ampara na 52 “uma história de poetas perdidos e de revistas perdidas e de obras sobre cuja existência ninguém conhecia uma palavra.” (BOLAÑO, 1998, p.240). 53 “De todas as ilhas visitadas, duas eram portentosas. A ilha do passado, falou,onde só existia o tempo passado e na qual seus moradores se entediavam e eram razoavelmente felizes, onde o peso ilusório era tanto que a ilha ia afogando-se cada dia um pouco mais no rio. E a ilha do futuro, onde o único tempo que existia era o futuro, e cujos habitantes eram sonhadores e agressivos, tão agressivos, falou Ulises, que provavelmente acabariam comendo uns aos outros.” (BOLAÑO, 1998, p.367). 58 homogeneidade reclamada pelo arquivo tradicional que, como veremos a seguir, coordena “um único corpus em um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal. Num arquivo, não deve haver dissociação absoluta (...).” (DERRIDA, 2001, p.14 – grifo do autor). 59 2.1 Arquivo em contraponto Considerando a contínua reiteração do objeto artístico pelo amontoado de vozes provenientes do romance de Bolaño, o Realvisceralismo, como vimos, é percebido menos como um objeto acabado em torno de características meramente formais e essencializantes, e mais como um processo que não cessa de fulgurar na narrativa a partir das variadas perspectivas e temporalidades. Ele então nos é apresentado tecendo uma espécie de trama performática, pela qual, em sua contínua reiteração, acaba por traçar um saber coletivo que excede o próprio ato de narração. Pensamos aqui em uma espécie de conhecimento transmitido pela performance que não pode ser estocado, nem recuperado em sua totalidade pela escrita, mas que, no entanto, continuamente se reconstitui na efemeridade do ato. Ou seja, referimo-nos a um saber que escapa à materialidade do arquivo, apontando para um modo de permanência selvagem, que transcende e obstrui o seu próprio registro. Rebecca Schneider, no ensaio “El performance permanece” (2011), reclama para a legitimação desse saber performático, o qual, percebido pela lógica ocularcêntrica como aquilo que desaparece, é tratado a partir de sua efemeridade, sendo desacreditado enquanto modo de preservação e disseminação do conhecimento histórico transmitido por grupos minoritários. Em outras palavras, a teórica, partindo dos rituais presentes em sociedades autóctones, que funcionam como uma maneira de transmissão de um saber coletivo, questiona se a concepção de conhecimento baseado em restos materiais não reforçaria o controle falocêntrico ligado à lógica objetual do arquivo, o que debilita a força com que essas performances se afirmam como produtora de conhecimento na trama polifônica da realidade. A propósito desta lógica objetual que se relaciona com a construção de conhecimento, Derrida, em Mal de arquivo (2011), coloca em questão o conceito clássico de arquivo, cujo corpus é tradicionalmente composto por objetos e marcas apresentados sob as ideias de veracidade e facticidade. Da etimologia da palavra arkhé, o filósofo extrai dois princípios: o primeiro se refere à origem, ao inicio, “ali onde as coisas começam” (Ibidem, p.11 – grifo do autor) – principio ontológico; já o segundo se relaciona com a lei, com o comando, “ali onde se exerce a autoridade, a ordem social, nesse lugar a partir do qual a ordem é dada – princípio nomológico.” (Ibidem, p.11 – 60 grifo do autor). Ao processo de arquivamento é então inerente a figura de uma autoridade, a do arconte, que, além de instituir determinada marca como origem que resiste a mudança, ou seja, que permanece ao longo do tempo idêntica a si mesma, interpreta e reúne signos mediante a homogeneização, proclamando a lei a partir da qual todos os elementos deverão estar articulados. O arquivamento, diz o francês, “tanto produz quanto registra o evento.” (Ibidem, p.29). O arquivo então, embora constituído por restos palpáveis, é permeado pela subjetividade daquele que o organiza, fazendo perfilar na sua construção, ainda que de forma espectral, o registro da ficção, da imaginação e da ideologia. E mais, sendo o arquivo construído com o intuito de ser objeto mnemônico para as futuras gerações – aspecto que o articula não apenas com o passado, mas também com o futuro – Derrida, em diálogo com Freud e a ideia de que o inconsciente é uma escrita, sublinha uma certa pulsão de morte sem a qual não haveria a necessidade de arquivamento: isto é, arquivamos algo exatamente porque tememos sua perda, porque estamos sujeitos a diversas operações do inconsciente, tais como a censura e o recalque – e justamente por causa desse mal de arquivo que o processo de arquivar é necessariamente renovado e repetido. Ao ato arquivístico, portanto, são imanentes a rasura, a lacuna e o esquecimento. Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma significação, não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória. (Ibidem, p.22). Assim, em contraposição à pretensa categoria de objetividade e totalidade desde a qual estamos acostumados a pensar o arquivo, o que o filósofo parece reivindicar – seja devido às escolhas realizadas pelo arconte, seja devido às operações inconscientes como parte constituinte do arquivo – é uma espécie de perda e inacabamento inerentes à atividade arquivística: uma dimensão virtual, latente, que interpelaria, por um lado, a dimensão patente do arquivo e, por outro, desvelaria que esse processo se constitui mediante a performance, ou seja, por meio de ações que reiterariam os rastros materiais do arquivo a partir da lei e da interpretação instauradas pelo arconte. Autoridade, e isso é importante salientar, não apenas tem “o direito e a competência hermenêuticos” (ibidem, p.13) sobre os objetos do arquivo, mas também domicilia esses restos, transformando-lhes em rastros de um tempo que já passou. 61 Depositados sob a guarda desses arcontes, estes documentos diziam, de fato, a lei: eles evocavam a lei e convocavam à lei. Para serem assim guardados, na jurisdição desse dizer a lei eram necessários ao mesmo tempo um guardião e uma localização. Mesmo em sua guarda ou em sua tradição hermenêutica, os arquivos não podiam prescindir de suporte nem de residência. (Ibidem,p.13 – grifo do autor). É por isso que Schneider, em diálogo com Derrida, salienta que é nas práticas performáticas onde se localizam todas as arquiteturas de acesso ao saber, o lugar no qual todo conhecimento é reiterado e permanentemente reconstruído: na medida em que o exercício de arquivamento se legitima em torno de uma marca objetual instituída como sobrevivente ao tempo, ele, como nos lembrou Derrida, não apenas registra um evento, mas também o produz, uma vez que provoca a perda desse objeto, lançando-o ao passado. Schneider comenta assim que a domiciliação realizada pelo arconte faz com que os objetos, para adquirirem o estatuto de arquivável, sejam deslocados e transformados em restos. O processo de arquivamento se constitui então, para a teórica, como uma performance: lemos o arquivo, diz a autora “como acto – como una arquitectura que alberga (...) los rituales de domiciliación (...) – que se lleva a cabo, como ritual, continuamente. El archivo deviene un performance social de retroactividad.”54 (SCHNEIDER, 2011, p.235-236). Portanto, embora a lógica patriarcal tente assegurar-se nos restos como garantia de veracidade e facticidade histórica, ela é uma construção performática, uma arquitetura de acesso ao saber que, como a performance em geral, permanece mediante os rituais de domiciliação. leer la historia como un conjunto de actos sedimentados que no son los actos históricos en si mismos sino el acto de asegurar cualquier incidente de adelante hacia atrás – el acto repetido de asegurar el recuerdo – es repensar el lugar de la historia en la repetición ritual. Esto no equivale, como afirman muchos posmodernistas, a decir que llegamos al final de la historia, ni que la historia no sucedió, ni que sea imposible acceder a ella. Se trata, en cambio, de reubicar todo conocimiento como transmisión cuerpo a cuerpo. Sea que la repetición ritual se efectúe mediante la consulta de documentos en la biblioteca (…)o los relatos orales familiares de linaje (…) o la miríada de representaciones traumáticas efectuadas de manera tanto consciente como subconsciente, refiguramos la historia en la transmisión de cuerpo a cuerpo que se da al mostrar y relatar.55 (Ibidem, p.236). 54 “como ato – como uma arquitetura que alberga (...) os rituais de domiciliação (...) – que se executa, como ritual, continuamente. O arquivo devém uma performance social de retroatividade.” (SCHNEIDER, 2011, p.235-236). 55 “ler a história como um conjunto de atos sedimentados que não são os atos históricos em si mesmos, mas o ato de assegurar qualquer incidente de adiante em direção ao passado – o ato repetido de assegurar a lembrança – é repensar o lugar da história na repetição ritual. Isso não equivale, como afirmam muitos 62 Se a performance realizada pelo processo de arquivamento objetual se centra, desse modo, nos resíduos materiais, deixando de lado outras formas de permanência e transmissão de saber, as performances provenientes dos grupos minoritários, como também as de subversão artística, talvez nos tenham muito a dizer sobre “comunidades ou setores sociais que um dia careceram da escrita”(RAVETTI, 2003, p.35), como também sobre histórias que foram recalcadas e silenciadas pela violência dos processos modernizatórios. Segundo Ravetti (2003, p.37): Contra as tendências genocidas que se serviram de práticas escriturais, a performance possibilitou, desde o princípio dos tempos, o registro e a permanência daquilo que se sabe, como indivíduo e como grupo, sem ter que recorrer a caracteres gráficos, esgrimindo o artifício epistemológico da necessidade da transcrição das experiências em documentos. Trata-se de outros tipos de arquivo. Ou, para dizê-lo de outra maneira, o não dominar os procedimentos ocidentais de leitura e escritura não implica não possuir memória, história ou reminiscências. Por esses motivos se justifica estudar as ações performáticas quando nos interessamos por nossas tradições, cultura e arte: é porque tudo o que somos e o que sabemos nos remetem sempre a um mais além do sacralizado pela escrita (...). Referimo-nos assim a um certo tipo de saber que se localiza no corpo, mais precisamente na memória imaterial necessária para a transmissão das narrações orais, das representações ritualísticas, dentre outras práticas performáticas. Embora essas performances, centradas na efemeridade do ato, não possam ser estocadas, uma vez que não deixam rastros materiais, tampouco reproduzidas em sua totalidade, elas representam um modo de manter viva uma história ou um saber coletivo que não privilegia a autenticidade do original e do singular , sobre a qual se ampara o arquivo tradicional. Sob essa perspectiva, a performance pode então ser entendida como um modo de recuperação através de um meio que permanece imaterial, o que acaba por trazer uma memória inacabada, em constante processo de elaboração pelos participantes das ações performáticas – seja como performers, seja como espectadores – , implicando a entrada desse fenômeno a um outro tipo de permanência – a do inconsciente. pos-modernistas, dizer que chegamos ao final da história, nem que a história não aconteceu, tampouco que seja impossível ter acesso à ela. Trata-se, em contrapartida, de perceber todo o conhecimento como transmissão corpo a corpo. Seja mediante a consulta de documentos na biblioteca (...) ou os relatos familiares e orais de linhagem ou a miríade de representações traumáticas efetuadas tanto de maneira conscientes como subconsciente, rememoramos a história na transmissão corpo a corpo que se dá ao mostrar e relatar.” (Ibidem, p.236). 63 Como la historia oral y sus prácticas de performance siempre son decididamente repetidas, las prácticas orales son siempre reconstructivas, siempre incompletas, nunca están al servicio del origen singular o propio que refuerza el linaje de los arcontes. En el performance como memoria, las prístina uniformidad de un original, tan valiosa para el archivo, se vuelve imposible, o si se quiera, mítica.56 (SCHNEIDER, 2011, p.230 – grifo da autora). É neste sentido que diversos estudiosos da performance, como Rebecca Schneider (2011), Graciela Ravetti (2003), Diana Taylor (2002), dentre outros, entendem que a lógica do arquivo tradicional – que, por se pautar, como vimos em Derrida, na homogeneidade da interpretação desde a qual os elementos devem permanecer idênticos a si mesmos – não engloba esse modo de saber alojado no corpo, imaterial e paradoxalmente diferido a cada vez que vem à tona, implicando a perda de uma boa parte da história e dos saberes construídos pelas diversas vozes da polifônica e dialógica realidade a que nos referimos no primeiro capítulo. Segundo esses autores, essas performances, caladas e recalcadas ao longo do tempo, fazem irromper na trama do visível e do palpável “las reverberaciones de lo inadvertido, lo perdido, lo aparentemente olvidado.” (SCHNEIDER, 2011. p.233) . Um modo de saber que se relaciona, portanto, com um trauma coletivo, entendido aqui como aquilo que sofreu a operação de recalcamento antes mesmo de ser registrado57: um vazio, uma lacuna que interpela, se pensarmos em Derrida, a parte patente do arquivo. Aquí el cuerpo (...) deviene una suerte de archivo y huésped de una memoria colectiva que podemos situar con Freud, como sintomática, con Cathy Caruth partiendo de Freud como las repeticiones compulsivas de un trauma colectivo (…). Este cuerpo, dado al performance, se compromete con la desaparición de manera quiásmica, no sólo al desaparecer sino al reaparecer de manera obstinada a través de una capacidad de recuperación eruptiva y permanece a través del performance como tantos fantasmas en el entorno cercano con la marca de desaparecidos.58 (Ibidem, p.232) 56 “Como a historia oral e suas práticas de performance sempre são decididamente repetidas, as práticas orais são sempre reconstrutivas, sempre incompletas, nunca estão ao serviço da origem singular ou própria que reforça a linhagem dos arcontes. Na performance como memória, a prístina uniformidade de um original, tão valiosa para o arquivo, se tona impossível, ou se preferir, mítica.” (Ibidem, p.230 – grifo da autora). 57 Essa concepção de trauma foi adotada a partir do ensaio “Encenando a memória social: Yuyachkani”(2002, p.19), de Diana Taylor . 58 “Aqui o corpo (...) se devém como um tipo de arquivo e hóspede de uma memória coletiva que podemos situar, com Freud, como sintomática, com Cathy Caruth ,partindo de Freud, como as repetições compulsivas de um trauma coletivo (...). Este corpo, devido à performance, se compromete com a desaparição de maneira quiásmica, não somente ao desaparecer mas também ao reaparecer de maneira obstinada através de uma capacidade de recuperação irruptiva e permanece através da performance como tantos fantasmas no entorno próximo com a marca de desparecidos.” (SCHNEIDER, 2011, p.232). 64 Uma lacuna que é positivada enquanto repetição, ou seja, enquanto retorno fantasmagórico: ora, como vimos em Derrida, esse mal de arquivo, que se constitui apenas mediante a ação performática, uma vez que irrompe contemporaneamente ao registro de um fato ou um evento como marca indireta ou espectral, é também a possibilidade de disseminação e, portanto, de renovação e recriação do conhecimento – afinal, essa lacuna incide no arquivo uma cesura constituinte, trazendo à tona um inacabamento no qual reside a possibilidade de interpretações outras sobre a realidade. Trata-se, para Schneider, de um princípio feminino que, por se localizar em uma falta, engendraria sua própria capacidade de reprodução. (SCHNEIDER, 2011, p.234). Uma latência que interpela assim a referência histórica de um passado que, para a lógica do arquivo tradicional, se edifica como verdade factual e, portanto, já está concluído. Desvela-se assim um débito histórico que não cessa de operar no presente. A propósito do romance em questão, conjeturamos que o Realvisceralismo, em sua permanência ao longo dos vinte anos que atravessam a narrativa, parece performar esse saber que se constitui enquanto uma falta, enquanto um débito histórico que interpela o conhecimento visível e dizível, legitimado pela lógica objetual do arquivo. Constrói-se assim um arquivo pautado por uma espécie de leitura em contraponto proposta por Edward Said em “Cultura e imperialismo” (1995), ou seja, esse movimento poético, em sua performance escritural que persiste enquanto ausência evocada, encena uma experiência literária que se propõe “extrair, enfatizar e dar voz ao que está calado, ou marginalmente presente” (SAID, 1995, p.104); e pela qual se podem ver opacidades culturais que questionam a autonomia do próprio texto, “ao (...)abri-lo tanto para o que está contido nele quanto para o que foi excluído.” (Ibidem, p. 105). Referimo-nos aqui à já mencionada heterogeneidade com a qual o Realvisceralismo, em sua aparição/desaparição, surge na narrativa. Esse movimento literário, como já aludimos neste capítulo, embora atravesse as 609 páginas do romance, não deixa marcas residuais, ou seja, não há em toda a narrativa a presença de nenhum texto escrito por esses poetas iconoclastas. Não se fixando então em nenhuma marca objetual, o Realvisceralismo parece traçar assim uma lacuna, uma cesura, que, em sua contínua reiteração como ausência evocada em territórios assolados por experiências traumáticas, acaba por trazer à tona esse saber performático que não prioriza a ideia de 65 um objeto original idêntico a si mesmo, mas, antes disso, vai traçando, ao longo da narrativa, um espaço heterogêneo, pautado por discursos recalcados e marginalizados por grande parte da tradição literária latino-americana. É por isso que, a nosso ver, o Realvisceralismo – devido a esse caráter performático, imaterial – funciona como o principio feminino de disseminação apontado por Schneider, pois, ao trazer à tona , como já mencionamos, a iminência de “(...) una historia de poetas perdidos y de revistas perdidas y de obras sobre cuya existencia nadie conocía una palabra (...).”(BOLAÑO, 1998, p.240), sugere a presença da dimensão latente do arquivo apontada por Derrida, o que sublinha que qualquer processo de construção de conhecimento é incompleto, e, portanto, continuamente reiterado, aberto à multiplicidade das vozes presente na narrativa. Se no romance esse processo de construção desse saber performático – que se dá pela incisão indireta e imaterial do movimento poético no amontoado de vozes – não está subordinado à linhagem de um único arconte, a linguagem da narrativa, consequentemente, se estrutura por um espaço híbrido, contaminado por diversos gêneros e linguagens provindas de outros suportes, como a presença de ilustrações, da prosa poética, e de gêneros considerados menores por grande parte da crítica literária, como, por exemplo, a ciência-ficção, a literatura erótica, o policial, dentre outros, colocados em contato sem soluções convencionais de continuidade. Trata-se assim de um modo de estruturação que, por meio da collage, ou seja, da justaposição tanto de histórias que quase nunca se cruzam, como também de gêneros e linguagens provenientes de diferentes tradições, acaba por imprimir na narrativa a positividade de uma lacuna que sugere um espaço selvagem, avesso à possibilidade de fixar-se na escrita: uma dimensão virtual própria da performance que, por ser continuamente reiterada, torna a obra incompleta e, portanto, criativa e gerativa . De acordo com Renato Cohen, no livro Performance como linguagem (2009, p.64): A utilização da collage, na performance, reforça a busca da utilização de uma linguagem gerativa ao invés de uma linguagem normativa: a linguagem normativa está associada à gramática discursiva, à fala encadeada e hierarquizada (sujeito, verbo, objeto, orações coordenadas, orações subordinadas etc.). Isso tanto no nível verbal, quanto no nível imagético. Na medida em que ocorre a ruptura desse discurso, através da collage, que trabalha com o fragmento, entra-se num outro discurso que tende a ser gerativo (no sentido da livreassociação). 66 Ao romper assim com a relação causa-efeito da escrita ordenada, encadeada, Los detectives salvajes abre um espaço de livre-associação: forma-se, então, uma espécie de “transarquivo”59, pautado por uma latência desde a qual se podem entrever, como já mencionamos, discursos antes renegados pelas instâncias de legitimação, como os meios acadêmicos e editoriais, discursos estes que, se pensarmos no esquecimento e na censura como partes constituintes do arquivo, são imprescindíveis para ao menos tentar entender o conflitante e complexo ambiente cultural e artístico latino-americano na contemporaneidade. Dito de outro modo, por retomar formas narrativas provenientes de várias tradições literárias, como também por colocar em contato histórias que estão interligadas apenas pela imaterialidade da aparição/desaparição dos protagonistas ou do Realvisceralismo – histórias que podem ser lidas, portanto, autonomamente – introduzse , no espaço arquivístico da obra, a ruptura: reúne-se, paradoxalmente, por meio da dispersão, da diferença, o que pode engendrar uma multiplicidade de leituras , ou melhor, uma multiplicidade de histórias sobre a formação literária latino-americana, em permanente elaboração e devir. Podemos supor assim que o caráter inacabado do romance viola o principio arcôntico de consignação, entendido por Derrida como a necessária função de reunir, homogeneizando os elementos do arquivo. (DERRIDA, 2001, p.13) Los detectives salvajes pode ser lido então desde um olhar que ausculta diversas intervenções críticas no intento de rearticular o cânone latino-americano. Pululam em suas páginas, por um lado, artistas reais (como Octavio Paz, por exemplo) e apócrifos, e por outro, opiniões críticas dos próprios personagens, que redefinem seus respectivos cânones, posicionando-se no campo literário latino-americano e quiçá, mundial – o que, segundo diversos críticos, faz com que a obra de Bolaño, em conjunto, seja “vista como una descripción y revisión crítica de una parte importante del campo literario 59 A partir da leitura de Derrida, no artigo “Performances escritas: o diáfano e o opaco da experiência” (2003), Ravetti se propõe a pensar em “uma assinatura plural, ramificada, performática” com o intuito de tentar decifrar um certo tipo de “arquivo que nos escapa”, ou seja, um tipo de arquivo ancorado em “procedimentos não ocidentais de leitura e escritura”. Dessa forma, a autora aponta para o que ela chamou de “transgênero performático: um transarquivo (não apenas registrado por escrito), uma transescritura (não apenas alfabética) – cultivado por escritores (as) que fazem uso de seu corpo, de seu saber pessoal para registrar e comunicar esse saber, e para, também, sensibilizarem-se frente ao saber performático transmitido por outras pessoas e grupos.” (Ibidem, p. 39 – grifo da autora). O conceito de transarquivo, portanto, ao apontar para o que não foi escrito, pode dialogar com essa dimensão latente do arquivo a qual mencionamos anteriormente. 67 latinoamericano de la segunda mitad del siglo XX.”60(GIRALDO, 2010, p.21). A narrativa, desse modo, não se restringe a refletir apenas sobre a criação literária, mas também faz emergir o funcionamento do campo literário e as condições de vida de artistas latino-americanos, ou seja, “sus conflitos íntimos y sus conflitos con otros artistas, sus respectivas poéticas y cânones, (...) las relaciones de los artistas con editores, (...) diretores de revistas, (...) lectores etc.”61 (Ibidem, p.109). Desse modo, não são raras as cenas em que são usadas metáforas bélicas para falar de literatura, entendida como um modo de intervir na realidade, como também, como já mencionamos, se multiplicam na superfície literária inúmeras vozes de escritores e poetas que configuram um ambiente cultural e político em permanente conflito, onde se pode entrever um desejo “de desarticular um canon agotado, y por el cual una nueva sensibilidade reinterpreta formas menospreciadas, o a veces directamente desconocidas”62 (MANZONI apud GIRALDO, 2010, p.109): um entrelugar que rechaça o escritor da tradição, quem dirige o seu texto ao leitor “que se interesa por la literatura sin imaginarse los infiernos que se esconden debajo de las podridas o impolutas páginas”63 (BOLAÑO, 1998, p.146) , e no qual há a irrupção de lacunas que remodelam a memória – ainda por se fazer – , reiterando a experiência do mal e da violência que sofreram as sociedades latino-americanas, enfim, “una sombra sin metáforas, vacía de imágenes” (ibidem, p.238) que não cessa de irromper no presente da enunciação, abrindo intervalos temporais e fissuras na continuidade do texto. Traçando assim um território ainda por armar, marcado por descontinuidades e lacunas que fragmentam a superfície textual, onde pululam diversos gêneros e vozes – reunidos a partir não apenas de um único critério ou uma única lei que os torna homogêneos, como nos falou Derrida sobre a figura do arconte, mas de um modo que se ramifica e se dissemina por várias possibilidades de construção da memória – interpela-se tanto os critérios desde os quais um cânone é edificado, como também as 60 “vista como uma descrição e revisão crítica de uma parte importante do campo literário latinoamericano da segunda metade do século XX.” (GIRALDO, 2010,p. 21). 61 “seus conflitos íntimos e seus conflitos com outros artistas, suas respectivas poéticas e cânones, (...) as relações dos artistas com editores, (...) diretores de revistas, (...) leitores etc.” (Ibidem, p.109). 62 “de desarticular um cânone esgotado, e pelo qual uma nova sensibilidade reinterpreta formas menosprezadas, ou às vezes diretamente deconhecidas.” (MANZONI apud GIRALDO, 2010, p.109). 63 “que se interessa pela literatura sem imaginar nos infernos que se escondem debaixo das apodrecidas ou impolutas páginas.” (BOLAÑO, 1998, p.146). 68 condições de opressão em que isso ocorreu e segue ocorrendo. A literatura é então convocada a escrever “una historia en los extramuros de la civilización” (ibidem, p.240), ou seja, é incumbida de transmitir um saber ou uma memória que, devido ao seu caráter traumático ou às operações de censuras realizadas pelo arquivo patriarcal, tem o próprio registro obstruído, mas ainda assim persiste na imaterialidade do corpo e do inconsciente, ali onde se esquivam as leis e o controle – mais próximo dos sonhos e das alucinações do que da memória voluntária. Uma espécie de zona selvagem, permeada pelo onírico, que continuamente invade o espaço da vigília, delatando não somente um estado de crise social dramática e violenta, mas também, com base no hoje, ou seja, nas reverberações de um passado que persiste no presente enquanto lacuna, esse saber em contraponto que traça o Realvisceralismo ao longo da narrativa diante da ameaça do mal de arquivo que faz sobrevoar historias cuja presença, paradoxalmente, se dá de modo imaterial e etéreo, insiste em se repetir como modo de inquirir as leis que tornam possíveis a visibilidade do arquivo, o que abre a possibilidade de transformação da realidade, tema que será aprofundado na terceiro capítulo. 2.2 O diário Como escrita aberta à improvisação, o diário íntimo se distingue, para Phillippe Lejeune (2008), do memorial: diferentemente deste, que deseja fixar o fluxo do tempo em um momento-origem (ibidem, p.260), aquele tem como lógica o colecionismo, ou seja, a incompletude de um processo que é retomado mediante as entradas de diferentes instantes, ramificando a escrita em uma série de vestígios e temas. O diário se aproxima assim da performance, afinal, não se constitui como um produto – se assim o fosse, ele seria, na perspectiva do francês, uma autobiografia, cujas características giram ao redor do acabamento, da edição etc (ibidem, p.273) – , mas como um constante obrar-se, no qual não há possibilidade de ser modificado. Se o fizer, diz Lejeune, “abandono o diário para cair na autobiografia” (ibidem, p.260), que, embora tenha muitos pontos em comum com o diário – como o desejo de memória – , é construída geralmente com o intuito de publicação. Sob essa concepção, o diarista traz consigo a ilusão da total liberdade: se o diário clássico não visa a publicação a posteriori, tendo como objetivo apenas inscrever as experiências de quem o realiza, este faz com que sua escrita se 69 deslize por qualquer tema, desde a reflexão filosófica até os segredos mais inconfessáveis, atravessando os vários registros de linguagem com a ilusão de poder fixar, em poucas linhas ou páginas, a heterogeneidade que perpassa a experiência diária. É esta concepção do diário como processo inacabado, como prática realizada com intuito de apreender o tempo presente, e que ignora o seu próprio fim, que adotaremos aqui, uma vez que em Los detectives salvajes, o diário íntimo de Juan García Madero, que constitui a primeira e a terceira partes do romance, é interrompido sem que possamos saber qual foi o seu fim, ou seja, a última página do diário do jovem poeta não anuncia a conclusão da prática de diarista. E cabe aqui salientar que, embora esse diário seja o acesso mais direto que temos dos protagonistas, pois García Madero o escreve contemporaneamente ao convívio com Lima e Belano, na página 550 do romance, quando surge a voz de Ernesto García Grajales, personagem que se autodenomina “el único estudioso de los real visceralistas que existe en México y (...) en el mundo”, “problablemente el único que se interesa por este tema. Ya casi nadie los recuerda”64 (BOLAÑO, 1998, p.550), ele afirma, quando é perguntado pelo compilador oculto, que o jovem diarista nunca pertenceu ao grupo. ¿Juan García Madero? No, ése no me suena. Seguro que nunca perteneció al grupo. Hombre, si lo digo yo que soy la máxima autoridad en la materia, por algo será. Todos eran muy jóvenes. Yo tengo sus revistas, sus panfletos, documentos inencontrables hoy por hoy. Hubo un chavito de diecisiete años, pero no se llamaba García Madero.65 (Ibidem, p.551). Sem demorarmos muito nos jogos detetivescos presentes no romance, tema que será mais bem discutido no próximo capítulo, podemos aqui supor – tanto pela presença desse compilador oculto do qual não temos nenhuma pista, como também pela voz do estudioso Grajales, quem afirma o não pertencimento de García Madero ao grupo poético – que o romance sugere um modo de arquivo que supõe o trânsito da escrita em direção ao fugidio presente, longe de qualquer legitimação proveniente dos espaços de poder – afinal, na narrativa não há o surgimento da identidade desse compilador oculto, quem seria o responsável pela organização do arquivo em torno do Realvisceralismo, 64 “o único estudioso dos real-visceralistas que existe no México e (...) no mundo”, “provavelmente o único que se interessa por este tema. Já quase ninguém os recorda”. (BOLAÑO, 1998, p.550). 65 “Juan Garcia Madero? Não, esse não me diz nada. Com certeza nunca pertenceu ao grupo. Rapaz, se quem diz sou eu, que sou a maior autoridade no assunto, deve ter algum motivo. Todos eram muito jovens. Eu tenho suas revistas, seus panfletos, documentos até hoje inencontráveis. Tinha um garoto de dezessete anos, mas não se chamava García Madero.” (BOLAÑO, 1998, p.551). 70 como também, o único estudioso sobre o tema, proveniente de uma instituição universitária, não tem conhecimento daquele que relatou sua experiência diária com os poetas iconoclastas. Não há então um nome específico sobre o qual recairia a função de arconte, aquele que interpretaria a identidade do movimento poético sob o prisma da homogeneidade e do acabamento, como vimos em Derrida. Levantamos, portanto, a possibilidade de ler o romance como se fosse um diário de uma geração, uma vez que a narrativa tem seu começo e fim com o manuscrito de García Madero, que se abre para conter a segunda parte, a brecha na qual pululam as mais de trinta vozes que dão seus testemunhos ao longo dos vinte anos que atravessam o romance, relatos que são introduzidos, talvez em diálogo com a forma de um diário, pela anotação das datas e dos lugares em que foram dados esses depoimentos. Sugere-se assim o performático trânsito do privado em direção à coletividade, tratado no primeiro capítulo. Sobre essa possibilidade de ler o romance como o diário de uma geração, no ensaio “Perdidos en Bolaño”(2006), o escritor chileno Roberto Brodsky, com um tom um tanto quanto confessional, comenta sobre a facilidade com que um latino-americano se identifica com a obra de Bolaño, sobretudo os que nasceram na década de 50. O romance Los detectives salvajes , de acordo com o escritor, possui duas entradas que corroboram com tal argumento: a primeira, a da confissão, é encenada pelo diário do adolescente García Madero, que, segundo Brodsky, narra situações existenciais que grande parte dessa geração foi acometida, como os sonhos de revolução, a preocupação com a sexualidade e, como sugere o título da primeira parte, “Mexicanos perdidos en México (1975)” (BOLAÑO, 1998, p.11), a sensação de se estar perdido em seu próprio país diante do estado de incerteza e de crise social e política que assola todo o continente latino-americano neste momento. Já a segunda entrada se refere à presença do alter-ego de Bolaño, que, como já mencionamos, acaba por trazer à tona alguns traços autobiográficos do autor, como a sua situação de poeta exilado, que vai delineando uma identidade com muitas nacionalidades mediante o diásporo trânsito que ele empreende no vasto e imenso território que forma o hispano-americano e a “mancha de Cervantes”. Assim, para Brodsky(2006, p.86): De acuerdo a esto, el chileno que escribe es también un mexicano que escribe, un venezolano que escribe, un boliviano que escribe. No es un 71 español ni un catalán. (...) El latinoamericano que escribe es el poeta Juan García Madero, perdido en su propio país, como cualquier poeta y practicante de la palabra en este vasto, enorme y desconocido territorio que es nuestra mancha.66 Como diário de uma geração, seja devido à identificação apontada por Brodsky, para quem “uno (...) queda atrapado como lector, (...) en parte porque las ficciones del autor em cuestión comienzan a invadir la intimidad propia y uno arriesga a convertirse en un personaje más de la narración”67 (ibidem, p.83), seja pela forma da narrativa, que começa e finaliza com o diário inacabado, em processo, de García Madero, ou pela presença de referentes históricos, que serão melhor analisados no próximo capítulo, o romance parece reivindicar um modo de arquivamento que se dirige, como nas atividades dos diaristas, à remodelação dos restos do hoje, os quais são atravessados pelas lacunas do ontem, e também pela imaginação, pela invasão da contingência e pela improvisação da escrita, sempre incompleta e aberta para uma próxima entrada em sua contínua busca de um sentido para a literatura e para a própria vida. De acordo com Rodrigo Pinto (2006, p.76): Con un rigor asombroso, el autor somete a juicio a toda literatura del siglo y a buena parte de la historia, siempre en nombre del empeño de sus personajes protagónicos por descubrir las huellas secretas que pueden revelar el sentido de la poesía y de la vida.68 Se nos ativermos assim ao diário de García Madero, nos damos conta de que a escrita – que, apesar das digressões e descontinuidades inerentes ao presente, está sempre centrada no relato do dia referente à entrada do diário – funciona como um modo de desabafo e de reflexão diante das preocupações e dos percalços da vida do jovem diarista, um modo de elaboração de suas experiências como adolescente, como mexicano perdido em México, e sobretudo, como poeta real-visceralista. No diário, o jovem, que parece não ter receio nenhum dos julgamentos que um futuro leitor pudesse 66 “De acordo com isso, o chileno que escreve é também um mexicano que escreve, um venezuelano que escreve, um boliviano que escreve. Não é um espanhol nem um catalão. (...) O latino-americano que escreve é o poeta Juan García Madero, perdido em seu próprio país, como qualquer poeta e praticante da neste vasto, enorme e desconhecido território que é nossa mancha.” (BRODSKY, 2006, p.86). 67 “o leitor é capturado pelo texto (...) em parte porque as ficções do autor começam a invadir a própria intimidade e o leitor assim se arrisca a se transformar em um personagem a mais da narração.” (Ibidem, 86). 68 “Com um rigor espantoso, o autor submete a juízo toda a literatura do século e a boa da história, sempre em nome do empenho de suas personagens protagônicas para descobrir as pegadas secretas que podem revelar o sentido da poesia e da vida.” (PINTO, 2006, p.76). 72 fazer – o que nos leva a crer que esse manuscrito, ao menos até o momento, não tinha anseios de publicação – abre sua intimidade. Relata sobre suas preocupações em torno da própria virgindade, como também ao redor de sua educação poética, deixando sobressair-se como poeta ainda com pouca formação; narra sobre sua situação de órfão e como pouco a pouco foi abandonando o curso de direito na prestigiada UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México) para dedicar-se inteiramente à vida e à poesia; com esta, deixa entrever uma relação visceral, cuja manifestação se dá, por exemplo, na leitura do poema transcrito no diário intitulado “El vampiro”, de Efrén Rebolledo (1877-1929), poeta do modernismo mexicano – “la primera vez que lo leí (hace unas horas) no pude evitar encerrarme con llave en mi cuarto y proceder a masturbarme mientras lo recitaba una, dos, tres hasta diez o quince veces”69 (BOLAÑO, 1998, p.22); enfim, como aspirante à escritor e com planos de “cambiar la poesía mexicana” (ibidem, p.30) , García Madero acaba por delinear o campo literário latinoamericano, posicionando-se, por um lado, “contra el imperio de Octavio Paz y el imperio de Pablo Neruda” (ibidem, p.30), personagens que surgem no romance como símbolos da cultura oficial, burguesa e acadêmica, e, por outro, mostrando os seus pares, como o surrealista francês Raymond Queneau (ibidem, p30), o poeta Rimbaud e os próprios poetas real-visceralistas, os quais são percebidos pelo diarista como poetas fantasmas. “A los real visceralistas”, diz Madero, “nadie les da NADA. Ni becas ni espacios en sus revistas ni siquiera invitaciones para ir a presentaciones de libros o recitales. Belano y Lima parecen dos fantasmas.”70 (Ibidem, p.113 – grifo do autor). O diário é então, para Madero, uma forma não apenas de conservar a memória e de construir uma espécie de arquivo pessoal através das transcrições de poemas e de opiniões críticas sobre os escritores, mas também um modo de buscar sentido para a vida e para a literatura. Assim, é mediante a improvisação dessa escrita que parece se dirigir somente àquele quem escreve, que é aberto, no romance, a segunda parte, a inserção do emaranhado de vozes ao longo dos vinte anos, as quais não se encandeiam por um eixo temático, mas, como um diário, pela série de datas, sendo interpostas pela voz de Amadeo Salvatierra na já mencionada noite em 1976, na qual ele provavelmente 69 “a primeira vez que o li (faz umas horas) no pude evitar de me trancar no meu quarto e começar a me masturbar enquanto eu o recitava uma, duas, três até dez ou quinze vezes.” (BOLAÑO, 1998, p.22). 70 “ninguém lhes dá NADA. Nem bolsas de estudos nem espaços em suas revistas nem sequer convites para ir a apresentações de livros e recitais. Belano e Lima parecem dois fantasmas.” (Ibidem, 113). 73 conversa com os protagonistas sobre Cesárea Tinajero, noite marcada pelo álcool, pelo delírio e pela incerteza dos fatos. É por essa lógica do colecionismo, da incessante adição de peças em um jogo no qual parece que elas sempre vão faltar – o que deixa o romance sempre em aberto para uma nova entrada, para uma mudança de rumo – que se constrói Los detectives salvajes. Ora, sob essa perspectiva, não seria Madero – essa personagem que tem a sua existência negada a única vez que surge no amontoado de vozes, mas, que, no entanto, introduz e finaliza o romance com seu diário – o compilador oculto que organizou a narrativa mediante a inserção de vozes no próprio manuscrito? Não seria esse jovem, anônimo e fantasmagórico, quem entregou a sua juventude em prol da poesia e de uma causa de antemão já perdida e que, frente ao destino trágico de um sonho que representa a morte de Cesárea Tinajero, a mãe dos real-visceralistas, decide abandonar o diário – e, quiçá, a própria literatura, como fez Rimbaud – para sair em busca de Lima e Belano, com o intuito de fazer falar uma boa parte da história que foi duramente reprimida e violentada? Perguntas que fazemos como leitores, mas que, no entanto, ficam em suspenso, seja porque ainda faltam muitas peças do jogo, seja porque os jovens revolucionários foram condenados ao esquecimento frente à experiência do mal e do horror das ditaduras militares, mas que, justamente por isso, seguem se inscrevendo na historia como lacuna, como um modo de questionar sempre, como nos lembra Walter Benjamin, “cada vitória dos dominadores”. (BENJAMIN, 1996, p.224). 74 Capítulo 3: Sobre o incessante trânsito performático rumo ao real indomável71 “El mundo se te da en fragmentos/ en astillas” (Mario Santiago Paspaquiaro) “Se escribe fuera de la ley. Se escribe contra la ley. No se escribe desde la ley.” (Roberto Bolaño) No início do “Manifiesto Infrarrealista” (1976) , Roberto Bolaño tece o espaço do fazer poético mediante um fragmento de La Infra del Dragón, conto do russo Georgij Gurevich, no qual conjetura-se sobre a existência dos infrasoles: trata-se de corpos não luminosos, cuja existência independe de um exterior que possa vê-los; estrelas escuras que, embora não estejam circunscritas em mapas celestes, são contemporâneas às estrelas luminosas no espaço sideral. Essa ideia – a da existência na realidade de dimensões não mapeadas – é apropriada então por Bolaño em prol de uma poesia que se afaste de temas consagrados pelos espaços do poder: sugere-se assim uma espécie de exercício testemunhal ao poeta, incumbido de lançar um olhar outro sobre as nuances desconhecidas do cotidiano com o intuito de transformá-lo. Não só no trecho parafraseado acima, mas ao longo de todo o manifesto, há uma concepção de poesia dotada desse caráter performático que funciona como um dispositivo revolucionário capaz não apenas de reconfigurar os limites do visível e do dizível da experiência, ensejando novas formas de subjetividade, como vimos no capítulo 1, mas também de afirmar o real como um espaço inapreensível que, paradoxalmente, emerge no entrelaçamento das dimensões visível, factível e dizível da nossa vivência como um constructo ficcional, constituindo-se, portanto, como um território passível de constante reformulações e intervenções. Uma chave interessante de leitura para abordar aqui a obra de Bolaño seria então, lembrando Jacques Rancière, a de pensar que o que nos é dado como realidade se constrói mediante uma configuração do sensível que aponta para diferentes níveis de divisões entre aqueles que participam da ordem discursiva delimitando o “objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções” (RANCIÈRE, 71 Graciela Ravetti, no artigo “Narrativas performáticas” (2002) , ao se referir ao movimento performático de supressão das barreiras entre ficção e realidade, nos fala de um certo “real indomável” que é convocado pelo performer . Tal definição nos pareceu bastante adequada para se pensar, como veremos a seguir, sobre uma dimensão do real, convocada pelo romance Los detectives salvajes, que extrapola os próprios limites da narrativa. 75 2012, p. 74) e aqueles que são excluídos dessa possibilidade. Nesse contexto, segundo o filósofo, o objeto artístico, ao possibilitar a emergência dos que eram vetados ao direito de ter voz como coparticipantes do real, abriria caminhos para a criação de cenas de dissenso: territórios capazes de registrar os conflitos dos mais diversos traços dos indivíduos no espaço público, assegurando-lhes os intervalos que marcam sua diferença. A arte seria então uma possibilidade de propor configurações outras para o que se constrói, no contexto contemporâneo da globalização, como um “acordo entre sentido e sentido (...), entre um modo de apresentação sensível e um regime de interpretação de seus dados” (Ibidem, p.67): fratura-se assim um consenso, uma “ficção dominante” “que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade” (Ibidem, p.74). A ficção, portanto, não é considerada por Rancière como oposição entre realidade e artificialidade, mas como uma configuração que dilui essas fronteiras, abrindo caminho para o fazer político: entendido pelo filósofo como um modo de rearranjar os signos que não se limita a “uma autorreferencialidade solitária da linguagem”(RANCIÈRE, 2009, p.55), mas que se potencializa através do emaranhado de significação que nos é acessível a partir da linguagem muda das coisas, tornando visível e legível – mediante um procedimento metonímico, de diferença e de associação – o que antes era amorfo e percebido como ruído. “(...) a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das competências – e incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas como ruídos dos corpos.” (RANCIÈRE, 2012, p.60). O romance Los detectives salvajes gravita em torno desse desafio, o de, mediante o performático trânsito em direção ao real, àquilo que se mostra governado por leis caóticas e desconhecidas, possibilitar rearranjos na configuração do sensível que diluem as fronteiras que separam a representação da atuação, o real do fictício, como um meio de intervir nas configurações em que se manifesta aquilo que nos é dado como realidade. Por meio da estrutura labiríntica da obra, o que Bolaño parece colocar em funcionamento é uma máquina ficcional que se utiliza de elementos referenciais como uma tentativa de encenar o real indomável, o qual funciona como um gatilho para a construção de relatos inacabados, que se contradizem, deixando entrever a 76 impossibilidade de se esboçar um sentido único para uma experiência pautada pelo horror. Pensamos aqui nas vozes subtraídas da participação em uma história coletiva (marcada por cenas de dissenso) pelas atrocidades cometidas durante os regimes ditatoriais na América Latina, vozes estas que emergem, de algum modo, na superfície narrativa mediante artistas e militantes que, nos meados do século XX, em todo o território latino-americano, decidiram lutar por ideias, decidiram abandonar tudo o que tinham e arriscar a própria vida em prol de uma sociedade mais justa, mas, que, no entanto, se despertaram com o pesadelo de uma realidade que resiste ao poder homogeneizante da metáfora, sugerindo um espaço muito mais secreto e devastador do que aquele que a escrita conseguiu abarcar. Referimo-nos ao fato de que a poesia – que, como já mencionamos, é fulgurada na obra mediante a busca de um movimento literário cuja presença é apenas evocada, mas nunca emerge na superfície da narrativa – faz com que diversas temporalidades citilem muitos fragmentos de uma realidade em permanente estado de tumefação, instaurando como matéria estética a imprecisão e a multiplicidade: ou seja, a busca detetivesca em torno da poesia faz com que a linguagem do romance se circunscreva, como vimos nos capítulos 1 e 2, em um curto-circuito de variadas temporalidades e vozes, deixando entrever um espaço narrativo fragmentado, marcado pela diversidade e, sobretudo, pela certeza de que aquilo que se viveu não pode ser garantido pelo que se está mostrando. A presença-ausência da poesia atua então como um corpo performático, que “llega a ser lo que es a través de la desaparición.” 72 (PHELAN, 2011,p.93). Em outras palavras, no ensaio “Ontología del performance” (ibidem), Peggy Phelan desenvolve o argumento de que a performance “obstruye la delicada maquinaria de la representación reproductiva necesaria para la circulación del capital”73 (Ibidem,p.99), uma vez que, sendo ela realizada na fulgacidade do ato, “desaparece en la memoria, en el reino de la invisibilidad y lo inconsciente, donde evade las normas y el control.”74 (Ibidem, p.100). Ou seja, trata-se do desaparecimento dos restos materiais da performance, como vimos no capítulo 2 com Rebecca Schneider, no ensaio “El performance permanece” (2011). Rompe-se, assim, com a lógica da metáfora – a que 72 “chega a ser o que é através da desaparição.” (PHELAN, 2011, p.93) “obstrui a delicada maquinaria da representação reprodutiva necessária à circulação do capital.” (Ibidem, p.99). 74 “desaparece na memória, no reino da invisibilidade e do inconsciente, onde evade as normas e o controle.” (Ibidem, p.100) 73 77 garante “una jerarquía vertical de valor, y es reproductiva; opera para borrar la disimulitud y negar la diferencia; convierte dos en uno”75 (Ibidem, p.103), dando lugar à um fazer artístico que se apoia em um processo metonímico – o qual se concretiza mediante a adição e a associação, assegurando “um eje horizontal de contiguidad y desplazamiento”76 (Ibidem,p. 103). Apesar de utilizar esse argumento para discutir a arte da performance de um modo geral, o ponto central do ensaio de Phelan se concentra na arbitrariedade da relação entre corpo/subjetividade, sublinhando que o movimento performático traz à tona o fato de que o gênero sempre implica uma adição ao corpo, ou seja, não possui uma relação direta com o órgão sexual. Desse modo, performar o “ser” pressupõe o desaparecimento dele mesmo, uma vez que se realiza somente mediante um deslocamento (ou uma associação) concretizado por um complemento visível. “(…)en la plenitud de su aparente visibilidad y disponibilidad, quien ejecuta el performance de hecho desaparece para representar otra cosa: baile, movimiento, sonido, personaje (…) o como los retratos de Cindy Sherman nos ayudaron a descubrir, el intento mismo de que aparezca el cuerpo femenino implica la adición de otra cosa al cuerpo. (…) el performance usa el cuerpo para poner de manifiesto la carencia de Ser que se promete mediante el cuerpo y a través de él, aquello que no puede ser visto sin un complemento.”77 (Ibidem, p.103) Propondo então um diálogo com a argumentação de Phelan, reclamamos para o romance em questão um certo caráter performático que sublinha a arbitrariedade das relações entre representação/realidade, signo/referente. Realça-se assim não apenas a opacidade entre as fronteiras desses binômios, mas também o fato de que a passagem do segundo termo ao primeiro sempre implica uma diferença, um deslocamento que se realiza por meio de uma associação e de uma ausência criadora. Em outras palavras, todo modo de pensar ou representar o real pressupõe um rearranjo de signos, ou seja, uma construção ficcional, através da qual, paradoxalmente, o real se torna visível por meio de uma diferença. Não se trata, portanto, de afirmar que estamos imersos em um espaço puramente ficcional, mas de entender que entre as experiências e as formas de inteligibilidade que as tornam pensáveis e visíveis, há uma distância incontornável. 75 “uma hierarquia vertical de valor, e é reprodutiva; opera para apagar a dessemelhança e negar a diferença; converte dois em um.” (Ibidem, p.103) 76 “um eixo horizontal de contiguidade e deslocamento.” (Ibidem, p. 103) 77 “na plenitude de sua aparente visibilidade e disponibilidade, quem executa a performance de fato desaparece para representar outra coisa: dança, movimento, som, personagem (...)ou como os retratos de Cindy Sherman nos ajudaram a descobrir, a tentativa de que apareça o corpo feminino implica a adição de outra coisa ao corpo. (...) a performance usa o corpo para manifestar a carência do Ser que se promete mediante o corpo e através dele, aquilo que não pode ser visto sem um complemento.” (Ibidem, p.103). 78 Sobre o romance de Bolaño, pode-se dizer que tanto a fragmentação da narrativa – desatada pelo ser fugidio da poesia – como o trabalho em torno de referentes históricos, como veremos no próximo tópico deste capítulo, encenam essa distância incontornável própria da performance. Como já foi mencionado, o ato de escrita é provocado pela busca da própria poesia, fulgurada no romance sob o sugestivo nome de Realvisceralismo, o movimento literário iconoclasta fundado pelos protagonistas, Arturo Belano e Ulises Lima. A propósito do Realvisceralismo, Paula Aguilar nos chama a atenção para o significado do termo “visceralismo”. O visceral, segundo a autora, “alude a un doble sentido, refiere a los órganos internos del cuerpo, a las entrañas de la barbarie, y describe una lesión emocional muy intensa, una herida en la subjetividad.”78 (AGUILAR). O Realvisceralismo preconiza então um certo tipo de literatura que se configura como um modo de fazer poético que supõe disponibilidade e abertura do corpo do próprio artista ao que o mundo oferece, sujeitando-o às influências do desejo, da imaginação e da intuição com o objetivo de implicar o próprio real indomável, em sua indizibilidade, na obra de arte. (...) la poesía (la verdadera poesía) es así: se deja presentir, se anuncia en el aire, como los terremotos que según dicen presienten algunos animales especialmente aptos para tal propósito.(BOLAÑO, 1998, p.15). 79 A partir dessas breves observações, pode-se dizer que no romance a realidade visceral é performada mediante uma construção literária que empreende processos de marginalização que colocam a escrita em uma zona limítrofe, ameaçada pelo silêncio, mas também que deixa entrever um real cuja impetuosidade escapa da apreensão pelo signo verbal. Alude-se aqui ao modo como a obra se estrutura: como já mencionamos, constituída por mais de trinta narradores, a narrativa gravita em torno de diversas buscas espectrais. Por um lado, por meio do diário que compõe a primeira e a terceira partes do 78 “alude a um sentido dobro, refere aos órgãos internos do corpo, às entranhas da barbárie, e descreve uma lesão emocional muito intensa, uma ferida na subjetividade.” (AGUILAR. Disponível em: http://www.orbistertius.unlp.edu.ar/congresos/viicitclot/Members/spastormerlo/actas-del-vii-congresointernacional-orbis-tertius-1/ponencias/AguilarPaula.pdf) 79 “a poesia (a verdadeira poesia) é assim: se deixa pressentir, se anuncia no ar, como os terremotos que segundo dizem pressentem alguns animais especialmente aptos para tal propósito.” (BOLAÑO, 1998, p.15) 79 romance, temos Juan García Madero, que narra suas buscas vitais: a da poesia, a da iniciação sexual e, sobretudo, a que empreende com Ulises Lima e Arturo Belano, os quais, junto com Madero, tentam encontrar a precursora dos real-visceralistas nos desertos de Sonora – Cesárea Tinajero – a poeta fantasmagórica que atravessa grande parte da narrativa apenas como ausência evocada, quem, ao se encontrar com os personagens-detetives, morre de maneira trágica. Por outro lado, temos a busca que o leitor empreende (e o próprio texto) dos protagonistas – estes construídos e desconstruídos com a multiplicidade de vozes – sendo que, a imagem final deles, a que resta como desfecho, é inacabada, contraditória, polissêmica. Portanto, apesar da extensa narrativa , a sensação que se tem ao final da leitura é de um vazio estrondoso: uma obra fragmentada, inacabada, na qual proliferam diversos gêneros discursivos, além das histórias que nunca se cruzam; na qual o próprio leitor, ao tentar capturar os protagonistas que se escapam dos relatos, tem que se converter em um dos detetives da narrativa para poder dar conta do ato de leitura que a obra parece demandar. É possível então dizer que essas buscas fracassadas, que levaram à consciência da perda, desencadeiam pedaços de um texto cujo todo não nos é possível conhecer. Sugere-se assim uma realidade extratextual que excede qualquer possibilidade de arquivamento pela palavra, cujos indícios de sua coparticipação na construção do romance são encenados mediante os hiatos que fraturam a superfície textual. Percebida dessa maneira, a força do real surge na própria materialidade da obra menos como representação de algo e mais como efeito de um evento.80 No entanto, cabe aqui frisar, que essa experiência em um mundo sem lógica e em permanente catástrofe apresentado no romance, mais além de fraturá-lo, traz à narrativa a participação de vozes pautadas por uma visão periférica, as quais são 80 Sobre os novos realismos, Karl Erik Schollhammer, no artigo “Realismo afetivo: evocar o realismo além da representação”, comenta sobre o realismo indexical. De acordo com o teórico, esse modo de realismo traz “o efeito direto da presença do objeto” (...) “como a fumaça do fogo (...) ou a pegada na areia. Não há semelhança entre objeto e signo, o índice pelo contrário aponta para, e sempre está no limite da realidade não semiótica”. (SCHOLLHAMMER, disponível em: http://www.gelbc.com.br/pdf_revista/3907.pdf ). Desse modo, partimos da suposição de que a escrita bolaniana, por realizar a constante marginalização de si mesma bordejando aquilo que se calou, funciona como um signo indicial que, mais além de afirmar o real como algo inapreensível, sofre o efeito deste mediante o estatuto lacunar do romance. 80 articuladas pelo vagar nômade que empreendem os protagonistas por zonas degeneradas pela marginalidade e miséria humana, a partir de onde ecoam alteridades em fuga, tipos de traços andinos, vendedores de drogas, mendigos, poetas marginais, enfim, “hijos de Calibán, perdidos en el gran caos americano”81 (Ibidem, p.324). Emergem-se assim configurações do sensível que alucinam os limites dos modos de organizações do real, que, como vimos, são pautados por visões consensuais, trazendo à tona, através de um processo metonímico de diferença, a positividade da incessante construção de novas formas culturais. Dito de outra maneira, como um modo de intervir nas dimensões visíveis e legíveis da realidade, o romance faz implodir leituras múltiplas a partir de “las estaciones ignoradas”82 (BOLAÑO), colocando em jogo os modos de narrar e enriquecendo o mundo mediante a implementação de cenas de dissenso, que asseguram “o conflito de vários regimes de sensorialidade” (RANCIÈRE, 2009, p.59). As dezenas de vozes impressas na superfície textual abrem assim um trânsito vertiginoso rumo ao real indomável, pelo qual a experiência sugerida no romance é lida em seus fragmentos, em sua incompletude, franqueando processos de leitura que transcendem os próprios limites da narrativa, transformando-a em algo vital, aberta ao devir. De acordo com Espinosa (2006, p.131-132): La obra de Bolaño, el mejor narrador chileno en muchos años, corrobora una vez más que la literatura es una experiencia de conocimiento radical. (…) Una y otra vez en sus novelas y relatos surge la continua presencia de un personaje que actúa a partir de sucesivas fugas del orden lineal, causalista. Ocurre entonces una suerte de multiplicidad de trayectorias que van construyendo y deshaciendo mapas de intensidades realvisceralistas: es el deseo lo que nos mantiene pegados a la historia, a la vida. No hay un norte posible, porque continuamente los planos se cruzan, permitiendo que todo recorrido pueda cambiar sin aviso previo.83 81 “filhos do Caliban, perdidos no grande caos americano.” (Ibidem, p.324) . “a partir das estações ignoradas.”BOLAÑO, disponível em: http://manifiestos.infrarrealismo.com/primermanifiesto.html 83 “A obra de Bolaño, o melhor narrador chileno em muitos anos, colabora uma vez mais para que a literatura seja uma experiência de conhecimento radical. (...) Surge, com alguma frequência, em seus romances e relatos, a contínua presença de um personagem que atua a partir de sucessivas linhas de fuga da ordem linear, causalista. Irrompe então a multiplicidade de trajetórias que vão construindo e desfazendo mapas de intensidades real-visceralistas: é o desejo que nos mantém colados na história, na vida. Assim, não há um norte possível, pois continuamente os planos se cruzam, permitindo que todo o recorrido possa mudar sem aviso prévio.” (ESPINOSA, 2006, p. 131 - 132). 82 81 O espaço literário então, ao se apoiar em um processo metonímico para encenar essa imensa incerteza em relação ao real, coloca em xeque a própria possibilidade representativa da linguagem, redimensionando-se: não mais pensado como unidade orgânica e fechada, ele transcende seus próprios limites, com a vocação “de abraçar o compromisso da obra em aberto, (...) sob as premissas de que tudo é arte e tudo é vida” (RAVETTI,2002, p.66). Sob essa perspectiva, o ato de leitura, desprovido da tarefa de perseguir um sentido único e bem delimitado, é transformado em um ato performático, que se emancipa de uma suposta relação entre causa e efeito transmitida pelo texto. Pensamos aqui no que disse Rancière a propósito da performance, entendida pelo filósofo como uma “terceira coisa” da qual nem o artista nem o espectador são proprietários, “cujo sentido nenhum deles possui, que se mantém entre eles, afastando qualquer transmissão fiel (...)” (RANCIÈRE, 2012, p.19). Talvez seja por isso que, na última página do romance, Bolaño tenha imprimido um retângulo em via de se desmanchar, com a seguinte pergunta – “¿Qué hay detrás de la ventana?”84 (BOLAÑO, 1998, p. 609) – sugerindo que o sentido último de uma existência inconclusa e inapreensível está em uma obra ausente, à qual nem o escritor nem o leitor podem acessar em sua completude, mas que, no entanto, devem seguir buscando-a com o intuito de fazer emergir configurações outras para a realidade. 3.1 Os detetives selvagens As narrativas policiais, na visão de Ricardo Piglia, têm seus fundamentos não apenas em contos clássicos do inglês Edgar Allan Poe, quem inventou o gênero na Inglaterra no século XIX, mas também nos contos do estadunidense Ernest Hemingway, escritos no início do século passado. Para o argentino, enquanto no relato policial clássico se afirma o “fetiche de la inteligencia pura” (PIGLIA, 2001, p.60), ou seja, nele o detetive desvenda um enigma até mesmo em um cubículo fechado , mediante a perspicácia de seus malabarismos intelectuais, o que o leva a formar uma resposta lógica aos fatos ocorridos em torno do crime, no relato policial duro (ou norteamericano), o investigador se lança na experiência e vai “al encuentro de los hechos, se deja llevar por los acontecimientos y su investigación produce fatalmente nuevos 84 “O que há atrás da janela?” (BOLAÑO, 1998, p. 609) 82 crímenes; una cadena de acontecimientos cuyo efecto es (...) el desciframiento.”85 (Ibidem, p.60). Por um lado, temos então a figura do detetive de Poe, encarregado de proteger a lógica da sociedade burguesa do século XIX, que defende a lei e mantém a ordem social mediante a reconstrução e dedução da cena de um crime que aconteceu a priori, cujo desdobramento narrativo ocorre apenas no plano intelectual, isto é, o processo de investigação, que geralmente é um hobbie, não acarreta reações em outras personagens; e, por outro, a figura de um detetive profissional, que tem a sua prática imersa em uma cadeia de reações muitas vezes sangrentas que acabam por culminar em novos crimes, cujo pano de fundo é a sociedade norte-americana dos anos 30, degradada pela crise social e política. É nesse sentido que Piglia comenta que o romance policial duro, dado o contexto social de profunda depressão econômica nos Estados Unidos, está atravessado por relações sociais pautadas por interesses econômicos, nas quais o dinheiro é identificado com a lei e, consequentemente, com a manutenção do status quo capitalista, ou seja, o detetive é contratado por alguém – geralmente por grandes empresários – para desvendar um enigma nas grandes cidades industriais. Pero al mismo tempo hay un modo de narrar en la serie negra que está ligado a un manejo de la realidad que yo llamaría materialista. (…) basta pensar en la compleja relación que establecen entre el dinero y la ley: en primer lugar, el que representa la ley sólo está motivado por el interés, el detective es un profesional, alguien que hace su trabajo y recibe un sueldo (mientras que en la novela de intriga el detective es generalmente un aficionado que se ofrece desinteresadamente a descifrar el enigma); en segundo lugar, el crimen, el delito, está siempre sostenido por el dinero: asesinato, robos, estafas, extorsiones, secuestros, la cadena es siempre económica (a diferencia, otra vez, de la novela de enigma, donde en general las relaciones materiales aparecen sublimadas: los crímenes son gratuitos, justamente porque la gratuidad del móvil fortalece la complejidad del enigma).86 (Ibidem, p.61-62 – grifo do autor). 85 “ao encontro dos fatos, se deixa levar pelos acontecimentos e sua investigação produz fatalmente novos crimes; uma cadeia de acontecimentos cujo efeito é (...) o deciframento.” (PIGLIA, 2001, p.60). 86 “Mas ao mesmo tempo há um modo de narrar no policial duro que está ligado a um tratamento da realidade que eu chamaria materialista. (...) basta pensar na complexa relação que estabelecem entre o dinheiro e a lei: em primeiro lugar, quem representa a lei está motivado somente pelo interesse, o detetive é um profissional, alguém que faz seu trabalho e recebe um salário (enquanto que no policial clássico o detetive é geralmente um amador que se oferece desinteressadamente a decifrar o enigma); em segundo lugar, o crime, o delito, está sempre sustentado pelo dinheiro: assassinatos, roubos, trapaças, extorsões, sequestros, a cadeia é sempre econômica (diferentemente, outra vez, do policial clássico, onde geralmente as relações materiais aparecem sublimadas: os crimes são gratuitos, justamente porque a gratuidade do motivo fortalece a complexidade do enigma).” (PIGLIA, 2001, p. 61-62 – grifo do autor). 83 No entanto, embora haja traços distintivos em torno dessas duas vertentes do romance policial, ambas giram ao redor de um enigma que é decifrado apenas no final da narrativa. Trata-se, desse modo, de uma narrativa sobre uma segunda narrativa ausente, que surge enquanto rastro, enquanto enigma a ser reconstruído mediante a narração da primeira história, a do inquérito. É por isso que Piglia comenta que entre essas duas vertentes há “el relato periodístico, la página de los crímenes, los hechos reales.”87 (Ibidem, p.60). Ou seja, o argentino, em diálogo com o poeta Auden, explora a ideia de que o relato policial teria surgido para “compensar las deficiencias del género narrativo no ficcional (la noticia policial) que fundaba el conocimiento de la realidade en la pura narración de los hechos.”88 (Ibidem, p.60). Me parece una idea muy buena. Porque en un sentido Poe está en los dos lados: separa de los hechos reales con el álgebra pura de la forma analítica y abre paso a la narración como reconstrucción y deducción, que construye la trama sobre las huellas vacías de lo real. La pura ficción, digamos, que trabaja la realidad como huella, como rastro, la sinécdoque criminal.89 (Ibidem, p 60 - 61). É nesse sentido que a trama detetivesca pode sugerir uma potência da literatura para tentar, compulsivamente, exaurir o real indomável mediante as associações inesperadas dos jogos de imaginação e criação em volta de “las huellas vacías de lo real.” Sob esse olhar, o detetive atua como um performer – e, consequentemente, como um paranoico – , ou seja, produz incessantemente relatos sobre as tramas fugidias do real, incidindo neste com as precárias soluções de um ou vários enigmas. Com outras linhas, pensamos aqui no que diz Graciela Ravetti no ensaio “Narrativas performáticas” (2002), quando aproxima a figura do paranoico à do performer. Em primeiro lugar, para a teórica, ambos agem a partir de uma referência que possui um grande efeito de realidade, ou seja, tanto o paranoico como o performer manipulam suas narrativas sobre a memória de um acontecimento, que pode ser própria ou alheia, na medida em que o estado de delírio da paranoia pode trazer “ilusões de lembranças” (ibidem, p.64), promovendo cruzamentos, assim como na performance, 87 “o relato jornalístico, a página dos crimes, os fatos reais.” (Ibidem, p.60). “compensar as deficiências do gênero narrativo não ficcional (a notícia policial) que fundava o conhecimento da realidade na pura narração dos fatos.” (Ibidem, p.60). 89 “A ideia me parece muito boa. Porque em um sentido Poe está nos dois lados: separa dos fatos reais com a álgebra pura da forma analítica e abre caminho para a narração como reconstrução e dedução, que constrói a trama sobre as pegadas vazias do real. A pura ficção, digamos, que trabalha a realidade como pegada, como rastro, como sinédoque criminal.” (Ibidem, p.60-61). 88 84 entre o eu e o outro, entre o pessoal e o coletivo, como vimos no primeiro capítulo. Em segundo lugar, tanto o paranoico quanto o performer atuam como “adjudicador de significação e motor de narrativas” (ibidem, p.65) que são tecidas frente à angustiante sensação de um mundo desprovido de sentidos estáveis e definitivos, procurando incessantemente estabelecer vínculos entre os fatos de uma experiência caótica, que ameaça “a integridade dos sujeitos” (ibidem, p.65), no intuito de formar redes de inteligibilidade que deem conta do inapreensível real, o que multiplica a produção de sentidos e leituras frente a esse caráter indomável da experiência. Atitude análoga tem, a nosso ver, o detetive, que realiza a investigação tentando imbricar-se na memória do outro (principalmente na da vítima e na do assassino) para tentar reconstruir, mediante sua perspicácia intelectual e imaginativa, a cena do crime, do enigma provindo da realidade. Os símbolos que a paranoia produz se alinham nos tipos relacionados com a mitologia e o folclore e em geral com fantasias de repetição cíclica, de multiplicação ubíqua, em pares ou tríplices projeções dos personagens, às vezes como alucinações de desdobramento da pessoa do sujeito. Porém, o que se chega a considerar o mais notável é que os símbolos engendrados pela paranoia possuem um alto valor de realidade, inclusive as reações assassinas se produziriam com muita frequência num ponto neurálgico das tensões sociais da atualidade histórica. Como dizíamos antes, com referência à performance, também aqui se produz a interseção do pessoal e o coletivo como marca destacada. (Ibidem, p.64 - 65). Podemos então aqui propor uma relação de três vértices entre o paranoico, o performer e o detetive, com o intuito de se pensar o romance Los detectives salvajes a partir de um enigma, de um crime, de um trauma coletivo, que ecoa a realidade como rastro inapreensível. Em primeiro lugar, porque, como já mencionamos rapidamente nos outros capítulos, a narrativa tem permanentemente como pano de fundo diversas referências históricas, como, por exemplo, o episódio em que Ulises Lima viaja a Manágua, quando foi convidado a participar da delegação de escritores em solidariedade à Revolução Sandinista nicaraguense , que derrubou o governo ditatorial de Anastasio Somoza Debayle em 1979 (BOLAÑO, 1998, p.331-341), ou então, o delirante relato de Auxilio Lacouture (ibidem, p.190-199), que se insere na atmosfera da dura repressão militar na UNAM , que foi invadida em 1968 e se manteve temporariamente fechada, relato que também faz menção ao brutal massacre estudantil que teve centenas de mortos ocorrido em Tlatelolco dias antes das olimpíadas deste 85 mesmo ano, além dos traços autobiográficos do autor, o que confere ao romance um alto valor de realidade referencial. Em segundo lugar, porque, como vimos ao longo desta dissertação, a narrativa parece tentar reconstituir uma primeira história – a da obra e dos poetas perdidos – rasurando e multiplicando uma possível origem (ou uma possível solução para um enigma) mediante o amontoado de testemunhos e tempos, o que gera o falar incessante do paranoico, do performer e, neste contexto, do detetive frente a um universo caótico. Desse modo, ainda que o próprio título e a estrutura labiríntica e detetivesca da obra possam sugerir que se trata de um romance policial, Los detectives salvajes transgride muitos dos fundamentos desse tipo de gênero. Sobretudo porque não oferece a solução de um enigma ao final da narrativa, o qual é encenado pela morte de Cesárea e pela aparição e desaparição do Realvisceralismo, que nos conduz a enigmas ainda maiores, relativos ao mal e ao horror de uma atmosfera regida por leis ininteligíveis. Embora seja inegável então que haja na obra traços que dialogam com o relato policial, sobretudo com o norte americano – o que nos permite lê-lo a partir desta perspectiva – como, por exemplo, o pano de fundo de violência, a presença de instituições corruptas e a investigação que culmina em novos crimes – basta pensarmos em Cesárea que morreu para proteger os protagonistas de um policial corrupto e do gigolô de Lupe, prostituta que acompanha os detetives literários na persecução nos desertos de Sonora – o enigma nele apresentado não é solucionado, mas se desdobra em um jogo de leis aleatórias, cujo o exercício de dedução e de investigação do detetive astuto presente nos romances policiais típicos se mostra inoperante. Ao contrário disso, esses detetives acabam por provocar, ainda que indiretamente, a morte de Cesárea – ou seja, da possibilidade de solucionar o enigma da literatura – o que problematiza o lugar do mal em um ambiente marcado pela escassez e pela barbárie, como nos diz em determinado momento um dos narradores. Belano, le dije, el meollo de la cuestión es saber si el mal (o el delito o el crimen o como usted quiera llamarle) es casual o causal. Si es causal, podemos luchar contra él, es difícil de derrotar pero hay una posibilidad, más o menos como dos boxeadores del mismo peso. Si es casual, por el contrario, estamos jodidos. Que Dios, si existe, nos pille confesados. Y a eso resume todo.90 (ibidem, p.397). 90 “Belano, lhe disse, o miolo da questão é saber se o mal (ou o delito ou o crime ou como queira chamar) é casual ou causal. Se é causal, podemos lutar contra ele, é difícil de derrotar, mas há uma possibilidade, 86 A literatura é então percebida pelo viés do crime, e , sendo assim, convocada ao banco dos réus a partir de sua atuação em uma realidade governada pelo acaso, adquirindo um aspecto trágico. “La literatura no es inocente, eso lo sé yo desde que tenía quince años.” (Ibidem, p.151). Se não é inocente, os detetives selvagens do romance – que tentam decifrar um real indomável, catastrófico, escrevendo fora das projeções da lei – diferentemente dos romances policiais tradicionais, não são vinculados com a restituição da ordem, mas , mediante sua imersão em uma atmosfera de horror , acabam por trazer à tona um estado de hipocrisia no qual os direitos humanos são cancelados para a manutenção do status quo, uma situação em que, muitas vezes, a vítima é culpabilizada e perseguida com o intuito de retirar a responsabilidade do Estado pelas torturas e assassinatos que ocorreram durante os regimes ditatoriais de toda América Latina, situação que segue ocorrendo, de algum modo, até o dias atuais – no romance, por exemplo, há a já mencionada presença de uma polícia corrupta que contribui para a manutenção de uma rede de prostituição escrava em México D.F, na qual Lupe, quem optou por deixar a profissão, é perseguida não somente por seu gigolô, mas também pelo policial que o acompanha. Segundo Juan Villoro (2011, p.16): Ignacio Echevarría ha sostenido con acierto que la figura narrativa dominante en Bolaño es la del poeta: el investigador heterodoxo de lo real, el detective salvaje. Si Ricardo Piglia ve al detective como una variante intelectual (el hombre que busca conexiones y una teoría que explique el entorno), Bolaño escribe de poetas que indagan el reverso de las cosas y transforman la experiencia en obra de arte. Esto no necesariamente ocurre por escrito. Los poetas de Bolaño viven la acción como estética de vanguardia. Algunos de ellos escriben cosas que no leemos, otros buscan la gramática del desmadre, todos resisten.91 Trata-se assim de colocar a ficção como detetive dos enigmas de uma realidade social catastrófica, já que, na narrativa, a poesia é incumbida de decifrar o horror de um passado que ecoa no presente enquanto lacuna e repetição, como já discutimos no mais ou menos como dois boxeadores do mesmo peso. Se é casual, pelo contrário, estamos fodidos. Que Deus, caso exista, que nos considere confessados. E isso resume tudo.” (BOLAÑO, 1998, p.397). 91 “Ignacio Echevaría sustentou com acerto que a figura narrativa dominante em Bolaño é a do poeta: o investigador heterodoxo do real, o detetive selvagem. Se Ricardo Piglia percebe o detetive como uma variante do intelectual (o homem que busca conexões e uma teoria que explique o entorno), Bolaño escreve de poetas que indagam o reverso das coisas e transformam a experiência em obra de arte. Isto necessariamente não ocorre por escrito. Os poetas de Bolaño vivem a ação como estética de vanguarda. Alguns de eles escrevem coisas que não lemos, outros buscam a gramática do desmando, todos resistem.” (VILLORO, 2011, p.16). 87 capítulo 2. Ou seja, como vimos anteriormente, pensamos aqui, em diálogo com a psicanálise, no uso da ficção como um modo de elaborar um trauma coletivo, que teve seu registro obstruído antes mesmo de ser registrado, de natureza, portanto, inexprimível, não se reduzindo aos elementos factuais que o compõe – o que nos leva a pensar, lembrando aqui Agamben em “O que resta de Auschwitz” (2008b), na “não coincidência entre fatos e verdade, entre constatação e compreensão”(ibidem, p.20), própria de situações traumáticas. Un día le pregunté donde había estado. Me dijo que recorrió un río que une México con Centroamérica. Que yo sepa, ese río no existe. Me dijo, sin embargo, que había recorrido ese río y que ahora podía decir que conocía todos sus meandros y afluentes. Un río de árboles o un río de arena o un río de árboles que a trechos se convertía en un río de arena. Un flujo constante de gente sin trabajo, de pobres y muertos de hambre, de droga y de dolor.92 (BOLAÑO, p.366 – grifo nosso) Sobre esse trauma coletivo, é interessante aqui destacar a leitura que desenvolveu Raquel Sant’Ana sobre o romance, na dissertação Contradições do detetive: a literatura policial como problema para a teoria literária em obras de Machado de Assis, Jorge Luis Borges e Roberto Bolaño(2012). Para ela, trata-se de uma narrativa de luto, pois, em vez de apresentar a morte no início da história para ser solucionada ao final do texto, como faz o relato policial típico, o assassinato ocorre apenas no fim do livro, com a morte de Cesárea relatada no diário de Juan García Madero. A segunda parte então, na qual ecoam as mais de trinta vozes, é escrita sob a perspectiva da tragédia e do luto, perspectiva que nos damos conta somente quando terminamos o romance. Ou seja, a solução do enigma não é, como ocorre nos romances policiais típicos, o motor da narrativa, mas sim esse horizonte de morte e desencanto. Se é verdade que em Detectives (...) o motor de leitura retrospectiva não é a solução do mistério, mas o próprio assassinato, somos obrigados, em uma segunda leitura, a repassar mentalmente pelas pistas, dadas na segunda parte, agora realmente como pistas, como o inquérito. Algo muda radicalmente a leitura do livro, e isso é a morte de Cesárea. Essa nova leitura, diferentemente da do policial, é movida pelo horizonte da tragédia, não só por causa do luto por Cesárea, mas pelo que sua morte represente para os demais: o fim da utopia de uma geração. Leva-nos a ver a segunda parte, o futuro, com o horizonte da 92 “Um dia perguntei-lhe onde havia estado. Me disse que recorreu um rio que une México à América Central. Pelo que saiba, esse rio não existe. Me disse, porém, que recorreu esse rio e que agora podia falar que conhecia todos seus meandros e afluentes. Um rio de árvores ou um rio de areia ou um rio de árvores que em alguns trechos se transformava em um rio de areia. Um fluxo constante de gente sem trabalho, de pobres e mortos de fome, de droga e de dor.” (BOLAÑO, 1998, p.366 – grifo nosso). 88 morte de Cesárea, enchendo a narrativa de uma profunda decepção. (Ibidem, p.95 – grifo do autor). No entanto, embora haja no romance esse horizonte catastrófico, como nos diz em determinado momento um dos narradores – “y pensé en los terremotos de México que venían avanzando desde el pasado, con pie de mendigos, directos hacia la eternidad o hacia la nada mexicana”93 (BOLAÑO, 1998, p.367) – acreditamos que, como ato performático, a obra parece aproveitar-se de seu estatuto ficcional – entendido , como vimos em Rancière, não como oposição entre real e artificialidade, mas como um modo de fazer emergir configurações outras na realidade – para ir além da ficção, elaborando essas lembranças que são submetidas não apenas aos fatos passíveis de serem referenciados pelas dimensões visíveis e dizíveis da experiência, mas também , e sobretudo, aos jogos de imaginação diante desse real indomável que é convocado à narrativa mediante os enigmas cuja atmosfera gira ao redor de referentes históricos perturbadores, impregnados pelos signos da violência, da morte e da hipocrisia. A obra de Bolaño então, ao lançar este olhar a um passado obscuro, adquire um aspecto performático, pois “ajuda a imaginar formas possíveis de intervenção social, intervenções simbólicas, de restauração, mas também de construção, sobre os retalhos que a memória consegue reerguer e que a vontade projeta.” (RAVETTI, 2002, p.62 – grifo da autora). O romance parece demandar assim do leitor uma posição crítica em relação a essa primeira história ausente que buscam os protagonistas, a que gira em torno desses referentes reais, fazendo com que a leitura entre também em um movimento de busca de respostas, multiplicando os sentidos sobre os enigmas que não são solucionados pela narrativa. Como arte inacabada, a narrativa se mostra então como um espaço fecundo para criar sentidos outros sobre esse passado em aberto, sobretudo porque se trata da ficção como suporte de registro da experiência, não se restringindo, como sugere Piglia com relação ao relato policial, à pura narração dos fatos, mas induzindo o leitor ao exercício de dedução e tradução da própria realidade. Movimento de busca que transcende, portanto, seus próprios limites, e faz com que a narrativa adquira aspectos performáticos. De acordo com Ravetti (2011, p.35): 93 “e pensei nos terremotos de México que vinham avançando desde o passado, com pé de mendigos, em direção à eternidade, ou ao nada mexicano.” (BOLAÑO, 1998, p.367). 89 O artista desvenda/venda uma modalidade existencial do ser-nomundo e da escrita como ato performático, sem saber ao certo o último destino, sem uma ancoragem conhecida de antemão. O movimento performático é um fazer de busca, de procura. Nesse contexto, é interessante aqui, para finalizar este capítulo, abrir um diálogo desse movimento performático, de busca e de procura de sentidos que projeta um horizonte de experiência mesmo frente ao mal absoluto, com a ideia de perdão desenvolvida por Paul Ricouer, no ensaio “O perdão pode curar?” (1995) 94. Frente à matança em massa ocorrida durante a guerra fria, que multiplicou os regimes totalitários por todo o mundo devido ao confronto instalado entre o capitalismo e o comunismo, Ricouer, neste ensaio, parte do diagnóstico de que alguns povos sofrem por um excesso de memória, como se estivessem envergonhados pela barbárie que aconteceu no passado , e outros “sofrem de falta de memória, como se fugissem perante a obsessão de seu próprio passado”. (Ibidem). Ou seja, o filósofo, sobre estes últimos, baseando-se em Freud, nos fala do mecanismo inconsciente de fuga da lembrança traumática, que é continuamente recalcada mediante a recusa (e o medo inconsciente) de olhar para a própria ferida, dando lugar não para a lembrança do que aconteceu, mas sim para a repetição compulsiva. Um primeiro passo então para elaborar essa situação traumática e sair desse ciclo vicioso de repetição, que paralisa o sujeito, consiste, para Ricouer, em “encontrar a coragem para fixar a sua atenção sobre estas manifestações mórbidas, de olhar a doença como um adversário digno de estima, como uma parte de si mesmo, como um fundo do qual convirá que ele extraia preciosos recursos para a vida ulterior.” (Freud apud Ricouer).95 E aqui o filósofo nos chama a atenção para um uso crítico da memória, que consiste em contar a outro essa história traumática. Com outras palavras, sendo a narrativa o primeiro espaço no qual se exerce o trabalho de lembrança, ela, ao pressupor um interlocutor do discurso (nem que seja o próprio sujeito desdobrado em um “tu”), pode constituir-se como um modo de fazer esse uso crítico da memória, que inclui também o outro implicado nessa reminiscência traumática. É, pois, ao nível da narrativa, que se exerce o primeiro trabalho de lembrança. E a crítica ainda agora evocada parece-me consistir no cuidado em contar a outrem as histórias do passado, em contá-las 94 95 RICOUER, 1995. Disponível em: www.lusosofia.net/textos/paul_ricoeur_o_perdao_pode_curar.pdf. RICOUER, 1995. Disponível em: www.lusosofia.net/textos/paul_ricoeur_o_perdao_pode_curar.pdf 90 também do ponto de vista do outro – outro, meu amigo ou meu adversário. Este rearranjo do passado, consistindo em contá-lo a outro e do ponto de vista do outro, assume uma importância decisiva, quando se trata dos acontecimentos fundadores da História e da memória comuns. (RICOUER, 1995) Por conseguinte, o segundo passo para superar esse passado que, por seu caráter traumático, torna o futuro infértil, seria, para o filósofo, também em diálogo com Freud, o trabalho de luto, entendido como o processo de desligamento lento e doloroso do objeto que se perdeu, para assim poder partir para novos investimentos afetivos. Sem esses dois processos, o da lembrança e o do luto, estaremos, para Ricouer, presos a uma estrutura de comportamento rígido, não criativo e tampouco realizador. E é em afinidade com os trabalhos de lembrança e de luto que o francês coloca o trabalho de perdão. Para o autor, por um lado, esse processo pressupõe o ato de lembrança; “não se pode perdoar o que foi esquecido”, nos diz Ricouer (1995) e, por outro, implica o trabalho de luto, afinal, o perdão é percebido pelo filósofo como cura e superação. Porque o perdão dirige-se não aos acontecimentos cujas marcas devem ser protegidas, mas à dívida cuja carga paralisa a memória e, por extensão, a capacidade de se projectar de forma criadora o porvir. E é toda a dialética do passado e do futuro que é posta em movimento, o potente projecto no recurso imenso das promessas não realizadas. (Ibidem). É importante aqui salientar, porém, que o perdão não é apenas a soma do trabalho de lembrança com o de luto, ele é um algo a mais, aponta para uma superabundância, “que distingue o amor da lógica, da reciprocidade, da justiça”. (Ibidem). Ou seja, diferentemente do ato jurídico, que implica uma lógica de reciprocidade, tornando o crime mensurável com uma determinada pena dirigida a quem é imputável a culpa, o ato de perdão é um reconhecimento de desmedida, de que algo extrapolou os limites do mensurável e, portanto, do representável – afinal, ele se dirige à vítima. Pedir perdão é assim, para Ricouer, reconhecer que houve uma ruptura no plano da racionalidade, pois à falta cometida não existe uma pena que proponha alguma compensação reparadora, e é justamente por isso que perdoar é um ato de generosidade e amor. 91 Sob essa perspectiva, reclamamos que o romance em questão lança um olhar valente e generoso ao já mencionado passado que de tão terrível, surge na narrativa enquanto lacuna, enquanto traço irrepresentável. Em primeiro lugar porque, como vimos no capítulo 1, ao trazer à tona uma construção identitária sempre atravessada pelo outro, ou seja, pelo amontoado de vozes que constroem os protagonistas (e parte da história latino-americana) a partir de variadas perspectivas, a obra de Bolaño parece realizar o uso crítico da memória apontada por Ricouer. Afinal, trata-se de um modo de narrar que leva em conta diversos ponto de vistas, que é, para Bolaño, e isso é interessante ressaltar, uma forma de generosidade. Pensamos aqui em uma das definições sobre a fronteira entre o bem e o mal que traça o nosso autor em entrevista concedida a Daniel Swinburn (2011). “El mal es básicamente el egoísmo narrado de diferentes formas. La frontera la delimita la mirada que tengas sobre el otro, el saber que el otro existe.”96 (BOLAÑO apud SWINBURN, p.89). Sendo assim, ainda que seja um escritor que narre o horror, como diz diversos críticos, para Bolaño, os verdadeiros poetas, aqueles que fazem da vida uma obra de arte e emprestam a própria experiência para narrar o inenarrável, embora, como vimos anteriormente, não se identifiquem com lei – “poesía y cárcel, por otra parte, siempre han estado cerca.” (BOLAÑO, 1998, p.486) – são pessoas extremamente generosas e valentes, como pudemos notar no primeiro capítulo, no emocionante discurso em Caracas, quando o autor nos fala dos jovens que entregaram tudo o que tinham, a sua juventude, em prol de uma causa que acreditavam ser “la más generosa de las causas del mundo y que en cierta forma lo era, pero en realidad no lo era.” (BOLAÑO, 2006, p.212). Ou, então, como vimos na epígrafe desse mesmo capítulo, cuja voz é da já mencionada Auxilio Lacouture, que é transformada em narradora no romance Amuleto (1999), e o finaliza com a imagem da massa dos jovens fantasmas que caminhavam em direção a um abismo, unidos apenas pela generosidade e pela valentia. Ou, finalmente, como diz Bolaño em uma entrevista concedida a Héctor Soto y Matías Bravo (2011): “Creo que Borges dijo que normalmente un buen escritor es una buena persona. Debe 96 “O mal é basicamente o egoísmo narrado de diferentes formas. A fronteira a delimita o olhar que você tenha sobre o outro, o saber que o outro existe.” (BOLAÑO apud SWINBURN, p.89). 92 haber sido él, porque Borges dijo prácticamente todo. Los buenos escritores que son malas personas son excepción.”97 (BOLAÑO apud BRAVO; SOTO, p.68). É então pelo ato valente desses jovens poetas, detetives selvagens que buscam combater o mal mesmo sabendo de antemão que serão derrotados – “tener el valor, sabiendo previamente que vas a ser derrotado, y salir a pelear: eso es literatura” (BOLAÑO, 2011, p.98) – que Bolaño traz para a ficção esse passado negro da história recente latino-americana, que remete a outros passados não menos traumáticos em todo o mundo , e , sobre o qual a narrativa faz o luto, como sugeriu Raquel Sant’Ana em sua dissertação. No entanto, embora o romance apresente esse universo de desencanto, no qual a repetição suprime, muitas vezes, a lembrança, esses detetives performáticos, que rasuraram as barreiras entre a vida e a arte, são valentes e, por isso, conseguem olhar para o rosto do mal e lutar contra ele com generosidade e valor, posicionando-se do lado das vítimas e servindo, como nos lembra Ravetti, de “veículo (...) das transformações córporeas e incorpóreas dos corpos em sociedade” (RAVETTI, 2011, p.38), o que abre a possibilidade para a criação, engendrada pela postura detetivesca desses protagonistas, de um coro tão vasto como a literatura bolaniana, a qual parece exigir do leitor um posicionamento ético na construção incessante da coletividade. “Asesino o detective: no hay otra elección para un hombre” (BOLAÑO, 2011, p.109), nos diz Bolaño. 97 “Acho que foi Borges quem disse que normalmente um bom escritor é uma boa pessoa. Deve ter sido ele, porque Borges disse praticamente tudo. Os bons escritores que são más pessoas são exceção.” (BOLAÑO apud BRAVO; SOTO, p.68). 93 Breve consideração final “apareciendo y desapareciendo como la poesía verdadera” (Roberto Bolaño) Na primeira vez que li Los detectives salvajes, a sensação que se sobreveio foi de estar imersa em um fluxo incessante, como se a literatura estivesse dotada de um viés fantasmagórico que lhe conferisse movimento. Os trânsitos de ideias, de linguagens e das mais de trinta vozes presentes no romance que se entrelaçam no agora da enunciação em épocas recentes e longínquas, em abismo, bordejando uma história ausente, a dos poetas perdidos que buscam respostas e multiplicam os sentidos em torno do enigma do mal que atravessa não somente a história latino-americana, mas também a mundial, trouxeram-me a impressão de estar lendo pedaços de um texto cujo todo não me era possível conhecer. Afinal, as diversas buscas em torno das quais gira o romance não são resolvidas, sugerindo a presença de uma dimensão latente, regida por leis inapreensíveis, que excedem qualquer possibilidade de arquivamento pela palavra. A ideia inicial assim, ainda sem os diálogos teóricos que logo foram desdobrando a leitura do romance, era discutir uma espécie de máquina ficcional que transcende os próprios limites narrativos ao ir em direção ao ponto cego da experiência, o que a faz produzir uma fala inacabada e incessante, um coro de muitas vozes, realçando os diversos lugares de enunciação que participam do diálogo da vida, em constante abertura para a irrupção de novas perspectivas. Uma concepção de literatura, portanto, performática, na medida em que se constitui como um gatilho que aponta para aquilo que é irredutível a uma só abordagem, desencadeando os muitos pontos de vistas que compõem uma coletividade pensada menos por termos essencializantes e gerais, e mais por uma abertura para o outro – uma concepção de arte, nesse sentido, coletiva e plural. Trata-se, desse modo, de um fazer artístico que evoca em seu processo de realização (e de sua incessante construção) a participação de um nós, de uma coletividade, o que torna o romance produtivo, a meu entender, mais para problematizar os modos de ver e perceber o mundo do que para estabelecer posições e julgamentos definitivos sobre as vozes da narrativa. Não é que Bolaño não se posicione diante dessas vozes – basta pensarmos que a verdadeira poesia na concepção do autor é sempre 94 relacionada a figuras marginais – mas, apesar dessa posição, ainda assim, a grande maioria das vozes do romance (tanto as que refutam, como as que afirmam os lugares de enunciação do autor) surge inquirindo os limites éticos da literatura imersa na experiência, não oferecendo uma solução fácil e definitiva ao leitor. Há, por exemplo, por um lado, a voz de um advogado aposentado que se tornou um editor exitoso, Xosé Lendoiro, que narra sobre uma concepção de literatura extremamente vinculada aos espaços de poder: “los poetas se embelesan ante el espectáculo del dinero” (BOLAÑO, 1998, p.427), nos diz Lendoiro no início de um relato que acaba por insinuar que ele próprio é um sujeito covarde e cínico, de trânsito livre em meios artísticos pautados por certas regras que segregam da vida em comum o mundo da arte, elitizando-o – figura que é confrontada e se arruína quando Arturo Belano entra em sua vida. Uma personagem, portanto, cheia de fragilidades, que parece reiterar o funcionamento de um mundo do qual tem pouco conhecimento, com o qual mal convive em sua diversidade, e pelo qual é, de algum modo, responsável. No tardé en comprender lo vanas que habían sido todas mis ambiciones, tanto aquellas que rodaban por el laberinto de oro de las leyes, como aquellas que eché a rodar por el precipicio del precipicio de la literatura. (…) Supo lo que Arturo Belano supo desde el primer día que me vio: que yo era un pésimo poeta.98 (Ibidem, p.443-444). Por outro lado, há a figura do poeta realvisceralista Piel Divina, que, quando surge no romance mediante a voz de um amante esporádico (Luis Sebastián Rosado), é desenhado com extrema ambiguidade; um poeta que, nos relatos de Rosado, ainda que roube pequenas quantias de dinheiro, livros ou roupas de seus amigos e amantes e que se enverede por situações criminosas, nas quais vende drogas para poder sobreviver, nada acumula; poeta da intempérie, cuja última aparição no romance surge relacionada a uma chacina policial, na qual Piel Divina é assassinado. Poco después Piel Divina se marchó de mi casa. Antes yo había hablado con algunos amigos, gente que se dedicaba a la historia de la literatura mexicana y nadie supo darme ningún dato sobre la existencia de aquella poeta de los años veinte. Una noche Piel Divina admitió que tal vez era posible que Belano y Lima se la inventaran. Ahora los dos están desaparecidos, dijo, y nadie puede preguntarles nada. Traté de consolarlo: aparecerán, le dije, todos los que van de 98 “Não demorei a compreender como as minhas ambições tinham sido em vão, tanto aquelas que rodavam pelo labirinto de ouro das leis, como aquelas que atirei no precipício do precipício da literatura. (...) Soube o que Arturo Belano sempre soube desde o primeiro dia que me viu: que eu era um péssimo poeta.” (BOLAÑO, 1998, p.443-444). 95 México acaban por volver algún día. No pareció muy convencido y una mañana, mientras yo estaba en el trabajo, se marchó sin dejarme ni una nota de despedida. También se llevó algo de dinero, no mucho, el que solía dejar en un cajón de mi escritorio por si tenía alguna eventualidad mientras yo no estaba, y un pantalón, varias camisas y una novela de Fernando del Paso.99 (Ibidem, p.353). Não se trata, portanto, como vimos no capítulo 1, de vozes difusas, mas de colocar as diversas singularidades finitas do romance em um mesmo plano narrativo, em contato com o outro, sendo por isso desdobradas em suas possibilidades de vida. Em Los detectives salvajes, não somente os protagonistas, de modo fantasmagórico, atravessam os relatos, mas também, algumas vezes, um narrador é retomado por outro como personagem, tornando visível, mediante esses jogos narrativos nos quais uma personagem fala e é falada, um espaço horizontal e polifônico, cujos sujeitos são formados mutuamente e dialogicamente, o que inviabiliza uma leitura definitiva sobre essas personagens. Procedimento narrativo que, como vimos ao longo da pesquisa, é alimentado pela exposição dos traços autobiográficos de Bolaño, que se desdobra em personagem para realizar o performático trânsito do artista rumo ao espaço em comum da coletividade, tornando visível uma rede cujo esfacelamento do ponto de vista unívoco provoca a multiplicidade de perspectivas. Um entre-lugar, portanto, no qual pululam seres finitos, infinitamente, incessantemente. Essa postura performática do autor, a de levar traços biográficos à esfera pública, não deve ser lida, então, como um modo do artista se construir em torno do mito do escritor consagrado pela crítica, mas, antes disso, como uma maneira de ele posicionar-se eticamente no mundo, constituindo, mediante a exposição de si, uma personagem que se transforma na medida em que vai tomando os diferentes lugares de enunciação da trama da vida. Isso porque vida e literatura sempre se misturaram para o nosso autor, que utiliza de sua própria experiência como poeta marginal em México D.F para narrar a saga de uma geração valente e generosa, a qual percebe a poesia muito 99 “Pouco depois Piel Divina foi embora da minha casa. Um pouco antes, eu tinha falado com alguns amigos que se dedicavam à história da literatura mexicana e ninguém soube dar nenhum dado sobre a existência daquela poeta nos anos vinte. Uma noite Piel Divina admitiu que talvez Belano e Lima a tenham inventado. Agora os dois estão desaparecidos, disse, e ninguém já não lhes pode perguntar nada. Tratei de consolá-lo: aparecerão, eu lhe disse, todos que deixam o México acabam por voltar algum dia. Não pareceu muito convencido e em uma manhã, enquanto eu estava no trabalho, ele foi embora da minha casa, sem deixar nenhuma nota de despedida. Também levou consigo algo de dinheiro, não muito, o que eu costumava deixar na gaveta da escrivaninha caso ele tivesse alguma eventualidade enquanto eu não estava em casa, e uma calça, várias camisas e um romance de Fernando del Paso.” (Ibidem, p.353). 96 mais por um viés revolucionário, capaz de reconfigurar os limites do visível e do dizível da experiência, do que por critérios formais do objeto artístico. Não se trata, assim, de uma subordinação da narrativa a uma identidade exterior à ela, ou seja, de um “eu” produtor da escrita, mas, antes disso, se trata da identidade gerada pelo ato de escrever, como efeito desse processo – a escrita como um modo de experiência, portanto, o que abre a possibilidade de ler a narrativa de Bolaño a partir da performance. Se então, por um lado, a performance como chave de leitura do romance abriu caminhos para discorrer sobre uma concepção de arte inserida nas relações do mundo, muito mais preocupada com os meandros éticos de sua criação do que com a recepção crítica do seu fazer artístico, e na qual o artista surge como um aprendiz, como um sujeito que busca sentidos para a própria a vida e também para a alheia, pois se percebe imerso na experiência da coletividade; por outro, o romance parece apontar, como vimos no capítulo 3, para um aspecto ainda pouco explorado pelos estudos da performance: o da generosidade desses artistas que emprestam a sua própria experiência não para construir-se em torno de um mito que alimente a indústria cultural, mas para estar em contato com o outro, concedendo-lhe voz mediante uma subjetividade que, ao desdobrar-se como personagem, entra em processo de errância, convocando as inúmeras posições ideológicas que participam do diálogo da vida. Como vimos ao longo da pesquisa, com a literatura de Bolaño é aberto um coro desarmônico, vozes que são dissonantes entre si por sua singularidade – um coro que, por girar em torno da verdadeira poesia (ou, ainda, daquilo que é arredio a leituras definitivas), pode induzir o leitor a tomar posição na construção de um nós, na construção de uma coletividade sem rosto, em devir, pela qual somos todos responsáveis. Com isso, queremos aqui sublinhar dois aspectos. O primeiro se refere a como Bolaño sempre se percebeu em suas narrativas como um poeta e não como um romancista. É que seus romances – sobretudo os que têm como personagem o seu alter ego confesso, o poeta Arturo Belano – parecem surgir para narrar a experiência do autor com um fazer poético intimamente vinculado à própria vida, posicionamento que talvez explique a fulguração da verdadeira poesia em suas narrativas enquanto ausência, enquanto falta, e como iminência de uma revelação que não se produz, o que traz, como procedimento literário, a distância incontornável entre as experiências e as formas de interpretação que as tornam pensáveis e visíveis. Se a verdadeira poesia gira assim em 97 torno da falta, daquilo que foi subtraído para se poder narrar, a sua presença-ausência – e aqui sublinhamos o segundo aspecto – se apresenta enquanto busca, enquanto irrupção de sentidos plurais na literatura, como vimos em Los detectives salvajes, sempre provisórios e incompletos. Para o nosso autor, justapor as distintas formas de contar é se servir da possibilidade do discurso de desarranjar os códigos já naturalizados, o que promove um olhar crítico sobre o mundo, sem, contudo, reduzi-lo a classificações taxativas. Talvez a curiosa explosão de vendas dos romances de Bolaño se deva a essa tentativa do latino-americano de exaurir o “real indomável”, problematizando os limites entre realidade e ficção ao evidenciar que os modos de narrar, embora sejam já de antemão falidos no que concerne à possibilidade de realizar leituras definitivas sobre o mundo, são também produtores do próprio mundo, incidindo nele e de algum modo transformando-o: o que pode confirmar que as aspirações revolucionárias e generosas do poeta marginal , as quais muito lembram as vanguardas do início do século passado, ainda se apresentam enquanto potência que não se esgotou em todas as suas possibilidades de vida, deixando como legado uma cauda de anseios inconclusos e imateriais. Com a leitura de Bolaño, se avivam então discussões éticas sobre o lugar do intelectual e do artista no mundo frente a hipocrisia de uma sociedade que, para a manutenção de seu status quo, acaba por culpabilizar suas vítimas, como ocorre, por exemplo, com o genocídio cometido por policiais diante da multiplicidades de vozes emergentes no contemporâneo cenário das diferenças. 98 Referências bibliográficas: AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Tradução: Antônio Guerrero. Lisboa: Editorial Presença, 1993. ________. “A potência do pensamento”. Disponível http://pt.scribd.com/doc/51497096/Agamben-A-potencia-do-pensamento.(acesso: setembro/2013). em: ________. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008a. ________. “O fim do poema”. In: Cacto n.1. São Paulo, 2002. ________. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução: Vinicius Nicastro Honesko. 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