EDITORIAL A presente edição do Correio novamente volta sua atenção ao sempre promissor diálogo entre arte e psicanálise. Articulação esta que, a partir do encontro com diferentes formas de manifestação artística, acompanha o movimento psicanalítico desde suas primeiras proposições. Poderíamos até dizer que, seguindo os ensinamentos de Freud e Lacan, não há como nos furtarmos a essa necessária forma de construção, apoiada nos dois citados campos. Trazemos, então, a público, textos que propõem tal discussão, sendo, desta feita, a sétima arte tomada como dispositivo que, em diálogo com a psicanálise, pode auxiliar-nos a lançar um olhar privilegiado sobre algumas formas de sofrimento psíquico no mundo atual. Assim, seremos levados pelas mãos, pelas linhas, de Ana Costa, Nilson Sibemberg, Francilene Rainone, Miriam Chnaiderman, e Contardo Calligaris a refletir de distintas maneiras sobre cinema e loucura. Ainda nesta edição, tendo em vista que, neste ano, o eixo de trabalho do ensino da APPOA se dirige ao estudo do seminário sobre “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” de Jacques Lacan, publicamos na seção debates a tradução de sua segunda aula, feita por Cláudia Berliner, baseada no texto estabelecido em francês. A publicação das aulas desse seminário soma-se a de outros tantos textos das últimas edições do Correio, que também percorrem questões em torno do mesmo. Através da publicação desses escritos, contribuímos ao debate que tem ocupado diversos momentos de trabalho da Associação e que preparam nossa próxima Jornada Clínica, a qual também está aqui noticiada1. 1 Editorial escrito por Márcio M. Belloc C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 1 NOTÍCIAS NOTÍCIAS JORNADAS CLÍNICAS DA APPOA FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE INCONSCIENTE, REPETIÇÃO, TRANSFERÊNCIA, PULSÃO nestas Jornadas Clínicas da APPOA a revisão conceitual enquanto retorno e inovação. PROGRAMA Data: 21 e 22 de outubro de 2006 O que constitui fundamento para a psicanálise? O texto freudiano, herança legada na abertura de um campo e invenção de uma práxis, opera como matriz originária. “Freud – diz Lacan – não foi apenas o sujeito suposto saber; ele sabia”. Desse saber o que se transmite é o que permanece como enigma. Diferentemente das proposições dogmáticas tão na moda e tão afeitas aos fundamentalismos contemporâneos, doutrinários ou religiosos, científicos ou, até mesmo, com notas de um ceticismo cínico como se tornou o tema do saber na política; apontamos para o saber inconsciente que convoca o sujeito a se fazer cargo da falta que lhe constitui. O saber na psicanálise se conjuga com o desejo. Desejo de certeza que Freud sustentou em sua pesquisa, e que Lacan retoma para nele situar e interrogar o fundamento da práxis analítica. Desejo que ultrapassou o próprio Freud, instituindo-se como efeito da análise: no exterior do espelho do amor e da identificação, mas na base da formação dos analistas. Desejo do analista, sustenta Lacan, é articulador na análise das fundações de seu exercício. Os fundamentos da psicanálise, como os alicerces de uma construção, arrimam uma obra, assim como as bases da clínica, na qual o desejo do analista sustenta a operação analítica no desenrolar da experiência. Os pilares conceituais formam o princípio a partir do qual a práxis se torna conseqüência, do mesmo modo que instiga a teorização. Os conceitos de inconsciente, repetição, pulsão e transferência são fundamentais à psicanálise desde Freud, assim como o foram para Lacan e qualquer formulação sobre o fantasma, a direção da cura e a formação do analista, bem como sobre o que se tem hoje a dizer sobre a ciência, a religião ou a política; passa necessariamente por eles. Ao retornar aos fundamentos, portanto, afirma-se a psicanálise, ao mesmo tempo em que se indaga seus pressupostos. Seguindo a trilha deixada por Lacan, propomos 2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. Sábado 21 de outubro Manhã 9h15min – Abertura – Lúcia Mees 9h30min Mesa 1 : O Inconsciente 1. Conceitos em psicanálise e fundação de um campo – Ana Costa 2. O ato tradutório – Cláudia Berliner 3. Eneaotil – Otávio Augusto Winck Nunes 11h Mesa 2: O Inconsciente 4. A Esperteza do inconsciente – Sílvia C. Teixeira 5. A construção do conceito de recalcamento em Freud – Elaine S. Foguel 6. Inconsciente e desejo do analista – Robson de Freitas Pereira 7. O tempo e o inconsciente – Osvaldo Arribas (Argentina) Tarde 15h Mesa 3: A pulsão 8. Afânise – Ligia Gomes Víctora 9. A agressividade nos limites da linguagem – Luis Fernando Lofrano 10. O trabalho da pulsão na condição de morbidade – Denise Mairesse 16h30min Mesa 4: A Pulsão 11. Notas sobre a pulsão – Heloísa Marcon 12. Estranha vagância na língua – Marta Pedó C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 3 NOTÍCIAS NOTÍCIAS 13. O texto que não cabe na página – Fernanda Pereira Breda 14. A pulsão escópica na contemporaneidade – Jaime Betts Domingo 22 de outubro Manhã 9h Mesa 5: A transferência 15. A transferência e o desejo de professor – Rosana Coelho 16. “A(s) transferência(s) nas Políticas Públicas de Saúde”. Emilia Broide 17. Clínica na Instituição (título a confirmar) – Marianne Stolzman M. Ribeiro 18. O infantil na transferência – Gerson Pinho 11h Mesa 6: A transferência 19. Transferência, verbo intransitivo – Maria Cristina Poli 20. Impasses na transferência – Rosane Ramalho 21. A liberdade – Ricardo Goldenberg Tarde 15h30min Mesa 7: A Repetição 22. Repetição: conceito e clínica – Lúcia A. Mees 23. Sobre determinação – Maria Ângela Bulhões 24. Monocromos psíquicos: litoral, literal, lutoral – Edson L.A. de Sousa 25. Quanto mais sujeito, menos automatismos. Quanto mais automatismos, menos sujeito – Alfredo Jerusalinsky Encerramento – Lucia Serrano Pereira Local: Centro de eventos Plaza São Rafael, Av. Alberto Bins, 514 – Porto Alegre – RS. 4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. INSCRIÇÕES: Categorias Associados Estudantes Profissional Antecipadas até 06/10/2006 R$80,00 R$90,00 R$110,00 Após o dia 06/10/2006 R$110,00 R$120,00 R$140,00 SEMINÁRIO “O DIVÃ E A TELA” EDIFÍCIO MASTER, DE EDUARDO COUTINHO Um dos ápices da careira deste diretor que renovou o documentário brasileiro, Edifício Master(2002, Kikito em Gramado) é o filme que o seminário traz para discussão neste mês de setembro. O olhar e a câmera que já havia descortinado o nordeste em “Cabra marcado para morrer”, o sincretismo religioso e a mitologia em “Santo forte” e “Babilônia 2000”, agora abre-se para a alteridade no campo da subjetividade urbana através das portas, janelas e vozes de um edifício localizado num dos bairros mais representativos do Brasil: Copacabana. Lugar que um dia foi a “princesinha do mar”, sonho e desventura do desejo daqueles que um dia ousaram habita-la e povoar de humanidade o concreto e o asfalto. Filme: Edifício Master Data: 13 de setembro, quarta-feira Hora: 19h30min Coordenação: Enéas de Souza e Robson Pereira Local: sede da APPOA ( Faria Santos,258, POA/RS) C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 5 NOTÍCIAS NOTÍCIAS OFICINA DE TOPOLOGIA – O NÓ BORROMEANO DE LACAN No sábado, dia 19 de agosto, realizou-se mais uma Oficina de Topologia na APPOA. Desta vez, avançamos na discussão sobre os nós. O roteiro da oficina foi o seguinte: 1. Para compreender os nós: os movimentos de Reidermeister. 2. A cadeia borromeana de três nós. Confecção (modo simplificado, costurado, e a partir da trança). 3. O “nó borromeu generalizado” de Lacan. 4. Cadeias feitas com retas infinitas. 5. Cadeias de 4 nós. 6. O “nó de Joyce”, segundo Lacan. A cadeia (link) feita com três nós livres, chamada por Lacan de “nó borromeu”, pode ser construída se “costurando” dois elos fechados soltos, com um terceiro, aberto, que deverá passar sucessivamente por cima de um, e por baixo do outro, e se fechará em seguida. Também pode ser feita a partir de uma trança. Quando chegar a seis cruzamentos, os fios terão voltado a suas posições iniciais. Então, basta religar os fios na mesma ordem para se obter a cadeia borromeana. Eles estarão aparentemente presos, mas estão soltos, de fato. Há 3 tipos básicos de movimentos de Reidermeister. Todos são usados para confecção de nós. Podem ser redutíveis (desatar sozinhos, continuar livres) ou não-redutíveis (ficam presos, enlaçam a si mesmos ou aos outros). . (Cada grupo destes é isotópico) 6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. Na cadeia borromeana “clássica” (a três), todos os elos estão em igualdade de posição: em se desamarrando um deles, todos se soltam. Lacan conseguia enfim uma forma de apresentar as três instâncias do sujeito da linguagem: Real, Simbólico, Imaginário, sem uma “hierarquia” entre si. No centro seria o lugar de seu objeto a – o objeto causador de desejo – lugar vago, e ao mesmo tempo tão cobiçado. Para distinguir os nós entre si, Lacan deu-lhes nomes, orientou-os (com setas) e coloriu-os. Mas isso não bastava, pois, mesmo assim, eles continuavam sendo todos iguais e podiam intercambiar-se. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 7 NOTÍCIAS NOTÍCIAS Lacan deve ter errado um bocado (assim como nós), nessas experiências de amarração. Percebeu que às vezes fazia um cruzamento a mais, e ficava um elo bem torcido no meio. Porém, ele ainda era borromeu. Chamou este de “nó borromeu generalizado”. Michel Thomé demonstrou em um seminário de Lacan, que não havia nenhuma diferença entre as diversas apresentações da cadeia borromeana. 1 Por que Lacan precisava distinguí-los? Talvez procurasse uma diferença para o nó feminino e o masculino? Talvez quisesse um conjunto de nós que se desfizessem sozinhos, por homotopias? Quando Lacan introduziu o nó borromeu “tradicional” (a três) como estrutura do sujeito neurótico, muitas questões se seguiram. Como seria no caso da psicose? A hipótese de que um – ou mais de um – elo estaria solto (como uma reta infinita, talvez?) não respondia suficientemente. Se com três elos o objeto a estava no centro, onde seria o “buraco” da cadeia a quatro? O que segura o “nó” do sujeito, seria um “falso buraco”, composto pela “nominação simbólica”: o nó do Simbólico, juntamente com o Sintoma. Como no caso de Joyce (Lacan, seminário O Sinthoma): Joyce seria um artista. Sua arte, seu « sinthoma ». Seria o nó de Joyce suficiente para dar conta das psicoses? Não, pois no final de seu ensino Lacan voltou-se para as superfícies uniláteras (de Boy, de Seifert). Seria a cadeia borromeana a “escritura que sustenta o Real” do sujeito, com queria Lacan? Durante certo tempo ele afirmou que sim. Mais tarde, no Seminário A topologia e o tempo, ele diria que o nó era “um abuso de metáfora”… Ligia Gomes Victora Para poder fazer a diferença, acrescentou um quarto elo à cadeia. Seria o nó da realidade psíquica, ou do sintoma, ou do complexo de Édipo, ou do Nome-do-pai...Este foi o gancho para a questão da nominação. 2 Com quatro elos, há uma resistência natural dos nós à homogeneização. Três deles obedecem, mas há um que resiste – que fica emaranhado no meio da cadeia. É o nó “da banana”, como o apelidou Lacan, que insiste em escorregar... 1 2 GRANDES HISTÓRIAS NA CULTURA PSICANÁLISE E LITERATURA HAMLET - WILIAM SHAKESPEARE Dia: 28/09, quinta-feira Horário: 20h Local: Anfiteatro da Livraria Cultura - Bourbon Country, Av. Túlio de Rose, 80, loja 302. V. artigo no Correio da APPOA: RSI – setembro 2004. Lacan. Seminário RSI, 1974/75. 8 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 9 SEÇÃO TEMÁTICA COSTA, A. Um tipo especial... UM TIPO ESPECIAL DE LOUCURA DE OBJETO O filme é do diretor Jean-Jacques Beineix. Estreou em 1987 e foi indicado ao César de melhor direção. Foi recentemente lançado em DVD com uma “versão completa”, sem os cortes da edição, o que aumenta o tempo para 3 horas e também reduz o impacto. apresentado como desafio: silenciosamente levanta-se e carrega as malas de Betty para dentro da casa. Zorg era uma espécie de zelador “faz-tudo”, encarregado de bungalows numa praia, parecendo viver muito pacificamente, e que nas horas livres escrevia. Betty era agitação, furacão, instabilidade... A cada segundo ela vai rompendo a bucólica vida de Zorg. O que acalma Zorg enfurece Betty, que não faz concessões às saídas sintomáticas. Ela busca o impossível, sempre batendo de frente com o furo da estrutura. A diferença das duas posições logo se apresenta: enfurecida com a exploração que o chefe de Zorg os submete – eles precisariam pintar os 500 bungalows para que Betty pudesse ficar morando ali – ela joga os apetrechos e mobiliários da casa pela janela. Como ato final, coloca as malas dos dois do lado de fora e ateia fogo na casa. O desdobramento dessas passagens é muito interessante: tanto a passividade de Zorg, que assiste a tudo impotente, quanto a frieza apaixonada com que Betty realiza sua passagem a ato. Poderia pensar-se que o que está em causa nesse momento é uma ruptura com o que diferencia os objetos, diferença que os interditaria e que os faria designar o valor do lugar que ocupam. Os utensílios e móveis compõem “a casa” e esta tanto pode ser um lugar, que amarra simbólico e real, quanto uma “cena”. Quando Betty traz sua mala “a casa” é o valor de um lugar do qual Zorg se faz representante para ela. Quando o chefe dele o destitui, ela somente continua com ele por ter deslocado o valor para os cadernos nos quais descobrira o que Zorg escrevera. A partir daí Zorg não era um simples zelador, era um escritor e ela mostraria isso ao mundo. “A casa”, então, perdera o abrigo de lugar e se tornara uma “cena”. Pode parecer curiosa a designação de “frieza apaixonada”. Uma nos parece o oposto da outra: onde há paixão não há frieza. No entanto, essa expressão serve para situar uma determinada relação da paixão com o ato, que adquire importância no tema que nos ocupa. São momentos em que se produz uma clivagem entre ato e objeto, em que o ato é o próprio objeto em si mesmo. Ou seja, são expressões ligadas à produção de uma falta no C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. Ana Costa Q uem não sabe bem a importância das “preliminares”, até mesmo para o cinema, precisa assistir ao filme Betty Blue (“37,2 Le matin”)1. Nele, a cena de entrada – uma transa “quente” do casal principal – deixa o expectador de “fora”, ainda se ajeitando na cadeira para assistir ao filme e sem apoio identificatório para poder “entrar” na cena. Fica ali plasmada uma cena antecipada, fora do tempo. Talvez possamos reconhecer aí a experiência, muitas vezes relatada em análises, de quando o sexo pode parecer violento, fazendo-se representar por uma entrada intrusiva. O intruso é o que fica de fora da erótica, sem poder usufruir da condição de voyeur. Esse “fora” vai nos orientar na abordagem de um ponto específico que o filme nos traz, na relação à questão da passagem a ato. Não pretendemos, portanto, fazer um entendimento do filme, mas tomar elementos que nos ajudarão a pensar nessa construção. Betty Blue fez época. Em meados dos anos 80, quando estreou no cinema, marcou uma geração a identificar e glorificar um amor louco, extremado, de conseqüências bizarras e trágicas. Conta a história de um encontro amoroso que busca constituir um lugar. Por caminhos que não deixam de ter seu charme, o filme nos mostra a fundamental diferença entre “lugar” e “cena”. Betty entra na vida de Zorg sem pedir licença. No mesmo dia da cena de abertura – a da relação sexual – ela surge na porta da casa dele com suas malas, convidando-se para morar ali. Nesse momento ficamos sabendo que antes daquela transa não tinham nada em comum, nada que justificasse esse “morar juntos”. Depois da surpresa, Zorg aceita isso que lhe é 1 10 11 SEÇÃO TEMÁTICA COSTA, A. Um tipo especial... Outro que a passagem a ato coloca em causa. Aqui, a compulsão ao ato responde a uma interpelação do superego. Freud já analisou o ato de jogar objetos da casa pela janela, ligado a momentos na infância em que um irmão vem deslocar o outro. “Tirar o lugar”, aqui, o propomos num sentido o mais radical possível, não como a colocação corriqueira de rivalidade. No texto de 1917, denominado “Uma lembrança infantil de Goethe” em “Poesia e verdade”, Freud retoma um episódio relatado por Goethe, no qual – com a idade de quatro anos – jogou todos os pratos da casa pela janela e se regozijava com o barulho feito. Vinha-lhe na memória a voz dos vizinhos que lhe diziam “mais, mais...”. Para além das significações posteriores que porventura se acrescentem à cena (Freud propõe interpretações a partir de sentidos imaginários), é de grande interesse a proposta de análise freudiana a respeito do irmão como intruso. Como o mencionado anteriormente, isso não se refere a toda vinda de irmãozinho e sim quando essa vinda situa algo a mais. Não por nada Freud associa esse elemento de memória de Goethe aos vários irmãos do escritor, mortos precocemente. “Intruso”, “intrusão” retoma essa báscula entre lugar e cena na qual estamos nos detendo. Uma intrusão pode conter a violência de ser ejetado para fora da cena se esta não se sustenta na referência simbólica de um lugar. Essa violência implica, como interpelação superegóica posterior, um “fazer ativo”, isso que se coloca como princípio de passagens a ato. A passagem a ato busca a produção da falta: essa produção é o a priori necessário a toda constituição de lugar. Retomando o filme, a casa como “cena” interpela a passagem a ato, na reconstituição dos orifícios da janela, no extravasamento de seus interiores, precipitados “para fora”. Queda do valor do objeto a dejeto, condição de uma nova busca de lugar: o lugar do escritor. Betty e Zorg rumam a Paris, onde encontram a amizade de outro casal, num suporte especular que permite uma convivência amistosa e amena. Mas isso não é suficiente para Betty, que se empenha na busca de publicar o que Zorg escrevera. Este é absolutamente cético sobre isso e esconde dela as respostas negativas que recebem. Até que – o inevitável – a carta chega a seu desti- no2. Novo fracasso, nova busca: desta vez por engravidar. No entanto, com o retorno insistente dessa “carta”3, a prova de novo fracasso se precipita “em corpo”: Betty ouve vozes, Betty vê coisas e, por fim, interpelada pela angústia, produz uma falta no lugar em que seu corpo se cola ao Outro: arranca seu próprio olho. Esse ato esvazia Betty, leva-a embora. É nessa forma de catatonia que Zorg a revê no hospital. Nesse momento é dele que depende a passagem a ato para reconstituir a cena: ele precisa matar Betty. Coisa curiosa: ele o faz vestido de mulher. Acrescentando algo mais ao tema, no Seminário sobre a angústia4, Lacan diferencia acting-out e “passagem a ato” com a fineza de uma precisão clínica. O acting-out, nos diz ele, demanda interpretação, o que implica numa determinada relação ao Outro como suposto saber, que indica ainda a preservação desse lugar. Já na passagem a ato o sujeito “se deixa cair” para fora de cena. Ele está numa situação de máximo embaraço, como refere Lacan, “apagado pela barra”. Mesmo não sendo o objetivo neste artigo, a personagem Zorg merece algumas considerações. Ele parece secundário à presença extremada de Betty. No entanto, é ele quem “faz o palco” e que constitui o ponto necessário para a montagem fantasmática. Tanto é assim que seu ato de assassinato – o ato final – o faz internalizar essa mulher louca. Talvez não fosse usar de muita licenciosidade em dizer que se o lugar de Betty constitui essas passagens a ato, o lugar de Zorg é o do sintoma. Sintoma, este, em fracasso constante. Encerremos com essa colocação para pensar. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 12 2 Talvez seja desnecessário mencionar, mas uma das cartas chega até Betty, com um texto de extrema violência sobre a incompetência de Zorg como escritor. A menção que fazemos aqui retoma essa proposta lacaniana da relação entre repetição e destino ligado ao destinatário de uma carta. 3 Estamos empregando uma licenciosidade na escrita. Carta, aqui, faz menção à letra, tal qual proposta por Lacan, como designativo de um gozo na repetição. No filme, a personagem também fracassa ao tentar engravidar, o que provoca sua última crise. 4 Lacan, J. O Seminário, livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 13 SEÇÃO TEMÁTICA SIBEMBERG, N. Algumas notas sobre... ALGUMAS NOTAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MATEMÁTICA E PSICOSE NO CINEMA idéia de uma relação entre a matemática e a loucura está presente no senso comum. O mundo do cinema captou esse pensamento. Em 1998 e 2001, foram lançados dois filmes sobre matemáticos psicóticos, enfocando uma ligação entre o raciocínio lógico matemático e a construção delirante dos protagonistas de ambas histórias. Na história da matemática, também encontramos importantes pensadores psicóticos. Haveria, neste encontro, algo além do folclore popular? O filme “Pi”, dirigido por Darren Aronofsky em 1998, será o contraponto dialógico para a construção de algumas notas sobre este tema. Ron Howard dirigiu em 2001 o filme “Uma mente brilhante”. Baseado na biografia do matemático John Forbes Nash Jr., escrita pela jornalista Sylvia Nasar, Ron narra a trajetória do ganhador do prêmio Nobel de economia de 1994, da sua psicose e da elaboração da teoria que aplica jogos e relações de rivalidade na compreensão de questões econômicas complexas, ao reconhecimento da comunidade científica pelo seu trabalho. O filme sofreu críticas negativas por ter feito uma adaptação do livro em que questões da sexualidade deste importante matemático ficaram apagadas. Aronofsky escreveu, em parceria com Sean Gullette e Eric Watson, o roteiro e assinou a direção do elogiado “Pi”. Conta a história de um matemático judeu, Maxmilian Cohen, paranóico e obcecado na busca incessante da representação numérica de um padrão para a vida, da bolsa de valores à palavra cifrada de Deus. A ficção cinematográfica encontra apoio na história de grandes matemáticos que ajudaram a estabelecer as bases da matemática moderna. Georg Cantor, responsável pela teoria dos conjuntos, dos números transfinitos e dos infinitesimais, faleceu aos 72 anos em um hospital psiquiátrico, após inúmeras crises psicóticas ao longo da vida. Já o austríaco naturalizado americano, Kurt Gödel, morreu recusando-se a comer, acreditando que estava sendo envenenado. Gödel escreveu o teorema da incompletude: qualquer sistema axiomático suficiente para incluir a aritmética dos números inteiros não pode ser simultaneamente completo e consistente. Isso significa, se o sistema é auto-consistente, então existirão proposições que não poderão ser nem comprovadas nem negadas por esse sistema axiomático. E se o sistema for completo, então ele não poderá validar a si mesmo – seria inconsistente. Em “Uma mente brilhante”, o diretor nos apresenta um sujeito com nítidas dificuldades na constituição de laços sociais. A função simbólica do Nome-do-pai está ausente da relação com o Outro. Entre tantas, uma cena chama especial atenção. Observando um jogo entre colegas de faculdade, se coloca freneticamente a escrever fórmulas matemáticas na janela de seu dormitório. Sua teoria sobre jogos e relações de rivalidade, aplicada a questões econômicas complexas, surge na tentativa de entender o que se passava nos jogos entre equipes rivais e, também, no jogo das relações interpessoais e amorosas. A álgebra lhe permite uma escrita, a formalização de um conhecimento, mas não o exercício de um saber simbólico capaz de fazer furo no real, rompendo a captura imaginária no Outro. Ele busca um sentido, seja nas mensagens criptografadas em seu delírio paranóico, seja nos laços sociais que aparecem como códigos a serem decifrados e traduzidos de forma algébrica. Aronofsky nos apresenta um movimento de câmera distinto de “Uma mente brilhante”. Howard conduz sua narrativa incitando o espectador com a pergunta sobre onde está a fantasia, onde está a realidade. Questão também abordada por David Cronemberg em “Spider”, outro filme que aborda a psicose e a vivência do delírio. A lente desses diretores nos confronta com a colagem entre sintoma e fantasma que se dá na psicose, mas divergem de “Pi” quando a câmera volta ao lugar do olho que testemunha a cena da psicose. Se, em momentos dos filmes, somos tragados pela construção delirante que apaga fronteiras, no final conseguimos voltar ao nosso posto avançado da neurose. Já em “Pi”, a câmera, usando de forma magistral o jogo de luzes e sombras C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. Nilson Sibemberg A 14 15 SEÇÃO TEMÁTICA SIBEMBERG, N. Algumas notas sobre... entre o preto e o branco, com planos rápidos e fechados, nos joga no turbilhão, na dor e no caos que a busca do UM, da nomeação do inominável, do absoluto na paranóia, ao mesmo tempo que tenta acalmar, leva ao pior. Somos jogados, sem movimento de volta, na experiência delirante de Max Cohen. A vida de John Nash parece ter um final feliz. Depois do reconhecimento pelo seu trabalho, ele segue dando aulas em Princeton. Sua obra lhe deu um lugar social. Cohen, não o matemático Paul Cohen autor da teoria da forçagem, mas o personagem da ficção de Aronofsky, tem um final diferente. A falta do corte simbólico leva-o a produção de um furo real no cérebro, uma espécie de lobotomia com uma furadeira, dando um ponto de basta na sua busca. O filme inicia com o matemático Max Cohen escrevendo em seu diário: “12:45 – Eu reassumo minhas posições : 1.- Matemática é a língua da natureza; 2.- Tudo ao nosso redor pode ser representado e entendido através dos números; 3.- Se você criar gráficos dos números de qualquer sistema, padrões surgirão; 4.- Existem padrões em todos os lugares da natureza.” Max vive encastelado em seu apartamento, transformado numa teia de fios, chips, telas e teclados, na busca de um padrão numérico que possa definir o movimento da bolsa de valores. Entre suas crises de enxaqueca e o vai e vem do valor das ações no mercado financeiro global, ele se defronta com a questão de sua origem, sua filiação. O Talmud, escritura sagrada da religião judaica, na interpretação da Cabala, constitui uma escrita cifrada. Cada letra do alfabeto hebreu representa um número. O deciframento e a interpretação de um sentido secreto nas escrituras seria possível a partir do simbolismo presente nas letras e nos números. O encontro do matemático com o estudioso da Cabala, Lenny Meyer, instala a busca delirante do número que permitiria o acesso à palavra de Deus, reveladora do segredo guardado na Arca Sagrada, conhecimento da verdade sobre o messias, cuja chegada viria restaurar a ordem divina entre os homens. Max se torna o eleito, o escolhido para desvelar o código divino que abriria a era messiânica. Entre o deus mercado e o deus da religião, nosso herói procura, na linguagem matemática, um nome para o Pai. A busca do padrão absoluto, da linguagem perfeita, da forma pura e sem furos – as falhas só podem ser fruto de erros humanos – nos é apresentada no argumento de Aronofsky como insana. Ao invés de pôr ordem no caos do pensamento de Cohen, o leva na dolorosa busca de atingir o impossível, encontrar o ideal, nomear o inominável, encontrar o sentido último e indubitável do real. Loucura que só encontra sossego na lobotomia que o próprio protagonista se impõe para dar pausa na sua dor. Pausa infindável. A cena final do filme é rica em sua metáfora. Max contempla a natureza, não busca mais produzir um saber sobre ela. Os olhos podem sentir, ver. Ao ser questionado sobre operações matemáticas que antes respondia de imediato, responde, acenando com um olhar bobo, que não sabe mais como obter o resultado. A dor de viver passa, mas não passa a vida também? A questão que o filme me coloca vai além da descrição cinematográfica do que vem a ser as psicoses, da esquizofrenia à paranóia. Haveria uma relação entre psicose e linguagem lógico-matemática? A existência de gênios matemáticos psicóticos não nos autoriza a fazer uma relação direta entre sujeitos que se dedicam ao estudo da lógica e da matemática e os efeitos psíquicos da forclusão do Nome-do-pai. No entanto, seria possível pensar que o ideal de Leibniziano do desenvolvimento de uma linguagem perfeita, livre das ambigüidades da linguagem cotidiana, através da álgebra, poderia constituir um terreno fértil para uma elaboração delirante paranóica? Frege argüiu que todo apelo ao pensamento intuitivo deveria ser eliminado do raciocínio lógico-matemático. Uma lógica pura deveria levar a uma construção puramente racional, permitindo unir verdade e racionalidade. Um domínio UNO. Não encontraríamos aí uma forma absoluta e fechada de linguagem, tal qual se dá no saber delirante do paranóico? O paranóico está fixado à identificação do S1, do significante-mestre, lugar fixo de sua representação para os outros significantes. Identificado a esse Um, ideal ao qual tudo e todos se referem, não se inscreve como exceção (-1) em relação nem ao significante, nem ao gozo, como nos coloca Antonio Quinet C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 16 17 SEÇÃO TEMÁTICA no livro “Psicose e laço social” (2006). O delírio paranóico tenta imaginarizar o real dando-lhe um sentido único, um conhecimento sem furos. Curiosamente, dois matemáticos psicóticos, entre os responsáveis pela matemática moderna, são os que postularam a impossibilidade de se chegar ao Um. Lacan não partilhou da afirmação fregeana da existência de um domínio que seria Uno. Ele se valeu da noção do lugar vazio, da função do incompleto, insaturado, para explicar o que escapa a um circuito unitário. Serviu-se justamente das teorias de Cantor e Gödel, dois loucos geniais. O conjunto vazio, os números transfinitos de Cantor e o teorema da incompletude de Gödel nos dizem de um elemento irredutível, incapaz de ser circunscrito pela ordem do conhecimento. Maxmilian Cohen procura um fiador. Na falta do registro simbólico, da função de corte do terceiro que se instala no campo do fantasma, da relação entre o sujeito e o Outro, ele tem no delírio um substituto malogrado. No discurso lógico-matemático, ele busca a garantia de uma ordem que ponha fim ao caos de sua mente atribulada. A linguagem matemática procura a escritura do real. O que Max carece é do simbólico capaz de fazer furo nesse real, permitindo acesso a uma indagação sobre a incidência do desejo do Outro. A escrita unívoca, equivalendo cada símbolo algorítmico a um sentido único, da forma pura e perfeita, longe de afastá-lo da invasão real que o aflige, o conduz cada vez mais em direção ao abismo. Seu mestre e amigo, doente e aposentado, após uma vida buscando um padrão para o número Pi, lhe diz para desistir de sua busca, que dê uma pausa no seu pensar. O universo não é possível de ser reduzido a uma ordem, ele é complexo e caótico. Na falta de um significante que viesse substituir outro significante, o do desejo da mãe, não há metáfora paterna que se inscreva como fiadora da ordem e do caos. O saber sobre o princípio da Coisa é da ordem de um impossível. Quanto mais Max o procura, quanto mais ele se aproxima, mais turvo vai ficando seu pensamento. Com uma furadeira ele faz buraco real no corpo. Não há mais no que pensar. 18 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. RAINONE, F. A cena que se desvela... A CENA QUE SE DESVELA OU O QUE VELA UMA IMAGEM? Francilene Rainone1 “Está em nossa condição correr sempre o risco de nos perdermos por nosso melhor movimento” 2. A câmera filmadora leva o olho com ela, alterna constantemente as perspectivas do espectador que se torna a dos atores e não mais a do observador sentado na platéia. Os movimentos da câmera parecem propor um pacto com o espectador, conduzem o mesmo para o interior da tela e logo para o âmago das imagens, o olhar da câmera investe-se na função de narrador situado fora do mundo da história, mas ainda assim assimila e representa o olho da platéia. Falar de um filme ou escrever sobre o que um filme nos suscita é sempre uma tarefa difícil, não por não se ter o que dizer, mas por apresentarmos ao leitor justamente uma parte muito singular de nós mesmos. Quando recebi o convite para escrever um texto para este número do Correio, me perguntei que recorte seria possível do que venho pesquisando nesta trajetória como mestranda da UFRGS, no Instituto de Psicologia, no Programa do Pós Graduação da Psicologia Social e Institucional. Por onde tecer os vários fios que têm me acompanhado neste percurso de investigação? Decidi partir de um seminário proferido em 2002 por Alfredo Jerusalinsky, na Universidade de São Paulo, no Instituto de Psicologia. Vou apresentar um pequeno fragmento que, para este momento, me interessa. 1 Terapeuta Ocupacional do Cais Mental Centro, mestranda em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFRGS. 2 Lacan, (1946[1998]) p.165. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 19 SEÇÃO TEMÁTICA RAINONE, F. A cena que se desvela... Pensando desde o caso Aimée e de seu primeiro capítulo, que se chama “Exame clínico do caso”, Alfredo questiona por que Lacan começou a contá-lo por este episódio. Vou resumi-lo para que possam acompanhar o raciocínio. “Desde abril de 1900 às 8:00hs da manhã, Madame Z., uma das atrizes mais apreciadas pelo público parisiense, chegava ao teatro onde ela atuaria naquela tarde. Foi abordada no vestíbulo de entrada dos artistas por uma desconhecida que lhe colocou a questão: – Você se encontra bem, Madame Z.? A interrogadora estava vestida corretamente com um abrigo com golas forradas, carregava uma sacola e nada no tom da questão formulada vinha promover a desconfiança da atriz. Habituada às homenagens de um público ávido em se aproximar de seus ídolos, ela respondeu afirmativamente e urgida de dar um fim ao encontro, pois estava pronta para ir atuar, ela fez o gesto de passar. A atriz declarou que a desconhecida, nesse momento, mudou violentamente de cara, tirou energicamente de sua sacola um canivete aberto e com o olhar carregado de um feroz ódio deu uma facada contra ela. Para parar o golpe, Madame Z. parou a lâmina plenamente com a mão e ali se cortaram dois tendões flexores dos dedos [...].” Por que Lacan começa por essa passagem ao ato? Por que não descreve os sintomas, os delírios, ou mesmo algumas passagens anteriores da vida de Aimée? Jerusalinsky nos diz que “Lacan começa a contar um caso pelo que constitui o fracasso na vida desta mulher. Fracasso que provoca nela a emergência da impossibilidade de simbolização substitutiva reparadora do que nela se perdeu.” É por esse lugar, esse ato, que se constitui o cerne do seu sofrimento. Lacan começa pela passagem ao ato porque ela é nodal, porque dali se pode cerzir todo o tecido disperso do significante. É por esse lugar, esse ato, essa passagem ao ato que podemos falar do caso Aimée, esta impossibilidade de devolver a seu significante sua polissemia. Por que começo este texto por aí? Para continuá-lo lembrando, agora, de um artigo de Alain Badiou (2005): “Pode-se falar de um filme”? Badiou (2005), neste artigo, faz referência a três modos de falarmos de um filme. Chama de “juízo indistinto” os comentários tecidos desde o ponto de vista se nos interessou ou não, se gostamos ou não, se é algo atrativo ou que tiramos proveito. Aponta para uma outra forma que chama de “juízo diacrítico”, que argumenta a favor da consideração do filme como estilo, o que o distingue, o que se opõe ao indistinto. Mas a terceira forma, que ele assinala, é a que me parece mais pertinente de discussão neste escrito. Badiou chama de “axiomática” a forma que se pergunta quais são, para o pensamento, os efeitos de tal ou qual filme. O que pode as imagens em relação aos pensamentos do espectador? De que forma o que parece claro e evidente abre questões que não estão ali expostas? Logo, associo a forma axiomática com a questão da polissemia que Lacan nos propõe. Para falarmos de algo que nos convoca, precisamos estar abertos para o novo, para a amplitude que os conceitos encerram e entrar na direção de novas possibilidades de respostas ou mesmo de novas perguntas. Deixar a clareza e as evidências tomarem conta de nossos pensamentos e nos impulsionarem para além. Falar de um filme é deixar-nos envolver pela idéia em toda sua força, pois quando permitimos que uma “idéia nos visite em toda sua abrangência” (Badiou 2005, p.31.) podemos perceber uma quantidade de diferentes “ingredientes” contidos na mesma, naquela cena que nos tomou. Aqui, insisto com a idéia acima: falar de um filme é permitir que a polissemia das imagens nos direcione para “mares nunca antes navegados”, ou ainda, mares já navegados, mas esquecidos pela turbulência das ondas. Dadas as especificidades do cinema, cuja matéria-prima se constitui de imagens, não se pode negar que existe uma relação de comunicação entre espectador e filme. Podemos dizer que o filme prevê seu espectador. Dirige-se a ele, não só através da narrativa, mas principalmente pelos apelos visuais e sonoros. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 20 21 SEÇÃO TEMÁTICA O espectador não é um elemento passivo, totalmente iludido. É alguém que usa de suas faculdades mentais para participar ativamente, preenchendo as lacunas das imagens com seus investimentos intelectuais e transformando seu pensamento a partir destes efeitos. O cinema põe em cena e mantém com a imagem em movimento sua condição essencial. A imagem em movimento que é montada através de fotogramas propicia ao espectador algo que o captura que o atinge pela via do olhar e o remete à lembrança. Todo esse preâmbulo se propõe a introduzir o que venho trabalhando desde minha prática clínica e como pesquisadora da Universidade. Tenho acompanhado uma atividade que chamamos “Cinema em debate”. É uma prática que a cada dois meses leva pessoas, acometidas por transtornos mentais graves, atendidas nos serviços de saúde mental de Porto Alegre, ao cinema. O “Cinema em debate” combina a sessão de cinema com uma conversa sobre o filme logo após a exibição. Vamos todos (profissionais e participantes) ao cinema numa quinta-feira pela manhã. Saímos de diversos bairros da cidade – e mesmo de outras cidades como Esteio, Novo Hamburgo e São Leopoldo. É um encontro marcado, como nos lembra Froemming3: “(...) de surpresa em surpresa vamos descobrindo que cada filme propicia uma experiência diferente da que inicialmente poderíamos supor, um filme que consideramos como uma comédia se revela como um drama e outras vezes faz aflorar comentários indignados”. Por que cinema e saúde mental? A resposta a essa pergunta remete às indagações sobre as possibilidades que o cinema anuncia de entrar em contato com novos mundos, de pensar sobre o mundo e nossa existência nele. A capacidade de nos re-apresentar, nos devolver, em forma discursiva, os assuntos coletivos e individuais, nos situar entre a massa e a intimidade. RAINONE, F. A cena que se desvela... Liliane Froemming, professora da UFRGS e psicanalista, participante do Projeto Cinema em debate, numa mesa do Seminário de Acompanhamento Terapêutico na UFRGS em outubro de 2005. E principalmente pela condição do cinema em oportunizar o alcance diferente que as imagens podem assumir para cada um que a elas se submete, ou mesmo para cada um que se deixa levar pelo seu valor perceptivo, seu valor imaginário ou mesmo simbólico. Compartilho com vocês a fala de uma participante do “Cinema em debate” após o filme “As crônicas de Nárnia”, do diretor Andrew Adamsson: “Eu achei o filme bem interessante, este armário foi aberto como vocês viram e lá no outro mundo também havia guerra, num mundo que eles não conheciam, onde as pessoas eram muito diferentes, a gente tá lá, não acreditando em alguma coisa e acha um jeito de acreditar, encontrando algo que não conhece, mas faz a gente seguir” (M.). Estes dizeres nos remetem a pensarmos sobre o que ali se produz, quando acompanhamos M. em cada uma das sessões de cinema e começamos a conhecer alguns dos significantes em cena na sua trajetória particular. M. diz que é tímida que sente vergonha em ir à frente e pegar o microfone para pronunciar suas idéias (ela participa de todos os cinemas em debate e sempre inicia sua fala desta forma). Porém, após os preliminares que a apresentam, coloca suas impressões. É como se necessitasse dizer que não pode fazê-lo, mas que deseja deixar sua marca, apresentar sua fala e nos deixar tentando compreendê-la. Lacan (1992[1955-1956]) – ao procurar pensar a psicose do lado da alteridade, ou seja, um funcionamento psíquico que se coloca como alteridade, como diferença – afirma que se trata, então, de não compreender, e sim de dar lugar à diferença, à alteridade. “Comecem por não crer que vocês compreendem. Partam da idéia do mal entendido fundamental” (p.30). Talvez possamos pensar que o “em” de “Cinema em debate”, possa deslocar sensações, emoções para a tela, para a projeção, para o cinema, permitindo a abordagem de determinadas questões de um modo não persecutório, não expondo a história pessoal de cada um que ali se coloca. O cinema é considerado para além do filme ou da história narrada, envolvendo todo seu contexto: a sala escura, as pessoas ao nosso lado, as emoções e sentimentos despertados nas duas horas de sessão e, principalmente, as C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 3 22 23 SEÇÃO TEMÁTICA lembranças e expectativas que ali são propiciadas. Estamos aqui, como coloca Aumont 4, pensando em como as imagens inscrevem significações para cada um e que não há imagem sem percepção desta imagem; acrescentamos que, à percepção subvertida pela linguagem no debate que se anuncia, soma-se um traço de percepção da imagem como elemento significante e a partir daí se faz uma construção de sentido possível5. Em seu artigo “Psicologia de grupo e análise do ego”, Freud (1921) aponta para o que é possível se estabelecer de laço social a partir de uma fantasia publicamente apresentada, através de um compartilhar de idéias, de um testemunho e ainda das identificações ali colocadas. E é no capítulo onde fala da sugestão e da libido que refere a descoberta de uma explicação psicológica dessa alteração mental que é experimentada pelo indivíduo num grupo, enfatizando que os laços emocionais que ali se produzem são mecanismos constitutivos. Ir ao cinema, nos diz Caldas (1995), “aparentemente de grupo, é na verdade de grupo, o filme funciona como líder. O horror do recalcado encontra, assim, na ficção da filmagem, o espaço virtual onde pode se fazer representar” (p.421). Na atividade do “Cinema em debate”, pudemos observar um fato muito curioso: após algumas sessões, os participantes começaram a reconhecerse, e quando iam à frente, ao finalizar sua fala, os demais aplaudiam. Os aplausos não ocorreram desde as primeiras sessões. Fomos verificando que após a atividade ter mais de um ano de acontecimento, este efeito se deu. Podemos pensar que o grupo foi se constituindo enquanto grupo na medida que a atividade já se fazia mediadora e o testemunho era compartilhado pelos demais como algo importante e merecedor de reconhecimento. Lacan aborda a questão do testemunho para nos dizer que “não é por acaso que isso se chama em latim testis, e que se testemunha sempre em RAINONE, F. A cena que se desvela... cima dos próprios colhões. Em tudo o que é da ordem do testemunho, há sempre empenho do sujeito, e luta virtual a que o organismo está sempre latente” (p.51). “Quando F. foi lá e falou que não tinha acreditado, aí sim eu pude perceber que também tinha sentido isso e não havia me lembrado, foi só depois de ela falar é que isto me tocou, senti a mesma coisa”. Esta fala de G. nos faz verificar o quanto da fala de cada um pode resignificar o que os demais puderam sentir. Falar é sempre falar a outro, mas também é receber sua mensagem do outro sob uma forma invertida. Lacan nos lembra que “a promoção, a valorização na psicose dos fenômenos de linguagem é para nós o mais fecundo dos ensinamentos” (p.167) E, acompanhando seu raciocínio, podemos pensar a exclusão do Outro na psicose, obrigando-nos a refletir sobre os efeitos, na linguagem, de tal equação. Se considerarmos que não há algo compartilhado culturalmente, a partir do qual o sujeito se organiza e que diz respeito justamente ao corte, à descontinuidade, ao intervalo, a não correspondência entre o simbólico e o real, qual é a possibilidade, a via, ou o caminho para que o (sujeito) psicótico possa se fundar em alguma representação? Como considerar a questão da inscrição, da experiência na psicose? 6 O que vela uma imagem? O cinema fascina mais pelo que vela do que pelo que desvela, nos aponta Caldas (1995, p.422). O filme leva o espectador a pensar, a ver-se vendo, e também ser olhado desde as imagens da tela. É a partir das imagens que nos chegam prontas que podemos trilhar até cantinhos muito esquecidos de nós mesmos. Observamos que ela é muito fecunda no que pode suscitar para cada um em um determinado momento de sua vida. A imagem comunica e transmite mensagens, a imagem não é um conceito contemporâneo, não surgiu com a televisão, mas ainda hoje em muitos textos e artigos é associada a noções complexas e contraditórias. 4 AUMONT, J. A imagem. São Paulo: Papirus, 1995. Ibidem. 5 24 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 6 Ibdem. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 25 SEÇÃO TEMÁTICA No trabalho que estamos desenvolvendo, partimos da tentativa de escapar dessa impressão de passividade e de “intoxicação” 7 que a análise de imagens pode nos levar e pensar no que elas podem ativar em cada um de nós. Uma das definições mais antigas da imagem é de Platão: “Chamo de imagens em primeiro lugar as sombras, depois os reflexos que vemos nas águas ou na superfície de corpos opacos, polidos e brilhantes e todas as representações do gênero.” Imagem, no espelho, e tudo o que ela representaria na relação a um outro. 8 Ao contar uma cena fílmica, como nos faz lembrar Espiño (2000), “desmontamos a montagem realizada e articulamos com nossas questões singulares”, colocamos entonações em partes que não têm esta importância, deixamos de relatar imagens que são essenciais naquele fotograma, imprimimos nosso particular ponto de vista. Ressignificamos as imagens devolvendo sua polissemia. A imagem desempenha sempre um papel capital no campo humano “por seu caráter de estrutura organizada” (Lacan, p.17) e este papel é totalmente refeito, reanimado, retomado pela ordem simbólica. Ao contar uma cena ou falar de um filme, é a historicização deste que conta, é nesta historicização que estão significantes importantes para cada um de nós. Talvez aqui seja importante dizer que falar em “nós” implica dizer também para os pacientes psicóticos, pois quando escutamos pessoas com graves problemáticas psíquicas, muito nos dizem de suas lacunas e rupturas com os relacionamentos afetivos e com suas relações profissionais. Há um empobrecimento da rede social, com perdas quantitativas e qualitativas, principalmente a partir da primeira rede social disponível, que é o núcleo familiar. Muitos transtornos mentais são marcados pela tendência ao isolamento e pela dificuldade de se estabelecer vínculos, onde a interação com 7 8 Termo utilizado por Joly(1999). JOLY,1999.p.14. 26 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. RAINONE, F. A cena que se desvela... outras pessoas fica prejudicada e as trocas sociais escassas. Podemos pensar até em uma vida empobrecida, com falta de histórias para contar, com empobrecimento mesmo da memória. Toda a memória é formada no tempo presente, como se fosse uma obra de ficção. Poderíamos dizer que a memória, em termos da historicização de uma vida, é uma obra de ficção de cada um de nós (aquilo que contamos sobre nossa história é o ficcionar desta história). Isto não significa que seja menos ou mais verdadeiro. Se ficarmos com a idéia de que deve haver uma memória mais verdadeira, é como se supuséssemos que é possível acessar o traço tal qual ele foi inscrito; ele está perdido, não há como acessar. Toda vez que eu contar sobre algo que me aconteceu, vou contar diferente9. E, neste diferente, há algo que vai reconstruindo um passado, algo que pode estar sendo resignificado de um presente e, para além, estar devolvendo alguma polissemia possível. O que estamos podendo escutar nas falas dos participantes é justamente esta forma de pensar que de repente se modifica. Se a pessoa passa por uma experiência e, a partir dali, alguma coisa toma um outro sentido, isto tem sido interessante, pois cada um leva seus pensamentos, suas imagens para seguir conversando com outras pessoas, em outros lugares ficando o convite para a próxima sessão. Este é um trabalho em processo: pensar no que as imagens do cinema fazem de fronteira com a produção de imagens na psicose. Este tema tem nos colocado a pensar, escrever, investigar e fazer um recorte de análise possível, onde o propósito não é estudar os diversos conceitos de imagens e sim apresentar, desde o referencial psicanalítico, o que pode dizer uma imagem na sua correlação com a psicose. Para finalizar, sem a pretensão de concluir, deixo com vocês as palavras de G. na sessão do filme “As Crônicas de Nárnia”: “Fiquei pensando na guerra, quando as crianças se afastam dos pais e de casa por causa da 9 Notas de leituras da colega Simone Lerner, 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 27 SEÇÃO TEMÁTICA guerra no país deles; aqui não temos guerra, mas me fez pensar nas guerras que cada um tem dentro de si, das fantasias que se passam e que não acreditam em nós e precisamos travar pequenas batalhas para sermos reconhecidos; esse filme foi muito importante para que eu possa acreditar que é possível ganhar esta guerra, isto fazia tempo que estava guardado e aflorou ali em mim”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: AUMONT, J. A imagem . São Paulo: Papirus.1995. BADIOU, Alain. Se puede hablar de um filme? In: BADIOU, Alain. Imagens y palavras. Escritos sobre cine e teatro. Buenos Aires: Manantial, 2005, p.27-33. CALDAS, H. Cinema-Sonho Diurno? In: Escola Brasileira de Psicanálise-Rio de Janeiro-A imagem Rainha: as formas do imaginário nas estruturas clínicas e na prática psicanalítica. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995 p.417-423. ESPIÑO, G.“Cuéntame tu vida” especialmente porque no es tan tuya.In: Psicoanálisis y Cine-cuestiones clínicas em personajes de películas. FUDÍN, M.& ESPIÑO, G. Buenos Aires: Comunicarte Editorial,2000. FREUD, S. (1899/1976). Lembranças Encobridoras. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976. ________. (1921). Psicologia de Grupo e análise do ego. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976. JERUSALINSKY, A. Loucura e Liberdade. Palestra proferida no Instituto de Psicologia São Paulo. 2002. Transcrição Sandra Pavone. Texto mimeo. JOLY, M. Introdução à análise da imagem . Campinas: Papirus, 1999. LACAN, J. O Seminário, livro III. As Psicoses. (1955-1956) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. _________.Escritos. (1946) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LERNER, S. Notas de leituras e estudos. Texto digitalizado sobre as Lembranças Encobridoras, (1899) de Sigmund Freud. 2006. _________.Textos escritos e digitalizados a partir de estudos do Seminário III: LACAN, J. O Seminário, livro III. As Psicoses. (1955-1956) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. 28 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. CHNAIDERMAN, M. Filmar a loucura... FILMAR A LOUCURA: “TUDO QUE SE IMAGINA, É” Miriam Chnaiderman 1. JOSÉ AGRIPPINO ui assistir “Estamira” ainda tomada por questões que tinham me perturbado em minha experiência com a realização do documentário “Passeios no Recanto Silvestre” sobre o escritor e cineasta, guru do tropicalismo, José Agrippino de Paula. Já há algum tempo, David Calderoni, psicanalista e músico, tinha o projeto de um filme que pusesse em movimento a importância do “Panamérica”, o livro tão cantado por Caetano Veloso, o livro que é nosso monumento pop dos anos 60. Reinaldo Pinheiro acalentava o mesmo sonho utópico: encenar o “Panamérica”. Afinal, fazer cinema é encarar sonhos e utopias. O que fez com que nos uníssemos para realizar o documentário foi uma entrevista que José Agrippino concedeu a Pedro Bial, na casa onde vive, em Embu, periferia de São Paulo, quando o “Panamerica” foi relançado pela Editora Papagaio. Assim David descreve a entrevista e o início de nosso processo: “Admirado com a inteligência de Agrippino, Bial lhe perguntou se a aceitação do diagnóstico de esquizofrenia não seria apenas um estratagema para obter dinheiro da Previdência. Tomando o próprio diagnóstico como um sinal dos tempos, o autor de ‘PanAmérica’ respondeu que, longe de farsa, a ‘esquizoidia’ era real num mundo que pagava ‘30 sanduíches’ pela criação de um romance. Ao perceber ‘PanAmérica’ como a transfiguração estético-crítica desse diagnóstico sobre a nossa contemporaneidade, propus a Miriam que proporcionássemos a Agrippino os meios fílmicos de prosseguir a sua obra, reafirmando-se como sujeito intelectual e artístico, produtor de um saber e de um fazer sobre si mesmo e sobre o mundo.” O processo de filmagem e construção do personagem está descrito em ensaio que publiquei no livro “Sobre arte e psicanálise”, organizado por Tania Rivera e Vladimir Safatle, o “Panamérica de utópicos Embus”. Alguns princípios nos norteavam, sabíamos da delicadeza toda da F C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 29 SEÇÃO TEMÁTICA CHNAIDERMAN, M. Filmar a loucura... nossa proposta: José Agrippino é uma figura admirada, mítica. Está interditado, com o rótulo de esquizofrênico recebe uma parca pensão do Estado, mas que ajuda a levar sua vidinha em sua casa no Embu. O tutor jurídico é seu irmão, Guilherme de Paula. Quando elaboramos o projeto, a autorização para realizar o documentário foi pedida a Guilherme. Embora José Agrippino também tivesse assinado uma autorização, em termos jurídicos era Guilherme o responsável. Chegamos até Guilherme e José Agrippino através de Lucila Meireles, curadora da obra de José Agrippino. Lucila era muito clara: quando o “Panamérica” foi relançado ela se irritara com toda e qualquer reportagem que colocava em primeiro plano a doença mental em José Agrippino. Isso seria sensacionalismo, abuso. Em conversas nossas ficava muito claro que não estávamos procurando José Agrippino por causa de sua loucura, que esse diagnóstico não era importante, tanto fazia... Mas, não era o como Agrippino lidava com o diagnóstico que atraira David? Não seria, inclusive, o questionamento do diagnóstico que movia David? Vendo “Estamira” me interroguei sobre se não houve um certo pudor na maneira como nós, psicanalistas, lidamos com a questão da “loucura” no contato com José Agrippino: em nenhum momento conversamos com ele sobre seu diagnóstico. Quando pedimos que lesse trechos de seu primeiro livro, o “Lugar Público”, relançado durante o processo de filmagem, Agrippino delicadamente recusou, disse que “não seria bom o contato com momentos seus depressivos”, momentos onde não estava bem. Respeitamos e...silenciamos. Assim homenageamos José Agrippino de Paula. 2. ESTAMIRA O fotógrafo carioca Marcos Prado visitou durante seis anos o lixão do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio, para registrar cenas cotidianas das pessoas que trabalhavam lá. O gigantesco complexo onde são depositadas nove mil toneladas diárias de lixo reservava surpresas. Em 2000, quatro anos depois da primeira visita, Marcos esbarrou com Estamira Gomes de Souza. “Sentei ao lado dela e começamos a conversar. Ela me disse que sua missão era revelar a verdade e que a minha era revelar a missão dela”, conta ele. A admiração por Estamira é visível pelo carinho com que foca a câmera nela e com que deixa que fale abertamente, sem em momento nenhum interferir na sua fala, seja colocando perguntas ou mesmo comentando. Estamira diz coisas impressionantes :“Não existe mais o inocente no mundo. Existe o esperto e o esperto ao contrário. A criação é abstrata. A água é abstrata, o fogo é abstrato e a Estamira também é abstrata. A minha missão, além de ser a Estamira, é revelar somente a verdade e capturar a mentira. Eu sou a Estamira, sou a beira do mundo, estou lá, estou cá, estou em todo lugar”. Durante o documentário, Estamira alerta para o “Trocadilho”. Segundo ela, o “Trocadilho” é o que faz as pessoas viverem na ilusão, quem engana o homem e o faz acreditar em coisas que não existem. Ela é contra a exploração do povo pelos pastores. Contesta a adoração de Jesus pelo sofrimento, já que tantos como ela sofrem ainda mais. Diz que os homens devem ser iguais, independente de cor e de sexo e defende a dignidade para todos. Tem vergonha pelo homem, um bicho evoluído, agir pior que os quadrúpedes. Reclama dos médicos, que são “copiadores” de receitas semifabricadas, prescrevendo remédios que sedam, controlam, mas não compreendem. Os dois filhos mais velhos se dividem quanto à possibilidade de internação. O filho é a favor, a filha contra, por temer que o sofrimento que a avó já passara se repita e a culpa que Estamira carrega por ter permitido a internação da mãe se repita. Estamira discursa sobre o desperdício que verifica cotidianamente no lixo: ”Economizar as coisas é maravilhoso, pois quem economiza as coisas tem. Quem não tem sofre”. Fala sobre como deveria ser o mundo mais justo: “Todos homens têm que ser iguais, têm que ser comunistas. Comunismo é a igualidade. Não é obrigado todos trabalhar num serviço só, não é obrigado todos comer uma coisa só, mas a igualidade é a ordenança que deu quem revelou o homem o único condicional, e o homem é o único condicional seja que cor for”. Apesar da sabedoria e do sorriso de Estamira, Marcos Prado não nos poupa de assistir a alguns dos surtos esquizofrênicos da protagonista, lembrando que no meio da mágica, por trás do truque, existe o mundo real. Em um desses momentos, Estamira fala em um rádio quebrado, usando uma língua imaginária. Em outro, nos conta como os astros ruins têm inveja do cometa que vive em sua cabeça, e raiva por ele ter escolhido um corpo frágil como o dela. Entre as cenas violentas há uma em que Estamira, em conflito C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 30 31 SEÇÃO TEMÁTICA CHNAIDERMAN, M. Filmar a loucura... com seu filho evangélico, toca a região genital agressivamente para seu neto e grita contra Jesus: “Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem ando com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!” Questiona-se o quanto foi ético mostrar cenas onde o transbordamento aponta na direção do enlouquecimento. Marcos Prado afirma: “Refleti muito sobre os limites da ética e da intimidade. Mas pensei que, ao cortar certas cenas, eu iria estar mitificando a Estamira. Ela mesma foi a primeira a ver o filme pronto. E me disse que a decisão de cortar ou não qualquer coisa era mesmo minha. ´É a sua missão´, ela disse. Eu juntei esse quebra-cabeças como quis”. Estamira jamais pronuncia a palavra “mulher”. Para ela, o sexo feminino é “homem formato par”, o sexo masculino, para ela, é “homem formato ímpar”. No lixão, Estamira namora seu João Preto, que tem olhares embevecidos e apaixonados. Quando Estamira esbraveja diante da câmera num dia de Natal, João lhe dá ouvidos, silencioso, embevecido. “Não adianta”, Estamira esbraveja, para logo emendar cantarolando: “não adianta nem tentar me esquecer...”. Seu João rebate: “Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer...”. A cena final, Estamira na praia, o mar, afirma: “Tudo que se imagina, existe e é”. Afinal o lindo encontro com Marcos Prado realizou sua tão sonhada missão de escancarar a verdade. 3. ESTAMIRA E JOSÉ AGRIPPINO Em “Estamira” o universo passa a ser mítico. O lixão passa a ser cenário medieval para uma subjetividade apocalíptica. De fato, Estamira chama o lixão de Gramaxo de “depósito de restos”. Em “Passeios no Recanto Silvestre” José Agrippino vive seu tempo mítico, momento de ebulição criativa, as décadas 60/70 são seu momento vital no qual permanece como museu vivo de lojas, endereços precisos, como se tudo tivesse acontecido ontem. Ou ainda estivesse acontecendo. A linda fotografia do documentário “Estamira” não passa por uma estetização do lixo e sim por um esforço em reproduzir uma subjetividade que brilha em meio a dejetos, restos de bichos, e, muitas vezes, restos humanos. Marcos Prado, através do trabalho de fotografia, faz uma escultura do mundo interno de Estamira. O lixo passa a ser vida, fonte de encontros possíveis. Em José Agrippino vemos a poeira que se amontoa por sua casa, a poeira do tempo. Seus andrajos, sua fala pacata e tranqüila. Domesticada? Talvez... Mas, assim como Estamira, José Agrippino não se dobra. Resiste na forma como continua construindo sua vida, dono do tempo, no congelamento de sua recusa. Estamira vai todo mês para ser atendida em um Caps, lugar onde recebe seus remédios. Fala disso com ironia. José Agrippino não toma remédios. Mas, o fato é que não falamos sobre isso com ele. Que não quer falar disso. Em Estamira não vemos o escancaramento do encontro entre realizador e a pessoa filmada. Essa opção pelo olhar sem o ponto de vista assumido de quem filma, sem a experiência de quem é de fora do espaço filmado, sem o choque de culturas e experiências entre diretor e personagem demonstra um objetivo estratégico de “Estamira”: expor o resultado de um processo e não o processo pelo qual se chegou a esse resultado. Em “Passeios no Recanto Silvestre” fica escancarado o processo de filmagem. Foram dois anos esperando que José Agrippino filmasse, pois no início do processo ele pedira uma câmera super-8 igual à que usara em lindos curtas seus nos anos 60/70. E essa ficou sendo a narrativa do documentário: a expectativa de que filmasse. E, através dessa estória, apresentar seus lindos filmes. Ou seja, foi acatado o tempo que José Agrippino impôs, o congelamento nos idos anos de criação. Apenas alguém que não é do mundo “psi” poderia fazer esse filme sobre Estamira, com tamanha liberdade. Temeríamos a estigmatização, o sensacionalismo, o uso da psiquiatrização. Mas, o filme que homenageia Estamira e é linda a relação de Marcos e Estamira. Homenageamos sim José Agrippino de Paula. Homenagem que respeitou seu tempo, respeitou os limites que ele colocou. Os vários mirares destes mirares todos, esta-mira de todos nós. Só nos resta, como psicanalistas, apreender com Marcos Prado e Estamira, que a ética proposta pela imagem no cinema tem amplidões inusitadas. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 32 33 SEÇÃO TEMÁTICA CALLIGARIS, C. Estamira e transamérica... ESTAMIRA E “TRANSAMÉRICA” ODIAMOS O OUTRO NÃO POR ELE SER DIFERENTE, MAS PARA IGNORAR QUE ELE É PARECIDO CONOSCO1 Contardo Calligaris D urante quatro anos, Marcos Prado escutou Estamira, uma senhora de mais de 60 anos que vivia entre seu barraco (habitado e cuidado com a dignidade devida a uma casa) e seu lugar de trabalho (um aterro de lixo, onde ela passava dias e noites a fio). Dessa experiência, Prado fez um filme, “Estamira”, que é um extraordinário documento sobre a humanidade da loucura. Ele nos apresenta o território de Estamira (o mundo físico pelo qual ela anda), suas relações (de família e de amizade) e seu mundo íntimo, ou seja, o sentido que ela atribui ao seu ser. Alguns psicólogos reconhecerão nessa tríade (mundo físico, relações e intimidade) as três categorias da psicologia existencial de Ludwig Binswanger. Pensei em Binswanger e na generosidade de sua clínica e de seu pensamento quando, comentando o filme, uma amiga e colega me disse: “Estamira é delirante, mas suas palavras, poéticas, fantásticas ou brutais, são coisas que ela diz não porque é psicótica, mas porque é ela, Estamira”. Que falemos lugares-comuns (como a maioria dos neuróticos) ou expressemos curiosas visões do mundo (como quem parece delirar), de qualquer forma, não há quadro clínico que possa (e deva) anular a unicidade de nossa presença no mundo, a dignidade do que se chamava, tempo atrás, nossa “pessoa”. Marcos Prado permitiu que Estamira lhe (e nos) falasse porque quis e soube escutá-la como se escuta, em princípio, um semelhante. Com isso, o filme é absolutamente imperdível para quem, “psi” ou não, 1 Texto publicado na Folha de São Paulo dia 03 de agosto de 2006. 34 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. esteja disposto a se aproximar da loucura, ou melhor, a descobrir que o “louco” é estranhamente próximo da gente. A cosmologia de Estamira (o além, o além do além, o mundo abarrotado que transborda) e sua religião (uma briga constante com Deus e com o Trocadilho, face diabólica e maldita do mesmo) não são menos verossímeis do que muitas de nossas crenças. A diferença é que nossas crenças são delírios que tiveram sucesso e ganharam credibilidade por serem compartilhados pela maioria. Estamira (esse talvez seja o drama fundamental da loucura) deve inventar sozinha os meios de dar sentido à sua presença no mundo. Ela consegue essa façanha atribuindo-se o destino de ter de transmitir o que ela vê. O Trocadilho, ao persegui-la, lhe deu uma missão, que é (como esperar outra coisa de um deus com esse nome?) um jogo de palavras: Estamira é esta mira, o olhar que tudo vê e tudo deve revelar. Missão cumprida, graças a Marcos Prado. Corolário: quem não acredita na reforma psiquiátrica veja o filme e se pergunte: será que nossa sociedade pode tolerar a loucura só na margem extrema (o além do além) do lixão ou na clausura dos hospícios? Quero mencionar um outro filme, antes que saia de cartaz. “Transamérica”, de Duncan Tucker, é uma ficção e, à primeira vista, pouco tem a ver com “Estamira”. Salvo que ambos os filmes nos forçam a descobrir destinos e jeitos de estar no mundo que são, no melhor dos casos, objetos de nossos olhares compassivos ou, mais freqüentemente, de exclusão, zombaria e ódio. O ódio, nesses casos, é o índice de uma cegueira proposital: odiamos o outro não por ele ser diferente de nós, mas para poder ignorar que ele é parecido conosco. O herói (ou a heroína) de “Transamérica” é um transexual que, na hora em que obtém, enfim, o direito de ser operado e mudar de gênero, descobre que é pai de um filho adolescente. Difícil assistir ao filme sem entender de vez o seguinte: o drama de quem vive num corpo que lhe parece estrangeiro (por ser de um gênero no qual ele não se reconhece) tem pouco a ver com os avatares do desejo sexual. É um drama de identidade. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 35 SEÇÃO TEMÁTICA Algumas leituras para a fila do cinema. A Martins Fontes publica os seminários de Michel Foucault: no ano passado, “Os Anormais” e, neste ano, “O Poder Psiquiátrico”. O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos acaba de publicar “Política, Direitos, Violência e Homossexualidade, Pesquisa na Nona Parada do Orgulho GLBT São Paulo 2005”, de Carrara, Ramos, Simões e Facchini. A pesquisa confirma que, em matéria de discriminação, o transexual, que discorda de seu próprio gênero, é a vítima preferida. É difícil abandonar o conforto da crença de que nós somos os “normais”. Mais difícil ainda é admitir que a anatomia de nosso corpo possa não bastar para nos dar a certeza de que somos homem ou mulher. SEÇÃO DEBATES O INCONSCIENTE E A REPETIÇÃO II O INCONSCIENTE FREUDIANO E O NOSSO Pensamento selvagem. Só há causa do que manca. Hiância, tropeço, achado, perda. A descontinuidade. Signorelli. Para começar na hora , vou iniciar minha fala hoje com a leitura de um poema que, na verdade, não tem nenhuma relação com o que lhes vou dizer, mas tem alguma com o que disse o ano passado, no meu seminário, sobre o objeto misterioso, o objeto mais escondido de todos, o da pulsão escópica. Trata-se do curto poema que, na página 73 de Fou d’Elsa, Aragon intitula Contre-chant Contracanto. Vainement ton image arrive à ma rencontre E ne m’entre où je suis qui seulement la montre Toi te tournant vers moi tu ne saurais trouver Au mur de mon regard que ton ombre rêvée Je suis ce malheureux comparable aux miroirs Qui peuvent réfléchir mais ne peuvent pas voir Comme eux mon oeil est vide et comme eux habité De l’absence de toi qui fait sa cécité * * Em vão tua imagem vem ao meu encontro/ E não me entra onde estou quem somente a mostra/o/ Voltando-te para mim só poderias achar/ Na parede do meu olhar tua sombra sonhada // Sou esse infeliz comparável aos espelhos/ Que podem refletir mas não podem ver/ Como eles meu olho está vazio e como eles habitado / Da ausência de ti que faz sua cegueira. 36 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n.150, set. 2006. 37 SEÇÃO DEBATES LACAN, J. O inconsciente e a repetição. Dedico esse poema à nostalgia que alguns possam ter daquele seminário interrompido e do que eu ali desenvolvia sobre a angústia e a função do objeto pequeno a. Esses, penso, captarão – peço desculpas por ser tão alusivo, – eles captarão o sabor do fato de que Aragon – nessa obra admirável onde me orgulho de encontrar o eco dos gostos de nossa geração, aquela que faz com que eu seja forçado a me remeter a camaradas da mesma idade que eu para ainda poder me entender sobre esse poema – de que Aragon faz seu poema ser seguido do seguinte verso enigmático: Ainsi dit une fois An-Nadjî, comme on l’avait invité pour une circoncision **. Ponto onde aqueles que ouviram meu seminário o ano passado reconhecerão a correspondência das diversas formas do objeto a com a função central e simbólica do menos-fi (– φ) – aqui evocado pela referência singular, e certamente não fortuita, que Aragon confere à conotação histórica, por assim dizer, da emissão por seu personagem, o poeta louco, desse contracanto. 1 Sei que há aqui algumas pessoas que estão se iniciando no meu ensino. Iniciam-se nele por escritos já datados. Gostaria que saibam que uma das coordenadas indispensáveis para captar o sentido desse primeiro ensinamento está em que, dali onde estão, eles nem imaginam a que grau de desprezo, ou simplesmente de ignorância de seu instrumento, podem chegar os praticantes. Que saibam que, durante alguns anos, tive de empenhar todo meu esforço para revalorizar aos olhos deles esse instrumento, a palavra – para lhe devolver sua dignidade e fazer com que não consistisse sempre nesses vocábulos, desvalorizados de antemão, que os forçavam a fixar o olhar em outra parte para encontrar o que os caucionava. ** Assim disse uma vez An-Nadjî, quando o convidaram para uma circuncisão. 38 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. Foi por isso que fui tido, ao menos por um tempo, como alguém obsedado por não sei que filosofia da linguagem, heideggeriana até, quando na verdade tratava-se apenas de uma referência propedêutica . E não será por falar nestes lugares que falarei mais como filósofo. O que se trata de enfrentar é outra coisa, que efetivamente ficarei mais à vontade para denominar aqui, algo que não chamarei de outra forma senão de recusa do conceito. É por isso que, como anunciei ao término de minha primeira aula, tentarei introduzi-los hoje aos principais conceitos freudianos – que isolei em número de quatro e que cumprem propriamente essa função. Estas poucas palavras no quadro-negro (sob o título de conceitos freudianos) são os dois primeiros, o inconsciente e a repetição. A próxima vez, espero abordar a transferência, que nos introduzirá diretamente aos algoritmos que acreditei ter de expor na prática, com o intuito específico de pôr em obra a técnica analítica como tal. Quanto à pulsão, ainda é de um acesso tão difícil – a bem dizer, tão inabordado – que não creio conseguir fazer mais este ano do que chegar a ela somente depois de termos falado da transferência. Portanto, apenas examinaremos a essência da análise – especialmente o que, nela, a função da análise didática tem de profundamente problemático e ao mesmo tempo diretor. Só depois de ter passado por essa exposição é que talvez possamos, no fim do ano – sem que nós mesmos minimizemos o lado movediço, se não escabroso, da aproximação desse conceito – abordar a pulsão. E isso por contraste com aqueles que nisso se aventuram em nome de referências incompletas e frágeis. As duas flechinhas que vocês vêem escritas no quadro depois de O inconsciente e A repetição apontam para o ponto de interrogação que se segue. Este indica que nossa concepção do conceito implica que ele sempre se estabelece como uma aproximação, que não deixa de estar relacionada com o que o cálculo infinitesimal nos impõe como forma. Embora, com efeito, o conceito se modele por uma aproximação da realidade que ele foi feito para captar, é apenas por um salto, por uma passagem ao limite, que C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 39 SEÇÃO DEBATES LACAN, J. O inconsciente e a repetição. ele termina de se realizar. A partir daí, exige-se que digamos em que pode se completar – diria, na forma de quantidade finita – a elaboração conceitual que se chama o inconsciente. O mesmo vale para a repetição. Os dois outros termos escritos no quadro no final da linha, O sujeito e O real, é com relação a eles que seremos levados a dar forma à pergunta feita a última vez: a psicanálise, em seus aspectos paradoxais, singulares, aporéticos, pode ser considerada entre nós como constituindo uma ciência, uma esperança de ciência? Começarei por tomar o conceito de inconsciente. 2 A maioria dessa assembléia tem alguma noção de que enunciei que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o que remete a um campo que hoje nos é bem mais acessível que nos tempos de Freud. Vou ilustrálo com algo que está materializado num plano certamente científico, com esse campo que Claude Lévi-Strauss explora, estrutura e elabora e que intitulou de Pensamento selvagem. Antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual, antes mesmo de se inscreverem nele as experiências coletivas, relacionáveis apenas com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, inscreve nele as linhas de força iniciais. É a função que Claude Lévi-Strauss nos mostra ser a verdade da função totêmica – uma função classificatória primária –, verdade que reduz sua aparência. Já antes de se estabelecerem relações propriamente humanas, algumas relações estão determinadas. São extraídas de tudo o que a natureza pode oferecer como suporte, suportes que se dispõem em temas opostos. A natureza fornece, para chamá-los pelo seu nome, significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, fornecem suas estruturas e as modelam. O importante, para nós, é que percebemos aqui o nível em que – antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se situa – isso conta, é contado, e nesse contado já está quem conta. É somente em seguida que o sujeito terá de se reconhecer nisso, reconhecerse como quem conta. Lembremos o ingênuo tropeço do homenzinho com que o medidor de nível mental exulta quando aquele enuncia: – Tenho três irmãos, Paulo, Ernesto e eu. No entanto, é muito natural: primeiro são contados os três irmãos, Paulo, Ernesto e eu, e depois há o eu no nível em que dizem que tenho de pensar o primeiro eu, isto é, o eu que conta . Em nossos dias, neste tempo histórico de formação de uma ciência, que podemos qualificar de humana, embora deva ser distinguida de qualquer psicossociologia, qual seja, a lingüística, cujo modelo é o jogo combinatório operando em sua espontaneidade, sozinho, de maneira pré-subjetiva, – é essa estrutura que confere seu estatuto ao inconsciente. É ela , em todo caso, que nos garante que, sob o termo inconsciente, há algo qualificável, acessível e objetivável. Mas quando incito os psicanalistas a não ignorarem esse terreno, que lhes proporciona um apoio sólido para sua elaboração, será que isso quer dizer que pretendo manter os conceitos introduzidos historicamente por Freud sob o termo inconsciente? Pois bem, não! Não pretendo. O inconsciente, conceito freudiano, é outra coisa, que hoje gostaria de tentar fazê-los entender. Certamente não basta dizer que o inconsciente é um conceito dinâmico, pois isso seria substituir pela ordem de mistério mais corrente um mistério particular – a força serve em geral para designar um lugar de opacidade. É à função da causa que irei me referir hoje. Bem sei que entro aí num terreno que, do ponto de vista da crítica filosófica, não deixa de evocar um mundo de referências, bastantes para me fazer hesitar entre elas – teremos apenas de suportar escolher. Provavelmente, parte de meu auditório pelo menos não saciará sua fome se eu simplesmente indicar que, no Ensaio sobre as grandezas negativas de Kant, podemos ver o quanto é analisada com precisão a hiância que, desde sempre, a função da causa oferece a toda compreensão conceitual. Nesse ensaio, diz-se aproximadamente que é um conceito, no final das contas, inanalisável, impossível de compreender pela razão (se é que a regra da razão, a Vernunftsregel, é sempre alguma Vergleichung, ou equivalente), e C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 40 41 SEÇÃO DEBATES LACAN, J. O inconsciente e a repetição. que na função da causa resta essencialmente uma certa hiância, termo empregado nos Prolegômenos do mesmo autor. Não sublinharei que o problema da causa foi desde sempre uma complicação para os filósofos e que não é tão simples quanto se crê ver equilibrarem-se em Aristóteles as quatro causas –, pois não sou filosofante aqui e não pretendo me desincumbir de uma tarefa tão pesada com essas poucas referências, que simplesmente bastam para tornar claro o que quer dizer isso sobre o que insisto. Para nós, a causa, seja qual for a modalidade com que Kant a inscreva nas categorias da razão pura – inscreve-a, mais precisamente, no quadro das relações entre a inerência e a comunidade –, a causa nem por isso é mais racionalizada. Distingue-se do que há de determinante numa cadeia, em outras palavras, da lei. Para exemplificar, pensem na imagem da lei da ação e reação. É, por assim dizer, uma coisa só. Um não existe sem o outro. Num corpo que se esborracha no chão, sua massa não é a causa do fato de que ele receba de volta sua força viva, sua massa está integrada a essa força que retorna a ele para dissolver sua coerência por um efeito de retorno. Não há aqui nenhuma hiância, exceto no final. Em contraposição, cada vez que falamos de causa, há sempre algo de anticonceitual, de indefinido. As fases da lua são a causa da marés – isso é vivo, sabemos nesse momento que a palavra causa foi bem empregada. Ou então, os miasmas são a causa da febre – também isso não quer dizer nada, há um buraco, e algo que vem oscilar no intervalo. Em suma, só há causa do que claudica. Pois bem! O inconsciente freudiano, é nesse ponto, para o qual tento dirigi-los por aproximação, que ele se situa, nesse ponto onde, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação. O importante não é que o inconsciente determina a neurose – quanto a isso, Freud adota facilmente o gesto pilático de lavar as mãos. Um dia desses, quem sabe, encontrarão alguma coisa, determinantes humorais, pouco importa – é-lhe indiferente. Pois o inconsciente nos mostra a hiância por onde a neurose se conecta a um real – real que bem pode, ele sim, não ser determinado. Nessa hiância, algo acontece. Uma vez tapada essa hiância, a neurose estará curada? Afinal, a questão permanece sempre aberta. A neurose só se torna outra coisa, às vezes simples debilidade, cicatriz, como diz Freud – não cicatriz da neurose, mas do inconsciente. Não estou ordenando muito engenhosamente essa topologia, porque não tenho tempo – vou direto para ela, e acho que vocês poderão se sentir guiados pelos termos que introduzo quando forem aos textos de Freud. Vejam de onde ele parte – da Etiologia das neuroses –, e o que acha no buraco, na fenda, na hiância característica da causa? Algo da ordem do não-realizado. Fala-se de recusa. É avançar rápido demais – aliás, faz algum tempo que quando falam de recusa já não sabem o que estão dizendo. De primeiro, o inconsciente se manifesta para nós como algo que permanece à espera na área, diria eu, do nonato. Que o recalcamento ali despeje algo, não é de estranhar. É a relação da fazedora de anjos com o limbo. Essa dimensão deve certamente ser evocada num registro que não é nada de irreal, nem de desreal, mas de não-realizado. Nunca é sem perigo que se faz com que algo nessa zona de larvas se mexa, e talvez seja próprio da posição do analista – caso a ocupe verdadeiramente – dever ser assediado, digo realmente assediado por aqueles em quem ele evocou esse mundo de larvas sem ter conseguido sempre trazê-las à luz. Todo discurso não é inofensivo aqui – meu próprio discurso destes últimos dez anos encontra aí alguns desses efeitos. Não é à toa que, mesmo em um discurso público, o visado sejam os sujeitos e que sejam tocados no que Freud chama o umbigo – umbigo dos sonhos, escreve ele para designar, em última instância, o centro de desconhecido deles –, que nada mais é, como o próprio umbigo anatômico que o representa, senão essa hiância de que falamos. Perigo do discurso público na medida em que ele se endereça justamente ao mais próximo – Nietzsche sabia que um certo tipo de discurso só pode endereçar-se ao mais longínquo. A bem dizer, essa dimensão do inconsciente que evoco estava esquecida, como Freud previra perfeitamente bem. O inconsciente fechara-se sobre sua mensagem graças aos cuidados dos ativos ortopedistas que os C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 42 43 SEÇÃO DEBATES LACAN, J. O inconsciente e a repetição. analistas da segunda e da terceira geração se tornaram, analistas estes que se dedicaram, psicologizando a teoria analítica, a suturar essa hiância. Creiam-me, eu mesmo nunca a reabro sem tomar precauções. 3 Agora, nesta data, nesta época, estou decerto em condições de introduzir no terreno da causa a lei do significante, no lugar onde essa hiância se produz. Ainda assim, se quisermos entender de que se trata na psicanálise, será preciso voltar a evocar o conceito de inconsciente nos tempos em que Freud procedeu a forjá-lo – pois não podemos completá-lo sem levá-lo ao seu limite. O inconsciente freudiano não tem nada a ver com as formas, ditas do inconsciente, que o precederam, o acompanharam ou, até, ainda o cercam. Para entender o que quero dizer, abram o dicionário Lalande. Leiam a muito bela enumeração feita por Dwelshauvers em um livro publicado faz uns quarenta anos pela Flammarion. Enumera ali oito ou dez formas de inconsciente que não ensinam nada a ninguém, que simplesmente designam o não-consciente, o mais ou menos consciente e, no campo das elaborações psicológicas, encontramos mil e uma variedades suplementares. O inconsciente de Freud não é de forma alguma o inconsciente romântico da criação imaginante. Não é a sede das divindades da noite . Isso sem dúvida não deixa de ter alguma relação com o lugar para o onde se volta o olhar de Freud – mas o fato de que Jung, sucedâneo dos termos do inconsciente romântico, tenha sido repudiado por Freud, é indicação suficiente de que a psicanálise introduz outra coisa. Tampouco deveríamos nos precipitar e dizer que o inconsciente tão saco de gatos, tão heteróclito, que Édouard Von Hartmann elaborou durante toda a sua vida de filósofo solitário não é o inconsciente de Freud, pois, no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, o próprio Freud faz referência a ele em nota – ou seja, é preciso examiná-lo de mais perto para designar o que, em Freud, dele se distingue. A todos esses inconscientes sempre mais ou menos vinculados a uma vontade obscura considerada primordial, a algo anterior à consciência, o que Freud opõe é a revelação de que no nível do inconsciente há algo em todos os aspectos homólogo ao que acontece no nível do sujeito – isso fala e isso funciona de modo tão elaborado quanto no nível do consciente, que perde assim o que parecia ser privilégio seu. Sei das resistências que ainda provoca essa simples observação, que no entanto é clara em qualquer texto de Freud. Leiam a esse respeito o parágrafo desse capítulo VII intitulado O esquecimento dos sonhos, a respeito de que Freud faz referência exclusivamente aos jogos do significante. Não me contento com essa referência maciça. Destrincei ponto por ponto o funcionamento do que Freud primeiro produz como fenômeno do inconsciente. No sonho, no ato falho, no chiste – o que primeiro chama a atenção? O modo de tropeço pelo qual aparecem. Tropeço, desfalecimento, fissura. Numa frase pronunciada ou escrita, algo tropeça. Freud está magnetizado por esses fenômenos e é onde irá buscar o inconsciente. Ali, algo outro pede para se realizar, algo que certamente aparece como intencional, mas dotado de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como o achado. É inicialmente assim que a exploração freudiana encontra o que acontece no inconsciente. Achado que é ao mesmo tempo solução – não necessariamente acabada, mas, por mais incompleta que seja, tem esse não-sei-quê que nos afeta com esse toque particular que Theodor Reik destacou de forma tão admirável – só destacou, pois Freud o notara claramente antes dele – a surpresa – aquilo pelo que o sujeito se sente ultrapassado, pelo que ele encontra ao mesmo tempo mais e menos do que esperava – mas que de qualquer modo, com relação ao que ele esperava, é algo de valor único. Ora, esse achado, assim que se apresenta, é um reachado , e mais, sempre prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda. Entregando-me um pouco à metáfora, Eurídice duas vezes perdida é a imagem mais clara que possamos dar, no mito, da relação do Orfeu analista com o inconsciente. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 44 45 SEÇÃO DEBATES LACAN, J. O inconsciente e a repetição. Com o quê, se me permitirem acrescentar uma pitada de ironia, o inconsciente se acha na margem estritamente oposta do que ocorre com o amor, que todos sabem ser sempre único, e no qual a fórmula quem perde uma encontra dez encontra sua melhor aplicação. A descontinuidade, tal é portanto a forma essencial em que o inconsciente como fenômeno nos aparece de primeiro – a descontinuidade na qual algo se manifesta como uma vacilação. Ora, se essa descontinuidade tem esse caráter absoluto, inaugural, no caminho da descoberta de Freud, devemos colocá-la – como os analistas tenderam a fazer em seguida – sobre o fundo de uma totalidade? Será que o um é anterior à descontinuidade? Penso que não, e tudo o que ensinei nesses últimos anos tendia a fazer dispensar essa exigência de um um fechado – miragem à qual se apega a referência ao psiquismoenvoltório, espécie de duplo do organismo onde residiria essa falsa unidade. Vocês concordarão comigo que o um introduzido pela experiência do inconsciente é o um da fenda, do traço, da ruptura. Aqui brota uma forma ignorada do um, o Un do Unbewusste. Digamos que o limite do Unbewusste é o Unbegriff – não não-conceito, mas conceito da falta. Onde está o fundo? É a ausência? Não. A ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir a ausência – assim como o grito não se desenha sobre um fundo de silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio. Se conservarem em mãos essa estrutura inicial, vocês se impedirão de se entregar a esse ou aquele aspecto parcial do que está em questão no que concerne ao inconsciente – como, por exemplo, que é o sujeito, enquanto alienado em sua história, no plano onde a síncope do discurso se une com seu desejo. Verão que, mais radicalmente, é na dimensão de uma sincronia que devem situar o inconsciente – no plano de um ser, mas na medida em que pode se aplicar a tudo, ou seja, no plano do sujeito da enunciação, na medida em que, conforme as frases, conforme os modos, ele se perde tanto quanto se acha, e em que, numa interjeição, num imperativo, numa invocação, ou até num desfalecimento, é sempre ele que lhes coloca seu enigma e que fala – em suma, no plano em que tudo o que se expande no inconsciente se difunde, tal como o micélio, como diz Freud a respeito do sonho, em torno de um ponto central. É sempre do sujeito enquanto indeterminado que se trata. Oblivium é levis com o e longo – polido, unido, liso. Oblivium é o que apaga – o quê? O significante como tal. Reencontramos aí a estrutura basal, que torna possível, de maneira operatória, que algo adquira a função de barrar, de riscar, outra coisa. Nível mais primordial, estruturalmente, que o recalcamento de que falaremos mais adiante. Pois bem, esse elemento operatório do apagamento é o que Freud designa, desde a origem, na função da censura. É a censura na base da tesoura, a censura russa, ou então a censura alemã, conforme Henri Heine no princípio do Livro da Alemanha . Senhor e Senhora Fulanos de Tal têm o prazer de anunciar o nascimento de um filho belo como a liberdade – o Doutor Hoffmann, censor, risca a palavra liberdade. Podemos decerto indagar o que acontece com o efeito dessa palavra devido a essa censura propriamente material, o que é outro problema. Mas é justamente sobre isso que incide, da maneira mais eficiente, o dinamismo do inconsciente. Retomando um exemplo nunca suficientemente explorado, aquele que é o primeiro ao qual Freud aplicou sua demonstração, o esquecimento, o tropeço de memória, concernente à palavra Signorelli após sua visita às pinturas de Orvieto, será possível não ver surgir do próprio texto e se impor, não a metáfora, mas a realidade do desaparecimento, da supressão, da Unterdrückung, passagem para baixo ? O termo Signor, Herr, passa para baixo – o mestre absoluto, disse uma vez, a morte em suma, está ali desaparecida. Mas não vemos também, lá atrás, desenhar-se tudo o que obriga * C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 46 * As várias traduções consultadas cometeram um erro de leitura neste trecho, erro cheio de implicações teóricas. No original: “se profiler tout ce qui nécessite Freud à trouver dans les mythes de la mort du père la régulation de son désir?” A construção “nécessiter qqn à faire”, também usada em português (necessitar alguém a) apesar de pouco usual, significa exigir, obrigar, coagir alguém a. 47 SEÇÃO DEBATES PEREIRA, R. DE F. Buenos Aires o inconsciente... Freud a encontrar nos mitos da morte do pai a regulação de seu desejo? Afinal, ele se encontra com Nietzsche para enunciar , no seu próprio mito, que Deus está morto. E talvez sobre o fundo dos mesmos motivos. Pois o mito do Deus está morto – de que eu, de minha parte, estou bem menos certo, como mito entendam bem, do que a maioria dos intelectuais contemporâneos, o que não é de modo algum uma declaração de teísmo ou de fé na ressurreição – esse mito talvez não seja mais que o abrigo encontrado contra a ameaça da castração. Se souberem lê-los, vocês a verão nos afrescos apocalípticos da catedral de Orvieto. Se não, leiam a conversa de Freud no trem – fala-se apenas do fim da potência sexual, que seu interlocutor médico, precisamente o interlocutor diante de quem ele não encontra o nome Signorelli, relata como tendo um caráter dramático para aqueles que costumam ser seus pacientes. Assim, o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte do sujeito, de onde ressurge um achado, que Freud assimila ao desejo, desejo que situaremos provisoriamente na metonímia desnudada do discurso em causa, onde o sujeito se capta em algum ponto inesperado. No que diz respeito a Freud e sua relação com o pai, não esqueçamos que todo o seu esforço só o levou a reconhecer que, para ele, a questão permanecia intacta. Ele o disse a uma de suas interlocutoras: – Que quer uma mulher? Questão que nunca resolveu, ou seja, aquilo que foi efetivamente sua relação com a mulher, seu caráter uxório, como se exprime pudicamente Jones ao se referir a ele. Poderíamos dizer que Freud teria dado certamente um admirável idealista apaixonado se não tivesse se dedicado ao outro, sob a forma da histérica. Decidi parar sempre meu seminário às vinte para as duas em ponto. Como vêem, não fechei hoje a questão do que seja a função do inconsciente. Faltam as perguntas e as respostas. 22 de janeiro de 1964. 48 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. BUENOS AIRES O INCONSCIENTE E A PULSÃO1 CONVERGÊNCIAS Robson de Freitas Pereira T empo 2 – noite no Torquato Tasso (Tango en el Tasso) – San Telmo, casi em La Boca, poucas quadras do estádio La Bombonera. O quarteto Pua apresenta suas armas; quatro violões, todos jovens, tocam tangos clássicos e modernos, alguns de composição própria. Em seguida “Los Astilleros”, um grupo na formação quase clássica (piano, bandoneons, baixo acústico, violão, violino e cantor) apoiando-se no traço deixado por Piazolla para alçar vôos próprios na música e buscar novas formas de expressar uma tradição da qual eles se apropriaram. Assim, podem deixar de lado o vestuário formal das orquestras típicas e dos octetos 2 para apresentar uma indumentária despojada, uma “atitude” no palco que parece mais próxima dos grupos roqueiros. Sem falar na variação do repertório que permitiu um “candombe” com o contrabaixo fazendo as vezes de caixa de percussão e os recursos visuais (clips, curtas) utilizados para “acompanhar “ as músicas. Mas era tango. Inconfundível. Tempo 1 – Hotel Conquistador Jornada de trabalho sobre “Pulsão e Inconsciente”. As palavras de abertura anunciavam os propósitos: apostar na pluralidade e na construção de um laço de trabalho efetivo; arejar a leitura dos mestres com o intercâmbio de idéias, leituras, invenções de novos artifícios. Para tentar enfrentar as conhecidas dificuldades de idiomas (português e castelhano), solicitou-se que os trabalhos fossem traduzidos antecipa- 1 Inconsciente e Pulsão foi o título da jornada de trabalho ocorrida em Buenos Aires, nos dias 4, 5 e 6 de agosto passado. O evento foi convocado por quatro instituições argentinas e quatro brasileiras entre elas a APPOA cuja delegação somou 18 pessoas. O dispositivo de trabalho consistiu em uma jornada aberta nos dois primeiros dias e uma rodada de comentários no terceiro dia. 2 Para não esquecer a tradição: Leopoldo Federico (um dos herdeiros de Pichuco) estava sendo homenageado no Teatro Colón por seus 50 anos de serviços prestados ao tango. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 49 SEÇÃO DEBATES PEREIRA, R. DE F. Buenos Aires o inconsciente... damente. A maioria conseguiu. Uma tradutora ficava a postos para auxiliar nas discussões, houve momentos em que mais atrapalhou do que ajudou, mas fez seu esforço. As Mesas se sucediam, quatro palestras em cada, fazendo uma mescla de trabalhos brasileiros e argentinos. Os textos mostravam as preocupações e os momentos de cada um. Tentativas de apresentar questões surgidas do exercício da clínica, precisões conceituais e formas de abordar o tema proposto e como cada um, a partir de suas referencias institucionais e analíticas, estava fazendo para dar conta a seus pares desta prática que Freud um dia denominou como impossível. Enumeramos algumas questões abordadas: pulsão e inconsciente são balizadas pela linguagem. Não há pulsão sem linguagem, onde o pulsional é o eco no corpo de que há um dizer que o marca. Assim, o pulsional se recorta na análise cujo motor é a transferência impulsionada pelo desejo do analista. O reconhecimento de que o inconsciente é um campo que se perde. A análise como causa perdida que escapa ao saber e que implica em lidar com a perda de gozo. A partir daí o lugar do significante e do Real como dimensão crucial para a prática de uma ética passam a ser fundamentais. Os efeitos de sentido que se perdem e se recuperam no trabalho com os chistes, com os jogos de palavras que misturam as línguas e as gramáticas. Por isto, Joyce o sinthoma foi bastante lembrado. Quais as conseqüências para uma clínica psicanalítica que leve aos limites o trabalho com as torções linguageiras? Lalangue civiliza o gozo. Civilizar seria domesticar ou aceitar os jogos e a insegurança do sem-sentido? Pulsão, fantasma e sujeito do inconsciente. Qual a relação da pulsão com o fantasma (fantasia fundamental) e do sujeito com o autismo? Uma questão que restou em aberto, como várias outras, apontando a continuidade da discussão. Tanto assim que o próximo encontro, previsto para 2008, no Rio de Janeiro, está propondo o mesmo tema de trabalho. Apostando (e não prometendo) que assim poderemos acompanhar o andamento de nossas elaborações. Tempo 3 – Os comentaristas. Domingo de manhã, oito “comentadores” deixaram-se falar sobre o que ouviram, escreveram e discutiram nos dois dias anteriores. Uma experiência considerada rica; pois permitiu uma retomada dos avanços e dos problemas encontrados. Curiosamente, neste âmbito a tradução foi necessária em poucos momentos. O que concluímos que nas dificuldades de tradução a língua é apenas um dos fatores. Afinal, em se tratando de Brasil e Argentina faz mais de vinte anos que estamos trabalhando neste campo institucional. A psicanálise argentina está articulada com a história da psicanálise no Brasil, não somente no lacanismo. Deste modo, os diversos estilos, as diferenças de formação analítica e cultural influem decisivamente para fazer ruído no intercâmbio de experiências. Esforço de fazer-se entender, difícil fazer uma discussão. Trabalhos traduzidos ajudam, mas tem a desvantagem de todo texto escrito previamente, marca a leitura. Falar livremente sobre o tema, que poderia estar mais próximo de um procedimento ao qual os psicanalistas estão mais afeitos, traz um problema de dificultar a tradução e, por vezes, tergiversar questões. Dificuldades são impossíveis de serem transpostas? Se levarmos em conta os aforismas de Lacan a respeito da perda teremos que admitir que há dificuldades que são intransponíveis (o próprio Freud se perguntou sobre isto no mal-estar na cultura). Porém, reconhecer o impossível que nos organiza é reconhecer que não temos controle antecipado. Trabalhar sobre as diferenças e desacordos requer uma persistência; pois dizer que as diferenças, a alteridade é fundamental não pode ser simplesmente uma questão de princípios vazios. Uma das observações repetidas no testemunho de domingo foi que havia uma mudança no discurso de pessoas que antes iam para estes encontros como uma forma de reforçar sua posição institucional (“que bom que não somos como eles”), para um dar-se conta que a psicanálise depende destes desacordos. Temos que correr o risco e neste caso, não mimetizar Ulisses que se protegeu do canto das sereias 3. Não estamos isentos dos sintomas que pretendemos escutar e interpretar. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 50 3 É bem conhecida a passagem da Odisséia, onde o herói amarrou-se ao mastro do navio para não sucumbir ao canto das sereias. Os psicanalistas não podem dar-se ao luxo de amarrar-se seja ao mastro dos conceitos, seja aos dispositivos burocráticos. Ambos podem assegurar a reprodução , mas arriscam a morte da psicanálise. 51 SEÇÃO DEBATES PEREIRA, R. DE F. Buenos Aires o inconsciente... Tempo 4 – Savoir-faire Um ponto em comum; em todas as palestras, sem exceção, aconteceram atos falhos. Melhor, sinal de que apesar de nossas resistências, de nossas tentativas de apresentar um saber sem falhas o inconsciente insiste. Quando discursamos, palestramos em posição de analisantes, nunca como analistas, esta é uma das heranças que Lacan transmitiu. Talvez isto possibilite trabalhar sobre as dificuldades citadas; pois uma discussão consegue ser rica se a posição discursiva puder ser modificada. Espera-se que o efeito de uma análise seja a produção de S1, isto implica que o saber (S2) mostre sua disjunção com a verdade. Curiosamente, é no discurso universitário e também no discurso do capitalista que o significante primordial (S1) fica na posição de verdade. A verdade fica recoberta por um conhecimento e, se incrementamos o conhecimento, incrementa-se o gozo. Aqui podemos retornar ao tempo inicial (tempo dois relacionado acima). Tentar articular o vigor da cultura4, a apropriação do tango pelos jovens com o esforço dos psicanalistas de se apropriarem/inventarem uma forma de preservar/fazer perseverar a psicanálise. Vamos ter que tomá-los como exemplo e romper com as tradições para poder transmitir5. Conseguiremos? Não há garantias. Estamos neste tempo onde o melhor talvez seja possibilitar a desordem e suportarmos a desorganização (pas de sens) que o encon- tro com a alteridade nos provoca. No início do século XX, um cronista otimista poderia escrever que nos encontrávamos frente a possibilidades de transporte dos mais variados, as pessoas podiam escolher o cavalo, a charrete, a bicicleta, os transportes coletivos de tração animal e os recentes automóveis com motor a explosão. Qual não seria sua surpresa ao ver que estas possibilidades foram reduzindo-se com a hegemonia do automóvel. Nenhuma nostalgia, só a constatação de que não controlamos o que vai acontecer amanhã, mas podemos antever a chegada de algo novo e importante, sem que isto represente o apocalipse ou a proximidade do paraíso prometido e adiado. Neste tempos de desconfiança, de fragilidade da civilidade, de violência urbana conseguir desfazer certas posições enrijecidas e construir um âmbito de confiança com as ferramentas do discurso analítico já é alguma coisa de importante. O que não quer dizer que possamos nos acomodar sobre louros desconhecidos e evanescentes. Hiância e costura onde o pulso ainda pulsa. 4 Na Argentina o movimento cultural foi um dos primeiros a apontar uma saída para a crise. Assim que a vida política e econômica começou a dar sinais de mudança a “movida” portenha mostrou sua força. Evidenciou que um apesar do enfraquecimento econômico e social, o patrimônio cultural e educacional ainda é um valor fundamental. 5 Bem entendido que estamos fazendo aqui uma articulação com o conhecido adágio de Lacan de que é possível dispensar o pai, a condição de passar por seus significantes. Em outras palavras, não há ruptura sem tradição. Isto que acontece com o tango, também se passa no jazz e em outras formas musicais. Quem passar pela esquina de Santa Fé e Callao numa quinta-feira à noite poderá escutar jazz no café “Cinema”. Ali o trio formado por voz, harmônica e guitarra toca um repertório de canções que vai de new orleas a canção dos anos 30 e 40. ( someone to watch over me, over the rainbow para citar duas). Os jovens que hoje mostram os efeitos da apropriação da tradição, o fazem para um público identificado e que prestigia esta pesquisa. E o público, em sua maioria também é de faixa etária inferior aos 40 anos, com exceção deste escriba e alguns amigos. 52 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. 53 SEÇÃO DEBATES RESENHA DEPOIS DA VIDA e você pudesse escolher uma só recordação de sua vida para levar para toda a eternidade, qual escolheria? Pense... Você tem três dias para escolher. Depois disso, nós faremos tudo para rodar um filme que retrate o mais fielmente possível este cenário, para recriar sua atmosfera. Depois, todas as suas outras memórias serão apagadas, e você viverá nesta única cena para sempre. After life (Wandafuru Raifu), um filme de 1998, dirigido pelo japonês Hirokazu Kore-eda, diretor também de Mabrosi e Without memory, fala com delicadeza de um tema já tratado inúmeras vezes: a vida após a morte. A simplicidade retratada no filme é tocante. Afinal, que imagem, sentimento ou situação valeria ser escolhida para se viver e reviver para sempre? Uma recordação da infância? Uma aventura sexual? Ou um dia na Disneylândia, como muitas meninas precocemente mortas talvez escolhessem? No filme, um homem escolhe uma experiência de guerra, em 1945, pilotando seu pequeno avião – vendo as nuvens brancas como algodão doce passando ao lado, e o céu azul na frente. Uma velhinha, que não teve amores nem filhos, reúne em silêncio pequenos galhos e folhas caídas no jardim e são estas as recordações que ela quer levar consigo para o implacável sempre. Chama atenção no filme que muitos escolhem não uma grande aventura, não uma emoção extrema, mas uma cena banal, por exemplo, uma tarde no parque, simplesmente sentados ao lado de alguém que se gosta, com uma sensação de paz e delicada alegria. Um almoço com a esposa, em casa – nada de muito esfuziante. Um piquenique com a mãe e as tias, na infância, enrolando bolinhos de arroz, por exemplo, pode ser uma boa imagem para se guardar para sempre. Um adolescente punk , recém falecido – pergunta: “Então é assim? E aquela baboseira de não faz isso, não faz aquilo? Nada de inferno?” Este rapaz pede para escolher a memória de um sonho – “Uma sensação de câmera lenta, em que você corre na maior velocidade e parece que está flutuando...” Na impossibilidade de ter um sonho como escolha, recusa-se a escolher, e ficará no limbo da estação de passagem... Essa casa de passagem entre a vida e a morte, diferentemente de como outros filmes retratam – em fictícios palácios gregos, ou em suntuosos jardins das mil e uma noites – é um prédio tosco como uma escola antiga ou um internato abandonado. E os funcionários... Bem, estes fantasmas – ou seriam anjos? Eles tentam ser o mais discreto possível, para não interferirem nas decisões dos recém-chegados. Será que conseguem? Esses funcionários públicos da morte, por sua atenção e ao mesmo tempo apagamento de seu próprio desejo para poder captar os de seus “clientes”, lembram um pouco o papel do psicanalista como passadores respeitosos da dor e da história alheia. Um deles, incapaz de fazer sua própria escolha, e olhando o vídeo de sua amada falecida, descobre que estava na cena criada por ela! Ele era parte da felicidade de alguém... Que descoberta maravilhosa! Só então consegue fazer sua escolha, e opta pela mesma cena, para recordar em sua própria eternidade que um dia foi tão importante para alguém. Então? Já fez sua escolha? Qual a cena mais representativa de sua vida? Uma grande emoção? O nascimento de um filho? Conhecer o grande amor, a primeira transa, ou a melhor delas? O primeiro vôo, a primeira neve, o cheiro do vento da primavera? Ou um dia banal, na paz da infância em família, em que o sentimento de segurança e aconchego pareciam ser eternamente garantidos pela presença dos pais? Às vezes não nos damos conta de que as maiores alegrias e emoções de uma vida podem estar em coisas tão simples... como fazer parte da felicidade de alguém. Ligia Gomes Victora C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. Wandafuru Raifu. Japão, 1998 diretor: Hirokazu Koreeda estrelado por: Arata, Erika Oda S 54 55 AGENDA Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.) Criação da capa: Flávio Wild - Macchina SETEMBRO – 2006 Dia 14, 21 e 28 14 15 e 29 04 e 18 01, 15 e 29 Hora 19h30min Local Sede da APPOA 21h 8h30min 20h30min 15h15min Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Dia Hora 02 09 21 10h 10h 21h Local Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Atividade Reunião da Comissão de Eventos Reunião da Mesa Diretiva Reunião da Comissão de Aperiódicos Reunião da Comissão do Correio Reunião da Comissão da Revista Atividade Exercícios Clínicos Núcleo de Psicanálise de Crianças Cartel “Seminário XI” ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE GESTÃO 2005/2006 Presidência: Lucia Serrano Pereira a 1 Vice-Presidência: Ana Maria Medeiros da Costa 2a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees 1a Secretária: Marieta Madeira Rodrigues 2a Secretária: Ana Laura Giongo e Lucy Fontoura 1a Tesoureira: Maria Lúcia Müller Stein 2a Tesoureira: Ester Trevisan MESA DIRETIVA Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ângela Lângaro Becker, Carmen Backes, Edson Luiz André de Sousa, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz, Maria Cristina Poli, Nilson Sibemberg, Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira e Siloé Rey EXPEDIENTE Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS Tel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922 e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.br Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956 Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda. Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355 PRÓXIMO NÚMERO INCONSCIENTE, REPETIÇÃO, TRANSFERENCIA E PULSÃO C. da APPOA, Porto Alegre, n. 150, set. 2006. Comissão do Correio Coordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschimidt, Fernanda Breda, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Márcio Mariath Belloc, Maria Cristina Poli, Marta Pedó, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira, Rosane Palacci Santos e Tatiana Guimarães Jacques S U M Á R I O EDITORIAL NOTÍCIAS 1 2 SEÇÃO TEMÁTICA 10 UM TIPO ESPECIAL DE LOUCURA DE OBJETO Ana Costa 10 ALGUMAS NOTAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MATEMÁTICA E PSICOSE NO CINEMA Nilson Sibemberg A CENA QUE SE DESVELA OU O QUE VELA UMA IMAGEM Francilene Rainone FILMAR A LOUCURA: “TUDO QUE SE IMAGIMA, É” Miriam Chnaiderman ESTAMIRA E “TRANSAMÉRICA” Contardo Calligaris SEÇÃO DEBATES O INCONSCIENTE E A REPETIÇÃO Jacques Lacan BUENOS AIRES O INCONSCIENTE E A PULSÃO CONVERGÊNCIAS Robson de Freitas Pereira 14 19 29 34 37 37 49 RESENHA 54 AFTER LIFE 54 AGENDA 56 N° 150 – ANO XIII SETEMBRO – 2006 CINEMA E LOUCURA