1 CELEBRANDO A REDENÇÃO DA MISÉRIA: AS ESTRUTURAS DO IMAGINÁRIO NOS CULTOS NEOPENTECOSTAIS Eunice Simões Lins Gomes-UFPB-CE-PPGCR Neide Miele –UFPB-CE-PPGCR RESUMO Esta pesquisa tem por finalidade desvendar as estruturas míticas do imaginário cultural brasileiro que organizam os cultos neopentecostais. Para isso, estamos analisando as imagens litúrgicas desses cultos pela metodologia da Hermenêutica Simbólica de Gilbert Durand, mais especificamente, com a arquetipologia, entendemos como se estruturam os dinamismos figurativos dos “reflexos dominantes” (deglutição, copulação e postural). São três as categorias de imagens litúrgicas utilizadas: ações gestuais dos dirigentes dos cultos, imagens verbais construídas pelos pregadores e ações gestuais dos cultuadores. Elaboramos como hipótese, a suspeita de encontrarmos nesses cultos uma tensão entre os dois regimes, há tanto uma tendência ao heroísmo, ao combate aos monstros hipoerbolizados (demônios), quanto há a experiência de um acolhimento cósmico, a vida é noite, mas se está em comunhão com os céus, o engolir as águas, um eufemismo ao abandono. Palavras-chave: culto, neopentecostalismo, imaginário EN CÉLÉBRANT LA RÉDEMPTION DE LA MISÈRE :LES STRUCTURES DE L´IMAGINAIRE DANS LES CULTES NEOPENTECÔTISTES RESUME Cette recherche a eu le but de rendre évidentes les structures mythiques de l´imaginaire culturel brésilien qui rangent les cultes neopentecôtistes. On analyse les images liturgiques de ces célébrations en utilisant la méthodologie de l´Herméneutique Symbolique de Gilbert Durant, et plus spécifiquement l´Arquetipologie, pour comprendre la manière de structuration des dynamismes fuguratifs des « réflèts dominantes » (déglutition, copulation et posture). Ces sont trois les catégories d´images liturgiques qu´on utilise ici : des actions gestuelles des dirigeants des cultes, des images verbales construites par les prêcheurs et des actions gestuelles de ceux qui accompagnent la célébration. On a élaboré, en tant qu´hypothèse, la possibilité d´identifier dans les cultes une tension entre les deux régimes : soit une disposition à l´héroïsme, au combat aux monstres « hipoerbolisés » (démons), soit l´expérience d´un accueil cosmique, la vie est la nuit, mais on est en communion avec les cieux, l´engloutir des eaux, un euphémisme à l´abandon. Mots-clef : Cultes, neopentecôtistes, l´imaginaire. 1 INTRODUÇÃO O nosso estudo tem como finalidade investigar a “ambiência simbólica” da cultura brasileira, a partir das imagens plasmadas no ambiente religioso, especificamente, nos ritos do protestantismo neopentecostal1. Estamos interessados em estabelecer a relação entre a obra litúrgica 1 Os pentecostais não representam um referencial religioso homogêneo. É preciso pelo menos dividi-los em quatro grupos distintos (MENDONÇA, 1989) Os pentecostais clássicos (Assembléias de Deus e Congregação Cristã); 2) Os pentecostais de “cura divina” (Igreja Deus é Amor, Evangelho Quadrangular e Brasil para 2 (celebrações de culto) e o imaginário coletivo do povo que o produziu; no levantamento do repertório de imagens gestuais e verbais, desenvolvidas pelos atores do culto, em relação às intenções litúrgicas, às seqüências da liturgia, ao material e aos espaços do culto; em mapear a trajetória antropológica dos schémes à narrativa mítica dos regimes diurno e noturno das imagens litúrgicas catalogadas, para encontrar a dinâmica do imaginário que está presente e subjacente a essa organização religiosa. Então por estarmos preocupados em desvendar as estruturas arquetípicas do imaginário brasileiro, presentes numa das formas de religiosidade contemporânea do povo, entendemos que a abordagem metodológica que mais se aproxima dos nossos interesses investigativos é a Teoria Geral do Imaginário de Gilbert Durand. Isso porque entendemos, apoiados nessa teoria, que o imaginário não é um elemento secundário do pensamento humano, mas a própria matriz do pensamento. ( GOMES, 2000). O imaginário é um sistema dinâmico organizador de imagens, cujo papel fundador é o de mediar a relação do homem com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Essa função fantástica do imaginário acompanha os empreendimentos mais concretos da sociedade, modulando até a ação social e a obra estética. A mitologia é primeira em relação a qualquer metafísica, mas também ao pensamento objetivo. Os mitos são manifestos nos atos simbólicos, cuja função é colocar o homem em relação de significado com o mundo, com o outro e consigo mesmo. ( KAST, 1997). O fenômeno religioso nos é importante para entender a cultura brasileira, porque entendemos que é a presença mítica que organiza as práticas religiosas e as demais práticas sociais. De modo que perscrutar as celebrações de um movimento religioso (pentecostalismo), o que mais cresce no país, é captar as estruturas mitológicas organizadoras de um dos atuais modos de pensar, sentir e agir da sociedade brasileira. Assim, movida pela “razão sensível”, estamos ratificando uma nova e rica possibilidade de fazermos sociologia da cultura, através do desvendamento das “bacias semânticas” (DURAND, 1983), das estruturas que dão sentido aos ajuntamentos coletivos nacionais. Nessa perspectiva metodológica suspeitamos estar avançando ao esgotamento da ciência moderna, marcada pelo racionalismo positivista, que elimina o mito e minimiza o seu papel. Ao contrário, apostamos no “reencantamento do mundo”, no retorno do homo symbolicus (JUNG, 1982) como organizador das relações sociais e no equilíbrio entre razão e imaginação, entre biopsíquico e sociocultural. Essa noção e perspectiva metodológica de focar o corpus mitológico em relação aos ajuntamentos sociais e desenvolvimento individual, é extremamente fértil para o estudo do imaginário e da cultura em seu dinamismo e trajetividade. 2 O método da arquetipologia e da mitanálise nas imagens litúrgicas Cristo; 3) As igrejas renovadas (Batista Nacional, Presbiteriana Renovada, Maranata, etc.); 4) Os neopentecostais (Universal, Renascer, Igreja Internacional da Graça, etc.). 3 Gilbert Durand (1997) elabora a sua Teoria Geral do Imaginário a partir da crítica que faz à desvalorização da imagem e do imaginário no pensamento ocidental, que considera a imaginação como “mestra do erro e da falsidade”. Esta desvalorização é fruto da ciência moderna, cujo modelo, global e totalitário, nega o caráter racional, portanto científico, a todas as formas de conhecimento que não se pautem pelos seus princípios epistemológicos e por suas regras metodológicas. Ao valorizar a razão, em detrimento do imaginário, a iconoclastia ocidental pretendeu um “pensamento sem imagem”; mas, por trás da fachada hipócrita do iconoclasmo oficial, o mito continuou a proliferar de forma clandestina, graças à expansão literalmente fantástica da mídia que reinstalou a imagem, em “carne e osso”, no uso cotidiano do pensamento (PITTA, 1995; SANCHEZ TEIXEIRA, 1990;1998) . Tal fato evidencia o grande paradoxo da modernidade que, ao mesmo tempo em que recusa a imagem em proveito da razão, é incessantemente assediada por ela. Segundo Durand (1994, p. 10), [...] os difusores das imagens, a mídia, estão onipresentes em todos os níveis da representação, da psique do homem ocidental, ou ocidentalizado. Do berço ao túmulo a imagem está lá, ditando as intenções de produtores anônimos ou ocultos: no despertar pedagógico da criança, nas escolhas econômicas e profissionais dos adolescentes, nas escolhas tipológicas de cada um, nos costumes públicos ou privados a imagem midiática está presente, ora se pretendendo como “informação”, ora ocultando a ideologia de uma “propaganda”, ora fazendo a “publicidade” sedutora [...]. Prestando atenção aos sinais dos tempos, constatamos que o império absoluto da razão vem perdendo gradualmente a sua força; o imaginário e o simbólico voltam a ocupar lugar de destaque na cena social. Com isso, assiste-se, atualmente, a uma expansão dos estudos sobre o imaginário, apesar do seu valor heurístico ainda não ser amplamente reconhecido no campo das Ciências Humanas e Sociais. Os críticos do tema não conseguem, ainda, ver em tais estudos qualquer finalidade útil, pois não acreditam que o imaginário desempenhe papel importante na vida social. Mas, paradoxalmente, foi a própria razão que, ao pretender abarcar tudo, preparou o caminho para o retorno da imagem e da sensibilidade reprimida. Por não ser sensível à força do seu contrário, o racionalismo não conseguiu integrá-lo para temperar a sua pulsão hegemônica (MAFFESOLI, 1998) e, com isso, foi perdendo espaço. Em outros termos, e lembrando Bachelard (1990), poderíamos dizer que a uma “dialética da razão” se vem acrescentar uma “dialética da imaginação”, que havia sido rejeitada pela mentalidade cientificista da modernidade. A integração entre razão e imaginação pode ser melhor compreendida se utilizarmos, epistemologicamente, a noção de polaridade, tal como o faz Durand (1980) para mostrar o dinamismo do imaginário. Para Durand a separação entre razão e imaginação é falsa, pois o simbólico se inscreve de maneira profunda na alma humana. 4 As imagens são produzidas no “trajeto antropológico”, que nada mais é do que relação, trajetividade, entre os pólos biopsíquico (pulsões subjetivas) e sociocultural (intimações do meio). De acordo com Durand (1997), o “trajeto antropológico” é a troca incessante que existe, ao nível do imaginário, entre as pulsões subjetivas do indivíduo e as intimações do meio cósmico e social. O trajeto põe em relação uma representação ou atitude humana, aquilo que vem do psicofisiológico, e o que vem da sociedade e da sua história, impedindo, “epistemologicamente”, a dominância de um sobre o outro (DURAND, 1980). Da mesma forma, resolve o problema da anterioridade ontológica de um dos pólos, pois postula, de uma vez por todas, segundo Durand (1997), a gênese recíproca, que oscila do gesto pulsional ao entorno material e social e vice-versa. É na trajetividade que a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito e, reciprocamente, as representações subjetivas explicam-se pelas acomodações anteriores do sujeito ao meio objetivo. A pulsão individual tem sempre um “leito social” no qual corre facilmente ou, pelo contrário, luta contra os obstáculos, de modo que o sistema projetivo da libido nunca é pura criação do sujeito, uma mitologia pessoal (DURAND, 1997). As imagens aglutinam-se, no imaginário, em torno de núcleos organizadores da simbolização, que são polarizados. Em cada núcleo, ou pólo, há uma força homogeneizante, ordenadora de sentido, que organiza semanticamente as imagens, configurando-as, miticamente, em três estruturas, que gravitam em torno de três esquemas matriciais básicos: heróico (separar), místico (incluir) e sintético (dramatizar). O primeiro põe em ação imagens e temas de luta (do herói contra o monstro, do Bem contra o Mal), o segundo, imagens assimiladoras, e o terceiro põe em conjunto imagens divergentes, integrando-as numa ação. Nessa perspectiva, o imaginário não é um simples conjunto de imagens que vagueiam livremente na memória e na imaginação. Ele é uma rede de imagens na qual o sentido é dado na relação entre elas; as imagens organizam-se de acordo com uma certa lógica, uma certa estruturação, de modo que a configuração mítica do nosso imaginário depende da forma como arrumamos nele nossas fantasias. É dessa configuração que decorre o nosso poder de melhorar o mundo, recriando-o, cotidianamente, pois o imaginário é o denominador fundamental de todas as criações do pensamento humano (DURAND, 1997). Ao longo de sua obra, Durand mostra que a imaginação é reação da natureza contra a representação da inevitabilidade da morte. O desejo fundamental buscado pela imaginação humana é reduzir a angústia existencial face à consciência do Tempo e da Morte. Entende este autor, que esta função (que em última instância é eufemização) não é simplesmente ópio negativo, máscara que a consciência veste diante da figura horrível da morte, mas, ao contrário, dinamismo prospectivo que, através do imaginário, tenta melhorar a situação do homem no mundo (DURAND, 1988). Portanto, é para fugir da representação da morte que a imaginação cria o mundo. 5 Nesse sentido, o imaginário é um dinamismo equilibrador que se apresenta como a tensão entre duas “forças de coesão” de dois “regimes” (o diurno e o noturno), cada um relacionando as imagens em dois universos antagonistas (o heróico e o místico); estes se acomodam, no estado médio e normal da atividade psíquica, em um outro universo – o dramático. Neste, as imagens antagonistas conservam a sua individualidade, a sua potencialidade, e só se reúnem no tempo, na linha narrativa, num sistema, e não propriamente numa síntese (DURAND, 1988). Nesse processo dinâmico, numa sociedade, encontram-se sempre confrontados os dois regimes de imagens – o diurno e o noturno -, um sobredeterminando o outro, ditando uma sintaxe e uma lógica que fundamentam a mentalidade dominante. O regime diurno é o da antítese, os monstros hiperbolizados são combatidos por meio de símbolos antitéticos: as trevas são combatidas pela luz e a queda pela ascensão. O regime noturno é o da antífrase, está constantemente sob o signo da conversão e do eufemismo, invertendo radicalmente o sentido afetivo das imagens (DURAND, 1997). Dessa forma, tanto no domínio mental individual, como no coletivo, só há verdadeira polaridade quando há tensão heterogênea entre sistemas de representação separadamente homogêneos. Estes dois regimes não podem ser entendidos como estruturas fixas, mas como linhas de força de coesão e jamais como tipologias psicológicas ou sociológicas, que agrupam de forma dialética as imagens simbólicas. Para ilustrar resolvemos criar um quadro sintético, correndo o risco de simplificação, das diversas imagens que aparecem nos dois regimes, que estão aparentemente separadas, mas que não só se relacionam entre si solidariamente, mas também contraditoriamente e de forma ambivalente. Pois nesses dois regimes é possível identificar uma cumplicidade entre eles, que tentam se equilibrar um através do outro. Durand (1988) fala em uma espécie de conivência entre eles, que faz existir um pelo outro, ou seja, cada termo antagonista tem necessidade do outro para existir e se definir. QUADRO DAS IMAGENS DA ESTRUTURA DO IMAGINÁRIO NO REGIME DIURNO Teriomórfico - Formigamento (insetos, larvas...) - Animação (cavalo, touro...) - Mordicância: morder, devorar (leões, onças.. As Faces do Tempo Nictomórfico - Depressão (trevas, cegueira, noite escura...) - Convite ao morrer (água escura, estagnada..) 6 REGIME (Angústia) - Engrama da queda (queda no chão da Catamórfico criança...) DIURNO Ascensionais - Verticalidade (monte sagrado...) Ascensão, reconquista - Asa e angelismo (voar-pomba,águia..) de uma potencia Preocupado perdida -Soberania uraniana: (elevação, gigantismo...) - O chefe (a cabeça, crânio, coroa...) em dividir e reinar O Cetro e o Espetaculares - Pureza celeste (luz, sol...) - Visão conhecimento (olho, palavra...) Gládio Heróica Diaréticos - Poder e pureza (armas do herói...) vitória sobre o Separação cortante - Armas espirituais (batismo, espada, fogo, destino e a entre o bem e o mal tocha, água, ar) morte QUADRO DAS IMAGENS DA ESTRUTURA DO IMAGINÁRIO NO REGIME NOTURNO ESTRUTURA MÍSTICA - Símbolos da inversão A descida e a Taça do valor afetivo atribuído as faces do tempo construção de uma harmonia, quietude, gozo - Símbolos da intimidade isomorfismo do retorno, da morte e da moradia Eufemismo (abismo, taça, receptáculo...) - Encaixamento redobramento (engolir...) - Hino á noite (noite de paz, valoriza cores...) - Mater e materna (grandes mães aquáticas) - Túmulo e repouso (morte...) - Moradia e taça (casa, espaço...) - Alimentos e substâncias (leite, mel, água, sal...) REGIME ESTRUTURA NOTURNO SINTÉTICA Regime pleno do Do denário ao eufemismo vai se pau empenhar em Harmoniza os fundir e harmonizar - Símbolos cíclicos O tempo cíclico não tem - Ciclo lunar (fases da lua, espiral, permanência,). - Espiral (equilíbrio dos contrários). - Simbolismo ofidiano (serpente, muda de pele...) - Tecnologia do ciclo (fuso, roca começo nem fim: uma face desce a outra sobe. contrários e - Do schéme rítmico ao mito – Ritmo da propõe um do progresso temperados) natureza (climas 7 caminhar progressista - Sentido da árvore (verticalidade humana: floração e frutificação) De acordo com Durand (1983), as imagens desses dois regimes circulam ao redor do mito, que define e descreve um conjunto social. Uma sociedade polariza sempre, no mínimo, duas estruturas míticas que se alternam de forma cíclica2. Em outras palavras, há sempre dois mecanismos antagonistas de motivação: um opressivo, no sentido sociológico do termo, que contamina todos os setores da atividade mental e social, sobredeterminando ao máximo as imagens e símbolos veiculados pela moda, e outro que se opõe, dialeticamente, a ele, suscitando a emergência de outros mitos e outros simbolismos (cf. DURAND, 1997). A dominância ou polarização de conjuntos míticos, numa certa época, determina uma homologia semântica, que religa teorias científicas, estilos estéticos, gêneros literários, visões de mundo, constituindo o que este autor chama de “bacia semântica”. Esta metáfora permite a compreensão do percurso temporal dos mitos e suas manifestações socioculturais, expressando o dinamismo imaginário. Em sua origem, uma corrente mítica é um esboço confuso de um imaginário, cujos conteúdos (mitos, sonhos, utopias, desejos) afloram timidamente. Aos poucos, ela se fortalece e se torna oficial, “teatralizando-se” em usos sociais positivos ou negativos, que recebem a sua estrutura e seu valor de “confluências” sociais diversas para, finalmente, se racionalizar, transformando-se em sistemas filosóficos e ideológicos (cf. DURAND, 1994). Este é o momento da monopolização do mito, que se torna dominante e, paradoxalmente, atinge o ponto de saturação, deixando-se penetrar por outras correntes míticas, anunciadoras de outros mitos, geralmente aqueles que haviam sido reprimidos e despolarizados. Durand (1988) lembra que a função simbólica é lugar de “passagem”, de reunião de contrários, pois o símbolo, em sua essência, é unificador de pares opostos. Para este autor (1988), o símbolo é um signo concreto que evoca, através de uma relação natural, algo ausente ou impossível de ser percebido, ou seja, remete a um significado invisível e indizível. O símbolo se refere ao não sensível em todas as suas formas, é um sinal visível de uma realidade invisível. O símbolo, e o que nele está representado, tem uma conexão interna que não pode ser desfeita, por isso, possui algo mais que um sentido artificialmente dado. O símbolo é, então, mediação que traz em si a presença inelutável do sentido, por isso, a imagem, por mais degradada que possa parecer, é sempre portadora de um sentido que não deve ser procurado fora da sua significação imaginária (cf. DURAND, 1997). 2 É importante observar que um sistema imaginário sociocultural destaca-se sempre como um conjunto mais vasto e contém subconjuntos mais restritos, isto é, no interior de um esquema global há sempre microclimas sociais (DURAND, 1994). 8 Para Durand (1988), há uma energia simbólica, que percorre todo o trajeto antropológico, razão pela qual a imaginação se revela como fator geral de equilibração psicossocial, pois uma sociedade nunca é absolutamente homogênea em termos de representação; há elementos irredutíveis, ilhas de sobrevivência de outros imaginários. O equilíbrio sócio-histórico de uma sociedade nada mais é do que uma constante realização simbólica; a cada momento de uma cultura, vários mitos se superpõem, sendo que alguns são atualizados, enquanto outros permanecem potencializados, obrigados a permanecer na sombra. Um sistema imaginário sociocultural destaca-se sempre sobre um conjunto mais vasto e contém conjuntos mais restritos. 3 Procedimento da Hermenêutica Simbólica Na construção da sociedade moderna, assistiu-se a uma tentativa de supressão do símbolo, que foi estreitado pelas ciências em signo, e pela aniquilação da pessoa e da sua energia constitutiva, metamorfoseada em robô mecânico, animado apenas pela consciência social estabelecida ou inteligência artificial. Nessa intentada, houve uma polarização mítica, valorizando apenas aqueles que sustentaram a modernidade, e esgotando a possibilidade do afloramento de novas correntes míticas, geralmente contestatórias em relação à sociedade estabelecida. Nesse momento atual, chamado por alguns de pós-modernidade, outros mitos e outros símbolos começam a circular. Eles são as matrizes imaginárias de uma “nova sensibilidade”, de novos estilos, de novas visões de mundo, de um outro paradigma que, ao sapiens vem juntar o demens, acrescentando à atividade pensante do ser humano a dimensão onírico-fantástica, possibilitando a restauração da tensão e do equilíbrio entre esses pólos. É para entender esse novo momento histórico que optamos pela abordagem metodológica a ser adotada na investigação das imagens litúrgicas. É a “Hermenêutica Simbólica” de Gilbert Durand (1983) que a utilizaremos para analisar o mundo imaginal do brasileiro, a partir do fenômeno religioso. A hermenêutica simbólica dá conta de articular o biopsíquico e o sociocultural, porque ela pode partir indistintamente da cultura ou do natural psicológico, uma vez que o essencial da representação e do símbolo está contido entre esses dois marcos reversíveis. O caráter basal da linguagem simbólica induz a pistas para a construção pluri, trans e metadisciplinar de uma Antropologia do Imaginário, apoiada num projeto de unidade da “Ciência do Homem”. A hermenêutica simbólica de Durand é um método próprio ao estudo do imaginário, válido para qualquer mensagem que emana do homem e está estruturado em níveis de complexidade: a Arquetipologia, busca entender como se estruturam os dinamismos figurativos dos “reflexos dominantes” (deglutição, copulação e postura); a Mitanálise, busca entender o mito como o primeiro discurso da significação, e a Bacia Semântica, que se preocupa com a duração das fases do imaginário sociocultural. 9 Aplicaremos essa hermenêutica nos cultos religiosos, particularmente os neopentecostais, porque eles são técnicas mágicas, mediadores entre o mundo sagrado e o mundo profano. Nas celebrações litúrgicas com orações, entrega de ofertas, entoação de cantos e outros atos de purificação e de consagração, o homem defende seu mundo das forças da miséria, temidas ao mesmo tempo pelo seu poder e pela sua impureza. Nesses cultos, o homem é redimido da miséria social, divindade repugnante, fazendo-o ascender ao mundo santo da prosperidade. Preocupados em compreender a estrutura do imaginário, organizadora dos cultos neopentecostais, consideraremos as imagens corporais e verbais construídas durante os cultos, pelos pregadores e fiéis, como uma das manifestações do arcabouço simbólico brasileiro, que evidencia a trama de relações entre imaginário, cultura e sociedade. Nessa abordagem utilizaremos o procedimento do método de convergência, ou seja, analisaremos a maneira como se organizam as diferentes representações da narrativa mítica do culto e elegeremos algumas séries de imagens litúrgicas, que podem ser expressivas. Tentaremos na catalogação das imagens seguir a estrutura do “trajeto antropológico”, valorizando os schémes (tendência geral dos gestos), os arquétipos (representação dos schémes), os símbolos (signos) e o mito (sistema dinâmicos de símbolos). Nas palavras de Durand (2001, passim), Schémes são reflexos dominantes e o seu prolongamento cultural ou a concomitância entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações simbólicas; Arquétipos são as substantificações dos schémes e constituem o ponto de junção entre as imagens e os pensamentos; os Símbolos são configurações invisíveis, localizáveis em um certo tempo e uma certa tradição cultural e, por fim, Mito é um sistema dinâmico de símbolos, de arquétipos e de esquemas, que sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. Sendo assim, catalogamos as imagens litúrgicas de acordo com as: 1) as ações gestuais dos dirigentes do culto e dos pregadores; 2) as imagens verbais construídas pelos pregadores; 3) as ações gestuais dos cultuadores: gestos de vitória e de comemoração, gestos de embaraço e de inventividade, gestos de dor e de vivência do fracasso, gestos de obediência e de rebeldia. Estas imagens foram sendo observadas em relação: 1) às intenções litúrgicas (libertação, cura, emprego...); 2) às seqüências da liturgia (leituras, cânticos, confissão, ofertas...); 3) ao material do culto (livros, hinários, roupas...); 4) aos espaços do culto (arquitetura, mobília). Buscamos identificar, nessa constelação de imagens, como se estrutura a dinâmica dos símbolos heróicos e místicos que circulam nos núcleos organizadores da cultura. A interpretação dessa catalogação resultou numa arquetipologia e numa mitanálise, configurações capazes de traçar as matrizes da simbolização que estrutura o pensamento simbólico, orientador do discurso mítico e da prática dos ritos na religiosidade neopentecostal. REFERÊNCIAS 10 BACHELARD, G. A poética do devaneio.SP: Martins Fontes, 1997 BACHELARD, G. A psicanálise do fogo. SP: Martins Fontes, 1995 BACHELARD, G. A terra e o devaneio do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo:Martins Fontes, 1990. BACHELARD, G. O novo espírito científico.SP: Martins Fontes, 1988 DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. SP: Cultrix/EDUSP, 1988 DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Lisboa: instituto Jean Piaget, 1998 DURAND, Gilbert. Mito e sociedade: mitanálise e a sociologia das profundezas. Lisboa: A regra do jogo, 1983 DURAND, Gilbert. A fé do sapateiro. Brasília: Editora UnB, 1995 DURAND, Gilbert. 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