Colóquio de Monografias do Curso de Psicanálise - 2004-09-08
Nome: Maria Zilda Armond Di Giorgi
Título do trabalho: "As encruzilhadas do Édipo: caminhos para a possibilidade de
aprendizagem"
Resumo: O texto traz para reflexão um estudo sobre a resolução do complexo de Édipo, as
condições de estruturação psíquica do sujeito e como esta estruturação permite à criança ter acesso
ao simbólico e cria as possibilidades para o desenvolvimento do raciocínio operatório,
imprescindível na construção de seu conhecimento.
No texto apresento sucintamente o complexo de Édipo em Freud e Lacan e faço um paralelo entre o
modo como a criança pensa o mundo e as fases por que passa no percurso deste complexo até sua
resolução, evoluindo de um pensamento egocêntrico para um pensamento lógico formal
(operatório).
Tento abordar a passagem pelo Édipo como elemento chave na aprendizagem escolar, ocasião em
que se concentram os problemas de aprendizagem, pois esta requer um sujeito que se sinta capaz de
aprender e requer um sujeito que seja capaz de separar o que ele imagina e o que a cultura
determina, estando em condições de aprender o código social.
As encruzilhadas do Édipo: caminhos para a possibilidade de aprendizagem
“... o indivíduo humano tem de se dedicar à grande tarefa de
desvincular-se de seus pais e, enquanto esta tarefa não for cumprida,
ele não pode deixar de ser uma criança
para se tornar membro da comunidade social.”
Freud - conf. XXI
Introdução
A curiosidade e o desejo de conhecer parecem fazer parte da dinâmica da vida, pois o bebê aprende
desde o nascimento. A aprendizagem, que parece tão natural no desenvolvimento da criança, pode
apresentar dificuldades quando ela entra para a escola, pois o aprender muda de registro: a
aprendizagem então passa a se referir aos signos da cultura. Além disto, na escola, a criança está
sozinha, num meio que requer um posicionamento enquanto sujeito e é pressionada para
corresponder e ser bem sucedida.
Muitos fatores podem levar a criança a ter percalços na sua aprendizagem escolar, e estes devem
sempre ser remetidos a sua história de vida e a sua relação familiar, pois o não-aprender pode estar
ligado a um não poder saber, atuando como um sintoma, e aludindo portanto a um conflito. A
inteligência pode cair numa armadilha, armada pelo inconsciente, como se o não poder aprender
significasse não ter capacidade para aprender.
Sabemos que uma exigência para qualquer aprendizagem é o desejo dos pais: é fundamental a
criança perceber no desejo dos pais o desejo de que ela aprenda. Então, ser investido no lugar de ser
pensante é o primeiro desafio que a criança se vê submetida, para que sua inteligência possa se
desenvolver. Depois, é também fundamental que se sinta capaz de aprender.
A entrada na escola, e mais precisamente o início da alfabetização, coincide com o período em que
a criança está no auge da angústia de castração, portanto muito voltada para seus interesses
narcísicos, o que envolve a possibilidade de construir uma imagem segura de si, e ao mesmo tempo
pressionada pelo meio para se sociabilizar, o que envolve a possibilidade de se sujeitar a regras e
normas. Assim, "a forma como a criança vai viver esta aprendizagem depende do nível de
organização conseguido no seu processo de acesso ao Simbólico", completa Leda Barone.
Sair do meio familiar, conhecido e seguro, e entrar num meio social mais amplo como a escola,
poder ser um “membro da comunidade social”, são etapas importantes no seu desenvolvimento que
decorrem da resolução do conflito edipiano.
Ao par disto, uma mudança na forma de a criança ver o mundo precisa ser operada, para que ela
saia do egocentrismo que caracteriza o seu pensamento até então, e possa ter um pensamento mais
objetivo, que a capacite a entender os códigos da cultura e a socializar-se. Em suma, é preciso sair
do "paraíso mágico, onipotente, fálico, próprio do narcisismo primário" para assumir-se como um
ser autônomo marcado pela incompletude.
O complexo de Édipo é um dos momentos chaves nesta mudança, sendo considerado condição
fundante do sujeito; simultaneamente, o psiquismo se estrutura e o pensamento se desenvolve.
A resolução do complexo de Édipo e o medo da castração vão possibilitar à criança internalizar as
interdições e os valores culturais vivenciados na relação com os pais, e com isto ter acesso ao
simbólico, nível em que acontece a aprendizagem, estando apta a participar da ordem humana, que
é construir e reconstruir conhecimentos.
A questão que coloco é: como a resolução do complexo de édipo estabelece as condições de
estruturação do sujeito e ao mesmo tempo como esta estruturação cria as condições de
desenvolvimento do pensamento operatório, possibilitando a aprendizagem do conteúdo
sistematizado transmitido pela escola?
Para dar subsídio a esta questão, apresento um estudo das condições psíquicas que vão se
estabelecendo desde o período pré-edípico, abordando o complexo de Édipo em Freud e em Lacan,
comparado à evolução do pensamento do egocentrismo até sua estruturação lógica.
O complexo de Édipo e a estruturação do psiquismo
Freud descobriu que é “destino” de todo ser humano dirigir seu primeiro impulso sexual ao
primeiro objeto de amor que é a mãe, e ao mesmo tempo, dirigir talvez o que seria seu primeiro
ódio e hostilidade, ao pai. Com a menina, esta hostilidade se dirige para a mãe, quando se volta para
o pai como seu objeto de amor.
Esta seria a essência do complexo de Édipo, o que Freud chamou de Édipo positivo. Freud
considerou, em “O Ego e o Id”, a ocorrência do Édipo completo, havendo uma alternância de
catexia de objeto para a mãe e para o pai, e uma hostilidade também voltada para a mãe e para o
pai, tanto para o menino como para a menina.
O complexo de Édipo, que Freud constatou ser uma fantasia imaginária criada por todas as crianças,
bem como o complexo de castração associado a ele, culmina toda uma etapa do desenvolvimento
sexual infantil iniciada desde o nascimento.
No centro deste complexo, Freud coloca o complexo de castração. Este é o organizador simbólico
das pulsões e se dá no real do corpo. Entretanto, incide sobre a mente infantil devido às
representações psíquicas que decorrem do reconhecimento da diferença sexual anatômica.
Que representações são estas e como a criança pensa e vivencia a sua sexualidade, a ponto de temer
a castração?
A fase que antecede a passagem pelo complexo de Édipo desperta grande interesse na criança por
seus genitais e condiciona o seu pensamento, todo o seu modo de entender a realidade.
Freud coloca que o interesse despertado pelos genitais é tão dominante na criança, por volta dos três
aos cinco anos, que quase chega ao interesse que ocorre na fase adulta. A diferença é que não há a
subordinação das pulsões parciais à primazia dos órgãos genitais.
Diz ele que: “Mesmo não se realizando uma combinação adequada das pulsões parciais sob a
primazia dos órgãos genitais, no auge do curso do desenvolvimento da sexualidade infantil, o
interesse nos genitais e em sua atividade adquire uma significação dominante, que está pouco
aquém da alcançada na maturidade”
Há uma organização genital infantil que “consiste, no fato de, para ambos os sexos, entrar em
consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é
uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo”.
Na organização genital fálica, a criança considera, num primeiro momento, que tudo que existe é
dotado de pênis. O pequeno Hans dizia: “a cadeira tem pipi, a mesa tem pipi”.
Num outro momento, há um esboço de classificação, tendo por critério o pênis, em que os seres
vivos diferem dos inanimados porque têm pênis. Posteriormente, a atenção se fixa nos seres
humanos: todos são dotados de pênis. Não há a percepção da diferença anatômica entre homem e
mulher.
Para o menino, o falo corresponde ao pênis, presente na anatomia do seu corpo, e para a menina, a
sua falta não é notada: tem um pênis pequeno, que ainda vai crescer.
Num outro momento da fase fálica, a criança descobre que as mulheres não têm pênis. É
interessante notar que esta percepção não ocorre na primeira vez que o menino vê os genitais de
uma menina, mas somente quando isto lhe remete ao seu próprio corpo, ao fazer associação entre a
excitação, a proibição da masturbação e a falta de pênis, associação que o leva à conclusão de que o
pênis pode ser perdido.
Esta descoberta é percebida simbolicamente como uma ameaça de perda para o menino, ameaça de
castração, que o força a renunciar ao amor da mãe e, consequentemente, a sair do Édipo. E por que
a castração se articula com o complexo de Édipo?
Porque, “neste momento, ... o menino deseja a mãe e luta contra o pai para ocupar o seu lugar junto
a ela. Seu pênis identificado ao falo é totalmente investido de sua função sexual e quando o menino
entra no complexo de castração, que geralmente é posto em atividade pela intervenção dos adultos
na masturbação, seu Édipo sucumbe frente à angústia de castração – perder os genitais - portanto,
frente ao interesse narcísico pelos mesmos”.
O interesse pelo pênis ocupa completamente a mente infantil: “A criança pode ter tido apenas
noções muito vagas quanto ao que constitui uma relação erótica satisfatória, mas certamente o pênis
devia desempenhar uma parte nela, pois as sensações em seu próprio órgão eram prova disso”,
coloca Freud.
Para a menina, esta descobre que sua mãe não a dotou suficientemente de um “equipamento” igual
ao do menino, inferioriza-se por isso e é acometida pela inveja do pênis, sabe que não o tem, e quer
tê-lo. É quando se volta para o pai e sente hostilidade pela mãe. A angústia que sente é pela perda de
amor.
A percepção da castração e a consequente passagem pelo Édipo é, para ambos, traumática porque,
diante da excitação de que é acometida, a criança não tem código ou registro de inscrição capaz de
dar conta disto. Freud coloca que a intensidade das primeiras vivências de prazer e os primeiros
impulsos libidinais é incomensurável, têm uma intensidade própria, o que não há é a capacidade de
decodificar o que se passa.
Toda esta dinâmica pulsional em que a criança se vê envolvida, proporciona-nos uma idéia de como
o real do corpo pressiona e domina o pensamento infantil. A criança está ocupada em responder ao
que provém de si mesma, por isso, o seu pensamento é extremamente egocêntrico: tudo o que
procura explicar tem por referência seu próprio eu.
O reconhecimento das diferenças sexuais é um momento muito importante no seu desenvolvimento,
pois é a partir daí que a teoria em torno do falo começa a se desintegrar, e a criança pode perceber a
diferença, fato que contribuirá para que ela aprenda a discriminar. Se remetermos isto para a
aprendizagem da escrita, discriminar é um passo fundamental para a percepção da diferença entre as
letras.
A renúncia ao amor da mãe ou do pai, torna possível ao pequeno perverso polimorfo passar da
anarquia inicial para uma certa organização psíquica. Freud coloca que não há apenas a renúncia ao
amor da mãe ou do pai, mas que esta renúncia é feita em nome de uma identificação com a cultura.
Temos que a organização decorrente do complexo de castração e da saída do Édipo é uma
representação que se dá na ordem do simbólico, e possibilita o acesso à cultura devido à
constituição do superego, que se encarregará de manter a proibição do incesto, a interiorização e a
aceitação da lei e que através do ideal do ego facilitará a identificação com os valores sociais.
Há um apaziguamento das pulsões sexuais e a criança entra num período de latência, onde sua
curiosidade sexual, antes impulsionada pela força do valor do pênis, dá lugar a um querer saber
sobre o mundo.
De fato, a energia da pulsão sexual não deixa de pressionar, mas pode ser desviada de seus fins
sexuais, na sua totalidade ou na maior parte, e voltar-se para outros fins, num processo que Freud
chamou de sublimação.
Todo este processo abre à criança a possibilidade de se constituir como sujeito autônomo, sujeito
que tem um desejo e um pensar, daí o seu valor fundante na constituição do sujeito, ao mesmo
tempo que possibilita a constituição da noção de alteridade. Junto a isto, mudanças na forma de
pensar o mundo também ocorrerão, conforme já podemos observar.
A constituição de um sujeito do desejo é enfatizada por Lacan, que amplia o conceito de complexo
de Édipo, descrevendo não só o que acontece com o menino e a menina, mas o que acontece numa
situação que inclui a relação da criança e seus pais. Ressalta o que a mãe quer – reintegrar o seu
produto; o que a criança quer – ser o falo da mãe, e enfatiza a função paterna na proibição desta
reintegração, separando a criança e posicionando-a na condição de se ver com o seu desejo.
Lacan introduz o conceito de falo como sendo um significante da falta, algo que remete a um objeto
perdido. O falo dá significância ao que está ausente, ao que falta.
Este complexo é descrito como sendo um processo que se dá em três tempos.
No primeiro tempo do Édipo, de narcisismo absoluto, a criança está alienada no desejo da mãe e
acredita ser o falo da mãe. A criança pensa ser tudo para sua mãe. O problema que se coloca é o de
“ser ou não ser o falo da mãe”.
No seguno tempo do Édipo, surge o pai para se interpor, apresentando uma dupla interdição: “não
deitarás com tua mãe” e “não reintegrarás teu produto”.
O pai é o “pai interditor”: priva a mãe do falo que supostamente tem no filho e frustra a criança por
não dispor incondicionalmente da mãe. Neste momento, o pai é o falo, é a Lei. O pai aqui é o pai
castrador, onipotente.
No terceiro tempo, a criança percebe que o pai também não é o falo, mas pode tê-lo. O falo se
encontra na Cultura.
O pai aparece como aquele que tem atributos fálicos e que pode doá-los. Ele passa a ser o
representante da Lei. Aqui o pai passa a ser o pai simbólico, permissivo, doador.
"A lei passa a ser uma instância superior à vontade de qualquer personagem, que pode representá-la,
mas não pode sê-la", diz Leda Barone.
Lajonquière escreve que "...ao construir a castração uma operação de corte que recai sobre um
vínculo incestuoso, acaba fazendo daquilo que até esse momento era um objeto do desejo do Outro
(materno) um sujeito do desejo ." Neste sentido, o complexo de Édipo funda uma subjetividade
desejante, onde o desejo da criança não se limita em desejar ser o falo imaginário de sua mãe, mas
está aberto a desejar por si.
Ainda nas palavras deste autor, a castração ordena o desejo, porque coloca o falo no seu justo lugar,
que é a dimensão simbólica e a possibilidade de ir buscar o que falta na cultura. Ela obriga o sujeito
a desejar além do desejo materno.
As condições para o acesso ao simbólico implicam ainda numa outra repressão: o sujeito tem que
separar o que ele imagina (pensamento mágico) e o que a cultura determina. Esta é a forma de se
submeter ao código, à lei, aos limites. A própria educação tem a ver com a interdição, sendo
formadora da integridade psíquica, pois viver em sociedade requer um submetimento às normas de
convivência.
Aceder à cultura, identificar-se com ela, aprender/apreender o conhecimento historicamente
acumulado pela humanidade, ter acesso à ordem simbólica: este é o “destino” da criança para se
inserir na ordem humana e ser incluída como ser social. Ter acesso à cultura implica aprender o
código social, tarefa que a Escola tem uma contribuição indispensável. E como é que se aprende?
Aprendizagem e subjetividade
“As abelhas sugam as flores,
mas depois fazem o mel, que é algo delas,
não é mais nem tomilho nem manjerona”.
Montaigne (Ensaios, I, XXVI)
O ato de aprender e portanto de apropriar-se de um conhecimento torna-nos partícipe de sua
construção, como indivíduos pertencentes ao gênero humano. A apropriação faz com que o
conhecimento se torne nosso, integrante de nosso pensamento. Isto vai nos constituindo como um
sujeito pensante.
É a inteligência que se encarrega disto: observando, analisando, comparando, seriando, escolhendo,
classificando, deduzindo, generalizando. Estas operações são desencadeadas em qualquer atividade,
quer manual, quer intelectual, e na maioria das vezes, nem se quer nos damos conta delas. E é o
desejo, inconsciente, que se encarrega de fazer com que a subjetividade faça sua marca nesta
exploração, quer dizer, atribua significado.
“O pensamento é um só, não pensamos por um lado inteligentemente e depois, como se girássemos
o dial, pensamos simbolicamente. O pensamento é como uma trama na qual a inteligência seria o
fio horizontal e o desejo o vertical. Ao mesmo tempo, acontecem a significação simbólica e a
capacidade de organização lógica”.
Portanto, concorrem para a aprendizagem, a inteligência, como estrutura cognitiva, e o
inconsciente, na ordem do desejo e do simbólico.
Assim, a inteligência vai possibilitar conhecer os objetos, mas é preciso que a criança tenha o desejo
de conhecer para que aquela possa atuar em toda a sua capacidade.
“O desejo de aprender tem que estar inscrito no desejo do outro/mãe/pai que constitui a criança para
que a inteligência possa ter acesso a este campo e nele atuar com sua especificidade”, escreve o
psicanalista Gabriel Balbo.
De fato, a inteligência, estrutura cognitiva, objetivante e lógica, embora tenha mecanismos próprios
de funcionamento, não é autônoma e está estreitamente ligada ao desejo, inconsciente, subjetivante
e simbólico.
Então, para aprender, é preciso o desejo de saber dos pais, enquanto a criança ainda é objeto do
desejo deles, e é preciso o desejo de saber da criança, quando ela já estiver se constituindo como
sujeito do desejo.
Enquanto “a inteligência tende a objetivar, a buscar generalidades, a classificar, a ordenar, a
procurar o que é semelhante, o comum, ao contrário, o movimento do desejo é subjetivante, tende à
individualização, à diferenciação, ao surgimento do original de cada ser humano único em relação
ao outro”, coloca-nos Alícia Fernandez.
A aprendizagem chama o sujeito a se pronunciar. Temos então que o processo de construção do
conhecimento pressupõe um sujeito ativo, que possa entrar em contato com sua subjetividade, com
seu desejo, e que se autorize a conhecer.
A aprendizagem implica também uma certa capacidade de estar a sós consigo mesmo, com seus
pensamentos, com seu desejo, com sua história. Leva o sujeito a ir reconhecendo a implicação que
tem na sua escolha. “Sozinha, diante da folha branca ou de sua tarefa, a criança se defronta com o
seu desejo”.
A criança precisa se constituir como sujeito para que possa construir seu conhecimento; por outro
lado enquanto constrói conhecimento vai se constituindo como sujeito. A escola, neste sentido, é tão
fundamental, que uma criança afastada/evadida da escola, com múltiplas repetências se vê não só
comprometida na aquisição de conhecimento como comprometida em sua formação como pessoa.
O complexo de Édipo, além de estabelecer as condições fundantes da constituição de um sujeito,
também proporciona uma organização psíquica que dá sustentação ao desenvolvimento do
pensamento lógico-operatório, condição para a aprendizagem da escrita e da leitura, para a
aquisição da noção de número e das operações matemáticas. Vejamos como se dá a passagem do
pensamento egocêntrico para o pensamento lógico-formal.
O pensamento: do egocentrismo infantil ao raciocínio lógico
“o pensamento, antiga produção da divina e trans/lúcida Razão,
é um composto de conhecimento e saber,
produtos da imprevisível (e piagetiana) inteligência, o primeiro,
e do impertinente (e freudiano) (desejo) inconsciente, o segundo”.
Leandro de Lanjonquière
Diz Freud que a intensa curiosidade sexual inicia uma atividade que se inscreve na pulsão de saber
ou de investigar, e afirma que “na criança, a pulsão de saber é atraída, de maneira
insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e talvez seja até
despertada por eles”.
E acrescenta que a sublimação de parte da pulsão sexual, leva, provavelmente, ao interesse
intelectual posterior a esta fase.
Assim como a criança formula teorias sobre a sexualidade para tentar dar conta de se entender, ela
também formula respostas para tentar dar conta de explicar a forma como vê o mundo. Por isto, na
fase pré-edípica, seu pensamento é auto-centrado.
Enquanto persistir a teoria de que todas as pessoas tem um pênis, o pensamento tem pouca
capacidade de generalização e é movido por um sistema lógico-prático, onde qualquer argumento é
válido para explicar a realidade.
Se pensarmos no caso do pequeno Hans, a visão do genital de sua irmã não foi suficiente, num
primeiro momento, para informá-lo da existência da vagina. Ele não podia admitir isto, pois seria
deparar-se com a possibilidade da castração. Então ele diz que ela tem um pênis pequenininho, que
ainda vai crescer.
Considere-se também que a ligação com a mãe dá à criança uma ilusão de completude imaginária,
situação de plenitude e onipotência, que dá sustentação ao seu pensamento mágico: seus desenhos
na fase da garatuja são rabiscos que só ela sabe dizer o significado; sua “escrita” é composta por
qualquer marca que só ela sabe “ler”.
O pensamento egocêntrico tem um raciocínio transdutivo, onde as relações são aleatórias, de acordo
com sua conveniência. Assim, um elemento perceptivo também pode servir de explicação. Por
exemplo na frase “é um cachorro porque tem rabo”, percebe-se que não há o conceito de
generalização para definir o que é um cachorro; o elemento “rabo” não é suficiente para defini-lo.
O pensamento e as habilidades de raciocínio não vão além da experiência física ou das ações
físicas, quer dizer, se referem à percepção dos objetos e suas propriedades. É um pensamento préoperatório.
Com a resolução do complexo de Édipo, a criança introjeta a lei e tem acesso à ordem simbólica,
adquire condições de compreender os signos que a cultura construiu: consegue alfabetizar-se porque
entende que a escrita, entre outras coisas, representa os sons da fala e entende como se estrutura esta
forma de representação. Consegue entender como se estrutura o código convencional.
O seu pensamento dá um salto: torna-se operatório, quer dizer, adquire habilidades de raciocínio
que permitem levar em conta as ações e operações efetuadas sobre os objetos e fazer relações entre
eles; levar em conta causa e efeito; levar em conta poder relacionar o todo com as partes e as partes
entre si. Desenvolve-se a capacidade de abstração, o que possibilita chegar ao conceito e à
generalização.
Isto se torna possível porque a criança obtém o domínio da noção de conservação, que é a
capacidade de perceber que um todo inicial não se altera, se houver uma modificação na
organização ou na forma de seus elementos. Por exemplo: a conservação de substância implica em
poder reconhecer que duas bolinhas de massa de modelar, inicialmente contendo o mesmo tanto de
massa, continuam a ter o mesmo tanto, se uma delas for achatada ou enrolada como uma salsicha. A
criança que ainda não domina esta noção não consegue perceber que não houve alteração na
quantidade de massa, apesar de a forma se apresentar diferente.
O que possibilita esta aquisição é que a criança vivenciou, no plano psíquico, uma transformação
ocorrida na sua relação com os pais: permanecem os mesmos pais, ela também é a mesma, mas
houve uma mudança na forma de se relacionarem e se posicionarem um em relação ao outro. Ela
tem que supor que houve transformação sem que ela perdesse tudo. A perda é de não ser mais um
com a mãe, em compensação tem que elaborar no lugar desta perda, sua própria condição de
sujeito.
Somente quando a noção de conservação faz uma referência ao relacionamento e posicionamento
da criança e seus pais, e a criança consegue representar simbolicamente isto, é que ela se torna
capaz de aplicá-la a qualquer outra situação.
Diz-nos Alicia Fernandez que apesar desta noção ser “tão óbvia para alguém maior de sete anos, ...
ela não é inata ao ser humano, nem tem a ver com a comprovação perceptiva, nem com uma
aquisição brusca, senão que se chega a ela depois de um longo caminho pessoal de construção, onde
as ações do sujeito com os objetos têm um lugar importante”. E mais adiante, acrescenta que “a esta
evidência chegará sem que interfira nenhum ensino organizado pelo adulto”.
Outro efeito importante que ocorre nas operações mentais é que a castração introduz a diferença
(diferença sexual anatômica) e com isto, a possibilidade de fazer discriminação. Este é o efeito
simbólico que a castração produz na mente da criança.
Se a criança se discrimina como sendo homem ou mulher, se discrimina como filho, ela consegue
fazer outras discriminações conceituais, entre elas a seriação (capacidade de ordenar) e a
classificação (capacidade de organização segundo um critério), noções imprescindíveis para a
generalização e para a possibilidade de formular e entender conceitos.
É certo que para a aquisição destas noções a interação com os objetos, investida pelos adultos, é
fundamental, pois é necessário que a estrutura cognitiva se desenvolva para permitir as operações
reversíveis, inerentes à idéia de conservação, e presentes na seriação e na classificação. Uma
criança que é pouco estimulada, não terá as condições cognitivas para tal. Por outro lado, de nada
adiantarão estas atividades se sua organização psíquica não tiver passado pelo processo de
representação simbólica das relações parentais.
Outra psicanalista, Maria Luiza Andreozzi da Costa, também considera que o pensamento adquire a
condição de ser operatório a partir da castração, através do posicionamento da criança como filho/a.
Segundo esta autora, a função paterna posiciona a criança numa série-filiação, colocando-a no lugar
de filho, como filho de um pai e de uma mãe. A criança se posiciona numa relação de parentesco:
percebe o seu nome que a singulariza e percebe também seu sobrenome, que a insere numa família.
Tem portanto um pertencimento.
A partir disso, adquire também a noção de inclusão de classes que lhe dará condições de entender o
sistema de numeração decimal.
Diz-nos a autora: “O significante paterno introduz a possibilidade da criança significar a diferença,
ou seja, a possibilidade dela deixar de se constituir na exclusividade e semelhança do espelhamento
do desejo da mãe, e poder constituir seu desejo na constelação do significante paterno, diferenciado
da mãe, separado da mãe. O significante paterno joga a criança fora da relação incestuosa,
introduzindo-a na cultura, na representação simbólica”.
No plano intelectual a mudança se observa pois “o significante paterno faz com que a criança
suporte diferenciações cognitivas, como seriar e classificar, envolvidas em agrupamentos, que
representam ao fim e ao cabo, a posição do sujeito diante da diferença anatômica entre os sexos. Ou
seja, sua pertinência a um grupo, sua exclusão de outro, as relações e combinações possíveis entre
os grupos formando outros, como a família, etc.”
O que a criança faz no aspecto cognitivo diz respeito à representação de seu próprio processo de
diferenciação sexual e de seu processo de constituição como sujeito de seu desejo.
Um passo importante está dado para que a inteligência possa processar todo e qualquer
conhecimento, utilizando a lógica operatória. O raciocínio adquire mobilidade para as operações
mentais. A forma como a criança pode observar e conhecer o mundo exterior ganha nova
organização, porque a criança passa a fazê-lo a partir de critérios objetivos, que podem ser
confrontados, porque obedecem a uma lógica matemática, onde causa e efeito se relacionam. Não
são mais critérios aleatórios.
O momento é propício para a aprendizagem porque, conforme vimos anteriormente, após a
resolução do complexo de Édipo, a criança entra no período de latência, onde sua curiosidade
sexual tem uma diminuição e com isto um declínio das tensões lhe permite desviar a atenção de seu
corpo e buscar satisfação em outros interesses socialmente valorizados.
Para que ela se volte para a curiosidade sobre os conteúdos da cultura, sobre o mundo a sua volta é
fundamental que a passagem pela castração, embora traumática pois recalcou o desejo incestuoso,
não aniquile o desejo de continuar querendo saber sobre a sexualidade. Porque o nada querer saber
(sobre a sexualidade) pode se atrelar a um “nada querer saber” (sobre o mundo) e desta forma
vimos que a inteligência pode se ver impedida de atuar. O desejo de saber é o motor da construção
do saber.
Bibliografia
FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Imago Editora,
Rio de Janeiro, 2.a edição, 1987.
“A organização genital infantil”, 1923, vol. XIX
“A resolução do complexo de Édipo”, 1924, vol. XIX
“Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, 1925, vol. XIX
“Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”(O pequeno Hans),1909, vol X
“O Ego e o Id”, 1923, vol. XVIII, cap.VII
“Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade”, 1905, vol. VII
AIDAR, Maria Aparecida K. “Comentários sobre as consequências psíquicas da diferença
anatômica”. In, “Freud: um ciclo de leituras”. Dep. de Psicanálise Instituto Sedes Sapientiae. São
Paulo,ed.Escuta/Fapesp,1997. Coord.Silvia L.Alonso e Ana Maria S.Leal.
BARONE, Leda M. C. “De ler o desejo ao desejo de ler”. Petrópolis, Ed. Vozes, 1998
CORDIÉ, Anny. “Os atrasados não existem”. Porto Alegre, Ed. Artes Médicas, 1996.
COSTA, Maria Luiza Andreozzi da. “A inteligência ancorada no movimento do desejo”. In Revista
Paulista de Psicologia e Educação, Ano I, vol. I, n. 3, set/dez. 1995.
FERNANDEZ, Alicia. “A inteligência aprisionada”. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
LAJONQUIÈRE, Leandro de. “De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens”. Petrópolis,
R.J., Ed. Vozes, 1992.
LAPLANCHE E PONTALIS. “Vocabulário da Psicanálise”. São Paulo, ed. Martins Fontes, 1992.
S.Freud, “A organização genital infantil”, p. 180
Ib., p. 180
Maria Aparecida Aidar, “Comentários sobre as consequências psíquicas da diferença anatômica”
p.73
S.Freud, “A dissolução do complexo de Édipo”, p.220
Sobre o Édipo em Lacan baseei-me em Leandro de Lajonquière, obra citada.
Citado por Anny Cordié, p.27
Alícia Fernandez, “A inteligência aprisionada”, p.67
Anny Cordié, “Os atrasados não existem”, p.24
S.Freud, “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, p.182
Obra citada, p.72
“A inteligência ancorada no movimento do desejo”, p.125
Ib., p.126
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As Encruzilhadas do Édipo - Instituto Sedes Sapientiae