O processo de curadoria em saúde e a construção da IV Mostra Nacional de experiências em Atenção Básica Sabrina Ferigato O termo “curador”, de acordo com o dicionário tem sua raiz no latim cur, que remete ao cuidado. O significado do substantivo latino curátoré “o que cuida, o encarregado de zelar, comissário, tutor, rendeiro, caseiro”. Em todos os significados atribuídos a essa palavra está contido o sentido de “cuidar”, “tomar conta”. Já “curadoria”, a atividade do curador, possui um significado mais específico: “cargo ou função de pessoa que legalmente administra ou fiscaliza bens ou zela pelos interesses de incapacitados ou de desaparecidos que não tenham representante legal”. Para além das definições dicionárias e etimológicas, o conceito de curadoria, que inicialmente aparece vinculado aos antiquários do Renascimento e às exposições museológicas dedicadas às Ciências, as ações curatoriais carregavam em sua essência as atitudes de observar, coletar, preservar e organizar acervos e exposições. Na segunda metade do século XX, as atividades curatoriais migraram para o campo das Artes, onde se somam à atividade curatorial ações de Comunicação, Educação e participação comunitária, produzindo novos atributos à curadoria, como o de articulação com os próprios autores e valorização da projeção social da obra. A curadoria passa a ser aplicada ao processo de organização e montagem da exposição pública de um conjunto de obras de um artista ou conjunto de artistas. Nesse sentido, a atividade de curadoria passa a incluir um importante exercício do olhar, como nos ensina Bittencout, capaz de selecionar, compor, articular e elaborar discursos expositivos, possibilitando a reversibilidade pública daquilo que foi visto e percebido. Consideramos que uma mostra de relatos de experiência, como é a IV Mostra Nacional de Experiências em Atenção Básica/Saúde da Família, não deixa de ser uma forma de exposição. Exposição do trabalho que acontece no cotidiano do SUS. Nas acepções contemporâneas de exposições de Arte, considera-se que a própria exposição já se constitui como uma obra, que tem em si uma mensagem estético-política a ser transmitida, que inclui outra dimensão da curadoria que é o processo de mediação entre a obra e o visitante. Nessa concepção, a própria mídia, o próprio meio é mensagem, como já nos ensinava McLuhan em sua teoria da comunicação. Foi pensando nisso que propusemos um novo modo para a composição da IV Mostra. Havia uma proposição ativa de transformar os modos hegemônicos de produção e os meios de socialização do conhecimento em saúde. Assim, nos colocamos as seguintes questões: o que significa olhar o trabalho do outro? Como o olhar de um curador pode trazer modificações para a composição de uma exposição? O que nos diz o olhar-curador? Inspirados por essas indagações, buscamos na IV Mostra criar uma “exposição” virtual de relatos de experiências que apresentasse ao público a “arte de cuidar” na atenção básica. O campo de exposições dessas obras se deu no território virtual da atenção básica – A plataforma da Comunidade de Práticas e no evento propriamente dito, a IV Mostra Nacional de Experiências em Atenção Básica/Saúde da Família. Entendemos que, assim como numa exposição artística uma Mostra virtual e presencial de relatos dá, a quem “assiste”, a liberdade para fazer opções e diminuir as distâncias entre aqueles que produzem e aqueles que entram em contato com a ‘obra’. Para qualificar não apenas os relatos expostos, mas o próprio processo de produção da “obra IV Mostra Nacional de Experiências da Atenção Básica”, identificamos na função curatorial um elemento significativo para operar transformações, produzir encontros potentes entre trabalhadores da rede de saúde. Para descrever didaticamente o processo de curadoria, o apresentaremos em quatro (4) etapas que na prática se intercruzam: 1. Idealização e elaboração do processo de curadoria Na IV Mostra, que pretende "amostrar" as potências e desafios da atenção básica brasileira a partir da socialização de experiências de seus trabalhadores, trabalhamos com o conceito de curadoria considerando o estado da arte do trabalho em saúde. Nossa exposição se dá no espaço físico da Mostra e na plataforma virtual da Comunidade de Práticas, um espaço virtual com a lógica comunicacional das redes sociais. Na Comunidade de Práticas todos os relatos inscritos para a IV Mostra são acessíveis online, produzindo um grande acervo de práticas passíveis de serem exploradas não apenas por uma comissão de especialistas selecionados, mas por todo o coletivo de usuários da Comunidade que são trabalhadores, gestores, estudantes e pesquisadores da atenção básica. Aqui, os curadores teriam o papel de cuidar dessas experiências, contribuir para que elas sejam relatadas da maneira mais clara, intensiva, crítica e detalhada possível. A qualificação desses relatos não se resumem a elucidação de um discurso “limpo” ou cientificamente validado da experiência, mas para além disso, nos interessava dar relevo não apenas ao sabere, ao sabor da experiência. Entendíamos que esse processo implicava numa transformação do relato, mas também dos sujeitos envolvidos nesse processo: autores, atores, curadores e leitores da experiência. Idealizamos a instauração de um processo em que, ao se depararem com a experiência do outro, os curadores pudessem, singularmente, descobrir suas potências de intervenção; ao serem questionados sobre seu trabalho, que os autores pudessem re-significar seu relato, mas também revisitar seu lugar na experiência. Ao entrar em contato com essa troca, que os leitores pudessem aprender e contribuir a partir de sua leitura sobre os casos. Com isso, buscamos ampliar a democratização na produção do saber em saúde, bem como produzir significativas mudanças nas relações de poder inerentes à formulação de eventos como esse. O referencial teórico que iluminou esse processo foi o paradigma da Inteligência Coletiva proposto por Levy, bem como contribuições de pensadores da Saúde Coletiva brasileira que estão produzindo conhecimento sobre os processos de curadoria na saúde e os territórios do SUS no ciberespaço, como o sanitarista Ricardo Teixeira. A aposta nessa forma de comunicação procurou explorar todo o potencial democrático que há nessas novas tecnologias de socialização de afetos e conhecimentos e fazer uso de seus dispositivos para qualificar a construção da IV Mostra. 2. Seleção da equipe de curadoria Para elaborar coletivamente esse processo foi selecionada uma comissão de coordenadores de curadoria composta por 20 trabalhadores multiprofissionais da atenção básica, indicada por facilitadores da Comunidade de Práticas e gestores do Departamento de Atenção Básica. Esse grupo é composto por ACS, odontólogos, médicos, psicólogos, nutricionistas, educadores físicos e fisioterapeutas com reconhecida experiência na atenção básica. Essas pessoas se reuniram em duas oficinas anteriores ao processo de seleção de curadores para pensar coletivamente o conceito de curadoria e sua aplicação na IV Mostra. Nessas oficinas pensamos quais seriam as funções dos curadores na relação com os autores dos trabalhos e como seria seu o processo de seleção. Entre outras coisas, esse processo culminou em uma chamada Pública de currículos. Tivemos um total de 566 inscrições de diferentes profissões e inserções institucionais no Sistema Único de Saúde. Desse total de inscritos, 106 pessoas foram selecionadas como curadores. Entre eles, encontram-se pessoas de todas as regiões do país, respeitando a distribuição populacional e a cobertura de atenção básica, incluindo enfermeiros, agentes comunitários de saúde, médicos, odontólogos, fisioterapeutas, psicólogos, terapeutas integrativos, assistentes sociais, entre outros. 3. Oficinas de coordenação de curadoria/curadoria Conforme descrito anteriormente, as oficinas de coordenadores de curadoria tiveram como função principal planejar, elaborar e avaliar o processo de curadoria ainda em curso. Foi realizado um total de quatro oficinas com esse objetivo. Esses momentos foram fundamentais para organizar os fluxos de atribuição dos relatos aos curadores, eleger co-responsáveis pelo andamento do processo para organizarmos estratégias de acompanhamento processual da curadoria e criar uma problematização sobre modos de atuação que se aproximavam ou se afastavam da curadoria que queríamos. Com o objetivo de ampliar ainda mais essa construção participativa foram realizadas duas oficinas com os curadores para apresentação e maturação coletiva da proposta inicial construída pelo grupo de facilitadores da Comunidade de Práticas, organizadores da Mostra e coordenadores de curadoria. Vimos nesses encontros a expressão de um movimento especial de invenção de novos modos de produzir conhecimento, cuidado e transformação em saúde. Ali, produzimos aquilo que já sabemos fazer: apresentações, plenárias, grupos de trabalho, rodas de conversa com convidados especiais. Produzimos também aquilo que experimentamos contra-hegemonicamente: cirandas, tenda do conto, dramatizações, saraus, varal de expectativas, encontros para a ampliação da potência dessa ação coletiva. Para que esse trabalho fosse menos solitário e para ampliar o potencial de trocas e composições, os curadores foram organizados em duplas de curadoria. Um conjunto de aproximadamente três duplas constituía um grupo de curadores acompanhado por uma dupla de coordenadores de curadoria. Além disso, esses grupos recebiam também o apoio próximo dos facilitadores da Comunidade de Práticas, que se distribuíram para apoiar grupos e comunidades da Plataforma. Para a comunicação do grupo de curadores foram criadas pelo menos três possibilidades: listas de e-mails, comunidade de curadoria na plataforma e página de curadores no Facebook, além das oficinas presenciais. Além disso, avaliamos que a viabilização desses encontros presenciais foi fundamental para a qualificação estrutural e logística do processo de curadoria, mas especialmente para se construir uma grupalidade entre os curadores, que teve como efeito produção de novas aproximações profissionais, o estreitamento das fronteiras geográficas, novas amizades, relações de confiança, enfim, ampliação da potência desse coletivo. 4. O processo de curadoria em ato A partir do início das inscrições de experiências realizadas via Comunidade de Práticas da Atenção Básica iniciou-se efetivamente o encontro entre curadores e autores de relatos de experiências. Esse encontro era pautado essencialmente pela singularidade de cada encontro, pela valorização da experiência do outro, pela isenção de julgamentos e avaliações morais e pela afirmação da diferença. Para isso funcionar a contento e de forma participativa, foi necessário produzir-se uma lógica de funcionamento organizada e rigorosa. A partir do primeiro contato, o responsável pela inscrição do relato teria 15 dias para interagir com os curadores, de modo a promover a interação dos curadores com o máximo número possível de relatos. Os curadores ajudariamos autores a problematizar seu texto, olhando para itens como clareza, detalhamento da experiência, adequação do relato ao eixo temático, análise crítica e altruísta, afetação recíproca, troca de impressões, de conhecimento; estimulando a qualificação do relato a inclusão de recursos como fotos, vídeos, narrativas... Para apoio da curadoria foi priorizado um número delimitado de 2.000 inscritos considerando o desejo do autor de participar do processo de curadoria, a ordem de inscrição e a distribuição regional, buscando garantir apoio a relatos das diferentes regiões do país. Assim como numa exposição artística, a capacidadede uma exposição em fazer o visitante entender seu conteúdo não é automática. O objeto material ou imaterial proposto possui propriedades que podem ser potencializadas e tudo que dele se consegue extrair é sentido, é fazer re-significar a capacidade comunicativa de um relato, de uma experiência. Com esta nova metodologia, os autores qualificam seus relatos de experiência, tanto no que diz respeito à escrita propriamente dita, quanto às formas de apresentação dos relatos, agregando novos componentes antes não descritos. O trabalho aconteceu de forma ininterrupta entre os meses de agosto e outubro de 2013, por meio da Comunidade de Práticas. Nessa cena, os curadores foram pessoas que se colocaram disponíveis para acompanhar os relatos de experiências inscritos para a IV Mostra. Esse acompanhamento foi um pôr-se ao lado, introduzindo um processo de trocas de experiências que antecedeu e extrapolou o evento em si, uma troca entre pares e entre experiências. Em diferentes campos, o conceito de curadoria tem sido apropriado e re-significado. Atrevemo-nos a experimentar esse uso no campo da saúde e das redes sociais. Temos clareza que variações do uso do conceito se operaram em relação ao campo artístico, no entanto, não se trata de uma traição do conceito, mas de usos estratégicos do mesmo, com as adaptações necessárias ao campo da saúde e da constituição de uma Mostra de experiências para mais de 10.000 pessoas que parte de uma rede social colaborativa. Uma modulação do conceito que em nossa análise, se reverte em modulações nos modos de produzir conhecimento em saúde. Compartilhamos com o modo como o campo artístico vê a curadoria algumas ideias como: a abertura para as trocas de conhecimento e socialização do saber, a função mediação, a valorização da inter-relação entre produções humanas, o desenvolvimento da capacidade de olhar. Identificamo-nos, especialmente, com a noção que remete ao cuidado e mediação. Como selecionamos curadores entre profissionais de saúde, esse trabalho de cuidar da obra do cuidador fica bem evidente. Oum processo de mediação se exerce em pelo menos três planos: a mediação entre o texto e o próprio autor que entra num novo diálogo com sua produção a partir da interferência do curador; a mediação entre a produção da dupla curador-autor e o público leitor do relato e, por fim, o plano de mediação entre o que se apresenta num relato na plataforma e como esse mesmo relato se apresentaria na IV Mostra. Apontamos que a maior parte dos movimentos curatoriais acompanhados, esse processo resultou em uma potencialização das propriedades comunicativas e expressivas que têm o trabalho em saúde, como uma construção humana imaterial. Durante esse processo pudemos encontrar algumas dificuldades e limitações. Por tratar-se de um processo inédito que estávamos inventando no cotidiano, vivenciamos alguns percalços não previstos no meio do caminho: mudanças necessárias na plataforma, descompasso entre tempos de desenvolvimento tecnológico e os tempos institucionais, a desistência de alguns atores desse processo, a dificuldade de acesso e usabilidade da internet por alguns usuários, em especial em algumas regiões do país. A potencialidade desse processo já se mostra evidente na página da Comunidade de Práticas, especialmente nas devolutivas que temos tido dos autores e curadores em relação a esse processo. O acesso à Comunidade e aos eixos temáticos da IV Mostra nos dá uma dimensão do que está se produzindo ali: redes de encontros na diferença - o encontro de cada curador singular com cada autor ou grupo de autores singulares, numa narrativa que se apresenta de modo também singular e que modula singularmente... Consideramos que esse grupo de trabalhadores da atenção básica, distribuídos Brasil afora - os curadores - estão construindo aquilo que consideramos inovador: uma experiência colaborativa de fomento à inteligência coletiva para a construção de um acervo vivo de trocas de experiências em saúde, rompendo barreiras geográficas e modificando a percepção pública do que é o SUS.