ANALISE NEUROLINGOtSTICA DE DADOS DE VERSOES PROTOCOLARES MARIA IRMA HADLER COUDRY ROSANA NOVAES PINTO (UNICAMP) ABSTRACT; Our aim is to illustrate, using data from subjects with aphasia/dementia, our current contextualised protocol, demonstrating the relevance of a language assessment which encompasses the whole of the verbal process, as well as the complementary role that metalinguistic activity can have within this approach. KEY WORDS: Afasia, dem~ncia senil, discurso, neurolingilistica. Com a anilise lingiifstica de dados esperamos mostrar a concep~ao de lingua natural em que estA assentada a Neurolingiiistica que estamos desenvolvendo na Unicamp. A situa~ao exemplar que apresentaremos ocorreu numa atividade de gropo, no Centro de Conviv~ncia de Afl1sicos (CCA), de responsabilidade de Maria Irma Hadler Condry (linglifsta e neurolinguista), Edwiges Morato (fonoaudi6loga e lingilista) e de Benito Damasceno (neurologista e neuropsic610go). Neste ano, participam do CCA a primeifa autora deste texto, duas alunas de p6s-gradua~ao em Lingiiistica (area de Neurolingiiistica), Maria Beatriz Gobby Bandini e Silvia Elaine Pereira, uma aluna de especializa~ao, Audrey Vendramini de Carvalho, e uma de p6s-gradua~ao em Neuroci~ncias (area de Neuropsicologia), Milica Noguchi. o objetivo central do CCA e 0 exercicio da linguagem em situa~oes de convfvio de portadores de varias dificuldades (sobretudo) afeisicas entre si e investigadores - que atuam na sua avali~ao e interven~ao. . Hei varios suportes metodo16gicos, que servem de elemento provocador do exercicio da linguagem no gropo: 0 trabalho com a agendaldiario de onde se tiram fatos que merecem ser contados, a mostragem de Cotos que atua no conhecimento mutuo, a vivencia de situa~es pragmaticas que faz exibir 0 usa social da linguagem e os comentarios de aprecia~ao dos participantes sobre dificuldades e resolu~oes encontradas que levam os sujeitos a conhecer e agir sobre seu deficit especffico. o exemplo que analisamos ocorreu quando da introdu~ao de um novo paciente (GC) no CCA, 0 que configurou uma situa~ao de entrevista onde se deu 0 conhecimento mutuo inicial. Esta contextualiza~ao foi colocada a GC, individualmente, e ao grupo, em sessao anterior, quando a investigadora explicou a sua dificuldade fundamental - que compromete a apreensao de t6picos - ou seja, 0 rnanejo de mecanismos enunciativos na interlocu~ao. Tradicionalmente, GC seria caracterizado como urn paciente com dificuldades de compreensao. Urn caso de Wernicke tfpico: os conteMos de SUllS respostas nao tern a ver com a pergunta que Thefoi feita. Ha, em suas repostas, epis6dios digressivos ou confabulat6rios com parafasias sernfulticase neologizantes. Como uma perspectiva discursiva de linguagem pode ajudar a entender as dificuldades de GC ? Como GC se saiu na vivencia de uma situa~ao de entrevista onde teria que aderir a urna sene de t6picos para travar urn conhecimento mutuo? 0 que seu interlocutor faz com a linguagem para ajuda-Io a lidar com sua dificuldade? Estas sac algumas das quest5es tematizadas na analise deste exernplo. Interpretamos 0 problema central de GC como de natureza enunciativodiscursiva, tentando entender 0 que esta subsumido por "dificuldade de compreensao", segundo a abordagem tradicional. Arriscamos em dizer que a afasia de GC e a das mais discursivas. GC, nos parece, tern dificuldade de incorporar 0 que 0 outro diz, na interlocu~o (e tudo de discursivo que dal decorre: dificuldades com 0 jogo de imagens entre os interlocutores e acerca do referente, com a partilha e a negocia~ao de conhecimentos previos, com a manuten~ao e condi~oes de expansao de t6picos), e aderir 80 t6pico que ele introduz. E interessante que quando entra no jogo da interlocu~ao maneja relativamente bern as regras desse jogo. Este exemplo nos mostra como a interlocu~ao pode ajudar na estruturalrao de uma situalrao tfpica de entrevista; em outras palavras, nos ajuda a entender como 0 outro pode exercer urn papel estruturador de processos de significCllraoalterados pela afasia. Esta passagem de Geraldi (1990: 19) nos ajuda a entender os fatos que tentamos analisar e explicar: No processo de compreensao ativa e responsiva, a presenlra da fala do outro deflagra urna especie de "inevitabilidade de busca de sentidos"; esta busca, por seu tumo, deflagra que quem compreende se oriente para a enuncialraodo outro. Como esta se constr6i tanto com elementos da situalrao quanto com recursos expressivos, a adequada compreesao destes resulta de urn trabalho de reflexao que associa aos elementos da situalrao os recursos utilizados pelo locutor e os recursos utilizados pelo interlocutor para estabelecer a correlalrao entre os dois prirneiros. Novarnente na imagem de Bakhtin, a significa~ao "e como urna falsca eletrica que s6 se produz quando M contato dos dois polos opostos a) INV. - Conta pra n6s 0 seu nome. GC. - Guilherme. INV. - Guilherme. GC. - Guilherme Heitor Penteado Camargo. !NV. - Ele e urn eampineiro quartoeentao! (risos) Que que signifiea isso? Ele e, ele e de familia, (estalando os dedos) de Campinas, aquelas famflias muito antigas, ne seu GuiIherme? GC. -Ah? !NV. - Daqui de Campinas, os Penteado Camargo, tem ate ma, n300tern? E eampineiro, nao e? GC. - E, do ... !NV. - De tradi~ao. GC. - meu pai '" do meu avo. !NV. - Entllo, pai, avo. Tem roa com esse nome, nao tem? Nao tem ma com esse nome, Penteado Camargo? Rua. GC. - L~ de easa? !NV. - Nao. Rua, nao tern uma roa. GC. - tem Heitor, Heitor '" !NV. - Penteado Camargo. GC. - Penteado, meu avo. !NV. - Pois e, ~ vendo, e eampineiro. ER. - Ela t~ faIando se tem ma af? !NV. - Tem, tern nome de ma. GC. - Heitor Penteado. !NV. - Heitor Penteado tambem e seu parente, ne? Af, t~ vendo? E eampineiro quartocentllo. GC. - Heitor e meu avo. !NV. - Avo por parte de mae ou por parte de pai? GC. - Ele e da minha mae. !NV. - Mae, avo materno. GC. - Agora, 0 que tem agora de anivers&io e que ... eu, eu ouzo (ou~o) todo mundo, assume tudo ... INV. - 0 senhor entende tudo. GC. - Mas as pessoas eu, eu eonh~o de todas as pessoas. Conhe~o tudo ... mas eu ou~o tudo ... !NV. - nao eonsegue '" GC. - Mas aqui (mostrando 0 Iugar da eimrgia, na parte posterior da eabe~a), aqui eabe~a, aqui ... !NV. - T~ dWell pra falar. Mas esse gmpo vai ajudar muito 0 senhor. V&ios integrantes do gropo juntos. - Vai sim. 6, vai GC. - Agora fieou diffeil ... pra saber. As veres eu tenho eincofilhas, eu tenho. !NV. - N6s, n6s vamos fazer perguntas pro senhor agora; nao conta tudo senao eIes nao tem 0 que perguntar (risos). Ta? A investigadora apresenta a GC os pacientes do gropo pelo nome e diz a eles que cada urn vai fazer uma pergunta a GC. INV. - 0 que voc~ gostariam de saber de uma pessoa que ta vindo pela primeira vez e que vai fazer parte do grupo. EF .• (portador de afasia motora, escreveu "profissao"; a investigadora 0 ajuda a formular a pergunta) INV. - Entao, vamos la. (falando pausadamente junto com EF) Qual e a sua profissao? (indo na dir~ao de GC) Qual a sua profissao, seu Guilherme? (...) Qual que e a sua profissao? 0 que que 0 senhor fazia como profissao? GC. - Minha escola? INV. - Nao. Que que 0 senhor e de profissao, qual a sua profissao? GC. - Ah, eu sabia antes. INV .. Antes, agora 0 senhor esta aposentado, mas 0 que 0 senbor fazia, qual e o seu trabalho? GC. - Eu era caixa, a Caixa Econ6mica de Salvaga (ininteligivel). INV. - Trabalhava na Caixa Econ6mica ." Federal? GC. - Nao, na Caixa de Carn, de Sa, de Sao Paulo. INV. - Caixa Econ6mica Estadual. GC. - S6 que era em Carnpinas. INV. - Estadual? GC. - Eu era 0 delegado naquela epoca. INV. - Delegado da Caixa Econ6mica Estadual. GC. -E. l) INV. - Agora uma outra pergunta. Entao 0 senhor EF perguntou sobre a profissao e cada um ja vai pensando numa pergunta, M? Seu OP tem uma pergunta ja? OP. - (portador de agrarnatismo) 0 senhor mora onde? GC. - Se eu sou ... INV. - Fala mais alto: 0 senhor mora onde. OP. -Onde? GC. - Guilherme. INV. - Nao. Onde 0 senhor mora? OP. - Dnde? INV. - Onde 0 senhor mora? GC. - Aqui de Campinas. INV. - Hum. hum. GC. -Mas ... INV. - Mas que lugar? OP. - No Centro? GC. - No Centro, aqui perto da Ripica. INV. - Perto da Ripica de Campinas. No segmento (a), 0 fate de GC ter dado seu nome completo, 0 nome que ele tem e a sua figura de "gentlemen" - longilfuea e elegante - levaram a investigadora a configura-Io como "campineiro quartocentao", explicando ao grupo 0 que seja isto. E de se notar as inumeras vezes que GC consegue prosseguir respondendo de acordo com o t6pico em questao (men pai, do meu ava, Heitor, Penteado e meu ava, Heitor Penteado, Heitor e meu ava, ele e da minha mae). Raras vezes, porem, GC tem dificuldades em entrar na expansao do t6pico que a investigadora propoe (Ia de casa?). Isto mostra que GC quando consegue entrar na proposta discursiva do interlocutor maneja bem a interlocu~ao. Sem as coordenadas da atividade enunciativa (0 conjunto de referencias articuladas pelo trifurgulo· eu - tu - aqui - agora, de acordo com Maingueneau (1987/89), seu discurso perde a dire~ao, 0 que e urna porta de entrada para epis6dios digressivos e ate confabulat6rios., E interessante notar que, no seguimento (b), GC muda de t6pico sem a minima concessao a seus interlocutores, introduzindo algo que nao faz sentido, para fazer sentido logo depois: quer tematizar suas dificuldades "Agora, 0 que tem agora de aniversario e que ••." que tem algo de confabulat6rio, mas que acaba por introduzir outro t6pico - falar de si: "eu, eu ou~o todo mundo", que e aceito pelo interlocutor. E fundamental que a investigadora intervenha quando GC introduz 0 t6pico sobre as filhas.- emendando 0 que nao tern rela~ao - no sentido de retomar as regras do jogo de uma situa~iio dial6gica de entrevista a partir do que responde-se sobre 0 que se e perguntado, e nao se fala sem dire~ao. No segmento (c) a dificuldade de GC de apreender 0 t6pico "profissao" indica ~.investigadora uma possibilidade de interven~ao, embora a n·.sposta de GC eoloque duas possibilidades de interpreta~ao: 0 "antes" remetendo ao t6pico anterior que tematizava suas dificuldades decorrentes da lesao e 0 fato de que "ele sabia antes" ou a oposi~ao antes da lesao I agora, que a investigadora salienta (antes trabalho; agora aposentado) para leva-Io a aderir ao t6pico. Ele entra na proposta discursiva, responde ao interlocutor (Caixa Economica de Sao Paulo) e, ainda, complementa especificando (s6 que era em Campinas; eu era 0 delegado naquela epoca). No segmento (d), observa-se, de novo, urna dificuldade diante de urna mudan~a de t6pico. Uma pergunta abre possibilidades desordenadas, e muitas, de resposta. Ai reside 0 papel que 0 interlocutor pode exercer em situa~oes efetivas de uso social da linguagem, incorporado por OP quando de seu pedido de especifica~iio - mas que Iugar - quando GC responde aqui de Campinas. E interessante notar as condi~oes discursivas em que se deu a determina~ao do processo de significa~ao: 0 fato de OP ter dito Centro orienta GC para dar 0 nome do BairrolHfpica. 0 Centro e longe da Hfpica, mas delimita urn bairro como ela e a Hfpica nao e "aqui perto" da Unicamp, onde estAvamos, mas perto do bairro em que ele mora. A dificuldade com a especifica~ao deitica indica, pois, uma dificuldade de inscrever no enunciado indicadores referentes a situa~lIode enunciayllo e ao sujeito atuando como locutor e/ou enunciador (ver Ducrot, 1984), au seja, uma dificuldade de especificar - na atividade enunciativa - onde se situa 0 bairro em que mora (perto da Hfpica de Campinas). A esse respeito, nos diz Maingueneau: Os enunciados de uma lingua sac organizados a partir deste "foyer" que e a atividade enunciativa. Em outros termos, 0 acontecimento enunciativo singular nao e exterior ao sistema (1991: 108). Para finalizar, vejamos como prossegue a entrevista interlocu~ao com outros pacientes e com a investigadora. e como GC atua na SM. - (com dificuldades fonetico-fonoI6gicas) Tern filho? INV. - Tern filho? 0 senhor tem filho? GC. - Tenho cinco filhas. INV. - Cinco meninas? CG. - Tenho cinco: tenho tres casada e tres ... INV. e duas ... tduas solteiras. GC. solt ... INV. - Cinco filhas, ta. GC. -E. INV. - Seu PF, pergunta 0 nome da mulher dele. PF. - (com dificuldades semAnticas leves) 0 nome da sua mulher, qual, como equee? GC. - Que tern? PF. - Qual 0 nome da mulher do senhor? 0 nome dela, 0 nome da mulher do senhor (levantando-se e mostrando a alian~a de casado). GC. - Da mulhere Maria, Maria Ines. PF. - Maria Ines? GC. - Maria Ines. PF. - Maria lnes, 6 (olhando para a investigadora). INV. - Hum, hum. Fica apenas apontado neste texto como 0 uso social da linguagem convoca a utiliza~ao de "recurs os expressivos" que tocam as dificuldades lingtiisticas especfficas a cada sujeito que acompanhamos, 0 que motivou a introdu~ao da entrevista na versao protocolar . DUCROT, O. (1984/1987). 0 dizer e 1987. 0 dito. Tradu~o de Eduardo Guimaraes et aI. Campinas: Pontes, MAINGUENEAU, D (1987/1989) Novas Tendencias em AnliJise do Discorso. Campinas: Pontes. __ . (1991) L' Analyse do Discoors. IntrQdoction au Lectures de I' Archive. Paris: Hachette.