A MISSÃO É SIMPÁTICA Dança das abóboras texto Norberto Louro foto Zé Oliveira Quando alguém tira carta de condução, não é raro ouvir-se dizer que mais um perigo salta para a estrada. Como é frequente ouvir-se afirmar, alto e bom som, “de mim não tenho medo, o pior são os outros”. Já não me lembro bem, mas confesso que eu próprio o disse. E se o não disse pensei-o, quando obtive o tal documento. Ironia da sorte! Tive, até agora, dois ou três acidentes de uma certa envergadura. Mas em nenhum deles houve outros intervenientes a não ser eu sozinho! Só então comecei a ter medo de mim mesmo. Acontece a todos! Embalados por pretensas pressas, por vezes, carregamos no acelerador mais do que o devido. Numa dessas alturas em que o fiz, recordo o que me dizia a minha mãe: “Não é bom sair a caminhar para a noite. Sai de madrugada, que agora estás cansado”. Mesmo assim, meteu-me no carro umas abóboras para fazer doce e, embora parecendo pressentir qualquer coisa, deixou-me partir. Tinha estado alguns dias a preparar a Missa Nova de um colega e, no dia seguinte, tinha quatro ou cinco horas de aulas no seminário. Era Inverno e chovia que Deus a dava. As estradas não eram como são agora. Quando da minha terra se ia a Abrantes, que ficava a quarenta qui- lómetros, diz-se agora, com um certo exagero, que a gente se despedia da família toda. Para mim, naquela noite, podia ter sido pela última vez. Como foi, eu não sei. E quem é que sabe? As coisas são tão rápidas que não dá para compreender. Só me lembro confusamente de abóboras a dançar à minha volta. Ao embater numa oliveira, o pára-brisas saltou, eu fiz uma parábola perfeita por cima do volante e caí de costas, meio atordoado, numa terra lavrada de recente. Sangrava da testa por ter roçado no espelho ao ser projectado. Uns militares levaram-me para o hospital onde, por precaução, passei a noite a pensar como é que aquilo podia ter acontecido. No dia seguinte, tive alta. Sinais físicos do desastre, apenas um penso na testa. Com uns colegas que vieram socorrer-me, fomos ao lugar do acidente. Uma dúzia de carros estava já parada na berma da estrada e um magote de gente contemplava o sucedido fazendo comentários dos mais disparatados. Chegaram mesmo a perguntar-se quantos é que não teriam morrido! Que tinha sido eu o único interveniente no caso e ali estava, vivo e salvo, é que ninguém queria acreditar, quando o disse. E davam-me os FÁTIMA MISSIONÁRIA 33 Edição LIII | Junho de 2007 parabéns por tamanha sorte observando com simpatia que, por ser padre, os anjos tinham estado do meu lado. Eu é que nunca mais esqueci aquela cena do carro abraçado à oliveira, com o tejadilho a cortar o assento atrás de onde eu ia sentado, pedaços de abóbora espalhados pela terra lavrada e aquela gente a falar de mim que já pensavam morto. Tal e qual como faço ainda agora e fazemos todos, quando nos deparamos com casos como o meu. A história infelizmente repete-se e parece não haver maneira de lhe pôr cobro. Tudo talvez porque pensamos que a culpa é dos outros. Meses depois, ao passar por ali, constatei com alegre surpresa que, onde podia estar uma cruz a sinalizar a minha passagem para o além, na tal terra lavrada, onde eu caíra sem me magoar, nascera uma horta de abóboras já em flor. Louvado seja Deus!