CARTA ao Irmão FRANCISCO – doc. 197 A. Texto Paris, 23 de junho de 1838. Do Seminário das Missões Estrangeiras, rue du Bac, 120. Meu caro Irmão: O cargo que ocupais em l’Hermitage certamente não causa inveja a ninguém. Como proceder, me perguntais, visto que não tivestes a intenção de alcançar tal posto? Procurai simplesmente cumprir bem vosso dever, na certeza de que Deus realizará o que não puderdes fazer. Viajarei amanhã para Saint-Pol, a pedido do pároco e do prefeito local, para vistoriar a casa destinada aos Irmãos. Estamos condenados a fundar esta escola. Tinha esperanças de que poderíamos ser dispensados, mas é impossível por causa da posição em que estamos. Desejais saber, certamente, como está o nosso processo. Infelizmente sei muito pouco ou, se preferis, sei quase tudo. Aquilo que para mim era desconfiança, hoje é certeza. Estou muito aborrecido mas não desanimado. Guardo sempre grande confiança em Jesus e Maria. Obteremos a autorização, não duvido, mas desconheço quando será. É de máxima importância cumprirmos o que Deus quer, isto é, fazermos o possível e deixar agir a divina Providência. Deus sabe melhor do que nós aquilo que é bom e que nos convém. Tenho convicção de que alguma demora não nos será de todo prejudicial. Fiquei muito aflito com a notícia da morte do bom Irmão Fabien e ao saber que a doença do Irmão Justin é incurável. Bendito seja Deus! Que Jesus e Maria o ajudem sempre mais. Percebeis tanto quanto eu que, para o próximo ano, não teremos possibilidade de abrir novas comunidades. Antes, precisaremos suprimir alguma. Não prometais nada a ninguém. Recebei os noviços de Marlhes, a respeito dos quais me escrevestes. Sabeis como são preciosos para nós, sobretudo se estão isentos do serviço militar; recebei de cada qual o que puderem dar. Com relação às reformas da casa de Grange Payre, atenho-me ao que Philipe decidir. Entretanto eu gostaria de ver antes a parede que pretendeis derrubar. O que me deixa preocupado é o fato de que a nova parede não estará seca na ocupação da casa. Se for possível manter essa parede, será melhor. Quanto a Marcellin Lachal, não sei o que opinar. Não conheço muita coisa a seu respeito mas penso que ele agiu mal ao deixar o seu patrão. Tenho boas razões para incluir o Irmão François-Régis neste novo grupo que deve partir para as missões. Quanto ao Irmão Marie-Augustin irá em outra leva. Aguardai a minha volta para admitir Jutier e Blanchon no noviciado. Quanto ao meu sobrinho, deverá apresentar-se de espontânea vontade e com o consentimento dos pais. Não deis paz nem trégua ao Irmão MarieThéodore enquanto não resolver o seu problema; cada oito dias, ao menos, ele deverá apresentarvos o bilhete de ida ao confessor. Neste últimos dias, em vez de melhorar, minha saúde está pior. As viagens me fazem sofrer. Ao voltar de Saint-Pol penso enviar-vos nova carta por intermédio do sr. Bati, que está em Paris há uma semana, a não ser que eu regresse com ele. De qualquer forma, planejo estar em l’Hermitage dentro de quinze dias. Não esqueçais de dizer aos Irmãos quanto eu os amo e quanto sofro por estar longe de todos. Champagnat B. Contexto: Champagnat “servo sofredor” 1. Conservam-se quinze cartas do Fundador endereçadas ao Irmão Francisco, todas escritas de Paris. Lá, enquanto Champagnat dava andamento ao processo da legalização do Instituto, em l´Hermitage o Irmão Francisco o substituía na direção da obra. 2. Durante a primeira estada em Paris, agosto e setembro de 1836, Champagnat escreveu uma vez ao Irmão Francisco; na segunda permanência, de janeiro a inícios de abril de 1838, escreveu-lhe dez cartas; finalmente, na terceira vez, meados de maio a fins de junho de 1838, endereçou-lhe outras quatro. 3. Infelizmente, das cartas do Irmão Francisco dirigidas ao Padre Champagnat, nenhuma se conservou. Mas elas existiram. Atesta-o o “diário de Paris”, caderno onde Champagnat anotava as principais ocorrências. Aliás, as cartas dirigidas ao Irmão Francisco são quase todas respostas ou apreciações de questões levantadas por este último. 4. A carta que vamos analisar é a última que ele dirigiu ao Irmão Francisco e tem a data de 23 de junho de 1838. Como as demais, ela aborda temas variados: admissão de postulantes e de noviços, reformas e construções, indicação de Irmãos para a Oceania, apreciação sobre pessoas, novas fundações, procedimentos com determinados Irmãos, notícias sobre o processo em Paris etc. De permeio com isso tudo, transparece a figura sofredora e cheia de fé de Marcelino. É pelos ângulos da dor e da confiança em Deus que nos interessa estudar o texto da carta. 5. Encontramos aqui aspectos do perfil espiritual de Champagnat que, de certa forma, é semelhante à figura do ”servo sofredor” descrito por Isaías (cfr Is cap. 52 e 53). Aparecem os sentimentos de Champagnat num momento em que é chamado a viver o aparente fracasso. O texto mostra aceitação resignada do sofrimento redentor, revela confiança em Deus e prática da submissão à vontade do Pai. É a ascese do grão de trigo que aceita morrer para dar vida. – “Sei que depois de mim as coisas irão melhor. Tenho certeza de que obteremos a legalização do Instituto, mas não sei quando será.” 6. É a última carta que Champagnat escreve de Paris. Ele se dá conta de que fracassou, após seis meses de negociações e de contatos com as autoridades governamentais. Tem certeza de que foi ludibriado, pois sabe agora que, desde o início, não tinham a intenção de autorizar o Instituto. As reiteradas exigências de novos documentos e prazos tinham sido tática calculada para levá-lo ao cansaço e à desistência. 7. Champagnat encara a circunstância de ter que regressar a l´Hermitage de mãos vazias. Sofre com isso pois não ignora quanto os Irmãos confiavam nele e quão necessária lhes era aquele reconhecimento legal. Está ciente também de que deverá enfrentar críticas dos colegas sacerdotes. “Champagnat é padre do interior, de modos rudes. Para lidar com o governo e obter resultados positivos deveria ter ido a Paris pessoa mais qualificada.” (Pe. Chanut, em Origines Maristes, tomo II, doc. 428). 8. Ao meditar com sensibilidade os vários parágrafos, tem-se a impressão de que se está diante de página musical escrita em tom menor. Porém, ao mesmo tempo, há lampejos de fé e de confiança em Deus, que são acordes alegres, clarões que desanuviam o pesado horizonte de sofrimento e dor. C. Comentários 1. CHAMPAGNAT SOFRE: a) Sofrimento por causa da dor de outros: . Sente as dificuldades do Irmão Francisco, que se queixa do cargo, e aconselha-o a sacrificar-se: - “Faça o possível; Deus fará o resto.” . Sofre com a doença incurável do Irmão Justin: - “Fiquei aflito com esta informação.” b) Sofrimento por causa da obra como tal: . Penaliza-se pela necessidade de nomear Irmãos para a cidade de Sain-Pol, lugar extremamente afastado de l´Hermitage: - “Estamos condenados a abrir esta escola.” . Aflige-se com a possível necessidade de fechamento de algumas escolas: - Precisaremos suprimir...” . Preocupa-se com o conforto dos Irmãos na casa que seria reformada em Grange Payre: - Temo que a parede não esteja bem seca...” c) Sofrimento por motivos pastorais: . Preocupa-se com a falta de dados para decidir-se sobre Marcellin Lachal, um possível candidato que se apresentou em l´Hermitage: - “Não sei o que opinar.” . Decidir sobre quais Irmãos enviar às missões da Oceania não é fácil: - “Tenho boas razões para ...” . Aflige-se com a situação espiritual do Irmão Marie-Théodore: - “Não deis paz ...” d) Sofrimento com o processo, em Paris: . Enerva-se com a lentidão da burocracia: - Sei muito pouco ou, se preferis, sei quase tudo.” . Desilude-se com a falta de sinceridade dos políticos: - O que para mim era desconfiança agora é certeza.” . Sente amargura por ter sido ludibriado: - “Estou aborrecido, mas não desanimado.” e) Sofrimento físico: . Desabafa sobre a doença: - Minha saúde piorou.” . Queixa-se da fadiga: - “As viagens me fazem sofrer.” . Lamenta-se por estar afastado do seu querido Hermitage: - “Sofro por estar longe ...” 2. CHAMPAGNAT CONFIA a) Confiança na ação de Deus: - “Deus realizará o que não pudermos fazer.” – “Façamos o nosso possível e deixemos agir a Providência.” – “Obteremos esta autorização quando Deus quiser.” b) Confiança na bondade e na sabedoria de Deus: - “Deus sabe melhor do que nós o que é bom e o que nos convém.” – “Esta demora não nos será prejudicial.” c) Confiança habitual: - “Guardo sempre grande confiança em Jesus e Maria.” – “Que Jesus e Maria ajudem sempre mais.” d) Confiança nos candidatos e funcionários: - “Recebei os noviços de Marlhes.” – “Deverá apresentar-se de espontânea vontade.” - “Atenho-me ao que Philipe decidir.” e) Confiança em si mesmo: - “De qualquer modo, planejo estar de volta dentro de quinze dias.” O aparente “fracasso” de Paris não o deixou arrasado. Volta a l´Hermitage de mãos vazias, mas de cabeça erguida: - “Bendito seja Deus!”