Sumário
Introdução .....................................................................................
Você pode ter nascido para a medicina... Ou não! ..............................................
É possível passar no vestibular/ENEM. Acredite! .................................................
A transição escola-faculdade é especial .............................................................
O medo de sangue e da morte pode ser vencido .................................................
O primeiro contato com o paciente: momento de ansiedade ...............................
A medicina tem momentos marcantes e histórias inesquecíveis ...........................
A formatura: um momento sem igual ................................................................
A definição da especialidade é uma etapa importante: qual caminho seguir? ....
A prova de residência: um desafio ainda maior ..................................................
A residência médica é um caminho árduo e difícil, mas recompensador .............
A medicina tem momentos marcantes e histórias inesquecíveis (parte II) ..........
O fim da residência: agora você cuida do seu próprio caminho ..............................
Retorno financeiro não é tudo isso que se espera ...............................................
Retorno emocional é muito mais do que se espera .............................................
A medicina também tem um lado podre ............................................................
Ainda vale a pena fazer medicina? Depoimentos de colegas médicos ................
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A medicina tem momentos marcantes e
histórias inesquecíveis
A
s histórias aqui apresentadas foram colhidas ao longo dos
anos de faculdade, não necessariamente vivenciadas diretamente por mim. Os nomes envolvidos, assim como em todo o livro, foram modificados em respeito aos personagens. O intuito de
apresentar essas histórias é mostrar um pouco do lado mágico da
medicina. Coisas que não se compra com dinheiro. São histórias
que emocionam, mas também histórias que divertem.
A maioria das histórias foram vivenciadas ou registradas durante o internato médico. O internato corresponde aos dois últimos anos da faculdade de medicina, onde o estudante passa a integrar a equipe do hospital no cuidado do paciente, sob supervisão
de profissionais de áreas específicas. O internato, geralmente, é o
período em que ocorre o aprofundamento nas grandes áreas, como
pediatria, clínica médica, clínica cirúrgica, ginecologia e obstetrícia. Algumas escolas médicas incluem estágio em unidades de psiquiatria e em outras áreas mais especializadas também.
Considero o internato como os melhores anos da faculdade médica. Foi o momento em que mais aprendi, em virtude do
modelo de discussões teórica e experiência prática. É, sem dúvida, um dos momentos mais esperados do acadêmico de medicina.
Claro que há alguns pontos negativos, que devo trazer, antes dos
relatos que seguem. Talvez o principal, e que não passa de mero
aborrecimento, é o fato de você estar entrando em ambiente onde
os funcionários já se conhecem e têm um vinculo, de forma que o
aluno pode se sentir um estranho no ninho. Alguns funcionários,
inclusive, tratam o interno de forma rude e grosseira, mas esses
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Ser ou não ser médico ?
representam a minoria, sem dúvida. Outro ponto é que aqui que
começam os plantões na vida do jovem médico, que podem ser
bastante desgastantes. No mais, são ótimas experiências e aprendizados que ficam para sempre.
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Eliana tinha por volta de 36 anos, quando passei a ser o interno responsável pelo seu caso. Estava internada na enfermaria de
obstetrícia há algum tempo, tentando evitar um desfecho negativo
para uma gestação muito desejada. Era a sua nona gestação. Isso
mesmo, a nona. No entanto, em virtude de uma condição conhecida como síndrome do anticorpo antifosfolipide, a qual aumenta
o risco de aborto e parto prematuro, Eliana ainda não tinha filhos.
Eliana tinha ainda o diagnóstico de diabetes gestacional. Ela vinha
lutando pelo sonho de ser mãe havia algum tempo e um ar de frustração era notável, quando ela falava sobre o assunto.
Dado o histórico da paciente, a equipe médica optou por interná-la por ocasião da 28ª semana de gestação. Ela seria acompanhada de perto, com exames e avaliações do bem estar fetal regulares. Semana a semana, o feto mantinha o bom crescimento, mas
a dificuldade em se manter o controle da glicemia (a grosso modo,
nível de açúcar no sangue) era crescente. Além disso, a placenta
(estrutura de fundamental importância para a manutenção da vida
do feto) dava sinais de envelhecimento.
O ideal é que o parto ocorra entre a 38ª e a 40ª semana. Nesse
sentido, cada semana em que se consegue manter o feto saudável
dentro do útero é fundamental para o amadurecimento. Na verdade, cada dia de gestação é precioso, sendo considerado uma vitória
para o feto. A equipe precisaria fazer de tudo para manter o feto
saudável pelo tempo necessário e evitar um parto prematuro. Mas
não se poderia aumentar o risco para a mãe e para o feto.
As discussões sobre o caso sempre giravam em torno dessa
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João Bourbon II
corda bamba. Manter o feto o máximo possível era preciso, mas
colocar a mãe em risco não seria prudente. A situação era delicada,
mas dia após dia, comemorava-se. Com o regime de cuidados, feto
e mãe se mantinham sob controle. Na 32ª semana, foi administrado um medicamento com o intuito de acelerar a maturação dos
pulmões fetais. O objetivo é diminuir o risco de intercorrências
causadas pelo pulmão imaturo e a chance de desconforto respiratório para o recém-nascido. Após essa etapa, uma parte da equipe
queria interromper a gestação. Outra parte, era veementemente
contra. Cada dia seria importante. O consenso foi por esperar até
a 37ª semana.
Eliana estava aflita. Nunca uma gestação sua havia chegado tão
longe e ela tinha receio de que a recomendação por aguardar a maturação fetal custasse a vida do seu bebê.
− Doutor, eu “tô” com muito medo! Não quero que ele morra
também... – Afirmava com os olhos marejados.
− Eliana, tente manter a calma. A equipe médica é muito experiente. Tenho certeza que vai dar tudo certo. − Eu tentava minimizar, apesar de compartilhar do seu receio.
Dia após dia, a gestação foi progredindo favoravelmente. O
tão esperado dia havia chegado. Como a gestação seria interrompida, o parto seria cirúrgico (isto é, parto cesariano). Estava em
aula, quando me avisaram que o procedimento iria começar. Pedi
licença ao professor e sai esbaforido. Não poderia perder aquele
momento. Cheguei, segurando a máquina fotográfica da paciente
(ela havia me incumbido de fotografar o grande momento), e a
cirurgia havia acabado de começar. Em poucos minutos, a criança
seria retirada.
− Está tudo bem. − Eu ia tentando informar uma apreensiva
paciente com a visão limitada pelos campos (panos) cirúrgicos que
a cobriam.
Ela se mantinha apreensiva. A única coisa que a acalmou foi o
tão esperado choro do bebê. Ela não precisou falar mais nada. As
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Ser ou não ser médico ?
lágrimas desciam do seu rosto, sem o mínimo esforço. O choro era
espontâneo, sincero. A pureza daquele momento é algo difícil de
traduzir em palavras. O olhar da mãe dizia tudo. Ela havia esperado muitos anos por um momento como aquele. Muitas gravidezes
acabadas da pior forma. Quando o pediatra trouxe a criança para
perto de Eliana, só duas palavras importavam no mundo. E ela
apenas as articulou, sem emitir qualquer som.
− Meu bebê!
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O professor Carlos da ginecologia e obstetrícia era muito querido pelos alunos. Sabíamos que ele tinha uma maneira especial
de lidar com o paciente, além de uma vasta experiência na área e
conhecimento indiscutíveis. As suas aulas, por este motivo, eram
aguardadas com ansiedade. Foi em uma dessas aulas que ele compartilhou conosco a seguinte história.
“Eu tinha uma paciente chamada Carla que queria muito ter
um filho. Quando ela me procurou a primeira vez, já tinha uma
história de 2 abortos prévios e gestações com duração inferior a 20
semanas. Mas ela não desistiria. Estava grávida novamente e queria
evitar que a história se repetisse. Após uma conversa bem conduzida, um exame físico minucioso e alguns exames complementares,
chegamos à conclusão de que o caso da paciente poderia se tratar
de incompetência istmo-cervical. Em outras palavras, e simplificando muito a condição, isto significa que o colo do útero da paciente não tem a função normal e se torna incapaz de manter o feto
dentro do útero durante toda a gestação. O que acontece é que o
colo frágil acaba por se dilatar e facilitar a ocorrência de abortos.
Para tentar resolver o problema, é necessário que o obstetra faça
um procedimento conhecido como cerclagem do colo do útero,
que nada mais é que um reforço com fios cirúrgicos. Assim, o colo
do útero reforçado se torna capaz de manter o feto vivo por mais
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João Bourbon II
tempo, até que esteja maduro para o parto.”
“Era a medida a ser tomada para o caso. Portanto, combinei
com a paciente que, por volta da 14ª semana de gestação faríamos o
procedimento. Ela entendeu e concordou. Assim foi feito. O procedimento transcorreu sem dificuldades. Ela passou pela 20ª semana
bem. Na 21ª não havia sinais de intercorrência. Mas por volta da
24ª semana de gestação ela me ligou. Era de madrugada, por volta
de 2 horas da manhã. Acordei com o toque do telefone (na época ainda o celular não era tão utilizado e a paciente me ligou em
casa). Era Carla e ela chorava muito. Fiquei apreensivo e passei a
perguntá-la:
− O que aconteceu? Perdeu o bebê?
− Não, não perdi – respondeu sem parar de chorar.
− E então o que houve? Está tendo sangramento?
− Não, não estou.
− Cólicas então?! Está tendo cólica forte? Febre talvez?
− Não doutor, não é nada disso!
− Então o que aconteceu?
− Nada de errado, doutor. Só estou ligando para agradecer...
Ele mexeu... Eu senti o bebê mexer, doutor! Muito obrigado! Foi a
melhor coisa que já senti na vida...
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Fui apresentado ao Dr. Miguel, um conhecido cirurgião geral
da cidade, em um dos hospitais que estagiei. Tratava muito bem os
pacientes e adorava receber os alunos. Uma combinação excelente
para o aluno que está em busca de novos conhecimentos. Muitos
colegas desenvolveram habilidades importantes para o pronto-socorro sob sua tutela.
Além de muito bom profissional, o Dr. Miguel costumava ser
muito brincalhão. Uma certa vez, por exemplo, ele resolveu chamar os pacientes para atendimento como se fosse o Silvio Santos
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Ser ou não ser médico ?
chamando os jurados para o show de calouros. O auge da brincadeira ocorreu quando o próximo paciente se chamava Pedro. Ele
chamou:
− Pedrooo de Lara lá! Larara rá rará rará rará...
E fez questão que todos cantassem com ele.
− Vamos lá, todos juntos!!
Não teve jeito, todos os estudantes tiveram que entrar na brincadeira e aderir à cantoria. Foi bem divertido e o paciente já entrou
com outro espírito para a consulta.
Esse é o espírito do cirurgião-geral, Dr. Miguel. Um belo dia,
esse espírito brincalhão entrou em ação em pleno centro cirúrgico.
O paciente estava sendo submetido a uma laparotomia exploradora. É rotina contar o número de compressas que foram abertas para
uso e comparar com o número final após o procedimento, com o
objetivo de prevenir esquecimento dentro da cavidade abdominal.
A cirurgia foi feita de forma rápida, sem qualquer intercorrência.
“Final de cirurgia, vamos fechar. Conte as compressas”, Dr. Miguel disse para o auxiliar. Haviam sido abertas 20 compressas para
uso, mas ao final da cirurgia, o auxiliar só conseguia encontrar 19.
“Doutor, a compressa deve estar lá dentro”, disse o auxiliar apreensivo. “Rapaz, não é possível. Conte de novo!”, solicitou o médico.
Dr. Miguel fez o auxiliar contar umas três vezes e o número sempre se repetia: 19! Quando o auxiliar já estava desesperado, o Dr.
Miguel foi retirando de dentro da sua mão fechada lentamente a
compressa de número 20, enquanto dizia entre gargalhadas:
− Como em um passe de mágica... Tchã nan!!!
Não precisa dizer que o auxiliar não ficou muito satisfeito, mas
sorriu, aliviado.
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Estágio em hospital psiquiátrico faz parte do ciclo de um internato. Pode ser bem divertido ou angustiante, dependendo das
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João Bourbon II
experiências vivenciadas.
Eu vivi situações que retratam os dois extremos durante o meu
estágio em um grande hospital psiquiátrico.
Um dos professores, por exemplo, costumava levar os pacientes
mais compensados e entrevistá-lo para toda a turma. O objetivo é
mostrar como deve ser feita a abordagem ao paciente psiquiátrico
e, obviamente, discutir o caso clínico em si e as diversas formas de
tratamento, além do prognóstico.
Em uma dessas reuniões clínicas, a paciente chamava-se Amanda. Amanda era uma paciente com diagnóstico de esquizofrenia.
O que chamava a atenção, e isso pode fazer parte do quadro, é a
eloquência com a que a Amanda se expressava. Ela usava ótimos
argumentos para fundamentar as respostas que dava ao professor,
a cada questionamento. Nós, alunos, já estávamos começando a
acreditar que havia algum mal entendido ali. Para nós, até aquele
momento, aquela mulher era completamente normal. Isso começou a mudar à medida em que o professor passou a se aprofundar
no caso:
− Amanda, por que você está aqui?
− Ah, perseguição! Perseguição, né?!
− Mas quem você acha que a está perseguindo? − o professor
quis saber.
− Minha mãe, doutor. Aquela mulher é uma louca.
− Explique melhor, Amanda. Explique para os alunos o que
aconteceu que fez você chegar aqui...
− Ah, doutor, veja bem. Eu trabalho, ganho o meu dinheiro e
eu tenho a minha casa. Um belo dia, eu cheguei em casa e vi que os
móveis estavam todos velhos. Fiquei com raiva, comecei a quebrar
tudo. Porque, pense bem, se o móvel é meu eu posso fazer dele o
que quiser não é verdade?!
− Sim, continue.
− Então eu quebrei mesmo. Aí, na hora, minha mãe chegou
em casa. Ela queria brigar comigo. Eu fiquei com mais raiva ainda
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Ser ou não ser médico ?
e resolvi tirar a roupa. Na hora da raiva, saí sem roupa mesmo e
gritando pela rua!
− Ah, agora deu para entender Amanda. Mas você acha que sua
mãe está errada?
− Completamente, doutor! Eu quero que ela queime no inferno!!!
Dizendo isso, a paciente passou a fazer movimentos circulares
com uma das mãos. Após algumas repetições, ela parava com a
mão apontando para baixo e passava a abrir e fechar os dedos, sugerindo um fluxo de algo no sentido do chão.
− Eu quero que ela vá para o inferno! − Repetia. Ela é uma alma
ruim...
Passou então a mirar os alunos com olhos bem abertos e olhar
fixo, um a um.
− Por que você está olhando os alunos? Alguém aqui também
tem alma ruim? – o professor provocou.
− Não, não! Aqui vai todo mundo para o céu.
A paciente respondeu com prontidão, voltando a fazer movimentos circulares com uma das mãos, mas, agora, ao final os dedos
abriam e fechavam apontando para cima.
Com simples perguntas, a paciente passou a demonstrar o distúrbio que explicava o motivo da sua internação.
Essa é a importância de vivenciar o dia-a-dia de serviços específicos dentro da área de conhecimento que se deseja obter. No
início, as reuniões clínicas ocorriam no térreo do hospital, afastado
das alas de internação (que ficavam nos andares superiores) e envolviam os pacientes mais compensados.
Depois de uma certa maturidade dos alunos, as reuniões passavam a ocorrer dentro das alas de internação, em salas preparadas
para tal. Em muitos momentos, entretanto, eram os próprios alunos os responsáveis por fazer a entrevista com o paciente e apresentar um relatório ao preceptor, com diagnóstico e impressões.
Nos primeiros dias em que minha turma se dirigia para as alas
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João Bourbon II
de internação, já tivemos uma experiência que deu uma prova de
como seriam os próximos dias. A turma estava destinada à ala psiquiátrica masculina, mas, no caminho, éramos obrigados a passar
pela ala feminina. Foi nesse percurso, que tivemos o primeiro contato com Luciene. Luciene era uma paciente obesa, de meia-idade,
que não se acostumava à exigência social de ter que usar roupas.
Era nua, que andava, ou melhor, corria para todos os lados. Quando encontrava alguém do gênero masculino, era comum fazer demonstrações de afeto. Abraçar e beijar eram a sua rotina, nesses
casos. Mas, não sabemos porque, ao encontrar um dos colegas de
turma, ela simplesmente virou para ele e gritou:
− Não gosto de você! Não gosto de você!
Dizendo isso, arrancou os óculos do rosto do colega, quebrou
na frente dele, jogou no chão e pronto, saiu correndo... pelada.
Na ala psiquiátrica masculina, as experiências inicialmente foram mais tranquilas. Conhecemos o Souza. Souza era um paciente
adulto jovem que estava internado há muitos e muitos anos, tendo
sido praticamente criado ali dentro (em virtude de abandono da
sua família). Quando a turma mudava e os novatos chegavam, o
Souza tinha uma certa rotina. Pegava os crachás de um por um,
segurava em suas mãos e perguntava:
− Qual o seu nome?
E conferia a resposta no crachá.
− Qual a sua idade?
E conferia a resposta no crachá.
Um por um, ele ia colhendo os dados e confirmando. E depois
se apresentava:
− Eu sou o Souza, tenho 25 anos.
Já era uma figura emblemática do local. Assim como o Márcio
Jr. O Márcio Jr, estava tão bem, que ao primeiro olhar, não era fácil
identificar um motivo forte para mantê-lo naquele recinto. Ele nos
costumava receber sempre com a mesma música:
Bom dia irmãos e irmãs!
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Ser ou não ser médico ?
Bom dia para os homens da terra!
Bom dia irmãos e irmãs!
Bom dia para quem não faz guerra...
De tão bem que estava, o Márcio Jr. recebia, perigosamente, a
confiança de alguns funcionários do local para realizar pequenos
serviços ali dentro da ala masculina. Certo dia, ele estava como responsável por convocar os demais pacientes e organizar a fila para a
medicação. A ala masculina tinha, além dos leitos, uma pátio enorme, não mobiliado e protegido da luz para facilitar a circulação e
evitar aglomerações. Em um dos cantos, havia mesas e bancos de
alvenaria, que era o espaço onde os pacientes faziam suas refeições.
No centro desse pátio enorme, uma pequena sala de medicação
estava bem equipada para as rotinas diárias dos pacientes. Era para
essa sala que o Márcio Jr. estava levando os pacientes. Em determinados momento, alguns pacientes quiseram furar fila e entrar antes
da sua hora na sala de medicamentos. O Márcio Jr. foi taxativo:
− Calma, calma! Aqui só entra um doido de cada vez!
Nessa mesma ala, conhecemos ainda o Aderbaldo. O Aderbaldo costumava cantar alto pelo pátio e ele tinha uma voz muito boa.
Certo dia, após serem medicados, e por nos encontrarmos perto
das festas juninas, os pacientes receberam chapéus de palha para
prepararem-se para a pequena festa da ala. Era o Aderbaldo quem
organizava os pacientes para receber o agrado. Em ritmo de carnaval baiano, como se estivesse puxando um bloco pelas ruas de
Salvador, Aderbaldo foi colocando um a um, os pacientes atrás dele
em fila indiana e cantando:
O Olodum tá hippie,
O Olodum tá pop,
O Olodum tá reggae,
O Olodum tá rock...
O Olodum pirou de vez!
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João Bourbon II
Os pacientes adoraram, um a um, a algazarra ia aumentando
e todos ficavam felizes com o chapéu novo. Essas são apenas algumas das pessoas que conhecemos naquele ambiente. Mas a história
mais curiosa ocorreu quando os professores nos liberaram para
iniciar a entrevista com os pacientes. Foi aí que apareceu a figura
do Alexandre.
O Alexandre era um senhor de meia-idade, que estava internado em virtude de uma descompensação do quadro esquizofrênico.
Achei muito estranho quando o Alexandre nos confidenciou que
havia jogado futebol com o Bebeto, nas categorias de base do Vitória-BA, na década de 80. Tive a certeza que aquilo fazia parte
do quadro de “auto-engrandecimento”, digamos assim, comum aos
pacientes com o mesmo diagnóstico.
Depois vimos que não. A preceptora nos informou que aqueles
dados haviam sido confirmados por familiares. Na verdade, no dia
seguinte, quando trouxemos novamente o assunto à tona com o
Alexandre, vimos que aquilo era verdade, mas que o paciente apresentava delírios (falsas crenças) com base nessa história. Segundo
ele, a CBF devia mais de 10 milhões de reais para ele e ele era o
melhor jogador da época, sendo que ele não teve sucesso apenas
em virtude de inveja dos amigos.
Todos os dias tínhamos que fazer um recordatório das entrevistas prévias (para ver se o paciente mantinha as respostas) e então
prosseguir com a coleta de novos dados. O terceiro dia de entrevistas com o Alexandre foi mais ou menos assim:
− Bom dia. − Eu comecei.
− Bom dia!
− Qual o nome do senhor? − Perguntei como havia feito nos
dias anteriores.
− Meu nome é Alexandre Cruz Santos.
− Muito bem, Sr. Alexandre. Qual a idade do senhor?
− Eu tenho 52 anos! E você? − Ele quis saber
− Olha, eu tenho 21 anos. − Respondi.
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Ser ou não ser médico ?
À partir dessa pergunta, ele começou a elocubrar.
− 21 anos... − Disse pensativo. E continuou. 21 anos... 21 anos.
21 anos é a idade do meu filho! Meu filho... Meu filho... Meu filho...
Meu filho foi assassinado quanto tinha 21 anos! Meu filho... Meu
filho era parecido com aquele rapaz...
Dizendo isso, apontou para um dos pacientes que estavam no
pátio. Era o Caíque, um paciente mulato, que tinha o histórico de
uso de drogas e pequenos delitos, como furtos. O Caíque tinha
uma sequela neurológica em virtude do uso crônico de crack. Ele
apresentava um discurso confuso, misturando, por vezes, palavras
em diferentes idiomas. Foi o que aconteceu também nesse dia,
quando o Alexandre apontou para ele e continuou dizendo.
− Meu filho é parecido com aquele rapaz... Meu filho! Ei! − Falou aumentando o tom de voz, de forma que o Caíque pudesse ouvi-lo. Ei, você é o meu filho!
Caíque, a uma distância de uns 30 metros, olhou para ele com
os olhos apertados, fazendo força para enxergar melhor e emendou:
− Pai?!
Eu não consegui me conter e caí na gargalhada. Eles não se intimidaram e continuaram.
− Meu filho, venha aqui! − Repetia Alexandre.
− Pai! − Caíque disse, aproximando-se.
− Oh, meu filho, venha aqui pedir a benção para o seu pai...
− A benção, meu pai! − Obedeceu Caíque.
Dizendo isso, ele virou para mim e se apresentou:
− Bonjour, my name is Caíque!
− Nossa, Caíque, parabéns! Você fala português, francês, inglês... O que mais você fala? – Parabenizei o rapaz.
Quando o Alexandre viu que o “seu filho”recebia tantos elogios,
emocionou-se:
− Esse é o meu menino! − Disse com os olhos cheios de lágrima. – Vamos fumar um cigarrinho com o seu pai, venha...
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João Bourbon II
Então, os dois saíram abraçados e me deixaram lá. Por motivos
óbvios, a minha entrevista estava finalizada, de maneira espontânea e espetacular.
Estávamos nos adaptando muito bem ao estágio na psiquiatria. O Hospital psiquiátrico era diferente de todos os ambientes
que havíamos frequentado, mas tudo transcorreu bem. Pelo menos até a metade do estágio. Um dia, ao chegarmos pela manhã,
recebemos a notícia que uma das médicas-residentes havia sido
agredida por um paciente na tarde anterior. O paciente não quis
receber o medicamento de rotina. A médica tentou convencê-lo do
contrário, mas ele não quis conversa. Desferiu um soco no nariz
da médica, provocando fratura dos ossos nasais e a necessidade de
intervenção cirúrgica.
Até aquele ponto, salvo o incidente dos óculos quebrados pela
Luciene, o estágio no hospital psiquiátrico havia sido muito tranquilo. Ficamos apreensivos à partir daquele momento e passamos a
tomar ainda mais cuidado no trato com os pacientes. O último dia
de estágio nos mostraria que tínhamos razão em ficar apreensivos.
Último dia de estágio e tudo ia muito bem. Como de costume,
o Márcio Jr. havia assumido a função de um dos funcionários. Mas,
incrivelmente, nesse dia, a função que ele recebeu foi a de porteiro. Em outras palavras, Márcio Jr., um dos pacientes psiquiátricos,
estava de posse das chaves que davam acesso à ala masculina do
hospital. Era ele, naquele dia, o responsável por controlar o fluxo
de pessoas e quem entrava ou saía do local.
Neste dia, um paciente idoso, que já tinha o histórico de ser
bastante agressivo, estava muito insatisfeito por não ter recebido a
visita que tanto esperava de seus familiares.
Havíamos nos despedido dos professores e dos médicos-residentes que acompanhávamos. Nos dirigimos para a saída da ala
masculina. Márcio Jr. retirou o cadeado, mantendo-o em uma das
mãos e abriu a porta para permitir a nossa passagem em direção
à saída. Neste momento, o paciente idoso insatisfeito tentou sair
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Ser ou não ser médico ?
junto com o comboio de alunos, médicos-residentes e professores.
Márcio Jr, foi obrigado a impedir a saída do paciente e, por esse
motivo, foi agredido com um soco no rosto. A mudança de humor
em Márcio Jr foi notável e se deu de forma imediata. Cerrou as
mãos, uma delas de posse do cadeado, e partiu para cima do outro
paciente. Várias pessoas tentaram impedir a briga, inclusive uma
médica grávida. Vendo que a médica correria perigo, Adalberto,
o paciente-cantor, correu para separar os dois colegas. Márcio Jr.
cerrou a mão que segurava o cadeado com toda a sua força e desferiu o golpe, com o intuito de atingir o paciente em fuga. Adalberto,
no entanto, havia se colocado entre os dois tentando acabar com a
briga e foi ele quem recebeu o golpe. O cadeado atingiu a cabeça do
Adalberto, produzindo um ferimento de pequenas dimensões, porém profundo no couro cabeludo. De imediato, Adalberto passou a
cursar com um sangramento importante, sujando toda a sua roupa
e algumas pessoas em volta, além do chão naquele local.
Vendo que a médica-residente gestante ainda corria risco, uma
vez que Márcio Jr. se mantinha de posse do cadeado, os alunos intervieram, acalmaram o porteiro improvisado e conseguiram destituí-lo da nova arma. Só aí os ânimos se acalmaram.
Ambos Márcio Jr e o paciente idoso receberam advertências.
Adalberto precisou apenas de sutura do ferimento e analgésicos
simples, não apresentando maiores problemas. O nosso estágio em
psiquiatria estava terminado de maneira incomum, mas a impressão geral foi boa. Todo o período passado naquela instituição gerou aprendizado profundo e experiências para toda a vida.
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Foi durante a disciplina de clinica médica, durante a aula de um
professor da gastroenterologia que ouvi a próxima história.
O Professor Paulo era muito admirado pelos alunos. Antes de
cursar a matéria em que ele fazia parte as perguntas e comentários
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João Bourbon II
se repetiam:
− Já teve aula com o Paulo?! Não?? Ah, você vai adorar o Paulo!
Não tivemos chance de pensar de forma contrária. O Prof. Paulo era único. Desde o primeiro dia de aula, ele sabia cativar o aluno.
Se expressava de uma forma que deixava evidente a importância
que dava ao que falava, além de saber respeitar o espaço de cada
aluno. Ele não precisava pedir silêncio ou exigir atenção. Bastava
iniciar a aula que todos davam ouvidos.
Além da forma mais afetuosa que costuma lidar com os alunos,
uma característica peculiar do Prof. Paulo é o fato de ele ser um dos
poucos a abordar a relação médico-paciente em sala de aula. Sempre que ouvia as histórias do Prof. Paulo, sentia orgulho em cursar
medicina e ter a possibilidade de fazer o mesmo.
De todas que ouvi, separei a história que mais me marcou.
O Prof. Paulo, como gastroenterologista, costumava acompanhar muitos pacientes com câncer do aparelho digestivo. A Sra.
Rosa, 80 anos, era uma dessas pacientes. Tinha um câncer de fígado, já disseminado, em estágio terminal. Como resultado das inúmeras lesões espalhadas e da redução da função de alguns órgãos,
essa paciente apresentava um acúmulo de líquido no abdome, de
grandes proporções, denominado ascite. A ascite era recorrente e
sempre que acontecia, precisava de um tratamento para alívio da
paciente. O tratamento empregado consiste na drenagem do líquido de dentro do abdome, utilizando uma agulha, e é denominado
de paracentese.
O professor conta que vinha precisando fazer várias paracenteses nesta paciente. A frequência já era de um a dois procedimentos/semana e era bastante desconfortável para a Sra. Rosa.
Certo dia, ao visitar a paciente no leito e preparar os materiais
para o paciente, encontrou uma Sra. Rosa irredutível. Não queria
fazer a paracentese de jeito nenhum. Não havia quem a convencesse do contrário.
− Não quero mais isso! Já que eu vou morrer mesmo, que acon59
Ser ou não ser médico ?
teça logo. Mas não quero saber de agulha de novo. – desabafava a
paciente.
Médico e familiares tentaram por mais de 1 hora convencer a
paciente do contrário. Explicaram riscos e benefícios. Explicaram
que ela ainda poderia ter alguma tempo de vida, que poderia ter
a chance de passar mais algum tempo com as pessoas que amava.
Não tinha argumento que ela aceitasse.
Depois de muita conversa, o Prof. Paulo fingiu perder a paciência e elevou um pouco a voz:
− Eu já sei porque a senhora está assim, Dona Rosa! Já sei!! –
disse o professor.
− Ah, é?! O que é então?! – Perguntou a Sra. Rosa, irritada.
− A senhora com essa barriga aí... A senhora pensa que me engana! A senhora está grávida!! – Arriscou o professor.
No momento em que ele fez a afirmação, a paciente não conseguiu se segurar e caiu na gargalhada. Os familiares riam aliviados.
− Quer saber de uma?! − Perguntou a Dona Rosa. − Eu estou
grávida mesmo! E você é o pai!!
Todos deram uma boa risada. Ela havia aceitado a brincadeira e agora, com o espírito revigorado, entrava no jogo também.
Todos estavam mais leves no quarto. A Sra. Rosa, então, disse ao
professor.
− Meu filho, perdoe essa velha rancorosa. Muito obrigado pela
sua paciência. Eu vou fazer o procedimento, sim. Mas só vou fazer
porque meu médico é você. − Disse a paciente.
Todos no quarto, sem exceção, encheram os olhos de lágrimas.
O procedimento foi realizado, como quis a paciente. Ao final, o
médico recolheu o material e se despediu.
Ao sair do quarto, no corredor do hospital, uma das filhas da
paciente que acabara de presenciar os últimos acontecimentos
conseguiu alcançar o médico.
− Doutor! − Disse com os olhos ainda cheios de lágrimas, dando um abraço carinhoso no médico. − Muito obrigado!
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