Primeiras entrevistas em psiquiatria e psicanálise: repercussões e possibilidades de abordagem do paciente e sua queixa principal* Bárbara do Nascimento1 Diego Fabian Karvat Gracia1 Júlia Alram Moreira1 Rodrigo Pirard Basso1 Luciano Souza2 RESUMO - Introdução: As primeiras entrevistas fazem parte de uma etapa decisiva na obtenção da história do paciente e na forma como conduzi-lo. Objetivo: a presente revisão bibliográfica se propõe a fornecer informações que permitam otimizar a execução das primeiras entrevistas em psiquiatria e psicanálise. Materiais e Métodos: a metodologia utilizada foi a de reuniões quinzenais para discussão de textos relacionados ao tema. Conclusão: algumas vezes as primeiras entrevistas podem ser de difícil execução, sendo necessário aliar conhecimentos teóricos à prática clínica supervisionada a fim de superar essa dificuldade. Palavras-chave: Entrevista. Psiquiatria. Psicanálise. Caso Dora. Graduação. Queixa Principal. ABSTRACT – Introduction: First interviews are part of a decisive step in understanding the patient's history and how to lead him/her. Objective: this review aims to provide information to optimize the performance on first interviews in psychiatry and psychoanalysis. Materials and Methods: the methodology applied was based in meetings every fortnight for discussion of texts related to the subject. Conclusion: sometimes the interviews may be hard to implement. They require a combination of theoretical knowledge and supervised clinical practice in order to overcome this difficulty. Keywords: Interview. Psychiatry. Psychoanalysis. Dora´s. Graduation. Chief Complaint. *Texto apresentado durante a II Jornada de apresentação de trabalhos do curso de especialização em Psicanálise: teoria e prática, na Faculdade Dom Bosco. 1 2 Acadêmico de Medicina, Universidade Federal do Paraná. Médico Psiquiatra da Universidade Federal do Paraná; Coordenador do Grupo de Pesquisa Entrevistas Preliminares em Psiquiatria e Psicanálise; Professor do Curso de PósGraduação da Faculdade Dom Bosco: Psicanálise: Teoria e Prática. 2 INTRODUÇÃO As primeiras entrevistas, na clínica ou em outra atividade, têm fundamental importância, pois são o instrumento formador de vínculo desde os contatos iniciais e, sem dúvida, a melhor ferramenta para diagnóstico e acompanhamento. Porém, nota-se insegurança dos alunos da graduação, no caso em medicina, na condução das primeiras entrevistas clínicas, sobretudo na área de saúde mental sendo imprescindível o direcionamento destes alunos. Com isso, pretende-se com o presente trabalho oferecer aos interessados a possibilidade de discutir as primeiras entrevistas em psiquiatria e psicanálise. DESENVOLVIMENTO Vários são os fatores envolvidos na gênese dos transtornos mentais. “Até onde se sabe, mente e corpo, se não uma só coisa, são instâncias do funcionamento humano tão inter-relacionadas e influentes entre si que é difícil, se não impossível, separá-las na experiência humana cotidiana” (TÓFOLI, 2006). “Já foi provado que distúrbios mentais podem eclodir nos órgãos do corpo [...], [e também] [...] que lesões no corpo físico podem acarretar repercussões mentais” (LOPES, 2006). Diante disso, não resta dúvida quanto à necessidade de se fazer uma abordagem global a todo paciente, buscando compreender a forma de como o adoecer é percebido e transmitido, conferindo assim, individualidade em cada atendimento. Nesse contexto, abre-se um leque de considerações a respeito de todas as variáveis que influem nas entrevistas clínicas. Contudo, no presente trabalho será dada ênfase a como portar-se frente ao paciente e sua queixa principal. Modelos de execução estruturados na forma de questionários são propostos e têm sua importância como ferramentas que direcionam os esforços iniciais para entrevistar pacientes e indicam ao iniciante a essência do que ele precisa saber (CARLAT, 2007). Porém, esse modelo possui limitações. “Este tipo de entrevista não conduz a um relacionamento especialmente estreito, em parte porque o equilíbrio de poder entre o entrevistado e entrevistador é muito desigual” (USDIN, 1981). Dessa maneira entrevistas que permitem ao entrevistado uma maior liberdade na expressão de seus processos mentais, o que nunca se consegue com um enquadre de perguntas e respostas (ETCHEGOYEN, 1987), agregam muito mais variáveis à entrevista, além de tornarem a relação terapêutica mais simétrica, tendo o entrevistado importância dentro da construção 3 do fluxo de informações. Entretanto, não é o caso de um modelo excluir o outro. Intervenções com a finalidade de esclarecer algum ponto que não ficou muito claro ao entrevistador ou facilitar o andamento da entrevista são adequadas e devem ser feitas. Fica a critério do entrevistador ajustar o formato de sua entrevista à demanda que se impõe a cada situação particular. O “caso Dora” ilustra alguns conceitos importantes no que se refere ao manejo das primeiras entrevistas em psiquiatria e psicanálise. É natural que nos primeiros contatos o entrevistado não forneça todas as informações a respeito de sua história, até mesmo porque, se ele o fizesse, a entrevista não teria razão de ser. Assim, Dora também não fornece todas as informações durante sua queixa. Ela abre seu requisitório, afirmando ser moeda de troca já que “impunha-se a ela a concepção de ter sido entregue ao Sr. K. como prêmio pela tolerância dele para com as relações entre sua mulher e o pai de Dora” (FREUD, 1905, p. 28). Contudo, Freud percebera previamente que só da aventura no lago é que datavam a sua visão clara do assunto e suas exigências ao pai; até então nunca se opusera e até mesmo favorecia tais relações (FREUD, 1905). No momento em que Dora faz sua queixa, aproveita para perguntar ao seu entrevistador: “Tudo isso é perfeitamente verdadeiro e correto, não é? Que quer o senhor modificar agora que lhe contei?” Este, sem dúvida, é um momento de embaraço para o entrevistador mais desavisado. Nesse momento é possível levantar a seguinte questão: como proceder diante de uma queixa que, a princípio, parece tão bem fundamentada? Primeiro, remete-se aos objetivos das primeiras entrevistas, já que tudo que nelas for realizado é justificado pelos objetivos que elas perseguem. Então, “o diálogo que se estabelece tem objetivo e finalidade preestabelecidos, isto é, a reconstituição dos fatos e acontecimentos direta ou indiretamente relacionados com uma situação anormal na vida do paciente.” (HEINISCH, 2003, p.18). Dessa maneira, admite-se que o papel do entrevistador é facilitar essa tarefa. Discutem-se então algumas possibilidades de abordagem e suas repercussões. É certo que nenhum modelo estruturado em perguntas e respostas consiga abordar a singularidade e a riqueza desta questão, estando nesse caso comprometido o papel do entrevistador. Receber o questionamento feito por Dora e seguir para a próxima pergunta estabelecida pelo protocolo, negando assim a forma como a paciente processa e transfere o seu adoecer, sem dúvida não reforçaria os laços terapêuticos entre os dois. O entrevistador mais inexperiente poderia então optar por uma atitude complacente para com seu entrevistado, confortando-o. Mas em que isso ajudaria ao que se pretende? Observou- 4 se que Freud tomou outro caminho. Para ele a paciente estava usando de tais pensamentos inatacáveis pela análise para acobertar outros que se querem subtrair da crítica e da consciência. Assim, Lacan (1998, p.218) se refere à forma como Freud devolve o questionamento de Dora como a primeira inversão dialética feita dentro do caso. Inversões dialéticas são intervenções no discurso que visam orientar o paciente sobre aquilo que lhe é desconhecido proporcionando o surgimento de novos desdobramentos. Então, diz ele a Dora, “Veja, qual é sua própria parte na desordem de que você se queixa?” (FREUD, 1905). A partir desse momento Dora passa a ser personagem atuante dentro da sua história e não mais um joguete frente a esse desajuste social. A forma com que o entrevistador conduziu a entrevista foi fundamental para que novos desdobramentos surgissem e novas verdades aparecessem, fazendo com que a história da paciente tomasse o rumo do esclarecimento. CONCLUSÃO A entrevista requer habilidades difíceis de serem adquiridas, porém uma entrevista eficaz é o ponto de partida para um êxito posterior nas intervenções em saúde mental (SHEA, 2002). Dentro da prática clínica, não raro, depara-se com pacientes que chegam às consultas com suas histórias prontas. Cabe ao entrevistador considerar uma abordagem subjetiva, reconhecer seu papel dentro da entrevista, bem como estar atento ao que lhe é dito, a fim de promover desdobramentos necessários para obter um retrato mais fiel do que está acontecendo com o entrevistado, podendo assim conduzi-lo de forma mais adequada. Para tanto, torna-se indispensável experiência e o conhecimento dos mecanismos envolvidos nas primeiras entrevistas. O conhecimento deve ser buscado ativamente por parte dos alunos, através da leitura de textos, reuniões e discussões. A experiência é adquirida desde as primeiras entrevistas supervisionadas, e se estende durante toda a prática clínica. Portanto, espera-se que os conceitos aqui expostos tenham contribuído para elucidar alguns dos pontos importantes dentro das primeiras entrevistas, servindo como referência à atividade clínica. 5 REFERÊNCIAS CARLAT, D. J. Entrevista psiquiátrica. Tradução de DORNELLES, C.; CALEFFI, A.. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007. ETCHEGOYEN, R. H. Fundamentos da técnica psicanalítica. Tradução de FERNANDES, C.G. 1.ed. Porto Alegre: Artmed, 1987. FREUD, S. Artigos sobre a técnica - edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1914. ______. Conferências introdutórias sobre psicanálise - edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1917. ______. Fragmento da análise de um caso de histeria; edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1905. HEINISCH, L M M. Otimização da entrevista médica. Tese de doutorado em engenharia de produção – programa de pós-graduação em engenharia de produção, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003. KAPLAN, H. I.; SADOCK, B. J. Tratado de psiquiatria. Tradução de CALEFFI, A. et al. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1999. LACAN, J. Escritos. Tradução de RIBEIRO, V. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. LOPES, A. C. Clínica médica – passado, presente e futuro. In:______. Tratado de clínica médica, vol I,1. ed. São Paulo: Roca, 2006, p. 2-18. SHEA, S. C. La entrevista psiquiátrica - el arte de comprender. 2.ed. Barcelona: Harcourt, 2002. TÓFOLI, F. F. L. Transtornos somatoformes, síndromes disfuncionais e sintomas físicos sem explicação médica. In: LOPES, A. C. Tratado de clínica médica, vol II., 1. ed. São Paulo: Roca, 2006, p. 2504-2512. USDIN, G. L., LEWIS, J. M. A enfermidade, a doença e a entrevista. In:______. Psiquiatria na prática médica. Tradução de: MEURER, J. L. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981. P. 2-16.