IMAGENS DA NÃO VISÃO: O ENSINO MULTISSENSORIAL DE ARTES PARA ALUNOS COM DEFICIÊNCIA VISUAL 1 Marina Vargas Tomaz* Maria Helena Fratari** RESUMO O que é ver? Como se vê? Quantos meios podem ser utilizados para a percepção e aquisição de conhecimento de pessoas com deficiência visual e como a arte pode auxiliar neste processo? A partir dessas perguntas centrais, baseado nos preceitos históricos-culturais de Lev Vigostiski, em estudiosos do desenho infantil, bem como em pesquisas atuais no campo da cegueira e da arte, se desenvolveu este artigo, com o intuito de pesquisar como a percepção e o entendimento da pessoa que não vê se desenvolvem, através da mediação da arte e seus recursos multissensoriais. Como a Arte pode contribuir no processo de ensino e aprendizagem e formação dessas pessoas? Palavras-chave: Inclusão. Arte educação. Deficiência visual. Multissensorialidade INTRODUÇÃO A política brasileira de inclusão escolar foi construída a partir de lutas, esforços e convenções ocorridos em todo o mundo como a Declaração de Salamanca (1994), Espanha, e de dispositivos inseridos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n. 9.394/96 (Brasil, 1996), que passaram a assumir objetivos inclusivistas em nossa legislação. A Carta de Salamanca defendeu a inclusão de pessoas com algum tipo de deficiência, excluindo a prática da segregação destes indivíduos. Essa prática carregava uma visão discriminatória, entendendo a pessoa com deficiência como incapaz de cuidar de si mesma. Por isso, se fazia necessário a permanência dessas pessoas em ambientes especiais e que não ofereciam obstáculos, riscos e experiências próprias da convivência. Conceitos como Integração Social e Inclusão Social, surgiram apenas nas décadas de 70 e 90, respectivamente.(COIMBRA, 2003). Segundo a Declaração de Salamanca: 1 Artigo elaborado para conclusão do curso de Pós Graduação em Educação Inclusiva na Faculdade Católica de Uberlândia. * Aluna do curso de Especialização em Educação Inclusiva da Faculdade Católica de Uberlândia – MG, arte educadora, artista plástica. e-mail: [email protected]. ** Professora-Orientadora da Faculdade Católica de Uberlândia – MG. e-mail: [email protected] A escola inclusiva é o lugar onde todas as crianças devem aprender juntas, sempre que possível, independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenças que elas possam ter, conhecendo e respondendo às necessidades diversas de seus alunos, acomodando ambos os estilos e ritmos de aprendizagem e assegurando uma educação de qualidade a todos. A escola inclusiva deve ser o lugar agregador, que compartilha experiências no processo de ensino aprendizagem, comporta e entende diferenças, sendo capaz de conduzi-las no sentido de que alcancem o objetivo comum, que é a construção de conhecimento. O desafio de incluir, e não somente aceitar, alunos com necessidades escolares especiais, seja por uma deficiência física, motora, intelectual, visual ou auditiva, no sistema regular de ensino, é imenso e complexo. Pois, na atual configuração do sistema educacional brasileiro, em que a carência na formação docente, a falta de recursos financeiros e estruturas adequadas são problemas a serem vencidos cotidianamente, o desafio da inclusão se torna mais uma demanda a ser resolvida, em toda sua complexidade. Uma proposta inclusiva de educação pretende compreender o ser humano em sua totalidade. Como possuidor de singularidades, saberes, experiências e vivências. Entendendo a construção de conhecimento e a formação de conceitos como processos singulares, onde os indivíduos interagem ativamente com o meio, se apropriando dos significados, construindo o aprendizado de maneira reflexiva e autônoma. Esse pensamento baseado nas interações com o meio e entre as pessoas, estabelece relações com a concepção histórico-cultural, enfatizada pelas idéias do russo Lev Semyonovitch Vygostisky (1896-1934). Num texto escrito em 1920, Vigotski faz uma crítica a análise feita de forma quantitativa deficiências. Ou seja, ele critica os métodos usados para analisar uma deficiência que fazem uso de mensurações, criando graus e níveis de debilidade, entendendo a deficiência de maneira engessada e sem vias alternativas. A contribuição de Vigostski é no sentido de que não se deve pensar a deficiência, qualificando-a em níveis, tampouco adequá-la baseando-se nos parâmetros da normalidade. Mas entendê-la como um espaço complexo e singular, com suas próprias características, possivelmente capaz de interação. (NUERNBERG, 2008) Dessa maneira, faz-se necessário investigar o modo como o funcionamento psíquico se organiza na condição da deficiência. Sua perspectiva inclinava-se para a diversidade humana em todas as suas possibilidades. Interessava ao autor, a investigação destas leis da diversidade, no estudo das vias alternativas de desenvolvimento humano na presença da deficiência. Este novo modo de enxergar representou um grande salto na maneira como era encarada a deficiência. Lev Vigostski afirmava que o funcionamento psíquico das pessoas com deficiência obedece às mesmas leis, embora com uma organização distinta das pessoas sem deficiência. (NUERNBERG, 2008) O ensino de Artes nas escolas regulares deve acompanhar a inclusão escolar garantida pela Lei de Diretrizes e Bases. Assim como os outros conteúdos escolares, a Arte Educação, é possivelmente adaptável para pessoas com diferentes deficiências, sobretudo os deficientes visuais, objeto de pesquisa deste artigo. Arte: Caminhos possíveis em Educação Inclusiva Felizmente, a maioria consegue ver com os ouvidos, ouvir e ver com o cérebro, o estômago e a alma. Acho que vemos um pouco com os olhos, mas não somente. (Win Wenders, 2002 – Documentário Janela da alma) A arte nos currículos escolares desempenha um importante papel na formação dos indivíduos, uma vez que propicia o contato com a sua própria cultura, favorecendo o autoconhecimento, a valorização e o contato com as expressões artísticas em diferentes períodos históricos e lugares. Ampliando, assim, a visão de mundo, enriquecendo o vocabulário estético e possibilitando a leitura de imagens. Estas capacidades, sobretudo a de leitura de imagens, se tornam valiosas numa sociedade excessivamente visual, como é a que vivenciamos na contemporaneidade, que tende a excluir e segregar quem não compartilha destas leituras. Ana Mae Barbosa Tavares, importante Arte Educadora brasileira, nos fala sobre a importância da Arte Educação para a formação do ser humano de forma mais completa, visando contribuir para a formação humana do aluno e seu papel para além das salas de aula. Segundo Barbosa (1991. p 5): Não é possível o desenvolvimento de uma cultura sem o desenvolvimento de suas formas artísticas. Não é possível uma educação intelectual, formal ou informal, de elite ou popular, sem arte, porque é impossível o desenvolvimento integral da inteligência sem o desenvolvimento do pensamento divergente, do pensamento visual e do conhecimento presentacional que caracteriza a arte. Se pretendemos uma educação não apenas intelectual, mas principalmente humanizadora, a necessidade da arte é ainda mais crucial para desenvolver a capacidade criadora necessária à modificação dessa realidade. Partindo destes pressupostos, como poderia a arte ser acessível ao aluno que tem seu instrumento da visão com alguma debilidade? Como a Arte Educação pode contribuir na formação de crianças e adultos com deficiência visual, cumprindo todas as suas potencialidades formadoras e criativas? Como a arte, uma expressão histórica e majoritariamente construída para nosso sentido visual, e normalmente distante do toque, poderia alcançar e atender às demandas da educação inclusiva para deficientes visuais, especificamente? Segundo as autoras Adriana Lia Friszman Laplane e Cecília Guarnieri Batista, estudiosas do tema da Educação inclusiva para deficientes visuais (2003): É preciso primeiramente compreender que a deficiência visual engloba uma variedade de condições orgânicas e sensoriais que têm conseqüências diferentes no desempenho visual dos sujeitos. Desde pequenas alterações na acuidade visual até a ausência de percepção de luz. (...) Para além dos termos técnicos e das medidas de acuidade visual é importante entender que entre as pessoas com baixa visão e cegueira podemos encontrar situações muito díspares. Algumas dessas pessoas terão autonomia na locomoção e outras deverão desenvolver estratégias para atingi-la; algumas poderão realizar com pouca dificuldade as tarefas escolares sem qualquer auxílio e outras necessitarão de auxílios ópticos (lupas e telescópios) ou não ópticos (ampliações, iluminação especial e outras adaptações do ambiente) para melhorar seu desempenho; algumas conseguirão utilizar materiais visuais e outras preferirão os materiais táteis (sistema Braille de escrita) ou auditivos. À diversidade natural existente na natureza humana soma-se, assim, a variabilidade das condições criadas pelos diferentes tipos de deficiência visual e seus efeitos no desenvolvimento e na comunicação com os outros. Na tentativa de responder as questões acerca do ensino de artes e sua contribuição ao processo de aprendizagem dos alunos com deficiência visual, podemos refletir acerca do nosso sistema educacional. Este sistema e, mesmo nós, seres humanos, nos apoiamos em metodologias de ensino que abordam o objeto de estudo a partir de citações, analogias, comparações e exemplos. Sem, necessariamente, ter o objeto de estudo presente no ambiente de ensino, disponível para o contato direto do educando. Ou seja, o ensino se dá, na maioria das vezes de maneira indireta, através de objetos e citações que fazem essa ponte com o conteúdo visto. Como exemplo, podemos pensar nas aulas de geografia em que conhecemos a geografia física, através de simulações de relevos ou mapas, sem necessariamente estar em todos os lugares do globo, vendo e tocando seus aspectos geográficos. Dessa maneira, por que o aluno com alguma deficiência visual não pode ter acesso aos conteúdos próprios da arte, através de recursos indiretos disponíveis e adaptados? Por que não repensar as aulas de arte para que o conhecimento se dê através de alternativas possíveis, contando com outros sentidos, e não somente a visão? (BALLESTERO-ALVAREZ, 2003) A educadora Ivanê Dantas Coimbra, fala das dificuldades impostas pela sala de aula regular e seu modelo estabelecido historicamente, à inclusão dos alunos com deficiência visual. Seu livro é o resultado de pesquisas e estudos de caso, em escolas regulares de Salvador. Eis o que ela diz COIMBRA (2003, p. 65): Entretanto, sob a égide da padronização e por centrar o conhecimento no ver, em vez de no sentir e no perceber, a escola restringe ou inviabiliza a utilização da imaginação, da criatividade e de outros canais de percepção ou expressão (o tátil, o auditivo, o olfativo, o cinestésico), dentro do cotidiano da sala de aula, o que limita os caminhos para que aquele portador possa construir o seu conhecimento. Uma abordagem de ensino multissensorial, é capaz de responder a diversos desafios impostos pela falta da visão. Ele corresponde a um ensino pautado em todas as dimensões sensoriais do aluno, e não exclusivamente na visão, ou audição, ou fala, como é regularmente visto em nossas escolas. O ensino que se preocupa em utilizar todos os sentidos, de forma generosa, reflexiva, agradável e lúdica, potencializa o aprendizado, incluindo a todos numa abordagem que permite uma maior fixação dos conteúdos escolares através dos sentidos, pois permite que o aluno apreenda simultaneamente o objeto através de todos os meios e canais de percepção, enviando-os ao cérebro. É no cérebro que as informações se processam e se concretizam, formando um conceito mais complexo acerca do objeto estudado, pois foram obtidos diferentes e numerosos dados sobre ele, como a textura, o cheiro e a forma que este objeto possui. Assim, o aprendizado se torna mais eficaz, completo e concreto, pois foram utilizados sentidos diversos, e foram oferecidos motivos a mais para que a solidificação deste novo conceito se tornasse real para o aluno. (BALLESTERO-ALVAREZ, 2003) A arte educação é de grande importância para alunos com deficiência visual, pois possibilita o desenvolvimento de suas potencialidades e favorece o processo de descobrimento e interação com o mundo ao seu redor, através da sua natureza plástica, interativa e expressiva. Muitas vezes, a escola é o lugar onde a criança que não enxerga pode exercer sua autonomia e sua independência, seja pelo excesso de cuidados que possui em casa, ou pela falta de informação da família, a respeito das potencialidades desta criança. A curiosidade é um estímulo de grande valor e mesmo decisivo para as aquisições que serão feitas pela criança que se encontra num estágio de descobrimento e conscientização do mundo e seus contextos, e isso se concretiza através dos sentidos. Seja pela exploração do ambiente que a cerca, pelo aprendizado e socialização com os colegas, através das brincadeiras e experiências do cotidiano escolar, é a curiosidade que vai motivá-la a interagir e buscar novas vivências. A respeito dos estímulos sensoriais diversificados, bem como a movimentação e expressão corporais e o contato com outros alunos no espaço cotidiano, Coimbra nos contempla dizendo (2003, p. 168): O uso de estímulos sensoriais com o propósito de transformá-los em percepção e construção de significados depende, assim, de que aquele portador possa viver ativamente as experiências de aprendizagem, utilizando o contato com o seu próprio corpo e dos seus pares, pois a imagem ou consciência corporal fornece informações mais consistentes e instáveis, possibilitando a organização das suas ações no tempo e espaço. Estímulos, imaginação e possibilidades O ato de ver e olhar não se limita a olhar para fora, não se limita a olhar o visível, mas também o invisível, de certa forma é o que chamamos de imaginação. (Oliver Sacks, 2002– Documentário Janela da alma) Para Vigotski, a imaginação está vinculada a realidade e com o significado que esta realidade possui, bem como as vivências da criança. Através dos desenhos, as crianças entendem o mundo, mostram o que conhecem, interpretando a realidade. Com a verbalização associada aos desenhos, elas atribuem significados aos mesmos, e estes revelam o sentido dado ao desenho. Sentido este não dado por uma pessoa externa àquela experiência, mas por quem vivenciou o processo. Os desenhos por si só, sem as verbalizações, não são capazes de explicar o significado que a criança atribuiu ao que desenhou, é o pensamento narrado pela criança que nos ilustra seu mundo. Ela desenha o que conhece, mas também, realiza através desses desenhos desconstruções, reconstruções e novos arranjos, de acordo com suas experiências, imaginação e ações criativas. (FREITAS, 2009) A criança não-vidente necessita da estimulação e do contato sensorial com o mundo, com muito mais intensidade e urgência que outras crianças com visão normal. Ela precisa perceber e conhecer detalhes, as características e as nuances do meio em que está inserida. Associar características, reconhecendo cheiros e formas, exercitando seus outros sentidos de maneira interativa, sensível, autônoma e portadora de significados. As respostas aos estímulos são valiosas, pois são elas que possibilitam que a criança compreenda suas ações e reações conseqüentes. Sem a possibilidade da expressão facial positiva ou não a sua ação, a criança precisa de respostas em toques ou manifestações verbais que a guiem e incentivem. Segundo a autora Ivanê Dantas Coimbra: (COIMBRA, 2003) A ludicidade faz parte intrínseca da natureza infantil, congregando os aspectos afetivos, emocionais e interativos da personalidade da criança. Além disso, é considerado um fator crucial para o desenvolvimento cognitivo, porque permite que a aprendizagem se realize de forma dinâmica, criativa, e, principalmente através do prazer, que gera a vontade de aprender. Para a pessoa não-vidente, o lúdico se torna uma possibilidade de expressão a respeito do objeto, sendo “permitido” explorá-lo mais livremente, com seu ritmo e maneira particulares, dando também a ele, significados de maneira solta, autônoma, pessoal e subjetiva, sem o compromisso da lógica das respostas esperadas pela escola normalmente. Entretanto, antes de ser uma dificuldade somente da questão da inclusão de alunos com deficiência visual, as atividades lúdicas na escola são pouco incentivadas, pois elas rompem conceitos de organização, silêncio e ordem, impostos na escola regular. Ainda segundo a autora: (COIMBRA, 2003, p. 173) Nesse caso, os princípios da ludicidade, que são diametralmente opostos às condições de pouca mobilidade e formalidade características da prática da escola tradicional regular, precisam ser resgatados para não se comprometer ainda mais as condições de inclusão da criança cega. A arte é um instrumento capaz e propício para que essa ponte seja construída. A arte pode funcionar como elemento facilitador e propulsor no processo de criação de conceitos, uma vez que possui características múltiplas que favorecem a auto-expressão e a comunicação direta, ricamente construída dentro dos processos artísticos. Assim, através de elementos artísticos como a textura, o volume, a linha, o ponto, o relevo e o espaço, vão se formando imagens físicas e concretas, que auxiliam no processo de ensino aprendizagem. O desenho pode ser considerado a escrita primitiva da criança na primeira infância. Palavra e desenho são equivalentes simbólicos nessa fase em especial, sendo que, o desenho é a primeira maneira de “escrever” a palavra que nomeia o objeto. (DUARTE, 2004) Segundo Oliver Sacks, neurologista, ver é uma experiência construída pelos sujeitos ao longo da sua infância, assim como o aprendizado da fala, no qual os significados das palavras da língua materna vão sendo pouco a pouco assimilados e o vocabulário ampliado. Aprende-se a ver como se aprende a falar, identificando e memorizando cada código, cada elemento, associando similaridade, reconhecendo diferenças, delineando sentidos. Como a linguagem, a percepção visual é construída pouco a pouco. Encontrar coerência em manchas de cores e formas depende de um “vocabulário” visual aprendido e memorizado, depende de um comportamento visual experimentado e assimilado (Sacks, 1995, p.132). Trata-se de um comportamento marcado pelo movimento visual de busca e exploração do mundo, um esforço para compreender as relações de distância, de volume, de dimensão, às vezes apenas sugeridas por alterações de cor e luz. Ainda segundo o autor: (Sacks, 1995, p.138). [...] os cegos constróem seus mundos a partir de seqüências [temporais] de impressões (táteis, auditivas, olfativas) não sendo capazes, como as pessoas com visão, de uma percepção visual simultânea, de conceber uma cena visual instantânea. O artigo parte para o ensino de artes, numa abordagem inclusiva multissensorial, pautado na necessidade do material didático concreto e de recursos plásticos e artísticos necessários e adaptados para que as aulas possam ser desenvolvidas. O conteúdo didático de artes visa possibilitar a compreensão de elementos formais da imagem, como a linha, o ponto, o espaço e o plano. Bem como os movimentos artísticos, suas idéias e artistas, em diferentes épocas e contextos culturais e a própria produção artística do aluno. Incentivando sempre a criação e auto-expressão em toda sua singularidade. Segundo Vigostki (2003), a atividade criadora é uma manifestação exclusiva do ser humano, pois só este tem a capacidade de criar algo novo a partir do que já existe. Levando em consideração a memória, o homem pode imaginar situações futuras e formar outras imagens a partir das imagens com que ele interage. A ação criadora desta forma residiria na não-adaptação do ser, numa constante construção. O aluno com deficiência visual congênita possui certa desvantagem em relação ao aluno vidente por não ter tido o objeto de imitação no processo da escrita através do desenho. Processo este, comum e necessário ao processo de aprendizado das crianças. Ele não possui a memória visual que os alunos videntes adquiriram. No caso dos alunos com cegueira congênita, como imitar o que não se vê? O desenho é uma forma de narrar tudo o que se vivenciou e experimentou durante o dia, e sem essa prática a criança não “conclui” de certa maneira o aprendizado. (DUARTE , 2004) Desafios de uma sala de aula inclusiva Embora, de acordo com os teóricos do desenvolvimento, a deficiência visual em si não constitua um obstáculo necessário para o desenvolvimento e para a aquisição de conhecimento, a trajetória escolar de muitas crianças com deficiência visual acaba sendo mal-sucedida devido a um conjunto de fatores que envolvem desde os serviços de detecção e a intervenção precoce, incluindo-se, aí, a assistência à criança e a orientação à família, até a instrumentalização dos professores para utilizar, com cada faixa etária e com cada criança, os recursos que promovam o interesse e a participação plena nas atividades da escola. (LAPLANE, BATISTA, 2008) Uma grande dificuldade que professores de alunos cegos, tendem a enfrentar, é compreender o modo como seu aluno interpreta o mundo. Essa interpretação de mundo vai ser formada de acordo com o grau da deficiência visual que ele possua, e em qual fase de sua vida foi adquirida, além das experiências por ele vividas e como foi estimulado e conduzido. O aluno que nunca enxergou, não pode recordar uma cadeira, numa imagem esquemática global, pois ele não possui a memória visual que os cegos não congênitos têm, assim como não pôde tocar a cadeira de uma só vez. Ele a conhece de forma fragmentada, e possui uma memória tátil do objeto e não uma imagem visual da cadeira como a conhecemos. O educador deverá, então, construir a imagem mental dessa cadeira com seus alunos. Organizando a memória tátil, através do reconhecimento do lugar onde se pode sentar, suas características, funções e espaços, macia ou dura, que possui braços ou não, de madeira ou de ferro, juntamente com a imagem “visual” construída através da expressão artística. Dessa maneira, o professor poderá fazer uso de objetos que simulem uma cadeira, citada como exemplo acima, ou qualquer outro objeto. Não necessariamente o objeto utilitário, podendo começar pelas formas geométricas mais simples, que são fáceis de serem percebidas, tocadas, confeccionadas, e que fazem parte do repertório das crianças. De acordo com vários teóricos que estudaram o desenho infantil, como Luquet e Arnheim, o círculo foi apontado como sendo a primeira figura desenhada pelas crianças. Rudolf Arnheim (1974) escreveu sobre o movimento de alavanca, próprio da anatomia do braço. Este movimento seria naturalmente responsável pelo gesto que desenha, iniciando e fechando a forma circular no espaço. A partir dessa forma fechada, é possível construir as primeiras representações como a figura humana ou o sol. Dessa forma, é necessário que o educador tenha as formas geométricas básicas como o círculo, quadrado e triângulo, como suas primeiras imagens indicadas na construção de um conhecer artísticos dessas crianças. (DUARTE , 2004) o caráter de cão é percebido antes da característica particular de qualquer cão”, isto é, são percebidos os “aspectos estruturais gerais mais simples. (ARNHEIM, 1974, p.158) Através dessa afirmação entendemos que o desenho infantil é uma planificação dos elementos vistos, imaginados ou vivenciados através de esquemas e formas geométricas. E ele não parte das particularidades do objeto, mas sim de seu todo, da sua totalidade, de sua generalidade. Maria Lúcia Batezad Duarte transitou pela área do ensino do desenho a crianças cegas, através de pesquisas e estudos de casos, e nos traz valiosas contribuições na área das imagens mentais e esquemas gráficos. O desenho infantil evoca os objetos como um esquema geral de uma categoria. A percepção visual não parte dos pormenores, mas, de generalidades. Rotundidade, triangularidade. (DUARTE, 2004). Os materiais a serem utilizados devem também auxiliar no processo de reconhecimento e criação de uma memória tátil, no sentido de possibilitar sempre a percepção da forma criada pelo aluno. Para isso, o giz de cera, ou giz pastel, demonstra ser uma das melhores opções por propiciar o reconhecimento tátil de forma mais rápida, pois deixa rastros que podem ser reconhecidos mais facilmente através do tato das crianças. Outros materiais com uma possibilidade maior de texturas a serem exploradas, podem ser utilizados com facilidade, como o EVA (material emborrachado), a argila, a massa de modelar, papéis com gramaturas diferentes e ondulações, tintas em alto relevo, cola e colagens utilizando materiais diferenciados como pequenas contas, sementes, pequenos objetos, lãs e barbantes. Todos esses materiais utilizados no cotidiano escolar, ou mesmo objetos que sejam de outros ambientes, como o doméstico, e que não ofereçam risco ao serem manipulados sem a supervisão do educador, podem auxiliar na elaboração das aulas. Estes objetos podem funcionar como suportes didáticos, ligados preferencialmente a outros estímulos, como os sonoros e os olfativos. O Arte educador poderá trabalhar conjuntamente os sentidos ambientando a sala de acordo com elementos que remetam ao tema trabalhado, seja espalhando pela sala essências, ou colocando músicas temáticas e outros estímulos complementares que enriquecerão o momento do aprendizado. É importante que a aula seja inclusiva no sentido de não excluir os alunos com visão normal. O educador não deve privar os demais, retirando a cor ou outros elementos considerados desnecessários, já que o cego não teria como percebê-los. O professor deve pensar em técnicas que possibilitem a visualização de todos seja por meio do tato, ou da visão. Pois, sabemos que numa sala regular podem existir alunos com outras deficiências, como a motora. Neste caso, o pensamento inclusivo deve agregar a todos, adaptando e conduzindo de forma generosa a aula e seus conteúdos. Pensando nesta sala de aula regular que acolheu alunos com necessidades especiais diversas, se faz ainda mais eficiente o ensino multissensorial, pois diferentes capacidades e níveis de assimilação podem se beneficiar, não tendo sido necessário nenhuma separação da turma no momento vivenciado. Assim, a troca de experiências entre os pares, se faz mais eficiente e prazerosa. A formação dos educadores, que atuam com esses alunos, é também ponto de bastante discussão. Estamos preparados para receber e propiciar a estes indivíduos, um aprendizado com a qualidade que eles merecem e necessitam? Oferecendo a capacidade de um aprendizado real com autonomia e reflexão? Estamos capacitados nas linguagens especificas para cada deficiência, como o Braille e LIBRAS? O que se tem visto é que não existe esse preparo. E que a formação docente ainda é insuficiente e diretamente prejudicada pelas condições físicas, econômicas e estruturais, socialmente e culturalmente construídas. É valiosa a contribuição do aprendizado do Braille na sala de aula, assim como é de extrema importância que os educadores tenham conhecimento e orientem seus alunos para que busquem a sua leitura e a sua escrita, incentivando o conhecimento dessa nova forma de comunicação e expressão. Esse aprendizado pode ser feito através de atividades artísticas propostas coletivamente, que envolvam a turma, mas também a escola, numa tentativa de tornar o ambiente escolar realmente acessível, dentro do conceito de Desenho Universal, onde se pensa o espaço de maneira global e holística, onde todos possam compartilhá-lo, não excluindo qualquer indivíduo. Um exemplo de atividade que pode ser prazerosa e de grande valor para o aprendizado e a troca de experiências, é a confecção em sala de materiais em Braille com materiais acessíveis e lúdicos. Placas de sinalização, letras, numerais e tantas outras palavras e imagens em relevo para diferentes usos, podendo ser confeccionadas por todos em tamanhos diversificados, criando na escola um ambiente universal, em que todos estejam inseridos. Todos os espaços escolares poderão ser sinalizados e decorados com essas obras, de arte e de respeito a diversidade. O ensino que se preocupa com a utilização de vários sentidos, atua de forma a ampliar e potencializar o entendimento do conteúdo trabalhado incorporando outros elementos ao objeto a ser estudado. Sendo assim, além do tato, o olfato e a audição, contribuem de forma rica e sensível para o aprendizado do aluno cego. Como exemplo de uma atividade multissensorial, temos a seguinte proposta: Ao apresentar aos alunos a biografia e obra dos grandes artistas da história da arte, o educador pode escolher o pintor impressionista francês Claude Monet (1840-1926), e sugerir uma das obras em que o artista retrata seu jardim com elementos da natureza, com flores ou plantas aquáticas. Partindo da obra escolhida, o professor poderá levar algumas flores naturais com cheiros e sons de água e da natureza em geral, recriando o ambiente pintado pelo artista. Dessa maneira, todos os alunos poderão perceber o quadro de uma forma mais intensa e prazerosa e se sentir como parte integrante da obra. Para os alunos cegos, o professor poderá levar reproduções das obras trabalhadas, com as bordas em alto relevo, preenchidas com cola branca, para que os contornos das figuras se tornem perceptíveis a eles e para que não prejudique a visualização dos demais alunos. O movimento corporal é de grande importância no desenvolvimento da pessoa cega. Através da expressão corporal ela manifesta-se, expressando e exercitando seus sentidos. Os gestos da mão quando se desenha, se pinta ou se esculpe, são prazerosos e lúdicos e podem ser incentivados e facilitados através de folhas com tamanho maiores, favorecendo uma expressão corporal mais livre. Os desenhos realizados podem ser preenchidos com cola branca, ou mesmo cobertos por lã ou barbantes, tornando-se perceptíveis ao tato. Dessa maneira, o aluno poderá acompanhar seus registros, tomando conhecimento dos pontos positivos e negativos, adquirindo estímulo para a continuação das aulas, e desenvolvendo assim autonomia e confiança no processo artístico. CONCLUSÃO Apesar das dificuldades impostas aos alunos com deficiência visual, visto que grande parte das impressões que apreendemos, são através do sentido da visão, é possível garantir que eles tenham acesso e satisfatória condição de permanência no processo de aprendizagem em escolas regulares, adquirindo autonomia e participando de forma ativa e consciente em seus espaços de convivência e modificando-os, assim como é modificado. Pois, segundo Coimbra: Esse conhecimento para o portador de deficiência visual realiza-se, assim, não apenas através de sua simples capacidade de percepção sensorial do objeto, utilizando seus canais perceptivos, quais sejam, o tato, a audição, o paladar, o movimento cinestésico, mas, principalmente, da oportunidade de reflexão, manipulação ou exploração desse objeto, [...] (COIMBRA, 2003, p.77). O ensino de artes por sua natureza expressiva é capaz de apresentar aos alunos não videntes, “imagens”, técnicas e suportes para que sejam ampliadas suas possibilidades intelectuais acerca do mundo em que vivemos e nossa cultura, bem como possibilita o autoconhecimento, e consequentemente, a autoestima. É possível que se tenha uma sala de aula repleta de cheiros, sons, imagens e objetos, e, dentro dela, alunos conscientes de sua identidade, cientes de seu mundo construído e de suas possibilidades enquanto sujeitos transformadores de sua condição histórica de exclusão e obstáculos, sendo a arte um valioso instrumento dessa mudança. REFERÊNCIAS AMIRALIAN, Maria Lúcia T. M. COMPREENDENDO O CEGO: Uma visão psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-Estórias. São Paulo: Casa do psicólogo, 1997. ALMEIDA, A, [et alli]. Da Educação Especial à Escola Inclusiva. IN: MOSQUERA, J. e STOBAÜS, C. (Orgs). Educação Especial: Em direção à educação inclusiva. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. 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