IMAGENS DA NÃO VISÃO:
O ENSINO MULTISSENSORIAL DE ARTES PARA ALUNOS
COM DEFICIÊNCIA VISUAL 1
Marina Vargas Tomaz*
Maria Helena Fratari**
RESUMO
O que é ver? Como se vê? Quantos meios podem ser utilizados para a percepção e aquisição
de conhecimento de pessoas com deficiência visual e como a arte pode auxiliar neste
processo? A partir dessas perguntas centrais, baseado nos preceitos históricos-culturais de Lev
Vigostiski, em estudiosos do desenho infantil, bem como em pesquisas atuais no campo da
cegueira e da arte, se desenvolveu este artigo, com o intuito de pesquisar como a percepção e
o entendimento da pessoa que não vê se desenvolvem, através da mediação da arte e seus
recursos multissensoriais. Como a Arte pode contribuir no processo de ensino e aprendizagem
e formação dessas pessoas?
Palavras-chave: Inclusão. Arte educação. Deficiência visual. Multissensorialidade
INTRODUÇÃO
A política brasileira de inclusão escolar foi construída a partir de lutas, esforços e
convenções ocorridos em todo o mundo como a Declaração de Salamanca (1994), Espanha, e
de dispositivos inseridos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n. 9.394/96
(Brasil, 1996), que passaram a assumir objetivos inclusivistas em nossa legislação.
A Carta de Salamanca defendeu a inclusão de pessoas com algum tipo de deficiência,
excluindo a prática da segregação destes indivíduos. Essa prática carregava uma visão
discriminatória, entendendo a pessoa com deficiência como incapaz de cuidar de si mesma.
Por isso, se fazia necessário a permanência dessas pessoas em ambientes especiais e que não
ofereciam obstáculos, riscos e experiências próprias da convivência. Conceitos como
Integração Social e Inclusão Social, surgiram apenas nas décadas de 70 e 90,
respectivamente.(COIMBRA, 2003). Segundo a Declaração de Salamanca:
1
Artigo elaborado para conclusão do curso de Pós Graduação em Educação Inclusiva na Faculdade Católica de
Uberlândia.
*
Aluna do curso de Especialização em Educação Inclusiva da Faculdade Católica de Uberlândia – MG, arte
educadora, artista plástica. e-mail: [email protected].
**
Professora-Orientadora da Faculdade Católica de Uberlândia – MG. e-mail: [email protected]
A escola inclusiva é o lugar onde todas as crianças devem aprender juntas, sempre
que possível, independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenças que elas
possam ter, conhecendo e respondendo às necessidades diversas de seus alunos,
acomodando ambos os estilos e ritmos de aprendizagem e assegurando uma
educação de qualidade a todos.
A escola inclusiva deve ser o lugar agregador, que compartilha experiências no
processo de ensino aprendizagem, comporta e entende diferenças, sendo capaz de conduzi-las
no sentido de que alcancem o objetivo comum, que é a construção de conhecimento.
O desafio de incluir, e não somente aceitar, alunos com necessidades escolares
especiais, seja por uma deficiência física, motora, intelectual, visual ou auditiva, no sistema
regular de ensino, é imenso e complexo. Pois, na atual configuração do sistema educacional
brasileiro, em que a carência na formação docente, a falta de recursos financeiros e estruturas
adequadas são problemas a serem vencidos cotidianamente, o desafio da inclusão se torna
mais uma demanda a ser resolvida, em toda sua complexidade.
Uma proposta inclusiva de educação pretende compreender o ser humano em sua
totalidade. Como possuidor de singularidades, saberes, experiências e vivências. Entendendo
a construção de conhecimento e a formação de conceitos como processos singulares, onde os
indivíduos interagem ativamente com o meio, se apropriando dos significados, construindo o
aprendizado de maneira reflexiva e autônoma. Esse pensamento baseado nas interações com o
meio e entre as pessoas, estabelece relações com a concepção histórico-cultural, enfatizada
pelas idéias do russo Lev Semyonovitch Vygostisky (1896-1934).
Num texto escrito em 1920, Vigotski faz uma crítica a análise feita de forma
quantitativa deficiências. Ou seja, ele critica os métodos usados para analisar uma deficiência
que fazem uso de mensurações, criando graus e níveis de debilidade, entendendo a deficiência
de maneira engessada e sem vias alternativas. A contribuição de Vigostski é no sentido de que
não se deve pensar a deficiência, qualificando-a em níveis, tampouco adequá-la baseando-se
nos parâmetros da normalidade. Mas entendê-la como um espaço complexo e singular, com
suas próprias características, possivelmente capaz de interação. (NUERNBERG, 2008)
Dessa maneira, faz-se necessário investigar o modo como o funcionamento psíquico se
organiza na condição da deficiência. Sua perspectiva inclinava-se para a diversidade humana
em todas as suas possibilidades. Interessava ao autor, a investigação destas leis da
diversidade, no estudo das vias alternativas de desenvolvimento humano na presença da
deficiência. Este novo modo de enxergar representou um grande salto na maneira como era
encarada a deficiência. Lev Vigostski afirmava que o funcionamento psíquico das pessoas
com deficiência obedece às mesmas leis, embora com uma organização distinta das pessoas
sem deficiência. (NUERNBERG, 2008)
O ensino de Artes nas escolas regulares deve acompanhar a inclusão escolar garantida
pela Lei de Diretrizes e Bases. Assim como os outros conteúdos escolares, a Arte Educação, é
possivelmente adaptável para pessoas com diferentes deficiências, sobretudo os deficientes
visuais, objeto de pesquisa deste artigo.
Arte: Caminhos possíveis em Educação Inclusiva
Felizmente, a maioria consegue ver com os ouvidos, ouvir e ver com o cérebro, o
estômago e a alma. Acho que vemos um pouco com os olhos, mas não somente.
(Win Wenders, 2002 – Documentário Janela da alma)
A arte nos currículos escolares desempenha um importante papel na formação dos
indivíduos, uma vez que propicia o contato com a sua própria cultura, favorecendo o
autoconhecimento, a valorização e o contato com as expressões artísticas em diferentes
períodos históricos e lugares. Ampliando, assim, a visão de mundo, enriquecendo o
vocabulário estético e possibilitando a leitura de imagens. Estas capacidades, sobretudo a de
leitura de imagens, se tornam valiosas numa sociedade excessivamente visual, como é a que
vivenciamos na contemporaneidade, que tende a excluir e segregar quem não compartilha
destas leituras.
Ana Mae Barbosa Tavares, importante Arte Educadora brasileira, nos fala sobre a
importância da Arte Educação para a formação do ser humano de forma mais completa,
visando contribuir para a formação humana do aluno e seu papel para além das salas de aula.
Segundo Barbosa (1991. p 5):
Não é possível o desenvolvimento de uma cultura sem o desenvolvimento de suas
formas artísticas. Não é possível uma educação intelectual, formal ou informal, de
elite ou popular, sem arte, porque é impossível o desenvolvimento integral da
inteligência sem o desenvolvimento do pensamento divergente, do pensamento
visual e do conhecimento presentacional que caracteriza a arte.
Se pretendemos uma educação não apenas intelectual, mas principalmente
humanizadora, a necessidade da arte é ainda mais crucial para desenvolver a
capacidade criadora necessária à modificação dessa realidade.
Partindo destes pressupostos, como poderia a arte ser acessível ao aluno que tem seu
instrumento da visão com alguma debilidade? Como a Arte Educação pode contribuir na
formação de crianças e adultos com deficiência visual, cumprindo todas as suas
potencialidades formadoras e criativas? Como a arte, uma expressão histórica e
majoritariamente construída para nosso sentido visual, e normalmente distante do toque,
poderia alcançar e atender às demandas da educação inclusiva para deficientes visuais,
especificamente?
Segundo as autoras Adriana Lia Friszman Laplane e Cecília Guarnieri Batista,
estudiosas do tema da Educação inclusiva para deficientes visuais (2003):
É preciso primeiramente compreender que a deficiência visual engloba uma
variedade de condições orgânicas e sensoriais que têm conseqüências diferentes no
desempenho visual dos sujeitos. Desde pequenas alterações na acuidade visual até a
ausência de percepção de luz. (...) Para além dos termos técnicos e das medidas de
acuidade visual é importante entender que entre as pessoas com baixa visão e
cegueira podemos encontrar situações muito díspares. Algumas dessas pessoas terão
autonomia na locomoção e outras deverão desenvolver estratégias para atingi-la;
algumas poderão realizar com pouca dificuldade as tarefas escolares sem qualquer
auxílio e outras necessitarão de auxílios ópticos (lupas e telescópios) ou não ópticos
(ampliações, iluminação especial e outras adaptações do ambiente) para melhorar
seu desempenho; algumas conseguirão utilizar materiais visuais e outras preferirão
os materiais táteis (sistema Braille de escrita) ou auditivos. À diversidade natural
existente na natureza humana soma-se, assim, a variabilidade das condições criadas
pelos diferentes tipos de deficiência visual e seus efeitos no desenvolvimento e na
comunicação com os outros.
Na tentativa de responder as questões acerca do ensino de artes e sua contribuição ao
processo de aprendizagem dos alunos com deficiência visual, podemos refletir acerca do
nosso sistema educacional. Este sistema e, mesmo nós, seres humanos, nos apoiamos em
metodologias de ensino que abordam o objeto de estudo a partir de citações, analogias,
comparações e exemplos. Sem, necessariamente, ter o objeto de estudo presente no ambiente
de ensino, disponível para o contato direto do educando. Ou seja, o ensino se dá, na maioria
das vezes de maneira indireta, através de objetos e citações que fazem essa ponte com o
conteúdo visto. Como exemplo, podemos pensar nas aulas de geografia em que conhecemos a
geografia física, através de simulações de relevos ou mapas, sem necessariamente estar em
todos os lugares do globo, vendo e tocando seus aspectos geográficos.
Dessa maneira, por que o aluno com alguma deficiência visual não pode ter acesso aos
conteúdos próprios da arte, através de recursos indiretos disponíveis e adaptados? Por que não
repensar as aulas de arte para que o conhecimento se dê através de alternativas possíveis,
contando com outros sentidos, e não somente a visão? (BALLESTERO-ALVAREZ, 2003)
A educadora Ivanê Dantas Coimbra, fala das dificuldades impostas pela sala de aula
regular e seu modelo estabelecido historicamente, à inclusão dos alunos com deficiência
visual. Seu livro é o resultado de pesquisas e estudos de caso, em escolas regulares de
Salvador. Eis o que ela diz COIMBRA (2003, p. 65):
Entretanto, sob a égide da padronização e por centrar o conhecimento no ver, em vez
de no sentir e no perceber, a escola restringe ou inviabiliza a utilização da
imaginação, da criatividade e de outros canais de percepção ou expressão (o tátil, o
auditivo, o olfativo, o cinestésico), dentro do cotidiano da sala de aula, o que limita
os caminhos para que aquele portador possa construir o seu conhecimento.
Uma abordagem de ensino multissensorial, é capaz de responder a diversos desafios
impostos pela falta da visão. Ele corresponde a um ensino pautado em todas as dimensões
sensoriais do aluno, e não exclusivamente na visão, ou audição, ou fala, como é regularmente
visto em nossas escolas. O ensino que se preocupa em utilizar todos os sentidos, de forma
generosa, reflexiva, agradável e lúdica, potencializa o aprendizado, incluindo a todos numa
abordagem que permite uma maior fixação dos conteúdos escolares através dos sentidos, pois
permite que o aluno apreenda simultaneamente o objeto através de todos os meios e canais de
percepção, enviando-os ao cérebro.
É no cérebro que as informações se processam e se concretizam, formando um
conceito mais complexo acerca do objeto estudado, pois foram obtidos diferentes e numerosos
dados sobre ele, como a textura, o cheiro e a forma que este objeto possui. Assim, o
aprendizado se torna mais eficaz, completo e concreto, pois foram utilizados sentidos
diversos, e foram oferecidos motivos a mais para que a solidificação deste novo conceito se
tornasse real para o aluno. (BALLESTERO-ALVAREZ, 2003)
A arte educação é de grande importância para alunos com deficiência visual, pois
possibilita o desenvolvimento de suas potencialidades e favorece o processo de descobrimento
e interação com o mundo ao seu redor, através da sua natureza plástica, interativa e
expressiva. Muitas vezes, a escola é o lugar onde a criança que não enxerga pode exercer sua
autonomia e sua independência, seja pelo excesso de cuidados que possui em casa, ou pela
falta de informação da família, a respeito das potencialidades desta criança.
A curiosidade é um estímulo de grande valor e mesmo decisivo para as aquisições que
serão feitas pela criança que se encontra num estágio de descobrimento e conscientização do
mundo e seus contextos, e isso se concretiza através dos sentidos. Seja pela exploração do
ambiente que a cerca, pelo aprendizado e socialização com os colegas, através das
brincadeiras e experiências do cotidiano escolar, é a curiosidade que vai motivá-la a interagir
e buscar novas vivências.
A respeito dos estímulos sensoriais diversificados, bem como a movimentação e expressão
corporais e o contato com outros alunos no espaço cotidiano, Coimbra nos contempla dizendo
(2003, p. 168):
O uso de estímulos sensoriais com o propósito de transformá-los em percepção e
construção de significados depende, assim, de que aquele portador possa viver
ativamente as experiências de aprendizagem, utilizando o contato com o seu próprio
corpo e dos seus pares, pois a imagem ou consciência corporal fornece informações
mais consistentes e instáveis, possibilitando a organização das suas ações no tempo
e espaço.
Estímulos, imaginação e possibilidades
O ato de ver e olhar não se limita a olhar para fora, não se limita a olhar o visível,
mas também o invisível, de certa forma é o que chamamos de imaginação. (Oliver
Sacks, 2002– Documentário Janela da alma)
Para Vigotski, a imaginação está vinculada a realidade e com o significado que esta
realidade possui, bem como as vivências da criança. Através dos desenhos, as crianças
entendem o mundo, mostram o que conhecem, interpretando a realidade. Com a verbalização
associada aos desenhos, elas atribuem significados aos mesmos, e estes revelam o sentido
dado ao desenho. Sentido este não dado por uma pessoa externa àquela experiência, mas por
quem vivenciou o processo. Os desenhos por si só, sem as verbalizações, não são capazes de
explicar o significado que a criança atribuiu ao que desenhou, é o pensamento narrado pela
criança que nos ilustra seu mundo. Ela desenha o que conhece, mas também, realiza através
desses desenhos desconstruções, reconstruções e novos arranjos, de acordo com suas
experiências, imaginação e ações criativas. (FREITAS, 2009)
A criança não-vidente necessita da estimulação e do contato sensorial com o mundo,
com muito mais intensidade e urgência que outras crianças com visão normal. Ela precisa
perceber e conhecer detalhes, as características e as nuances do meio em que está inserida.
Associar características, reconhecendo cheiros e formas, exercitando seus outros sentidos de
maneira interativa, sensível, autônoma e portadora de significados. As respostas aos estímulos
são valiosas, pois são elas que possibilitam que a criança compreenda suas ações e reações
conseqüentes. Sem a possibilidade da expressão facial positiva ou não a sua ação, a criança
precisa de respostas em toques ou manifestações verbais que a guiem e incentivem.
Segundo a autora Ivanê Dantas Coimbra: (COIMBRA, 2003)
A ludicidade faz parte intrínseca da natureza infantil, congregando os aspectos
afetivos, emocionais e interativos da personalidade da criança. Além disso, é
considerado um fator crucial para o desenvolvimento cognitivo, porque permite que
a aprendizagem se realize de forma dinâmica, criativa, e, principalmente através do
prazer, que gera a vontade de aprender.
Para a pessoa não-vidente, o lúdico se torna uma possibilidade de expressão a respeito
do objeto, sendo “permitido” explorá-lo mais livremente, com seu ritmo e maneira
particulares, dando também a ele, significados de maneira solta, autônoma, pessoal e
subjetiva, sem o compromisso da lógica das respostas esperadas pela escola normalmente.
Entretanto, antes de ser uma dificuldade somente da questão da inclusão de alunos com
deficiência visual, as atividades lúdicas na escola são pouco incentivadas, pois elas rompem
conceitos de organização, silêncio e ordem, impostos na escola regular. Ainda segundo a
autora: (COIMBRA, 2003, p. 173)
Nesse caso, os princípios da ludicidade, que são diametralmente opostos às
condições de pouca mobilidade e formalidade características da prática da escola
tradicional regular, precisam ser resgatados para não se comprometer ainda mais as
condições de inclusão da criança cega.
A arte é um instrumento capaz e propício para que essa ponte seja construída. A arte
pode funcionar como elemento facilitador e propulsor no processo de criação de conceitos,
uma vez que possui características múltiplas que favorecem a auto-expressão e a comunicação
direta, ricamente construída dentro dos processos artísticos. Assim, através de elementos
artísticos como a textura, o volume, a linha, o ponto, o relevo e o espaço, vão se formando
imagens físicas e concretas, que auxiliam no processo de ensino aprendizagem.
O desenho pode ser considerado a escrita primitiva da criança na primeira infância.
Palavra e desenho são equivalentes simbólicos nessa fase em especial, sendo que, o desenho é
a primeira maneira de “escrever” a palavra que nomeia o objeto. (DUARTE, 2004)
Segundo Oliver Sacks, neurologista, ver é uma experiência construída pelos sujeitos
ao longo da sua infância, assim como o aprendizado da fala, no qual os significados das
palavras da língua materna vão sendo pouco a pouco assimilados e o vocabulário ampliado.
Aprende-se a ver como se aprende a falar, identificando e memorizando cada código, cada
elemento, associando similaridade, reconhecendo diferenças, delineando sentidos. Como a
linguagem, a percepção visual é construída pouco a pouco. Encontrar coerência em manchas
de cores e formas depende de um “vocabulário” visual aprendido e memorizado, depende de
um comportamento visual experimentado e assimilado (Sacks, 1995, p.132). Trata-se de um
comportamento marcado pelo movimento visual de busca e exploração do mundo, um esforço
para compreender as relações de distância, de volume, de dimensão, às vezes apenas
sugeridas por alterações de cor e luz. Ainda segundo o autor: (Sacks, 1995, p.138).
[...] os cegos constróem seus mundos a partir de seqüências [temporais] de
impressões (táteis, auditivas, olfativas) não sendo capazes, como as pessoas com
visão, de uma percepção visual simultânea, de conceber uma cena visual
instantânea.
O artigo parte para o ensino de artes, numa abordagem inclusiva multissensorial,
pautado na necessidade do material didático concreto e de recursos plásticos e artísticos
necessários e adaptados para que as aulas possam ser desenvolvidas. O conteúdo didático de
artes visa possibilitar a compreensão de elementos formais da imagem, como a linha, o ponto,
o espaço e o plano. Bem como os movimentos artísticos, suas idéias e artistas, em diferentes
épocas e contextos culturais e a própria produção artística do aluno. Incentivando sempre a
criação e auto-expressão em toda sua singularidade.
Segundo Vigostki (2003), a atividade criadora é uma manifestação exclusiva do ser
humano, pois só este tem a capacidade de criar algo novo a partir do que já existe. Levando
em consideração a memória, o homem pode imaginar situações futuras e formar outras
imagens a partir das imagens com que ele interage. A ação criadora desta forma residiria na
não-adaptação do ser, numa constante construção.
O aluno com deficiência visual congênita possui certa desvantagem em relação ao
aluno vidente por não ter tido o objeto de imitação no processo da escrita através do desenho.
Processo este, comum e necessário ao processo de aprendizado das crianças. Ele não possui a
memória visual que os alunos videntes adquiriram. No caso dos alunos com cegueira
congênita, como imitar o que não se vê? O desenho é uma forma de narrar tudo o que se
vivenciou e experimentou durante o dia, e sem essa prática a criança não “conclui” de certa
maneira o aprendizado. (DUARTE , 2004)
Desafios de uma sala de aula inclusiva
Embora, de acordo com os teóricos do desenvolvimento, a deficiência visual em si
não constitua um obstáculo necessário para o desenvolvimento e para a aquisição de
conhecimento, a trajetória escolar de muitas crianças com deficiência visual acaba
sendo mal-sucedida devido a um conjunto de fatores que envolvem desde os
serviços de detecção e a intervenção precoce, incluindo-se, aí, a assistência à criança
e a orientação à família, até a instrumentalização dos professores para utilizar, com
cada faixa etária e com cada criança, os recursos que promovam o interesse e a
participação plena nas atividades da escola. (LAPLANE, BATISTA, 2008)
Uma grande dificuldade que professores de alunos cegos, tendem a enfrentar, é
compreender o modo como seu aluno interpreta o mundo. Essa interpretação de mundo vai ser
formada de acordo com o grau da deficiência visual que ele possua, e em qual fase de sua vida
foi adquirida, além das experiências por ele vividas e como foi estimulado e conduzido.
O aluno que nunca enxergou, não pode recordar uma cadeira, numa imagem
esquemática global, pois ele não possui a memória visual que os cegos não congênitos têm,
assim como não pôde tocar a cadeira de uma só vez. Ele a conhece de forma fragmentada, e
possui uma memória tátil do objeto e não uma imagem visual da cadeira como a conhecemos.
O educador deverá, então, construir a imagem mental dessa cadeira com seus alunos.
Organizando a memória tátil, através do reconhecimento do lugar onde se pode sentar, suas
características, funções e espaços, macia ou dura, que possui braços ou não, de madeira ou de
ferro, juntamente com a imagem “visual” construída através da expressão artística. Dessa
maneira, o professor poderá fazer uso de objetos que simulem uma cadeira, citada como
exemplo acima, ou qualquer outro objeto. Não necessariamente o objeto utilitário, podendo
começar pelas formas geométricas mais simples, que são fáceis de serem percebidas, tocadas,
confeccionadas, e que fazem parte do repertório das crianças.
De acordo com vários teóricos que estudaram o desenho infantil, como Luquet e
Arnheim, o círculo foi apontado como sendo a primeira figura desenhada pelas crianças.
Rudolf Arnheim (1974) escreveu sobre o movimento de alavanca, próprio da anatomia do
braço. Este movimento seria naturalmente responsável pelo gesto que desenha, iniciando e
fechando a forma circular no espaço. A partir dessa forma fechada, é possível construir as
primeiras representações como a figura humana ou o sol.
Dessa forma, é necessário que o educador tenha as formas geométricas básicas como o
círculo, quadrado e triângulo, como suas primeiras imagens indicadas na construção de um
conhecer artísticos dessas crianças. (DUARTE , 2004)
o caráter de cão é percebido antes da característica particular de qualquer cão”, isto
é, são percebidos os “aspectos estruturais gerais mais simples. (ARNHEIM, 1974,
p.158)
Através dessa afirmação entendemos que o desenho infantil é uma planificação dos
elementos vistos, imaginados ou vivenciados através de esquemas e formas geométricas. E
ele não parte das particularidades do objeto, mas sim de seu todo, da sua totalidade, de sua
generalidade. Maria Lúcia Batezad Duarte transitou pela área do ensino do desenho a
crianças cegas, através de pesquisas e estudos de casos, e nos traz valiosas contribuições na
área das imagens mentais e esquemas gráficos. O desenho infantil evoca os objetos como
um esquema geral de uma categoria. A percepção visual não parte dos pormenores, mas,
de generalidades. Rotundidade, triangularidade. (DUARTE, 2004).
Os materiais a serem utilizados devem também auxiliar no processo de
reconhecimento e criação de uma memória tátil, no sentido de possibilitar sempre a
percepção da forma criada pelo aluno. Para isso, o giz de cera, ou giz pastel, demonstra ser
uma das melhores opções por propiciar o reconhecimento tátil de forma mais rápida, pois
deixa rastros que podem ser reconhecidos mais facilmente através do tato das crianças.
Outros materiais com uma possibilidade maior de texturas a serem exploradas,
podem ser utilizados com facilidade, como o EVA (material emborrachado), a argila, a
massa de modelar, papéis com gramaturas diferentes e ondulações, tintas em alto relevo,
cola e colagens utilizando materiais diferenciados como pequenas contas, sementes,
pequenos objetos, lãs e barbantes. Todos esses materiais utilizados no cotidiano escolar, ou
mesmo objetos que sejam de outros ambientes, como o doméstico, e que não ofereçam
risco ao serem manipulados sem a supervisão do educador, podem auxiliar na elaboração
das aulas.
Estes objetos podem funcionar como suportes didáticos, ligados preferencialmente a
outros estímulos, como os sonoros e os olfativos. O Arte educador poderá trabalhar
conjuntamente os sentidos ambientando a sala de acordo com elementos que remetam ao
tema trabalhado, seja espalhando pela sala essências, ou colocando músicas temáticas e
outros estímulos complementares que enriquecerão o momento do aprendizado.
É importante que a aula seja inclusiva no sentido de não excluir os alunos com visão
normal. O educador não deve privar os demais, retirando a cor ou outros elementos
considerados desnecessários, já que o cego não teria como percebê-los. O professor deve
pensar em técnicas que possibilitem a visualização de todos seja por meio do tato, ou da
visão. Pois, sabemos que numa sala regular podem existir alunos com outras deficiências,
como a motora. Neste caso, o pensamento inclusivo deve agregar a todos, adaptando e
conduzindo de forma generosa a aula e seus conteúdos.
Pensando nesta sala de aula regular que acolheu alunos com necessidades especiais
diversas, se faz ainda mais eficiente o ensino multissensorial, pois diferentes capacidades e
níveis de assimilação podem se beneficiar, não tendo sido necessário nenhuma separação da
turma no momento vivenciado. Assim, a troca de experiências entre os pares, se faz mais
eficiente e prazerosa.
A formação dos educadores, que atuam com esses alunos, é também ponto de bastante
discussão. Estamos preparados para receber e propiciar a estes indivíduos, um aprendizado
com a qualidade que eles merecem e necessitam? Oferecendo a capacidade de um
aprendizado real com autonomia e reflexão? Estamos capacitados nas linguagens especificas
para cada deficiência, como o Braille e LIBRAS? O que se tem visto é que não existe esse
preparo. E que a formação docente ainda é insuficiente e diretamente prejudicada pelas
condições físicas, econômicas e estruturais, socialmente e culturalmente construídas.
É valiosa a contribuição do aprendizado do Braille na sala de aula, assim como é de
extrema importância que os educadores tenham conhecimento e orientem seus alunos para
que busquem a sua leitura e a sua escrita, incentivando o conhecimento dessa nova forma de
comunicação e expressão. Esse aprendizado pode ser feito através de atividades artísticas
propostas coletivamente, que envolvam a turma, mas também a escola, numa tentativa de
tornar o ambiente escolar realmente acessível, dentro do conceito de Desenho Universal, onde
se pensa o espaço de maneira global e holística, onde todos possam compartilhá-lo, não
excluindo qualquer indivíduo.
Um exemplo de atividade que pode ser prazerosa e de grande valor para o aprendizado
e a troca de experiências, é a confecção em sala de materiais em Braille com materiais
acessíveis e lúdicos. Placas de sinalização, letras, numerais e tantas outras palavras e imagens
em relevo para diferentes usos, podendo ser confeccionadas por todos em tamanhos
diversificados, criando na escola um ambiente universal, em que todos estejam inseridos.
Todos os espaços escolares poderão ser sinalizados e decorados com essas obras, de arte e de
respeito a diversidade.
O ensino que se preocupa com a utilização de vários sentidos, atua de forma a ampliar
e potencializar o entendimento do conteúdo trabalhado incorporando outros elementos ao
objeto a ser estudado. Sendo assim, além do tato, o olfato e a audição, contribuem de forma
rica e sensível para o aprendizado do aluno cego.
Como exemplo de uma atividade multissensorial, temos a seguinte proposta: Ao
apresentar aos alunos a biografia e obra dos grandes artistas da história da arte, o educador
pode escolher o pintor impressionista francês Claude Monet (1840-1926), e sugerir uma das
obras em que o artista retrata seu jardim com elementos da natureza, com flores ou plantas
aquáticas. Partindo da obra escolhida, o professor poderá levar algumas flores naturais com
cheiros e sons de água e da natureza em geral, recriando o ambiente pintado pelo artista.
Dessa maneira, todos os alunos poderão perceber o quadro de uma forma mais intensa e
prazerosa e se sentir como parte integrante da obra. Para os alunos cegos, o professor poderá
levar reproduções das obras trabalhadas, com as bordas em alto relevo, preenchidas com cola
branca, para que os contornos das figuras se tornem perceptíveis a eles e para que não
prejudique a visualização dos demais alunos.
O movimento corporal é de grande importância no desenvolvimento da pessoa cega.
Através da expressão corporal ela manifesta-se, expressando e exercitando seus sentidos. Os
gestos da mão quando se desenha, se pinta ou se esculpe, são prazerosos e lúdicos e podem
ser incentivados e facilitados através de folhas com tamanho maiores, favorecendo uma
expressão corporal mais livre.
Os desenhos realizados podem ser preenchidos com cola branca, ou mesmo cobertos
por lã ou barbantes, tornando-se perceptíveis ao tato. Dessa maneira, o aluno poderá
acompanhar seus registros, tomando conhecimento dos pontos positivos e negativos,
adquirindo estímulo para a continuação das aulas, e desenvolvendo assim autonomia e
confiança no processo artístico.
CONCLUSÃO
Apesar das dificuldades impostas aos alunos com deficiência visual, visto que grande
parte das impressões que apreendemos, são através do sentido da visão, é possível garantir
que eles tenham acesso e satisfatória condição de permanência no processo de aprendizagem
em escolas regulares, adquirindo autonomia e participando de forma ativa e consciente em
seus espaços de convivência e modificando-os, assim como é modificado. Pois, segundo
Coimbra:
Esse conhecimento para o portador de deficiência visual realiza-se, assim, não
apenas através de sua simples capacidade de percepção sensorial do objeto,
utilizando seus canais perceptivos, quais sejam, o tato, a audição, o paladar, o
movimento cinestésico, mas, principalmente, da oportunidade de reflexão,
manipulação ou exploração desse objeto, [...] (COIMBRA, 2003, p.77).
O ensino de artes por sua natureza expressiva é capaz de apresentar aos alunos não
videntes, “imagens”, técnicas e suportes para que sejam ampliadas suas possibilidades
intelectuais acerca do mundo em que vivemos e nossa cultura, bem como possibilita o
autoconhecimento, e consequentemente, a autoestima. É possível que se tenha uma sala de
aula repleta de cheiros, sons, imagens e objetos, e, dentro dela, alunos conscientes de sua
identidade, cientes de seu mundo construído e de suas possibilidades enquanto sujeitos
transformadores de sua condição histórica de exclusão e obstáculos, sendo a arte um valioso
instrumento dessa mudança.
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