A PINTURA DE GÊNERO E O BACO: O MASCULINO NAS OBRAS DE
CARAVAGGIO
ANNA MARIA DE LIRA PONTES1
Michelangelo Merisi, mais conhecido como Caravaggio – região em que nasceu –, foi
um marco para o Barroco italiano. Na época conturbada em que vivia conseguiu livrar-se das
dificuldades financeiras, obtendo sucesso ainda em vida. Contudo, foi logo esquecido e
omitido por séculos dentro da História da Arte até surgirem os trabalhos de Roberto Longhi,
já no século XX.
Socialmente, Caravaggio viveu um mundo de escândalos. Chegou a ser condenado e
processado várias vezes e por diversos crimes – por não pagar o aluguel de seu apartamento e
até por assassinato. Indo de cidade em cidade, ao fim de sua carreira, fugindo de seus
inimigos e da justiça, produzindo quadros para agradecer a seus protetores, acabou por falecer
em 18 de julho de 1610 em Porto Ecole, no litoral próximo a Roma.
A obra de Caravaggio é, sem dúvida, complexa em relação a seus temas e a como ele
os aborda. Afinal, o pintor barroco tornou-se muito conhecido pelo realismo de suas telas e
por sua transferência de personalidade à tela, tanto nos auto-retratos, como também pelos
traços característicos de sua obra, como o realismo, o uso da luz e de modelos que não
contavam com prestígio na época, bem como pela provocação sexual nos personagens
representados, entre outros. Em relação aos temas utilizados por Caravaggio, em comparação
com o Maneirismo, Lambert destaca:
Caravaggio é o pintor mais misterioso e, sem dúvida, o mais revolucionário
da história da arte. Em Roma, trinta e quatro anos após a morte de Miguel
Ângelo, ele esteve na origem de uma reacção violenta contra “o
Maneirismo”, ou seja, a forma de pintar dos mais velhos, que ele
considerava limitados, afectados e académicos. Impôs uma nova linguagem,
realista, teatral, escolhendo em cada tema o instante mais dramático
recrutando os modelos de rua, mesmo para as cenas mais sagradas como a
Morte da Virgem, não hesitando em pintá-los de noite, o que poucos, antes
dele, tinham ousado. (Lambert, 2001: 07)
O Barroco aparece como um novo estilo artístico em superação ao Maneirismo, que
por si só já dava traços de decadência. Em fins do século XVI havia o pensamento, na Europa,
de que a pintura havia alcançado seu cume com pintores como Ticiano, Rafael e Miguel
Ângelo, o que despertou um anseio por inovação entre os artistas, especialmente os novos e
jovens, que almejaram não apenas copiar os grandes mestres, como também inovar e buscar
formas inovadoras de pintura e arquitetura. Naquele período, percebemos uma crise na arte
em vários países, principalmente no norte da Europa (Inglaterra e Alemanha, por exemplo),
em que a pintura ficou restrita e limitada a retratos de nobres. Em sobreposição a este
momento, surge o Barroco. Em relação à constante comparação com o Maneirismo,
Gombrich afirma que “... a pintura seiscentista não é apenas um prolongamento do estilo
maneirista. Pelo menos, as pessoas da época não a consideravam como tal. Acharam que a
arte caíra numa rotina perigosa, e era preciso sair dela.” (1999: 390). E isto viria com o
Barroco.
Para Gombrich, o Barroco, que foi uma terminologia aplicada posteriormente ao
movimento “... significa absurdo ou grotesco, e era empregado por homens que insistiam em
que as formas das construções clássicas deveriam ser usadas ou combinadas senão da maneira
adotada por gregos ou romanos” (1999: 387). Alguns elementos presentes na pintura barroca
para este historiador da arte são: “a ênfase sobre a luz e a cor; o desprezo pelo equilíbrio
simples; e a preferência por composições mais complicadas” (1990: 390). O Barroco volta-se
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para as emoções, para a exposição da luz e marca um novo momento artístico, que terá seu
centro na cidade de Roma.
Enquanto alguns pensadores entendem que o Barroco não possui características
marcantes, outros afirmam que este foi o grande último estilo artístico da Europa. Através de
sua difusão pelo mundo, se pode perceber a grandiosidade de seu sucesso enquanto
movimento estético.
Na pintura barroca teremos o surgimento de deuses e heróis antigos enquanto “...
suportes de sentidos bem definidos que elevavam qualquer acção que lhes estivesse confiada
ao plano superior da realidade histórica e mítica.” (Prater, 1997: 11). Em Caravaggio, eles
foram rebaixados a forma mundana através de seu realismo. Assim, Prater coloca uma
contradição entre Caravaggio e o Barroco:
(...) o problema do barroco estava em transcender o mundo natural com a
ajuda de meios artísticos específicos, os do dramático, do “pathos”
extrovertido e do ilusionismo, por um lado e, por outro lado, os da vista
extremamente chegada, da interiorização, da distanciação e de uma perda do
real. (Prater, 1997: 15). Grifo da autora.
O Barroco tem como elemento essencial a alegoria. Ao analisar um diferente tipo de
arte no barroco, o teatro, Carpeaux destaca:
Mas vejo, o contrário, na “tentação” do teatro barroco, uma imitação
intencional do Destino antigo, naturalmente em transformação e inquietação
cristãs. [...] o homem é prisioneiro do pecado original do mundo, toda a
natureza está destinada à morte, motivo preferido da poesia barroca; a
própria história humana é o caminho de paixão da humanidade. (Carpeaux,
1990: 18)
Assim como em outros aspectos do cotidiano, o teatro barroco estava ligado à
encenação e a moralização da sociedade. O ser humano para a época, de acordo com o
pensamento de Carpeaux, era visto apenas como um pobre ser terreno que havia de carregar o
estigma de viver sobre a inquietação da vida humana/terrena, do pecado e ainda das tentações.
Enquanto a santidade era um campo intocável, pertencente aos santos, altamente
representados pela pintura. E, passando para o Barroco em si, que é um movimento que se
infiltrou em todas as instâncias da vida cotidiana, a alegoria religiosa era algo essencial até
para o próprio surgimento do movimento, bem como a disciplina da vida particular e pública
através de um projeto considerado o melhor e mais bem visto por todos.
Mas Caravaggio faz, aí, o caminho inverso, trazendo a santidade para o meio
mundano, rebaixando os santos, deuses da Antiguidade, cupidos, e outros seres sagrados, a
pessoas comuns. Ele choca como poucos pintores já conseguiram. Assim, ele é inovador por
suas escolhas e traços passados para a tela – expondo em sua obra todos os seus pensamentos
mais libertadores.
Em relação à figura masculina na obra de Caravaggio, podemos ver um apelo sensual,
dramático e homossexual. Fica claro o prazer do pintor em articular tal tema, pois mesmo que
tenha sido levado a direcionar suas obras para o aspecto religioso, insiste em provocar. Isto é
claro em várias pinturas nas quais usa de recursos diferenciados para expor sua interpretação.
Dentre os expoentes da pintura Barroca romana havia Annibale Carracci e Caravaggio
como antagônicos. Pois um dedicava-se à pintura sob um viés mais clássico, enquanto
Caravaggio dedicou-se a um realismo e naturalismo antes nunca vistos. Tal realismo rendeu
não apenas influências em artistas mais atuais, bem como em vários seguidores e aprendizes
do pintor.
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Caravaggio se sobressai também pela pintura de gênero, ou seja, pinturas que
expressam o cotidiano – que muitas vezes não é tão puro quanto deveria ser, evidenciando
imagens de jogadores de cartas, cartomante que lê a mão de um inocente e ao mesmo tempo
tenta afanar seu anel e outras cenas pitorescas.
Assim, percebemos que Caravaggio não contava com uma preocupação na beleza
ideal e por isso mesmo, foi criticado como “naturalista” por vários contemporâneos seus,
conforme ressalta Gombrich:
O “naturalismo” de Caravaggio, ou seja, a sua intenção de copiar fielmente a
natureza, quer a considerasse feia ou bela, talvez fosse mais devoto do que a
ênfase de Carracci sobre a beleza. Caravaggio deve ter lido repetidamente a
Bíblia e meditado sobre suas palavras. Foi um dos grandes artistas, como
Giotto e Dürer antes dele, que quis ver os eventos sagrados com os próprios
olhos... (Gombrich, 1999: 393).
Brown também expõe esse naturalismo de Caravaggio em relação a seu rival artístico,
Annibale Caracci, pois este último possuía toda uma preocupação com estudos preparatórios,
idealização e seleção para apenas depois pintar, enquanto Caravaggio pintava diretamente na
tela (Brown, 2001: 18).
Durante os primeiros anos da carreira de Caravaggio, em Roma2, percebe-se a
presença de quadros com figuras prioritariamente masculinas, como o Rapaz levando um
cesto de frutas (1593-1594) e Rapaz descascando uma pêra (1593-1594) e, entre outros, o
Rapaz mordido por um lagarto (aproximadamente 1595), Grande Baco (1596-1597), além de
Narciso (1599), O Tocador de Lira (1596-1597), São João Batista (1599-1600).
Também há várias presenças masculinas em auto-retratos do autor, que envolvem até
pinturas de tema religioso, como Repouso durante a fuga para o Egito (1596-1597), em que o
pintor se retrata como o ancião que segura as partituras para o jovem, admirando-o. Dentre
outros auto-retratos: Pequeno Baco Doente (1593-1594), Concerto de Jovens ou Os Músicos
(1595-1596). Vale frizar que para cada auto-retrato temos um momento diferenciado da vida
do pintor sendo exposta, seja doença, alegria, regozijo, etc.
O quadro Pequeno Baco Doente foi um dos primeiros auto-retratos do pintor, baseado
no tempo em que o mesmo encontrava-se muito doente – com febre romana ou peste –
passando um bom tempo no hospital Santa Maria della Consolazione (Santa Maria da
Consolação). Lambert explica que, para conseguir pintar o quadro, Caravaggio “... terá usado
um espelho: a carne intumescida, a tez lívida, olheiras fundas e olhar terno denunciam a
doença que, em verdade, nunca chegará a passar totalmente” (2001: 39). Então, através de um
espelho e, pintando diretamente na tela – como geralmente trabalhava –, Caravaggio
surpreendentemente conseguiu expor uma angústia e dor de maneira tão real que podemos
senti-la. Olhar para o quadro é olhar para uma pessoa em estado de desespero, de sofrimento
que pode ser sentido pelo espectador.
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Ilustração 1: Pequeno Baco Doente, de Michelangelo Merisi da Caravaggio. 67 x 53cm, Óleo sobre
tela. Roma, Galeria Borghese.
Numa outra obra auto-representada, Caravaggio se coloca como um dos rapazes em
Concerto de Jovens ou Os músicos (1595-1596), em que ele é o cantor (o segundo
personagem da direita para a esquerda), que se posta de boca aberta na imagem, como se
cantasse, mas também como se estivesse em êxtase – encarando e provocando o espectador.
No momento desta tela, o pintor já se encontra aos cuidados de Del Monte, um de seus
principais protetores, o que também explica sua posição de gozo na pintura. Ao contrário do
quadro anterior, em que o pintor estava lutando contra a doença. A diferença entre tais obras é
gritante e exemplifica a exposição do sentimento segundo cada momento de vida em que
Caravaggio se encontrava.
Ilustração 2: Concerto de Jovens ou Os Músicos, de Michelangelo Merisi da Caravaggio. 92 x
118,5 cm, Óleo sobre tela. Nova Iorque, The Metropolitan Museum of Art.
Enquanto numa pintura encontramos dor, na outra temos a alegria e a provocação tão
característica de Caravaggio. Nestes dois quadros do início de sua carreira já podemos
perceber o peso de realidade presente em cada quadro, em que o momento foi escolhido em
seu maior teor dramático. Realidade esta presente não apenas pela confidência do estado
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físico e emocional em que o pintor se encontra, mas também de seu empenho em fazer a obra
o mais fiel possível ao real. Em Pequeno Baco Doente, podemos sentir sua dor, inclusive
partilhar de sua miséria, já que ele conta apenas com poucas frutas em sua mesa; os lábios do
Baco também denunciam seu estado, bem como seu olhar e as rugas em seu rosto; enquanto o
corpo, mesmo musculoso, é pálido e retorcido. Em suma, há toda uma linguagem corporal
que indica seu estado de sofrimento e uma dramaticidade tamanha que pode ser comparada a
um gemido de dor, ou mesmo a um de desespero – como no quadro O Grito (1893), de
Munch, em que podemos sentir o personagem gritando.
Já em Os Músicos, todos nesta sala de músicos estão envoltos em seu trabalho musical
e estão em êxtase com o mesmo - cumprindo cada um suas funções -, e como eles próprios,
satisfazendo-se com o momento. Segundo Lambert, em relação ao quadro Os Músicos, “A
presença do amor, com as suas asas, denuncia o caráter homossexual do quadro...” (2001: 38).
Este amor confirma o aspecto de prazer e alegria presente na mesma – alegria esta cotidiana
de certa maneira, porque não há referência a um momento particular, mas algo que pode, por
exemplo, acontecer todas as tardes, tais ensaios musicais. A presença do amor na tela é
também escandaloso porque o amor homossexual e “libertino” era reprimido naquele
momento histórico, em que a Igreja tentava ao máximo fincar suas representações religiosas
ao longo dos campos de vivência e saber, como com a própria pintura barroca.
Em várias outras obras do pintor encontraremos traços homossexuais, como num outro
auto-retrato, a Repouso durante a fuga para o Egito, em que Caravaggio é representado por
um senhor já de idade que encara o menino a tocar o violino, com asas negras e quase
desnudo.
Ilustração 3: Repouso durante a fuga para o Egito (1596-1597). 135,5 x 136,5 cm, Óleo sobre tela. Roma,
Galleria Doria Pamphilli.
Nos primeiros momentos de sua carreira, é visível a predileção por cenas de rua,
libertinas e por retratos de Bacos e rapazes – já que não há diferença entre o deus romano do
vinho e os rapazes que conviviam com o pintor e posavam para ele. Contudo, com a
necessidade financeira e talvez, uma ambição profissional aliada à demanda da época,
Caravaggio passa a pintar figuras religiosas e femininas. Dentre as primeiras delas, destinadas
a um de seus mais importantes protetores, o cardeal Francesco Maria Del Monte, temos: São
Francisco em Êxtase ou São Francisco recebendo as Estigmas (aproximadamente 1595), um
tópico um tanto incomum de ser pintado e, segundo Lambert, considerado o marco inicial da
pintura barroca (2001: 32). A força deste quadro e de outras de suas telas deste período, como
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A Conversão de São Paulo, o fazem subir prodigiosamente em sua carreira, no qual deixa
todos impressionados com sua maneira de aplicar a luz e a sombra.
Com esta ascensão profissional, os Bacos ou rapazes não aparecem mais
constantemente, mas a figura masculina em seu aspecto sensual e/ou homossexual é ainda
despertada, como em quadros como o Repouso durante a fuga para o Egito e São João
Batista (1599-1600). Em relação a este último, Lambert (2001) faz uma excelente
comparação com outro pintor de figuras masculinas, Miguel Ângelo e seus Ignudi do teto da
Capela Sistina. Os nus de Miguel Ângelo podiam ser provenientes de seus modelos e
amantes, contudo, nos afrescos, representavam a beleza divina, enquanto os de Caravaggio
eram “equívocos”, segundo o autor. A seguir, temos a comparação entre as duas pinturas
proposta por Lambert, em que está clara a divergência entre as intenções do pintor, o São João
Batista é um rapaz insolente e zombeteiro, enquanto o Ignudi é uma figura tímida, recalcada
e, mesmo com corpo mais musculoso, não o usa para conquistar o espectador. A própria
posição do corpo, apesar de semelhante, conta com linguagens diferenciadas, a primeira está
aberta ao prazer, já a segunda está assustada, reprimida, quase surpresa, poder-se-ia dizer.
Ilustração 4: São João Batista (1599-1600), de Caravaggio. 129 x 94 cm, Óleo sobre tela. Roma, Museu
Capitolino, Pinacoteca. E Ignudi (1509), de Miguel Ângelo. Afresco, Teto da Capela Sistina (detalhe).
Além do masculino, outro aspecto polêmico da obra de Caravaggio é a utilização de
pessoas tidas como “de baixo” como modelos e a humanização de divindades e figuras santas.
Há inclusive o uso de prostitutas como modelos para madonas, o que causa uma grande
polêmica em torno de suas pinturas, com algumas encomendas sendo devolvidas após sua
recusa.
Uma pintura que exemplifica isto é Grande Baco (1596), ainda no âmbito de
utilização da figura masculina. Sobre esta, Prater e Bauer afirmam:
O seu Baco não nos aparece já como uma divindade antiga, ele deixou de ser
a manifestação olímpica do Alto Renascimento e do maneirismo.
Caravaggio pinta antes um adolescente um pouco vulgar, efeminado e de
rosto pintado, cujo olhar está voltado para nós e que nos oferece vinho com
um gesto familiar, com uma mão de unhas sujas. [...] Caravaggio, ao
profanar uma figura pagã antiga que ele transforma em pândego equívoco,
aparece como o grande realista que sempre tem sido celebrado, mas, por
outro lado, a poesia sensual da sua pintura é tão convincente que qualquer
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ideia de caricatura ou de desfiguração seria imprópria”. (Prater & Bauer,
1997: 33)
Este trecho confirma o deus romano não apenas humanizado, mas enquanto uma
pessoa comum, com as mãos sujas. Supõe-se que, para Caravaggio, um pintor que mesmo
usufruindo em certos momentos da vida de protetores abastados, sempre tenha preferido os
escalões tidos como mais baixos, ao qual recorre constantemente.
Ilustração 5: Grande Baco. 95 x 85 cm, Óleo sobre tela. Florença, Galleria degli Uffizi.
Assim como no Barroco, temos uma grande importância à dramaticidade das cenas.
Na pintura de Caravaggio, esta dramaticidade é utilizada através da reprodução por parte do
pintor de cenas em momentos peculiares, no ápice da expressão, como em Rapaz mordido por
um lagarto, em que Caravaggio reproduz o momento exato de dor e aversão sentidos pelo
Baco. Este quadro teria como influência de uma obra antes vista pelo autor, o Retrato de seu
filho Asdrúbal picado por um caranguejo (aproximadamente 1554), de Sofonisba Anguissola,
segundo Lambert (2001: 20-23).
Ilustração 6: Rapaz mordido por um lagarto. 65,8 x 52,3 cm, Óleo sobre tela. Londres, National Gallery.
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Mesmo tendo se retraído e passado a pintar prioritariamente quadros religiosos, é
possível ver claramente o traço de Caravaggio neles, não apenas pelo jogo de sombra e luz,
mas pela continuidade do elemento provocador. Seja pela expressão facial, seja pelo uso de
modelos captados nas ruas, como cortesãs. Há inclusive registros de brigas do pintor
ocasionadas por casos com prostitutas, como por exemplo, Filli de Melandroni.
Nos últimos anos de carreira, Caravaggio continuou a pintar imagens religiosas,
principalmente para doá-las para aqueles que o ajudavam a obter o indulto papal para seus
crimes, afinal, a sentença atribuída ao pintor era a morte. Contudo, em 1610 acabou por não
resistir e morrer, mas, seu corpo nunca foi encontrado. Entre outros pensadores, Harr coloca
que isto talvez tenha sido uma artimanha para que o mesmo pudesse se esconder, mas a
versão mais comum é que Caravaggio de fato morreu. Em torno do motivo de sua morte, há
especulações que ela tenha ocorrido devido à malária ou à desidratação ou ainda à disenteria –
sabe-se que pouco antes o pintor havia sido gravemente ferido no rosto, obra de prováveis
inimigos que conseguiram desfigurá-lo (Harr, 2006: 225).
Mesmo com uma vida atribulada socialmente, Caravaggio mostrou-se excelente na
pintura, um gênio na arte. Afinal, o pintor foi capaz de mesclar vários elementos e ainda
passar sua opinião ao quadro, mesmo que em encomendas pré-estabelecidas. E os Bacos
foram parte essencial nisto, bem como seus auto-retratos e as pinturas de gênero – que são
diferentes no tema, mas são semelhantes na maneira em que o artista, Caravaggio, as expõe.
Prater e Bauer comentam a importância dos trabalhos de Caravaggio:
Nada separa mais os quadros de história de Caravaggio da arte do
Renascimento que a sua renúncia à imagem do homem marcado pela
nobreza, pela beleza e pelo heroísmo. Aqui, as suas personagens agem
inclinadas, acocoradas, estendidas ou pelo menos, de cabeça curvada. A
apresentação muito altiva e escultórica deu lugar a uma forma de existência
humilhante e envelhecida. (Prater e Bauer, 1997: 33)
Sua obra foi inovadora, de uma maneira que os maneiristas não pensaram, e ela
influenciou não apenas seus contemporâneos, como vários outros artistas.
A predileção de Caravaggio por pinturas com temas não tão comuns começa com a
representação masculina e depois segue para a pintura religiosa, quando o artista passa a ser
bem pago pelas suas obras. Assim, ele continua se reproduzindo nas telas, não apenas sua
imagem, em auto-retratos, como também seu pensamento e personalidade. Os rapazes estão
sempre levemente desnudos e com aspecto bêbado, de gozo, atraindo o espectador. E sua
visão da realidade nem sempre foi tão bem vista pelos seus contemporâneos, o que lhe rendeu
alguns quadros retornados e vários séculos de anonimato na história da arte, mas sua
influência sobre outros artistas e a recepção de sua obra em relação ao público em geral na
atualidade, podemos ver a importância deste pintor como um marco na história da arte.
Portanto, através da figura masculina, sensual e homossexual, temos os traços iniciais do
que seria sua obra, que foi antes de tudo inovadora. Seu Baco não é um deus, mas um rapaz
sensual e, em vários momentos, homossexual; sua pintura de gênero traz a realidade comum e
referente a classes tidas como mais baixas e, sua pintura religiosa, vai continuar com figuras
masculinas de sexualidade ambígua, além de interpretações do próprio pintor das cenas
sagradas. Em sua obra, ele permanece com sua visão e interpretação da realidade ou das cenas
sagradas e míticas, e principalmente através da representação masculina, ele transmite tal
visão de maneira provocante e chocante para sua época e contexto histórico.
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História da Vida Privada Vol. 03: da Renascença ao Século das Luzes. Tradução Hildegard
Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 169-209 [1986].
1
Graduanda em História pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista PIBIC UFPB/CNPQ. E-mail:
<[email protected]>. Trabalho sob orientação de Carla Mary S. Oliveira, historiadora, Doutora em
Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, Professora Adjunta do Departamento de História e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: <[email protected]>. Sítio eletrônico: <http://cms-oliveira.sites.uol.com.br/>.
2
O pintor chega em Roma em 1592, quando o mesmo possuía 21 anos. A cidade à época era um dos centros de
formação e ascensão em artes para pintores como Caravaggio e também Rubens.
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a pintura do gênero e o bacco: o masculino nas