O NOME DOS BICHOS NÃO SÃO OS BICHOS: A CRISE DA
REPRESENTAÇÃO DA LINGUAGEM NA POESIA ANTUNIANA
Ana Amélia Rodrigues dos SANTOS1
Resumo: A poesia antuniana está inserida em um momento artístico e histórico
chamado de pós-moderno, em que podemos notar uma retomada de aspectos formais e
teóricos do passado literário, com o intuito de colocá-los em tensão, de questioná-los. O
trabalho do poeta com o fazer artístico em suas várias possibilidades construtivas e
significativas é uma consequência de tal período. Será também possível notar a
dissolução dos gêneros literários ao focarmos nosso artigo na seleção de poesias de
Antunes presentes e publicadas em livros. Tais textos não podem ser classificados de
acordo com um gênero textual específico, uma vez que muitos deles apresentam-se
como poesia, prosa e ensaio crítico. Um questionamento a respeito da própria
constituição poética é instaurada no interior de tais textos, colocando em crise a
representatividade da linguagem e, consequentemente, do ser humano inserido em um
momento histórico que nega sua individualidade, sua singularidade.
Palavras-chave: poesia pós-moderna, Arnaldo Antunes, gêneros, metalinguagem.
Abstract: Arnaldo Antunes‟ poetry is inserted into an artistic and historical moment
called postmodern, where we can notice a reuse of formal and theoretical aspects of the
literary past, in order to put them in tension, questioning them. The poet‟s work with the
artistic possibilities in its various constructive and meaningful is a consequence of such
period. It will also be possible to note the dissolution of literary genres by focusing our
article in the selection of Antunes‟ poems present and published in books. These texts
can not be classified according to a specific textual genre, due to the fact that most of
1
Graduada e Mestre em Letras pelo IBILCE/UNESP, 2265, São José do Rio Preto, São Paulo,
[email protected] ou [email protected]
them present themselves as poetry, prose and critical essay. An inquiry about the own
poetic constitution is established within these texts, bringing up the crisis of the
representativeness of language and, consequently, the human being inserted in a
historical moment that denies their individuality, their uniqueness.
Keywords: post-modern poetry, Arnaldo Antunes, genres, metalanguage
1. Considerações gerais
Arnaldo Antunes é poeta contemporâneo brasileiro. Obteve reconhecimento
primeiramente por sua produção como músico e compositor. Contudo, a partir da
década de 80, vem ganhando destaque também como poeta, tendo publicado diversas
obras, tais como Ou/E (1983), Psia (1986), Tudos (1990), As Coisas (1992), Nome
1993), 2 ou + corpos no mesmo espaço (1997), Palavra Desordem (2002), Et Eu Tu
(2003), Como se chama o nome disso (2006), n.d.a (2010), Animais (2011) e Cultura
(2012).
Antunes é um poeta experimental. Não só faz uso de uma variedade de mídias
para veiculação de sua obra, como é caso do projeto “Nome”, por exemplo, composto
por livro, CD e vídeo; mas também, no que concerne seus poemas, realiza um diálogo
entre prosa e poesia, signo verbal e visual, experimentando com as mais diversas
possibilidades combinatórias.
Seus poemas apresentam um recorrente trabalho com a palavra, seus
componentes sonoros e semânticos, e com o seu aspecto gráfico e dimensional por meio
do rabisco, do borrão, das letras tortas, distorcidas, escritas à mão, que dialogam com
imagens, fotografias e recortes no espaço em branco do papel.
No poema Fragmentos de Galáxias, presente no livro Ou/E (1983), por exemplo,
encontramos um texto todo redigido à mão.
Fragmentos de Galáxias, Ou/E (1983)
A caligrafia, em um primeiro momento, chama a atenção do leitor por estar
muitas vezes justaposta ou borrada e, dessa forma, impedir uma aproximação e leitura
nítida do texto. Por outro lado, esta mesma caligrafia aponta para o dado particular e
individual da grafia do ser humano que, ironicamente, está inserido em um momento
histórico que impede sua individualidade e livre-arbítrio. Ao utilizar o elemento
específico e singular da escrita manual, dos traços que caracterizam e particularizam
cada pessoa, o poeta nega e critica a escrita automatizada e maquinal que torna os seres
humanos uniformes.
Nos poemas “Asas e Cabelo”, ambos presentes no livro Tudos (1990), o poeta se
vale não apenas da escrita manual, como em Fragmentos de Galáxias, mas também do
trabalho dimensional com o texto poético na construção de um diálogo persistente entre
linguagem verbal e visual. É possível depreender pelas imagens construídas em cada
poema, os movimentos realizados pelas próprias asas de um pássaro em movimento; e o
cabelo que, comparado no poema ao pelo, a grama e a planta, “cresce porque cresce”,
naturalmente.
“Asas”, Tudos (1990)
“Cabelo”, Tudos (1990)
No livro Tudos, como o próprio título sugere, podemos encontrar poemas em
versos livres, metrificados, gráficos, caligramas, poemas com palavras digitalizadas,
escritas à mão ou letras distorcidas. O poeta, nesse contexto, experimenta uma
variedade de formas textuais e poéticas, explorando ao máximo as possibilidades
construtivas e imagéticas do signo.
O poema “Neto e Neta”, presente em As coisas (1992), por exemplo, assim
como todos os outros textos presentes nesta obra, é escrito em forma de prosa e vem
acompanhado por uma imagem/desenho2. Outra característica marcante desde livro é o
trabalho com uma linguagem simples, que beira a lógica infantil de apreender a
2
Os desenhos presentes no livro As coisas (1992) foram feitos pela filha do poeta que na época tinha 3
anos de idade.
realidade por meio de associações imagéticas, da nomeação das coisas presentes no
mundo.
“Neto e neta”, As coisas (1992)
Em “Neto e neta”, o poeta vai evidenciar justamente no desvio da gramática, em
que “avô e avó são avós” e não avôs, o que a língua tem de particular, a exceção à regra,
no intuito de desautomatizar o leitor e inseri-lo em um universo feito de outras
possibilidades construtivas. O poeta procura, portanto, resgatar a lógica do olharprimeiro para as coisas, um olhar destituído de pré-conceitos e estereótipos.
De um modo geral, explorando o aspecto gráfico do texto, a forma física do
signo linguístico e o desenho, a poética antuniana tende a promover o retorno ao gesto
inaugural da língua, de desconstruir conceitos previamente estabelecidos e re-nomear a
realidade, tirando-a das entranhas da convenção para torná-la nova, gerando muitas
vezes um estado de estranhamento no leitor. É pelo processo de (re)nomeação que o
homem contemporâneo tem a possibilidade de poder dizer as coisas de maneira
diferente e, nesse sentido, concretizar o seu “dizer”, afirmando dessa forma sua
identidade, sua presença no espaço em que habita.
Antunes, ao experimentar com formas e significados, constrói uma obra literária
que reflete constantemente acerca da representatividade da linguagem poética inserida
em um momento histórico e artístico chamado de pós-modernidade.
2. Pós-modernidade literária: a dissolução dos gêneros
De acordo com Hutcheon (1947) o termo pós-moderno não pode ser usado para
designar o momento presente, e tampouco representa um fenômeno global. O pósmoderno é um acontecimento cultural exclusivo de alguns continentes, incluindo o
próprio continente Americano, e tem como característica básica a retomada do passado
histórico e cultural, no sentido de empreender uma reflexão crítica e um “diálogo
irônico com o passado da arte e da sociedade”. (1947, p.20)
A obra antuniana pode ser considerada pós-moderna, pois o que nela se
manifesta é o diálogo entre o momento atual e a tradição, uma retomada e,
consequentemente, uma revisão dos valores artísticos do passado. Para Subirats (1991),
o pós-moderno é uma “manifestação derradeira, quer dizer, epigônica e decadente do
movimento moderno” (1991, p.107), uma última etapa do que conhecemos como
Movimento Modernista.
Domíncio Proença Filho (1988) pontua algumas características de tal estética
que estarão, a nosso ver, marcadamente presentes na obra poética de Arnaldo Antunes,
tais como: a intensificação do ludismo, a intertextualidade, a fragmentação textual e a
metalinguagem. Vale lembrar aqui o estudo realizado por Haroldo de Campos e
intitulado de “Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino-Americana” (1977). Para
Campos, se no período clássico temos uma tendência a “regulamentação estética da
linguagem”, a partir do Romantismo podemos perceber uma dissolução dos gêneros e
uma dificuldade em nomear os textos, pois estes apresentam muitas vezes mais de um
gênero discursivo na sua composição. No caso específico da poesia, a “incorporação
(...) de elementos da linguagem prosaica e conversacional, não apenas no campo léxico,
(...) mas também no que se respeitar aos giros sintáticos” (Campos, 1977, p.14), é uma
característica marcante do pós-moderno que tende a aglutinação de formas discursivas.
O poema, de forma geral, possui uma estrutura gráfica totalmente adversa da
prosa: o primeiro tende a apresentar um texto mais curto e por isso sintético, com um
trabalho mais intenso no que se refere à escolha dos vocábulos e a sua organização no
espaço do papel ou na tela do computador. Enquanto no segundo, o espaço para a
construção textual é maior, o que gera uma possibilidade de arranjos mais diversificada.
Além disso, no poema é recorrente a construção de versos com métrica regular e rimas,
enquanto que na prosa a estrutura linear, que beira a oralidade, é marca de tal discurso.
No poema “Todos eles traziam”, presente no livro As coisas (1992), notamos
que os limites entre prosa e poesia tornam-se quase imperceptíveis, uma vez que o poeta
transita por ambos os gêneros discursivos.
“Todos eles traziam”, As coisas (1992)
O texto acima pode ser classificado, a priori, como uma narrativa em prosa, pois
apresenta a descrição de um fato, personagens, um espaço, e um tempo específico em
que um determinado fato ocorre. Se podemos afirmar que há personagens presentes no
poema, podemos também afirmar que eles realizam ações significativas durante o
transcorrer da narrativa. Ao carregar sacolas que, pareciam pesadas, notamos um juízo
de valor expresso por um narrador que desconhece, ou finge desconhecer (o verbo
pareciam indica essa incerteza) o que realmente os personagens estão carregando. E as
incertezas só aumentam uma vez que, como leitores, não obtemos respostas precisas
para as seguintes questões: quem são esses personagens que carregam as sacolas? Por
que as carregam? De onde eles vem?
Antes de se adiantarem até a rocha, que simboliza o obstáculo, a dificuldade a
ser ultrapassada, estes mesmos personagens amarraram bem seus cavalos, talvez em
uma tentativa de frear seus instintos e adentrar a rocha guiados pela razão. Tal fato pode
ser comprovado quando, ao adiantar-se em direção a rocha, um dos personagens grita:
“Abre-te, cérebro!”, utilizando-se do imperativo para exigir que o vocativo cérebro
realize uma ação. Ao cérebro é dada a ordem para que se abra: se abra para que o grupo
possa se beneficiar do que ele tem a lhes oferecer (a razão, a sabedoria, por exemplo),
e/ou para que eles possam guardar no seu interior as sacolas pesadas que carregam.
No que diz respeito à intertextualidade, é estabelecido o diálogo entre o texto
antuniano e a obra clássica da literatura árabe As mil e uma noites, por meio do
enunciado “Abre-te, cérebro!”. A obra árabe é uma coletânea de estórias preservadas
pela tradição oral dos povos da Pérsia e da Índia, que possui como personagem principal
Sherazade, uma jovem muito habilidosa na arte de contar estórias, e que consegue,
devido a tal habilidade, libertar-se e salvar seu povo da ira do sultão Shariar. É pela
linguagem, pelo domínio do discurso verbal e pelo jogo lúdico que a personagem
principal consegue evitar sua morte.
Em uma das narrativas presentes nesta obra, temos a estória de Ali Babá e seu
grupo de 40 ladrões que guardavam os tesouros de seus assaltos em uma grande caverna
fechada por um rochedo que só se movia por meio das palavras mágicas do chefe do
bando: “Abre-te, Sézamo”. É nesse ponto que o poema antuniano retoma a narrativa
clássica e tradicional no intuito de atualizá-la na forma e nos sentidos, pois constrói um
texto que caminha por gêneros discursivos distintos – prosa e poesia – criando novas
possibilidades de leitura, novas verdades que dialogam inevitavelmente com o texto
origem, com o passado histórico e artístico.
Os tesouros adquiridos pelo bando de Ali Babá são retomados no poema pósmoderno por meio do termo “sacolas”, que são carregadas pelos personagens e
conduzidas até a rocha/cérebro. As sacolas podem representar o fardo carregado durante
toda a vida, as obrigações, as responsabilidades que o indivíduo quer ver esquecidas,
guardadas no interior da rocha. Por outro lado, elas também podem fazer alusão a
riqueza adquira, a sabedoria conquistada por cada um no transcorrer da sua vida ou por
meio da própria arte. Depositá-las na rocha seria uma forma de mantê-las a salvo.
E possível ainda notar o jogo sonoro e semântico presente na sentença “Abre-te,
cérebro!”, em que “cérebro” contém e aponta para o signo ser. A rocha, nesse caso,
representaria o ser humano contrário a mudança e a aceitação do novo ofertado por
meio da arte. Abrir-se, nesse caso, implica em se permitir olhar o mundo e a si mesmo
de outra(s) forma(s), procurando manter uma relação muito mais ao nível da associação
imagética, do que necessariamente por meio do automatismo e mecanização a que
estamos sujeitos.
De forma adversa ao mito da caverna de Platão, em que os indivíduos
aprisionados dentro de um espaço reduzido, ignoram a realidade exterior, no poema
antuniano, aqueles que estão do lado de fora desejam que a rocha/cérebro se abra para
aceitar que há uma realidade presente do lado de fora. Por outro lado, entrar a caverna
acarretaria um olhar pra si mesmo, um olhar reflexivo, de auto-análise; um olhar, pois,
metalingüístico.
3. A metalinguagem
No que se refere ao pós-moderno como movimento estético e artístico, podemos
apontar como característica distinta a retomada do passado não como cópia ou
reprodução, mas como um olhar crítico que rediscute e reconstrói conceitos e estruturas,
e se atenta ao fazer literário em suas múltiplas possibilidades. Temos então o recurso da
metalinguagem como outro dado marcante da produção artística pós-moderna. Para
Campos (1977) o poema metalingüístico é aquele que
se questiona a si mesmo sobre a essência do poetar, num sentido
muito diferente, porém, das “artes poéticas” versificadas da
preceptística tradicional: o que está em causa não é um receituário de
como fazer poesia, mas uma indagação mais profunda da própria
razão do poema, uma experiência de limites. (CAMPOS, 1977, p.36)
O poema pós-moderno apresenta uma informação nova e perturbadora na sua
constituição: a poesia torna-se um ensaio crítico, um espaço em que é colocada em
tensão a sua própria constituição e consequentemente a representatividade do discurso
cotidiano e a tradição da qual faz parte. No poema “Os bichos”, presente no livro Tudos
(1990), podemos verificar como o poeta empreende um jogo de desautomatização da
linguagem, uma vez que, ao enunciar logo no primeiro verso que “Os nomes dos bichos
não são os bichos”, quebra com a representatividade da linguagem cotidiana e introduz
o dado novo, a verdade por trás da arbitrariedade da língua.
os nomes dos bichos não são os bichos
os bichos são: macaco, gato, peixe, cavalo, vaca, elefante, baleia, galinha
os nomes das cores não são as cores
as cores são: preto, azul, amarelo, verde, vermelho, marro
os nomes dos sons não são os sons
os sons são
só os bichos são bichos
só as cores são cores
só os sons são
sons são
sons são
nome não
nome não
nome não
(“Os bichos”, Tudos 1990)
Os nomes dos bichos não são os bichos propriamente ditos, mas apenas
representações sonoras e gráficas que não mantêm relação, a não ser pelo grau de
automatização, com o seu referente presente no mundo.
Assim como “os nomes das cores não são as cores” e “o nome dos sons não são
os sons”, o poeta demonstra a existência das coisas no mundo muito antes da sua
nomeação: “os bichos são/ as cores são/ os sons são”. Eles existem, portanto,
independentemente da sua nomeação ou categorização. É por isso que ao enunciar “Os
bichos são:/ plástico pedra pelúcia cristal porcelana papel”, o estranhamento é gerado,
pois o poeta passa a privilegiar a essência das coisas, sua presença primeira no mundo.
O fato de re-nomear um determinado objeto ou ser não implica na sua recriação, na
construção de um dado novo; pelo contrário, o dado nomeado continua a possuir as
mesmas características, as mesmas formas, sabores e cheiros. Contudo, nomear é fazer
com que as coisas pertençam a nossa realidade de forma que possamos nos referir a elas
verbalmente; elas passam a fazer parte do nosso vocabulário e consciência e,
consequentemente, da nossa vida.
Na bíblia encontramos a seguinte passagem:
1. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo
era Deus. 2. Ele estava no princípio com Deus. 3. Todas as coisas
foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. 4. Nele
estava a vida, e a vida era luz dos homens. (...) 14. E o Verbo se fez
carne, e habitou entre nós, e vimos sua glória, como a glória do
unigênito Pai, cheio de graça e de verdade. (JO, 1-14)
Tal passagem descreve como o processo de nomeação dá vida às coisas que
antes não existiam na realidade humana, pois não faziam parte do discurso, do uso
diário da língua. O discurso bíblico cria a impressão de que as coisas só passam a existir
na nossa realidade depois de nomeadas. No entanto, tal verdade é colocada em tensão
no poema antuniano, uma vez que ele afirma que os referentes existem a priori, e que
sua nomeação é arbitrária, pois na maioria das vezes não há relação física ou sonora
entre significante e significado.
Esse olhar para a linguagem e sua relação com a realidade é insistentemente
abordado no discurso poético de Antunes e também pode ser notado no poema
“Carnaval”. Presente no livro Nome (1993), este texto é construído tendo como base o
seguinte enunciado: “pode ser chamado/a de”.
árvore
pode ser chamada de
pássaro
pode ser chamado de
máquina
pode ser chamada de
carnaval
carnaval
carnaval
(“Carnaval”, Nome, 1993)
O uso constante do verbo „poder‟ é responsável por conduzir o leitor a um
universo de múltiplos arranjos entre vocábulos, o que causa desconforto no leitor uma
vez que este se depara com uma infinita possibilidade de (re)criação de sentidos entre
referentes conhecidos.
Em um primeiro momento, o título “Carnaval” aponta para uma atmosfera de
festejo e descontração. Pagã ou religiosa, o carnaval é uma festa em que, tanto no
passado grego como no século XXI, representa uma data em que as pessoas celebram o
ato de comer, beber e se divertir. É um período do ano em que cada um tem liberdade de
se fantasiar e adquirir identidades novas, isto é, mudar de referente. E é justamente esse
livre-arbítrio, esse “poder” ser outra coisa, que se destaca no poema.
Intercalado a sentença “pode ser chamado/a de”, há uma constante permuta dos
seguintes signos: “árvore”, “pássaro”, “máquina” e “carnaval”. Ao mencionar
“árvore/pode ser chamada de”, podemos depreender que, para a seqüência sonora
árvore, abrem-se outras possibilidades associativas possíveis, dentro e fora do espaço
do poema. É tão verdadeiro o enunciado “árvore/pode ser chamada de/ pássaro”, quanto
“árvore/pode ser chamada de”, em que, nesse segundo caso, o enunciado fica em aberto
para a interpretação e complementação do próprio leitor. É ele quem, como co-autor do
texto, vai colocar em prática o carnaval proposto pelo poeta, isto é, a liberdade de
promover infinitas associações entre os signos e seus referentes.
Ao promover tais associações, em que “pássaro/ pode ser chamado de/
máquina”, tanto o poeta, como o próprio leitor, ao nomearem os referentes presentes no
mundo, estão ao mesmo tempo atribuindo-lhes juízo de valor e, ironicamente, trazendoos para o plano do arbitrário. Ao criar tal jogo com a linguagem, o poeta apresenta-nos
outra realidade, em que os referentes deixam de ser apenas nomes e passam a ser coisas,
vistas na sua essência, nas suas múltiplas possibilidades significativas.
4. Conclusão
Como pudemos notar por meio da leitura dos poemas selecionados, é frequente
na obra antuniana o trabalho com o texto verbal em suas mais variadas formas, como
por exemplo, o texto digitalizado ou o escrito à mão; e também com o texto visual, por
meio do rabisco, do borrão, do desenho e da fotografia.
Fica evidente na sua poesia o diálogo com o passado, com a sua tradição
histórica e artística, por meio de formas e/ou conceitos, no intuito de construir um texto
crítico e reflexivo que coloca em tensão a representatividade da linguagem. Ao fazer
isso, também situa o homem no seio do embate sígnico de sua época, buscando por
meio da língua um dizer, ou melhor, um poder dizer as coisas. Há, portanto, uma
preocupação crítica inserida no ato criador poético que resulta na elaboração de um
discurso didático em que o poeta coloca em suspenso os saberes adquiridos ao esvaziar
os sentidos dos signos. Esvazia-os justamente no excessivo processo de nomeação,
mostrando, desta forma, a mobilidade do saber, o conhecimento como uma incógnita.
Aliás, o que o poeta demonstra e reforça por meio do processo de nomeação é o sentido
da inutilidade da lógica e a impossibilidade de construir um saber único, uma vez que
o(s) sentido(s) construído(s) por meio do texto está(ão) justamente na travessia, na
busca.
Referências bibliográficas
ANTUNES, A. OU/E. São Paulo: edição do artista, 1983.
______ Psia. São Paulo: Iluminuras, 1986.
______ Tudos. São Paulo: Ed. Iluminuras, 1990.
______ As Coisas. São Paulo: Ed. Iluminuras, 1992.
______ Nome. Rio de Janeiro: BMG, 1993.
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______ Palavra Desordem. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2002.
______ Et Eu Tu. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
______ Como se chama o nome disso. São Paulo: Publifolha, 2006
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Perspectiva S. A., 1977.
SUBIRATS, E. Da vanguarda ao pós-moderno. São Paulo: Nobel, 1991.
HUTCHEON, L. 1947. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad.
Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1991.
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