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A (DES-) CONTINUIDADE MODERNISTA NA POESIA DE MANOEL
DE BARROS
Nismária Alves David 1
RESUMO: A partir da reflexão teórica acerca da lírica moderna, este trabalho destaca a
concepção de fazer poético oferecida por Manoel de Barros.
Palavras-chaves: poesia – Modernismo – Manoel de Barros.
Introdução
A modernidade identifica-se com a ruptura na qual, contraditoriamente, a negação
de si mesma proporciona a sua perpetuação (COMPAGNON, 1999; PAZ,1984). Em outros
termos, constitui a tradição do “novo” que gera uma arte cujo cerne é o ato crítico distanciado
da representação realista e carregado de reflexão acerca do fazer artístico, revelando uma
nova consciência de linguagem (BARTHES, 1970; BERMAN, 1989).
Nesse sentido, para se pensar a poesia modernista brasileira é necessário tomar
uma posição histórica, mediante a qual se constatam a busca da renovação da linguagem e o
conseqüente surgimento de experiências cada vez mais ousadas, evidenciando o esforço de
superação das possibilidades estético- literárias vigentes (BOSI, 1996). De fato, com o intuito
de responder aos desafios contemporâneos, tais como avanços tecnológicos e científicos,
êxodo rural, crescimento das cidades e globalização, os poetas brasileiros percorreram
diferentes caminhos, entre eles: as chamadas gerações dos anos 20, 30 e 45, o concretismo, a
instauração-práxis, o poema-processo e a poesia marginal. Convém assinalar que, segundo
Coutinho (2004, p. 365), no Modernismo, a partir de 1960, cada vez mais a palavra poética
tornou-se para todos “o objeto de uma pesquisa que [leva] a um aprofundamento”,
expressando uma dialética de continuidade e ruptura do próprio movimento estético.
Nesse contexto, encontra-se a produção poética do mato- grossense Manoel de
Barros (1916-), iniciada em 1937. Embora continue produzindo, sua arte já realizada adquire
o caráter de um experimento, que corresponde a uma das facetas da lírica moderna apontadas
por Friedrich (1991), e suscita questionamentos do que vem a ser um texto literário, os quais
se apresentam no âmago das preocupações da história literária. Porque associações verbais
desconcertantes, frases aparentemente sem sentido, repetições, listas de vocábulos,
intertextualidade acentuada, paródia, ecos do Cubismo e do Surrealismo, esfacelamento do eu
1
Pesquisadora-responsável, Professora-Assistente de Literatura Brasileira no Curso de Letras, UnU de Pires do
Rio (UEG).
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poético, silêncio e o exercício constante da metalinguagem são alguns dos procedimentos
mobilizados na lírica barrosiana. Esses comprovam que Barros, escritor-crítico, problematiza
o culto da linguagem artística, a fim de revelar um poético do avesso, desfigurado, ofe recendo
a desrealização da realidade. A respeito do significado desse procedimento (desrealização),
Ortega y Gasset (2005) destaca que a arte não mais representa as coisas, mas sim reconstrói
ou deforma o real.
Diante disso, acredita-se que a criação artística de Manoel de Barros assume
importância no cenário da poesia contemporânea brasileira pelo modo in ludus como lida com
a linguagem, demonstrando que a realidade não permite ser compreendida de forma racional,
pois cria e/ou renova valores decorrentes do agudo senso crítico. Assim, exige um leitorcrítico que é conduzido ao aberto no processo das tentativas de interpretação (FRIEDRICH,
1991).
Material e Métodos
Para a realização desta pesquisa, foram utilizadas as coletâneas de Manoel de
Barros, a saber: Poemas concebidos sem pecado (1937), Matéria de poesia (1970), Arranjos
para assobio (1980) e Memórias inventadas - a infância (2003); e obras teóricas e críticas que
enfocam a lírica moderna.
Resultados e Discussão
O Modernismo brasileiro nasceu numa época em que vigorava a chamada
“República Velha” (1889- 1930), quando as oligarquias rurais dos cafeicultores de São Paulo
e dos pecuaristas de Minas Gerais dominavam os cenários político e econômico do país, num
esquema conhecido como a política do “café-com- leite”. É notável que, apesar de seu
domínio, essas oligarquias rurais caminhavam em descompasso com a série de
transformações pelas quais passava a sociedade brasileira. Transformações essas que
resultavam do acentuado processo de urbanização, industrialização, marginalização dos
antigos escravos, deslocamento de migrantes nordestinos e a vinda de grandes contingentes de
imigrantes europeus para o centro-sul, em especial à região Sudeste. Transformações essas
que culminaram em várias agitações sociais indicadoras de graves desequilíbrios de um Brasil
plural.
O movimento pelo encontro das raízes nacionais teve seu ponto culminante na
Semana de Arte Moderna, acontecimento que se deu na cidade de São Paulo, em fevereiro de
1922, posto que as mudanças ocorridas na arte européia acabaram levando artistas brasileiros
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a embrenharem-se na busca da renovação de valores artísticos e culturais anteriormente
recebidos como herança de moldes conservadores e cristalizados.
Sabe-se que, no cenário mundial, o progresso tecnológico, as disputas das grandes
potências por mercados de consumo, os movimentos políticos nacionalistas e a Primeira
Guerra Mundial provocaram profundas modificações na sociedade européia, atingindo, como
não poderia deixar de ser, as artes em geral e a maneira de olhar o novo panorama que se
impunha. Assim, no Brasil dos anos 20, em contato com as idéias e renovações da atitude
crítica desses movimentos de vanguarda, artistas passaram a debater os procedimentos
artísticos nacionais.
Tais atitudes refletiram-se nos rumos que os artistas da sociedade brasileira
tomaram, visto que, de 1922 até 1930, tem-se uma fase de definição de comportamentos e
tendências, com muitas publicações de revistas e manifestos que apresentavam ideais
anárquicos, um naciona lismo exagerado, o primitivismo e pregavam o rompimento total com
o passado.
Para Bosi (1996, p. 383), se, por um lado, a Semana constituiu “um acontecimento
e uma declaração de fé na arte moderna”, uma abertura a todas as experiências modernas, por
outro lado, somos “contemporâneos de uma realidade econômica, social, política e cultural
que se estruturou depois de 1930”. Os decênios de 30 e 40 foram marcados por uma fase de
construção, com idéias literárias inovadoras e de muita produtividade exigidas pelos
acontecimentos históricos que ocorreram, como a Depressão Econômica, o Nazismo, a
Segunda Guerra Mundial, a Ditadura de Getúlio Vargas e o Estado Novo.
Em particular, Candido (1989, p. 182) atenta para a importância que a
transformação centralizada pelo movimento armado de 1930 teve na cultura brasileira e
destaca a abertura motivada pela incorporação crescente do Modernismo, a qual ampliou as
produções regionais ao âmbito nacional. Segundo ele, “os fermentos de transformação
estavam claros nos anos 20”, mas só depois de 1930 eles sofreram um processo de
“rotinização”. As mudanças deram-se em diversos setores: instrução pública, vida artística e
literária, estudos históricos e sociais, meios de difusão cultural como o livro e o rádio.
Na poesia, a libertação foi bastante atuante, pois os decênios de 1930 e 1940
assistiram à consolidação e à difusão da poética modernista, mas também à produção madura
de Manuel Bandeira e de Mário de Andrade (CANDIDO, 1989, p. 186). De forma sumária,
pode-se sublinhar os seguintes recursos estilísticos empregados pelo artista brasileiro da
época: o verso livre e branco, o coloquial, o irônico, o prosaico na tessitura do verso, o neosimbolismo, e os regionalismos lexicais e sintáticos.
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Bosi (1996, p. 439) lembra que, com a virada modernista, a poesia foi a que mais
se alterou e, a partir disso, “renovar a linguagem está no cerne das preocupações e dos
projetos de todos”. Cabe destacar que, tendo estreado em 1937, Barros continua a escrever até
hoje, mostrando-se possuidor de uma fantástica capacidade de renovação. Resta, portanto, a
dificuldade de enquadrá- lo em uma das fases do Modernismo brasileiro. Contudo, pode-se
afirmar que sua expressão poética é herdeira, de certo modo, da experiência da chamada
“geração de 45”, apenas no que se refere a conceber a poesia como arte da palavra, ou seja,
por apresentar maior preocupação com a forma literária em vez do conteúdo social (no
entanto, não adere ao cultivo das formas fixas, mas antes à desestruturação delas) e por
preferir o uso de palavras que denotam concretude. Já, de acordo com Waldman (1992, p. 29),
diferentemente da poesia dessa geração, a arte de Barros dá-se em “versos compassados por
um controle delicado e aparentemente casual, experimentando uma conformação simbólica
particular e modalidades de concreção diferenciadas”.
Não obstante, Bosi (1996, p. 465) cita a antologia feita por Fernando Ferreira de
Loanda, intitulada Panorama da Nova Poesia Brasileira, em 1951, na qual se incluiu o nome
de Manoel de Barros. Para esse crítico, tal antologia continua sendo um conjunto válido para
documentar o momento poético dos novos entre 1940 e 1950. E aponta a unidade que Barros
oferece em sua poética:
Em face desse quadro, impensável sem a aceleração dos processos modernizantes do
capitalismo e da indústria cultural, vale ressaltar, pelo contraste, a coerência
vigorosa e serena da palavra de Manoel de Barros, nascida em contacto com a
paisagem e o homem do Pantanal e trabalhada em uma linguagem que lembra, a
espaços, a aventura mitopoética de Guimarães Rosa, sem ombrear, é certo, com a
sustentada densidade estética do grande narrador. Conhecida de poucos durante
longo tempo, a obra de Manoel de Barros só alcançou o êxito que merece depois que
sopraram também no mundo acadêmico os ventos da ecologia e da contracultura.
(BOSI, 1996, p. 488).
Considerando as afirmações de Bosi, pode-se destacar que a voga dos
movimentos de preservação da natureza pode também ter contribuído para a emergência de
Manoel de Barros. Mas, acima disso, entende-se que esse escritor, por viver o espírito do
tempo em que a vida científica, cultural, artística e religiosa passou por profundas
transformações cada vez mais ligadas à tecnologia, debate-se com as angústias do indivíduo
contemporâneo. Nesse sentido, é interessante destacar que Menegazzo (1991) recorda que o
próprio Barros, em 1974, afirmava pertencer à “geração de 45”, somente de forma
cronológica, uma vez que não se incomodava com a necessidade de reconstrução poética.
Em Barros, o anúncio da fragmentação faz-se na construção de imagens que
ultrapassam os limites impostos pela lógica racional, fato que, por sua vez, favorece o
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surgimento de um universo distinto em linguagem renovada, em combinações diferentes. Isso
ocorre porque, em seus poemas, há o predomínio das leis da liberdade, uma fuga dos moldes,
a aposta na fantasia e o desprezo por valores da ciência, criando normas e valores próprios.
Conclusões
Na arte de Manoel de Barros, depreende-se a sugestão de que a poesia pode mudar
o mundo, o que implica o acento no poder criativo da palavra, visto que lhe é concedida a
autonomia tanto discursiva como imagética. Ele tanto explora as possibilidades de uma
palavra quanto cria as suas próprias palavras, só imagináveis no seu universo, bem como
realiza modificações semânticas nas frases, tornando-as surpreendentes. Dessa maneira, de
“posse da palavra a poesia de MB fala sobre si mesma e descreve sua poética”
(MENEGAZZO, 1991, p. 178).
Sua intensa produção artística oferece textos repletos de renovação, os quais
permitem “enquadrá- lo” no modernismo brasileiro. Vê-se, dessa maneira, que a articulação
com esse período literário é o ponto inicial para a tentativa de entendimento dos poemas de
Barros, nos quais há a confluência de convenções com a criação e a re-criação de valores
próprios. A poesia está no poder de invenção. Pode-se confirmar essa concepção numa
entrevista do poeta a Alves (2001, p. E4), na qual ele revela que o modo de expressão assume
grande relevância em sua escritura: “a poesia está mais no mexer com as palavras. O sentido
da palavra não importa para a poesia, o que importa é uma certa música e um certo modo de
dizer as coisas, disse Borges. E ficam os limites corroídos”.
Manoel de Barros é um artista consciente da sua própria criação poética. Ele preza
o ‘conhece-te a ti mesmo’, identifica-se com o revoltado e assim cria e recria as regras
fonéticas, morfológicas, sintáticas e semânticas. Por suas ações, quer igualar-se ao divino e
abandonar o limite histórico-social e espaço-temporal. A palavra poética é metaforizada pela
“semente”, que transpõe seus limites de esterilidade, fecunda-se, germina ao mesmo tempo
perguntas e respostas acerca do fazer poético e, sobretudo, confere a possibilidade de resignificação. Isto significa que Barros concebe a palavra como propiciadora da atividade
lúdica que transforma o poema em espaço de reflexão crítica.
Nessa perspectiva, na constituição de seu “idioleto manoelês archaico”, contrário
à gramaticalidade, prevalece o jogo, em que se manifesta o entusiasmo com o fito de operar
transformações no sentido da linguagem, de criar textos capazes de corroer o uso trivial da
palavra, ou seja, que ofereçam um caráter de novidade aos signos. Cada um de seus poemas
constrói-se como uma Poética, na qual o sujeito lírico realiza exercícios de ser primitivo e se
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constitui “por um homem-criança, por um homem que possui a cada minuto o gênio da
infância, isto é, um gênio para quem nenhum aspecto da vida está embotado”
(BAUDELAIRE, 1991, p. 106), buscando, portanto, “avançar para o começo”.
Essa busca é compartilhada com o leitor que, por sua vez, encara a palavra poética
barrosiana como um agradável desconcerto. Isso se justifica pelo fato de que retornar às
origens equivale a viver a liberdade espiritual. Na arte de Barros, além da permanência na
força centrípeta da linguagem, vê-se sintetizado o conteúdo referente a mais profunda das
aspirações do ser humano, a saber, a transcendência. Pois, como no interior do poema tudo é
possível, no imaginário do leitor todas as coisas tornam-se possíveis, até mesmo a abolição do
tempo, quando se cumpre o ritual da leitura (o qual repete e re-atualiza o ato de criação).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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• ______. Arranjos para assobio (1980). Rio de Janeiro: Record, 1999.
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