Educação e Educação e movimentos movimentos sociais sociais BOLETIM 03 ABRIL 2005 BOLETIM 03 ABRIL 2005 SUMÁRIO PROPOSTA PEDAGÓGICA EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS .................................................................................................................... 03 Paulo Afonso Barbosa de Brito PGM 1 MOVIMENTOS SOCIAIS POPULARES ....................................................................................................................... 14 Movimentos sociais: aspectos históricos e conceituais Paulo Afonso Barbosa de Brito PGM 2 ASSOCIATIVISMO COMUNITÁRIO E LUTAS URBANAS ...................................................................................... 22 Relação estado e sociedade civil na construção dos Direitos Humanos Francisco Mesquita de Oliveira PGM 3 IDENTIDADES E SOLIDARIEDADES ......................................................................................................................... 27 Educação popular e movimentos de mulheres Carmen Silvia Maria da Silva PGM 4 CULTURAS JUVENIS .................................................................................................................................................... 33 Movimentos juvenis: mudanças e esperanças Nerize Laurentino Ramos Paulo Afondo Barbosa de Brito PGM 5 REDES E FÓRUNS SOCIAIS ......................................................................................................................................... 40 O Movimento das Redes e as Redes de Movimentos Carmen Silvia Maria da Silva Luciene Mesquita (Mana) EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 2 PROPOSTA PEDAGÓGICA Educação e movimentos sociais Paulo Afonso Barbosa de Brito 1 Os Movimentos Sociais Populares emergiram no contexto social e político brasileiro com uma fantástica capacidade criativa, organizativa e mobilizadora, principalmente na década de 80, sendo responsáveis por expressivas conquistas que garantem melhorias na qualidade de vida de amplos setores sociais, afirmação de direitos e exercício da cidadania para um número cada vez maior de agrupamentos humanos, construção de identidades coletivas e auto-estima pessoal e social de setores e grupos historicamente discriminados ou oprimidos, intervenção nas políticas públicas, modificando ou inibindo as seculares práticas assistencialistas e clientelistas, contribuindo assim para mudanças em nível do poder local e da política tradicional. Tais conquistas são permeadas por processos educativos, tanto dos participantes diretos de tais movimentos, quanto das pessoas e grupos atingidos por sua ação e da sociedade envolvente. Portanto, estamos considerando movimentos sociais os agrupamentos de pessoas, geralmente das classes populares ou de grupos minoritários (no sentido de destituídos de poder) e discriminados, que agem coletivamente, com algum método, realizam parcerias e alianças, abrem diálogos e negociações com interlocutores, como processos articulados para conquistas de direitos e exercício da cidadania. Os movimentos sociais multiplicaram-se no Brasil durante a década de 80 e, principalmente, nos anos 90, percebendo-se, no país, progressiva ampliação e diversificação de organizações populares, com diversos modelos organizativos, formas de mobilização, bandeiras de luta, relações com mediadores e interlocutores, processos de formação das lideranças populares. Neste período se consolidam muitos grupos e entidades locais, mas também expressões locais de movimentos nacionais, principalmente aqueles que lutam mais diretamente em torno de questões centrais da sobrevivência das pessoas, como: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); o Associativismo Comunitário nas suas mais diversas formas de expressão; diversos movimentos de luta por moradia popular e de defesa dos favelados; movimentos com forte caráter identitário, como os de mulheres, de negros, de portadores de deficiência, de homossexuais; Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); vários movimentos de defesa e de organização de crianças e adolescentes. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 3 Consolidaram-se também, neste período, vários movimentos e organismos de inspiração religiosa, pastorais sociais, bem como os Centros de Educação Popular e as Organizações NãoGovernamentais (ONGs). Esta rápida apresentação – quase em forma telegráfica – do que existe atualmente de movimentos organizados no país quer valorizar o conjunto dos movimentos e organizações existentes e evitar os riscos de separação entre os movimentos de reivindicação e os movimentos identitários, ou entre os da sobrevivência e os da cidadania. Estamos optando por uma apresentação didática sucinta, uma vez que não concordamos com a dicotomia criada entre identidade e estratégia, ou entre existência e cidadania. Consideramos que há um continuum ou uma articulação entre estas dimensões. Neste sentido, consideramos importante a ação de tais movimentos, que vai desde a indicação de representantes para a participação nos Conselhos setoriais de proposição e gestão de políticas públicas, nas Conferências de definição de políticas, nas passeatas e nas ocupações de terras rurais e urbanas, até as campanhas de amamentação, de uso do “soro caseiro”, da fabricação comunitária de complemento alimentar de alto teor nutricional, ou outras pequenas iniciativas populares capazes de ter incidência na diminuição da mortalidade infantil. Ou seja, uma série de distintas iniciativas que dialogam de forma diferenciada, mas complementar, com resultados para melhorar a qualidade de vida das pessoas e o seu modo de vida. O importante neste momento é registrar que estas expressões organizativas mobilizam grupos específicos, levantam bandeiras bem definidas, apresentam formas diversas de mobilização, conseguindo consistência cada vez maior, construindo teias de articulação às vezes invisíveis e redes de comunicação e solidariedade responsáveis por importantes conquistas. Entre estas podemos destacar: - Melhorias nas condições de existência e mesmo garantia de sobrevivência de expressivos grupos populares no país – muitas pessoas têm acesso à terra para trabalhar, à casa para morar, à água para beber e para a higiene doméstica, a serviços públicos de saúde, de educação, de atendimento à criança, ao adolescente, aos idosos, aos portadores de deficiência, porque elas se mobilizaram através de seus movimentos organizados; - Auto-estima pessoal e solidariedade social – muita gente confirma que passou a se valorizar mais, a se amar mais, a defender sua dignidade humana, a partir de sua participação em alguma EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 4 forma de organização popular. Mulheres desrespeitadas ou violentadas, negros que eram desprezados e desvalorizados, portadores de deficiência física que eram discriminados, todos passam a intervir na cena pública e a experimentar novos valores humanos e solidários; - Consciência de direitos e exercício da cidadania – vítimas de uma herança profundamente paternalista e assistencialista, os setores populares no país experimentam diversas formas de controle e dominação. A existência de diversos movimentos sociais tem conseguido romper este círculo, contribuindo para que o atendimento de necessidades sociais básicas seja percebido como direito antes negado e agora reconquistado pela própria luta popular; - Mudanças no poder local e deslocamentos na política tradicional – o avanço na capacidade de intervenção dos movimentos tem provocado importantes e visíveis mudanças locais, como a participação em Conselhos de Gestão em políticas públicas, eleição de parlamentares oriundos de processos reivindicatórios e que se formaram na luta popular e constituição de grupos de produção ou grupos de “economia solidária”. Tais campos ou situações, historicamente, eram altamente controlados pelas elites locais, e atualmente passam a incorporar novos atores e a abrir novos campos de batalha. 2. Objetivos da série • Discutir possibilidades e experiências educativas fora do sistema formal de ensino, sobretudo as vivenciadas através dos movimentos sociais populares; • Aprofundar o debate atualizado sobre o papel dos movimentos sociais, seus modelos organizativos, suas bandeiras de luta, sua constituição enquanto sujeitos sociais, sua dimensão educativa e emancipatória; • Debater as diversas expressões dos movimentos sociais, destacando o que diferencia e o que unifica esses movimentos; • Relacionar a ação dos movimentos sociais e do conjunto da sociedade civil, com um projeto político e pedagógico da educação brasileira; EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 5 • Destacar as experiências de constituição de Redes e Fóruns sociais e educativos, como perspectivas de viabilizar projetos estratégicos para a sociedade brasileira contemporânea. 3. Fundamentação teórica A prática e a temática dos movimentos sociais se incorporam como objetos de estudo das ciências humanas e sociais, projetando-se, em seguida, como um novo paradigma, devido à grande importância prática e analítica que tais objetos de estudo atingiram, tanto na sua concepção empírico-analítica, quanto na sua dimensão de categoria teórica. Daí a grande atração que a problemática provoca para as principais escolas teóricas das ciências humanas e sociais contemporâneas. Os principais estudiosos dos movimentos sociais no Brasil gravitam entre as correntes teóricas neomarxistas e a corrente teórica culturalista-acionalista. Esta última foi gradativamente se consolidando como teoria dos novos movimentos sociais 2 . Nossa perspectiva teórica assume um distanciamento dos esquemas utilitaristas e das teorias baseadas na lógica racional. E, ao fazer o diálogo com a teoria dos novos movimentos sociais, assumimos esquemas interpretativos que enfatizam o cotidiano, a cultura, a ideologia, as lutas sociais, a solidariedade entre pessoas e grupos, os processos de construção de identidades coletivas e de vivências de subjetividades. Mas enfatizamos, sobretudo, a centralidade da ação social como ação política, portanto, como construção de força social-política, que tem um valor em si mesma através do vínculo social, e um valor universal, contribuindo para os processos de consolidação da democracia participativa. A experiência brasileira, tanto na peculiaridade dos movimentos sociais, que têm em seu interior forte hegemonia da parcela conhecida como movimentos populares, quanto no “ineditismo” de experiência da democracia participativa 3 , reforça tal opção teórica e metodológica. Nesta opção interpretativa, consideramos importante retomar o conceito de movimentos sociais, tal qual assumido por Eder Sader, um dos seus principais estudiosos no Brasil, herdeiro de certa tradição emancipacionista marxista. Tal conceito inova ao romper com esquemas rigidamente predeterminados, priorizando dimensões mais da ação que de estruturas, mais de movimento que de EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 6 classe estruturalmente dada, mais de simbólico-cotidiano que de racionalidade proletária. Eder Sader enfatiza “(...) que não se pode deduzir orientações e comportamentos de ‘condições objetivas dadas', tais deduções pressupõem uma noção de ‘necessidades objetivas' que moveriam os atores sem as mediações simbólicas que as instituem enquanto necessidades sociais. Quem pretender captar a dinâmica dos movimentos sociais, explicando-os pelas condições objetivas que os envolvem e poupando-se de uma análise específica de seus imaginários próprios, irá perder aquilo que os singulariza” 4 (Sader, 1988, p. 42). Para uma teorização dos movimentos sociais, Alberto Melucci propõe um roteiro com cinco pontos centrais: 1º) A construção da ação coletiva, em que enfatiza que o agir coletivo não é o resultado de forças naturais ou de leis necessárias da História, nem simplesmente produto de crenças e de representação de atores; é um objeto construído pela vontade consciente; 2º) Aponta cinco princípios de análise dos movimentos sociais: a) Um movimento social não é uma resposta a uma crise, mas uma expressão de conflito; b) Um movimento social é uma ação coletiva cuja orientação comporta solidariedade, manifesta um conflito e implica a ruptura dos limites de compatibilidade do sistema ao qual a ação se refere; c) O campo analítico da ação de um movimento social depende do sistema de relações no qual tal ação coletiva se situa e à qual ele se refere; d) Todo movimento concreto contém sempre uma pluralidade de significados analíticos; e) Cada movimento é um sistema de ação coletiva, com oportunidades e vínculos; 3º) Como nasce um conflito antagonista; 4º) Integração e mudança – o potencial de conflito e de antagonismos não elimina a construção de diálogos e consensos; 5º) A ação invisível aqui aponta uma aproximação com a Teoria da Mobilização de recursos, mas não se confunde com a mesma. Este é um roteiro-proposta para teorizar os movimentos sociais numa sociedade complexa, ou, para quem preferir outras adjetivações, pode ser sociedade pós-industrial, destacando os conflitos e os EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 7 movimentos contemporâneos, como os juvenis, ecológicos, feministas, pacifistas 5 (Melucci, 2001). Embora o modelo analítico proposto por Melucci apresente um arcabouço teórico consistente, o mesmo salienta que este modelo refere-se às sociedades complexas, na realidade de países como os da América Latina, onde movimentos relevantes ainda se situam na reivindicação por terra, moradia, saúde, direitos humanos fundamentais. Certamente que o diálogo com a teoria dos movimentos sociais precisa ser relacionado com tudo o que se tem elaborado em torno da construção de redes sociais. No sentido das Redes sociais, Ilse Scherer-Warren define rede como “uma articulação de diversas unidades que, através de certas ligações, trocam elementos entre si, fortalecendo-se reciprocamente, e que podem se multiplicar em novas unidades, as quais, por sua vez, fortalecem todo o conjunto, na medida em que são fortalecidas por ele” 6 (Scherer-Warren, 1999). Esta autora resgata ainda a contribuição de Castells em torno das redes sociais e suas características de intensividade, extensividade, diversidade, integralidade e realimentação. “Está aí embutida a idéia de que a rede poderá assumir um caráter propositivo, tendo em vista o seu efeito multiplicador e conseqüente mecanismo de difusão simbólica de novos valores e de empoderamento dos movimentos. Portanto, a rede desempenha, segundo esta ótica, um papel estratégico, enquanto elemento organizador, articulador, informativo e de empoderamento do movimento no seio da sociedade civil e para relação com outros poderes instituídos” 9 (Scherer-Warren, 2001). Outra referência mais tradicional, mas que certamente oferece uma grande contribuição ao debate atual sobre as conseqüências da ação dos movimentos sociais e, portanto, também ao atual debate sobre redes, pode ser encontrada nos estudos de Antonio Gramsci, através dos conceitos de luta ideológica, hegemonia, bloco histórico, guerra de posição e guerra de movimento, vontade coletiva, unidade intelectual e moral... Como tal referência enfatiza a ação política como ato criador, criativo, inovador, provoca inovações, ou resgata primitivas elaborações no interior do marxismo, fornecendo consistência para o debate que estamos travando. Pois, ao valorizar a ação, Gramsci não menospreza o papel das estruturas, uma vez que “(...) a ação nasce no terreno permanente e orgânico da vida econômica, mas supera-o, fazendo entrar em jogo sentimentos e aspirações em cuja atmosfera incandescente o próprio cálculo da vida humana individual obedece a leis diversas do proveito pessoal”. Nesta mesma linha, retoma o papel da identidade, mas articulando-a com o de organização: “(...) uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins heterogêneos, se EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 8 solidificam na busca de um mesmo fim, sobre a base de uma idêntica e comum concepção de mundo. (...) As idéias e as opiniões não nascem espontaneamente no cérebro de cada indivíduo; tiveram um grupo de homens ou inclusive uma individualidade que as elaborou e apresentam sobre forma política de atualidade” 8 (Gramsci, 1978, p. 14-34). Tal perspectiva analítica parece muito importante para os debates dessa série, pois concentra a reflexão em torno das disputas de hegemonia, através do processo de consolidação da práxis social. Ainda no debate em torno da ação da sociedade civil, na relação com o trabalho das redes, podemos destacar as contribuições de Jean Cohen e Andrew Arato, ao conceber a sociedade civil como rede de associações autônomas, com interesses comuns, que deve exercer o controle sobre o Estado, utilizando meios institucionais ou informais. Nesta perspectiva, apontam ainda como composição da sociedade civil os seguintes elementos: a) Pluralidade – famílias, grupos informais, associações voluntárias; b) Pluralidade – instituições de cultura e comunicação; c) Privacidade – domínio e autodesenvolvimento de escolha moral; d) Legalidade – leis gerais e direitos básicos 8 (Oliveira, 2003). Temas que serão abordados na série Educação e movimentos sociais , que será apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola de 10 a 15 de abril de 2005: PGM 1 - Movimentos sociais populares Este programa vai apresentar uma introdução inicial aos movimentos sociais populares, destacando alguns conceitos fundamentais. Neste sentido, serão discutidos: a composição social dos movimentos sociais populares, suas bandeiras de luta e reivindicações, suas estratégias e seus objetivos, seus modelos organizativos, e ainda: os métodos de ação, os diversos tipos de movimentos, as alianças e os interlocutores, a cultura política e as práticas educativas que os movimentos sociais populares desenvolvem ou fortalecem. PGM 2 - Associativismo comunitário e lutas urbanas A conquista de direitos e o exercício da cidadania EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 9 Este programa tem como proposta apresentar experiências significativas de organizações e lutas comunitárias, para conquista de direitos fundamentais dos menos favorecidos e dos trabalhadores, destacando as ações de Associações de Moradores, de Movimentos de Luta por Moradia Popular, de Defesa dos Favelados, de saúde para as classes populares, de mutuários do Sistema Financeiro de Habitação, de Mutirões Habitacionais. Neste sentido, deve ser destacada a passagem entre uma situação de necessidade para uma situação de conquista de direitos, como a conquista de casa, escola, transporte, coleta de lixo, energia elétrica, equipamentos de uso e consumo coletivo. Tudo isto foi possível porque o povo se organizou e se mobilizou, portanto os direitos são conquistados ou construídos a partir da mobilização popular, e este processo se converte num exercício democrático da cidadania. Devem ser destacados, também, os processos de aprendizagem que vão se tornando possíveis no processo de mobilização: como entusiasmar as bases para a participação, como se formam as lideranças, como se cria uma nova prática educativa e política. PGM 3 - Identidades e solidariedades Gestos e impactos sociais Este programa deverá discutir as questões dos movimentos que se formam a partir de identidades coletivas, de enfrentamentos de discriminações e opressões específicas, ou a partir de valores éticos de defesa da vida. Neste sentido, deverão ser destacados os movimentos de mulheres, de negros, de portadores de necessidades especiais, de meninos e meninas de rua, de homossexuais, de ajuda humanitária, de presença fraterna e solidária junto a grupos empobrecidos. Este programa deverá destacar, portanto, as experiências organizativas em que as pessoas se sentem bem-vindas, amadas e respeitadas nos grupos de que participam, condição para a elevação da auto-estima pessoal e coletiva, experiências de solidariedade que estão ajudando as pessoas a viverem melhor, a se libertarem dos preconceitos e das discriminações. Deverão ser evidenciadas as aprendizagens e práticas educativas que conduzem à elevação da auto-estima, a novas relações de gênero e etnia, bem como os impactos sociais advindos dessas práticas, como a diminuição da mortalidade infantil e materna, os projetos de segurança alimentar. PGM 4: Culturas juvenis Valores sociais e novas expressões comunicativas EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 10 Este programa tem como objetivo discutir as expressões juvenis e culturais presentes nas periferias urbanas, como elas se relacionam com a tradição das lutas juvenis do Brasil e o que trazem de inovador e criativo para as juventudes contemporâneas, buscando destacar porque tais expressões têm demonstrado capacidade de seduzir e entusiasmar os jovens, criando formas de comunicação entre si e com o conjunto da sociedade. Deverá abordar, também, como estas expressões culturais e comunicativas proporcionam uma dimensão educativa para os seus participantes, para os setores sociais e políticos que se relacionam com as juventudes, portanto, que conseqüências podem oferecer para a proposição e realização de políticas públicas de/com e para as juventudes. PGM 5: Redes e fóruns sociais Alternativas de sobrevivência e de projetos estratégicos para sociedade brasileira Este programa vai discutir como os movimentos sociais e suas articulações em Fóruns e Redes estão conseguindo construir estratégias de sobrevivência e de elevação da qualidade de vida para amplos setores e grupos sociais, criando formas de relações horizontais que fortalecem os próprios movimentos e a sociedade civil e, a partir daí, propondo novos processos democráticos e novos modelos de desenvolvimento. Deverá debater, também, os processos educativos desenvolvidos a partir das práticas sociais e econômicas, que tornam os participantes dos movimentos sociais, de suas redes e fóruns mais capacitados para proposição de modelos organizativos e produtivos para suas próprias organizações e para a sociedade brasileira. Bibliografia BRITO, Paulo A. B . Movimentos populares; possibilidades e limites de um novo sujeito histórico. Dissertação de Mestrado. Campina Grande, PB: 1990. COSTA, Sérgio. As cores de Ercília: Esfera pública, democracia, configurações pós-nacionais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. DAGNINO, Evelina. Anos 90: política e sociedade no Brasil (Os Movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania). São Paulo: Brasiliense, 1994. GENRO, Tasso Fernando. O futuro por armar: democracia e socialismo na era globalitária. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. GONH, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais – Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 1997. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 11 GRAMSCI, Antônio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre factividade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. JACOBI, Pedro. Movimentos sociais e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1993. LYRA, Rubens Pinto. Textos de teoria política. João Pessoa, PB: UFPB/ FUNAPE, 1989. MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001. OLIVEIRA, Francisco Mesquita. Cidadania e cultura política no poder local: o Conselho de Administração Participativa de Camaragibe – PE. Dissertação de Mestrado de Ciência Política na UFPE. Texto mimeografado. Recife, 2003. SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970 – 1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SCHERER-WARREN, Ilse. Cidadania sem fronteiras – ações coletivas na era da globalização. São Paulo: Hucitec, 1999. SCHERER-WARREN, Ilse. Movimentos sociais: um ensaio de interpretação sociológica. Florianópolis, Editora da UFSC. Notas 1 Sociólogo e educador da Escola de Formação Quilombo dos Palmares – EQUIP, Recife- PE. Consultor dessa série. 2 Maria Glória Gonh, embora reconheça que estes dois blocos não possam ser separados com uma delimitação muito precisa, nem que eles sejam homogêneos internamente, reconhece traços identificadores de um e outro bloco. Gonh cita como representantes da corrente neomarxista os historiadores Hobsbawm, Rude e Thompson; além dos teóricos ligados à corrente histórico-estrutural representada por Castells, Borja e Lojkine. E, na corrente dos novos movimentos sociais, destaca três linhas: a histórico-política, de Clauss Offe; a psicossocial de Alberto Melucci, Laclau e Mouffe; a acionalista de Alain Touraine (Gonh, 1997, p. 119). 3 Os argumentos em torno do “ineditismo da experiência brasileira” são apresentados por Rubens Pinto Lira, em: Textos de teoria política. João Pessoa, PB: UFPB/FUNAPE, 1989. 4 Eder Sader analisa quatro importantes movimentos sociais presentes na Região Metropolitana de São Paulo durante a década de 70: Movimento de Saúde da Zona Leste, Movimento sindical dos metalúrgicos do ABC, Movimento de creches da grande São Paulo. Sistematiza tais estudos no livro: Quando novos personagens entram em cena: falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970 – 1980 . Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. 5 Roteiro apresentado no livro: A invenção do presente: Movimentos sociais nas sociedades complexas . Petrópolis: Ed Vozes, 2001. 6 Ver Ilse Scherer-Warren, em Cidadania sem fronteiras – ações coletivas na era da globalização . São Paulo: Ed. Hucitec,1999. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 12 7 Ibidem. 8 Ver Antonio Gramsci, em Maquiavel, a política e o Estado Moderno . Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1978. 9 Síntese citada por Francisco Mesquita de Oliveira, em dissertação de mestrado em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE, 2003 . EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 13 PROGRAMA 1 MOVIMENTOS SOCIAIS POPULARES Movimentos Sociais: aspectos históricos e conceituais Paulo Afonso Barbosa de Brito1 1. Um rápido olhar sobre o passado A história brasileira é profundamente marcada pela efervescência dos Movimentos Sociais, embora só muito recentemente estes tenham aparecido com o lugar de destaque nas publicações e registros da história oficial. Faz-se necessário resgatar a dívida social e histórica que a nação tem com os empobrecidos e trabalhadores, enquanto se organizam e lutam por direitos, tanto para reconhecimento de sua participação na constituição da própria nação, quanto para o reconhecimento da pluralidade de sujeitos sociais presentes na dinâmica política nacional. Só para partir de um marco de referência consistente, reconhecido por todos os estudiosos da história brasileira, registremos a existência dos Quilombos, uma vez que eles enfrentaram uma das dimensões mais perversas de nossa história, a existência de escravidão humana, de pessoas serem tidas apenas como mercadoria e trabalho, mas também registraram, com suas experiências, importantes lições de dedicação e luta pela emancipação social, política, econômica, cultural. Os Quilombos foram, justamente expressões marcantes destas lutas, a organização de negros escravizados, que criavam vários mecanismos para fugirem dos engenhos onde viviam e trabalhavam, para construírem comunidades livres, atraindo também brancos pobres, indígenas, caboclos, motivados pela perspectiva de uma vida livre. Nestas comunidades, experimentavam uma organização da produção em certos casos muito desenvolvida, com técnicas agrícolas avançadas, artesanato, metalurgia, uma nova organização política, qualitativamente diferente da Colônia de Portugal, uma dinâmica social com princípios de liberdade e igualdade. Centenas de Quilombos se espalharam por todo o país durante os anos de Colônia e Império. O mais importante deles foi o Quilombo dos Palmares, situado em uma extensa faixa de terras entre os estados de Pernambuco e EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 14 Alagoas, uma experiência que durou quase um século, e que foi destruído pelos governos e senhores de terras, através de uma das mais sangrentas guerras patrocinadas no período colonial brasileiro. Outro movimento social, inspirado em valores liberais (de forte influência na Europa naquele período), mas formado, em grande parte, por setores minoritários das elites, como religiosos, advogados, poetas, foi o abolicionismo, que também teve papel importante para que a nação superasse esta terrível fase de sua história. Entre o final do período Imperial e os primeiros anos da República, realizaram-se os chamados “Movimentos Messiânicos”, que eram movimentos em geral conduzidos por líderes religiosos, mas com forte apelo político, formados fundamentalmente por camponeses pobres, que tentaram as primeiras experiências de reforma agrária no Brasil. Entre estes, podemos destacar a experiência do Contestado no Paraná, de Canudos na Bahia, de Caldeirão no Ceará. Todas experiências brutalmente destruídas pelo poder da República, através de guerras sangrentas com verdadeiros genocídios tendo sido praticados. Durante todo o século XX, possivelmente, o movimento sindical se expressou como a principal forma de organização entre os movimentos sociais, tendo assumido diferentes influências, como a dos anarquistas no início do século, dos trabalhistas e dos comunistas entre a década de 30 e o Golpe Militar de 1964, do novo sindicalismo (que veio a se consolidar na construção de Central Única dos Trabalhadores – CUT), a partir da década de 80. Para esse texto, que visa oferecer subsídios para os debates do programa 1 desta série de programas, concentraremos nossa análise nos chamados novos movimentos sociais, que tiveram os primeiros ensaios nas décadas de 60 e 70, mas puderam se expressar com maior dinamicidade e mobilidade a partir da década de 80. 2. A atualidade dos Movimentos Sociais Populares Principalmente na década de 80, os Movimentos Sociais Populares emergiram no contexto social e político brasileiro com uma fantástica capacidade criativa, organizativa e mobilizadora, sendo responsáveis por expressivas conquistas que garantem melhorias na qualidade de vida de amplos EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 15 setores sociais, afirmação de direitos e exercício da cidadania para um número cada vez maior de agrupamentos humanos, construção de identidades coletivas e auto-estima pessoal e social de setores e grupos historicamente discriminados ou oprimidos, intervenção nas políticas públicas, modificando ou inibindo as seculares práticas assistencialistas e clientelistas, contribuindo assim para mudanças em nível do poder local e da política tradicional. Tais conquistas são permeadas por processos educativos, tanto dos participantes diretos de tais movimentos, quanto das pessoas e grupos atingidos por sua ação, e da sociedade envolvente. Portanto, estamos considerando movimentos sociais os agrupamentos de pessoas, geralmente das classes populares ou de grupos minoritários (no sentido de destituídos de poder) e discriminados, que agem coletivamente, com algum método, realizam parcerias e alianças, abrem diálogos e negociações com interlocutores, como processos articulados para conquistas de direitos e exercício da cidadania. Multiplicaram-se no Brasil durante a década de 80 e principalmente nos anos 90, percebendo-se, no país, progressiva ampliação e diversificação de organizações populares, com diversos modelos organizativos, formas de mobilização, bandeiras de luta, relações com mediadores e interlocutores, processos de formação das lideranças populares. Apesar de reconhecermos os riscos de qualquer tipologia, para efeito didático, apresentaremos a seguir alguns agrupamentos dos principais movimentos sociais em atividades no país, reconhecendo que esta é apenas uma aproximação metodológica e organizativa, não uma delimitação de fronteiras rígidas entre os diversos tipos de movimentos existentes. Assim podemos destacar: • Associativismo Comunitário – várias redes de Associações Comunitárias ou de Moradores, Conselhos Populares, Sociedades de Amigos de Bairro, Associações Beneficentes, Comunidades de Base, espalhadas pela maioria dos municípios brasileiros; • Movimentos Criados em torno de Necessidades Coletivas – os que têm demonstrado maior capacidade mobilizadora e organizativa no país, destacando-se os Movimentos de Luta pela Moradia, os Movimentos Populares de Saúde, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), responsáveis por importantes conquistas para as classes populares; • Movimentos Criados em torno de Identidades Coletivas, ou para o enfrentamento de discriminações específicas – como os de mulheres, de negros, de portadores de necessidades EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 16 especiais, de orientação sexual diferenciada, de idosos, que têm sido responsáveis pela mudança de valores e comportamentos na sociedade brasileira; • Movimentos Indígenas – que têm garantido a sobrevivência e a cultura dos primeiros habitantes das terras brasileiras; • Movimentos nascidos em torno de valores humanos e solidários de seus membros – como a Pastoral da Criança, a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida (que não se reconhece como um movimento, mas como uma ação articulada), e que têm tido uma incidência extraordinária para melhorar a vida das pessoas; • Movimentos de Juventude e de Crianças e Adolescentes – desde os tradicionais, como o Movimento Estudantil e as Pastorais Juvenis, até os novos movimentos e expressões juvenis das periferias urbanas, fortemente marcados pelas iniciativas culturais e comunitárias; • Movimentos ligados ao mundo do trabalho, à produção e distribuição de renda – diversos grupos que se articulam em torno da chamada “Economia Popular e Solidária”. Consolidaram-se também, neste período, vários movimentos e organismos de inspiração religiosa, pastorais sociais, bem como os Centros de Educação Popular e as Organizações NãoGovernamentais (ONGs). Nos últimos anos, tem crescido a articulação destes Movimentos, Entidades, Pastorais, ONGs em torno de Redes, Fóruns e outras expressões de comunicação permanente, com destaque para o Fórum Social Mundial, e os diversos Fóruns Sociais nascidos em sua conseqüência. Esta rápida apresentação, quase em forma telegráfica, do que existe atualmente de movimentos organizados no país, quer valorizar o conjunto dos movimentos e organizações existentes, e evitar o risco de separação entre os movimentos de reivindicação e os movimentos identitários, ou entre os da sobrevivência e os da cidadania. Estamos optando por uma apresentação didática sucinta, pois não concordamos com a dicotomia criada entre identidade e estratégia, ou entre existência e cidadania. Consideramos que há um continuum ou uma articulação entre estas dimensões. Neste sentido, consideramos importante a ação de tais movimentos, que vai desde a indicação de representantes para participação nos Conselhos setoriais de proposição e gestão de políticas EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 17 públicas, nas Conferências de definição de políticas, as passeatas e ocupações de terras rurais e urbanas, até as campanhas de amamentação, de uso do “soro caseiro”, da fabricação comunitária de complemento alimentar de alto teor nutricional, ou outras pequenas iniciativas populares capazes de ter incidência na diminuição da mortalidade infantil, ou seja, uma série de distintas iniciativas que dialogam de forma diferenciada, mas complementar, com resultados para melhorar a qualidade de vida das pessoas e o seu modo de vida. O importante neste momento é registrar que, embora estas expressões organizativas mobilizem, a cada vez, grupos específicos, levantem, a cada vez, bandeiras bem definidas, apresentem, a cada vez, formas diversas de mobilização, elas têm conseguido consistência cada vez maior, construindo teias de articulação às vezes invisíveis e redes de comunicação e solidariedade responsáveis por importantes conquistas. Entre estas podemos destacar: • Melhorias nas condições de existência e mesmo garantia de sobrevivência de expressivos grupos populares no país. Muita gente tem acesso à terra para trabalhar, à casa para morar, à água para beber e para a higiene doméstica, a serviços públicos de saúde, de educação, de atendimento à criança, aos adolescente, aos idosos, aos portadores de deficiência, porque o povo se mobilizou através de seus movimentos organizados; • Auto-estima pessoal e solidariedade social – pessoas que passaram a se valorizar mais, a se amar mais, a defender sua dignidade humana, a partir de sua participação em alguma forma de organização popular; • Consciência de direitos e exercício da cidadania – as descobertas tratadas no item anterior contribuem para muitos grupos populares romperem os círculos de dominação, em que os direitos são recebidos como dádivas do político de plantão, para perceber que o atendimento de necessidades sociais básicas é um direito antes negado e agora reconquistado pela própria luta popular; • Mudanças no poder local e deslocamentos na política tradicional, como sinal do avanço do exercício da cidadania e a afirmação de novos instrumentos de ação pública, reconhecidos como democracia participativa – a participação em Conselhos de Gestão em políticas públicas, eleição de parlamentares oriundos de processos e formação na luta popular, EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 18 constituição de grupos de produção ou grupos de “economia solidária”, campos ou situações historicamente altamente controlados pelas elites locais, que passam a incorporar novos atores, e a abrir novos campos de batalha. 3. Conceitos e categorias analíticas dos Movimentos Sociais Destacamos, neste texto, a experiência dos Movimentos Sociais Populares, com todos o significados anteriormente explicitados, não só no Brasil, mas em todo o mundo. E o Fórum Social Mundial (que não é composto só por Movimentos Sociais, mas tem importante participação destes) é a expressão mais visível deste significado, e se incorpora como objeto de estudo das ciências humanas e sociais, projetando-se, em seguida, como um novo paradigma, devido à grande importância prática e analítica que atingiu, tanto na sua concepção empírico-analítica, quanto na sua dimensão de categoria teórica. Pelas razões apresentadas até aqui, em torno da concepção e das práticas dos movimentos sociais, nossa perspectiva teórica assume um distanciamento dos esquemas utilitaristas e das teorias baseadas na lógica racional. E, ao fazer o diálogo com a teoria dos novos movimentos sociais, assumimos esquemas interpretativos, que enfatizam o cotidiano, a cultura, a ideologia, as lutas sociais, a solidariedade entre pessoas e grupos, os processos de construção de identidades coletivas e de vivências de subjetividades. Os conceitos que pretendam captar a dinamicidade dos novos movimentos sociais precisam inovar, rompendo com esquemas rigidamente predeterminados, priorizando dimensões mais da ação que de estruturas, mais de movimento que de classe estruturalmente dada, mais de simbólico-cotidiano que de racionalidade proletária. Daí que se reforça a necessidade da análise a partir das subjetividades e identidades, bem como dos imaginários e dos sistemas simbólicos que permeiam suas práticas e dinâmica de funcionamento. Mas, se faz necessário enfatizar, a centralidade da ação social como ação política, portanto como construção de força social-política, tem um valor em si mesma através do vínculo social, e um valor universal, contribuindo para os processos de consolidação da democracia participativa. A experiência brasileira, tanto na peculiaridade dos movimentos sociais, que têm em seu interior EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 19 forte hegemonia da parcela conhecida como movimentos populares (aquelas organizações e lutas mais diretamente vinculadas às classes populares, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, o Movimento Nacional de Luta por Moradia – MNLM, o Movimento Popular de Saúde – MOPS, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais – MMTR), quanto no “ineditismo” de experiência da democracia participativa 2 , reforça tal opção teórica e metodológica. Esta opção incorpora outros conceitos ou categorias de análise, dentre os quais podemos destacar: • Movimentos Sociais como expressão dos Conflitos na Sociedade – a parte mais visível destes conflitos está em torno dos direitos de propriedade, uma vez que as lutas por terra, por moradia, por água, enfrentam-se com a tradição de concentração das terras e das riquezas, tão fortemente presentes na história brasileira. Mas também os conflitos de valores, como os presentes nas relações de gênero, de raça, de gerações. • Movimentos Sociais implicam Ações Coletivas – Trata-se de ações de grupos, Associações, Comunidades, motivados por demandas sociais, situações de carências, ou por valores humanitários e libertários, articulados em torno de um discurso, uma linguagem comum. As ações coletivas tornam mais provável o atendimento das reivindicações, ou a afirmação dos valores. • Afirmação de Identidades e Solidariedades - As pessoas participam de aspirações e sonhos comuns, às vezes em busca de bens materiais imediatos e necessários à sua sobrevivência, às vezes de bens simbólicos, mas igualmente necessários à manutenção da vida, e em torno destes bens constroem identidades e vivenciam solidariedades. • Relação dialética permanente entre Integração, Inclusão e Mudança Social – Se a grande maioria das demandas dos movimentos sociais diz respeito à inclusão e à integração das pessoas ao sistema, uma vez que o sucesso do próprio sistema, que cria a exclusão, demonstra a capacidade de também incluir, e o processo de tal conquista tem criado as condições para mudanças e transformação da ordem social existente, o que já é percebido em várias situações. • As ações coletivas articulam Pluralismo e hegemonia – Embora os espaços coletivos sejam ocupados e valorizados como o ambiente de todos, portanto da pluralidade de idéias, de opções políticas, de credos religiosos, a existência da organização se configura também como espaços onde se consolidam direções, se constroem decisões majoritárias, o que necessariamente apresenta os EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 20 movimentos como ambientes de disputas. Mas, para além das disputas internas, os movimentos expressam disputas gerais que existem na sociedade, num exercício muitas vezes difícil de construir acordos entre os seus participantes, e entre os diversos movimentos, para os enfrentamentos externos, os conflitos estruturais presentes na sociedade e nas relações de poder e de propriedade. Notas 1 Sociólogo e educador da Escola de Formação Quilombo dos Palmares – EQUIP, Recife- PE. Consultor dessa série. Texto escrito para o programa “Salto para o Futuro”. 2 Os argumentos em torno do “ineditismo da experiência brasileira” são apresentados por Rubens Pinto Lira, em: Textos de teoria política . João Pessoa, PB: UFPB/FUNAPE, 1989. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 21 PROGRAMA 2 ASSOCIATIVISMO COMUNITÁRIO E LUTAS URBANAS Relação estado e sociedade civil na construção dos Direitos Humanos Francisco Mesquita de Oliveira 1 1. Características da constituição política e econômica do Estado brasileiro Por construção política do Estado, entende-se o processo de concepção do Estado, que lhe deu forma, expressão, jeito de agir e de se relacionar, em suma, a forma como ele foi configurado. Nesse sentido, o Estado brasileiro, grosso modo, passou por duas grandes fases: o Estado imperial, que fundou as primeiras bases políticas, econômicas e sociais da nossa sociedade, e o Estado republicano. - O Estado republicano brasileiro, no processo de constituição e consolidação, não assumiu as diferentes contribuições dos variados grupos populacionais da sociedade; apenas as elites foram contempladas nesse processo.- Até o início dos anos 30, do século XX, o Estado foi crivado pelas práticas políticas das elites agrárias brasileiras, gerando uma cultura política patrimonialista (em que o privado sobrepõe-se ao público), clientelista (com uma concepção de cidadão cliente), a cultura do “jeitinho” (que permite “se dar bem na vida” àqueles que têm quem lhes abra caminhos), em resumo, a cultura do que “é dando que se recebe”. Nesse período os conchavos, acordos e troca de favores deram o tom na formação do Estado. Portanto, as práticas políticas das elites nortearam a relação do Estado com a sociedade civil. E o clientelismo foi a base de todas as relações do Estado. - Dos anos 30 aos anos 50, o Estado se moderniza na lógica capitalista moderna. Nasce a elite urbana, que assume o processo de consolidação do Estado, sem, contudo, incorporar novos valores e práticas culturais, mas apenas reproduzindo novos padrões da velha cultura política.- Nos anos 60 e até meados dos anos 80, período dos governos militares, o Estado rompeu todas as possibilidades de relação com a sociedade civil. Vivemos o “período de chumbo”. Ou seja, intensa perseguição às liberdades, atitudes e práticas políticas. - Na era de Redemocratização, com a Constituição de 1988, e até os dias atuais, surgem novos elementos que reconfiguram o Estado, como a doutrina EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 22 neoliberal, a mundialização econômica, os efeitos da terceira revolução industrial (expansão microeletrônica, as novas mídias, a internet – que tornam a realidade virtual). Mas, também, pela primeira vez, aparece no cenário político uma sociedade civil forte e atuante. Pois bem, este processo produziu um misto de cultura política, que orienta a relação do Estado com a sociedade civil e, até hoje, essa relação se estabelece com base nos princípios corporativistas e práticas clientelistas e na pouca disposição do Estado para romper com estes vícios. 2. Sociedade civil pós-anos 80 e sua relação com o Estado - A disputa entre o Estado e a sociedade civil, que se acirra no chamado período de “redemocratização”, ou seja, a partir dos anos 80, produziu avanços significativos na construção das relações sociais e políticas que apontam para o fortalecimento da sociedade e para a melhor definição do papel do Estado. Nesse processo, o tecido social brasileiro ganhou consistência e impulsionou a constituição de parâmetros políticos para as novas relações entre o Estado e a sociedade. - Cada vez mais se busca compreender as relações de dependência, de autonomia, de complementaridade e de exclusão que se estabelecem entre esses dois sujeitos. Essas relações produzem comportamentos políticos que contribuem, efetivamente, na construção política social do tipo: (a) uma sociedade civil mais forte; (b) existência de espaços de disputa e de negociação de políticas públicas; e (c) introdução de um novo modelo de relação entre o Estado e a sociedade – a relação política em que o Estado convive com o papel crítico da sociedade e esta, por sua vez, coopera com o Estado naquilo que a fortalece, de forma autônoma e independente. - A sociedade civil é uma composição de sujeitos sociais formais e informais, heterogêneos, com diferentes graus de organização, de interesses políticos e objetivos; é diferente das organizações do mercado, dos órgãos públicos de Estado e dos partidos políticos. Nessa concepção, a sociedade civil é bastante abrangente. A sociedade civil se diferencia do mercado, pela lógica econômica, financeira e lucrativa deste. Em relação ao Estado, a diferença está no poder que ele tem de estabelecer regras legais, de coagir e de tutelar os indivíduos na sociedade. E, por fim, em relação aos partidos políticos, diferencia-se pelo seu objetivo principal de chegar ao poder político para exercer o controle do Estado. - A sociedade civil contemporânea inclui um grande número de sujeitos sociais, com práticas, objetivos, modalidades de atuação e projetos diferentes. A sociedade civil, à qual nos referimos, é aquela que se constitui por movimentos, cujo elemento característico aglutinador é exatamente o caráter de intervenção no processo de aumento da democratização do Estado, de conquista de direitos políticos, sociais, econômicos, culturais, ambientais – direitos humanos, numa EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 23 concepção abrangente – que passa pela capacidade de negociação, diálogo, intercessão, mas sem perda da identidade, da autonomia, da capacidade de crítica – uma concepção de sociedade civil forte, coesa na sua diversidade, e ativa. - A relação do Estado com a sociedade, do ponto de vista de uma relação democrática, aberta, transparente, verdadeira ou, ao contrário, autoritária, casuística, dissimulada, de certa forma, está relacionada com as características de construção do Estado, anteriormente apresentadas, e a cultura política tradicional. 3. Estado e Sociedade civil na promoção dos direitos humanos - A concepção de direitos humanos com a qual trabalhamos é aquela, já anteriormente explicitada, dos direitos políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, incluindo o direito a ter direito. Trocando em miúdo, estes direitos dizem respeito às liberdades políticas; à eqüidade de condições econômicas; à garantia e universalidade das políticas sociais; ao direito ao lazer, à cultura, ao meio ambiente saudável, renovável e sustentável estendidos a todos os homens e a todas as mulheres, independente de raça, crédulo e etnia. E que cada ser humano reconheça e assuma seu direito de ter direito à vida digna. - Ao Estado cabe o dever de assegurar os direitos de forma universal. No entanto, não é bem isto que, historicamente, acontece aqui no Brasil: é comum a transgressão aos direitos humanos: milhares de pessoas vivem sem moradia, embaixo de pontes, nas ruas, em favelas, nos locais onde ninguém mais quer viver (só na RMR do Recife existem mais de 600 favelas), sem serviços de educação, de saúde, de segurança adequados. - Não é fácil estabelecer parceria com o Estado que, historicamente, tem se esquivado de suas responsabilidades na promoção dos direitos humanos (nessa concepção) de forma universal. - Mas não se pode negar que por meio de várias ONGs e movimentos populares, a partir do fim da década de 90, com a reforma do Estado promovida pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, têm crescido as parcerias entre Estado e sociedade civil em vários serviços de saúde, educação, agricultura familiar, proteção a testemunhas de casos de violência e outras área de políticas sociais... - Algumas dessas parcerias têm resultado no fortalecimento da identidade e da missão da organização parceira, resguardando sua autonomia, independência o jeito próprio de realizar as atividades. - Mas, no geral, tem-se observado que em grande parte as parcerias têm sido mais uma transferência de responsabilidade do Estado para a sociedade civil. É o Estado assumindo a lógica neoliberal de desresponsabilizar-se dos serviços sociais (que tem tudo a ver com os direitos humanos), repassando-os para o mercado e para a sociedade executar. Nessa concepção de parceria, as organizações da sociedade civil não passam de meras executoras de serviços públicos. É a inversão EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 24 das lógicas: o Estado passa a ser fiscalizador e a sociedade executora de políticas.- Este tipo de parceria não é benéfica às organizações sociais, porque as fragiliza, as submete às regras do Estado e impede seu poder de criticidade. Não é parceria, é cooptação. Creio que é necessário explicitar qual parceria se quer estabelecer com o Estado, pois a parceria que leva à cooptação e não ao fortalecimento da identidade e da autonomia das organizações não deve interessar à sociedade civil organizada. Nesse sentido, retomo o início desse texto: as características do patrimonialismo, do clientelismo, da subserviência e da lógica do privado, preponderando sobre o coletivo, também estão presentes na sociedade civil; por isto, a parceria em prol da exigibilidade de direitos e da efetivação dos direitos humanos é também uma possibilidade de se construir novos valores culturais para a sociedade e para o Estado. Bibliografia AGUILAR, Maria José; ANDER-EGG, Ezequiel. Avaliação de serviços e programas sociais. Tradução Jaime A. Clasen e Lúcia Mathilde E. Orth. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 15-58, 87-134. ALVAREZ, Sonia E.; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo. O cultural e o político nos movimentos sociais latino-americanos. In: ALVAREZ, Sonia E.; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo (orgs.). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: UFMG, 2000. Cap. 1, p. 15-57. ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. 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A relação governo e sociedade na gestão da política pública de esporte e lazer no governo do Estado: gestão 1999-2001: analisando o projeto “Idosos em Movimento”. 2002. 182 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. 3. ed. São Paulo: Ática, 2002. p. 24-48, 56-79, 193-199. (Ensaios, 136). EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 25 BORON, Atílio A. Os “novos leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (orgs.). Pósneoliberalismo II: que estado para que democracia? 2. ed. Petrópolis: Vozes: Clacso, 2000. p. 7-67. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Apresenta dados sobre as eleições 2000. Disponível em: <http://www.tse.gov.br>.BUARQUE, Cristovam. A missão do PT e de seus governos. 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EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 26 PROGRAMA 3 IDENTIDADES E SOLIDARIEDADES Educação popular e movimentos de mulheres Carmen Silvia Maria da Silva 1 Tem muita gente espalhada por este Brasil afora fazendo coisas para mudar o mundo e uma boa parte mantém a Educação Popular como fontes de inspiração e de aprendizagem contínuas. Mas quem são estas pessoas? Por que insistem em desenvolver ações referidas à educação popular? Onde trabalham? O que fazem? São homens e mulheres, educadores e educadoras populares, que seguem acreditando numa perspectiva de transformação social a partir da luta dos empobrecidos, discriminados, violentados, daqueles que são excluídos dos processos decisórios e do direito à expressão. Educadores e educadoras populares, engajados em entidades de movimentos sociais, organizações não-governamentais, pastorais e serviços eclesiais, universidades e sindicatos, que continuam fazendo o mundo mudar, ajudando a desenvolver consciência crítica e solidária, a organizar grupos que manifestam seus interesses e constroem direitos. Homens e mulheres que trabalham acompanhando os esforços de atuação articulada dos movimentos em redes, as intervenções junto aos poderes públicos, a organização de novas formas econômicas e a participação política. São pessoas para as quais a democracia, a justiça e a ética são ideais de vida manifestos na conflitiva experiência cotidiana. Educação Popular é vista aqui como uma concepção pedagógica, mais precisamente um ideário educacional que alimenta um conjunto de práticas sociais, marcadas fortemente pela dialogicidade e pela perspectiva de formação de sujeitos autônomos, críticos e criativos, que se mobilizam pela transformação social. Nascida das idéias de Paulo Freire, a educação popular inspirou-se nas experiências revolucionárias latino-americanas e na experiência de formação dos novos movimentos sociais no período da redemocratização, ao final da ditadura militar no Brasil. Neste processo, constituiu-se como um ideário ético, político e educacional, que congrega valores e problemas decorrentes deste processo histórico. A redemocratização da sociedade brasileira foi alimentada, a partir de meados da década de 70, com o aparecimento na cena política de manifestações públicas em torno de interesses comuns, EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 27 protagonizadas tanto por pequenos agrupamentos como por articulações de grupos que exigiam o direito a ter direitos . No início daquele período, o Brasil vivia sob a ditadura militar, que bloqueava qualquer processo reivindicatório ou de expressão de descontentamento. O fortalecimento desses movimentos sociais colocou, na agenda política, novas temáticas, instituindo novos direitos e impondo uma alteração na relação entre Estado e sociedade civil. Manifestações contra a carestia; em defesa da anistia aos presos e exilados políticos; as greves salariais; as passeatas por acesso à saúde, à educação, ao transporte coletivo; o movimento pela cultura negra; os grupos de arte na rua; os grupos de mulheres se afirmando como cidadãs, donas do seu próprio corpo – todos estes movimentos, entre outros, levaram às ruas milhares de pessoas que se percebiam com força para alterar o rumo da história. Mas quem são essas pessoas? Por que, de repente, foram às ruas? Eram, em grande número, componentes de uma rede invisível de pequenos grupos de bairros periféricos, de escolas e universidades, de trabalho, teatros, igrejas e bares, que faziam resistência cotidiana às formas de dominação e participavam de pequenas lutas por melhores condições de vida, pelo direito à participação, por alterações culturais ou pela garantia da liberdade de ter um estilo de vida particular. As organizações criadas nesse contexto geraram novos espaços de manifestação de interesses e de expressão de um discurso próprio, brotado das próprias lutas sociais nas quais os participantes elaboraram suas representações dos acontecimentos e de si mesmos, mas também sob influência de outras instituições. Ressignificaram antigas palavras; articularam-se em projetos, em cujo processo passaram a construir suas identidades, com a afirmação como sujeitos políticos coletivos, “não como atores desempenhando papéis prefixados, mas como sujeitos criando a própria cena através da sua própria ação”, como afirmou Sader. A Educação Popular, à época, foi uma presença forte nessas organizações de grupos, expressa nas experiências de alfabetização de adultos, acompanhamento sistemático a grupos populares, formação política e sindical, entre outras. As idéias de Paulo Freire, que articulavam ação cultural e prática política, mesclaram-se a outros fundamentos destes novos movimentos sociais, para dar vigor ao debate sobre autonomia dos sujeitos, processos de transformação, democracia e organização de base, igualdade de direitos e construção de novos direitos. Muitos grupos feministas que surgiram neste período conseguiram, na prática, articular elementos EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 28 da pedagogia freireana com dinâmicas de potencialização grupal originárias da psicologia e desenvolveram técnicas e recursos próprios para fazer educação com grupos de mulheres. Esta perspectiva pedagógica se fundamenta nos princípios feministas voltados para autonomia das mulheres e para sua constituição enquanto sujeitos políticos, que falam por si mesmos no espaço público e que lutam por seus direitos. Desta confluência surgiram vários elementos pedagógicos próprios, que se baseiam na idéia da formação integral da pessoa, na dimensão da corporeidade, na construção de identidade coletiva e com a necessária atuação política dos grupos de mulheres. No processo de redemocratização, e identificadas com a defesa e construção de direitos, as organizações de movimentos sociais foram capazes de fomentar um amplo processo mobilizatório de participação popular na elaboração da Constituição Federal de 1988 – um marco à saída do regime autoritário. A partir da nova Carta e de suas leis complementares, ampliou-se a possibilidade de negociação de interesses entre os movimentos sociais e os governos, através dos conselhos de gestão de políticas públicas, com todas as conquistas e os problemas daí decorrentes. Articulações, formação política e intervenções sociais, vividas intensamente por esses movimentos, geraram um conjunto de organizações com incidência política, que se expressa na presença pública nacional, capacidade de formulação e atuação no espaço público, a partir de seus interesses específicos, mas em alguns momentos em causas comuns, capazes de mobilizar todo o campo político dos que lutam pela transformação da realidade. Esta nova teia organizativa colocou novos desafios à Educação Popular como referencial do trabalho social. Por um lado, porque as referências ao ‘popular' e à ‘base' não são mais suficientes como explicação do fenômeno em curso, exigindo, portanto, uma profunda reflexão teórica fincada na prática social destes novos movimentos. Por outro lado, frente a especificidades e diferenciações de intervenção, várias organizações desenvolveram metodologias próprias, adequadas ao seu público e às suas proposições teórico-práticas, a exemplo da pedagogia feminista, da educação social na rua, educação popular junto ao público rural ou à juventude, ainda que, em grande parte, alicerçadas no ideário da Educação Popular. Mas, afinal, o que é Educação Popular? Na historiografia da educação, pouco é dito sobre este tema. Ele está mais presente no universo da reflexão própria dos movimentos sociais, e para alguns estudiosos isto seria mais um assunto de Sociologia dos Movimentos Populares do que propriamente de Educação; para outros, seria fundamentalmente a produção de Paulo Freire e suas EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 29 derivações, que teriam demarcado uma curta experiência. Há quem a interprete como um fenômeno situado no início da década de 60, com os círculos de cultura e alfabetização de adultos, e ressurgido na década de 70, associado à ação comunitária e, ainda, estudiosos que, à luz da história da educação, consideram-na o objeto da luta pela disseminação massiva da Educação. Nesta última perspectiva, a Educação Popular teria sido forte com as escolas anarquistas, no início do século passado, seguida da luta pela escola pública mobilizada pelos “pioneiros”, e teria tido força associada à cultura popular na década de 60, expressando-se em seguida com a educação dos movimentos populares, e hoje estaria dando base às propostas de políticas educacionais de alguns governos democrático-populares, ou de iniciativas no interior de algumas escolas ou programas como MOVA – Movimento de Alfabetização de Adultos e EJA – Educação de Jovens e Adultos. No nosso entendimento, a Educação Popular pode ser tudo isso e um pouco mais. Muitas vezes, nos relatórios de Congressos e Seminários, que reúnem quem faz educação popular, ela aparece como um movimento de educadores/as, não como uma organização, mas como um pertencimento a uma comunidade de sentido que tenta manter vivos um ideário construído e um jeito de fazer educação. O fato é que nos processos de organização e luta dos movimentos sociais, assessorados ou não por agentes externos, as pessoas compartilham saberes, enfrentam novos desafios de aprendizagem, elaboram alternativas, isto é, se educam politicamente, o que expressa o caráter educativo dos movimentos. É um fato que a participação política, em si, é educativa, mas isso não nega os esforços de várias organizações em ações pedagógicas específicas para formação das pessoas que as integram, formuladas como “políticas de formação”, em cujo processo se estabelecem objetivos, linhas de trabalho, estrutura própria, metodologia e um entendimento comum dos princípios que devem nortear tais ações, programadas em cursos, seminários e/ou outros processos formativos no interior destes movimentos, a exemplo da política de formação da CUT – Central Única dos Trabalhadores, que possui um conjunto de escolas de formação sindical, e de outros movimentos nacionalmente organizadas como o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, e o MNMMR – Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Tais políticas, tomadas como objeto de pesquisa, ainda são pouco discutidas no campo teórico da Educação Popular, assim como as experiências “de segunda ordem”, aquelas que são desenvolvidas EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 30 por entidades do estilo escolas/centros de formação de educadores/as populares e/ou de militantes de movimentos sociais, para que estes trabalhem na organização e formação junto aos grupos populares, a exemplo da experiência das ONGs, como a Escola de Formação Quilombo dos Palmares. Há ainda aquelas experiências, das quais já falamos, que são desenvolvidas por organizações da sociedade civil que se vinculam a movimentos sociais, como as ONGs feministas. Estas organizações esboçaram uma metodologia própria, que articulou elementos da educação popular com as ênfases específicas deste movimento relativas à formação da pessoa, ao conhecimento do corpo, à fala pública, entre outras coisas, visando ao fortalecimento da mulher como sujeito político. Para algumas pessoas, a especificidade da Educação Popular se vincula apenas a interesses de classe – no caso, a classe trabalhadora, entendida como o sujeito da transformação social. Para outros, com os quais concordamos, a transformação social é toda uma construção de caráter multifacetado, que incorpora a atuação de diversos sujeitos políticos coletivos explorados economicamente e oprimidos política e culturalmente no atual estágio da sociedade. Portanto, Educação Popular objetiva contribuir com a transformação, tanto no âmbito do sistema políticoeconômico, como no âmbito da cultura e da política, no sentido da humanização e da construção de relações democráticas entre os seres humanos e no interior das organizações. Isso implica que a Educação Popular deveria constituir espaços de reflexão sobre as diversas faces da dominação, incluindo fortemente a dominação de gênero, já que, historicamente, às mulheres é conferido menor valor e menos poder que aos homens, no modo de organização social em que vivemos e que queremos transformar. A partir da matriz freireana, ramificaram-se diversos modos de fazer educação de movimentos sociais, fincados na realidade e nas realizações de diversos educadores e educadoras, participantes ativos dos movimentos sociais ou militantes de outros espaços educacionais, para quem a educação popular não estava dando respostas, práticas e teóricas, suficientes. Assim é que vemos a concepção metodológica dialética 2, metodologia feminista 3, a pedagogia social de rua 4, a formação em direitos humanos 5, propostas de formação rural 6, metodologia do trabalho popular 7, metodologia cutista 8, entre outras. Para algumas pessoas, todo este campo pedagógico poderia ser visto como o campo da educação popular; para nós a educação popular foi a fonte, mas estas vertentes todas tiveram desenvolvimento próprio, umas mais outras menos, a partir da perspectiva teórico-política do movimento social ao qual cada uma delas se vincula. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 31 Beber na fonte da Educação Popular significa colocar-se na perspectiva da transformação social, contribuir para a constituição de sujeitos políticos, posicionar-se na sociedade no pólo daqueles que lutam contra toda forma de opressão e exploração, o que pode ser feito em qualquer espaço educativo. Significa também reconhecer que esta transformação não será resultante apenas de um processo específico ou da ação de um sujeito social, e sim, necessariamente, da ação estratégica de uma multiplicidade de sujeitos políticos coletivos, que interagem uns com os outros a partir das suas próprias identidades, gerando novos direitos 9 , mas também a partir de sua unidade identitária construída, momentaneamente, com base no sentido de pertencimento ao campo político daqueles que lutam. Notas 1 Educadora do SOS – Corpo – Instituto Feminista pela Democracia (PE), e Mestre em Políticas Públicas. 2 Leis, Raul. O Arco e a Flecha. Anotações sobre a metodologia e prática da transformação . Trad.:Maria Viviana Resende. Recife, EQUIP, 1993. 3 Portella, Ana Paula e Gouveia, Taciana. Idéias e Dinâmicas para Trabalhar com Gênero . Metodologia SOS CORPO. Recife, 1995. 4 Graciani, Maria Stela Santos. Pedagogia Social de Rua . São Paulo, Editora Cortez e Instituto Paulo Freire, 1997. Ver também Paulo Freire e Educadores de Rua - uma abordagem crítica . Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua. UNICEF, SAS, FUNABEM, 1987. 5 Candau, Vera Maria et alli. Oficinas Pedagógicas de Direitos Humanos . Petrópolis, Vozes, 1995. 6 FUNDEP – Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa. Coragem de Educar – uma proposta para educação no meio rural . Petrópolis, Vozes, 1994. 7 Peloso, Ranulfo et alli. Saberes e Olhares. A formação e a educação popular na comissão Pastoral da Terra . São Paulo, Loyola, 2002. 8 Revista Forma e Conteúdo nº 1. São Paulo, Secretaria Nacional de Formação da CUT, 1990. 9 Dagnino, Evelina. Anos 90: Política e Sociedade no Brasil . São Paulo, Brasiliense, 1994. 10 Freire, Paulo. Pedagogia da Indignação – Cartas Pedagógicas e Outros Escritos. São Paulo, Edições UNESP, 2000. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 32 PROGRAMA 4 CULTURAS JUVENIS Movimentos juvenis: mudanças e esperanças Nerize Laurentino Ramos 1 Paulo Afonso Barbosa de Brito 2 1. Apresentação Na última década, as juventudes reconquistaram espetacular posição na agenda social e política do Brasil. Entidades juvenis locais e nacionais, organizações não-governamentais, Governos Municipais, Estaduais e Federal, parlamentares e igrejas, voltaram a pautar atenção e a estimular iniciativas destinadas às juventudes. Cotidianamente, jovens aparecem nas manchetes de quase todos os grandes jornais impressos do país, nos noticiários radiofônicos e televisivos, normalmente vinculando-se a ações de rebeldia e violência, à relação com galeras e com o narcotráfico, quase sempre como vítimas de tais ações e, muitas vezes, como promotores. Mas as juventudes voltaram para a agenda nacional também pela sua fantástica capacidade de provocar mobilizações, de tomar iniciativas criativas e inovadoras, desde as tradicionais movimentações estudantis, às novas formas de expressões culturais das juventudes das periferias urbanas, das pastorais juvenis, das iniciativas no meio rural, tecendo uma articulação de ações, que tem, na expressão do protagonismo juvenil, uma síntese tradutora e articuladora. 2. De quais juventudes estamos falando? Desde o princípio, estamos falando de juventudes no plural, para deixar claro que existe uma a diversidade em torno destes sujeitos sociais. Muitas vezes, as diferenças são grandes, entre as quais podemos destacar: EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 33 • as idades, que vão de 14 ou 15 anos, até 25 ou 26 anos; embora não consideremos a faixa etária como único critério definidor das juventudes, este é um importante elemento a ser considerado; • as classes sociais de onde se originam e convivem, incluindo aí também os lugares onde moram, trabalham, se divertem, estudam, como as periferias urbanas, o meio rural, as pequenas cidades do interior, os bairros centrais das grandes cidades; • as relações de gênero e de orientação sexual, bem como de raça ou etnia, que trazem cargas culturais, marcas de preconceitos, discriminações, mas também de afirmações de identidades importantíssimas. Quando destacamos estas diferenças, não negamos que possam existir também semelhanças, como as transformações experimentadas no próprio corpo, as novas sensações e emoções, os desejos vivenciados, o crescimento dos seios e a menstruação, nas meninas, as carícias diversas, a masturbação, os impulsos e desejos que afloram e que os jovens e as jovens sentem sem perceber exatamente de onde vêm. Claro que tudo isso deve ser percebido dentro do contexto social e cultural em que estão inseridos(as), pois, embora a sexualidade faça parte do desenvolvimento individual da pessoa humana, quem dita a forma da sexualidade e dos comportamentos, em grande medida, são os valores morais e culturais da sociedade. Nesse sentido, as juventudes também têm dado grande contribuição para mudanças de tais valores e comportamentos. Destacamos também, como elementos caracterizadores das juventudes, as diversas opções e estilos de vida. Neste sentido, devem ser consideradas as multidões de jovens que, em nosso tempo, lotam os estádios de futebol, se empolgam nos shows de rock, de hip-hop, de forró. Mas também devem ser considerados os grupos, muitas vezes minoritários, que se entusiasmam pela participação em entidades juvenis e/ou estudantis, os diversos grupos culturais, de dança, de capoeira, de teatro, de música, de expressões religiosas, de projetos desenvolvidos por ONGs. E as juventudes que fazem parte de diversos movimentos sociais populares, como a luta pela moradia, o Movimento dos Sem Terra, de Meninos e Meninas de Rua, de Associações Comunitárias, de negros(as), de homossexuais, de mulheres. E, ainda, as juventudes militantes dos partidos políticos. Diversas juventudes que, a partir de sua participação social, religiosa, política, alimentam sonhos de mudar o mundo, as relações, os valores. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 34 3. Uma herança histórica espetacular A história brasileira e, especialmente, os movimentos sociais, são profundamente marcados pela presença das juventudes. Durante todo o período colonial (Zumbi dos Palmares e Acotierene, líderes do Quilombo dos Palmares, iniciaram sua atuação ainda na juventude), no Império e na República, a presença de jovens nos grandes acontecimentos sociais e políticos se destaca como uma marca significativa. Com isto, não estamos querendo afirmar que as juventudes são, pela natureza de sua condição, contestatórias e mobilizadoras. Temos consciência de que todos os valores, comportamentos e posições políticas e ideológicas, presentes no conjunto da sociedade, se difundem também entre os jovens, mas a análise da realidade demonstra maior abertura, neste período da vida, para o novo, para novas descobertas e experiências. Podemos, assim, recuperar momentos significativos da história do país e das organizações juvenis. A partir da segunda metade do século passado, setores das juventudes passam a intervir como sujeitos sociais coletivos, com maior visibilidade na cena política e social nacional. No primeiro período, entre os anos 50 e 70, a expressão mais forte desta intervenção foi o Movimento Estudantil, sobretudo o Universitário. Na década de 50, tal movimento experimentava o embate político entre grupos que controlavam a UNE (União Nacional dos Estudantes), os udenistas/liberais e os grupos de esquerda, reunidos em torno do Partido Comunista. Este foi um período de grandes campanhas nacionalistas, como “O Petróleo é Nosso”. Em seguida (anos 60), a força maior da UNE passa para novos agrupamentos, reunidos em torno de lideranças vindas da Juventude Universidade Católica (JUC), e sua expressão especificamente política, a Ação Popular (AP). Neste período, houve um maior estreitamento da relação do Movimento Estudantil com os setores, organizações e lutas populares. Com menor visibilidade expandiram-se, também neste período, os Grêmios Estudantis e os Centros Estudantis dos Secundaristas. Nesta mesma época, desenvolvem-se as Juventudes Católicas, nas suas muitas ramificações: JAC (Juventude Agrária Católica), JEC (Juventude Estudantil Católica), JIC (Juventude Independente Católica), JOC (Juventude Operária Católica), JUC (Juventude Universitária Católica). No ambiente universitário, a militância Jucista caminharia em direção à radicalização da sua participação, desembocando na Ação Popular. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 35 Animados pelo método Ver-Julgar-Agir, estas organizações eram reconhecidas pela leitura qualificada da realidade sócio-política-econômica, pela capacidade de analisá-la e de realizar ações concretas para transformá-la. Tal método valorizou a organicidade dos movimentos e as mobilizações para mudar o meio. Os grupos que foram radicalizando tal opção passaram a diminuir seu interesse pelas discussões recreativas e eclesiais e dedicaram-se mais às grandes temáticas sociais. A forte presença da hierarquia da Igreja Católica sobre estes movimentos impôs vários mecanismos disciplinares, reduzindo sua capacidade de intervenção e dissolvendo algumas de suas organizações. Os movimentos evangélicos e ecumênicos de juventude ganharam força e expressão também nos anos 60. A partir de uma experiência de articulação e reflexão sócio-política, jovens evangélicos enfrentaram com vigor o debate por uma América Latina livre, contribuição fundamental à formulação de um pensamento teológico brasileiro e latino-americano. O Movimento Estudantil (ME) assiste, a partir de 1964, suas organizações sendo perseguidas, enfrenta a repressão e forçosamente envia muitos dos seus líderes para a clandestinidade. Em março de 1968, os estudantes preparavam uma grande manifestação: armavam faixas e bandeiras. A polícia chegou, invadiu o recinto atirando. O estudante Edson Luís de Lima e Souto foi atingido e morreu. Sua morte marcou o reinício das manifestações estudantis, com ampla participação popular, até o endurecimento maior da ditadura. O destaque deste período foi a realização da passeata dos cem mil no Rio de Janeiro, e atividades semelhantes realizadas em várias cidades, como Natal, Recife, Goiânia. O Ato Institucional n.º 5, de 13 de dezembro de 1968, retirou completamente dos brasileiros todas as garantias individuais, públicas e privadas, o que representou um maior nível de repressão do regime militar, empurrando muitos jovens para grupos guerrilheiros urbanos e rurais. Mas muitos outros buscaram novas formas de ação política e social. Na década de 70, multiplica-se a criação de grupos de jovens, em geral vinculados a comunidades e paróquias. Fala-se que entre 10 e 30% de jovens de algumas cidades brasileiras foram alcançados por estes grupos, seja participando diretamente de sua vida interna, seja freqüentando algumas de suas atividades. São grupos com forte apelo emocional, intimista, e orientação voltada ao tratamento de dimensões individuais: o egoísmo, as amizades, a conversão, a renúncia. As ações estavam ligadas ora à vida eclesial, ora à ajuda mútua e à assistência aos mais pobres. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 36 É somente a partir de meados dos anos 70 que ressurgem, ainda discretamente, as primeiras manifestações estudantis/juvenis e cidadãs. Mobilizações que vão ganhando vulto e tomando conta do país – luta pela anistia e pela reconstrução da União Nacional dos Estudantes – UNE (1978-79), campanha pelas Diretas (1984-85), processo de formação da Constituinte, que culminou com a elaboração da nova Constituição (1988) e o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo. 4. Movimentos e expressões juvenis da atualidade De maneira diferente das iniciativas que mobilizaram os jovens militantes da década de 60, os jovens atuais buscam novas formas de aglutinação, participação e expressão. A nova geração não parece concentrar suas preocupações em mudar o mundo, pelo menos nos moldes da geração anterior; suas preocupações se dirigem para lutas imediatas, buscando sentir o prazer de cada conquista. É a geração que alimenta suas expectativas no meio de sucessivas desilusões da apregoada transição democrática, geração que desconhece o exílio, a perseguição, a participação clandestina, a morte por motivos políticos. Mesmo assim, neste período, percebe-se que, pelo menos em momentos, a rebeldia, a criatividade, a espontaneidade voltam às ruas e expressam sua irreverência e combatividade. Foi assim em 1992, com a experiência dos “Caras Pintadas”, atores centrais na campanha realizada contra o Governo de Fernando Collor, que resultou no impeachment do presidente corrupto. Essa campanha levou para as ruas das principais cidades brasileiras milhares de jovens esbanjando energias, alegres, eufóricos, cheios de esperanças na força da sua geração. Iniciaram suas manifestações com cerca de 300 a 400 estudantes, foram crescendo, ganhando a adesão de outros segmentos sociais e políticos, até chegar a mobilizações de dois milhões de pessoas em São Paulo, em agosto de 1992. Depois disto, as principais expressões juvenis se deslocam para fora das universidades e o Movimento Estudantil perde a centralidade das mobilizações juvenis. Hoje, são redes de diferentes grupos, dispersos, esporádicos, permanentes ou transitórios que se encontram em vários ambientes para resolver problemas específicos, que herdam o sentimento de justiça das gerações anteriores: duvidam, buscam, questionam, afirmam, contestam. Muitos grupos e/ou organizações se reúnem em torno das manifestações culturais: da música EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 37 popular, hip-hop, rock, reggae, folclore; das pastorais ou movimentos juvenis eclesiais; das juventudes partidárias, das organizações de bairros e sindicais. Sentem-se convocados também pelos temas: meio ambiente, ecologia, sexualidade, entre outros. É também freqüente a valorização do lado gratuito das relações, das emoções, dos afetos. O estilo hip-hop tem se revelado como uma das principais expressões organizativas, articuladoras e mobilizadoras das juventudes da atualidade, através do encontro do break, rap, grafite, combinando a dança de movimentos complicados, que exige muito treinamento e vitalidade (break), a dimensão musical do rap, caracterizada pelo jeito falado de cantar, cujas letras são sempre carregadas de denúncias das injustiças sociais, e o grafite, como um estilo de pinturas e desenhos em muros e grandes paredes, utilizando latas de spray de tinta, resultando em belas obras artísticas. Os grupos de teatro popular, de danças, de capoeira, os diversos projetos que agrupam jovens a partir de iniciativas de ONGs, a diversidade de agrupamentos de jovens em torno da vivência espiritual e religiosa, as várias iniciativas de ação coletiva de estudantes em escolas públicas e privadas, as expressões específicas de jovens no interior das organizações e movimentos sociais, como do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e de outras entidades de camponeses, das mulheres, da moradia popular, dos negros, dos homossexuais, das organizações de bairros, das entidades estudantis, dos Partidos Políticos, todos esses projetos, movimentos e ações demonstram que uma nova esperança está se realizando. Não se pode afirmar que as atuais formas de organização e mobilização são menos politizadas do que as do passado, mas que a forma de fazer política atualmente, bem como o contexto sóciopolítico, são bastante distintos. Neste sentido, as recentes articulações em torno da participação juvenil nas políticas públicas, transformando situações de necessidades, iniciativas particulares e localizadas, em políticas universais – inclusive criando instrumentos de ação política, para a realização de tais ações, como as Conferências de políticas para as juventudes, e os Conselhos Municipais e Estaduais com representação dos governos e dos vários segmentos sociais que representam e/ou trabalham com jovens – são exemplos claros desta afirmação. 5. Novos desafios e esperanças Sem uma pretensão conclusiva, destacamos como os batuques, sons, imagens, movimentos, EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 38 atitudes, mobilizações várias, que descem e sobem ladeiras de altos e morros de nossas cidades, percorrem córregos e alagados, apertam-se nos ônibus suburbanos, acotovelam-se nas festas populares, apresentam-se em praças públicas, são sinalizadores das novas formas de expressão das juventudes. Mas também o silêncio, a reflexão tranqüila, ou mesmo os debates acalorados nos congressos estudantis, ou nos Festivais de Juventudes, tornam-se expressões das atuais formas de ação dos movimentos juvenis, as disputas pela condução política das lutas, ou o empenho pela afirmação de novos valores humanos, fraternos, solidários, são sinais de mudanças, mas também de esperanças, para a continuidade e o avanço dos mais sinceros e comprometidos sonhos de justiça e liberdade de nossas juventudes. Bibliografia ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis – Punks e Darks no espetáculo urbano. Editora Página Aberta Ltda. ARQUIVO ECLESIÁSTICO DA PARAÍBA – Atas e Relatórios. BORAN, Jorge. O futuro tem nome: Juventude. São Paulo, editora Paulinas. NOVAES, Regina Célia Reis. Juventudes Cariocas: mediação, conflitos e encontros culturais. Texto mimeografado. REVISTA TEMPO E PRESENÇA, nº 262. Publicação do Centro Ecumênico de Documentação e Informação. SIRKIS, Alfredo. Os Carbonários. São Paulo, Global Editora. SPOSITO, Marília. A sociabilidade juvenil e a rua: novos conflitos e ação coletiva juvenil na cidade. Revista Tempo Social nº 5 – Revista de Sociologia da USP. Notas 1 Socióloga e professora da Universidade Estadual da Paraíba. 2 Sociólogo e educador da Escola de Formação Quilombo dos Palmares. Consultor dessa série. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 39 PROGRAMA 5 REDES E FÓRUNS SOCIAIS O Movimento das Redes e as Redes de Movimentos Carmen Silvia Maria da Silva 1 Luciene Mesquita (Mana) 2 Quem assistiu ao filme “A Rede”, com certeza, sofreu um impacto com aquela visão de futuro tão tenebrosa. Uma pessoa tem toda a sua vida completamente atrapalhada porque, legalmente, ela deixa de existir. Todas as informações sobre sua vida cidadã, que foram absorvidas pelos mais diversos computadores, podem ser deletadas ou re-adicionadas com alguns poucos comandos. Tudo está interligado na rede. Em conseqüência, tudo é muito frágil. Esta imagem é bastante catastrófica sobre o que pode vir a ser o mundo do futuro, interconectado em rede eletrônica, embora já tenhamos tido indícios de coisas semelhantes acontecendo no sistema bancário. Ao contrário disso, durante a recente campanha eleitoral para a Presidência da República, quem apoiava a candidatura do nosso atual presidente viveu uma situação bem prazerosa: a sensação de pertencimento a um grande grupo, formado por pessoas conhecidas e desconhecidas, que tinham um mesmo objetivo. Entrar no supermercado e cruzar com alguém que sorri para você com uma estrela no peito, encostar-se ao balcão da padaria e ser cumprimentado(a) porque tem o adesivo colado na roupa, participar de uma caminhada de 200 mil, como a que aconteceu em Recife, e sentir toda a vibração de milhares de pessoas com as quais você se liga a partir da vontade de mudar o Brasil. Esta é outra forma de entender Redes, como vínculos que se criam entre as pessoas a partir de símbolos de identificação e de relações de sociabilidade bastante leves, sem estabilidade, mas nas quais não se percebe uma hierarquia, e sim uma identidade predominante entre os membros. A mídia nos traz, constantemente, informações acerca de outras formas de organização em rede no mundo da violência, do crime organizado, do narcotráfico, do terrorismo, que invadem a nossa casa todos os dias, nos afrontam, violam os nossos direitos de cidadania. Fontes diz que “podemos pensar em redes a partir de indivíduos, as chamadas redes egocentradas; também podemos pensar em redes a partir das instituições, as chamadas redes organizacionais, as redes dos movimentos, as EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 40 redes de ONGs, as redes do narcotráfico, as redes de terrorismos e assim por diante” 3 . Ao falar em rede no Nordeste, outras imagens nos chegam, de imediato. A rede de pesca, um dos símbolos da luta pela sobrevivência do povo nordestino na busca de garantir a alimentação que vem de seu litoral, enaltecido por muitos e fonte de renda com o turismo, no atual modelo de desenvolvimento regional. A rede de dormir, onde o povo descansa o corpo cansado do trabalho diário. Essas redes são teias de fios, laços e nós: uma que agarra os peixes, a outra que balança, que move as pessoas, que acalenta. Mas essas redes também se desgastam e precisam ser reforçadas, renovadas, enfim, precisam ser “cultivadas”, como a própria idéia de rede. A rede de vizinhança, a rede de fofoca, a rede de intrigas, a rede de solidariedade, a rede da esperança. Estas várias imagens, formas de redes, nos falam de como a idéia de rede tem sido utilizada para falar de diferentes coisas e de como ela serve para tentar entender vários processos sociais. No Seminário “Atuação em Redes: Impactos na Realidade”, realizado pela EQUIP, Cáritas e RIPP, em 2002, foi possível conhecer parte da diversidade de experiências de movimentos sociais que estão utilizando a idéia de rede como elemento central nos seus processos organizativos. As Redes de Movimentos Sociais, isto é, as redes que articulam diversas entidades identificadas com uma certa causa, em geral em torno da luta por direitos, se expressam no espaço público como articulações em torno de um tema ou de um tipo de ação coletiva, com momentos de maior aparição e momentos de imersão, dependendo da conjuntura específica. Elas congregam pessoas ou entidades, em maior ou menor número, que possuem em comum, um certo sentido de pertencimento ao campo político dos Movimentos Sociais 4 e àquela causa específica, a exemplo de proteção à criança e ao adolescente, saúde, direitos reprodutivos, fiscalização do orçamento público, etc. No Seminário, estiveram presentes 14 experiências que se identificaram como redes, mesmo que tendo como nome oficial fórum ou articulação. Isto quer dizer que estas experiências se identificam com o que vem sendo discutido como sendo rede, ou seja, articulação entre diferentes sujeitos, baseada em relações horizontais, em que estes sujeitos não se subordinam, mas somam esforços para potencializar objetivos comuns, que não negam seus objetivos específicos. No Nordeste, temos visto experiências bem diversificadas, algumas que se articulam em âmbito EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 41 nacional como a ASA – Articulação do Semi-Árido, que ficou mais conhecida em função do projeto de 1 milhão de cisternas, mas que é bem mais que isso, uma vez que realiza outras iniciativas voltadas para a convivência com o semi-árido. Outras experiências se voltam para articulação de projetos produtivos e comercialização, como a Rede Abelha da Paraíba, que congrega Apicultores, e a Rede de Sócio-economia Solidária do Ceará, ambas fomentadas pela Cáritas. Algumas experiências de rede se sobressaem por agregar entidades que lutam pela implementação e fiscalização de políticas públicas, como é o caso da Rede de Conselheiros do Piauí, apoiada pelo CEPAC, e da Rede de Intervenção em Políticas Públicas do Maranhão, que reúne diversas entidades entre ONGs, movimentos, serviços eclesiais, gabinetes parlamentares, entre outras representações sociais. Há também aquelas que agregam segmentos sociais como a Rede de Jovens ou a Rede de Educadores Populares, estimuladas pela EQUIP. Há redes que reúnem grupos populares vinculados ao trabalho de uma certa entidade, outras reúnem diversas entidades de movimentos sociais e organizações não-governamentais, e existem ainda aquelas que reúnem movimentos sociais, ONGs e órgãos governamentais vinculados ao enfrentamento do mesmo problema, como é o caso da Rede Amiga da Criança do Maranhão, voltada para o atendimento de meninos e meninas de rua. No citado Seminário, ficou claro que a organização em rede não é, em si, uma novidade, entretanto, é nova a ênfase que está sendo dada a este debate. Vários estudiosos dos movimentos sociais têm tentado interpretar este fenômeno e esta forma de organização está impondo uma reflexão também entre os participantes de movimentos sociais, não para construir modelos, mas para aprofundar o debate sobre seus elementos constitutivos e os efeitos deste trabalho na realidade dos setores populares. Alguns aspectos chamam a atenção nestas experiências que estiveram representadas no Seminário. Todas se voltam para objetivos definidos e afirmam que estão potencializando seus resultados, ainda que com algumas dificuldades. Todas se pretendem com um formato organizacional efetivamente de rede, onde flui a comunicação, onde há objetivos consensuais, onde se aglutinam forças sociais, onde se combate o velho "corporativismo" das práticas, onde se assume coletivamente as responsabilidades, embora sejam reconhecidas as limitações no processo organizativo real. Scherer-Warren 5 concebe redes como "formas mais horizontalizadas de relacionamento, mais EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 42 abertas ao pluralismo, à diversidade e à complementaridade, portanto, correspondendo, como formato organizacional e interativo, a uma nova utopia de democracia". Características semelhantes a estas sempre estiveram presentes no debate sobre Movimentos Sociais, mesmo quando ainda não se usava a noção de rede para estudá-los. No Seminário, a organização em rede foi vista como uma das formas de potencializar o ser e o fazer dos movimentos sociais. Há Movimentos Sociais que se organizam em forma de rede e há redes que promovem movimentação social através da articulação de organizações diversificadas, que não se declaram como Movimentos Sociais, a exemplo de pastorais populares, ONGs, entidades populares, sindicatos, núcleos de estudos acadêmicos, etc. Entendemos que estas redes que articulam diversos tipos de organizações e que se posicionam no espaço público garantindo direitos aos setores explorados e oprimidos da população também são Redes de Movimentos Sociais. As identidades são a mola propulsora que faz com que as pessoas se vinculem a um movimento social. Mas elas parecem ter, na vida da maioria dos participantes, uma temporalidade curta, que os mobiliza para grandes eventos, mas não para o cotidiano das entidades. Para outros, em número menor, todavia, a participação é algo contínuo, em torno da qual eles organizam suas vidas. Em geral, a força desta dedicação tem a ver menos com a capacidade organizativa da rede ou da entidade de que a pessoa participa e mais com elementos de identificação que são predominantes para cada uma, em um dado período, como ser mulher, a questão da negritude, a sensibilização com a ausência de direitos de crianças e adolescentes, por exemplo. Estas pessoas constroem e mantêm a vida interna das entidades de Movimentos Sociais , na maioria com trabalho voluntário e militante, e também dão sustentação às redes que estas entidades criam. O que as mantém com permanência pode ser a adesão à causa específica ou, o que é mais complexo, o sentido de ser militante, de atuar intensamente em processos de mudança, o sentimento de fazer parte do Movimento. No Seminário “Atuação em Redes” foi colocada em questão a situação organizativa das redes ali representadas, discutindo as motivações, os sujeitos que agregam e a comunicação que estabelecem. Sobre a organização, os participantes falaram que a maioria das redes agrega entidades ou grupos que se reúnem em torno de potencializar seus objetivos; apenas uma das redes presentes congregava indivíduos. Elas, em geral são sustentadas por projetos financeiros enviados para agências internacionais, e a maioria conta com uma espécie de entidade-mãe, que funciona como impulsionadora da articulação da rede. Apenas algumas redes são formadas por entidades do mesmo EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 43 porte, como é o caso das diversas experiências estaduais que se congregam na Articulação Regional de Políticas Públicas. Um dos problemas internos mais sentidos nas redes é exatamente a co-responsabilidade. Apesar de intencionalmente desejarem relações horizontais, a dificuldade de compartilhar tarefas e recursos igualitariamente acaba por colocar as redes, muitas vezes, dependendo de uma ou duas entidades. Esta situação dificulta o dinamismo, a multiplicidade de lideranças e a comunicação multidirecional, que são apresentados como elementos que caracterizam as redes. Outro elemento chave neste debate é o papel que cumprem as entidades fomentadoras das redes. Há duas situações relevantes para serem analisadas. A primeira é quando a rede é formada entre entidades semelhantes em termos de recursos financeiros, técnicos, etc. como é o caso do Coletivo de Políticas Públicas do Piauí, da RIPP-MA, da ASA, ou da Rede Amiga da Criança. Neste caso, pode haver concentração em poucas entidades, mas é mais fácil pensar mecanismos de superação disso, a exemplo do que vem sendo feito: rodízio de secretarias, coordenações colegiadas, rateio de recursos para atividades, comunicação permanente entre os membros, planejamento com divisão equilibrada de tarefas, reflexão sobre a importância, para o funcionamento em rede, da coresponsabilidade, da solidariedade e do consenso. A segunda situação é quando há, nas redes, uma entidade fomentadora, isto é, uma entidade que detém maiores recursos financeiros e capacidade mobilizadora. Poderíamos citar como exemplos as redes de grupos populares ligadas a projetos produtivos, que se articulam para ampliar as condições de produção, comercialização e capacitação, como rede de Sócio-economia Solidária do Ceará, estimulada pela Cáritas; ou a rede de conselheiros tutelares do Maranhão, fomentada pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente, ou a rede de conselheiros do Piauí, articulada pelo CEPAC. Este caso exige uma reflexão que remonta aos princípios da metodologia de trabalho de base na educação popular, ou seja, estas entidades, impulsionadoras da rede, procuram desenvolver um jeito de trabalhar que impulsione a autonomia dos sujeitos envolvidos. A autonomia passa a ser uma meta, incessantemente, buscada, e não se resume à autonomia financeira, mas também à política e à metodológica. A comunicação em rede, embora seja apontada como importante e necessária por todos os participantes do Seminário, parece ser a maior dificuldade. Ainda não são suficientemente utilizados EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 44 os recursos da rede eletrônica. No caso das redes que reúnem grupos populares com condições socioeconômicas precárias, o próprio acesso a computadores ainda não é possível. Naquelas das quais participam entidades mais estruturadas, o problema identificado é mais de hábito cultural e de priorização política estratégica. Outro aspecto fundamental na comunicação é como as redes se organizam internamente, da forma menos piramidal e mais dinâmica possível, de modo a facilitar as relações entre os seus membros, a descentralização das decisões, a partilha do poder. Dessa forma, utilizam diferentes instrumentos comunicativos para sensibilizar e dar visibilidade à sua ação na sociedade como um todo, a fim de garantir a adesão necessária da população e reforçar a sua intervenção na realidade. Todos os representantes de rede apontaram como maior problema organizativo algo que é comum também no interior das entidades de movimentos populares: o fato de que algumas pessoas assumem as responsabilidades cotidianas com mais afinco e outras só se fazem presentes nos momentos decisivos. Apesar disso, elas reconhecem que nas redes que reúnem entidades do mesmo porte, que possuem igualdade de condições, este problema é bem menor. Algumas redes adotaram uma forma mais estruturada de organização, outras preferem a informalidade. Algumas possuem mecanismos de entrada definidos, como é o caso da ‘carta de princípios' e ‘carta de adesão' na RIPP, em outras a adesão é menos formalizada. Algumas têm documentos que explicam o seu funcionamento interno, outras vão fazendo coisas em conjunto sem definir, precisamente, como deve ser a sua forma de organização. Sem querer estabelecer regras para o que poderiam ser as redes, a reflexão que se colocou no Seminário foi sobre os problemas que a grande informalidade gera para a adesão de membros e o funcionamento interno democrático, em especial naquelas redes que contam com ‘entidades-mãe'. O tom da maior ou menor formalidade vai variar a depender de seus objetivos, interesses, da relação de forças existentes e/ou do desejo das pessoas. Mas, para entender a noção de rede e o uso que dela está sendo feito nos Movimentos Sociais é preciso perceber a amplitude desta idéia. Rede é um termo utilizado em diversas ciências, como sintetizou Tomasin, em uma Gaveta Aberta de 1994: na telemática, as redes de telefones e computadores; na biologia, a rede neuronal; na matemática, o chamado network analysis , que nasceu a partir da teoria dos grafos ; na economia e na administração, as empresas que assumem EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 45 formas de redes e/ou que se organizam com outras em redes de produção e distribuição de bens e serviços, a partir das novas formas de organização do trabalho pós-fordista, etc. Nas ciências sociais, destaca-se a antropologia, com o estudo das redes de sociabilidade, e com a idéia de comunitas ; a psicologia, com as redes de interação; e a sociologia, com as redes de organizações, e mais recentemente acoplando este conceito ao estudo dos Movimentos Sociais e/ou da mobilização de recursos de poder para ação direta. Segundo Tomasin, quando se fala em rede de Movimentos Sociais , estão implícitas as idéias que a metáfora suscita, como horizontalidade, descentralização, desconcentração de poder, diversidade interna de organizações, flexibilidade e agilidade para se moldar às novas situações, interdependência e articulações, complexidade e abertura ao externo. Todos estes elementos, sem dúvida, vêm à tona no debate sobre redes. Merece destaque para reflexão o problema da interdependência. Acreditamos que esta característica está mais presente na idéia de sistema, onde as partes constitutivas precisam (dependem) umas das outras para seu desenvolvimento. A noção de rede, por sua vez, diz respeito muito mais à possibilidade de autonomia, de complementaridade para potencializar objetivos específicos, a partir dos quais se dão as articulações, que não se sobrepõem ao fazer parte individual de cada entidade, e sim os reforçam. A questão ecológica e a questão econômica-produtiva têm sido duas importantes áreas de articulação de redes de grupos populares. Mas elas também se verificam no esforço que as entidades vêm fazendo para propor, negociar e fiscalizar as políticas públicas, em especial os programas sociais e o orçamento público. No Seminário “Atuação em Redes” os participantes ressaltaram que o fato de suas entidades trabalharem em conjunto tem facilitado muitas coisas na sua intervenção social, possibilitando o uso de recursos comuns, a ampliação da capacidade mobilizadora, a concentração de esforços, a possibilidade de construir agenda pública para seus temas prioritários, o efeito multiplicador de suas ações formativas e a maior visibilidade social dos seus trabalhos. Ana Maria Doimo 6 usou a noção de redes para estudar os Movimentos Populares na década de 70. Ela considera possível estabelecer alguns cortes analíticos para tipificar as redes e estabelece dois tipos: as redes territorializadas , nas quais se incluem desde as redes de organizações populares locais até as de alcance nacional; as redes temáticas , que indica certa especialização de funções. Cruzando estes dois tipos, encontram-se as redes de influência que, imprimem uma certa direção ao movimento popular. As redes de influência conseguiriam, pela sua atuação, orientar práticas, através EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 46 dos cursos de formação, e canalizar politicamente recursos de poder no interior de tais práticas. Um exemplo da mobilização de recursos de poder seria o que gerou o processo de participação popular na Constituinte, que só foi possível através de uma rede de influência nacional, entrecruzando-se com as redes locais e temáticas, para elaboração de emendas populares e coletas de assinaturas, que propiciou a elaboração da Constituição de 1988, correspondendo às várias proposições dos Movimentos Populares . Outro elemento fundamental é a relação inter-redes que se desenha como uma perspectiva de congregar esforços e potencializar os impactos na realidade local, as mobilizações gerais da sociedade, em campos específicos de intervenção. Hoje, o estudo, a partir da noção de redes, pode nos ajudar a compreender melhor o fenômeno dos novos movimentos sociais, em especial seus diversos tipos de entidades e sua capacidade de obter resultados, a partir da intervenção coletiva na realidade, alterando a situação de vida do povo. No campo das práticas dos participantes de Movimentos Sociais, a intervenção em rede vem se afirmando como mecanismo de exercício de democracia, da construção de relações de parceria e co-responsabilidade, da arte de negociação, da partilha do poder, da cooperação mútua, da solidariedade entre os seus membros. A ação em rede é, assim, um campo de aprendizagem coletiva, onde se desconstroem e constroem novas mentalidades, novos valores e modos de convivência e onde se busca contribuir na consolidação da prática democrática no Nordeste e no Brasil. São grandes os desafios financeiros, de autonomia, de visibilidade, de comunicação, mas sobrepõem-se a esses desafios a própria idéia de trabalhar em rede, a superação do isolamento, a construção destas novas relações, o reconhecimento do outro como sujeito legítimo, a efetivação de novas identidades, a congregação de interesses diferentes, em um mesmo espaço e tempo. A rede é, também, um grande campo de possibilidades, onde se destaca a importância do processo de sistematização das experiências – identificado neste Seminário como um dos grandes limites – o que possibilita que as experiências inovadoras sejam socializadas na sociedade como um todo. Na perspectiva da reorientação dos recursos de investimento social advindo do mundo da cooperação internacional para o Brasil, a ação em rede se coloca como uma possibilidade real, não EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 47 só de otimizar os recursos e potencializar os resultados, mas também de descobrir novas estratégias de sustentabilidade que extrapolem a busca de recursos externos, em especial nesta nova conjuntura que se abriu no Brasil, no atual cenário político. A história está nos mostrando que o movimento das redes e as redes de movimentos contribuem na construção do presente e investem na consolidação das práticas democráticas e solidárias do futuro. Notas: 1 Mestre em História e Filosofia da Educação, pela PUC-SP, e mestre em Políticas Públicas, pela UFMA. 2 Mestre em Ciência Política, pela UFPE, membro da Rede de Educadores Populares do Nordeste e também educadora da EQUIP. 3 Fontes, 2002, p. 22. 4 Sobre a noção de campo político dos Movimentos Sociais ver Silva, 2001 e Doimo, 1995. 5 Scherer-Warren, 1999. 6 Doimo, 1995. EDUCAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS. 48