4487 AS LINGUAGENS QUE CIRCULAM SOBRE O OUTRO OU COMO OS ÍNDIOS E NEGROS SÃO REPRESENTADOS NOS LIVROS DIDÁTICOS Verônica Maria dos Santos Universidade Federal de Campina Grande RESUMO O presente resumo trata de uma explicação de como são formuladas as imagens e os estereótipos sobre os índios e os negros nos livros didáticos de História. O mesmo faz parte do projeto de pesquisa: “Identidade e Alteridade: como índios e negros chegaram ser o que dizem que são nas narrativas da História ” Este resumo tem, portanto o objetivo de apresentar o poder identitário imbuído nos discursos presentes nos livros didáticos, partindo do pressuposto que os índios e os negros aparecem sempre em lugares de inferioridade. Dessa forma, vamos analisar as falas dos autores dos livros didáticos pesquisados, para assim podermos discutir o poder incluso nessas falas, vendo que as imagens, identidades e/ou estereótipos são construídos sobre estes dois grupos étnicos. Partimos, então, da idéia de que os sujeitos e suas subjetividades são formados de acordo com os discursos (tanto falados como escritos) sobres os mesmos. Esses discursos sao “autorizados” e instituídos como “verdadeiros” e diretamente relacionados com os saberes e poderes disseminados por toda sociedade. Pesquisamos alguns livros didáticos da década de 70. Como técnica de pesquisa trabalhamos com citações dos livros – de História do 1º grau, dos quais retiramos e registramos as falas dos seus autores acerca de índios e negros. Para logo depois analisamos estas falas segundo o aporte teórico - metodológico utilizado na pesquisa. A metodologia utilizada foi nesse sentido, fichar e registrar as citações retiradas dos livros didáticos em relação a esses grupos étnicos, para dessa forma mostrar qual lugar foi instituído para estes na sociedade. Isto, feito em paralelo com a realização de leituras teóricas que dão embasamento para a análise em questão. Diante do exposto, os resultados conquistados na pesquisa foram de que os índios e negros mal aparecem nos livros didáticos pesquisados, e quando aparecem são colocados no lugar dos dominados, de inferiores, que nasceram para ser mandados, como primitivos, entre outras atribuições. Sendo que, mesmo quando estas designações não aparecem de forma direta, intrinsecamente percebe-se nessas falas como é natural e espontânea a colocação. No caso do negro este é considerado objeto de trabalho, como seres dominados, de cultura inferior, sem atitudes, verdadeiros bestializados que não tinham outra saída senão a de aceitar viver com maus tratos, pelo fato de que os brancos eram mais fortes, mais desenvolvidos e, por isso mesmo, os que trouxeram para o território brasileiro a civilização e o desenvolvimento. E, no caso do índio estes são considerados como bárbaros, animais selvagens que viviam em plena pré- história além de serem considerados “gentios”, preguiçosos que precisavam ser “domesticados” e transformados em seres humanos, para assim poderem sair desse estágio de atraso em que viviam e passarem a fazer parte do mundo “civilizado ”. E ainda atribuí á miscigenação a não formulacáo de um pré-conceito muito forte entre as pessoas aqui residentes. Fato improvável, pois há sempre um constante mal estar quando um negro, por exemplo, entra em um lugar onde só existam brancos. Ou ainda, se alguém ver um negro na rua já se amedronta pensando que se trata de um ladrão. Sendo muitos outros exemplos ainda utilizados, como a quase inexistência de pessoas negras trabalhando em lojas, ou em outros locais onde a da mão de obra é branca é intensa. 4488 TRABALHO COMPLETO Tomando a linguagem1 como ponto fundante dos discursos2 – não apenas falados e escritos mas também pensados – percebemos como a mesma é importante na formulação/produção de imagens estereotipadas. Levando isso em consideração, propomos uma discussão acerca dessa importância discutindo o poder que tem a linguagem na classificação, denominação, rotulação, promovendo a subjetivação de sentidos identitários, formulando os mais variados discursos e naturalizando representações. A linguagem, nesse ponto, instituiria sentidos e significados pautados em uma relação de poder onde são produzidas simbologias e/ou imagens para os sujeitos. Ao fazermos essa discussão temos a possibilidade de analisarmos que poder é esse que foi atribuído a linguagem, no tocante a formação do processo identitário dos sujeitos. Processo que de modo algum é neutro pois vai formulando significados e produzindo lugares/posicionamentos para cada ser na sociedade. Para tanto, a presente produção textual trata de um esboço, mostrando como índios e negros estão representados nos livros didáticos de história. Esta produção faz parte de um projeto de pesquisa que tem por objetivo perceber o poder presente nos discursos/falas pesquisadas.3 No caso específico deste trabalho, estão presentes as falas dos livros didáticos estudados, sendo essas analisadas ao longo deste texto4. Nossa preocupação é ver que linguagem(ns) circunda(m) os personagens envolvidos nesta narrativa. A importância deste trabalho está vinculada à necessidade de explicitarmos o poder incluso nestas falas, para assim podermos analisar o porquê de índios e negros sempre aparecerem em lugares de inferioridade, mesmo quando não se tem a intenção. Isso porque em todas as falas pesquisadas é recorrente uma relação de alteridade em que um aparece no lugar de superior e, em contrapartida, ao outro é dado o lugar de inferior. Na busca por desmistificar esses lugares é fundamental esclarecer porque os livros didáticos, principalmente os de História, têm participação crucial na estereotipação de índios e negros, isso porque os mesmos trazem representações de imagens que já se tornaram representação “oficial” do que seria História do Brasil. Nesta, o branco “desenvolvido e civilizado” tomou posse do que lhe pertenceria por ser o mais forte, o mais desenvolvido, como se as terras conquistadas tivessem à espera de seus descobridores, marcando dessa forma um ponto de partida em que os Europeus tomaram o lugar do “Eu” e dessa forma rotularam o lugar do outro; no caso seriam índios e negros. Lugares estes bem definidos na grande maioria dos livros de História. 1 O termo linguagem a está sendo utilizada aqui em seu sentido atribuído na pós-crise da lingüística ocorrida no século XIX, quando a mesma passou a ser encarada como detentora de poder, que classificava, marcava e denominava através das falas/discursos. Esta, então, passou a ser vista como instituidora do processo histórico. Formulando uma nova forma de encarar a lingüística, não vendo esta como simples meio de comunicar. 2 Discurso aqui tomado enquanto prática de falar, pensar e agir, e que está permeado por relações de alteridade. 3 Esse projeto de pesquisa intitula-se: “Identidade e Alteridade: como índios e negros chegaram a ser o que dizem que são nas narrativas da História”. As fontes de pesquisa são: A Literatura de Viajantes e alguns Livros Didáticos de História. O projeto tem por coordenadora Erônides Câmara Araújo e teve a participação de quatro orientandas, incluindo a mim. O mesmo foi iniciado em 16 de maio de 2004, tendo duração de dois anos. 4 Todas as falas em questão estão presentes nos livros pesquisados durante a realização da pesquisa. Sendo todos esses livros da década de 70. 1.CARVALHO, L. G. Mota. Ensino Moderno de História do Brasil. Edição n.º1. Editora do Brasil S/A; 2.VALUCE, Ládme. História do Brasil: ensino do primeiro grau. Ed. 28. Editora do Brasil S/A . São Paulo; 3. MATTOS, I. de R. et all. Brasil: Uma História Dinâmica – do Descobrimento à Independência. Vol. 1 São Paulo: Cia Editorial Nacional, 1970; 4. SOUTO MAIOR, A. História do Brasil: para ensino de 2o grau e vestibulares. 10o ed. São Paulo. Cia Editorial Nacional, 1974; 5. HERMIDA, Antônio José Borges. Compêndido de História Geral. 8a ed. São Paulo: Cia Editorial Nacional, 1971. 4489 “Sua cultura muito adiantada [a dos brancos] colocava-o em superioridade aos índios (...). No processo de colonização das terras brasileiras, foi o elemento branco que promoveu o crescimento da colônia (...).O branco já se misturara ao índio. Tentara escravizá-lo em vão. Para trabalhar nos campos, chegava, como mercadoria, o negro.” (p.122).Grifo nosso.5 Desse modo, ao observarmos as falas registradas, a começar por essa acima mostrada, não é muito difícil percebermos o poder da representação que envolve índios e negros. Isso porque estes dois grupos étnicos são denominados pelos autores dos livros didáticos pesquisamos como menos desenvolvidos em relação ao branco. Representação esta que foi ao longo do processo histórico (principalmente do Brasil) subjetivada como verdade. A problemática disso é que dificilmente se questiona as informações contidas nos livros didáticos, pois estes são tidos como representação da verdade, posto que discentes e docentes os tomam como fontes de informações incontestáveis. No entanto, nossa tarefa é desconfiar destas informações no sentido de mostrar que esses livros são produtos envolvidos com intencionalidade e visões de mundo, contendo narrativas de um dado contexto que em momento algum são neutras. Isso porque nós enquanto professores e/ou público alvo desse material didático temos que ficar atentos para com essas representações produzidas. Representações não somente referente aos escritos, mas também às iconografias que por muitas vezes acabam reproduzindo sentidos pautados nessa relação de diferentes. Não obstante na busca por desconstruirmos esse lugar do livro didático como algo instituído de verdade, temos que levar em consideração que essa categoria lhe foi atribuída por este ser um meio didático muito utilizado em escolas, tornando-se em alguns momentos o único meio de transmissão de informações. Esquecendo-se com esta visão que este instrumento faz parte de escolhas e de práticas discursivas que cristalizam a visão de mundo e as leituras realizadas por seus autores, que vão mesmo sem intencionalidade reproduzindo lugares a partir de seu próprio lugar na sociedade. Sabendo disso, observamos que os sujeitos e suas subjetividades são formuladas de acordo com os discursos e representações escritos e/ou falados sobre os mesmos. Discursos estes “autorizados” e instituídos como verdadeiros, diretamente relacionado com os saberespoderes disseminados pela sociedade. Acerca disso FOUCAULT (1996) 6 nos diz que os sujeitos e suas subjetividades são produzidos a partir da linguagem. Ou seja, somos o que dizem que somos a partir dos dizeres que nos rodeiam e a partir de como subjetivamos tudo isso. Dito de outra forma, somos o que dizem que somos pautados nos discursos que nos envolve desde o nosso nascimento e construimo-nos enquanto sujeitos de acordo com o “mundo” onde vivemos. Nós subjetivamos sentidos, símbolos, imagens; e nos colocamos como sujeitos pensantes, no entanto o nosso lugar é sempre dado a partir de uma relação de reconhecimento e diferença; ou seja, nosso lugar é sempre marcado pela alteridade: o que eu sou perante o outro. Essa subjetivação perpassa por uma naturalização de um sentido identitário onde se nomeia o eu e o outro em determinada situação. Em se tratando da História do Brasil não é difícil percebermos a rotulação que é dada a negros e índios em relação ao branco. Nesta história cristalizou-se cada imagem – estereótipo, bem como os significados que envolvem cada personagem; significados que passam por um processo de classificação tendo por base o discurso da diferença, discurso esse pautado no reconhecimento e na similitude. A respeito disso FRANÇA (2002)7 nos diz que “...A questão da identidade aciona, no mesmo movimento, a 5 Essa citação foi retirada do livro História do Brasil: ensino do 1o grau de Ládme Valuce. FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France, pronunciado em 02 de dezembro de 1976. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996. 6 7 Imagens do Brasil: modos de ver, modos de conviver? Org. Vera Regina Veiga França – Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 4490 discussão tanto da similaridade quanto da diferença. Os dois ingredientes estão igualmente presentes, são igualmente necessários.” (p.28). Quer dizer esse processo de subjetivação formula um desejo de identificação e não identificação, deseja-se está no lugar do dito mais forte, gerando em contrapartida uma fuga na identificação para com o considerado mais fraco. Nesse sentido, nas leituras presentes nos livros didáticos são formulados sentidos e significados onde o branco ganha destaque, formulando uma imagem pejorativa dos seus diferentes; no caso o negro e o índio que são representados como dominados, selvagens, preguiçosos, sem cultura. Se assim o é, então os livros didáticos produzem e reproduzem ao mesmo tempo um desejo de similitude e de diferença em que ao diferente vai ser dado um sentido identitário sempre o comparando a partir de uma relação de alteridade, onde um vai ser sempre o menos favorecido. FRANÇA (idem)8 acrescenta ainda que: “... identidade tem a ver com discursos, objetos, práticas simbólicas que nos posicionam no mundo – que dizem o nosso lugar com relação a outro (outros pontos de referência, outro lugar). Ao fazer isto a identidade também marca e estabelece uma posição, o lugar que efetivamente construímos e no qual nos inserimos. Ela se constrói assim – nessa interseção entre discursos que nos posicionam e o nosso movimento de nos posicionarmos enquanto sujeitos no mundo.” (p. 28). FOUCAULT (1996)9 também enuncia que não existe eu sem o outro. E um vai estar sempre em posição de destaque. Em se tratando do índio e do negro as subjetividades sobre eles estão permeadas por relações de alteridade onde discursivamente estes são colocados num patamar de inferioridade. E isso, resulta na construção de um processo de subjetivação que tem por resultado a formulação de estereótipos, cuja base de sua representação está vinculada a uma relação entre diferentes. Esse processo fez – ao longo da História – a leitura do mundo Ocidental adquirir valor de verdade, fazendo com que sua cultura se tornasse hegemônica nas narrativas tanto dos livros didáticos quanto dos não-didáticos, ou seja, uma narrativa estritamente europocêntrica que passou a descrever o mundo, mas não uma descrição qualquer, uma descrição em que os brancos europeus estariam sempre à frente das demais culturas. Sendo que estas são experimentadas como diferentes, tornando-se as outras, com menos valor, anormais e inferiores. Diante do exposto, os resultados da pesquisa foram de que índios e negros mal aparecem nos livros didáticos, em se tratando dos primeiros tempos da História do Brasil, e quando aparecem são representados como inferiores, não civilizados, reproduzindo o seu lugar de dominados. Isso, mesmo quando estas designações não aparecem de forma direta, pois se percebe intrinsecamente nesses livros uma naturalização na representação destes dois grupos étnicos. É o que podemos ver na citação abaixo: “Duas raças se encontraram em terras do Brasil a 22 de abril de 1500. O índio, habitante do lugar e o branco que vinha tomar posse da terra que, a partir dali, lhe pertenceria. Mais tarde vieram da África os negros. Chegaram como escravos, para fazer a riqueza da terra e dos colonos brancos.” (p.119). (grifo nosso)10. No caso do negro, percebemos nas falas dos autores pesquisados que este quase sempre aparece como objeto de trabalho, os seres dominados, de cultura inferior, sem atitudes, verdadeiros bestializados que não tinha outra saída senão a de aceitar viver com maus tratos, pelo fato de que os brancos eram mais fortes, mais desenvolvidos os que trouxeram para o território brasileiro a civilização e o desenvolvimento. Sendo o seu trabalho – o do negro – a única saída viável para o desenvolvimento do processo histórico. Havendo mais, para os autores 8 Idem. A Ordem do Discurso. 10 Essa citação foi retirada do livro História do Brasil: ensino do 1o grau de Ládme Valuce. 9 4491 a miscigenação existente no Brasil não permitiu que se formulasse um preconceito muito forte entre as pessoas aqui residentes. “O grande número de escravos se fizera necessário, pois a produção dependia deles.(...).A mistura de raças facilitou muito o trabalho de colonização e impediu que se formasse aqui preconceito racial exagerado.” (p.124) - grifo do autor.11 E, no caso dos índios, estes aparecem como bárbaros, animais selvagens que viviam em plena pré-história, “gentios” preguiçosos que precisavam ser “domesticados” e transformados em seres humanos, para assim poderem sair desse estágio de atraso em que viviam e passarem a fazer parte do mundo “civilizado”. Tomemos como exemplo a fala de um outro livro didático pesquisado:12 “...Além do mais, não vinha (cic) êsses portugueses dispostos a encarregar-se de trabalhos pesados. A quem caberiam êstes? A princípio se pensou na escravização do índio. No entanto, manhoso, conhecedor da terra e desacostumado ao trabalho, o indígena não chegava a produzir sequer o necessário para o seu próprio sustento...”(p. 70).(grifo nosso). Percebe-se desse modo que, a rotulação, nomeação e representação de índios e negros foram produzidas e reproduzidas pelos autores dos livros didáticos, sendo que suas falas estão transpassadas por diversos símbolos e significados formulados antes deles. Mesmo palavras ou narrativas utilizadas, até certo ponto, sem intenção de mostrar uma diferenciação colocam um personagem – o branco – em posição de destaque naturalizando mais uma a visão europocêntrica do processo histórico, em que o branco mantém uma relação binária com as demais culturas, este aparecendo como mais bonito, mais inteligente, mais desenvolvido. Essa representação ligada ao poder da linguagem é, segundo Foucault13, instituída e aceita como verdade, posto que uma linguagem hegemônica ganha “autoridade” de denominar e rotular classificando os vários lugares sociais que são impostos aos sujeitos. Assim o sujeito sempre fala de um determinado lugar social, internalizando simbologias e significados diretamente afetados por uma relação de poder, que é constitutiva de seu discurso e de suas práticas. Foucault14 acrescenta que é somente pela prática discursiva que se naturaliza um determinado lugar social e empírico para cada ser. Ou seja, em se tratando das representações aqui analisadas, negros e índios posicionamse em um discurso instituído como verdade que está sempre em comparação com a representação dada aos brancos. Tomemos como exemplos essas falas retiradas dos livros didáticos. “Donos das terras brasileiras os índios viviam livres e, por não se fixarem, eram nômades (...). Com agricultura atrasada não tinham condições para produzir muito...” (p.120-1). (grifo nosso).15 “Achamo-nos em plena África, junto a tribos de homens negros que, na sua simplicidade, outra coisa não fazem que não seja viver e caçar, lutar e dançar, plantar e colher...Em sua ingenuidade, em seu primitivismo, nada viam de mal os chefes negros nas trocas que efetuavam e, de tal modo, iniciou-se, e depois prosseguiu por longos 11 História do Brasil: ensino do 1o grau - Ládme Valuce Ensino Moderno de História do Brasil de L. G. Mota Carvalho, ed. n.º 11. 13 A Ordem do Discurso. 14 Idem. 15 Retirada do livro didático História do Brasil de Ládme Valuce. 12 4492 anos, a escravização dos negros, que manchou de crueldade e de sangue o nosso solo e a História de nossa Pátria.” (p. 68-9) (grifo nosso).16 Observando estes fragmentos percebemos a contradição dos seus autores, pois os mesmos naturalizam a superioridade dos brancos, e, mais que isso, reproduzem subjetivações carregadas de sentidos negativos para os que não são brancos. Em suma, essas falas reiteram o discurso promulgado nas narrativas históricas do ocidente, fazendo com que se reproduzam, através das práticas discursivas, os lugares ocupados por cada ser perante a sociedade. FRANÇA (2002)17 nesse ponto nos interpela dizendo que: “... os discursos que estabelecem uma identidade unificadora (tais como o discurso do colonizador europeu ...) marcam o “nós” e marcam “o outro”, e eles constituem claramente um lugar privilegiado de análise.”(p.29). Seguindo essa idéia expressa por França, vemos que o lugar privilegiado presente nos livros didáticos está com os brancos, enquanto índios e negros aparecem como hostis, raças fracas, primitivos. Além de selvagens que faziam parte da fauna ou produtos comercializáveis. Em outro livro didático pesquisado,18 vemos também a formação de um discurso étnico quando o autor divide o livro em capítulos e destina um para cada etnia: índia, negra e branca. Mostrando (no 2 capítulo) o índio como selvagem, expressão constante em todas as suas falas. Como a exemplo, ao citar Gilberto Freire o autor reitera: “Para Gilberto Freire, vários jogos infantis brasileiros,..., são reflexos do complexo de flagelação existente entre nossos primitivos selvagens.” (p.37) (grifo nosso). E ao se referir (no capítulo 5) ao negro, o autor continua a reproduzir uma imagem pejorativa, pois na sua representação é constante a explicação de que não se tinha outra solução senão os negros serem escravos, não só porque os brancos precisavam de muita mão-de-obra, mas também porque os negros são tidos como “passivos”, estando em “posição de inferioridade”. Ver-se, portanto, nessas expressões uma representatividade muito forte para designar posições e mais que isso, para serem subjetivadas pelos leitores como verdade e não como construção do homem. Nossa discussão, está ligada justamente ao desejo de mostrar o poder dessa construção. Pois só a partir desse entendimento (de que nossa identidade foi produzida culturalmente - no processo histórico - e está permeada pelos dizeres que nos rodeiam - família, escola, trabalho ou como defendeu Foucault, foi construída discursivamente) vemos como as leituras têm papel importante na formação dos sentidos identitários. Tanto porque os livros têm poder de verdade quanto por terem poder de subjetivação. E não é somente isso, vemos que os livros estão diretamente vinculados aos discursos/práticas discursivas que circundam no momento histórico que seus autores vivenciaram, ou mesmo antes deles. A respeito disso VEIGA - NETO (2003) expressa que “... cada um de nós nasce num mundo que já de linguagem, num mundo em que os discursos já estão há muito tempo circulando, nós nos tornamos sujeitos derivados desses discursos.” (p.110). Por isso é não podemos dizer simplesmente que os autores dos livros didáticos foram preconceituosos, precisamos levar em consideração que eles não foram os primeiros nem os únicos a utilizarem essas representações expressas nesse texto. Os próprios viajantes quando estiveram no Brasil desde século XVI ao XIX já rotulavam os “gentios” brasileiros (como eles chamavam os nativos e cativos do Brasil) como seres de segunda categoria. Sendo essa rotulação difundida na Europa, por vezes parecendo que esses viajantes vinham para cá constatar o que já sabiam. Isso implica dizer que as falas aqui analisadas foram resultados da cristalização dos discursos e significados formulados no processo histórico da sociedade. Que, por sua vez, foram reproduzidas. O que explica – não significando dizer que não possa ser desconstruída – o fato de mesmo nas entrelinhas vir a tona nos livros pesquisados uma visão de alteridade, em que índios e negros aparecem como inferiores e atrasados. 16 Retirada do livro didático Ensino Moderno de História do Brasil de L. G. Mota Carvalho Imagens do Brasil: modos de ver, modos de conviver? Org. Vera Regina Veiga França – Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 18 SOUTO MAIOR, A. História do Brasil: para ensino de 2o grau e vestibulares. 10o ed. São Paulo. Cia Editorial Nacional, 1974. 17 4493 Vale dizer ainda que a linguagem detentora de poder não é somente a escrita, a fala, os gestos, mesmo os pensamentos são resultados de vivências distintas que marcam a identidade de cada ser. Demarcando também seu posicionamento, que não é uno, pois adquire várias faces dependendo do momento vivido e dos discursos que circundam nesse momento. Assim, é preciso que tenhamos em discussão todo esse aparato ligado à linguagem, buscando desnaturalizar essas representações que além de produzirem discursos também impõem sentidos por vezes pejorativos. Faz-se necessário discutirmos também os discursos em torno da diferença, posto que – como foi tratado no presente texto – as leituras que temos sobre nós e os outros estão sempre marcadas por uma relação de diferentes, onde um vai ter uma posição destacada perante os demais. É preciso, então, que entremos em debate, discutamos até onde nosso “lugar no mundo” interfere em nossas ações e até que ponto nos sentimos mal perante as outras pessoas, ao nos experimentarmos como o outro para alguém. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France, pronunciado em 02 de dezembro de 1976. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996. Educação em debate. As narrativas dos livros didáticos de História e a construção de identidades: o papel (in) formativo da leitura/Erônides Câmara Donato. Fortaleza. Ano 24. Vol. 2 nº 44, 2002. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Uma história de ‘diferenças e desigualdades’: As doutrinas raciais do século XIX. In: O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993. VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. VAZ, Paulo Bernardo F. et all. Quem é quem nessa História? 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