DISCURSOS REPUBLICANOS E GOVERNO DA INFÂNCIA
Maria do Socorro Nóbrega Queiroga
Universidade Federal da Paraíba
[email protected]
Palavras-chave: Primeira República. Paraíba. Discursos sobre a Infância.
Introdução
Tem-se a impressão de que a criança de mentalidade acanhada, rude, como
vulgarmente se diz, é um campo para amainar um terreno pedregoso, quase
estéril; mas o educador, por seu dever apostolar, estuda a mente daquele ser,
na aparência imperfeita, procura o método mais elementar para lhe despertar
a luz da inteligência, tirando-o pouco a pouco do caos em que parece
mergulhado. [...] um dia as idéias surgem daquele cérebro inculto. Ele cria as
imagens, observa e raciocina! O educador rejubila-se, porque foi ele o
construtor daquela inteligência. (PRADO, 1927 apud COSTA; SHENA;
SCHMIDT, 1997, p. 104, grifos meus).
A epígrafe acima e as palavras por mim acentuadas podem ser traduzidas como a
representação do que significava a ‘chegada’ das ciências modernas na vida da escola e dos
professores. Palavras que deixam transparecer, por vezes, a existência de certo glamour em
relação a poder fazer parte de um seleto estrato intelectual e educacional que acessa e que usa
as novas descobertas das ciências emergentes, cujos conhecimentos lhe serviam de suporte
para compreender a realidade, de modo geral, e a educação, em particular, e neste caso, em
um campo ainda muito recente e cheio de enigmas - o da garantia dos direitos sociais à
educação.
O fragmento do texto é representativo, ainda, de um tempo crucial para a definição de
um novo ordenamento social, o período da Primeira República, ou seja, as três primeiras
décadas do Século XX no cenário brasileiro: a retórica republicana de formação de uma nação
verdadeiramente brasileira. A retórica secular de mudança que, na verdade, tem seu início no
Século XIX, (GONDRA, 2007) da criação de um “homem novo”, que pudesse ser útil ao
incipiente capitalismo e às aspirações de mudanças no campo da educação, sobretudo no que
se refere aos sentidos sobre a infância, “quando a autonomia constitucional dos Estados
possibilita e incentiva as políticas de instrução e educação, sob a crença inabalável no poder
modelador da educação e da escola” (QUEIROGA, 2012 , p. 9).
Esses acontecimentos, a visibilidade concedida à infância, à sua educação, sobretudo
no espaço escolar, a preocupação ainda embrionária com a formação e o papel dos professores
têm visibilidade nos discursos e nas práticas não discursivas e estão circularmente
relacionados às mudanças radicais instauradas pela modernidade europeia: a instauração dos
Estados-nação e a retórica iluminista no poder do conhecimento e da razão (HOBSBAWM,
1982a; 1982b; QUEIROGA, 2005), imbricados aos processos e movimentos migratórios e de
urbanização das cidades emergentes.
São discursos que podem ser traduzidos como signos representativos dos valores e das
crenças de um tempo, daquilo que a sociedade brasileira considerava importante, sob os
novos ares proporcionados pelo advento da ciência, cada vez mais próxima, e a iluminar as
práticas não discursivas, a legitimar as verdades sobre a infância e a educação e a contribuir
para a ampliação e a criação de outras e novas sensibilidades, que envolviam pontos de
discórdia, de acirradas disputas e redes de negociações, como a escolarização feminina
(GOUVÊA, 2004), no que se refere à ginástica na escola, ao acesso das meninas ao cinema e
ao teatro, às leituras permitidas e proibidas etc. Segundo essa autora, em Minas Gerais, na
década de quarenta do Século XIX,
no caso da população feminina, o estado estabeleceu, nos regulamentos de
institucionalização das escolas, diferenciações e limites em relação à
escolarização masculina, circunscrevendo um projeto de educação da mulher
secundário em relação ao homem, coerente com a posição subalterna que
deveria assumir na vida adulta. (E cita o presidente da província da época):
[...] Devem os mestres ser capazes de ensinar aos meninos o seguinte. Ler,
escrever, contar as quatro operações da aritmética, quebrados, raízes
quadradas e proporções [...] as mestres às meninas: devem ensinar-lhes tudo
que convém que saiba uma mulher, que tem de ser a criada de si, e de seu
marido: por isso a educação deve limitar-se a saber ler, escrever e contar até
as quatro primeiras espécies de aritmética e todos os mais trabalhos de uma
mulher no interior de sua casa (GOUVÊA, 2004, p. 191).
Ressalte-se, todavia, que, no Brasil, o entusiasmo pela educação e pelo otimismo
pedagógico (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1994; GOMES, 2011) e a necessidade de se constituir
um Estado Nacional independente une intelectuais e educadores que “subjetivam os ares dos
novos movimentos que chegam da Europa, alegram-se com as cores do progresso capitalista”
(BURITI, 2013, p. 1). Tempo privilegiado, portanto, para a fabricação de aparatos de
regulação no campo da educação, cujo corolário foi a criação de equipamentos de governo da
infância, como os discursos produzidos sobre a infância escolar e o reconhecimento da escola
como um instrumento fundamental para os avanços das conquistas republicanas e a produção
de sensibilidades mais afeitas aos ideários republicanos acerca da educação que deveria ser
promovida para as crianças.
Pesquisas recentes em História da Educação dão visibilidade ao fato de que, no Brasil,
desde o Século XIX, ao contrário do que se diz, era significativa e intensa - considerando-se a
realidade da época - a relação de intercâmbio entre educadores brasileiros e estrangeiros.
Sobre a proliferação dos contatos entre educadores brasileiros e estrangeiros, tratam muitos
historiadores da educação, entre eles, Faria Filho (2007, p. 39-64), Monarcha (2009) e Gondra
(2007):
No movimento de constituição do Estado Nacional é possível evidenciar
empréstimos e diálogos com modelos internacionais nos mais diversos
domínios. [...] nos livros estrangeiros, nas traduções, no modelo de imprensa,
materiais pedagógicos, métodos de ensino e até no vocabulário empregado.
[...] No Brasil, no período republicano e, particularmente, por ocasião das
reformas de inspiração escolanovista, nos anos 20 e 30 do século XX, houve
uma busca por operar mudanças na educação nacional, tomando como
parâmetro experiências realizadas no estrangeiro. [...] deram espaço à
divulgação de obras publicadas no exterior, [...] educadores também criaram
editoras, coleções de livros, cursos. Assumiram páginas e colunas nos jornais
tratando de educação, nas quais denunciavam, criticavam, duvidavam,
reclamavam, apontavam alternativas. (GONDRA, 2007, p. 7-8)
Monarcha (2009), ao tratar do que chama de “ciência, técnica e utopia nos anos 19201930”, refere-se ao período efervescente do movimento dos Pioneiros da Escola Nova e à
importância dessa experiência para as transformações na educação e na escola. Para ele, tratase de
uma das mais bem acabadas expressões de uma rara ampliação da
consciência social brasileira, [...] rica em desdobramentos não apenas como
momento excepcional da história intelectual e social, mas também como
patrimônio político e moral do país [...] uma polifonia de vozes [...] a tensão
inerente à dialética entre localismo/comopolitismo, nacional/universal. Entre
1920 e 1930, décadas que na vida nacional são irremediavelmente
polêmicas, em meio à irrupção dramática de tensões sociais, conflitos
militares, impulsos industriais, ideologias modernizadoras, profundas
desagregações, recrudescer de desesperos e visões de esperanças
desesperançadas, assistia-se à mobilização de vanguardas estéticas, políticas
e culturais, cujos protagonistas atraídos pelo magneto do novo auguravam a
eminência da passagem apocalíptica para uma Era Nova. (p. 15 – 19)
É curioso, então, pensar e investigar sobre o que estava ocorrendo na Paraíba nesse
tempo pesquisado. Aqui também se respirava algo novo, em vários aspectos da vida social, e
pelas frestas da vida em sociedade, ouviam-se e sentiam-se os ares da modernidade, através
dos meios de comunicação que emergiam na época (QUEIROGA, 2011c), como demonstram
as fontes pesquisadasi, e que sinalizam para uma parca, mas já existente produção discursiva e
de práticas ligadas à educação, veiculadas em jornais, boletins de educação, entre outras
fontes. Sob a influência dos centros urbanos mais desenvolvidos, como São Paulo,
Pernambuco, Minas Gerais e, sobretudo a capital da República, Rio de Janeiro, muito era
esperado da educação como via para as mudanças desejadas e a ampliação de outras já em
curso. É assim que, no tocante à educação brasileira e à paraibana, desde o final do
Oitocentos, os temas dos debates e das preocupações de quem estava no ofício de educar se
assemelhavam, em vários aspectos, como pode ser visto neste fragmento extraído de
documentos locais, quando comparados à epígrafe citada:
A escola tem assim por escopo ennobrecer o homem, bolear e espírito,
cultivar o caracter, polir, aperfeiçoar, esmaltar. [...] Oh, a bella
transformação do homem sob o mágico prestigio da escola! A beleza moral
que surge! (Jornal A União, 1918, p. 1, grifos meu).ii
A escola tem na sociedade moderna uma grande importância e é considerada
a casa da creança; portanto deve ser construída para ella correspondendo a
todas as suas necessidades. (Jornal O educador, 1921, grifos meus)
Os exercícios de gymnastica, nas escolas de França, são obrigatórios desde
1869. [...] A gymnastica sendo a sciencia do aperfeiçoamento do corpo
humano, deve ser physiologica. Tem por fim, dar ao corpo da creança força
e saúde,e, alem disso, facilita todos os seus movimentos e age de
umamaneira feliz sobre o desenvolvimento das faculdades intellectuaes e
moraes. (Jornal O educador, 1921, grifos meus).
São inúmeras produções, além de tratar de muitas temáticas relacionadas às
preocupações seculares - e parte dos discursos de teor republicano - como se pode ver. Mas,
quero destacar ainda os discursos veiculados durante a I Conferência Nacional de Educação,
que ocorreu em 1924, em Curitibaiii, pela importância que tinha, na época, a Associação
Brasileira de Educação (ABE) sua promotora. Uma dessas teses apresenta a preocupação
daquele momento, em relação à função e ao papel da educação, e cujo título significativo é A
educação no futuro:
Houve um tempo em que os pedagogos, baseados nas teorias de Wallace e
Darwin, julgavam que as faculdades mentais da eram transmitidas por seus
ascendentes. Era um ponto de vista falso, que felizmente, já vai
desaparecendo do domínio da ciência moderna. O indivíduo pode ser uma
resultante do meio sob o aspecto social, mas nunca um herdeiro intelectual
por lei atávica. Vejamos: os métodos mais modernos ou sistemas
pedagógicos para instruir crianças anormais ou retardadas têm surtido para o
educador moderno o melhor resultado (PRADO, Tese nº 11, p. 103, grifos
meu). iv
Com esses referenciais iniciais, quero problematizar esse tempo, que compreendeu a
Primeira República no Brasilv, com a temática a ser desenvolvida neste ensaio, que encerra
dois eixos de análise: a infância e a educação escolar e sua constituição nos discursos
educacionais veiculados em documentos que versam sobre educação para as crianças na
Paraíba. O objetivo é adentrar os diversos espaços de produção de sentidos, através de fontes vi
que “falam” da infância, buscando ler e analisar os discursos e as práticas não discursivas,
com seus enunciados, os sentidos atribuídos à infância e o lugar de produção desses discursos,
como e onde circularam, em um tempo em que as disputas do poder-saber produziram
bipolaridades e polarizações como: urbano-rural, nacional-local, em confluência com a
retórica republicana, cujo corolário foi uma rica e significativa produção discursiva no campo
da educação.
A ideia de um recorte temporal se justifica por se reconhecer que a temporalidade é
uma lente por meio da qual é possível pensar/ler as fontes. Compreendo, assim, a importância
dos acontecimentos - inclusive os imediatamente anteriores à Primeira República, - como
potencializadores de mudanças, consubstanciadas na complexidade e na efervescência
cultural e política, mas fazendo um recorte para aquelas ligadas à questão específica da
educação, forjadas no calor político cultural que desembocou cultural nesse acontecimento
histórico, e o que ele representou de descontinuidades e rupturas em amplos aspectos da vida
em sociedade. No interior dessas mudanças mais estruturais, o papel central da educação das
crianças e, de modo geral, sua escolarização, assumem temas dos debates nacionais e locais,
quando os discursos republicanos se colocam como vanguarda e importantes disseminadores
das propostas de mudanças. Portanto, as décadas iniciais do Século XX no Brasil, objeto da
nossa pesquisa, são ricas em acontecimentos históricos de monta e que tiveram como
antecedente o ideário do republicanismo, que foram fundamentais para o desenrolar de
estratégias e políticas públicas encetadas pelo estado brasileiro, como a criação de um sistema
nacional de ensino, em 1934.
Tomei como aporte teórico para a fundamentação das investigações as ferramentas
teórico-metodológicas dos Estudos Culturais, com destaque para algumas noções importantes
pensadas por Michael Foucault, como a arqueologia e a genealogia, ao analisar os discursos
que compõem os documentos, e suas reflexões sobre o poder-saber, ao fazer as interfaces com
o campo problemático da Educação. Isso significa compreender as formas que assumem as
relações de poder, em diferentes âmbitos sociais, como produtoras de determinadas
subjetividades e verdades. A perspectiva dos Estudos Culturais possibilita-me construir uma
cartografia dos sentidos sobre a infância, em um cenário específico das estratégias das
relações de poder e de produção de saber, ou seja, a Primeira República e o papel do Estado.
Faço, contudo um recorte para a Paraíba, quanto às supostas rupturas, e poder observar as
continuidades que constituíram uma suposta “visão republicana” e “moderna” sobre a
infância, a escola, os conteúdos, os métodos e a formação dos professores, já que os discursos
e as práticas em educação eram atravessados por ideais de mudanças e de construção de novas
sensibilidades, que vinham sendo forjadas desde meados do Oitocentos. Nesse sentido, várias
estratégias foram criadas para criar as possibilidades de realização de um projeto de sociedade
novo; entre eles, a criação na Paraíba de instituições como o Grupo Escolar e a Escola
Normal, como pode ser lido em texto relacionado às problemáticas e desafios da época
(LEITÃO, 1987, p. 11):
Nos velhos tempos monárquicos, o grande problema do ensino público era a
falta de habilitação profissional dos nossos professores. Os presidentes da
província, em suas falas e mensagens, referiam-se constantemente à falta de
preparação dos nossos mestres como causa principal do atraso verificado nas
escolas mantidas pelo governo. Preocupado com esse problema, o Presidente
[...], em 1874 criou no Liceu Paraibano uma cadeira do ensino normal com o
propósito de encaminhar para o magistério alguns alunos daquele
educandário. A idéia, bem se vê, não era de todo satisfatória, o que levou o
Presidente [...] a instalar, a 7 de abril de 1885, a Escola Normal, que prestou
inestimáveis serviços à educação com a preparação de professores de melhor
nível profissional.
No âmbito metodológico de operacionalização da pesquisa, realizada, neste momento,
em projetos como o de Iniciação Científica, as fontes pesquisadas, pela sua importância como
arquivos, têm me permitido ir ao encontro da história da educação de uma época, de um lugar
determinado, com seus valores e idealizações sobre como deveria ser a educação escolar das
crianças. Meu objetivo é dar visibilidade às tramas, às crenças e às representações sobre a
infância nos documentos/fontes de pesquisa da Paraíba, tecer comparações, destacar as
descontinuidades e as permanências dos enunciados produzidos entre as décadas estudadas e
fazer um contraponto desses discursos e dos produzidos e apresentados por representantes de
diferentes estados,vii por ocasião da I Conferência Nacional de Educação.
Parto do campo historiográfico da pesquisa na linhagem da Nova História Cultural,
fundamental para nós, historiadores da educação, que fazemos pesquisas com objetos que
dizem do cotidiano e das singularidades, importante também para se interrogarem as verdades
presentes nos discursos, que nos apontam novas perspectivas de problematização e
possibilidade de trazer à cena o individual, o subjetivo, como elementos legítimos
fundamentais para a análise histórica, o que nos possibilita ressignificar a noção de fato
histórico, de fonte e de tempo.
Esse cenário de mudanças nas relações de poder/saber e nas formas de sociabilidade
intensifica as preocupações com a educação das crianças e dos jovens, como garantia de
desenvolvimento e de formação de uma nação ordeira, patriótica e em sintonia com a
modernidade de referência, que eram os modelos produzidos na Europa por educadores de
diferentes formações (GOUVÊA, 2004; QUEIROGA, 2005; MONARCHA, 2011). Processo
mais geral, circularmente ligado à emergência da necessidade de esquadrinhar a população, de
ter sobre ela um controle, e em particular, a infância, pela medicina social,
predominantemente pela via da visão higienista eugenista e da psicologia, pela pedagogia
científica, produzindo conceitos e legitimando-os na vida escolar, como “desenvolvimento
individual”, “capacidade”, aptidão”, entre outros. Esse processo está circularmente ligado à
necessidade de se esquadrinhar a população, de ter sobre ela um controle, de modo geral, e da
infância, em particular, pela medicina social, predominantemente pela via da visão higienista
eugenista e da Psicologia, do “desenvolvimento individual” e dos conceitos de “capacidade” e
de “aptidão” desenvolvidos por essa ciência.
São discursos que aparecem nos documentos analisados, de forma significativa, nos
enunciados ligados à vontade de formar cidadãos normais para a construção da sociedade,
através da educação escolar e familiar – no que se refere à capacidade física e psíquica sadias;
aos sujeitos ajustados e úteis para um processo capitalista, que emerge em uma sociedade que
se quer e se reconhece nova e que dão visibilidade à subjetivação da infância. Com base em
determinados parâmetros ideais e filosóficos essencialistas, que serviram de base para
legitimar os saberes produzidos pelas ciências humanas, desde a modernidade, esses
discursos, em solo nacional e desenvolvimentista, revestem-se de enunciados higienistas e
eugenistas no esquadrinhamento da infância pela expertise (ROSE, 1998) local. Interpretamolos no contexto das regularidades da trajetória genealógica de fabricação do homem anormal
(FOUCAULT, 2002), da identidade de um homem “novo”, adaptável às novas demandas
sociais.
Discursos sobre a infância e a educação no contexto da Paraíba
O cenário e os mecanismos que instituem os discursos sobre a educação e a escola
podem ser compreendidos como estatutos de verdade de um tempo, articulado à realidade, o
que nos possibilita compreender a instituição republicana da infância como um elemento
fundante para um novo projeto de sociedade. Esse processo garantiu a criação dos diversos
dispositivos de governoviii , os equipamentos coletivos de regulação do eu (FOUCAULT,
2001): instituições escolares, rituais e estratégias oficiais sobre o rendimento e a eficácia da
educação, e inscreveu as crianças no universo das ciências criadas para perscrutá-las e
classificá-las, fazendo acionar a invenção de crenças sobre um “dever ser criança”, “aquilo
que a racionalidade moderna excluiu, desconheceu e definiu como passível de punição, de
normalização e de medicalização” (ALBUQUERQUE JÚNIOR; VEIGA-NETO; SOUZA
FILHO, 2008). Aos poucos, a educação, como aprendizagem, é substituída pelo
disciplinamento nos espaços privados e fechados da casa e da escola. Os novos saberes
autorizados a explicar racionalmente sobre como cuidar do “eu” passam a ordenar os métodos
de ensino, a organização do espaço escolar e o currículo escolar desde os primórdios da
criação dos colégios e das escolas no Brasil.
O cenário político-cultural e econômico, desde o Império, e que culminou com a
República, inicia um novo processo voltado para a formação de uma nação “genuinamente
brasileira”. É na governamentalidade republicana, a partir do Século XIX, que políticas
criadas para a escolarização das massas ligam-se à produção de procedimentos disciplinares,
que tomam como dispositivo de suporte a psicologia infantil - nova tecnologia do eu na
definição de novas metodologias de educação. Com igual importância, a entrada em cena de
um novo dispositivo de controle da criança - a família - faz emergir um sentimento de
preocupação com o seu disciplinamento - a fim de torná-las “pessoas honradas e homens
racionais” (ALVAREZ –URIA; VARELA, 1998) - agora sob a influência de um novo
elemento que vem tomando corpo na sociedade da época: a higiene ou as questões ligadas à
higienização, como pode ser visto nos discursos locais:
Janil, Javal e recentemente o professor Truc admittem a illuminação
bilateral, tendo como opositores Trelet e quase todos os hygienistas
allemães: Cohn, Erismaun, Zwek, etc. que defendem a illumunação
unilateral. Segundo estes mestres a luz bilateral não é boa a visão, porque as
que são contrarias, vindo das jannelas opostas, dão nascimento a duplas
sombras que produzem uma falsa illuminação. (Jornal O Educador, Organ
do Professor Primario, 1922, p.1, grifo meu)ix.
Pode-se ver que, aos poucos, com a demanda por expansão da educação, surge a
preocupação com a qualidade da educação atrelada a um sistema educacional comprometido
com o desenvolvimento da nação, do emergente capitalismo. Em relação aos temas, outra
característica dos discursos locais diz respeito aos enunciados com forte teor normativo,
prescritivo e ufanista quanto às possibilidades e à influência dos saberes psicológico e
pedagógico para darem conta de realizar as mudanças desejadas, sobretudo a partir da década
de 1930, com a demanda popular efetiva de acesso ao saberes socialmente produzidos, o que
culminou com a expansão da educação, tempo em que têm visibilidade as matérias de jornais,
de revistas etc., demonstrando uma preocupação com a educação e a sociedade como sistemas
interligados. Na Paraíba, não é diferente e se deixava influenciar pelos novos ares dos
acontecimentos do mundo e do país, segundo os novos paradigmas europeus, como se vê no
texto abaixo:
FONTE: Boletim da Sociedade dos professores primários da Paraíba, 1919 (IHGP)
Nas fontes cotejadas, os enunciados sobre a infância e a educação mostram claramente
que ocorreram mudanças no teor dos seus conteúdos, mesmo se considerando que, de modo
geral, estavam vinculados a idealizações sobre a infância, tomando como referencial padrões
culturais europeus e brasileiros burgueses. Vale dizer que esses conteúdos mantinham
regularidades nos seus sentidos, mas também apresentavam descontinuidades importantes de
serem analisadas. Caracterizam-se, sobretudo, pela forte presença de recomendações com os
cuidados higiênicos ligados aos conhecimentos da medicina, com grande repercussão no caso
de (supostos) problemas de myopia; às temáticas ligadas à família, às capacidades das
crianças, aos métodos de ensino, aos fatores endógenos inatos, associados a uma inteligência
inferior ou a uma anormalidade de comportamento e, ainda, a preocupação com a chegada do
cinema, a importância da ginástica, do pudor feminino a ser desenvolvido desde cedo nas
meninas (Jornal A Imprensa, 1915; Jornal A União, 1918; Boletim da Sociedade dos
professores primários da Paraíba, 1919; Jornal O educador, 1921), muitos dos quais estão,
também, significativamente presentes nas teses da I Conferência... (COSTA, SHENA;
SCHMIDT, 1996).
Nos documentos que constituíram as fontes locais, veem-se, com significativa
frequência, tabelas que, como guias, aconselhavam sobre os bons e os maus hábitos a serem
perseguidos por educadores - pais e professores. Haveria que se promover, segundo os
discursos da época, uma educação moral capaz de mostrar o verdadeiro sentimento que se
deve ter diante das atitudes das crianças, endereçados às práticas e às instituições − incluindo
a família − as quais, como maquinarias de governo da infância, são ressignificadas e
recodificadas quanto às suas funções, a partir de então, de tal modo a se adequarem às
prescrições dos novos equipamentos coletivos para a infância, legitimados pelos novos
saberes psi e pedagógicos.
São enunciados ligados às questões da modernidade desejada, aos ideais republicanos,
imbricados nos processos e nos movimentos migratórios e de urbanização das cidades
emergentes, da criação de um “homem novo”, preparado para assumir as frentes de trabalho
exigidas pelo capitalismo incipiente. No dizer de Foucault (1977), corpos sãos, governados,
regulados, segundo o esquadrinhamento e a economia do detalhe: dos gestos de obediência à
consciência de uma diferença que os subtraíam.
Junto e no interior das mudanças mais estruturais, o papel da educação das crianças e,
de modo geral, sua escolarização que passam a ocupar a agenda das políticas públicas. Parte
dos discursos ‘de verdade’, novos códigos pedagógicos foram criados e ordenaram e
conduziram as novas práticas educativas na escola - movimento discursivo que realiza um
importante deslocamento do ideário higienista e eugenista para o ideário centrado em
enunciados desenvolvimentistas, cujo corolário foi a fabricação de novas subjetividades e de
novas práticas discursivas.
O caráter redentor da educação escolar se constitui na regularidade que atravessa todos
os discursos. Assim, à escola é creditada a possibilidade de formar o indivíduo para a vida,
em todos os seus aspectos, razão por que os desvios devem ser tratados. Percebe-se uma
continuidade dessas características dos enunciados dos discursos sobre a infância que estão
presentes desde o Século XIX e que vai se configurar, sobretudo, na preocupação em garantir
a construção de uma sociedade segundo os moldes burgueses transportados da coroa.
Bujes (2002) vai dizer que a construção da escola moderna esteve atrelada, desde o
seu início, como maquinaria de regulação da infância, à construção da escola moderna, a
necessidades ligadas à moral e à política, razões completamente imbricadas de regeneração
das massas contra a perturbação da ordem social e de proteção do patrimônio privado. Assim,
a fabricação de saberes e de aparatos técnicos fomentou uma descontinuidade dos processos
de controle sobre a população, no sentido de que a ênfase nos hábitos é depois substituída por uma
ênfase na degeneração e, posteriormente, no desenvolvimento infantil, uma produção central e
estratégica do normal, da norma (WALKERDINE, 1998): da ênfase dos problemas do âmbito moral
para o científico. Só mais tarde é que os saberes que compõem as ciências humanas, sobretudo a
Psicologia e a Pedagogia, vão circunscrever, patologizar e individualizar as questões que envolvem o
sujeito no processo de aprendizagem, transformando os códigos de saber sobre elas, produzindo
classificações da infância em “anormal”, “inadaptada” entre outros sentidos, com vistas a atualizar
ordenamentos prescritivos que logo cegarão à escola.
Esses delineamentos históricos acerca da infância e das crianças e as condições sociais que
possibilitaram a produção dos diversos enunciados que as caracterizam é que nos possibilitam fazer a
história do presente, mesmo sem deixar de ler, nesses discursos e nos que silenciam, produções de
verdades que reforçam e legitimam preconceitos, práticas discriminatórias e estigmas que fabricam
subjetividades e realidades de exclusão.
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da infância: a arqueologia de um conceito. 2005. f. 442. (Tese de Doutorado em Sociologia)
– Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.
______. O governo dos corpos infantis: a produção e distribuição do discurso da eugenia no
campo da educação. Revista VIVÊNCIA. N. 37. Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, UFRN). (Ago/2011a).
______. Infância e discursos: a emergência histórica do discurso do fracasso escolar no
Brasil. In: CARVALHO, Maria Elizete G. (Org.) História, Educação e Direitos Humanos.
João Pessoa, PB: Editora Universitária da UFPB, 2011b.
______. Republicanismo na Paraíba e discursos sobre a infância escolar. In: PINHEIRO,
Antônio Carlos F.; CURY, Cláudia Engler.(Orgs.) Histórias da Educação da Paraíba:
rememorar e comemorar. João Pessoa, 2012, Editora UFPB.
QUEIROGA, Maria do S. N. SENA, Fabiana. Infância e disciplinamento: as lições de dona
Nenê e a educação em Pombal. In: MACHADO, Charliton, J. dos S.; NUNES, Maria L. da S.
(Org.) Educação e educadoras na Paraíba do Século XX: práticas, leituras e
representações. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2011c.
ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu privado. In: SILVA, Tomaz T. da.
Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu. (Org.).
Petrópolis: Vozes, 1998.
VARELA, Júlia. O estatuto do saber pedagógico. In: SILVA, Tomaz T. (Org.). O sujeito da
educação: estudos foucaultianos. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
WALKERDINE, Valerie. Uma análise foucaultiana da pedagogia construtivista. In: SILVA,
Tomaz T. da. (Org.). Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de
governo do eu. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
Documentos pesquisados
JORNAL A IMPRENSA. Grave perigo. João Pessoa, 18 de março de 1915, p. 1 – 2º e 3º
quadrantes. Ano XII – nº 57, IHGP. Vol. 067(2).
Boletim da Diretoria geral da instrução pública primaria. Estado da Parahyba. 1889.
Paraíba. Decretos: Projeto de orçamento provincial para o ano de 1889. Caixa 001/1889/1891.
Boletim da Diretoria geral da instrução pública primaria. Projeto de orçamento
provincial. Estado da Parahyba. 1889. Paraíba. Decretos: Caixa 002/1893.
Boletim da Sociedade dos professores primários da Parahyba. Anno I. 15 de setembro de
1919. Numero 2. (IHGP).
Revista do ensino: orgam da directoria do ensino primário. Anno II. João Pessoa. Março de
1933. Nº 4 e 5.
JORNAL A UNIÃO. João Pessoa: Abr. de 1918.
JORNAL O EDUCADOR: organ do professorado primario. João Pessoa. Dez. de 1921.
i
Nossas pesquisas têm sido feitas no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba (IHGP), que tem um acervo
razoável de fonte histórica, quantitativamente falando, relacionada ao tema pesquisado, como os boletins de
educação intitulados “O Ensino é Notícia”, “Boletim da Sociedade dos Professores Primários da Paraíba”,
“Boletim de Educação” e o jornal “O Educador – Organ do Professorado Primario”, publicados entre os anos de
1915-1920, além do Jornal UNIÃO, de 1893, o Jornal da Parahyba e a Gazeta da Parahyba, ambos de finais do
Oitocentos.
ii
Discurso proferido por uma normalista, Mlle América Monteiro, na festa de entrega dos diplomas de formatura
na Escola Normal, em João Pessoa.
iii
As teses apresentadas nesse evento estão publicadas em obra comemorativa dos 60 anos do INEP, em 1999.
Rica e curiosa, pelas temáticas que aborda, sinais de um tempo e de uma sociedade.
iv
Contudo o teor dos discursos das teses apresentadas não se referia somente a, digamos, exaltar e glamourizar a
República ou a educação escolar. Muitas dessas teses cobram da União posição clara sobre métodos,
organização, condução da educação e do sistema de ensino, sob a legitimidade dos dados estatísticos das
diferentes realidades (como a Tese nº 41, de representante da Bahia, com extremo detalhamento - p. 222-244).
v
Existe vasta literatura tratando sobre a infância e a escola na/e Primeira república, temáticas das minhas
pesquisas, além das já referendadas no corpo deste artigo: NARODOWSKI, Mariano. Infancia y poder: la
conformación de La pedagogia moderna. Buenos Aires, Aique, 1995; MONARCHA, Carlos. (org.) Educação
da infância brasileira – 1875-1983. Campinas, SP: Autores Associados, 2001; FREITAS, Marcos Cezar de.;
KUHLMANN JÚNIOR, Moysés (orgs.). Os intelectuais na história da educação. São Paulo: Cortez, 2002;
Eliane M. T.; FILHO, Luciano M. de F. G.; VEIGA, Cynthia G. 500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003; DUSSEL, Inés; CARUSO, Marcelo. A invenção da sala de aula: uma genealogia
das formas de ensinar. São Paulo: Moderna, 2003; ROCHA, Marlos Bessa M. da. Matrizes da modernidade
republicana. Campinas, SP: Autores Associados, 2004; Brasília: Plano, 2004; MORAES, Carmen Silva V. O
ideário republicano e a educação. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2006; SOUZA, Rosa Fátima. Alicerces
da pátria – história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976); Campinas, SP: Mercado das Letras,
2009; FREITAS, Marcos C.; BICCAS, Maurilene de Souza. História da educação no Brasil (1926-1996). São
Paulo: Cortez, 2009; FREITAS, Marcos Cezar de. (org.) História social da infância no Brasil. 8a. ed. São Paulo:
Cortez, 2011; AZEVEDO, Crislane B.; STAMATTO, Maria I. S. Escola da ordem e do progresso: grupos
escolares em Sergipe e no Rio Grande do Norte. Brasília: Liber Livro, 2012; TEIVE, Gladys M. G;
DALLABRIDA, Norberto. A escola da república – os grupos escolares e a modernização em Santa Catarina
(1911-1918). São Paulo: Mercado das Letras, 2011, entre outras obras.
vi
Sobre a noção de fontes históricas, consultar cf. PINSKY, 2008; PINSKY & LUCA, 2009.
vii
Contudo, optei por observar e analisar comparativamente os discursos que representavam os grandes centros
de referência em educação, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, em relação aos discursos locais, ou
seja, a Paraíba, e em diferentes documentos/fontes.
viii
Utilizo a noção de governamentalidade no sentido foucaultiano de “arte de governar”, que o filósofo
ressignifica a partir do contexto do Século XVI até o final do Século XVIII, [...] sob múltiplos aspectos: [...]
governo de si mesmo, [...] governo das almas e das condutas, [...] governo das crianças, problemática central da
pedagogia [...]. [...] Governo do Estado, aquilo que chamaremos de “governo em sua forma política”
(FOUCAULT, 2000, p. 277-278, grifos meus).
ix
São por demais extensos os discursos locais que tratam da prevenção de problemas da visão.
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discursos republicanos e governo da infancia