DISCURSOS REPUBLICANOS E GOVERNO DA INFÂNCIA Maria do Socorro Nóbrega Queiroga Universidade Federal da Paraíba [email protected] Palavras-chave: Primeira República. Paraíba. Discursos sobre a Infância. Introdução Tem-se a impressão de que a criança de mentalidade acanhada, rude, como vulgarmente se diz, é um campo para amainar um terreno pedregoso, quase estéril; mas o educador, por seu dever apostolar, estuda a mente daquele ser, na aparência imperfeita, procura o método mais elementar para lhe despertar a luz da inteligência, tirando-o pouco a pouco do caos em que parece mergulhado. [...] um dia as idéias surgem daquele cérebro inculto. Ele cria as imagens, observa e raciocina! O educador rejubila-se, porque foi ele o construtor daquela inteligência. (PRADO, 1927 apud COSTA; SHENA; SCHMIDT, 1997, p. 104, grifos meus). A epígrafe acima e as palavras por mim acentuadas podem ser traduzidas como a representação do que significava a ‘chegada’ das ciências modernas na vida da escola e dos professores. Palavras que deixam transparecer, por vezes, a existência de certo glamour em relação a poder fazer parte de um seleto estrato intelectual e educacional que acessa e que usa as novas descobertas das ciências emergentes, cujos conhecimentos lhe serviam de suporte para compreender a realidade, de modo geral, e a educação, em particular, e neste caso, em um campo ainda muito recente e cheio de enigmas - o da garantia dos direitos sociais à educação. O fragmento do texto é representativo, ainda, de um tempo crucial para a definição de um novo ordenamento social, o período da Primeira República, ou seja, as três primeiras décadas do Século XX no cenário brasileiro: a retórica republicana de formação de uma nação verdadeiramente brasileira. A retórica secular de mudança que, na verdade, tem seu início no Século XIX, (GONDRA, 2007) da criação de um “homem novo”, que pudesse ser útil ao incipiente capitalismo e às aspirações de mudanças no campo da educação, sobretudo no que se refere aos sentidos sobre a infância, “quando a autonomia constitucional dos Estados possibilita e incentiva as políticas de instrução e educação, sob a crença inabalável no poder modelador da educação e da escola” (QUEIROGA, 2012 , p. 9). Esses acontecimentos, a visibilidade concedida à infância, à sua educação, sobretudo no espaço escolar, a preocupação ainda embrionária com a formação e o papel dos professores têm visibilidade nos discursos e nas práticas não discursivas e estão circularmente relacionados às mudanças radicais instauradas pela modernidade europeia: a instauração dos Estados-nação e a retórica iluminista no poder do conhecimento e da razão (HOBSBAWM, 1982a; 1982b; QUEIROGA, 2005), imbricados aos processos e movimentos migratórios e de urbanização das cidades emergentes. São discursos que podem ser traduzidos como signos representativos dos valores e das crenças de um tempo, daquilo que a sociedade brasileira considerava importante, sob os novos ares proporcionados pelo advento da ciência, cada vez mais próxima, e a iluminar as práticas não discursivas, a legitimar as verdades sobre a infância e a educação e a contribuir para a ampliação e a criação de outras e novas sensibilidades, que envolviam pontos de discórdia, de acirradas disputas e redes de negociações, como a escolarização feminina (GOUVÊA, 2004), no que se refere à ginástica na escola, ao acesso das meninas ao cinema e ao teatro, às leituras permitidas e proibidas etc. Segundo essa autora, em Minas Gerais, na década de quarenta do Século XIX, no caso da população feminina, o estado estabeleceu, nos regulamentos de institucionalização das escolas, diferenciações e limites em relação à escolarização masculina, circunscrevendo um projeto de educação da mulher secundário em relação ao homem, coerente com a posição subalterna que deveria assumir na vida adulta. (E cita o presidente da província da época): [...] Devem os mestres ser capazes de ensinar aos meninos o seguinte. Ler, escrever, contar as quatro operações da aritmética, quebrados, raízes quadradas e proporções [...] as mestres às meninas: devem ensinar-lhes tudo que convém que saiba uma mulher, que tem de ser a criada de si, e de seu marido: por isso a educação deve limitar-se a saber ler, escrever e contar até as quatro primeiras espécies de aritmética e todos os mais trabalhos de uma mulher no interior de sua casa (GOUVÊA, 2004, p. 191). Ressalte-se, todavia, que, no Brasil, o entusiasmo pela educação e pelo otimismo pedagógico (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1994; GOMES, 2011) e a necessidade de se constituir um Estado Nacional independente une intelectuais e educadores que “subjetivam os ares dos novos movimentos que chegam da Europa, alegram-se com as cores do progresso capitalista” (BURITI, 2013, p. 1). Tempo privilegiado, portanto, para a fabricação de aparatos de regulação no campo da educação, cujo corolário foi a criação de equipamentos de governo da infância, como os discursos produzidos sobre a infância escolar e o reconhecimento da escola como um instrumento fundamental para os avanços das conquistas republicanas e a produção de sensibilidades mais afeitas aos ideários republicanos acerca da educação que deveria ser promovida para as crianças. Pesquisas recentes em História da Educação dão visibilidade ao fato de que, no Brasil, desde o Século XIX, ao contrário do que se diz, era significativa e intensa - considerando-se a realidade da época - a relação de intercâmbio entre educadores brasileiros e estrangeiros. Sobre a proliferação dos contatos entre educadores brasileiros e estrangeiros, tratam muitos historiadores da educação, entre eles, Faria Filho (2007, p. 39-64), Monarcha (2009) e Gondra (2007): No movimento de constituição do Estado Nacional é possível evidenciar empréstimos e diálogos com modelos internacionais nos mais diversos domínios. [...] nos livros estrangeiros, nas traduções, no modelo de imprensa, materiais pedagógicos, métodos de ensino e até no vocabulário empregado. [...] No Brasil, no período republicano e, particularmente, por ocasião das reformas de inspiração escolanovista, nos anos 20 e 30 do século XX, houve uma busca por operar mudanças na educação nacional, tomando como parâmetro experiências realizadas no estrangeiro. [...] deram espaço à divulgação de obras publicadas no exterior, [...] educadores também criaram editoras, coleções de livros, cursos. Assumiram páginas e colunas nos jornais tratando de educação, nas quais denunciavam, criticavam, duvidavam, reclamavam, apontavam alternativas. (GONDRA, 2007, p. 7-8) Monarcha (2009), ao tratar do que chama de “ciência, técnica e utopia nos anos 19201930”, refere-se ao período efervescente do movimento dos Pioneiros da Escola Nova e à importância dessa experiência para as transformações na educação e na escola. Para ele, tratase de uma das mais bem acabadas expressões de uma rara ampliação da consciência social brasileira, [...] rica em desdobramentos não apenas como momento excepcional da história intelectual e social, mas também como patrimônio político e moral do país [...] uma polifonia de vozes [...] a tensão inerente à dialética entre localismo/comopolitismo, nacional/universal. Entre 1920 e 1930, décadas que na vida nacional são irremediavelmente polêmicas, em meio à irrupção dramática de tensões sociais, conflitos militares, impulsos industriais, ideologias modernizadoras, profundas desagregações, recrudescer de desesperos e visões de esperanças desesperançadas, assistia-se à mobilização de vanguardas estéticas, políticas e culturais, cujos protagonistas atraídos pelo magneto do novo auguravam a eminência da passagem apocalíptica para uma Era Nova. (p. 15 – 19) É curioso, então, pensar e investigar sobre o que estava ocorrendo na Paraíba nesse tempo pesquisado. Aqui também se respirava algo novo, em vários aspectos da vida social, e pelas frestas da vida em sociedade, ouviam-se e sentiam-se os ares da modernidade, através dos meios de comunicação que emergiam na época (QUEIROGA, 2011c), como demonstram as fontes pesquisadasi, e que sinalizam para uma parca, mas já existente produção discursiva e de práticas ligadas à educação, veiculadas em jornais, boletins de educação, entre outras fontes. Sob a influência dos centros urbanos mais desenvolvidos, como São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais e, sobretudo a capital da República, Rio de Janeiro, muito era esperado da educação como via para as mudanças desejadas e a ampliação de outras já em curso. É assim que, no tocante à educação brasileira e à paraibana, desde o final do Oitocentos, os temas dos debates e das preocupações de quem estava no ofício de educar se assemelhavam, em vários aspectos, como pode ser visto neste fragmento extraído de documentos locais, quando comparados à epígrafe citada: A escola tem assim por escopo ennobrecer o homem, bolear e espírito, cultivar o caracter, polir, aperfeiçoar, esmaltar. [...] Oh, a bella transformação do homem sob o mágico prestigio da escola! A beleza moral que surge! (Jornal A União, 1918, p. 1, grifos meu).ii A escola tem na sociedade moderna uma grande importância e é considerada a casa da creança; portanto deve ser construída para ella correspondendo a todas as suas necessidades. (Jornal O educador, 1921, grifos meus) Os exercícios de gymnastica, nas escolas de França, são obrigatórios desde 1869. [...] A gymnastica sendo a sciencia do aperfeiçoamento do corpo humano, deve ser physiologica. Tem por fim, dar ao corpo da creança força e saúde,e, alem disso, facilita todos os seus movimentos e age de umamaneira feliz sobre o desenvolvimento das faculdades intellectuaes e moraes. (Jornal O educador, 1921, grifos meus). São inúmeras produções, além de tratar de muitas temáticas relacionadas às preocupações seculares - e parte dos discursos de teor republicano - como se pode ver. Mas, quero destacar ainda os discursos veiculados durante a I Conferência Nacional de Educação, que ocorreu em 1924, em Curitibaiii, pela importância que tinha, na época, a Associação Brasileira de Educação (ABE) sua promotora. Uma dessas teses apresenta a preocupação daquele momento, em relação à função e ao papel da educação, e cujo título significativo é A educação no futuro: Houve um tempo em que os pedagogos, baseados nas teorias de Wallace e Darwin, julgavam que as faculdades mentais da eram transmitidas por seus ascendentes. Era um ponto de vista falso, que felizmente, já vai desaparecendo do domínio da ciência moderna. O indivíduo pode ser uma resultante do meio sob o aspecto social, mas nunca um herdeiro intelectual por lei atávica. Vejamos: os métodos mais modernos ou sistemas pedagógicos para instruir crianças anormais ou retardadas têm surtido para o educador moderno o melhor resultado (PRADO, Tese nº 11, p. 103, grifos meu). iv Com esses referenciais iniciais, quero problematizar esse tempo, que compreendeu a Primeira República no Brasilv, com a temática a ser desenvolvida neste ensaio, que encerra dois eixos de análise: a infância e a educação escolar e sua constituição nos discursos educacionais veiculados em documentos que versam sobre educação para as crianças na Paraíba. O objetivo é adentrar os diversos espaços de produção de sentidos, através de fontes vi que “falam” da infância, buscando ler e analisar os discursos e as práticas não discursivas, com seus enunciados, os sentidos atribuídos à infância e o lugar de produção desses discursos, como e onde circularam, em um tempo em que as disputas do poder-saber produziram bipolaridades e polarizações como: urbano-rural, nacional-local, em confluência com a retórica republicana, cujo corolário foi uma rica e significativa produção discursiva no campo da educação. A ideia de um recorte temporal se justifica por se reconhecer que a temporalidade é uma lente por meio da qual é possível pensar/ler as fontes. Compreendo, assim, a importância dos acontecimentos - inclusive os imediatamente anteriores à Primeira República, - como potencializadores de mudanças, consubstanciadas na complexidade e na efervescência cultural e política, mas fazendo um recorte para aquelas ligadas à questão específica da educação, forjadas no calor político cultural que desembocou cultural nesse acontecimento histórico, e o que ele representou de descontinuidades e rupturas em amplos aspectos da vida em sociedade. No interior dessas mudanças mais estruturais, o papel central da educação das crianças e, de modo geral, sua escolarização, assumem temas dos debates nacionais e locais, quando os discursos republicanos se colocam como vanguarda e importantes disseminadores das propostas de mudanças. Portanto, as décadas iniciais do Século XX no Brasil, objeto da nossa pesquisa, são ricas em acontecimentos históricos de monta e que tiveram como antecedente o ideário do republicanismo, que foram fundamentais para o desenrolar de estratégias e políticas públicas encetadas pelo estado brasileiro, como a criação de um sistema nacional de ensino, em 1934. Tomei como aporte teórico para a fundamentação das investigações as ferramentas teórico-metodológicas dos Estudos Culturais, com destaque para algumas noções importantes pensadas por Michael Foucault, como a arqueologia e a genealogia, ao analisar os discursos que compõem os documentos, e suas reflexões sobre o poder-saber, ao fazer as interfaces com o campo problemático da Educação. Isso significa compreender as formas que assumem as relações de poder, em diferentes âmbitos sociais, como produtoras de determinadas subjetividades e verdades. A perspectiva dos Estudos Culturais possibilita-me construir uma cartografia dos sentidos sobre a infância, em um cenário específico das estratégias das relações de poder e de produção de saber, ou seja, a Primeira República e o papel do Estado. Faço, contudo um recorte para a Paraíba, quanto às supostas rupturas, e poder observar as continuidades que constituíram uma suposta “visão republicana” e “moderna” sobre a infância, a escola, os conteúdos, os métodos e a formação dos professores, já que os discursos e as práticas em educação eram atravessados por ideais de mudanças e de construção de novas sensibilidades, que vinham sendo forjadas desde meados do Oitocentos. Nesse sentido, várias estratégias foram criadas para criar as possibilidades de realização de um projeto de sociedade novo; entre eles, a criação na Paraíba de instituições como o Grupo Escolar e a Escola Normal, como pode ser lido em texto relacionado às problemáticas e desafios da época (LEITÃO, 1987, p. 11): Nos velhos tempos monárquicos, o grande problema do ensino público era a falta de habilitação profissional dos nossos professores. Os presidentes da província, em suas falas e mensagens, referiam-se constantemente à falta de preparação dos nossos mestres como causa principal do atraso verificado nas escolas mantidas pelo governo. Preocupado com esse problema, o Presidente [...], em 1874 criou no Liceu Paraibano uma cadeira do ensino normal com o propósito de encaminhar para o magistério alguns alunos daquele educandário. A idéia, bem se vê, não era de todo satisfatória, o que levou o Presidente [...] a instalar, a 7 de abril de 1885, a Escola Normal, que prestou inestimáveis serviços à educação com a preparação de professores de melhor nível profissional. No âmbito metodológico de operacionalização da pesquisa, realizada, neste momento, em projetos como o de Iniciação Científica, as fontes pesquisadas, pela sua importância como arquivos, têm me permitido ir ao encontro da história da educação de uma época, de um lugar determinado, com seus valores e idealizações sobre como deveria ser a educação escolar das crianças. Meu objetivo é dar visibilidade às tramas, às crenças e às representações sobre a infância nos documentos/fontes de pesquisa da Paraíba, tecer comparações, destacar as descontinuidades e as permanências dos enunciados produzidos entre as décadas estudadas e fazer um contraponto desses discursos e dos produzidos e apresentados por representantes de diferentes estados,vii por ocasião da I Conferência Nacional de Educação. Parto do campo historiográfico da pesquisa na linhagem da Nova História Cultural, fundamental para nós, historiadores da educação, que fazemos pesquisas com objetos que dizem do cotidiano e das singularidades, importante também para se interrogarem as verdades presentes nos discursos, que nos apontam novas perspectivas de problematização e possibilidade de trazer à cena o individual, o subjetivo, como elementos legítimos fundamentais para a análise histórica, o que nos possibilita ressignificar a noção de fato histórico, de fonte e de tempo. Esse cenário de mudanças nas relações de poder/saber e nas formas de sociabilidade intensifica as preocupações com a educação das crianças e dos jovens, como garantia de desenvolvimento e de formação de uma nação ordeira, patriótica e em sintonia com a modernidade de referência, que eram os modelos produzidos na Europa por educadores de diferentes formações (GOUVÊA, 2004; QUEIROGA, 2005; MONARCHA, 2011). Processo mais geral, circularmente ligado à emergência da necessidade de esquadrinhar a população, de ter sobre ela um controle, e em particular, a infância, pela medicina social, predominantemente pela via da visão higienista eugenista e da psicologia, pela pedagogia científica, produzindo conceitos e legitimando-os na vida escolar, como “desenvolvimento individual”, “capacidade”, aptidão”, entre outros. Esse processo está circularmente ligado à necessidade de se esquadrinhar a população, de ter sobre ela um controle, de modo geral, e da infância, em particular, pela medicina social, predominantemente pela via da visão higienista eugenista e da Psicologia, do “desenvolvimento individual” e dos conceitos de “capacidade” e de “aptidão” desenvolvidos por essa ciência. São discursos que aparecem nos documentos analisados, de forma significativa, nos enunciados ligados à vontade de formar cidadãos normais para a construção da sociedade, através da educação escolar e familiar – no que se refere à capacidade física e psíquica sadias; aos sujeitos ajustados e úteis para um processo capitalista, que emerge em uma sociedade que se quer e se reconhece nova e que dão visibilidade à subjetivação da infância. Com base em determinados parâmetros ideais e filosóficos essencialistas, que serviram de base para legitimar os saberes produzidos pelas ciências humanas, desde a modernidade, esses discursos, em solo nacional e desenvolvimentista, revestem-se de enunciados higienistas e eugenistas no esquadrinhamento da infância pela expertise (ROSE, 1998) local. Interpretamolos no contexto das regularidades da trajetória genealógica de fabricação do homem anormal (FOUCAULT, 2002), da identidade de um homem “novo”, adaptável às novas demandas sociais. Discursos sobre a infância e a educação no contexto da Paraíba O cenário e os mecanismos que instituem os discursos sobre a educação e a escola podem ser compreendidos como estatutos de verdade de um tempo, articulado à realidade, o que nos possibilita compreender a instituição republicana da infância como um elemento fundante para um novo projeto de sociedade. Esse processo garantiu a criação dos diversos dispositivos de governoviii , os equipamentos coletivos de regulação do eu (FOUCAULT, 2001): instituições escolares, rituais e estratégias oficiais sobre o rendimento e a eficácia da educação, e inscreveu as crianças no universo das ciências criadas para perscrutá-las e classificá-las, fazendo acionar a invenção de crenças sobre um “dever ser criança”, “aquilo que a racionalidade moderna excluiu, desconheceu e definiu como passível de punição, de normalização e de medicalização” (ALBUQUERQUE JÚNIOR; VEIGA-NETO; SOUZA FILHO, 2008). Aos poucos, a educação, como aprendizagem, é substituída pelo disciplinamento nos espaços privados e fechados da casa e da escola. Os novos saberes autorizados a explicar racionalmente sobre como cuidar do “eu” passam a ordenar os métodos de ensino, a organização do espaço escolar e o currículo escolar desde os primórdios da criação dos colégios e das escolas no Brasil. O cenário político-cultural e econômico, desde o Império, e que culminou com a República, inicia um novo processo voltado para a formação de uma nação “genuinamente brasileira”. É na governamentalidade republicana, a partir do Século XIX, que políticas criadas para a escolarização das massas ligam-se à produção de procedimentos disciplinares, que tomam como dispositivo de suporte a psicologia infantil - nova tecnologia do eu na definição de novas metodologias de educação. Com igual importância, a entrada em cena de um novo dispositivo de controle da criança - a família - faz emergir um sentimento de preocupação com o seu disciplinamento - a fim de torná-las “pessoas honradas e homens racionais” (ALVAREZ –URIA; VARELA, 1998) - agora sob a influência de um novo elemento que vem tomando corpo na sociedade da época: a higiene ou as questões ligadas à higienização, como pode ser visto nos discursos locais: Janil, Javal e recentemente o professor Truc admittem a illuminação bilateral, tendo como opositores Trelet e quase todos os hygienistas allemães: Cohn, Erismaun, Zwek, etc. que defendem a illumunação unilateral. Segundo estes mestres a luz bilateral não é boa a visão, porque as que são contrarias, vindo das jannelas opostas, dão nascimento a duplas sombras que produzem uma falsa illuminação. (Jornal O Educador, Organ do Professor Primario, 1922, p.1, grifo meu)ix. Pode-se ver que, aos poucos, com a demanda por expansão da educação, surge a preocupação com a qualidade da educação atrelada a um sistema educacional comprometido com o desenvolvimento da nação, do emergente capitalismo. Em relação aos temas, outra característica dos discursos locais diz respeito aos enunciados com forte teor normativo, prescritivo e ufanista quanto às possibilidades e à influência dos saberes psicológico e pedagógico para darem conta de realizar as mudanças desejadas, sobretudo a partir da década de 1930, com a demanda popular efetiva de acesso ao saberes socialmente produzidos, o que culminou com a expansão da educação, tempo em que têm visibilidade as matérias de jornais, de revistas etc., demonstrando uma preocupação com a educação e a sociedade como sistemas interligados. Na Paraíba, não é diferente e se deixava influenciar pelos novos ares dos acontecimentos do mundo e do país, segundo os novos paradigmas europeus, como se vê no texto abaixo: FONTE: Boletim da Sociedade dos professores primários da Paraíba, 1919 (IHGP) Nas fontes cotejadas, os enunciados sobre a infância e a educação mostram claramente que ocorreram mudanças no teor dos seus conteúdos, mesmo se considerando que, de modo geral, estavam vinculados a idealizações sobre a infância, tomando como referencial padrões culturais europeus e brasileiros burgueses. Vale dizer que esses conteúdos mantinham regularidades nos seus sentidos, mas também apresentavam descontinuidades importantes de serem analisadas. Caracterizam-se, sobretudo, pela forte presença de recomendações com os cuidados higiênicos ligados aos conhecimentos da medicina, com grande repercussão no caso de (supostos) problemas de myopia; às temáticas ligadas à família, às capacidades das crianças, aos métodos de ensino, aos fatores endógenos inatos, associados a uma inteligência inferior ou a uma anormalidade de comportamento e, ainda, a preocupação com a chegada do cinema, a importância da ginástica, do pudor feminino a ser desenvolvido desde cedo nas meninas (Jornal A Imprensa, 1915; Jornal A União, 1918; Boletim da Sociedade dos professores primários da Paraíba, 1919; Jornal O educador, 1921), muitos dos quais estão, também, significativamente presentes nas teses da I Conferência... (COSTA, SHENA; SCHMIDT, 1996). Nos documentos que constituíram as fontes locais, veem-se, com significativa frequência, tabelas que, como guias, aconselhavam sobre os bons e os maus hábitos a serem perseguidos por educadores - pais e professores. Haveria que se promover, segundo os discursos da época, uma educação moral capaz de mostrar o verdadeiro sentimento que se deve ter diante das atitudes das crianças, endereçados às práticas e às instituições − incluindo a família − as quais, como maquinarias de governo da infância, são ressignificadas e recodificadas quanto às suas funções, a partir de então, de tal modo a se adequarem às prescrições dos novos equipamentos coletivos para a infância, legitimados pelos novos saberes psi e pedagógicos. São enunciados ligados às questões da modernidade desejada, aos ideais republicanos, imbricados nos processos e nos movimentos migratórios e de urbanização das cidades emergentes, da criação de um “homem novo”, preparado para assumir as frentes de trabalho exigidas pelo capitalismo incipiente. No dizer de Foucault (1977), corpos sãos, governados, regulados, segundo o esquadrinhamento e a economia do detalhe: dos gestos de obediência à consciência de uma diferença que os subtraíam. Junto e no interior das mudanças mais estruturais, o papel da educação das crianças e, de modo geral, sua escolarização que passam a ocupar a agenda das políticas públicas. Parte dos discursos ‘de verdade’, novos códigos pedagógicos foram criados e ordenaram e conduziram as novas práticas educativas na escola - movimento discursivo que realiza um importante deslocamento do ideário higienista e eugenista para o ideário centrado em enunciados desenvolvimentistas, cujo corolário foi a fabricação de novas subjetividades e de novas práticas discursivas. O caráter redentor da educação escolar se constitui na regularidade que atravessa todos os discursos. Assim, à escola é creditada a possibilidade de formar o indivíduo para a vida, em todos os seus aspectos, razão por que os desvios devem ser tratados. Percebe-se uma continuidade dessas características dos enunciados dos discursos sobre a infância que estão presentes desde o Século XIX e que vai se configurar, sobretudo, na preocupação em garantir a construção de uma sociedade segundo os moldes burgueses transportados da coroa. Bujes (2002) vai dizer que a construção da escola moderna esteve atrelada, desde o seu início, como maquinaria de regulação da infância, à construção da escola moderna, a necessidades ligadas à moral e à política, razões completamente imbricadas de regeneração das massas contra a perturbação da ordem social e de proteção do patrimônio privado. Assim, a fabricação de saberes e de aparatos técnicos fomentou uma descontinuidade dos processos de controle sobre a população, no sentido de que a ênfase nos hábitos é depois substituída por uma ênfase na degeneração e, posteriormente, no desenvolvimento infantil, uma produção central e estratégica do normal, da norma (WALKERDINE, 1998): da ênfase dos problemas do âmbito moral para o científico. Só mais tarde é que os saberes que compõem as ciências humanas, sobretudo a Psicologia e a Pedagogia, vão circunscrever, patologizar e individualizar as questões que envolvem o sujeito no processo de aprendizagem, transformando os códigos de saber sobre elas, produzindo classificações da infância em “anormal”, “inadaptada” entre outros sentidos, com vistas a atualizar ordenamentos prescritivos que logo cegarão à escola. Esses delineamentos históricos acerca da infância e das crianças e as condições sociais que possibilitaram a produção dos diversos enunciados que as caracterizam é que nos possibilitam fazer a história do presente, mesmo sem deixar de ler, nesses discursos e nos que silenciam, produções de verdades que reforçam e legitimam preconceitos, práticas discriminatórias e estigmas que fabricam subjetividades e realidades de exclusão. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. de; VEIGA-NETO, Alfredo; SOUSA FILHO, Alípio de. Uma cartografia das margens. 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João Pessoa, 18 de março de 1915, p. 1 – 2º e 3º quadrantes. Ano XII – nº 57, IHGP. Vol. 067(2). Boletim da Diretoria geral da instrução pública primaria. Estado da Parahyba. 1889. Paraíba. Decretos: Projeto de orçamento provincial para o ano de 1889. Caixa 001/1889/1891. Boletim da Diretoria geral da instrução pública primaria. Projeto de orçamento provincial. Estado da Parahyba. 1889. Paraíba. Decretos: Caixa 002/1893. Boletim da Sociedade dos professores primários da Parahyba. Anno I. 15 de setembro de 1919. Numero 2. (IHGP). Revista do ensino: orgam da directoria do ensino primário. Anno II. João Pessoa. Março de 1933. Nº 4 e 5. JORNAL A UNIÃO. João Pessoa: Abr. de 1918. JORNAL O EDUCADOR: organ do professorado primario. João Pessoa. Dez. de 1921. i Nossas pesquisas têm sido feitas no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba (IHGP), que tem um acervo razoável de fonte histórica, quantitativamente falando, relacionada ao tema pesquisado, como os boletins de educação intitulados “O Ensino é Notícia”, “Boletim da Sociedade dos Professores Primários da Paraíba”, “Boletim de Educação” e o jornal “O Educador – Organ do Professorado Primario”, publicados entre os anos de 1915-1920, além do Jornal UNIÃO, de 1893, o Jornal da Parahyba e a Gazeta da Parahyba, ambos de finais do Oitocentos. ii Discurso proferido por uma normalista, Mlle América Monteiro, na festa de entrega dos diplomas de formatura na Escola Normal, em João Pessoa. iii As teses apresentadas nesse evento estão publicadas em obra comemorativa dos 60 anos do INEP, em 1999. Rica e curiosa, pelas temáticas que aborda, sinais de um tempo e de uma sociedade. iv Contudo o teor dos discursos das teses apresentadas não se referia somente a, digamos, exaltar e glamourizar a República ou a educação escolar. Muitas dessas teses cobram da União posição clara sobre métodos, organização, condução da educação e do sistema de ensino, sob a legitimidade dos dados estatísticos das diferentes realidades (como a Tese nº 41, de representante da Bahia, com extremo detalhamento - p. 222-244). v Existe vasta literatura tratando sobre a infância e a escola na/e Primeira república, temáticas das minhas pesquisas, além das já referendadas no corpo deste artigo: NARODOWSKI, Mariano. Infancia y poder: la conformación de La pedagogia moderna. Buenos Aires, Aique, 1995; MONARCHA, Carlos. (org.) Educação da infância brasileira – 1875-1983. Campinas, SP: Autores Associados, 2001; FREITAS, Marcos Cezar de.; KUHLMANN JÚNIOR, Moysés (orgs.). Os intelectuais na história da educação. São Paulo: Cortez, 2002; Eliane M. T.; FILHO, Luciano M. de F. G.; VEIGA, Cynthia G. 500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003; DUSSEL, Inés; CARUSO, Marcelo. A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. São Paulo: Moderna, 2003; ROCHA, Marlos Bessa M. da. Matrizes da modernidade republicana. Campinas, SP: Autores Associados, 2004; Brasília: Plano, 2004; MORAES, Carmen Silva V. O ideário republicano e a educação. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2006; SOUZA, Rosa Fátima. Alicerces da pátria – história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976); Campinas, SP: Mercado das Letras, 2009; FREITAS, Marcos C.; BICCAS, Maurilene de Souza. História da educação no Brasil (1926-1996). São Paulo: Cortez, 2009; FREITAS, Marcos Cezar de. (org.) História social da infância no Brasil. 8a. ed. São Paulo: Cortez, 2011; AZEVEDO, Crislane B.; STAMATTO, Maria I. S. Escola da ordem e do progresso: grupos escolares em Sergipe e no Rio Grande do Norte. Brasília: Liber Livro, 2012; TEIVE, Gladys M. G; DALLABRIDA, Norberto. A escola da república – os grupos escolares e a modernização em Santa Catarina (1911-1918). São Paulo: Mercado das Letras, 2011, entre outras obras. vi Sobre a noção de fontes históricas, consultar cf. PINSKY, 2008; PINSKY & LUCA, 2009. vii Contudo, optei por observar e analisar comparativamente os discursos que representavam os grandes centros de referência em educação, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, em relação aos discursos locais, ou seja, a Paraíba, e em diferentes documentos/fontes. viii Utilizo a noção de governamentalidade no sentido foucaultiano de “arte de governar”, que o filósofo ressignifica a partir do contexto do Século XVI até o final do Século XVIII, [...] sob múltiplos aspectos: [...] governo de si mesmo, [...] governo das almas e das condutas, [...] governo das crianças, problemática central da pedagogia [...]. [...] Governo do Estado, aquilo que chamaremos de “governo em sua forma política” (FOUCAULT, 2000, p. 277-278, grifos meus). ix São por demais extensos os discursos locais que tratam da prevenção de problemas da visão.