QUE DIREITO EU TENHO AO MEU CORPO? DIMENSÕES DA
SAÚDE E O DIREITO À DIFERENÇA EM UMA ESCOLA FEDERAL
DE EDUCAÇÃO BÁSICA DO RIO DE JANEIRO
Marcio Nogueira de Sá;
Colégio Pedro II - LACIIPED, [email protected]
Marcia Maria Baptista Maretti;
Colégio Pedro II- LACIIPED, [email protected]
Bruno Rafael Soares;
Colégio Pedro II - LACIIPED, [email protected]
Antônio Rodrigo Medeiros Ramos
Colégio Pedro II - LACIIPED, [email protected]
Kátia Regina Xavier da Silva;
Colégio Pedro II - LACIIPED/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected]
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar as percepções de estudantes de uma Escola Federal de
Educação Básica, Técnica e Tecnológica acerca das dimensões da saúde e refletir sobre as
repercussões dessas concepções para a problematização do direito à diferença. As informações
analisadas resultam de um projeto transdisciplinar desenvolvido pelo Laboratório de Criatividade,
Inclusão e Inovação Pedagógica (LACIIPED), no ano de 2014, intitulado: Que direito eu tenho ao meu
corpo? O estudo caracteriza-se como uma pesquisa-ação e adota como fundamento a perspectiva da
aprendizagem significativa. O corpus de análise foi composto por 104 formulários de avaliação
preenchidos por estudantes do oitavo ano do Ensino Fundamental ao primeiro ano do Ensino Médio.
Concluímos que os estudantes articulam seus discursos, de forma entrecruzada, apontando interfaces
entre a saúde mental, física e social. A temática saúde abre espaço para a discussão sobre a diversidade
e a diferença, além de possibilitar o diálogo inter e transdisciplinar, permitindo a diversificação de
linguagens, recursos e estratégias didáticas, com vistas ao desenvolvimento de posturas que têm como
pressuposto central o reconhecimento e a valorização do outro e o respeito aos seus modos de vida.
Palavras-chave:
saúde,
interculturalidade,
práticas
pedagógicas
INTRODUÇÃO
O termo saúde suscita debates acalorados na sociedade em geral que repercutem, de
forma bastante específica, no espaço escolar. A compreensão do conceito de saúde não é
consensual embora tenhamos, desde 1946, uma definição proposta pela Organização Mundial
de Saúde (OMS). De acordo a OMS, saúde é “o estado completo de bem-estar físico, mental e
social e, não só a ausência de doença”.
A saúde faz parte do conjunto de temas transversais do currículo escolar brasileiro e
sua discussão ganha força na medida em que ela é significada e ressignificada no cotidiano
dos estudantes (BUSQUETS et.al., 1999). O discurso midiático também colabora para criação
de representações sobre a saúde, pois segundo Teo (2010), as ideias propagadas pela mídia
influenciam os comportamentos, os hábitos e o estilo de vida dos sujeitos, impondo, explícita
ou implicitamente, padrões estéticos, sugerindo práticas alimentares, produzindo sentidos
coletivos e transmitindo conteúdos ideológicos que contribuem para a criação da imagem do
sujeito saudável.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), “a despeito de que
educar para a saúde seja responsabilidade de muitas outras instâncias, em especial dos
próprios serviços de saúde, a escola ainda é a instituição que, privilegiadamente, pode se
transformar num espaço genuíno de promoção da saúde” (1997, p.259). Sendo assim, cabe à
escola desenvolver conteúdos, estratégias, metodologias, que promovam a construção da
consciência cidadã e despertem, nos estudantes, a preocupação com a saúde sob o ponto de
vista sistêmico: “implica, ainda, na consideração dos aspectos éticos relacionados ao direito à
vida e à saúde, aos direitos e deveres, às ações e omissões de indivíduos e grupos sociais, dos
serviços privados e do poder público” (PCN's, 1997, p.250).
Desta forma, a discussão sobre a temática saúde corrobora para reflexões mais
amplas que envolvem, sobretudo, os processos de desenvolvimento da autoconsciência e o
olhar sobre a dialética identidade/alteridade, numa perspectiva intercultural (CANDAU,
2012). Reconhece-se desse modo, o poder da ideologia no estabelecimento de identidades que
classificam os sujeitos, tomando como referência binarismos entre os quais normal x anormal;
saudável x doente entre outros. Para Candau (2012),
A interculturalidade orienta processos que têm por base o reconhecimento do direito
à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social.
Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que
pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a esta
realidade. Não ignora as relações de poder presentes nas relações sociais e
interpessoais. Reconhece e assume os conflitos procurando as estratégias mais
adequadas para enfrentá-los (p.46).
Este artigo tem como objetivo analisar as percepções de estudantes de uma Escola
Federal de Educação Básica, Técnica e Tecnológica (EBTT) acerca das dimensões da saúde e
refletir sobre as repercussões dessas concepções para a problematização do direito à diferença.
As informações analisadas resultam de um projeto transdisciplinar desenvolvido pelo
Laboratório de Criatividade, Inclusão e Inovação Pedagógica (LACIIPED), no ano de 2014,
intitulado: Que direito eu tenho ao meu corpo?
A primeira etapa do projeto se constituiu de um processo de formação continuada e
em serviço onde membros do LACIIPED, todos professores pertencentes à EBTT, analisaram
e problematizaram o conceito de saúde definido pela OMS. Os resultados desse processo
deram origem ao segundo momento, que foi a construção de um material didático
transdisciplinar com foco na problematização do conceito de saúde, nas suas dimensões física,
mental e social. No terceiro momento, esse material foi utilizado como suporte pedagógico
para a problematização do tema em turmas do Ensino Fundamental e Médio através de uma
exposição oral seguida de debate, realizada no laboratório de informática. Ao final da
atividade, os estudantes registraram suas impressões num formulário de avaliação, através do
qual poderiam estabelecer relações entre: (1) autoimagem, autoestima e saúde mental, (2)
obesidade e saúde física e (3) violência (na/da escola) e saúde social.
METODOLOGIA
Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa-ação na perspectiva Barbier (2004),
cujo ponto de partida e o ponto de chegada é a própria prática, mediada pela problematização
teórica, que visa, sobretudo, articular pensamento e ação. A pesquisa também adota como
fundamento a perspectiva da aprendizagem significativa (AUSUBEL & NOVAK, 1980),
através da qual defende-se que o significado lógico (oriundo da área de conhecimento e dos
conteúdos) e o significado psicológico (proveniente das experiências pessoais) estão
intimamente relacionados, na produção e desenvolvimento de materiais didáticos.
O corpus de análise foi composto por 104 formulários de avaliação preenchidos por
estudantes do oitavo ano do Ensino Fundamental ao primeiro ano do Ensino Médio. Os
estudantes deveriam escolher uma, dentre as três dimensões da saúde e tecer suas
considerações. No total, 27 alunos escolheram falar sobre a saúde mental, 64 optaram por
falar sobre a saúde física e 13 sobre a saúde social. A análise dos dados foi realizada com o
auxílio da técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 1977) que envolveu três etapas: préanálise (leitura flutuante), descrição analítica (seleção de trechos relevantes e classificação nas
categorias a priori) e interpretação inferencial (interpretação das respostas com base na
teoria).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O formulário de avaliação analisado propôs três questionamentos sobre a saúde
mental: (1) de que maneira a saúde mental se expressa? (2) que relações podemos estabelecer
entre autoimagem, autoestima e saúde mental? E, (3) quando o assunto é autoimagem e
autoestima, que papel você quer protagonizar? As duas primeiras questões visaram identificar
se o jovem se apropriou dos conceitos trabalhados e a terceira pergunta o desafiou a propor
formas pessoais de buscar e conseguir a necessária saúde mental, na condição de protagonista
de sua própria história.
Foi recorrente nos textos dos jovens a definição de saúde mental enquanto a sensação
de bem-estar com expressão nas relações do indivíduo com ele mesmo, com o outro e com a
sociedade, como no relato de SM21 que define saúde mental como “saber lidar com as boas
emoções e também com aquelas desagradáveis, mas que fazem parte da vida, é estar de bem
consigo mesmo e com os outros, aceitar as exigências da vida”; ou, no relato de SM21,
quando percebe que “apesar de não ter nenhuma definição concreta, a saúde mental é muito
comum e varia de pessoa para pessoa”.
Um dos estudantes aponta um fator que não esteve presente nos outros textos e que
pode trazer algumas respostas quando nos detemos nos conceitos num tempo e espaço
determinado. Ele afirma que “a saúde mental se expressa em muitas formas e de acordo com
alguns fatores, principalmente a cultura... equilíbrio entre seus sentimentos, pensamentos e
outras questões emocionais e cognitivas” (SM5).
SM14 traz para discussão o aspecto que SM5 apresenta, no entanto, de uma forma
bem mais contemporânea, quando reconhece que “a primeira coisa que vem a nossa cabeça
são corpos magros, fortes e bons índices de doenças”. Claro está, que queria se referir a
índices de saúde, pois acrescenta “como diabetes e pressão alta”. Já SM18 adverte que a saúde
1
A partir deste trecho nos referiremos aos relatos dos alunos utilizando as iniciais das dimensões de saúde e a
sequência numérica que obedece a ordem das respostas dentro da dimensão citada: Saúde Mental (SM), Saúde
Física (SF) e Saúde Social (SS).
mental está intimamente ligada a “fazer coisas que te façam bem ou não, conviver com
pessoas agradáveis, ou que te façam algum tipo de julgamento, que possam afetar na sua
saúde, se você sofre algum tipo de violência ou bullying, etc.”. Dentre os relatos chama
atenção a afirmativa de SM26 que acrescenta uma dimensão espiritual da saúde que não
estava prevista nos questionamentos. O relato descreve “ser essencial estar com a saúde
mental em alta para estar bem consigo mesmo. Seu estado espiritual não depende do seu
estado físico, e sim mental”. No que se refere a esse último aspecto citado por SM26, isto é, a
dimensão espiritual, é possível afirmar que esta também tem sido uma preocupação dos
estudiosos no campo da saúde.
Segundo Fleck (2000) “a valorização da dimensão 'não-material' ou espiritual em
saúde tem crescido em importância” (p.37), tendo sido objeto de discussão na 101ª sessão da
Assembleia Mundial de Saúde, que propôs a inclusão da dimensão espiritual na definição do
conceito de saúde da OMS. Volcan et. al. (2003) define saúde espiritual como “o conjunto de
todas as emoções e convicções de natureza não material, com a suposição de que há mais no
viver do que pode ser percebido ou plenamente compreendido (...) não se limitando a
qualquer tipo específico de crença ou prática religiosa” (p. 441).
A expressão Mens sana in corpore sano também esteve presente em alguns relatos.
SM16 resume que “devemos buscar em primeiro lugar a saúde mental e corporal, lembrando
que beleza não é sinônimo de saúde. Portanto, o importante é ser saudável e ter uma visão
positiva de si mesmo. Só assim teremos mente sã e o corpo são”. De uma forma geral, os
jovens demonstraram conhecimento sobre os conceitos de autoestima e autoimagem. Foi
recorrente nas afirmativas a inter-relação existente entre esses dois aspectos como relevante à
saúde mental, conforme sintetiza SM5: “se me sinto bem, minha autoimagem me agrada,
minha autoestima é alta e minha saúde mental, melhor ainda!”
Contudo, nem tudo está bem, pois as exigências do mundo moderno apresentam
alguns desconfortos, que SM6 descreve com precisão: “quando o assunto é autoimagem e
autoestima queremos mudar quem somos para sermos aceitos em determinado grupo social,
mudando nossa imagem e não demonstrando nossas principais diferenças”. A esse relato vem
se juntar a discussão sobre o fenômeno selfie presente no cotidiano da vida moderna,
atingindo jovens e adultos. SM9 reconhece que esse dispositivo pode tanto atuar no reforço
positivo ou negativo de uma autoimagem alterando de forma significativa a autoestima. Ele
reconhece que “particularmente, eu não gosto muito de tirar selfie e postá-las, portanto, minha
autoestima não sofre interferências dos comentários positivos que as selfies propiciam”.
Lembra ainda SM13 que “todos na sociedade vivem de imagem, logo devemos preservá-la e
vigiá-la rigorosamente, o tempo todo”.
Gobitta & Guzzo (2002) assinalam que os estudos sobre a autoestima se justificam,
entre outros motivos, por estarem relacionados à saúde mental ou bem-estar psicológico. Os
resultados da pesquisa desenvolvida por Marriel et.al. (2006), com alunos da 7ª e 8ª séries do
ensino fundamental e 1º e 2º anos do ensino médio, apontam que “alunos de baixa auto-estima
têm relacionamentos mais difíceis na escola, colocando-se mais frequentemente na posição de
vítimas de violência” (p.45). Para Dini, Quaresma e Ferreira (2004), “a auto-estima pode ser
definida como o sentimento, o apreço e a consideração que uma pessoa sente por si própria
(...). A auto-imagem é o centro da vida subjetiva do indivíduo, determinando seus
pensamentos, sentimentos e comportamentos” (p.48).
Talvez, para esse grupo de jovens, o protagonismo tenha sido o questionamento mais
difícil, pois a consciência em relação às escolhas necessárias para a manutenção de uma saúde
mental depende, segundo o estudioso piagetiano La Taille (2010) de uma autonomia moral e
de uma razão autônoma. Na conceituação piagetiana, “no caminho para a autonomia ou
reciprocidade universal, há os estágios da moral heterônoma, aqueles durante os quais os
indivíduos legitimam os valores e normas impostas pela cultura na qual vivem” (LA TAILLE,
2010 p. 108). Dos vinte e sete relatos analisados, somente sete jovens se posicionaram quanto
a tomar em suas mãos a tarefa de buscar saúde mental através do fortalecimento de sua
autoestima e valorização de sua autoimagem: “Eu gostaria de possuir o mesmo pensamento
(...) onde a beleza pouco importa” (SM3), “Aceitar quem você é na realidade” (SM7) e “Não
quero me sentir mal com os padrões impostos pela sociedade” (SM12).
No que se refere a essa primeira dimensão de análise, podemos considerar algumas
hipóteses que podem justificar esse baixo índice de respostas frente ao protagonismo acerca
da saúde mental: os jovens não entenderam a pergunta; não se reconheceram como objeto de
reflexão; é preciso um certo tempo para reelaborar esses conceitos; ou sabem,
inconscientemente, que alterar essa dinâmica social requer não só um protagonista, mas todo
um elenco.
Dos 104 formulários de avaliação, 64 estudantes optaram por discutir aspectos sobre
a saúde física mobilizados por três perguntas: (1) em que condições a saúde pode ser obtida?
(2) que relações podemos manter entre obesidade e saúde física? E, (3) o que você tem feito
para equilibrar o seu balanço energético? A primeira pergunta suscitou respostas relacionadas
à alimentação saudável, à prática de exercícios físicos, à prevenção de doenças, à melhora da
autoestima e de hábitos de saúde, entre as quais podemos mencionar:
Para termos a saúde física temos que cultivar hábitos que no geral são difíceis de
manter em pleno século XXI, tais como: exercícios para não ficar sedentários e
alimentação balanceada, mas também questões genéticas e o lugar onde você se
encontra são diretamente influenciados na sua saúde (SF1)
De acordo com Nahas (2003), atitudes positivas em relação à saúde são primordiais
para um estilo de vida saudável. Essa mesma ideia esteve presente nos registros dos jovens.
Por isso, a construção de atitudes positivas em relação à atividade física se faz necessária nas
práticas pedagógicas escolares voltadas para a saúde. Em relação à segunda questão, que
abordou as relações entre obesidade e saúde física, as respostas se direcionaram à obesidade
como uma doença que é causada por estilos de vida não-saudáveis. Outra abordagem feita
pelos alunos foi o reconhecimento da obesidade como uma doença, não só física, mas também
mental e social. Destacamos abaixo uma resposta que ilustra essa compreensão:
A obesidade é causada por consumo de alimentos com altos índices calóricos e uma
pré-disposição genética. Ela acarreta muitos problemas de saúde, tanto mental,
quanto físico, como depressão, diabetes, problemas cardíacos e respiratórios, dessa
forma tendo uma saúde debilitada (SF35).
Souza M. et. al. (2014) associam a obesidade e o sobrepeso a um problema de saúde
pública. Os autores afirmam que esses problemas são uma tendência mundial. Uma pesquisa
realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2009, com alunos do
9º de escolaridade, em todas as capitais brasileiras constatou que “a obesidade e o sobrepeso
foram os principais problemas nutricionais identificados (idem, p.713). Nahas (2003) afirma
que o excesso de gordura corporal está associado a vários outros problemas de saúde, como
hipertensão, doenças do coração e diabetes. Nas falas dos estudantes estas associações foram
colocadas, e, de certo modo, até ampliadas ao apontarem a obesidade relacionada também ao
câncer e a autoestima. Segundo Souza D. et. al. (2010),
independentemente da causa básica que desencadeie a obesidade, existem dois
fatores que estão intimamente relacionados à sua alta prevalência: elevada ingestão
energética e estilo de vida sedentário, que são responsáveis pelo desequilíbrio no
balanço energético, podendo levar, em logo prazo, ao aumento de massa corporal. O
balanço energético é resultado da diferença entre a ingestão energética e o gasto
energético (p.886).
A terceira pergunta esteve relacionada ao que os estudantes têm feito para equilibrar
o balanço energético. Algumas respostas associaram o tema à alimentação equilibrada, prática
de exercícios, equilíbrio físico, emocional e social, além da possibilidade de uma orientação
nutricional, como é o caso de SF27: “para equilibrar o balanço energético eu tento me
alimentar bem, comendo frutas, legumes, etc. Tendo uma alimentação equilibrada, assim eu
tenho mais disposição para fazer atividades físicas”.
No total, 13 alunos escolheram abordar a saúde social e responder as seguintes
questões: (1) em que contexto o direito às interações sociais e coletivas satisfatórias pode ser
garantido? (2) que relações podemos estabelecer entre violência (na/da escola) e saúde social?
E, por fim, (3) se a diferença é o que nos torna iguais, como garantir a todos e a todas, o
direito a diferença?
Em relação a primeira questão, observamos uma difusão de entendimentos, que
convergem para um senso de saúde social traduzido pela ideia de respeito ao próximo. Apesar
dos esforços empreendidos pelos estudantes na tentativa de formular um conceito de saúde
social, verifica-se a indicação de ações e valores que, na visão deles, constituem direitos e
deveres. Numa análise geral, admite-se que muitas respostas se dirigem a ações ou condutas
que explicam e justificam comportamentos socialmente aceitáveis, ou politicamente corretos.
Palavras como responsabilidade, respeito, união e inclusão, são as tônicas para “o caminho” a
se chegar à saúde social. A fala abaixo ilustra o que foi observado:
O direito às interações pessoais e coletivas se tornam ou são satisfatórias quando a
sociedade interage e se relaciona de forma respeitável, educada e agradável com
qualquer indivíduo sem nenhum tipo de violência física ou verbal, pelo simples fato
de que esse indivíduo é diferente ou/e que não corresponde às expectativas da
sociedade (SS1).
Na visão dos estudantes, a interação em sociedade exige o respeito às diferenças,
sendo a responsabilidade e o respeito condições sine qua non para o convívio social. A
responsabilidade deve se dar de uma maneira consciente e imperativa, com um peso de dever,
isto é, como uma obrigação. O respeito é visto, em alguns momentos, como dever e, em
outros, como direito. Outro aspecto diz respeito à representação da educação escolar como a
“mola propulsora” para o alcance da saúde social.
Como fato estabelecido nas respostas dos estudantes, pontua-se a educação escolar e
não a educação em geral (que se dá em outras instituições e espaços físicos além da escola),
como o principal pilar para o alcance de uma saúde social. Talvez essa ideia, fortemente
observada, resulte do fato de serem alunos jovens, com vivências e experiências centradas no
convívio do espaço escolar, que cobra, ostensivamente, atitudes de respeito pautadas no
princípio da reciprocidade, que tem um caráter transcultural e denota um sentido universal:
“trate todos os homens da mesma forma, ou seja, como você gostaria de ser tratado” (HÖFFE,
2004, p.465-466).
A noção de inclusão social e educacional aparece de forma naturalizada, quase que
como algo já contido no cotidiano dos alunos. Algumas falas ressaltam o reconhecimento das
diferenças e o respeito à individualidade, não remetendo a qualquer tipo de segregação.
Nessas falas, as diferenças pessoais, assim como as diferenças coletivas, parecem não
constituir uma barreira para o convívio harmonioso entre indivíduos que coabitam os mesmos
espaços sociais.
No que se refere as relações estabelecidas entre a violência (na/da escola) e a saúde
social fica evidente a consciência dos alunos de que as diferentes formas de violência na
escola podem gerar consequências físicas e psicológicas ao longo de toda a vida dos
indivíduos. Dentre as formas de violência citadas pelos estudantes podemos mencionar o
desrespeito dos alunos em relação ao professor, assim como o inverso; as pichações
encontradas no interior das escolas e o vandalismo. O bullying foi pontuado como o tipo de
violência mais recorrente, sendo esse geralmente praticado em alunos vistos pelos agressores
como sendo os mais indefesos e/ou “diferentes”:
[...] as relações que podemos estabelecer entre violência na escola e saúde social é
de um mal convívio, não aceitação ou de um desrespeito social com uma ou mais
pessoas por serem consideradas “diferentes” ou por terem alguma característica que
as torna “inferiores” e indefesas aos agressores (SS4).
Apesar do reconhecimento de que a educação escolar é uma das maiores
responsáveis (ou, quem sabe, a maior responsável) por coibir situações que incorram em
violência, os estudantes atribuem, em alguns relatos, certa culpa à instituição de ensino pela
ausência de uma observação mais constante para estes casos. Contudo, eles também apontam
soluções para atos violentos entre as quais o diálogo entre os alunos, temas abordados pela
escola, a adoção de punições mais severas, a busca do motivo da ação violenta e o respeito de
uma forma geral. A maior ênfase é, porém, situada no respeito às diferenças individuais; no
combate ao preconceito, sendo este da forma que for, e na garantia institucionalizada do
direito às interações. Também foi proposto que o aluno agressor receba orientação tanto da
escola como de profissionais da área.
A terceira questão propunha que os estudantes refletissem sobre a garantia do direito
às diferenças. A aceitação, o diálogo, a educação, a justiça em comum e os valores foram
abordados como temas que deveriam ser maciçamente discutidos nas escolas, uma vez ser
este espaço, na visão dos estudantes, o mais apropriado para este fim. De uma maneira quase
ingênua, mas de forma bastante consciente, houve citações da legalidade, dos Direitos
Humanos e da ONU, sem os devidos aprofundamentos que estes temas exigem: “É uma coisa
que nos torna iguais, todos nós somos humanos. Não é à toa que a ONU fez trinta artigos
sobre Direitos Humanos, de antigamente até hoje, muitos países não respeitam e violam os
Direitos Humanos (...)” (SS3).
De um modo geral, os estudantes usam como premissa maior o fato de que todos são
seres humanos e como tal, cada um possui características diferentes uns dos outros. Estas
características, inerentes as suas personalidades, os permitem perceber que todos estão longe
da perfeição, mesmo que esta perfeição tente ser alcançada seguindo alguns padrões
preestabelecidos pela sociedade:
[...] a sociedade acha adequado você ser magra, ter um corpo malhado. Se você não
apresenta as características adequadas de um corpo, algumas pessoas passam a te
perseguir por isso, e então acontece o bullying. Pessoas que apresentam o peso
acima da média são extremamente perseguidas, mesmo sem ter feito algo de ruim
para alguém. Para conseguir o peso ideal e estar de acordo com as normas da
sociedade, muitas mulheres acabam adotando métodos que prejudicam a sua saúde,
mas que as deixam magras (SS10).
A diferença é um fato, presente e reconhecido nas falas dos estudantes. A noção de
respeito pessoal e respeito ao próximo também são tônicas observadas. Tanto o direito à
diferença quanto o respeito às diferenças são, resguardando as especificidades, protegidos por
lei. Contudo, a legalidade tem sido uma das principais garantias para que o direito às
diferenças seja respeitado. Embora esse seja um importante passo para construirmos uma
sociedade mais justa e igualitária, sonhamos que um dia a consciência da alteridade seja um
parâmetro compartilhado por todos e que não seja necessário recorrer à legalidade como o
principal argumento para resguardar o respeito às diferenças.
CONCLUSÕES
O presente artigo teve como objetivo analisar as percepções de estudantes de uma
Escola Federal de Educação Básica, Técnica e Tecnológica (EBTT) acerca das dimensões da
saúde e refletir sobre as repercussões dessas concepções para a problematização do direito à
diferença. Foi possível detectar, a partir das falas dos estudantes, uma postura de abertura e
flexibilidade, tanto em relação a discussão ampliada sobre a temática saúde, quanto em
relação a própria compreensão integrada do conceito. Se, por um lado, a análise superficial do
conceito de saúde proposto pela OMS sugere uma lógica homogeneizadora que pode
desencadear certos “padrões” para definir quem é saudável ou não, por outro, os estudantes
articulam seus discursos, de forma entrecruzada, apontando interfaces entre a saúde mental,
física e social, além de observar a existência de dimensões não materiais, como a
espiritualidade.
Entendemos, assim como Marriel et. al. (2006), que a escola é um espaço
privilegiado de transformação do mundo num lugar menos violento, através da
conscientização, da valorização positiva e do diálogo sobre as diferenças. Também
concordamos com Candau (2011) quando defende que “a escola tem um papel importante na
perspectiva de reconhecer, valorizar e empoderar sujeitos socioculturais subalternizados e
negados” (p.253). A temática saúde abre espaço para essa discussão, na medida em que
possibilita o diálogo inter e transdisciplinar, permitindo a diversificação de linguagens,
recursos e estratégias didáticas, com vistas ao desenvolvimento de posturas que têm como
pressuposto central o reconhecimento e a valorização do outro e o respeito aos seus modos de
vida.
No intuito de respeitar e valorizar as diferenças, é fundamental que a escola básica
invista em experiências coletivas e colaborativas que promovam formas diversificadas de
ensino e avaliação e que contemplem, sobretudo, os conhecimentos e visões de mundo dos
estudantes. Por fim, e não menos importante, destacamos que iniciativas transdisciplinares
como a que deu origem a este artigo contribuem para o potencial formador e transformador
das práticas pedagógicas.
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