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Nunca falem com estranhos
Na hora de um quente pôr do sol primaveril, surgiram dois cidadãos em Patriarchi Prudý. O primeiro, com aproximadamente
quarenta anos, trajava um costume cinza de verão, era de estatura baixa, cabelos escuros, rechonchudo, careca, na mão seu
respeitável chapéu Fedora. Óculos de tamanho sobrenatural de
armação preta de chifre ornavam seu rosto cuidadosamente escanhoado. O segundo era um jovem de ombros largos, arruivado,
hirsuto, com um boné xadrez caído na nuca, camisa de caubói,
calças brancas amarrotadas e tênis pretos.
O primeiro era nada mais nada menos que Mikhail
Aleksándrovitch Berlioz, editor de uma volumosa revista de arte
e presidente do conselho administrativo de uma das maiores
associações literárias de Moscou, abreviadamente denominada
Massolit.1 Já seu jovem acompanhante era o poeta Ivan Nikoláievitch Ponyriov, que escrevia sob o pseudônimo de Bezdômny.2
Assim que entraram na sombra das tílias verdejantes, os
escritores se precipitaram para um quiosque multicolorido com a
placa “Cerveja e refrescos”.
Sim, convém destacar a primeira esquisitice desse terrível
entardecer de maio. Não só perto do quiosque, mas também em
toda a aleia paralela à rua Málaia Brônnaia, não havia vivalma. Naquela hora, quando não se tinha forças nem para respirar, quando
o sol, após incandescer Moscou, mergulhava numa neblina seca
em algum lugar de Sadôvoie Koltsô, ninguém viera para a sombra
das tílias, ninguém se sentara no banco, a aleia estava vazia.
— Uma água com gás — pediu Berlioz.
— Não tem — respondeu a mulher do quiosque, e sabe-se
lá por que se ofendeu.
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— Tem cerveja? — quis saber Bezdômny, com a voz
rouca.
— Vão trazer mais tarde — respondeu a mulher.
— Então tem o quê? — perguntou Berlioz.
— Refresco de damasco, e só quente — disse a mulher.
— Então vai, pode ser, pode ser!...
O refresco de damasco formou uma espuma densa e amarela, surgiu no ar um cheiro de cabeleireiro. Depois de beberem, os
literatos imediatamente começaram a soluçar, pagaram e sentaram-se
no banco, de frente para o lago e de costas para a Brônnaia.
Nesse momento, ocorreu a segunda esquisitice, que só
tinha a ver com Berlioz. Ele parou de soluçar repentinamente,
seu coração bateu e, num rufo, sentiu como se tivesse despencado para algum lugar e depois voltado, mas com uma agulha
cega cravada nele. Além disso, Berlioz foi tomado por um medo
infundado, mas tão forte, que teve vontade de sair correndo imediatamente de Patriarchi, sem olhar para trás.
Berlioz olhou em volta angustiado, sem entender o que
o assustara tanto. Empalideceu, enxugou a testa com um lenço e
pensou: “O que está acontecendo comigo? Nunca senti isso... o
coração está falhando... estou esgotado... Acho que está na hora
de mandar tudo para o inferno e ir para Kislovôdsk...”3
Na mesma hora, o ar tórrido condensou-se diante dele
e desse ar fez-se um cidadão transparente, de aspecto estranhíssimo. Na pequena cabeça, um boné de jóquei, um paletó xadrez
apertado e também vaporoso... Um cidadão de estatura colossal,
mas de ombros estreitos, incrivelmente magro e de fisionomia,
quero destacar, zombeteira.
A vida de Berlioz transcorria de tal modo que ele não
estava acostumado a fenômenos extraordinários. Empalidecendo
ainda mais, ele esbugalhou os olhos e pensou, confuso: “Isso não
pode ser real!”
Mas infelizmente era real, e através daquilo se via um
cidadão alongado e transparente, que balançava diante dele, ora
para a esquerda ora para a direita, sem tocar no chão.
Nesse instante, o pavor tomou conta de Berlioz de tal
forma que ele fechou os olhos. Quando os abriu, viu que tudo
tinha acabado, a miragem evaporara, o xadrez desaparecera e, a
propósito, a agulha cega se desprendera de seu coração.
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— Ê, diabo! — exclamou o editor. — Sabe, Ivan, quase
tive um ataque cardíaco por causa do calor! Tive até mesmo um
tipo de alucinação... — tentou sorrir, mas a aflição ainda saltava aos olhos e as mãos tremiam. Acalmou-se aos poucos, abanou-se com o lenço e pronunciou bastante animado: — Bem,
então... — retomou a conversa interrompida pelo refresco de
damasco.
A conversa, como descobriram posteriormente, era sobre
Jesus Cristo. É que o editor havia encomendado ao poeta um
grande poema antirreligioso para o próximo número da revista.
Ivan Nikoláievitch escrevera o poema, e até num prazo bastante curto, mas, infelizmente, o resultado não satisfizera o editor.
Bezdômny esboçou o personagem principal de seu poema, ou
seja, Jesus, com tintas muito escuras e, no entanto, o poema todo
deveria, na opinião do editor, ser reescrito. E agora o editor dava
ao poeta uma espécie de aula sobre Jesus, para destacar o principal erro que ele havia cometido.
Difícil dizer o que exatamente traiu Ivan Nikoláievitch
— se foi a força figurativa de seu talento ou a total ignorância do
tema sobre o qual escreveu —, mas seu Jesus saiu assim, perfeitamente verdadeiro, um Jesus que havia realmente existido, só que,
na verdade, um Jesus provido de todos os traços negativos.
Berlioz, por sua vez, queria provar ao poeta que o importante não eram as qualidades de Jesus, boas ou ruins, mas
que esse Jesus, como personalidade, jamais existira no mundo e
que todas as histórias sobre ele eram simples invenções, o mito
mais comum.
É necessário observar que o editor era uma pessoa culta
e, com muita desenvoltura, referia-se aos antigos historiadores
em sua fala, por exemplo, ao famoso Fílon de Alexandria e ao
brilhantemente educado Flávio Josefo, que nunca haviam dito
sequer uma palavra sobre a existência de Jesus. Demonstrando
uma erudição sólida, Mikhail Aleksándrovitch informou ao poeta, entre outras coisas, que aquele trecho, no quadragésimo quarto capítulo do décimo quinto livro dos famosos Anais de Tácito,
no qual se relata a execução de Jesus, era nada mais, nada menos,
que uma falsa e tardia inserção.
O poeta, para quem tudo o que estava sendo informado
pelo editor era novidade, ouvia atentamente Mikhail Aleksán-
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drovitch, cravando nele seus olhos verdes e vivos, e soluçando,
volta e meia xingando baixinho o refresco de damasco.
— Não há nenhuma religião oriental — dizia Berlioz
— na qual, por via de regra, uma virgem não dê à luz um deus.
Os cristãos, sem inventar nada de novo, criaram da mesma forma seu Jesus que, na realidade, nunca esteve entre os vivos. É a
isso que você deve dar mais ênfase.
O tenor alto de Berlioz ecoava na aleia deserta e, à medida que Mikhail Aleksándrovitch se embrenhava mais e mais
no assunto, o que somente um homem culto poderia se permitir
sem quebrar a cara, o poeta descobria mais e mais coisas interessantes e úteis sobre o Osíris egípcio, o deus e filho benevolente
do Céu e da Terra, sobre o deus fenício Tamuz, sobre Marduque da Babilônia e, até mesmo, sobre o menos famoso e terrível
deus Vitzliputzli, muito referenciado outrora no México pelos
astecas.
No exato momento em que Mikhail Aleksándrovitch
contava ao poeta como os astecas esculpiram a figura de Vitzliputzli de massa, surgiu a primeira pessoa na aleia.
Posteriormente, quando, falando francamente, já era
tarde demais, diferentes instituições apresentaram seus informes
com a descrição dessa pessoa. A comparação dos informes não
pôde deixar de causar admiração. O primeiro dizia que ela era
de estatura baixa, dentes de ouro e que mancava da perna direita. O segundo, que tinha um tamanho enorme, as coroas dos
dentes de platina e que mancava da perna esquerda. O terceiro
informava laconicamente que essa pessoa não possuía quaisquer
sinais especiais.
Deve-se reconhecer que nenhum desses informes valia
coisa alguma.
Ou seja: a pessoa descrita não mancava de nenhuma
das pernas, sua estatura não era nem baixa nem enorme, mas
simplesmente alta. Em relação aos dentes, do lado esquerdo as
coroas eram de platina e, do lado direito, de ouro. Trajava um
terno caro, cinza, e sapatos estrangeiros, da mesma cor que o
terno. Usava uma boina cinza, colocada à banda em uma das
orelhas, e embaixo do braço trazia uma bengala com um castão
preto em forma de cabeça de poodle. Aparentava uns quarenta e
poucos anos. A boca era meio torta. Bem escanhoado. Moreno.
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O olho direito era preto, e o esquerdo, sabe-se lá por quê, verde.
As sobrancelhas negras, uma mais alta do que a outra. Numa
palavra, era estrangeiro.
Ao passar em frente ao banco em que se encontravam
o editor e o poeta, o estrangeiro olhou-os de soslaio, parou e de
repente sentou-se no banco vizinho, a dois passos dos colegas.
“Alemão...”,4 pensou Berlioz.
“Inglês...”, pensou Bezdômny. “Hum, e mesmo de luvas
não está com calor.”
O estrangeiro lançou um olhar para os prédios altos, que,
em forma de quadrado, margeavam o lago, e notou-se que ele via
esse lugar pela primeira vez e que isso despertava seu interesse.
Ele deteve seu olhar nos andares superiores que, ofuscantes, refletiam em seus vidros o sol partido, que para sempre
deixaria Mikhail Aleksándrovitch, e logo voltou o olhar para baixo, onde os vidros começavam a escurecer, crepusculares. Sorriu
indulgente por causa de algo, apertou os olhos, pousou as mãos
no castão e o queixo sobre as mãos.
— Você, Ivan — dizia Berlioz —, representou muito
bem e satiricamente, por exemplo, o nascimento de Jesus, o filho
de Deus, mas o que importa é que, antes de Jesus, houve uma
série de filhos de Deus, como, digamos, o Adônis fenício, o Átis
frígio e o Mitra persa. Em suma, nenhum deles nunca nasceu
nem nunca existiu, inclusive Jesus, e é necessário que você, no lugar do nascimento ou, suponhamos, da chegada dos Reis Magos,
escreva sobre os boatos disparatados dessa chegada. Senão, pelo
que você conta, parece que ele realmente nasceu!...
Então Bezdômny prendeu a respiração numa tentativa
de cessar o soluço que o torturava, o que fez o soluço ficar ainda
mais alto e torturante, e nesse mesmo momento Berlioz interrompeu sua fala porque o estrangeiro havia se levantado repentinamente e caminhava em direção aos escritores.
Os dois olharam para ele admirados.
— Desculpem-me, por favor — falou o recém-chegado,
com um forte sotaque estrangeiro, mas sem estropiar as palavras
—, que eu, sendo um estranho, tome a liberdade... mas o assunto
de sua conversa erudita é tão interessante que...
Então ele tirou a boina de maneira educada e aos amigos
não restava mais nada a não ser se erguer e cumprimentá-lo.
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“Não, está mais para francês...”, pensou Berlioz.
“Polaco?...”, pensou Bezdômny.
É preciso acrescentar que, desde as primeiras palavras,
o estrangeiro causou uma impressão abominável no poeta, enquanto Berlioz parecia ter gostado dele, ou melhor, não que tivesse gostado, mas... como se diz... ele havia despertado seu interesse, ou algo do gênero.
— Permitam-me sentar? — pediu o estrangeiro de forma educada, e os colegas, como que involuntariamente, abriram
um espaço; o estrangeiro sentou-se comodamente entre os dois
e, no mesmo instante, tomou parte na conversa: — Se não ouvi
mal, o senhor disse que Jesus não existiu neste mundo? — perguntou o estrangeiro, voltando para Berlioz seu olho esquerdo,
verde.
— Não, o senhor não ouviu mal — respondeu Berlioz
com cortesia. — Falei exatamente isso.
— Ah, que interessante! — exclamou o estrangeiro.
“O que diabos ele quer?”, pensou Bezdômny, franzindo
a testa.
— E o senhor concordava com seu interlocutor?
— quis saber o desconhecido, virando-se para a direita, para
Bezdômny.
— Cem por cento! — confirmou Bezdômny, que gostava de se expressar de forma afetada.
— Incrível! — exclamou o interlocutor intrometido e,
sabe-se lá por quê, olhou furtivamente ao redor e, abafando sua
voz grave, disse: — Desculpem a minha impertinência, mas eu
entendi de tal forma que, além de tudo, não acreditam em Deus?
— Ele fez um olhar assustado e acrescentou: — Juro que não
direi a ninguém.
— É, não acreditamos em Deus — respondeu Berlioz
sorrindo de leve diante do susto do turista estrangeiro —, mas
pode falar disso com total liberdade.
O estrangeiro reclinou-se no encosto do banco e perguntou com voz esganiçada pela curiosidade:
— São ateus?!
— É, somos ateus — respondeu Berlioz, sorrindo, e
Bezdômny, enfurecido, pensou: “Pronto, esse estrangeiro já está
querendo armar confusão!”
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— Oh, que graça! — gritou o estrangeiro, surpreendido,
e pôs-se a mover a cabeça, olhando ora para um, ora para o outro
beletrista.
— Em nosso país o ateísmo não surpreende ninguém
— disse Berlioz, diplomático e educado. — A maioria da nossa
população deixou de crer, conscientemente, nos contos de fada
sobre Deus há muito tempo.
Então o estrangeiro aprontou a seguinte peça: pôs-se de
pé e apertou a mão do editor pasmo, pronunciando as seguintes
palavras:
— Permita-me agradecer-lhe de todo o coração!
— Por que o senhor lhe agradece? — quis saber Bezdômny, piscando.
— Pela informação muito importante, que, para mim,
um viajante, é interessante demais — explicou o estrangeiro esquisitão, levantando o dedo de forma significativa.
A informação importante, pelo visto, realmente provocou no viajante impressões fortes, tanto que ele lançou um olhar
para os prédios, assustado, como se temesse avistar em cada janela um ateu.
“Não, não é inglês, não...”, pensou Berlioz, e Bezdômny
pensou: “Onde ele aprendeu a falar russo assim? Isso é o interessante!”, e franziu a testa novamente.
— Mas permitam-me perguntar — começou a dizer o
visitante estrangeiro depois de uma reflexão inquietante —, o
que fazer com as provas da existência de Deus que, como se sabe,
são precisamente cinco?
— Oh, céus! — respondeu Berlioz com desgosto. — Nenhuma dessas provas vale nada e a humanidade há muito tempo
as deixou de lado. O senhor há de convir que, à luz da razão, não
pode haver nenhuma prova da existência de Deus.
— Bravo! — bradou o estrangeiro. — Bravo! O senhor
repetiu na íntegra a ideia do preocupado e velho Immanuel sobre
o assunto. Mas veja o curioso: ele destruiu definitivamente as
cinco provas e depois, como que zombando de si mesmo, criou
sua própria sexta prova!
— A prova de Kant — exclamou o culto editor com
sorriso fino — é também inconsistente. Não é à toa que
Schiller dizia que os argumentos kantianos sobre essa questão
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podem satisfazer somente escravos, e Strauss simplesmente riu
dessa prova.
Berlioz falava e pensava consigo: “Quem será ele? E por
que fala russo tão bem?”
— Tinham de pegar esse Kant e prender uns três anos
em Solôvki por causa dessas provas! — Ivan deixou escapar de
repente.
— Ivan! — sussurrou Berlioz sem jeito.
Mas a proposta de enviar Kant a Solôvki não apenas não
espantou o estrangeiro, como também o levou ao êxtase.
— Isso, isso mesmo — gritou ele, e seu olho esquerdo,
verde, virado para Berlioz, começou a brilhar —, o lugar dele é
lá! Pois eu disse a ele uma vez, durante o café da manhã: “O senhor é o mestre, a vontade é sua, mas inventou algo disparatado.
Pode ser que seja inteligente, mas é incompreensível demais. Vão
gozar da sua cara.”
Berlioz esbugalhou os olhos. “Durante o café da manhã... falou com Kant? O que ele estará tramando?”, pensou.
— Porém — prosseguiu o forasteiro, sem se incomodar com o assombro de Berlioz e virando-se para o poeta —, é
impossível enviá-lo a Solôvki, pelo simples fato de que ele, já há
cento e poucos anos, se acha em lugares muito mais distantes do
que Solôvki, e não dá para tirá-lo de lá de jeito nenhum, garanto
ao senhor!
— Uma pena! — replicou o poeta encrenqueiro.
— Também acho uma pena — confirmou o desconhecido com o olhar cintilante, e prosseguiu: — Mas eis a questão
que me preocupa: se não há Deus, então pergunta-se, quem administra a vida humana e, em geral, toda a ordem na terra?
— O próprio ser humano — o enfurecido Bezdômny
apressou-se em responder essa questão admitidamente não muito
clara.
— Perdão — replicou docilmente o desconhecido —,
mas para governar, queira ou não queira, é necessário possuir um
plano preciso com alguns prazos estabelecidos, nem que seja o
mínimo. Permita-me perguntar: como é que pode o ser humano
governar, se não apenas não tem condições de fazer qualquer
plano, mesmo que seja com um prazo ridiculamente curto de,
digamos, uns mil anos, como também é incapaz de garantir se-
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quer seu dia de amanhã? E realmente — o desconhecido virou-se
para Berlioz — imagine, por exemplo, que o senhor comece a
governar, dispondo de sua vida e da vida de outras pessoas, e
então passe a tomar gosto pela coisa e, de repente, o senhor...
hum... hum... descobre que está com câncer de pulmão... — o
estrangeiro sorriu docemente, parecia que a ideia do câncer lhe
dava prazer —, é, câncer — repetiu a palavra sonora e apertou os
olhos feito um gato —, pronto, seu governo chegou ao fim! Não
lhe interessa o destino de mais ninguém, somente o seu.
“Os parentes começam a mentir para o senhor. Pressentindo algo errado, o senhor recorre a médicos formados, depois a
charlatões e até mesmo a videntes. Assim como o primeiro e o segundo, o terceiro não ajuda em nada. Tudo termina tragicamente: aquele que, ainda há pouco, acreditava administrar algo de
repente se vê imóvel deitado numa caixa de madeira, e as pessoas
que o cercam, compreendendo que não há mais nenhuma utilidade naquele que está deitado, o queimam no forno. E existem
casos piores: o sujeito pode decidir ir a Kislovôdsk”, o estrangeiro olhou para Berlioz com os olhos apertados, “uma coisinha de
nada, pode-se pensar, mas nem isso ele consegue realizar, assim
como não se sabe por que ele de repente resolve escorregar e vai
parar debaixo de um bonde! Será que o senhor dirá que foi ele
quem planejou isso para si mesmo? Não seria mais razoável pensar que ele foi governado por alguém?” E aqui o desconhecido
desatou a soltar estranhas gargalhadas.
Berlioz ouvia com muita atenção a desagradável história
do câncer e do bonde, e pensamentos angustiantes começaram a
atormentá-lo. “Ele não é estrangeiro... não é estrangeiro...”, pensava, “é um sujeito estranhíssimo... perdão, mas quem é ele?...”
— Estou vendo que o senhor quer fumar, não é? — o desconhecido virou-se de repente para Bezdômny. — Quais prefere?
— O senhor tem diferentes marcas, por acaso? — perguntou sombrio o poeta, que estava sem cigarros.
— Quais prefere? — repetiu o desconhecido.
— Ah, “Nossa Marca”, vai — respondeu Bezdômny,
perverso.
O desconhecido retirou imediatamente o porta-cigarros
do bolso e ofereceu a Bezdômny:
— “Nossa Marca.”
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O editor e o poeta não se impressionaram tanto com
o fato de o porta-cigarros conter precisamente cigarros “Nossa
Marca”, mas sim com o próprio porta-cigarros. De proporções
enormes e ouro de lei, ao ser aberto, sua tampa brilhou com uma
luz azul e branca de um triângulo de brilhantes.
Nesse instante, os escritores pensaram diferente. Berlioz: “Não, não é estrangeiro!”, e Bezdômny: “Ah, o diabo que
o carregue!...”
O poeta e o dono do porta-cigarros puseram-se a fumar,
e o não fumante Berlioz recusou.
“Tenho que retrucar da seguinte forma”, resolveu Berlioz, “é, o ser humano é mortal, ninguém discute isso. Mas a
questão é que...”
Só que ele não conseguiu pronunciar essas palavras, pois
o estrangeiro começou a dizer:
— É, o ser humano é mortal, mas isso ainda seria só metade da desgraça. O ruim é que às vezes ele é mortal de repente,
aí é que mora o perigo! E em geral ele não pode nem dizer o que
fará na tarde de hoje.
“Que maneira mais disparatada de apresentar o problema...”, raciocinou Berlioz, e retrucou:
— Ah, vá lá, existe um certo exagero nisso. Sei mais ou
menos com certeza como será a tarde de hoje. Mas é claro que, se
um tijolo cair na minha cabeça no meio da Brônnaia...
— Um tijolo — interrompeu sério o desconhecido —
não cai nunca sem mais nem menos na cabeça de ninguém. E
eu lhe garanto que isso, particularmente, não o ameaça de jeito
nenhum. O senhor morrerá de morte diferente.
— Será que o senhor sabe como? — quis saber Berlioz
com uma ironia natural, envolvendo-se pela conversa totalmente
disparatada. — E vai me dizer?
— Com satisfação — replicou o desconhecido. Ele mediu
Berlioz com o olhar, como se pretendesse confeccionar um terno,
balbuciou por entre os dentes algo como “um, dois... Mercúrio
na segunda casa... a lua saiu... seis, desgraça... entardecer, sete...” e
anunciou em voz alegre e alta: — Vão cortar sua cabeça!
Bezdômny esbugalhou os olhos selvagens e perversos
para o atrevido desconhecido e Berlioz perguntou com um sorriso amarelo:
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— Quem exatamente? Os inimigos? Os invasores?
— Não — respondeu o interlocutor — uma mulher
russa, uma komsomôlka.5
— Hum... — rosnou Berlioz, irritado com a brincadeira
do desconhecido — Ah, calma lá, me desculpe, mas isso é pouco
provável.
— Desculpe-me também — respondeu o estrangeiro
—, mas é verdade. Ah, será que eu poderia perguntar o que o
senhor vai fazer hoje à tarde, se não é segredo?
— Segredo algum. Agora vou até minha casa na Sadôvaia e depois, às dez da noite, haverá uma reunião na Massolit e
eu vou presidi-la.
— Não, isso não pode ser, de jeito nenhum — retrucou
o estrangeiro com firmeza.
— Por quê?
— Porque — respondeu o estrangeiro e, com os olhos
franzidos, fitou o céu, sulcado por silenciosos pássaros negros,
pressentindo o frescor da noite — Ánnuchka já comprou o óleo
de girassol, e não só comprou como já o derramou. Não haverá
reunião.
Nesse instante, é bastante compreensível, o silêncio caiu
sob as tílias.
— Desculpe — falou Berlioz após uma pausa, olhando
para o estrangeiro que balbuciava coisas sem sentido —, mas o
que o óleo de girassol tem a ver com isso... e de qual Ánnuchka
você está falando?
— O óleo de girassol tem a ver pelo seguinte motivo
— disse de repente Bezdômny, que, pelo visto, resolveu declarar
guerra ao interlocutor intrometido —, o senhor, cidadão, não
esteve em algum sanatório para doentes mentais?
— Ivan! — exclamou baixinho Mikhail Aleksándrovitch.
Mas o estrangeiro não se ofendeu nem um pouco e deu
uma bela gargalhada.
— Estive, estive, sim, várias vezes! — gritou ele, rindo,
mas sem tirar os olhos nada risonhos do poeta. — E onde é que
eu não estive! Pena que não tive tempo de perguntar ao doutor
o que é esquizofrenia. Por isso, o senhor terá de perguntar-lhe
pessoalmente, Ivan Nikoláievitch!
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— Como sabe meu nome?
— Perdão, Ivan Nikoláievitch, mas quem não o conhece? — Nesse momento o estrangeiro tirou do bolso o exemplar
do jornal Literatúrnaia Gaziêta do dia anterior e Ivan Nikoláievitch viu na primeira página o seu retrato com seus poemas embaixo. Mas a prova de fama e popularidade, que ainda ontem o
alegrava, dessa vez não proporcionou sentimento de felicidade
ao poeta.
— Desculpe — disse ele, e seu rosto ficou sombrio —,
mas o senhor poderia aguardar um minuto? Quero trocar duas
palavrinhas com o camarada.
— Oh, com prazer! — exclamou o desconhecido. — Está
tão bom aqui, sob as tílias, e eu, aliás, não estou com pressa.
— É o seguinte, Micha — 6 pôs-se a cochichar o poeta,
arrastando Berlioz para o canto —, ele não é turista estrangeiro coisa nenhuma, mas sim espião. É um emigrante russo que
conseguiu entrar aqui. Pergunte por seus documentos, senão vai
fugir...
— Você acha? — cochichou Berlioz agitado, e pensou:
“De fato, ele está certo...”
— Acredite em mim — sibilou o poeta em seu ouvido
—, ele está se fazendo de bobo para pedir algo. Viu como fala
russo? — o poeta falava e olhava de soslaio, cuidando para que
o desconhecido não escapasse. — Vamos prendê-lo, senão vai
fugir...
O poeta puxou Berlioz pelo braço até o banco.
O desconhecido não estava sentado, mas parado perto
do banco, segurando nas mãos um livro com encadernação cinza-escura, um envelope de papel bom e grosso e um cartão de
visita.
— Desculpem-me, mas no ardor de nosso debate esqueci
de me apresentar. Aqui está o meu cartão de visita, o passaporte e
o convite para vir a Moscou7 para dar consultoria — disse o desconhecido de forma convincente, lançando um olhar penetrante
para os dois literatos.
Estes, por sua vez, ficaram sem jeito. “Diabo, ele ouviu
tudo...”, pensou Berlioz, e com um gesto educado indicou que
não havia necessidade de apresentar documentos. Enquanto o
estrangeiro empurrava os papéis para o editor, o poeta conseguiu
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divisar no cartão a palavra “professor”, impressa com letras estrangeiras e a letra inicial do sobrenome — “W”.
— Muito prazer — balbuciava o editor, sem graça, enquanto o estrangeiro guardava os documentos no bolso.
Assim, as relações foram restabelecidas e os três se sentaram novamente no banco.
— O senhor foi convidado na qualidade de consultor,
professor? — perguntou Berlioz.
— É, como consultor.
— É alemão? — quis saber Bezdômny.
— Eu? — respondeu o doutor em forma de pergunta
e de repente ficou pensativo. — Sim, provavelmente alemão...
— disse ele.
— O senhor fala russo muito bem — observou
Bezdômny.
— Oh, sou poliglota e domino um grande número de
idiomas — respondeu o doutor.
— E o senhor tem alguma especialidade? — quis saber
Berlioz.
— Sou especialista em magia negra.
“Pronto!”, pensou Mikhail Aleksándrovitch.
— E... e o senhor foi convidado por causa dessa especialidade? — perguntou ele, gaguejando.
— Sim, por causa dela — confirmou o doutor, e esclareceu:
— Aqui, na biblioteca estatal, foram descobertos manuscritos originais do necromante Gerbert D’Aurillac,8 do século X. Pois bem, é
preciso que eu os decifre. Sou o único especialista do mundo.
— A-há! É historiador? — perguntou Berlioz, com
grande alívio e respeito.
— Sou historiador — confirmou o cientista e acrescentou sem mais nem menos: — Hoje à noite, em Patriarchi Prudý,
acontecerá uma história interessante!
Novamente o editor e o poeta se surpreenderam muito.
O professor chamou ambos para perto de si e, quando eles se
inclinaram, cochichou:
— Saibam que Jesus existiu.
— Veja bem, doutor — replicou Berlioz com um sorriso
forçado —, respeitamos seus grandes conhecimentos, mas, sobre
esse assunto, temos pontos de vista diferentes.
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— Não precisa de ponto de vista coisa nenhuma — respondeu o estranho professor —, ele simplesmente existiu e
pronto.
— Mas é preciso ter alguma prova... — começou
Berlioz.
— Não precisa de prova nenhuma — respondeu o doutor, que se pôs a falar baixo e, sabe-se lá por quê, seu sotaque
desapareceu: — É tudo simples: de manto branco com a barra
cor de sangue, com movimentos gingados de um cavaleiro, na
manhã do décimo quarto dia do mês primaveril de Nissan...
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