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Pequenas Notas a
“Que é a Psicologia?”
Small Notes to
“What is Psychology?”
RESUMO – A séria crítica de Canguilhem à psicologia também pode ser estendida
tanto à psicanálise de Freud quanto a de Lacan. Apontamos algumas das questões
que deveriam ser elucidadas antes de realizar essa tarefa.
Palavras-chave: psicologismo – epistemologia da psicanálise – inconsciente.
ABSTRACT – The serious critique of psychology by Canguilhem can be extended
also to Freud and Lacan’s psychoanalysis. We designate some of the problems that
should be elucidated before undertaking such a task.
Keywords: psychologism – epistemology of psychoanalysis – unconscious.
impulso 27 nº26
OSMYR FARIA GABBI JR.
Departamento de
Filosofia da Unicamp
[email protected]
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Kant tem ainda hoje a glória de ter estabelecido que,
se Wolff pôde batizar estes recém-nascidos pós-cartesianos (Psicologia Empírica, 1732; Psicologia Racional,
1734), no entanto não conseguiu fundamentar suas
pretensões de legitimidade.1
E
ssa conferência de Georges Canguilhem que apresentamos
pela primeira vez para o público brasileiro é um marco para a
epistemologia da psicologia. Enquanto as objeções que ela coloca à possibilidade da psicologia não forem adequadamente respondidas, pesa contra todo e qualquer projeto psicológico a tríplice objeção:
medicina sem controle, ética sem exigências, filosofia sem rigor. Todas
nascem de uma mesma suspeita e apresentam uma mesma origem.
Para entendê-la, é preciso atentar para o fato de o horizonte da
crítica esboçada por Canguilhem ser delineado pela tese kantiana sobre a impossibilidade de fundamentar de modo científico qualquer psicologia, seja ela assemelhada à psicologia racional, seja à psicologia empírica. No primeiro caso confunde-se a condição da experiência com
a própria experiência, e assim tenta-se fazer ciência da coisa de si.2 No
segundo, não se leva em conta que as categorias da psicologia são históricas e assim não podem ser nem universais, nem necessárias, condição básica para todo projeto que se pretenda científico.3 Se a psicologia fosse uma ciência, ela não seria de forma intrínseca uma ética,
uma vez que para Kant a questão do conhecimento e a questão ética
estão em esferas distintas e envolvem usos distintos da Razão.
Canguilhem, sem duvidar de que a psicologia seja eficaz – mas
visto que, de maneira minimamente consensual, ela não é ciência de
fato –, interroga-se sobre a origem dessa eficiência. Acreditamos que a
conferência pretenda mostrar, entre outros pontos,4 que essa eficácia
reside na operação que transforma normas éticas derivadas de certas
Que é a Psicologia?, p. 18, desta revista.
Algo semelhante a confundir estudos sobre fundamentos da matemática com pesquisas sobre a forma
pela qual as crianças aprendem a tabuada.
3 A psicologia, no melhor dos mundos possíveis, pode dizer-nos algo sobre como os homens em uma certa
sociedade, em um tempo histórico preciso, em uma determinada classe social compreendiam a si mesmos e
aos outros. Toda tentativa de tornar esses ensinamentos universais é enganosa. Ela opera a famosa substituição sublinhada pelos marxistas: substitui a história pela psicologia. Nesse sentido, não faz mais do que
os desenhos americanos que encontram a mesma família americana de classe média tanto no futuro longínquo como na pré-história.
4 Um dos outros pontos é exibir a natureza antifilosófica da psicologia como ciência das reações e do comportamento.
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práticas antropológicas inerentes à psicologia em enunciados científicos fictícios.5 Assim, a mutação do “deve ser”, presente na norma,
em um “é” descritivo que teria o aval de ciência – porém não tem –
leva toda concepção psicológica a ser uma ética sem exigências, justamente porque se ignora enquanto tal, ou seja, sua eficácia decorreria
de ser uma ética transfigurada em saber efetivo. Na tentativa inglória
de obter esse aval de efetividade, a psicologia recorre, sem se dar conta, a fragmentos de diferentes filosofias, recolhidos de tal maneira que
perdem sua história e especificidade, e conseqüentemente ela desemboca em numerosos contra-sensos filosóficos, no seu reconhecido ecletismo filosófico, ou seja, em filosofia sem rigor.
Passados cem anos da publicação de Traumdeutung, podemos encontrar as mesmas dificuldades na psicanálise de Freud? A resposta,
como indicaremos adiante, parece ser afirmativa. Entretanto, para alguns simpatizantes da psicanálise de Lacan, elas não parecem existir.6 A
razão para tanto otimismo pode estar na tentativa de Lacan de pensar
uma psicanálise liberada de quaisquer traços de psicologismo. Esta doutrina perniciosa pode ser definida provisoriamente como toda tentativa
de reduzir as entidades psicanalíticas, tais como, por exemplo, o inconsciente, a estados ou atividades mentais. Portanto, entendemos os
esforços de Lacan de conceituar o inconsciente enquanto discurso do
Outro, entre tantos outros, como uma forma de remover o psicologismo, patente em Freud. Mas realmente basta removê-lo para que uma
psicanálise assim depurada esteja livre das críticas formuladas por Canguilhem?
Se nos voltarmos para Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse,7 encontramos como obstáculos a uma teoria psicanalítica fundamentada na função da palavra a pedagogia maternal,
a ajuda samaritana e a mestria dialética.8 No entanto, mesmo que aceitemos que a psicanálise de Lacan não vise promover a cura, que ela reconheça a dimensão ética em que se move, que, no limite, seja entendida qua teoria ética, e que ela, de alguma maneira – supondo que pos5 A psicologia é considerada uma ética sem exigências “porque associa experiências etológicas sem criticálas, a do confessor, a do educador, a do chefe, a do juiz etc.”, Ibid, p. 12. Em outras palavras, essas experiências não aparecem como são, elas são descritas de tal maneira que se tornam inerentes ao desempenho profissional do psicólogo, desempenho esse que seria justificado pelo fato de a psicologia ser uma “ciência”.
Assim, por exemplo, na psicologia clínica, se o “paciente, cliente ou analisando” vê a relação entre ele e o “o
clínico, o conselheiro ou o analista” como ela é realmente, ou seja, como assimétrica, essa visão é decodificada “cientificamente” como sintoma.
6 A conferência de Canguilhem, proferida em 18 de dezembro de 1956 e publicada em 1958 na Revue de
Métaphysique et de Morale em 1958, foi reeditada em 1966 pelo Cahiers pour l’Analyse.
7 O chamado Discurso de Roma, proferido na Universidade de Roma nos dias 26 e 27 de setembro de
1953 por Lacan, é um divisor de águas na tentativa de conceber uma psicanálise com inconsciente, porém
sem psicologismo (LACAN, J. Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse. In Écrits,
Paris: Seuil, 1966, pp. 237-322).
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sa ser lida dessa forma apropriada –, possa ter seu horizonte filosófico
perfeitamente equacionado, escaparemos, assim, às críticas de Kant
em relação à possibilidade de uma psicologia científica? Afinal, está
aqui o nó da questão. Não pretendemos desatá-lo, mas apenas ressaltar alguns dos nós prévios que precisam ser desfeitos para quem se dê
a esta tarefa hercúlea e temerária.
AS REFERÊNCIAS DE CANGUILHEM À PSICANÁLISE
A psicanálise presente na descrição de Canguilhem sobre os projetos filosóficos é inequivocamente a de Freud. Segundo ele, essa teoria
estaria localizada na interseção de dois projetos bastante distintos: enquanto psicopatologia, remontaria ao século II, a Galeno; ou seja, estaria
ligada ao projeto de constituição de uma psicologia enquanto ciência natural. Mas também teria como origem a tentativa de fundar uma psicologia como ciência da subjetividade. Nessa última derivação, a psicanálise teria operado a passagem de um inconsciente físico para um inconsciente psicológico,9 de modo a pensar que “O psíquico não é tãosomente o que está escondido, mas o que se esconde, o que escondemos, o que não é mais apenas o íntimo, mas também – de acordo com
um termo retirado por Bossuet dos místicos – o abissal. A psicologia
não é apenas a ciência da intimidade, mas a ciência das profundezas da
alma”.10 Na medida em que a psicologia como ciência da subjetividade nasce da tentativa de explicar o motivo de a razão enganar-se em
relação à realidade,11 a teoria psicanalítica pode ser entendida como
aquela que encontra esse motivo na oposição entre a consciência cognitiva e a consciência moral.12
Essa dupla inserção da psicanálise é problemática. Sem examinar
a questão prévia de saber se as condições epistemológicas a serem satisfeitas para que ambos os projetos sejam considerados científicos são
as mesmas, pode-se entender, sem muito esforço, que no primeiro
8
Não é um exercício inútil tentar articular esses três obstáculos com três dos quatro discursos que Lacan
distinguiu mais tarde (ver LACAN, J. Le Seminaire, Livre xx: Encore. Paris: Seuil, 1975): o da universidade,
o da histérica e o do mestre. Ou seja, é interessante procurar mostrar como esses três discursos, presentes
nas práticas analíticas que Lacan critica, impedem o único discurso que seria produtor da verdade no registro do simbólico: o discurso do analista.
9 Pode-se apreender essa passagem no significado de inconsciente em Entwurf einer Psychologie (FREUD,
S. GW, Nachtragsband, pp. 373-477). Aliás, a grande novidade de Freud é considerar que sintomas psicológicos podem ter causas psicológicas – mesmo sabendo que, em última análise, elas são fisiológicas – e tratálos como se tivessem efetivamente causas psicológicas. O preço a ser pago para tanto é romper com a identidade entre o psíquico e a consciência.
10 CANGUILHEM, op. cit., p. 20.
11 Ibid., pp. 15-16.
12 A psicanálise de Freud até 1920 compreende o sintoma como uma má representação construída a partir
da oposição entre essas duas consciências. Em outras palavras, a questão cognitiva é mediada pela questão
ética. No entanto, os limites da ética freudiana são os limites de toda concepção naturalista da moral.
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caso estamos tratando com causas e no segundo com motivos. Não há
sentido em falar em causas inconscientes, mas sem dúvida é razoável
expressar-se em termos de motivos inconscientes.13
Muitos comentadores referem-se a essa característica problemática da psicanálise de Freud: uma contínua passagem de um vocabulário causal para um vocabulário intencional, e vice-versa.14 Essa passagem já está presente em Studien über Hysterie, de 1895. Nesta obra
podemos constatar uma diferença marcante entre o caso de Emmy
von N. e todos os outros casos clínicos descritos. No primeiro, é possível ater-se a um modelo causal e patológico para que o caso se torne
inteligível. A história da paciente só é relevante para apresentação dos
seus sintomas e para a descrição dos procedimentos utilizados. Nos
outros casos, a história das pacientes é essencial para a compreensão
da gênese dos próprios sintomas. Em outras palavras, passa-se de uma
dimensão causal para uma dimensão intencional.15
Por conseguinte, quem desejar submeter a psicanálise de Freud às
mesmas críticas formuladas por Canguilhem – seja para rejeitá-las, seja
para aceitá-las – deve inicialmente se interrogar se é viável manter as
duas dimensões ou se é preciso optar entre elas. Para os que se inclinarem pela hipótese de que é vital contemplar as duas dimensões, a tarefa será mostrar a possibilidade de construir, sem gerar paradoxos,
uma máquina intencional.16 Caso tenham sucesso, o nó seguinte a ser
desatado é apontar como essa teoria seria capaz de fazer predições –
esta é a característica marcante de uma ciência sem adjetivos – apesar
do seu caráter intencional.17 A opção pela dimensão causal parece ser
a menos interessante, pois, além de não poder assimilar uma parte relevante da teoria freudiana, também fracassa na tentativa de mostrar
13
Podemos ter a pretensão de estender a nossa responsabilidade ao inconsciente, mas não a eventos naturais. Uma das premissas da ciência moderna é o abandono de qualquer teleologia no plano da natureza, ou
seja, já faz algum tempo que não atribuímos intenções aos eventos naturais.
14 Ver, por exemplo, BOUVERESSE, J. Philosophie, Mythologie et Pseudo-Science: Wittgenstein lecteur de
Freud. Combas: Éditions de L’Éclat, 1991, em especial o quarto capítulo, pp. 82-96.
15 O próprio Freud assinala que os seus casos se assemelham mais a contos do que a casos clínicos: “Nem
sempre fui um psicoterapeuta (…) e ainda me impressiona de forma peculiar que os históricos de caso que
escrevo são para ser lidos como contos e que lhes falta, por assim dizer, a estampa séria do que é científico.”
GW, I. Frankfurt: S.Fischer, 1977, p. 227.
16 Acreditamos que, pelo menos até 1920, a psicanálise de Freud possa ser reconstruída como a tentativa de
formular de modo consistente uma teoria do aparelho psíquico enquanto máquina intencional. Essa
máquina também padece desse mesmo engano assinalado por Canguilhem em relação à psicologia como
ciência da subjetividade: transforma a teoria da conhecimento que se origina em Descartes em teoria empírica quando constitui uma história natural do eu (Ich).
17 A psicanálise parece ser construída de forma a fazer retrodições e não predições, ou seja, a teoria não
seria capaz de prever, mas apenas de justificar as ações de um agente. Se houver acordo sobre este ponto, a
tarefa desloca-se para mostrar que teorias desse tipo podem ser científicas; demonstração que não é de
nenhuma maneira trivial. Se, por outro lado, a teoria fosse capaz de prever, ela não poderia conter numa
dimensão intencional sem gerar paradoxos, pois ou a teoria preveria intenções e estas não seriam mais
intenções ou a teoria não seria capaz de prever intenções e, por conseguinte, não preveria.
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sua adequação a padrões reconhecidos de cientificidade. Resta priorizar a dimensão intencional, como ocorre por exemplo com Lacan.
A PSICANÁLISE DE LACAN
Estamos supondo que, se não for possível provar sua cientificidade, a psicanálise é passível de cair sob a tríplice objeção formulada
por Canguilhem. Assim, para que se revele isenta de tal crítica – como
querem alguns simpatizantes da psicanálise lacaniana –, é preciso indicar os motivos pelos quais o afastamento do psicologismo, por parte
de Lacan, estariam ligados ao projeto de uma psicanálise realmente
científica. Para entendê-los, basta recordar as críticas de Politzer contra
a psicologia clássica.18 Essa crítica – igualmente inspirada em Kant –,
pode ser resumida em poucas palavras: a psicologia padece de um profundo engano, pois ela resulta da transformação indevida da teoria do
conhecimento que nasce com Descartes em teoria empírica.19 Assim,
a psicologia teria abandonado o estudo dos atos de homens concretos
para consagrar-se à análise de processos abstratos, ela tentaria ser a impossível ciência da coisa em si. No caso de Freud, Politzer acredita que
seria justamente a teoria sobre o inconsciente que levaria a psicanálise
para o caminho da psicologia clássica, o que contraria a sua tendência,
presente na clínica, de ser uma psicologia concreta no sentido de privilegiar a dimensão intencional. O psicologismo de Freud estaria presente na sua metapsicologia, na sua teoria do aparelho psíquico que,
pelo menos até 1920, é uma teoria da representação. Por conseguinte,
um dos nós a desatar consiste em estudar as relações entre Politzer e
Lacan, de modo a mostrar que a crítica do segundo ao modelo representativo da psicanálise clássica seria feita no sentido da crítica do primeiro a Freud. Em outras palavras, Lacan teria suposto que a remoção
do psicologismo da teoria psicanalítica abriria o caminho para uma psicanálise científica. Removê-lo significaria afastar as cinco teses da psicologia clássica sobre o fato psicológico: a tese de que a forma última
do psicológico seria atomista (T1); de que o psicológico é apreendido
de forma imediata pela percepção (T2); de que o psicológico é de natureza representativa (T3); de que o psicológico é o que resulta de processos, e não de atos concretos de agentes (T4); e finalmente de que a
função da palavra é denotar o psicológico (T5). Assim, outro nó para
ser desatado é certificar-se se é possível mostrar que a psicanálise lacaniana pode ser concebida enquanto crítica a essas cinco teses da psiPOLITZER, G. [1928] Crítica dos Fundamentos da Psicologia. Piracicaba: Editora UNIMEP, 1998.
Como bem observa Canguilhem, “A meditação cartesiana não é uma confidência pessoal”, ou seja, ela
não é de natureza empírica, mas metafísica. Op. cit., p. 17.
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cologia clássica. Um outro ainda, talvez mais árduo, consiste em verificar se a remoção dessas teses é suficiente para garantir a possibilidade
de uma psicanálise realmente científica.
CONCLUSÃO
Como qualquer leitor atento de “Que é a Psicologia?” pode
constatar, essa conferência é plena de pistas e sugestões para pensar a
psicologia nas suas mais diversas formas. No nosso caso, foi a oportunidade para apresentar algumas reflexões epistemológicas sobre a
psicanálise de Freud e de Lacan.
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