A virtude em Aristóteles e Sêneca O que é ser feliz? É possível ser feliz em nossa sociedade? Existe alguma relação entre a felicidade, a justiça e a bondade? Ética e Felicidade Pode-se afirmar que, para Aristóteles, a felicidade é o resultado do saber viver. Entendendo a ética como a arte de viver, o resultado desse viver será a felicidade. Ao discutir o que é felicidade é possível perceber que não há um único conceito e entendimento, mas vários. Assim, vamos buscar entender o que na Antiguidade orientavam os filósofos Aristóteles e Sêneca aos seus contemporâneos: o que fazerem para atingir a virtude, e, portanto, serem felizes. A virtude, que segundo Aristóteles, é o que vai garantir ao homem a felicidade, é “o hábito que torna o homem bom e lhe permite cumprir bem a sua tarefa”, a virtude é “racional, conforme e constante”. (ARISTÓTELES, 2001) Para o Estoicismo, escola filosófica da qual participa Sêneca, a felicidade consiste em viver segundo a razão – o Logos. Viver segundo a natureza, pois o homem é de natureza racional. Portanto, entendem os estoicos que ser virtuoso é viver segundo a razão. A felicidade não é a mesma e única para todos os filósofos e momentos históricos. Os filósofos são homens de seu tempo, e para entendê-los é preciso estudar um pouco o momento histórico que viveram. Aristóteles (384-322 a.C.) é proveniente da Macedônia e vem para Atenas, centro intelectual e artístico da Grécia, no século IV a.C. Para estudar, onde ingressou na Academia de Platão. Permaneceu na Academia até a morte de Platão. A Pólis e a Felicidade Em Atenas, no século IV a.C., o regime político era a democracia. E para o regime democrático uma figura fundamental é o cidadão. Porém, para os gregos atenienses, a cidadania estava reservada apenas aos nascidos em Atenas, pois cada cidade possuía os seus deuses e era a religião e o culto aos deuses que determinavam a cidadania. Em Atenas eram cidadãos os homens atenienses livres a partir dos 18 anos. Observe que as mulheres, os escravos e os estrangeiros não eram cidadãos. A eles estava reservado apenas o espaço do “oikos”, da casa e não o da pólis, da cidade. Para a ética de Aristóteles a cidade, comunidade política, é o lugar da vida do homem, animal político e social, portanto, é nesse espaço que o homem desenvolve a arte de viver e atingir a felicidade. Como atingir a felicidade? Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômacos, discute a finalidade de toda arte, indagação, ação e propósito da vida humana e conclui que é sempre o bem a que todas visam. Pressupondo que a felicidade é a finalidade de nossa vida, Aristóteles preocupa-se em demonstrar que a vida humana possui em si uma finalidade, ou seja, uma função para a qual está dada. E, portanto, tal finalidade se objetiva dentro da função a que a vida acontece. Sendo assim, a felicidade resultará do atendimento a esta função. Aristóteles fundamenta a ética, arte de bem viver, tendo como referência a função do homem, ou seja, da vida humana, pois não se trata da vida de um homem, mas do ser humano, e aponta para a felicidade como sendo a busca, em si mesma, da vida humana, ou seja, o bem supremo a que toda arte, indagação, ação e propósito devam ter em vista. Para Aristóteles, há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. A intelectual nasce e se desenvolve com a instrução, ou seja, com o processo educativo e formativo. Por isso, desenvolve-se com o tempo e a experiência. Já a excelência moral é produto do hábito, é tudo aquilo que podemos alterar pelo hábito. Observe que a palavra ética tem sua raiz grega – ethiké e ethos - que significam hábito. Então a excelência moral é adquirida através da prática, assim como as artes, por exemplo, você toca violão na medida em que passa a praticar e quanto mais tempo praticar, maior será sua habilidade e chances de se tornar um exímio tocador. Por que o desenvolvimento da excelência moral é tão importante para nós? Porque está relacionada com as ações e emoções, que por sua vez estão relacionadas com o prazer ou sofrimento e por isso, a excelência moral se relaciona com os prazeres e sofrimentos. Fala-se que a excelência moral é o desenvolvimento de hábitos que nos farão escolher nossas ações e emoções, que são marcadas pelo excesso, falta e meio termo. Mas o que é o meio termo? Para Aristóteles a busca é pelo meio termo, ou seja, o equilíbrio entre o excesso e a falta. É o desafio e enfrentamento diante de cada ação e emoção. É por isso, que a formação da excelência moral é uma busca constante e depende da capacidade racional, pois exige a todo o momento reflexão e escolha. Felicidade e Virtude Para Aristóteles o homem só pode viver na pólis, cidade grega, e isto por ser, por natureza, um animal político, ou seja, que vive na pólis, portanto, em sociedade, pois seu agir não é isolado ou solitário, mas é sempre um agir em relação ao outro. Ora, se nossa vida ocorre em sociedade e nossas ações se dão em relação ao outro com quem convivemos como ser virtuoso? O que Aristóteles nos aponta como meio de atingirmos a virtude, haja vista que somos marcados por escolhas e desde que nos levantamos pela manhã até nos deitarmos à noite? Para os surrealistas as obras de arte são manifestações do subconsciente, sendo estas absurdas e ilógicas. Para o Surrealismo, a loucura não é um problema psíquico, mas sim a tentativa de viver além das aparências e exigências de padrões que nem sempre respeitam nossa liberdade. É interessante que a arte além de questionar tais padrões apresenta-se como uma possibilidade de resistência aos mesmos. Então em fins do século XX e início do XXI, ser feliz e perguntar-se pela possibilidade da felicidade parece ser coisa de louco. Porém, uma pergunta que se pode fazer é: sei que para ser virtuoso devo buscar o meio termo, mas sabendo isso percebo que não é tão simples assim como parece. O que preciso fazer para isso? A resposta está em que temos que escolher nossas ações e emoções e como há em relação a elas o excesso, a falta e o meio termo, temos que acertar o meio termo. E para isso precisamos refletir, pensar e analisar para fazer a escolha de forma acertada. Além disso, Aristóteles ressalta que a mediania é relativa a nós, ou seja, o que é bom para mim pode não ser para o meu colega. Assim nos deparamos com a necessidade de, a cada ação, fazer a escolha e o desafio é fazer a escolha certa. É portanto, mais difícil, pois exige de nós uma atitude ativa e não simplesmente passiva diante da vida, das coisas e escolhas que nos cercam. Veja como poder escolher e, portanto, poder errar é sempre o que acaba por inibir as pessoas. Precisamos refletir e desenvolver nossa capacidade de análise da realidade, pois isso depende exclusivamente de nós. E como o mundo que nos cerca é também o mundo das relações humanas, saber escolher é um desafio constante e que diante das escolhas que fizermos não há retrocesso. Para o pensamento aristotélico, tudo isso diretamente relacionado com o fato de eu viver na pólis, ou seja, viver em sociedade. E como a vida moral não é um fim em si mesmo, mas um meio para se alcançar a felicidade, não se pensa a ética fora dos limites das relações sociais, ou seja, não se pressupõe a ética sem a política. O homem só pode viver e buscar sua finalidade, que para Aristóteles é a felicidade, na comunidade social, pois é um animal político, ou seja, social. Portanto, não pode o homem levar uma vida moral como indivíduo isolado, pois vive e é membro de uma comunidade. Sêneca e a Felicidade Enquanto Aristóteles distingue felicidade de virtude, entendendo a felicidade como fim último do homem, e a virtude como meio para atingi-la, os estoicos entendem felicidade e virtude como uma coisa só. Para os estoicos, a felicidade consiste em viver segundo a natureza, pois “(...) postulam que a Natureza é permeada de racionalidade: o mundo é um todo orgânico, solidário e dirigido por uma razão universal, que é deus. [...] Tudo se submete a essa ordem universal: na filosofia estoica, não há lugar para o acaso, a desordem e a imperfeição como em Aristóteles e Platão”. (WILLIAN LI, p. 14) Entre os estoicos destaca-se Sêneca que viveu três séculos depois de Aristóteles, ou seja, do ano 4 a.C. ao 65 d.C. Sabe-se que Sêneca foi um dos principais filósofos estoicos do mundo latino e o Estoicismo uma escola filosófica que teve uma longa trajetória histórica. Devemos igualmente mostrar docilidade e não ser escravos demais das resoluções que tomamos; ceder de boa vontade à pressão das circunstâncias e não temer mudar, seja de resolução, seja de atitude, contanto que não caiamos na versatilidade, que é de todos os caprichos o mais prejudicial à nossa tranquilidade. Porque se a obstinação é inevitavelmente inquieta e deplorável, visto que a fortuna lhe arranca a todo momento qualquer coisa, a leviandade é ainda muito mais penosa, porque ela não se fixa em nada. Estes dois excessos são funestos à tranquilidade da alma: recusar-se a toda alteração e nada suportar. (SÊNECA, 1973, p. 71) Para entender melhor o que nos diz Sêneca é bom esclarecer o que seja fortuna e versatilidade. Fortuna é uma divindade romana responsável pela sorte, pelo acaso e pelo imprevisto. Os gregos a chamavam de Tique. Para a filosofia adota-se o termo acaso. O acaso é para os estoicos um erro ou ilusão, pois entendiam que tudo acontecia no mundo por necessidade racional. Para os estoicos em tudo o que acontece há uma razão, pois nada é visto como acaso. Já para Aristóteles, a fortuna é uma causa superior e divina, desconhecida, ignorada pela inteligência humana. Observe que entre nós é comum o entendimento da fortuna como sinônimo de sorte. É bom destacar que para Aristóteles e Sêneca o conceito de fortuna e acaso são distintos e claro que também para os demais filósofos, sobretudo os modernos e contemporâneos. O outro conceito que precisamos esclarecer é o de versatilidade. Observe que no texto de Sêneca possui um caráter negativo, ao passo que para nós a versatilidade é algo positivo. Cada vez mais se defende a necessidade de sermos versáteis. No caso do texto de Sêneca podemos substituir o termo versátil por volúvel e assim nos aproximarmos mais da ideia que Sêneca quer nos passar. A recomendação chave de Sêneca está em “ceder de boa vontade a pressão das circunstâncias e não temer mudar”. É interessante que Sêneca pressupõe a tranquilidade diante do mundo que nos cerca. É preciso para isso nem cair em obstinação, nem em leviandade. É preciso lembrar que o momento histórico em que viveu Sêneca foi um momento de ruína do Império Romano. O Império Romano estava em decadência e cada dia mais isso era perceptível aos olhos daqueles que viviam aquele momento, sobretudo os pensadores da época. É nesse contexto de ruína, decadência, que a proposição de Sêneca, uma ética individualista, ou seja, centrada no indivíduo pode ser entendida e explicada. O que é comum ocorrer com as pessoas em momentos de crises profundas? É a dúvida em relação ao que fazer para sobreviver a ela. E diante de tal dúvida é comum o isolamento e a falta de um ponto de referência que seja claro e que garanta tranquilidade. É comum também as pessoas se angustiarem e passarem a ser atacadas de sentimentos de medo e insegurança. Então o que Sêneca está procurando oferecer aos seus contemporâneos nada mais é que uma forma de encararem a realidade que os cerca, ou seja, a decadência que ameaça o mundo em que habitam e diante da qual não possuem mais nenhuma certeza. Os séculos I e II da Era Cristã marcam o momento da consolidação e apogeu do Império Romano. É o momento da Pax Romana, ou seja, quando a expansão está encerrada e detêm-se todos os esforços pela manutenção das fronteiras. É bom lembrar que no momento de expansão Roma invadiu e dominou territórios e povos. E agora lhes cobra lealdade e defesa de ataques por estas fronteiras em que vivem em troca da paz com os romanos. Porém, ao mesmo tempo em que é o auge do Império Romano é o momento em que se vive crises intensas em função da vivência de novos valores em virtude da riqueza e das facilidades que são próprias de momentos de apogeu. É diferente de Aristóteles, pois no momento histórico em que viveu Aristóteles, era um tempo de confiança, de crescimento e avanço da democracia ateniense, que neste momento exigia novas discussões e reelaboração de ideias e princípios referentes a vida na pólis. Para entender um pouco o momento histórico de Aristóteles, vamos retornar um pouco no tempo, até Sócrates (470-399 a.C.), que é a época denominada o “Século de Ouro de Atenas”, período do governo de Péricles (461-429 a.C.), e quando a democracia ateniense atingiu a sua plenitude pelo fato de estabelecer alguns princípios que passaram a reger a vida de todos os habitantes da cidade de Atenas. Os princípios estabelecidos foram a Isonomia – que é a igualdade de todos perante a lei; a Isegoria – que é a igualdade de direito ao acesso à palavra na assembleia e o de Isocracia – que é a igualdade de participação no poder. Ora, todas essas mudanças estão ocorrendo em Atenas e sendo formuladas, discutidas e analisadas pelos filósofos que vivem em Atenas naquele momento. É por isso que a questão da pólis é tão importante para a obra de Aristóteles, aliás, já desde Sócrates a discussão passa a focar o homem e a busca do como viver na pólis. Aristóteles vive justamente o momento de conflito de projetos políticos entre as cidades gregas, que buscam liderar as demais. Há uma disputa bastante acirrada entre Atenas e Esparta. Pode-se afirmar que os filósofos, entre eles Aristóteles, percebem que é preciso que as cidades gregas sejam unidas por um projeto político e que as disputas sejam pacíficas, pois o risco que correm é o de divisão e, portanto, o enfraquecimento diante dos impérios vizinhos que estão em expansão, mas que não querem enfrentar uma Grécia unida. No entanto, o que ocorreu foi, já na época de Aristóteles, as disputas entre Esparta e Atenas resultaram no enfraquecimento e derrota dos gregos frente aos macedônios, em 338 a.C., na batalha de Quironomia. Ao lermos as obras de Aristóteles é bom que tenhamos em mente as disputas existentes e as lutas internas da própria sociedade ateniense, para que possamos entender o que o filósofo discute e apresenta como necessário aos homens de seu tempo na busca da felicidade. É claro que para atingir o estado de espírito que Sêneca pressupõe o uso da razão é fundamental, ou seja, o sábio é quem irá conseguir. E assim como Aristóteles, pressupõe a racionalidade por ser da própria natureza do homem. Pessoas que conseguiram chegar a um estágio de controle de suas paixões e emoções de tal forma que assim conseguem superar as dificuldades com mais facilidade. Não se pode ignorar que esta capacidade esteja ligada a dimensão racional humana, uma vez que graças a mesma somos capazes de perceber o que nos ameaça. Afirmamos que diferente de Aristóteles, Sêneca entende o homem em relação à natureza e não à pólis. Por isso, é interessante destacar que não está ausente também aqui o outro, pois somos seres racionais e sociais. Sêneca alerta: Mas não adianta nada ter eliminado as causas da tristeza pessoal, pois algumas vezes acontece que um desgosto pelo gênero humano se apossa de nós, quando percebemos quão grande é a quantidade de crimes felizes; quando refletimos até que ponto é rara a retidão e desconhecidas a inocência e a sinceridade, desde que ela não convenha... (SÊNECA, 1973, p. 73-74) Além do “desgosto pelo gênero humano”, que segundo Sêneca deve ser superado, para que nosso espírito não “mergulhe em noite escura”, Sêneca alerta para mais um motivo que pode afligir espírito. Vem em seguida uma consideração que muitas vezes, e não sem motivo,entristece nosso espírito e o mergulha na maior inquietude: quando vemos pessoas de bem acabarem mal – Sócrates constrangido a morrer prisioneiro; Rutílio a viver no exílio; Pompeu e Cícero a se entregarem aos seus clientes; e Catão, este Catão, enfim, viva imagem da virtude, reduzido a testemunhar publicamente, atirando-se contra sua espada, que a República perecia ao mesmo tempo que ele. Como não se afligir com a ideia de que a fortuna paga tão injustamente os méritos dos homens? E que esperar para si mesmo, quando os melhores dentre eles são os mais maltratados? (SÊNECA, 1973, p. 73-74) Alguns exemplos da contemporaneidade, do sentimento de que nos fala Sêneca em relação às pessoas de bem que acabam mal: Martin Luther King, militante negro assassinado; Che Guevara, guerrilheiro argentino, também assassinado; Nelson Mandela, líder negro na luta contra o Apartheid na África do Sul e que, em função disso, ficou vários anos preso; Francisco Alves Mendes Filho, Chico Mendes, líder seringueiro, sindicalista e ativista ambiental, assassinado no Acre, no dia 22 de dezembro de 1988. sino Médio Atividade: Quais as diferenças que podemos estabelecer entre Aristóteles e Sêneca? Qual dos dois referenciais éticos, o de Aristóteles ou o de Sêneca, é mais próximo das situações que vivemos? Comente. É possível ser virtuoso em nossos dias seguindo os preceitos de Aristóteles e Sêneca? Justifique. Com base no pensamento de Aristóteles e Sêneca, o que devemos fazer para sermos felizes? Segundo Aristóteles, quais são os fundamentos da cidadania grega? De que forma se justifica a cidadania em nossa sociedade?