Ministério da Cultura apresenta
Banco do Brasil apresenta e patrocina
Idealização
Julio Bezerra
e Ruy Gardnier
Organização editorial
Ruy Gardnier
Produção Gráfico-editorial
José de Aguiar e
Marina Pessanha
Centro Cultural Banco do Brasil
1ª edição/2013
O Ministério da Cultura e o Banco do Brasil apresentam Samuel
Fuller: Se você morrer, eu te mato!, retrospectiva sobre a obra de
um dos realizadores mais influentes da história do cinema.
Samuel Fuller foi jornalista, escritor e soldado antes de
fazer cinema. Como roteirista e cineasta, subverteu padrões com
personagens deslocados e anarquistas, e ficou conhecido como o
“poeta dos tablóides”. Escrevia, produzia e dirigia filmes urgentes,
marcados por situações dramáticas limítrofes, que travavam um
embate franco com a sociedade americana pós Segunda Guerra
Mundial.
A programação conta com mais de 20 longas dirigidos pelo
cineasta, com títulos que abarcam suas fases e obsessões temáticas
e estilísticas, além de um debate para aprofundar o conhecimento do
trabalho desse cineasta incensado pela crítica francesa como um dos
autores máximos da sétima arte, cultuado por diretores como Jim
Jarmusch e Martin Scorsese, e homenageado por Jean-Luc Godard,
Wim Wenders e Steven Spielberg.
Com esta retrospectiva, o Centro Cultural Banco do Brasil, mais
uma vez, oferece ao público a oportunidade de conhecer melhor um
artista importante dentro da história do cinema e contribui para a
formação de um público com melhor entendimento desta.
Centro Cultural Banco do Brasil
5
O mais perigoso
de todos
Zack, veterano sargento do exército americano, perde a paciência depois que um menino sul-coreano que o acompanhava é morto
por um franco-atirador, e atira à queima-roupa em um desarmado
oficial norte-coreano. Morte ou assassinato? Talvez não faça diferença em uma guerra, no caso, a da Coréia, nos anos 50. Ou faz?
O que contam as regras? O que pensa o sargento? O que diz seu
comandante? O mundo é um lugar abarrotado de perguntas em um
filme de Samuel Fuller, e embora cada um de nós tenha o direito
inalienável de buscar suas próprias repostas, uma enormidade de
regras e códigos nos conforma. Viver é esbarrar a cada esquina com
uma contradição insuperável. Atordoado, confuso, cansado, Zack
grita para o prisioneiro em Capacete de Aço (The Steel Helmet,
1951): “Se você morrer, eu te mato!”
Fuller faz cinema sem meias palavras. Atém-se aos fatos, aos
detalhes mais mundanos, porém não menos cruciais, sem distinção
aparente entre o pessoal e o político. Sua decupagem é algo excessiva, assim como o uso da música. Os planos são instáveis. A trama
se desenvolve em saltos, como se fosse narrada por alguém absolutamente transtornado, afogado no mundo contraditório do qual
faz parte e ao qual dá vida. São filmes diretos, bruscos, brutos, pouco elegantes. Eles refletem o temperamento passional do cineasta,
sua urgência incontida, seu olhar objetivo, porém sempre disposto
a perder-se na emoção. Em um longa de Fuller, o movimento é um
misto de precisão dramática e emoção.
Fuller foi repórter policial. Lutou na Segunda Guerra. Fez suas
primeiras imagens em um campo de concentração. Voltou com a
convicção de que o tempo do cinema é o presente e travou um confronto franco com a sociedade de sua época. Embora filmasse de
dentro dos estúdios hollywoodianos, sempre esteve à margem. Fuller pertence a outro lugar. Ele mostra outro lado. “Entra pela porta
dos fundos”, conta Inácio Araújo. Seus personagens são anarquistas,
apegados com unhas e dentes ao seu livre arbítrio. Eles não acredi6
tam em códigos pré-estabelecidos e estão dispostos a pagar altos
preços por isso. São covardes apaixonados, heróis assassinos, prostitutas regeneradas, jornalistas inescrupulosos, homens em guerra.
Eles estão inevitavelmente em rotas de colisão violentas e dissolvem-se em emoção. Somos todos Jekyll e Hyde, ao mesmo tempo,
para todo o sempre.
A guerra é como a metáfora fundamental ou o princípio organizador desse cinema. É o que Fuller, em uma participação especial, diz ao personagem de Jean-Paul Belmondo em O Demônio
das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965), de Jean-Luc Godard, quando
ele o pergunta o que é o cinema: “É um campo de batalha. É amor,
ódio, ação, violência, morte. Em uma palavra: emoção”. Em Fuller,
um corte, um plano-sequência, um close, um movimento, a câmera
subjetiva presidem um conjunto de perspectivas e proposições não
negociáveis. O que torna cada um de seus gestos uma espécie de ato
de ruptura, de resistência, diante de um mundo injusto e absurdo,
sem Deus. Como disse certa vez Francis Vogner dos Reis, Fuller talvez tenha sido o cineasta mais perigoso da história. Samuel Fuller:
Se você morrer, eu te mato! é uma retrospectiva dedicada a exibir
e fomentar a discussão a respeito desse que é um dos cineastas mais
originais e influentes da história do cinema.
Uma boa mostra a todos.
Julio Bezerra
Curador
7
Sumario
Marcos críticos
10
Sam Fuller: nos passos de Marlowe
Luc Moullet
12
Samuel Fuller
Manny Farber
26
Fuller, energia e loucura
NicolasGarnham
32
Agonia e Glória: a reconstrução
KentJones
50
58
Fuller por ele mesmo
The Dark Page
Capítulos 1 e 2
60
A Third Face
Capítulo 5: Corra, Sammy, corra
Capítulo 11: Esqueça a grandeza
Capítulo 15: Falkenau
Capítulo 31: Mato Grosso
Capítulo 37: Respirando vingança
78
79
93
101
107
114
Entrevista:
Eric Sherman e Martin Rubin
124
Seção de fotos
152
180
Filmografia comentada
Sobre os autores
8
230
9
Marcos
criticos
crétito da foto
Luc Moullet
Sam Fuller:
nos passos
de Marlowe
1
Os jovens cineastas americanos não têm nada a dizer, e Sam
Fuller menos ainda que os outros. Há algo a ser feito e ele o faz,
naturalmente, sem forçar. Esse não é um pequeno elogio: detestamos os filósofos fracassados, que fazem cinema apesar do cinema,
que reproduzem descobertas de outras artes, aqueles que querem
exprimir um tema digno de interesse por meio de um certo estilo artístico. Se você tem alguma coisa a dizer, diga-a, escreva-a, pregue-a
se quiser, mas nos deixe em paz.
Pode surpreender semelhante a priori a propósito de um cineasta que confessa ter grandes ambições, e é o autor completo de
quase todos os seus filmes. Mas são justamente aqueles que o classificam de roteirista inteligente que não apreciam Capacete de Aço
(The Steel Helmet, 1951), ou que, em seu nome, rejeitam Renegando
o Meu Sangue (Run of the Arrow, 1957), que - outra possibilidade defendem por razões totalmente gratuitas.
Da coesão. De quatorze filmes, Fuller, antigo jornalista, consagra um ao jornalismo; antigo repórter criminal, quatro ao melodrama policial; antigo soldado, cinco à guerra. Os quatro westerns aparentam-se ao gênero filme de guerra, pois é a perpétua luta contra
os elementos, na qual o homem reconhece sua dignidade, que define
a vida do pioneiro do século passado, luta esta, prolongada em nossa
época pela vida do soldado: é por isso que “a vida civil não me interessa” (Baionetas Caladas [Fixed Bayonets, 1951]).
Em A Página Escura (The Dark Page), pequeno romance policial
superacelerado, um jornalista arrivista bem-sucedido mata acidentalmente sua ex-amante; por desafio, jogo e necessidade profissional,
ele coloca seu melhor repórter no caso, e se vê obrigado a cometer
crime após crime para não ser descoberto. O problema: a descrição,
e através desta, o questionamento do comportamento fascista, como
em A Marca da Maldade (Touch of Evil, Orson Welles, 1958). Mas
aqui, Quinlan e Vargas se estendem as mãos: a contribuição estética
do primeiro – pois o fascismo é belo – e a contribuição moral do
segundo – sozinho, ele tem a razão do seu lado – se nutrem mutuamente. Welles renega Quinlan, mas ele é Quinlan: eterna contradição
cujas origens estão no final da Idade Média, no Renascimento italiano e no drama elizabetano, perfeitamente definida pela parábola
do relógio cuco em O Terceiro Homem (The Third Man, Carol Reed,
1
Originalmente publicado
na edição n°93 de março de
1959 da revista Cahiers du
Cinéma. Tradução de Luiz
Soares Jr.
12
12
13
1949). Com Fuller, é diferente: abandonando o domínio do absoluto,
ele nos propõe um compromisso entre a moral e a violência, cada
uma necessária, contra seus próprios excessos. A esse compromisso
corresponde a conduta de Adam Jones, o comandante de Tormenta
Sob os Mares (Hell and High Water, 1954), o trabalho do soldado e do
policial, e do cineasta também. Os valorosos soldados de Capacete
de Aço matam com o mesmo prazer que os gângsteres de Anjo do
Mal (Pickup on South Street, 1953); apenas um certo aprendizado
da relatividade poderá nos fazer entrever as mais elevadas esferas:
daí a razão deste não conformismo integral. Os canalhas tornam-se
santos. Ninguém consegue se identificar com eles. É pelo amor de
uma mulher que o covarde Bob Ford, a vergonha da saga do Oeste,
mata Jesse James. É pelo amor de uma mulher que James Reavis,
tornado barão de Arizona graças a um complô monstruoso que se
estende por vinte anos, confessará tudo no momento em que já não
tinha nada mais a temer e permanecerá voluntariamente sete anos
na prisão. É um covarde, um antimilitarista, Denno, que se tornará
herói de guerra (Baionetas Caladas). É um batedor de carteiras, Skip
(Anjo do Mal), que graças ao amor de uma mulher, roubará dos espiões comunistas preciosos documentos os quais eles tinham interceptado, e através desse roubo se reabilitará. Charity Hacket, redatora chefe com hábitos de gângster, da rua Park Row, será finalmente
conquistada pela tenacidade de seu concorrente democrata, Phineas
Mitchell, que ela tentou ultrapassar de todas as maneiras; ela o salva
da ruína e se casa com ele. Aqui, e em Baionetas Caladas, é abordado este tema wellesiano do duplo que constitui a ossatura de Casa de
Bambu (House of Bamboo, 1955): a identidade do policial associado
aos gangsteres só nos é revelada em plena metade do filme, e nada,
até então, nos permitia distingui-lo dos outros. E é o próprio chefe
da gangue que lhe estende a mão, que o salva da morte: “Paradoxalmente, Fuller, tão decidido, tão viril, é um mestre da ambiguidade”,
disse Domarchi. Aqui, o estudo dos dois personagens dá um sentido
profundo a essa justaposição que, num Welles, reflete os artifícios de
uma má consciência. Quinlan e Vargas não podem se comparar, pois
são complementares, e formam em realidade um único ser, o ser do
autor, enquanto que aqui, Sandy e Eddie podem ser comparados. O
que, pelo contrário, não impede Welles de ser incomensuravelmente
maior que Fuller. Aposto inclusive que, se ele um dia for ver Renegando o Meu Sangue, exasperado, deixará a sala antes dos créditos.
14
Fuller acima da política
Pelo seu não conformismo, Renegando o Meu Sangue bate todos os recordes: no dia seguinte à derrota, O’Meara, soldado sulista,
vai de encontro aos Sioux para lutar contra o jugo nortista. Em parte
convencido pelo capitão Clarke, o ianque liberal, que lhe mostra a inanidade de seu ódio, e instruído pelo infeliz exemplo do tenente Driscoll, o ianque fascista, ele retornará à sua pátria. Em julho de 1956,
no New York Times, o próprio Fuller precisou o sentido da fábula,
que explicaria as dificuldades do regime americano contemporâneo:
os adversários políticos do governo, em qualquer época, buscam
maturar seu ressentimento, aliando-se aos inimigos de seus países.
Há aí várias interpretações possíveis, e Fuller deixa subentendido
que a aliança com os índios de então corresponde à aliança, a respeito da questão do Sul, com os elementos negros mais violentos.
Contrariamente ao que se possa dizer de Fuller, não existe nele nenhum maniqueísmo, ainda menos que em Brooks, já que aqui encontramos dois tipos de nortistas, dois tipos de sulistas, e ainda quatro
tipos de indígenas. O Huma-Dimanche1 mostrou-se perplexo diante
de tal confusão: “Os sulistas são antirracistas; os nortistas são racistas; os indígenas, pró-americanos; e certos americanos, pró-indígenas”. Quando os renegados são obrigados a se contradizerem,
ou seja, a massacrarem seus concidadãos, eles dão meia-volta: “The
end of this story could only be told by you”, ou, se assim preferirem, já que estamos em julho de 1956, a vida dos Estados Unidos
dependerá do voto que vocês depositarão nas urnas no próximo
novembro. Eis aí, em aparência, um filme nacionalista, reacionário,
nixoniano. Fuller seria então este fascista, este ultrarreacionário outrora denunciado pela imprensa comunista? Não o creio. Ele possui
em demasia o dom da ambiguidade para pertencer exclusivamente
a um único partido. Se o fascismo é o tema de sua obra, Fuller não
se erige em juiz. É um fascismo interior que o preocupa, ao invés
de suas consequências políticas. É por isso que os personagens de
Meeker e Steiger são mais fortes que o de Michael Pate em Sangue
Sobre a Terra (Something of Value, Richard Brooks, 1957): Brooks é
excessivamente cuidadoso para ser implicado na questão, enquanto
que Fuller se encontra em casa; ele fala do que conhece. E apenas o
ponto de vista sobre o fascismo de alguém que fora tentado por este
é digno de interesse.
1
Huma-Dimanche:
Humanité-Dimanche, revista
francesa de orientação
comunista [n.d.t.].
15
1
Anjo do Mal foi banido
na França por sua
representação dos
comunistas, e No Umbral
da China, que se passa
na Guerra Vietnamita,
por sua representação
dos franceses; Proibido!
(Verboten!, 1958) ainda
não tinha sido visto na
França. Quando Anjo do
Mal foi finalmente liberado
na França, em 1961, foi
numa versão dublada
chamada Le port de la
drogue (literalmente O Porto
da Droga) na qual toda
história referente ao roubo
de segredos de Estado
americanos por comunistas
tinha sido transformada em
uma trama sobre o tráfico
de drogas, uma alteração
cuja facilidade com que
se realizou foi tomada
para validar o ponto de
vista de Moullet sobre a
representação abstrata do
inimigo. Anjo do Mal foi
criticado por Moullet em
Cahiers du Cinéma nº 121,
Julho de 1961, e Proibido!
em Cahiers du Cinéma nº
108, Junho de 1960 [n.d.t.].
16
Fascismo de gestos mais que de intenções. Pois não nos parece que Fuller seja exatamente um especialista em política. Se ele
se proclama de extrema-direita, não seria para mascarar, sob uma
fachada exterior mais convencional, um ponto de vista moral e estético pertencente a um domínio marginal pouco apreciado?
Fuller anticomunista? Não precisamente. Pois Fuller confunde,
em parte, indubitavelmente por motivos comerciais, comunismo e
gangsterismo, comunismo e nazismo. Ele imagina os representantes
de Moscou, a respeito dos quais é completamente ignorante, a partir do que conhece, por sua própria experiência, dos nazistas e dos
gângsteres. Não esqueçamos que Fuller só fala daquilo que conhece.
Quando pinta o inimigo (e em Capacete de Aço, Baionetas Caladas
e Tormenta Sob os Mares, ele se arranja geralmente para passar
silenciosamente por esse aspecto), é um inimigo muito abstrato, extremamente convencional. Apenas o diálogo se encarrega de meter
os pingos nos is, e é lamentável que Anjo do Mal (Pickup on South
Street, 1953) e No Umbral da China (China Gate, 1957) nos sejam
verboten por um motivo tão pouco fundamentado.
A moral é uma questão de travellings. Esses pequenos detalhes
não derivam em nada do modo pelo qual são expressos, muito menos
de sua qualidade de expressão, que aliás os desmente com frequência.
Seria totalmente estúpido tomar esse filme tão rico por uma defesa
pró-indígena ou racista, assim como seria estúpido tomar Delmer Daves por um corajoso cineasta antirracista só porque, a cada contrato
assinado, uma cláusula estipula a presença em seus filmes de relações
amorosas entre seres de raças diferentes. O público inadvertido não
se deu conta de nada, e é sempre o público que tem razão.
Um cinema moderno
A câmera se desloca pela esquerda, num plano baixo de um
campo de milho com admiráveis tons de amarelos intensos, recoberto de cadáveres de soldados em uniformes sujos e escuros,
alinhados nas mais curiosas posições; depois se eleva para enquadrar Meeker, adormecido em sua montaria, num estado lamentável.
Sobre um fundo de fumaça negra extremamente densa, destaca-se
Steiger, tão sujo quanto o outro, mas vestido de camponês. Ele atira
em Meeker, vasculha sua vítima, descobre comida em seus bolsos,
instala-se sobre o corpo para comer o que achara; percebendo que
carrega um pouco de pão também, ele o pega; acende um cigarro.
Meeker começa a reclamar incomodado, Steiger se afasta um pouco
para longe. Close em Steiger, que masca e fuma. Então, em imensas
letras vermelhas, se inscreve em sua fronte e sobre o seu queixo o
título do filme. É a primeira vez que os créditos aparecem sobre o
rosto de um homem, e de um homem prestes a comer. Essa sequência, digna de uma antologia do cinema moderno, já revela algumas
das qualidades mestras do nosso cineasta.
1º O senso poético do movimento de câmera. Em muitos cineastas ambiciosos, os movimentos de câmera dependem da composição
dramática. Jamais isso se dá em Fuller, onde sua gratuidade é felizmente total: é em função do poder de emoção do movimento que se
ordena a cena. Assim, ao final de Capacete de Aço, é o caso deste
lento deslocamento da câmera, no qual, sob o fogo ardente das descargas das metralhadoras, desabam, segundo um ritmo musical, os
inimigos. Baionetas Caladas formiga de longuíssimos travellings
circulares de 360°, e em igual medida de closes os quais, ao espocar
de rosto em rosto, são impregnados de um ritmo fascinante.
2º Um humor fundado sobre a ambiguidade. Aqui, o contraste
entre o corpo de Meeker agonizante e a impassibilidade de um
Steiger esfomeado. Mais adiante, num impressionante close, veremos um camponês do Sul transbordar em canções a força do seu
ódio contra os ianques. Juntemos a isso algumas reflexões picantes
sobre a Constituição dos Estados Unidos. Walking Coyote confessa
que não buscou se tornar chefe de sua tribo, pois a política o enoja.
Indignado com a possibilidade de que o enforquem, ele exclama:
“Ah! Que tempos! Na minha época, isto não era assim. Hoje, não há
mais moral. Os jovens massacram os velhos, matam, embriagamse, estupram”. Réplica que poderia muito bem figurar em Os Trapaceiros (Les Tricheurs, Marcel Carné, 1958) ou em qualquer filme
americano sociológico, mas que colocada na boca de um Sioux de
1865, nos mata de rir. Em cada diálogo, Fuller se diverte em nos
desconcertar; ele dá a impressão de esposar todos os pontos de
vista, e é isso que torna seu humor sublime. Cada cena de amor (a
das sobrancelhas em Casa de Bambu, a da tatuagem e da bofetada em Tormenta Sob os Mares, onde encontramos também uma
admirável paródia do poliglotismo do jargão comercial) enriquece
um motivo extremamente banal por meio de um texto cheio de
verve e de originalidade.
17
3º Uma recriação da vida que não possui nada em comum com
a que nos é geralmente imposta na tela do cinema. Ao invés do civilizado Brooks, é a O Atalante (L’Atalante, Jean Vigo, 1934) que
devemos nos reportar. Fuller é um personagem rude: tudo o que faz
é incongruente. Uma centelha de loucura o habita. Mas temos necessidade dos loucos, pois o cinema é a mais realista das artes; e na
evocação da existência, os cineastas sensatos permaneceram sob a
influência das tradições estabelecidas desde séculos pela literatura e
pintura, coagidos a esquecer a verdade mais superficial em nome do
realismo, limitado visual e temporalmente. Apenas os loucos podem
aspirar a criar um dia uma obra comparável ao modelo vivo, obra
esta que, aliás, jamais chegará a possuir um décimo da verdade do
original. Mas ninguém pode fazer melhor. Em Fuller, vemos tudo o
que os outros omitem deliberadamente de seus filmes: a desordem,
a escória, o inexplicável, a barba mal-aparada, e uma espécie de fascinante feiúra do rosto do homem. É um traço de genialidade ter
escolhido Rod Steiger, pobre coitado atarracado, desprovido de todo
prestígio, cujo chapéu achatado oculta os traços ao menor dos plongés, mas a quem uma trajetória e um porte desgraciosos conferem a
própria força da vida. Poderíamos inclusive assinalar a simpatia do
diretor pelos corpulentos, pelos balofos: um Gene Evans é o astro
em quatro de seus filmes. E – apliquemos aqui, aos personagens, a
famosa e truffaudiana teoria dos autores – sua estima diminui na
proporção do número de quilos. Estes heróis esbeltos de rosto anguloso, John Ireland, Vincent Price, Richard Basehart, Richard Kiley,
Richard Widmark, não possuem o peso suficiente necessário para
resistir à baixeza. É que o homem pertence à ordem da terra, e deve
a ela se assemelhar, em toda a sua acre beleza.
Fuller é um primitivo – mas um primitivo inteligente, o que traz
para a sua obra ressonâncias singulares; o espetáculo do mundo
físico, o espetáculo da terra é seu melhor terreno de inspiração, e
se ele se vincula ao ser, é apenas na medida em que este se vincula
à terra. É por isso que a mulher é com frequência ignorada (não em
A Dama de Preto [Park Row, 1952], Anjo do Mal e Dragões da
Violência [Forty Guns, 1957], onde ela conserva as características
do homem fulleriano; não em No Umbral da China, Tormenta Sob
os Mares e, igualmente, Dragões da Violência, onde Fuller evoca,
com um talento demencial, o contraste entre a besta e o anjo, o que
dissipa todo e qualquer equívoco). É por esse motivo que o corpo do
18
homem lhe interessa particularmente – cem vezes, Fuller é inspirado pelos corpos nus dos índios, assim como pelos corpos nus dos
marinheiros em Tormenta Sob os Mares; ao sair de uma sessão de
Renegando, ficamos com a impressão de nunca, até então, termos
visto verdadeiros índios em um western – e a parte do corpo que
lhe interessa ainda mais particularmente é esta que toca constantemente o solo: sem dúvida, Fuller é um podólatra. No primeiro plano,
ao encontrar-se com Walking Coyote, a câmera arranha a terra, reenquadra os pés e apenas, acidentalmente, retoma a visão dos rostos. E esse estilo será radicalizado a ponto de fundar o simbolismo
da obra: a corrida da flecha, pivô e título do filme, é a corrida de
um homem calçado de mocassins perseguindo um homem de pés
descalços (membro da Infantaria, que depois de ter encontrado um
certo Walking Coyote, irá se casar com uma certa Yellow Mocassin).
O melhor dentre estes será aquele que possuir os pés mais sólidos. Pés ensanguentados, pés fatigados, pés rudemente eficazes, pés
ágeis, pés calçados de botas, com que virtuosismo Fuller, que, aliás, teve todo o tempo disponível para estudar esta questão quando
de sua viagem ao Japão, retrata diferentes estilos de maratonistas!
Quem melhor do que ele para filmar os Jogos Olímpicos em Roma,
no ano seguinte? As nádegas são estrelas igualmente, pois ao menos
30 segundos do filme são consagrados a um estudo minucioso do
problema relativo ao conforto da sela do cavaleiro.
Uma desordem à la Vigo
Cineasta terrestre, poeta do telúrico, ele se apaixona pelo instintivo. Adora mostrar o sofrimento de uma forma ainda mais sádica que
a de DeMille: amputações (mesmo uma mão deliberadamente cortada em Tormenta Sob os Mares), dolorosas extrações de balas de seu
próprio corpo (Baionetas Caladas) ou de outros corpos (Renegando o
Meu Sangue), com fortes perdas de sangue. Uma criança indefesa é
massacrada em uma esquina da Park Row. Nem o amor despreza os
prazeres do sadismo (Anjo do Mal). Antes de ser nocauteado por repetidos golpes de martelo, o japa de Tormenta Sob os Mares lamenta não
ter sido espancado com mais força, como se isso fosse uma vergonha.
Festival de crueldades e orgias; Renegando o Meu Sangue se encerra
com este admirável plano no qual Meeker, prestes a ser esfolado vivo,
recebe a graça de uma bala no meio da testa vermelha e suada.
19
Mais acima citei Vigo; esta semelhança mostra-se ainda mais
evidente em Anjo do Mal, Capacete de Aço e sobretudo Baionetas
Caladas: sobre um roteiro extremamente cadenciado e num plano
premeditado, Fuller compõe ações sem referência a uma dramaturgia pré-fabricada. Faz-se não importa o que, e é bem difícil entender
o que quer que seja. As relações dos soldados entre eles, relações
morais e relações no plano, onde todos os rostos estão voltados
para interesses diferentes, criam um labirinto de significações. Podemos aplicar a Fuller o que Rivette escreveu de Vigo: “Ele sugere
uma constante improvisação do universo, uma perpétua, tranquila e
segura criação do mundo.”
O Anti-Tati
1
Fabricio Del Dongo,
personagem da obra-prima
de Sthendal, A Cartuxa de
Parma. Fabricio, jovem
romântico, cheio de
entusiasmo por Napoleão,
vai por conta própria
para Waterloo lutar
como voluntário em seus
regimentos. O episódio é
narrado de forma irônica;
Fabricio passa mais tempo
esperando pela ação do
que realmente participando
desta, e quando ele de fato
luta pela sua vida, é em
meio à retirada francesa
[n.d.t.].
20
No plano formal, pela primeira vez, descobrimos esse lado Fabrice em Waterloo1, ressaltado tão frequente e complacentemente a
propósito de operetas menores. Esse bizarro fulleriano explica seu
gosto pelos cenários exóticos – seis de seus filmes se situam no
Extremo Oriente –, pagodes misteriosos (Capacete de Aço), estátuas, casas e mobiliários à moda nipônica (Casa de Bambu), que
possuem o mesmo relevo, o mesmo poder de vida que o metrô, os
becos dos imóveis de Chicago e suas casas sobre palafitas em Anjo.
E sobretudo quando se trata de evocar a complexidade da maquinaria moderna, Fuller se torna o maior metteur en scène do mundo.
Nele, o universo artificial e o natural apresentam as mesmas características: sabe admiravelmente reproduzir o caráter denso, maciço
e misterioso das armas de fogo, de um depósito de munições (No
Umbral da China), de um imóvel tinindo de novo (Casa de Bambu),
do mecanismo de um submarino, onde as sucessivas variações de
cenários de fundos coloridos intensificam o realismo e a originalidade, de uma usina atômica (Tormenta Sob os Mares). A natureza
também constitui um cenário barroco: extraordinários cantões esfumaçados de Capacete de Aço e montanhas cobertas de neve em
Baionetas Caladas.
Uma exceção entre os grandes coloristas, Fuller prefere, com
Joseph MacDonald2, os tons intermediários, marrons, ocres enegrecidos, violetas pálidos, brancos sujos, cores da terra, tão autênticas
quanto as do arco-íris, que evocam contudo o parque de diversões
em Casa de Bambu e a plasticidade de Renegando o Meu Sangue.
Um filme feito com seus pés
Se, a cada instante, Baionetas Caladas criava uma sequência de
relações originais entre os heróis e burilava os rostos com uma arte
consumada, o mesmo não acontece em Renegando o Meu Sangue,
onde somente por clarões encontramos estes confrontos de seres
entre seres. O’Meara e Driscoll, Crazy Wolf e O’Meara, Driscoll e
Crazy Wolf, através dos sorrisos de canto da boca, prefiguram os
êxtases da competição ou, por meio de olhares enraivecidos, contém
a custo sua raiva, quando em seu caminho se interpõem uma mulher
ou um terceiro. O gosto pela luta, pela violência, cria uma cumplicidade entre os adversários, em nome da qual um salva o outro, tema
de Casa de Bambu retomado inúmeras vezes aqui. Mas isso apenas
constitui uma ínfima parcela do todo. Por quê?
Na Fox, Fuller era obrigado a respeitar certas formas tradicionais de decupagem e de filmagem, a trabalhar no interior dessas
formas. Deve lhe ter sido duro3. Enquanto que, em sua produtora
de denominação shakespearean, a milhares de quilômetros de
Hollywood, era livre como um pássaro. O roteiro é extremamente
elaborado, com suas sutis correspondências, mas o filme sofre – e se
beneficia – de um desequilíbrio constante. Como Fuller adora filmar,
mais que tudo, uma sequência de cenas que lhe dão prazer, livremente, ele negligencia o resto, todas essas ligações obrigatórias: ele
as escamoteia na decupagem ou na filmagem – eis a razão desses
múltiplos buracos nos filmes – ou se desinteressa – e aí a direção
de atores torna-se praticamente nula. Baionetas era a desordem na
ordem, perfeita síntese formal da moral fulleriana do compromisso.
Era sua obra-prima na medida em que a loucura só pode realmente
se exprimir com um acréscimo considerável de razão. Enquanto que
Renegando é o triunfo da desenvoltura, da indolência, da preguiça.
Talvez nenhum cineasta tenha ido tão longe no desleixo (com exceção do pobre Josef Shaftel com The Naked Hills [1956]). Quaisquer
que sejam suas negligências, não deixamos de nos fascinar pela
espontaneidade implicada por elas: Baionetas é ou será logo um
clássico, enquanto Renegando permanecerá um filme de cabeceira.
Fuller é um amador, um desleixado, já entendemos. Mas seu filme
exprime o amadorismo e a preguiça, e isso já é muito.
Se o filme não arrecadou um centavo na América, foi porque
Fuller, único responsável, só mandou para a RKO uma montagem de
2
Joseph MacDonald. 19061968. Fotógrafo que
trabalhou com Fuller em
Anjo do Mal, e em cores em
Tormenta Sob os Mares, e
Casa de Bambu; MacDonald
também era bem conhecido
por Moullet e pelo restante
dos Cahiers por seu
trabalho com Nicholas
Ray em Delírio de Loucura
(Bigger than Life, 1956),
e Quem Foi Jesse James?
[n.d.t.].
3
A companhia produtora de
Fuller chamava-se Globe
Entreprises, e produziu
Renegando o Meu Sangue
e Proibido! para a RKO; No
Umbral da China e Dragões
da Violência para a Fox; O
Quimono Escarlate (The
Crimson Kimono, 1959)
e A Lei dos Marginais
(Underworld U.S.A., 1961)
para a Columbia.
21
rushes que esta cortou, a Universal recortou e a Rank cortou ainda
mais. Com razão, ninguém acreditava no sucesso de um filme que
Sam Fuller realizou com seus pés, como o disse graciosamente Mrs.
Sarita Mann: o porquê da distribuição ter sido sabotada. Mas os
cortes não parecem ter tirado grande coisa ao valor de Renegando:
o filme é isento do que não falta jamais às grandes produções em
série, os sempiternos raccords improvisados e ridículos.
Filmar é fácil para ele
1
Regras ditadas pelo
Instituto de Altos Estudos
Cinematográficos,
comumente designado
IDHEC [n.d.t.].
22
O que mais nos importa aqui é que este animal Fuller tenha
livremente perambulado pelo Arizona por cerca de cinco longas semanas – uma de suas filmagens mais longas! –, com um orçamento
de quatrocentos milhões – Deus sabe o que ele pode ter feito com
isso! –, e para nos oferecer o quê? Cento e cinquenta planos, que
na projeção darão duzentos, encadeados por fusões impossíveis. E
que planos! Seu estilo já não possui nada de ordinário (salvo no seu
primeiro ensaio, desajeitadamente clássico): é um belo estilo de um
bruto! Nele, o plano americano, figura perfeita do classicismo, ou é
raro ou medíocre. Quando se interessa por vários personagens ou
objetos, planos gerais; se é por um ou dois, closes. Fuller é o poeta
do close, que, por seu caráter elíptico, é sempre rico em surpresas
(a abertura de Capacete) e que dá um relevo insólito a rostos ou
fiapos de grama, objetos habituados pelo cinema comercial a pouca
reverência. Mas, aqui, ele se esforça ainda menos: fala-se – muito,
ou age-se – muito; quando alguém diz algo de interessante, ele não
está interessado em artifícios de interpretação ou em multiplicar
os ângulos para desteatralizar a cena. Cark tenta colocar O’Meara
no bom caminho. Longo discurso. Contracampo? Ainda espero por
este. Durante, no mínimo, quatro ou cinco minutos, assistimos aos
dois, sentados imóveis um ao lado do outro, dando adeus ao A.B.C.
idhecal3.
Essa desenvoltura irrita, mas quantas riquezas surgem dali! É
errado dizer que Fuller é inspirado, uma vez que isso pressuporia
a possibilidade de que Fuller não fosse inspirado, quando na realidade filma ativamente. Instintivo, cineasta-nato, filmar é fácil para
ele; basta-lhe permanecer idêntico a si mesmo a cada instante – o
que poderíamos dizer a propósito de um Nicholas Ray menor como
Quem Foi Jesse James? (The True Story of Jesse James, 1957). Seus
esboços são insólitos, e mais fortes e reveladores que uma sólida
construção. Ele pode se permitir a mistura de estilos: há de tudo em
Fuller, um mundo neste deserto vivo, com seus bosques de árvores
esféricas, até o delírio de O’Meara, perdido na fumaça, dessas traquinices plásticas a la Eisenstein à composição rigorosa e fordiana
dos planos mais gerais do ataque ao forte. Descobriríamos também
Fritz Lang em Casa de Bambu, na organização geométrica da cena
do assalto ou naquela da partida de bilhar, ou ainda em Anjo do Mal
(a morte de Moe). De que importa! Por uma espécie de homogeneidade poética, tudo isso permanece sempre Fuller, com sua força do
instantâneo e do inacabado.
Marlowe e Shakespeare
Aceitamos com mais facilidade a cena – que para a reflexão possui valor simbólico – na qual um jovem índio mudo vê-se preso na
areia movediça e é salvo por um soldado nortista que, irritado com
os acordes sincopados emitidos pelo jovem índio através de uma
gaita, salva-o ao preço de sua própria vida, precisamente por essa
não ser integrada ao filme: assim as intenções são constantemente
corrigidas pela mise en scène. Fuller, que parecia tão fiel às suas
belas ideias a respeito da América e sobre a beleza da vida democrática, se contradiz a cada imagem: é evidente que os costumes dos
Sioux lhe inspiram e agradam infinitamente mais que a perspectiva
da vida tranquila ao pé do fogo, que souberam tão magnificamente
cantar um Brooks e um Hawks, como bem testemunham as múltiplas platitudes da mise en scène, neste sentido mise en scène de
crítico, de político e de moralista.
É assim que, ao fim e ao cabo, Fuller segue no itinerário inverso
ao de Welles, e pode-se dizer que há entre eles uma diferença – que
se inscreve igualmente no domínio dos valores – da mesma ordem
que aquela entre Marlowe e Shakespeare, com todas as consequências subentendidas por esta.
Embora, a princípio, sempre tenha negado isso, Welles tentou, através das diferentes formas de sua arte (que o revelam ao
mesmo tempo como romântico e civilizado) produzir a síntese de
suas aspirações físicas e morais; ao passo que Fuller, faustiano em
princípio e prometéico de fato, embora consciente da necessidade
de tal síntese e ativamente procurando por ela, é mais cedo ou
23
mais tarde traído, quando totalmente entregue a si mesmo e não
podendo portanto ser redimido pela benéfica intervenção de influências exteriores, devido à própria intransigência nas profundezas
de seu caráter.
Renegando o
Meu Sangue
24
25
Manny Farber
1
Originalmente publicado na
edição de setembro de 1969
da revista Artforum (Nova
York) e republicado na
coletânea Negative Space:
Manny Farber on the Movies
(Nova York: Ed. Praeger,
1998). Tradução de Ruy
Gardnier.
26
Samuel
Fuller
1
Ainda que não tenha o vigor e o alcance de Chester Gould ou
do infinitamente criativo Fats Waller, Sam Fuller dirige e roteiriza
filmes inadvertidamente charmosos que têm algumas das qualidades desses artistas: lirismo, iconoclastia real e uma ausência cômica
de autoconsciência. Ele fez dezenove filmes sem gordura e de baixo
ou médio orçamento desde 1949, e qualquer um deles poderia ser
descrito como “material cafona e modesto... mas cheio de brilho”,
um pouco de John Foster Dulles, um bom pedaço de Steve Canyon,
às vezes tão bom que chega a tirar o fôlego. Anjo do Mal (Pickup
on South Street, 1953) é uma maravilha em termos de insanidade de
classe baixa, tendo Richard Widmark como um batedor de carteiras
trabalhando com um jornal dobrado no metrô, quase inteiramente
passado à noite, e repleto de atuações excêntricas com muita libido encubada, sem qualquer razão aparente. Apesar de ser um filme lento e ruim, O Capacete de Aço (The Steel Helmet, 1951), com
seu herói insano – um personagem com rosto grande que luta uma
guerra contra todos, exceto um menininho coreano – exemplifica
o modo como Fuller pontua tudo com iconoclastia, transformando
tudo em comédia de humor negro. Renegando o Meu Sangue (Run
of the Arrow, 1957), um dos dois filmes que ainda causam vergonha
a Rod Steiger (um confederado teimoso com um misterioso sotaque
irlandês e um ódio aos ianques que o leva a unir-se aos índios Sioux),
é totalmente imprevisível e sempre vibrante.
A forma mais simples de descrever seu melhor filme, Anjo do
Mal, é falar sobre seu olho cinematográfico. Um melodrama seco
sobre microfilmes, alcaguetes e agentes soviéticos (os roteiros de
Fuller são trabalhos grotescos que poderiam ter sido escritos pelo
motorista de ônibus da série The Honeymooners: “OK, eu lhes dou
cinco minutos para saírem. Se não saírem, vamos queimar o lugar
inteiro”), suas longas cenas num metrô têm uma ambiência demoníaca, uma austeridade, uma quietude. Enquanto Skip, o personagem
de Widmark, vai trabalhar num vagão lotado de metrô, surge um
leve toque e um equilíbrio satisfatório entre tensão e atenção ao
momento. Nem Bresson em seu O Batedor de Carteiras (Pickpocket,
1959) chega perto dessa frontalidade ou desse frescor: a habilidade
para fazer uma cena continuar sem cortes ou truques de câmera,
27
fixando-se em rostos incrivelmente pungentes, na jovialidade de
pele lisa e ossatura esbelta de Widmark, no jeito como ele se move
pelo vagão, aproximando-se de sua vítima, Jean Peters, e, num dos
mais inesperados planos-detalhe, sua mão se transforma em algo
semelhante à nadadeira de uma foca, deslizando por baixo do jornal
e chegando até uma carteira de dinheiro. Parte da graça é a consternação incerta nos rostos de dois agentes do FBI que estão seguindo
a garota e não estão preparados para ver um exímio batedor de
carteiras em ação.
O filme está cheio de boas imagens (a garota andando pela avenida; Widmark parado em sua palafita bebendo cerveja) que dependem sempre de um aconchego característico para chamar a atenção
do espectador. Pequenos ninhos ou covis ao invés de apartamentos,
uma rede ao invés de uma cama, uma caixa afundada no rio ao invés
de uma geladeira, uma violência que nunca é interrompida e que inclui o trincar de dentes amigável de Widmark depois de quase decapitar Jean Peters. A concentração de Fuller tem a curiosidade de um
bichano: a graça de Peters é que sua rebeldia nervosa, sua ausência
de malícia e sua tagarelice exaustiva parecem ser mais os traços
infelizes e refletidos de uma pessoa do que os truques de uma atriz.
Fuller é tipicamente atraído pelo tipo de material que George
Stevens ou Capra considerariam desesperadamente ocos. Ele consegue extrair grandes cenas apenas colocando uma mulher vivida
falando de seu cansaço. Uma cena convencional de espiões interrogando um cúmplice involuntário transforma-se na mais hedionda cena de hotel, reminiscente do olhar fotográfico de Diane Arbus
e de sua obsessão em valorizar os desvalidos da vida americana.
O núcleo da cena é sua frontalidade, a ausência de perfeccionismo
com o cenário, com as pessoas, com os diálogos. A mobília apática
é Moscou, 1940, os três homens são autênticos tipos sauerbraten,
e Peters uma dama ansiosa tentando passar pelos escombros de diálogos sem talento: “Colega, você não vai acreditar. Quer saber o
que ele acha que nós somos? Comunas. Dá pra acreditar? Como tem
gente maluca andando por aí.”
Depois de ter visto qualquer das cenas sem cortes ou de ter ouvido os nomes de desenhos animados (Short Round, Lucky Legs), é
impossível esquecer a arte grotesca, a excentricidade de seus filmes. O
filme é sincero acerca de bobagens inexplicáveis: Nat King Cole numa
encruzilhada na Ásia, obstinadamente lustrando seu rifle, não mais
28
lustroso que seu uniforme de GI, cantando sobre seu amor perdido
no umbral da China. Para um filme que é desordenadamente supremacista branco, é chocante observar o sorriso extático de Cole por
ser um soldado americano num devastado campo de batalha asiático.
Todos os seus filmes de guerra, repletos de fraternidade vaidosa, exibem uma indigerível condescendência dos brancos para com
os negros, com os orientais e com os índios Sioux, além do estilo
demencial de alegria de Cole por fazer parte dos projetos inúteis do
homem branco, como capturar um insignificante pagode no meio de
uma mata raquítica e infinita. Excetuada a loucura por um objeto de
arte oriental, com uma aparência nua, que foi despejado num local
incerto por um helicóptero (depois de ter sido construído na noite
anterior por um único carpinteiro cego), a maluquice desses filmes
propagandistas é que o homem branco é um verdadeiro lixo: sem
modos, estúpido, falastrão, malévolo, sem pensar em nada além de
maltratar mulheres ou qualquer homem com 30cm a menos. Zack,
que inicia O Capacete de Aço como um capacete furado – mais ou
menos como uma tartaruga até que o capacete sobe uma polegada
acima do campo desolado para mostrar esses olhos simplórios e
desagradáveis lentamente passeando de um lado para o outro, vigiando a área – é como alguém nascido na Rua do Tormento entre as
esquinas das ruas Malicioso e Cru. Brueghel tem um estudo de um
camponês de muletas, desenhado de costas, que sugere a baixeza
esgotada, afundada na terra. Uma das descrições que F.M. Ford faz
de Tietjens, “seu corpo parecia construído de sacos de comida”, chega perto do aspecto plúmbeo e rançoso com que ele é retratado por
Gene Evans, um dos sujeitos mais ásperos do cinema. Evans interpreta o cabeça-quente que gosta de aparecer, mascando sem parar
um toco de charuto, com o efeito de explosão similar ao da água que
esguicha no jorro de uma baleia, bestial e grotesco, ocupando um
papel destacado, num filme dedicado à infantaria americana.
Com seus cenários anônimos e esfarrapados, com heróis de
classe baixa que se tratam como sábios, e o primitivismo (a ausência
do corte, a crueza com os atores, episódios violentos filmados inteiramente em uma tomada), Capacete de Aço antecipa a obra igualmente propagandista de Godard. Dos cenários calvos e desprovidos
às mensagens bizarras e pesadas que são escritas em pequenos pedaços de papel e remetidas ao espectador como pequenos jornais
(por favor ajude o Carequinha a ganhar um pouco de Cabelo), seus
29
personagens esfarrapados são primos teimosos, dos tipos similarmente esquemáticos da Santa Cruz de Godard. Os países envolvidos
são igualmente desconhecidos, e por baixo de ambas as carreiras
existe essa obsessão com os renegados, pessoas no limiar de dois
mundos, o são e o insano (Paixões Que Alucinam [Shock Corridor,
1963]), o burguês e o revolucionário (A Chinesa [La Chinoise, Jean-Luc Godard, 1967]). O que é bom em seus filmes é adorável; o
ousado e desinibido uso de técnicas semidocumentárias que salvam
o filme da mente do próprio Fuller, um lamaçal irreflexivo na melhor das hipóteses. Contra tantas cenas insanas (Cameron Mitchell
numa falsa casa de chá gritando “Eu sou seu ichiban, não ele! Eu
sempre me sentei ao seu lado!”), existe uma técnica exata que ressoa
puramente cinematográfica, sem qualquer empréstimo dos outros
meios de expressão. Ninguém foi tão astuto para inserir um trecho de desenho animado numa tela ficcional: mostrar a trajetória de
uma flecha pelo desenho porque, se filmado, o arco ficaria invisível.
Seco e abstrato, ele frequentemente mede uma cena por posições
estilizadas e nacos de tempo.
Existem duas instâncias desse tipo de composição não ilustrativa em Renegando o Meu Sangue. Uma cidade inteira parada numa
ponte olha para o rio, enquanto uma conversa em contraponto acontece entre Rod Steiger e sua mãe, construindo um efeito pastoral e
lento, e uma sensação temporal assombrosa. Mais um terço de filme
e essa clássica cena quase se repete: Steiger e Brian Keith sentam-se
fazendo um ângulo reto, nenhum dos dois olhando para o outro. Keith
diz: “Não se pode virar as costas para seu próprio povo”, ao passo que
Steiger permanece trancado em sua feitiçaria verbal em forma de
canção de ninar: “não gosto de ianques”, etc., etc. É uma cena adorável:
Steiger repete esse jingle de quinze maneiras calmas e solidamente teimosas, de maneira semelhante como fez Godard num posto de
gasolina francês em Week-End à Francesa (Weekend, 1967) – “Você
matou meu namorado, ele era bonito e você é feio”, etc., etc.
Fuller é um dos primeiros a experimentar pureza poética através de uma fusão de sadismo ilimitado, feito às claras e em close-up,
com trechos de nostalgia pastoral em que há cintilações de mito. As
cenas iniciais de Renegando o Meu Sangue estabelecem a amargura de um homem com o Norte, sua visão do Sul e um romantismo
de coração hiperacelerado no que diz respeito ao General Lee (visto
através da oficina de um ferreiro num imponente cavalo branco), e
30
tudo isso é feito com linhas e massas, um posicionamento correto de
matas e campos e o decoro digno de um Corot. Há muita disposição
visual distintiva, mas a questão permanece: o quanto disso ocorreu
acidentalmente?
Fuller não tem aptidão para o ambiente estrangeiro, mas, com
sua paixão persistente pelo exótico, ele não consegue ficar longe
dele. É tocante e risível observá-lo mostrar obstinadamente toda a
decoração do templo até o momento em que coloca o pagode ou o
Buda em frangalhos. (Seu Buda, o mais alto já construído em madeira, deveria ser vendido na Macy’s em sua promoção de Dia de
Ação de Graças.) Há mais alguns traços distintivos: uma fixação por
crianças, a violência seca, a sensação latente de que ele gostaria de
fazer um filme inteiro em closes. No Umbral da China (China Gate,
1957) é tão absurdo que ele transforma-se num deleite para o gosto
camp. Todo o início é incrivelmente aloprado: um molequinho adorável e seu cachorrinho correm por uma cidade arruinada, sendo
perseguidos por um sujeito de pijama de seda negra e sapatilhas
de balé que está disposto a virar açougueiro, matar o cachorrinho
de orelhas abanando e comê-lo no café da manhã. Uma voz em off:
“Nessa cidade devastada, cheia de pessoas famintas, todos os cachorros viraram comida, exceto um”.
31
Nicholas Garnham
Fuller,
energia
e loucura
1
32
“Também gosto daquele filme do Eisenstein – esqueci o título –
que tem aquela cena linda da grama se curvando para a direita com
a força do vento, em que o movimento dos homens a cavalo muda a
direção da direita para a esquerda. Era um duelo entre as forças da
natureza e os cavaleiros. Eu adorei.” Fuller
Aqui, Fuller quase poderia estar descrevendo a sequência de
abertura do seu próprio Dragões da Violência (Forty Guns, 1957),
um feito extraordinário para Hollywood, pois na verdade trata-se
da quintessência do filme independente, uma exibição de energias
conflitantes quase que totalmente abstrata. Dragões da Violência
confirma a natureza hip da linguagem visual de Fuller e do seu
conceito de personagem. Mailer escreveu em “O negro branco”2:
“O que torna o hip uma linguagem especial é o fato de ele não
poder realmente ser ensinado. Se não se partilha nenhuma das
experiências de júbilo e exaustão que ele está equipado para descrever, parece simplesmente afetado ou vulgar ou irritante. É uma
linguagem pictórica, mas pictórica como a arte não objetiva, imbuída da dialética da mudança pequena mas intensa, uma linguagem
para o microcosmo – no caso, o homem. Pois captura a experiência imediata de um passante qualquer e amplifica a dinâmica
de seus movimentos não de forma específica, mas sim abstrata,
de maneira que ele é visto antes como um vetor em uma rede de
forças que como uma personagem estática em um campo cristalizado.” Experiências de exaustão são particularmente comuns nos
filmes de Fuller: os soldados pela trilha de Mortos Que Caminham
(Merrill’s Marauders, 1962); os sobreviventes no fim de Capacete
de Aço (The Steel Helmet, 1951) recostados contra uma coluna no
templo; a tripulação do submarino prostrada com o calor e a falta
de oxigênio em Tormenta Sob os Mares (Hell and High Water,
1954); Moe deitada na cama pouco antes de ser assassinada; O’Meara ao fim de Renegando o Meu Sangue (Run of the Arrow, 1957).
Fuller vê o processo de viver bem diretamente em termos de gasto
de energia física.
Hobbes escreveu que “não existe paz de espírito perpétua enquanto vivemos aqui, porque a própria vida não passa de movimento e não pode existir sem desejo nem medo, não menos do
que sem razão” e, mais uma vez, que “só pode haver satisfação em
1
Originalmente publicado
em Samuel Fuller
(Londres: Secker and
Warburg, 1971). Tradução
de Mariana Barros.
2
The white negro: superficial
reflections on the hipster,
ensaio publicado em 1957.
33
prosseguir”. Uma das glórias do cinema americano é a representação celebratória da energia humana.
Já no seu descobrimento, o Novo Mundo tornou-se um símbolo da quebra de constrições, das possibilidades ilimitadas. Era a
prova física, visível, de que as jornadas mais insanas atingiriam um
objetivo, de que o ato de ir adiante seria recompensado. A ironia
de que o mundo, uma vez circum-navegado, se tornaria ainda mais
definitivamente finito que o Velho Mundo Conhecido foi deixada de
lado por um instante. As viagens de descobrimento pareciam romper uma barragem e liberar as energias acumuladas da Europa.
Os Estados Unidos fizeram bom proveito de sua virtude de potência não colonialista e instruíram as velhas potências europeias
sobre os males de sua postura imperialista. Mas, na verdade, a conquista e a dominação são um tema constante da história norte-americana, a própria razão de ser de uma sociedade dinâmica em expansão. As ondas sucessivas de colonos europeus rechaçaram tanto
a natureza quanto os índios. Os colonos navegaram os grandes rios,
atravessaram as montanhas, desmataram as florestas e araram as
planícies. Primeiro, vieram os caçadores e os combatentes de índios;
depois, as caravanas com os rancheiros, os fazendeiros e os mineiros. Em seguida, a ferrovia e a expansão industrial. De leste a oeste,
abriram caminho para o interior, tomando tudo o que podiam. Não
satisfeitos com seu vasto país, cruzaram o Rio Grande e roubaram o
Texas do México usando a força militar. Foram as forças expansionistas nos Estados Unidos que deram início à Guerra Civil. O Norte
não combateu o Sul por princípio. Foi antes o caso de uma sociedade
dinâmica, em acelerado processo de industrialização, confrontando
uma sociedade conservadora, estática, que se atinha aos velhos usos
não expansionistas da Europa. O ianque chegou não para libertar
escravos, mas para explorar um país subdesenvolvido. Foi ele, e não
Lincoln, quem venceu a Guerra Civil.
Esse processo de expansão se tornou uma reação em cadeia
acelerada. Economias industriais modernas não podem ficar paradas. A Grã-Bretanha, primeira grande potência industrial do mundo,
precisou ter um Império como mercado; com os Estados Unidos,
não foi diferente. A despeito de seus instintos isolacionistas e sua
desconfiança do Velho Mundo, essa jovem nação viu-se transformada, com terrível rapidez, na potência industrial e (portanto) militar
dominante mundialmente. Numa sociedade como essa, que é uma
34
sociedade permanentemente pioneira e hoje rompe as fronteiras do
espaço, o próprio ato de ir adiante, de simplesmente fazer alguma
coisa, torna-se um valor por si só. Sua sobrevivência dependia de
conduzir caravanas, atravessar córregos, construir casas, fábricas e
ferrovias, de forma muito mais direta que em sociedades europeias
mais estáticas. Mesmo nos dias atuais, os viajantes se surpreendem
da velocidade com que edificações são demolidas e reconstruídas,
num processo de gasto de energia constante.
A princípio, os filmes, assim como a sociedade que refletiam,
não questionavam o valor desse dispêndio constante de energia.
Eles celebravam o dispêndio em si. Não perguntavam aonde iam;
simplesmente aproveitavam o percurso. King Vidor forçando os
barcos colina acima em Bandeirantes do Norte (Northwest Passage, 1940), Hawks com a sua boiada em Rio Vermelho (Red River,
1948), John Ford conduzindo sua caravana pela cordilheira de Caravana de Bravos (Wagon Master, 1950): nesses filmes, a energia
é vista como puramente criativa. Agora, o sonho azedou, tanto no
cinema norte-americano quanto na sociedade; apenas Hawks manteve sua fé na energia viril ao reduzir drasticamente sua amplitude,
de forma que, comparando-se o final de Rio Vermelho ao verdadeiro final de Fuller para Dragões da Violência, vê-se a extensão
da mudança de estado de espírito nos filmes norte-americanos. Há
um falso final de Dragões da Violência em que Jessica Drummond
sobrevive, mas a intenção de Fuller era a de que ela morresse. Toda
a lógica do filme leva ao momento em que o herói é forçado a matar
a mulher que ama, ou (mais importante na visão de Fuller) a mulher
de quem gosta e a quem respeita. A lógica de Rio Vermelho conduz
a uma morte que Hawks era incapaz de encarar. Nas suas palavras:
“Começar a matar gente sem motivo nenhum me deixa frustrado.”
Hawks se esquiva da tragédia inerente a um embate de grandes
energias individuais; Fuller se precipita em direção a ela. De fato,
como ele mesmo admite, a cena da morte serviu de inspiração para
o filme inteiro.
O cinema norte-americano começou a avaliar o custo da energia que outrora celebrara. Em Duelo ao Sol e A Fúria do Desejo
(respectivamente Duel in the Sun, 1946, e Ruby Gentry, 1952), Vidor
retrata a energia como algo puramente destrutivo; em Crepúsculo
de uma Raça (Cheyenne Autumn, 1964), Ford mostra o genocídio
causado pela energia representada anteriormente em Caravana de
35
1
Charles Foster Kane e Hank
Quinlan, protagonistas
respectivamente de Cidadão
Kane (Citizen Kane, 1941) e
A Marca da Maldade (Touch
of Evil, 1958), ambos
dirigidos por Orson Welles.
36
Bravos. Entretanto, uma nova geração de diretores americanos examinou as contradições e tensões entre essas duas visões da energia.
Em Região do Ódio e em Um Certo Capitão Lockhart, (respectivamente The Far Country, 1954, e The Man From Laramie, 1955,
ambos protagonizados por James Stewart) Anthony Mann mostra
a luta entre energia destrutiva e criativa na sociedade e dentro do
próprio indivíduo. James Stewart é levado contra sua vontade a recorrer à violência, a usar a energia destrutiva em defesa da criativa.
Welles examina em todas as suas obras a maneira com que a energia
se corrompe: Kane, o interessante jovem idealista, torna-se um velho solitário sedento de poder; Quinlan é impelido cada vez mais ao
olho do furacão por seu sucesso como detetive1. Em Kazan e em Ray,
a energia se transforma em neurose pura: Kowalski em Uma Rua
Chamada Pecado (A Streetcar Named Desire, 1951), James Dean
atirando fora o gelo do depósito em Vidas Amargas (East of Eden,
1955), o racha na Juventude Transviada (Rebel Without a Cause,
1955) de Ray. Para se observar a mudança de postura com relação
à energia, é comparar Wayne no papel do típico protagonista de
Hawks ou Ford com Brando e Dean.
Fuller consegue encerrar essas contradições em uma única
obra. Ele festeja a energia como a verdade última porque “a própria
vida não passa de movimento” e, com efeito, celebra-a especialmente por se tratar de energia inútil, condenada. É o homem tentando
evitar a morte, mas esta sempre vence. O mercenário de No Umbral
da China (China Gate, 1957): “Essa vida foi feita para mim, mas eu
tenho que morrer para vivê-la”; Zack, dirigindo-se ao norte-coreano: “Se você morrer, eu te mato”; Moe, em Anjo do Mal (Pickup on
South Street, 1953): “Se me enterrassem na vala comum, eu morreria.” O pessimismo da visão de Fuller é demonstrado por Moe, a
personagem por quem ele claramente sente mais afeição e respeito,
cuja razão de viver se resume a economizar o bastante para pagar
um enterro decente.
Em Fuller, as imagens da energia são os pés. Luc Moullet chamou a atenção na Cahiers para a obsessão do diretor por pés; Fuller riu e mandou-lhe um pezão de borracha. Mas não deixa de ser
verdade que o pé desempenha um papel importante no cinema de
Fuller, talvez por ele ter sido da infantaria. Como diz Rock em Baionetas Caladas (Fixed Bayonets, 1951): “Você só precisa se preocupar
com três coisas: seu rifle e seus dois pés.” A fala é dita pouco antes
da sequência em que os soldados massageiam os pés uns dos outros para evitar o congelamento. Rock percebe que está com um pé
dormente, e a sequência termina com um close-up no rapaz batendo com os pés descalços no chão para fazer o sangue circular, um
símbolo de sua vontade de sobreviver. Mais ao fim do filme, Denno
caminha pelo campo minado para salvar o sargento ferido – o close
-up nas botas tateando a neve, que perigam explodi-lo cada vez que
ele pisa, não só envolve a audiência na tensão da cena, como também
sugere de forma vívida a força de vontade que ele está empenhando.
É significativo que essa força de vontade seja autocentrada, pois,
no filme, ela é inútil. O sargento já está morto quando ele consegue
levá-lo de volta.
Mortos Que Caminham é construído em torno do princípio de
energia pura. Quando o médico da unidade lhe diz que seus homens
não podem continuar por estarem sofrendo de ADT – acúmulo de
tudo –, Merrill responde: “Não é nada, é só pôr um pé na frente
do outro.” As personagens seguem adiante, em uma obstinação em
sobreviver que, dada a evidência, é totalmente irracional. Os marauders de Merrill, embora ponham um pé na frente do outro, se veem
diante do cadáver do próprio Merrill, com o rosto numa poça, cercado de alguns sobreviventes gravemente feridos, e não chegam nem
a alcançar seu objetivo. Parte da crítica implícita de Fuller à guerra é
que ela faz com que muita energia seja desperdiçada.
Não creio, como sugere Victor Perkins, que Fuller esteja tentando equiparar resiliência física à resiliência moral. Fuller usa a resiliência ou energia física como símbolo para os impulsos irracionais
que motivam o homem. Assim, em Renegando o Meu Sangue, as
imagens do pé ensanguentado de O’Meara atravessando as pedras
e os espinhos simbolizam a urgência do seu desejo de conseguir ir
embora dos Estados Unidos, desejo esse que inevitavelmente será
frustrado, como o seu desejo de fugir de Lobo Louco. (Coiote Andante dissera-lhe que ninguém nunca havia sobrevivido à Corrida.)
Os heróis de Fuller encaram a vida com uma espécie de insolência condenada. São encarnações permanentes de frustrações poderosas, simbolizadas pelo punho cerrado de Tolly Devlin em A Lei
dos Marginais (Underworld U.S.A, 1961). A energia de Tolly é totalmente obsessiva: toda a sua vida é dedicada a vingar a morte do pai
pessoalmente – como sempre em Fuller, a ênfase vai no pessoal. O
assassinato do pai é retratado como um jogo de sombras enormes,
37
dignas de pesadelo, na parede. Deitado na cama do reformatório,
seu punho se agarra ao lençol em um pesadelo; nesse momento,
Fuller faz uma fusão com a imagem da sua mão arrombando um cofre. Ele se torna um criminoso, vai preso, reprime voluntariamente a
própria personalidade a fim de satisfazer sua necessidade mais profunda. A morte é o fim inevitável. Como no caso de Bob Ford em Eu
Matei Jesse James (I Shot Jesse James, 1949), sentimos que a morte
é um suicídio procurada de forma voluntária, porque, depois que a
vingança é levada a cabo, ele não tem mais motivo para viver. Além
disso, para atingir seu objetivo, rejeita toda forma de integração social; quando menino, recusou-se a colaborar com os policiais, a dar
informações que talvez pudessem ajudá-los a prender os assassinos
do pai. Rejeita o amor e os conselhos de Sandy, a figura materna. Ela
fica revoltada com o seu plano de vingança e reage como a mãe de
O’Shea em Renegando o Meu Sangue, dizendo-lhe: “Você é doente.”
Tolly rejeita o amor de Cuddle e, quando ela lhe diz que quer casar
com ele “A gente tem o direito de sair do esgoto e viver como todo
mundo”, responde: “Casar? Casar com você?”
Essas recusas separam claramente A Lei dos Marginais do filme a quem mais deve, Os Corruptos (The Big Heat, 1953). O filme
de Lang termina em uma nota de integração social, com a volta de
Dave Bannion à polícia. Ambos têm um estilo dinâmico no qual a
edição reflete a energia propulsora dos dois protagonistas, mas, no
filme de Fuller, o estilo se identifica completamente com Tolly. Os
movimentos de câmera e cortes bruscos e fusões rápidas fazem de
A Lei dos Marginais um soco ligeiro, que termina com aquele close-up no punho fechado. O estilo da edição de Lang é mais objetivo
e apresenta um padrão de forças mais abrangente que o destino do
herói: Bannion se envolve em corrupção porque está fazendo o seu
trabalho. Ela preexiste a ele, é uma força externa. Mais tarde, ele é
forçado a sair da polícia para se vingar, mas apenas porque a polícia
é corrupta e não o pode ajudar. Aceita o auxílio de qualquer um
com prazer; com efeito, Lang oferece um retrato da solidariedade,
de forças benéficas sempre presentes, só aguardando um foco ou
um líder. Assim, as energias pessoais de Bannion são canalizadas
para fins sociais, e a concretização de sua vingança pessoal é vista
como um instrumento para lavar a sociedade. Executada a vingança, a vida pode recomeçar; Bannion retoma contente uma vida de
tarefas policiais rotineiras e xícaras de café compartilhadas. Em A
38
Lei dos Marginais, não há vida normal, não há paz de espírito, há
apenas um sistema de energias individuais conflitantes.
Fuller afirma que, como princípio, procura organizar os roteiros em torno de uma personagem indo da direita para a esquerda
e outra, da esquerda para a direita: “Eu adoro conflito”. Em Dragões
da Violência, a energia é destrutiva por causa da sua própria força.
Griff tenta manter a frieza o tempo todo – não é homem de heroísmos idiotas. Ele aconselha o xerife, seu amigo, a deixar a cidade,
pois seus olhos estão fraquejando. O xerife pergunta: “E se o médico
não puder fazer nada pelos meus olhos?” “Então você vai ser um
cego, e não um morto.” A primeira coisa que Griff e o irmão fazem
ao chegarem à cidade é tomar um banho – há duas cenas de banho
fundamentais no filme, que, especialmente por serem ao ar livre,
mostram os homens tanto no seu momento mais relaxado, quanto
no mais vulnerável. A primeira é interrompida, e a segunda é seguida de cenas-chave de violência – estágios no comprometimento
de Griff com a violência pessoal destrutiva. O ato simbólico de se
lavar é visto como inútil, e Griff confronta Brock ainda de toalha ao
pescoço. Esse confronto é apresentado como um puro embate de
energia, uma vontade contra a outra. O progresso de Griff é visto
como uma série de close-ups nos pés em movimento e no rosto,
seguida de um grande close-up nos olhos e, por fim, um movimento
de câmera leva a um close-up da arma baixada de Brock. Mas é o
triunfo de Griff sobre Brock que terminará por forçar sua energia a
trilhar caminhos de pura destruição; ele atira não apenas em Brock, mas também em Jessica, a quem ama. Pois a energia de Brock,
sua razão de viver, não foi destruída; só a morte pode fazê-lo. Ela
foi reprimida e inevitavelmente irromperá em canais novos e mais
poderosos. Brock representa as forças da anarquia que Griff está
tentando controlar em si mesmo e nos outros. Griff diz mais tarde
a Chico, o irmão caçula: “Não vamos transformar isso numa disputa
pessoal.” Mas é no que fatalmente se torna.
O confronto com Brock é seguido de uma das representações
mais arrebatadoras feitas por Fuller da colisão entre forças conflitantes e do embate entre ordem e anarquia. Num plano-sequência
extremamente longo que emprega grua e trilhos, a câmera acompanha os irmãos Bonnell saindo do quarto do hotel e atravessando
toda a extensão da rua principal rumo ao telégrafo. O objetivo dessa
caminhada é enviar um telegrama para tirar Chico da cidade, e man39
dá-lo para longe da vida das armas. A caminhada simboliza o anseio
de Griff por uma vida familiar estável numa fazenda, ainda que por
intermédio da pessoa do irmão. Ao subirem a rua, o xerife Logan
tenta agradar – só mais tarde percebemos que Logan está apaixonado por Jessica e quer afastar Griff do seu confronto fatal com ela
por seus próprios motivos. No entanto, depois que o telegrama é
enviado, ainda no mesmo plano, Jessica e seus cavaleiros entram na
cidade e passam em alta velocidade pela câmera na direção oposta à
da caminhada dos irmãos Bonnell. Griff não pode evitar o confronto,
que também vai envolver Chico – até então de mãos limpas – em
mais uma rodada de violência.
Griff e Jessica representam duas formas de energia distintas.
Griff é a ordem pública e o governo em Washington; Jessica é o livre
empreendimento capitalista. A fala em que ela descreve sua vida a
Griff é um pequeno poema sobre a construção dos Estados Unidos,
sobre a agricultura, a indústria e a política. Ambas as formas de
energia contêm em si mesmas seu próprio defeito: a de Griff baseia-se na arma e a de Jessica, na corrupção financeira. Ela destrói
Logan quando responde à sua declaração de amor com um cheque.
A dialética fatídica do filme exprime-se em duas linhas de diálogo
entre Griff e Jessica. Jessica: “Eu preciso de um homem forte para
executar minhas ordens.” Griff: “E de um fraco para recebê-las.” Eles
se sentem atraídos um pelo outro graças ao reconhecimento mútuo
de suas forças. Essa é a sua ruína, pois, se um dos dois sucumbisse à
vontade do outro, por definição, a atração se extinguiria. Tudo leva
àquele confronto final. É por amar Griff que Jessica deixa seu império desmoronar. Seu consultor jurídico não compreende por que ela
fez isso, mas, como Logan, Jessica está se suicidando. Ela dissera a
Griff, oferecendo-lhe um emprego: “Esse é o último passo, a fronteira acabou, não há mais cidades a dobrar, não há mais homens a
dobrar. Está mais do que na hora de você começar a se dobrar.” E
Logan disse a ela pouco antes de se suicidar: “Um homem não pode
esperar tanto, ele precisa fazer alguma coisa a respeito do que está
no seu coração, senão ele vai se dobrar.” Jessica foi dobrada por
Griff. Só lhe resta atirar nela porque, no mundo de Fuller, o preço da
sobrevivência é não se dobrar. Para Fuller e para os Estados Unidos,
a fronteira nunca está terminada.
A natureza destrutiva e louca da energia fica mais evidente em
Paixões que Alucinam (Shock Corridor, 1963), em que a mera ener40
gia física é um dos sintomas da loucura. Johnny Barrett tenta atacar
o psiquiatra e precisa ser arrastado para fora da sala. O asilo é caracterizado por súbitos acessos espontâneos de atividade violenta: o
tumulto no refeitório, o ataque das ninfomaníacas a Johnny Barrett,
a tentativa de se linchar um negro. E assim, todo o processo de cura
é a destruição de energia. Os tratamentos de banho quente e choque
elétrico acalmam os internados, a camisa de força é exibida diante
dos pacientes como uma ameaça constante e, ao fim, Johnny Barrett
é reduzido a um objeto quase inanimado. O filme termina em um
tradicional abraço de cinema, mas, desta vez, o homem é incapaz de
reagir. A paixão que funciona como força propulsora dos heróis de
Fuller foi extinta. Ela se autodestruiu. Racionalidade absoluta encontra irracionalidade absoluta em um vegetal humano. O preço da segurança é a destruição de tudo o que nos torna seres humanos vivos.
Essa desilusão com a energia é levada ainda mais longe em O
Beijo Amargo (The Naked Kiss, 1964). O modo como Kelly trata
as crianças aleijadas lembra o tratamento que Merrill dispensa às
suas tropas. Ela mobiliza sua força de vontade para fazê-los triunfar sobre suas limitações físicas botando um pé na frente do outro.
Mas esse triunfo é apenas um sonho. A possibilidade de as crianças
algum dia correrem pelo parque é uma ilusão. É só com a ajuda de
uma espécie de insanidade que podemos subjugar as limitações de
nossa situação humana física. Norman Mailer descreve o mesmo
impulso em direção à loucura no livro Cartas Abertas ao presidente1: “Porque o que sofremos nos Estados Unidos, na selva moral
desarraigada que é a nossa vida em expansão, é o temor inconfesso
presente em cada um de nós de que, pouco a pouco, ano após ano,
estejamos ficando loucos. Pouquíssimos de nós sabemos realmente
de onde viemos e para aonde estamos indo, por que o fazemos e
se em algum momento chega a valer a pena. Para o bem ou para o
mal, nós perdemos nosso passado, vivemos nesta terra de ninguém
sufocante que é o presente perpétuo e sofremos em dobro ao investirmos para o futuro, pois não temos raízes com que nos projetar
adiante, com base nas quais julgar nossa viagem.”
Dado que Fuller usa a guerra como metáfora estendida da vida
e a descreve como uma loucura organizada, não surpreende que a
insanidade seja um grande tema em seus filmes. Suas personagens
aparentemente céticas e racionais costumam fazer as coisas pelos
motivos mais irracionais. Também vimos que elas existem em um
1
The Presidential
Papers (Nova York:
Putnam, 1963)
41
mundo onde aparência e realidade se confundem a tal ponto que
seu domínio sobre a realidade inevitavelmente fraqueja. Em um
mundo maluco, a postura mais racional pode ser a loucura; assim, a
insanidade não aparece para as personagens de Fuller apenas como
uma ameaça, mas também como um conforto, uma fuga dos dilemas
intoleráveis propostos pela dialética do mundo por onde vagueiam.
Pois as personagens de Fuller, por desejarem completa liberdade,
vivem em um mundo de perpétua escolha. “Para mim, quando chego a um ponto do filme em que há uma encruzilhada, ao instante
em que as personagens podem seguir várias direções diferentes, em
que há uma verdadeira escolha, fico satisfeito.” Portanto, essas personagens precisam conter, nos limites de seus eus, um grande número de possibilidades conflitantes. Além disso, precisam fazer uma
escolha entre essas possibilidades com base em evidências que, por
experiência própria, sabem que é totalmente não confiável. O que
Fuller diz sobre sua própria experiência da guerra também vale para
suas personagens: “Quando a gente está na linha de frente, fica num
estado constante de tensão.” Essa tensão advém do esforço de se
manterem forças incompatíveis em equilíbrio; por exemplo, no caso
de uma guerra, a incompatibilidade entre o medo básico da morte
e a situação em que se encontra o soldado. O principal objetivo do
sargento Zack é sobreviver; ainda assim, ele se realistou por vontade
própria para ficar em uma posição na qual corre perigo de vida.
Essas tensões levam a uma fissura, pois são voltadas para dentro. A sociedade é vista não como um meio de realização do eu, mas
como uma anulação do eu. Assim, todos os conflitos e tensões do
mundo amontoam-se sobre a consciência individual solitária. Em O
Quimono Escarlate (The Crimson Kimono, 1959), não é permitida
a Joe nenhuma válvula de escape social para seus problemas; Fuller não lhe concede o luxo de dizer “eu sou uma vítima indefesa da
questão racial; a culpa é da sociedade, não minha”. Não, é o caso dele,
e ele precisa superá-lo. No fim das contas, o indivíduo está completamente só, porque apenas ele pode viver dentro de sua própria
consciência, e essa consciência define suas possibilidades. Joe diz a
Chris: “Você não pode sentir pena de mim se não for eu.” E Merrill,
ao médico da unidade: “Como você pode saber o que eu consigo
suportar?” Mas o corolário desse individualismo puro é o de que
ninguém mais pode fazer suas coisas por você, não há escapatória
para o dilema do eu. É possível adiar o instante da escolha, o que
42
geralmente fazem as personagens de Fuller. Em Baionetas Caladas,
Denno chega ao extremo de arriscar a própria vida no campo minado para não assumir as responsabilidades do comando; em Anjo
do Mal, Skip joga com todas as possibilidades, até que a surra levada por Candy o obriga a escolher um lado; O’Meara prefere tentar
tornar-se um sioux a enfrentar os ódios que dividem os Estados
Unidos. Mas, ao fim e ao cabo, é preciso encarar a escolha, sempre
considerada importante por causa dos seus efeitos no indivíduo. O
êxito de Denno em assumir responsabilidade é visto como positivo
não para os Estados Unidos, nem para o exército, nem para o esforço de guerra, mas para ele mesmo. Toda consideração externa
é tida como irrelevante. A natureza pessoal autocentrada das escolhas é exprimida com grande beleza na cena de Baionetas Caladas
em que o enfermeiro amedrontado faz uma operação em si mesmo
para retirar uma bala. A câmera começa nele e em seguida faz uma
panorâmica de 360 graus pelos rostos na caverna, voltando ao enfermeiro justamente em seu momento de triunfo, quando remove a
bala. O sentido do ato começa e termina nele.
Muitas vezes, o eu não é capaz de suportar mais a tensão. Uma
solução, como vimos, é o suicídio. As outras são a violência e a insanidade, que, nos filmes de Fuller, estão estreitamente relacionadas.
No caso da violência, as forças irracionais que movem o homem são
voltadas para fora e colidem diretamente com forças semelhantes
em outro indivíduo; um dos conflitos vivenciado pelos personagens
do diretor é aquele entre o próprio eu e o Outro, o mundo exterior
que continuamente circunscreve sua liberdade de ação. A violência
é uma tentativa de solucionar essa confusão mediante a destruição
do Outro. No mundo de Fuller e na sociedade norte-americana, a
violência é, portanto, produto inevitável de uma raça de homens
sem senhor. Assim, a guerra é a negação das outras nações, e o
ódio racial, a negação das outras raças. A violência com que a polícia
de Chicago investiu nos manifestantes da Convenção Democrática
Nacional de 1968 foi uma tentativa da polícia e das forças por ela
representadas no sentido de negar a complexidade da sociedade,
de negar as possibilidades de divergência, não tanto na sociedade
quanto nelas mesmas. Agiram como Zack em Capacete de Aço, que
atira no major norte-coreano, não por ele ler em voz alta a oração
de Short Round “– Por favor, faça o sargento Zack me amar” –, mas
porque ele acrescenta: “Que oração idiota.” O major forçou Zack a
43
confrontar o conflito entre a lealdade a outro e a lealdade ao eu.
Durante a maior parte do filme, ele concorda com o major quanto
à idiotice da oração de Short Round; portanto, ao atirar, Zack tenta
destruir uma parte de si mesmo, tenta negar seu ceticismo prévio. É
o primeiro sinal de sua loucura iminente.
Esse padrão do emprego da violência como forma de suicídio
espiritual, como um modo de negar partes da verdade sobre si mesmo, é recorrente nos filmes de Fuller. Bob Ford, em Eu Matei Jesse
James, se recusa a ouvir quando Kelly lhe diz que Cynthy não o ama.
Diante de um homem que não está preparado para aceitar a verdade, Kelly se vê obrigada a recorrer a uma escopeta em vez de usar
argumentos racionais. De forma semelhante, a violência de O Barão
Aventureiro (The Baron of Arizona, 1950) se origina na recusa de
Reavis em admitir sua fraude ou em fazer concessões aos colonos. A
natureza obsessiva do seu desejo de dominação e posse totalmente
individuais só pode ser recebida com uma tentativa, pela bomba ou
pela forca, de destruir a individualidade que reside no cerne dessa
obsessão. A comunicação implica um processo de partilha. Quando
essa partilha é vista como uma violação da individualidade, a violação física real do eu é tudo o que resta como meio de comunicação.
A coerção física se torna a única linguagem compreensível. Em Proibido (Verboten!, 1959), quando Bruno conta a verdade sobre Helga
a Brent, este imediatamente o nocauteia. Quando Brent diz aos alemães famintos que estão sendo alimentados pelos Estados Unidos,
eles o espancam. Lembra a forma como o Star reage ao Globe em A
Dama de Preto (Park Row, 1952).
Depois de ser forçado a enxergar a verdade sobre os nazistas
em Nuremberg, o irmão de Helga mata o líder do Werewolf em um
vagão em chamas. Trata-se de uma tentativa de exorcizar a culpa
daqueles crimes de guerra nazistas, de destruir parte da Alemanha
e, portanto, de si mesmo. O nazismo é visto como mais uma forma
de violência que tenta negar a verdade, a complexidade tanto da sociedade quanto do indivíduo. Esse é o perigo e o atrativo do fascismo
na obra de Fuller: como sugere o título Proibido!, ele é diretamente relacionado à limitação da liberdade pessoal, mas não no nível
político simples do mecanismo opressor de um Estado totalitário.
O nazismo é a insanidade em nível nacional. O irracional é tão forte, que, se negado e neutralizado com limitações sociais excessivas,
irromperá em uma forma excessivamente violenta. Zack negou o
44
amor dentro de si por tanto tempo que sua expressão final foi uma
explosão de tiros de metralhadora.
É por isso que a guerra leva à loucura. Ela impõe uma limitação
insuportável a impulsos humanos naturais. Em Mortos Que Caminham, Chowhound quer satisfazer o desejo eminentemente natural
de comer, então corre para o campo onde os aviões lançaram os pacotes de comida e leva um tiro dos japoneses ao redor. Na cena com
as identificações, em que Stock tem de escrever cartas aos parentes
dos mortos, torna-se evidente que, para ser um bom soldado, ele precisa suprimir seu sentimento natural de tristeza. Não pode se aproximar demais dos seus homens. Nessas circunstâncias, a insanidade
é a reação natural. O soldado pergunta a Merrill se Lemchek sobrevivera e, em seguida, morre. Merrill pergunta ao enfermeiro: “Quem
é Lemchek?” “Lemchek é ele”, responde o outro. Mais tarde, Muley se
identifica completamente com sua mula e termina por carregar ele
mesmo o fardo do animal, chegando ao extremo de morrer de exaustão. O soldado Jaszi, um dos mercenários de No Umbral da China, é
atormentado por pesadelos em que vê um soldado russo à sua frente e
tenta matar o oponente imaginário. Ele se assemelha a Tolly, de A Lei
dos Marginais. O assassinato do pai de Tolly é visto pelo filho e por
nós, a audiência, não como uma morte física, e sim como um pesadelo
povoado por sombras enormes. É um trauma que ele só pode exorcizar por meio da violência pessoal. A fonte neurótica dessa vingança,
que se torna a base para toda a sua vida, é ilustrada pelo motivo do
punho. Já bem no início, ele se recusa a envolver a sociedade em sua
missão quando deixa de colaborar com a polícia. Essa recusa em colaborar é uma recusa em comunicar-se, em dizer a verdade. A violência
é a única língua de que ele fala. O fato de que, em decorrência disso,
esse problema só pode ser solucionado com sua própria morte é evidenciado pelo close-up no punho cerrado com que se encerra o filme.
A abertura de A Lei dos Marginais parece sugerir uma maldição primeva vil na base da experiência norte-americana. Ela tem
como pano de fundo a vida de festas nos becos atrás dos bares
clandestinos onde se celebra o Ano-Novo. Parece desnudar o lado
frágil do Sonho Americano: enquanto a festa continua despreocupadamente, um crime terrível é cometido, crime esse que os Estados
Unidos nunca poderão exorcizar. Talvez seja a negação do pai, da
cultura da velha Europa, talvez seja a destruição dos índios, talvez,
a escravidão; talvez o crime e a maldição sejam a própria liberdade
45
individual, da mesma forma que, em Édipo, a tragédia não vem de
algo que ele tenha feito, mas da consciência de tê-lo feito. Se, para
serem solucionados, todos os problemas retornam ao eu, centro da
consciência individual, tornam-se, como a vingança de Tolly, obsessões. Assim, a loucura é vista como o desdobramento inevitável da
completa liberdade individual.
O tema encontra sua expressão última em Paixões Que Alucinam, em que os Estados Unidos se tornam não um campo de
batalha, a fronteira ou o submundo, mas um hospital psiquiátrico.
Johnny Barrett aparenta estar tentando desvendar um assassinato
que ocorreu no hospício, assim como Tolly aparenta estar atrás dos
assassinos de seu pai. Na verdade, os objetivos de ambos são projeções de suas obsessões pessoais. No início de Paixões Que Alucinam, Barrett é treinado para simular os sintomas da loucura, enquanto a sua ambição de ganhar o Prêmio Pulitzer a qualquer preço
deixa claro que já está louco. Isso se torna evidente quando Cathy,
sua noiva, tenta convencê-lo a desistir do projeto: “Eu estou economizando para a gente poder levar uma vida normal”. Na primeira
cena, a sociedade, na forma de um médico e de um editor de jornal,
está envolvida na insanidade de Johnny. Como é próprio de Fuller,
a única pessoa sã é uma outsider, uma stripper e cantora de cabaré que, ao se apaixonar por Johnny, rompe o círculo obsessivo de
sua própria individualidade. O tom amargo do filme torna-se mais
perceptível quando se leva em conta o tributo afetuoso que Fuller
fizera ao jornalismo em A Dama de Preto. Agora, um editor de
jornal e um jornalista estão profundamente implicados na loucura
da sociedade norte-americana. A queda é resumida ao fim do filme
pelo diretor do hospício: “Que tragédia. Um mudo louco vai ganhar o
Prêmio Pulitzer”. Jornalistas eram vistos originalmente como guardiões da verdade, mas, agora, são parte da grande conspiração, do
totalitarismo de mentiras que Mailer vê por todo o lado nos meios
de comunicação de massa. Ademais, a verdade torna-se hedionda
demais para ser contemplada. Ela enlouquece aqueles à sua procura.
Que a insanidade é a expressão última da individualidade, torna-se visível numa sequência entre Barrett e Pagliacci. Pagliacci
rege música imaginária. Só ouvimos a música nos seus planos. Nos
de Barrett, ouvimos apenas seus pensamentos. O homem são em
aparência vive num mundo tão autocentrado quanto o do insano,
um completamente alheio à experiência do outro. O ponto ganha
46
mais ênfase nas entrevistas de Barrett com as três testemunhas do
assassinato. Em cada caso, ele consegue provocar um retorno à sanidade. As testemunhas deixam suas identidades fantasiosas, mas
logo voltam aos medos obsessivos que as enlouqueceram. As três
querem comunicar suas experiências a Barrett, mas este não consegue falar de nada além do assassinato. Assim, a fronteira entre
sanidade e insanidade desaparece, e o que nos resta são indivíduos
enclausurados num eu em isolamento obsessivo. O fato de que, para
esses indivíduos isolados, a violência se torna uma forma de substituir a comunicação é demonstrado ao fim de Paixões Que Alucinam,
quando, em uma orgia de violência física, Barrett persegue Wilkes
e o espanca. Ele perdeu a sua voz e não tem outro meio de passar
adiante o segredo da culpa de Wilkes.
A postura normal de desconfiança adotada pelo protagonista de
Fuller como meio de sobrevivência se torna, em Paixões Que Alucinam, a causa do colapso nervoso e ilustra o quanto os homens e
as mulheres do diretor constantemente se aproximam da loucura. É
a suspeita de assassinato que atrai Barrett ao asilo, afinal. Uma vez
lá dentro, ele passa a sentir um ciúme obsessivo de Cathy. Em seus
sonhos, ela o provoca com sua sexualidade insatisfeita e sua infidelidade. Trata-se de uma infidelidade imaginária, com a qual nós,
a audiência – bem típico de Fuller –, estamos envolvidos, pois, nas
sequências de striptease, somos levados a desejá-la. Cathy aparece
para Barrett em sonho da mesma forma com que apareceu para
nós: vestida para o seu número de striptease. Na medida em que a
desejamos, é de nós que Barrett desconfia, mas, também na medida
em que a desejamos, dividimos as frustrações dele. Portanto, somos
implicados nas causas da insanidade de Barrett e tomamos consciência da possibilidade de partilhá-la.
O mundo dos insanos não é visto como diferente do mundo normal. Pelo contrário: o hospício é uma versão comprimida do mundo
dos outros filmes de Fuller. Todos desempenham um papel falso:
Stuart, que antes se aliara ao comunismo, age como um general da
Confederação; Trent, o único aluno negro de uma universidade sulista, como o líder do Ku Klux Klan; Boden, o cientista atômico, como
uma criança inocente de cinco anos de idade; Barrett, o jornalista,
como um louco. As autoridades, assim como a sociedade, ou são hipócritas e corruptas feito Wilkes, que aparenta ser o mais gentil dos
enfermeiros, mas não passa de um assassino desonesto, ou se dedi47
cam a conter os impulsos de cada um dos internados, reduzindo-os
mediante tratamento a um estado de calma desumano. A irracionalidade é tão central no mundo de Fuller que aqueles que se dedicam
a tornar o homem racional são vistos como uns disparatados, tão
loucos quanto os pacientes, trancafiados dentro de suas próprias
categorias psiquiátricas estreitas. É um mundo onde acessos de violência extrema podem ocorrer a qualquer momento, pelos motivos
mais triviais.
Assistir a Paixões Que Alucinam é ser levado a pensar no comentário do Marquês de Sade sobre o romance negro, citado por
Fiedler no livro Love and Death in the American Novel (Nova York:
Criterion Books, 1960): “‘Foi preciso buscar o auxílio do inferno [...]
e procurar no mundo do pesadelo’ imagens adequadas à ‘história
do homem nesta Idade do Bronze’”. Que se trata de uma versão dos
Estados Unidos saída de um pesadelo, isso fica aparente nas pessoas de Stuart, Trent e Boden, as três testemunhas do assassinato,
pois também são testemunhas dos crimes do país. Stuart, filho de
meeiros analfabetos do Tennessee, foi criado para odiar, e não para
amar. Depois de ser capturado na Coreia, ele procura o comunismo,
mas, quando passa a ter o que amar nos Estados Unidos, rejeita os
comunistas e volta ao seu país – apenas para ser levado à loucura
pela rejeição dos compatriotas. Stuart vive na carne a paranoia da
Guerra Fria e do macarthismo. Trent é o primeiro estudante negro
de uma universidade sulista. A pressão sobre ele – de sua gente,
pressão para ser bem-sucedido; dos brancos, ódio – enlouquecemno. Ele é produto do crime racial dos Estados Unidos. Boden é testemunha de crimes da tecnologia, em especial o lançamento das duas
bombas atômicas. Sua loucura é um protesto contra a perversão do
conhecimento a serviço do militarismo. Assim como a loucura do rei
Lear, a de Johnny Barrett é a única reação razoável aos horrores que
descobriu. Em Paixões Que Alucinam, a ficção se torna realidade, o
herói existencial se define pelos seus atos: ao agir como um louco,
ele se torna um. É apenas ao concluí-la que a verdadeira natureza da
sua missão lhe é revelada. No instante em que descobre a identidade
do assassino, descobre sua própria identidade, a expressão final de
sua ambição. Ele enlouquece e volta-se completamente para dentro
de si; é só no isolamento total que se encontra a verdadeira liberdade individual, e é só quando fica mudo e inerte que Johnny é livre
das outras pessoas.
48
Aqui, no fim de Paixões Que Alucinam, a polaridade básica do
mundo de Fuller está compreendida na pessoa de Johnny Barrett.
Por fora, ele é um símbolo perfeito das forças da mente racional,
lógica, tão controlada em seu transe catatônico que chega à rigidez.
Perfeitamente adaptado ao mundo em que se encontra, foi reduzido
por pressões sociais à completa inatividade. No entanto, por dentro, o irracional tomou o controle. As imagens de sua loucura são
cachoeiras e relâmpagos, forças da natureza indômita às quais os
Estados Unidos sempre recorrem em sua repulsa aos reis e bispos
da Europa. Barrett sucumbiu ao apelo da irresponsabilidade e da
insanidade, simbolizado pelas duas imagens da água fundamentais à
imaginação norte-americana: o rio de Huckleberry Finn e o oceano
de Moby Dick.
49
Kent Jones
Certa vez, Jonathan Rosenbaum me contou que Nascido para
Matar (Full Metal Jacket, 1987) não tinha valia alguma para Samuel
1
Respectivamente
Apocalypse Now (idem,
1979) e O FrancoAtirador (The Deer
Hunter, 1978) (N.E.)
50
Agonia
e Gloria: a
reconstruca0
1
Fuller. Rosenbaum expressou seu entusiasmo em relação ao filme de
Kubrick, mas Fuller não compartilhava de tal reação: “É uma campanha de recrutamento.” Não consigo concordar com as palavras de
Fuller, mas o adoro por tê-las proferido. E o adoro ainda mais depois de ter visto a versão reconstruída de Agonia e Glória (The Big
Red One, 1980), meticulosamente organizada por Richard Schickel,
outra pessoa que se importa muito com o modo com o qual a guerra
é retratada nas telas. Comparada à versão cortada — um digno (segundo Fuller), elegíaco e relativamente antiquado filme de guerra de
1980 com 113 minutos —, essa, com duas horas e quarenta minutos
(e não as míticas quatro horas e meia), é uma nova experiência. Esse
é um filme sobre o inferno e o tédio de se estar numa guerra, e a
indiferença dos felizardos que sobrevivem em relação aos que em
breve morrerão. Grosserias à parte — e o que seria um filme de Fuller sem grosserias? —, o filme agora está à altura das palavras que
lhe servem tanto de slogan original como de última fala da narração
em off: “A verdadeira glória da guerra reside em sobreviver.”
Quando Agonia e Glória foi lançado em sua versão truncada
(com a aprovação do diretor, segundo me contou uma fonte confiável), era um filme apanhado entre duas eras: um artefato fabricado por um estúdio tradicional, associado a um cinema que seguiu
o excesso de extravagâncias rock ‘n’ roll pós-Vietnã e que jogou o
decoro espacial/narrativo/temático pelo ralo para sempre — basicamente, um filme de 1959 em meados de 1980. Os épicos de Coppola
e Cimino1 apresentavam protagonistas quase psicóticos, e isso fez a
ideia de Lee Marvin guardando um esquadrão etnicamente equilibrado de jovens promissores parecer bastante obsoleto. Que os homens ingênuos foram os atores mais inexpressivos imagináveis não
ajudou — Robert Carradine como o alter ego de Fuller ainda parece
e soa como se tivesse saído de uma sessão dupla com Ralph Meeker/
Gene Evans numa sala de exibição com ar-condicionado.
Mais de vinte anos depois, a “era Vietnã” do cinema adquiriu
contornos antiquados, e a Segunda Guerra emergiu novamente
como uma obsessão nacional. E, assim como nosso novo triunfalismo está em vias de desintegração, o filme de Fuller parece ain51
1
Respectivamente Atrás
da Linha Vermelha (The Thin
Red Line, 1998)
e O Resgate do Soldado
Ryan (Saving Private
Ryan, 1988).
52
da mais impressionante: um épico memorial de baixo orçamento
(filmado de modo econômico em Israel e na Irlanda), tão simples
e discreto quanto uma história contada por seu pai. O espírito do
filme parece certo, de um modo que os pomposos filmes sobre a
Segunda Guerra de Malick e de Spielberg1 não parecem, colocando
suas claras virtudes de lado. A ideia de resignação plácida dividida
entre Fuller e seu protagonista; as erupções repentinas de sexualidade desvairada; o aspecto levemente fabuloso da história, como
se cada evento tivesse sido filtrado por anos de repressão, trauma,
aceitação, e então solidificados como lendas personalizadas; o comportamento másculo emprestado da era de Os Doze Condenados
(The Dirty Dozen, Robert Aldrich, 1967), que um dia pareceu tão asqueroso e que hoje parece um mecanismo de defesa razoável para
qualquer jovem com medo de não voltar vivo para casa — tudo soa
verdadeiro. Até a imaturidade dos atores, agora os homens esquecidos do passado, parece verdadeira: afinal, é sempre um bando de
jovens que é enviado à guerra.
Fuller, com seu ponto de vista de repórter atrás dos fatos, conhece algo que Spielberg, Kubrick, Malick e Coppola não conhecem.
Para Fuller, a guerra, a verdadeira guerra, jamais poderá ser encapsulada ou reduzida à sua essência: quando você tenta “equilibrar” a
insanidade da empreitada com discussões sobre Emerson diante da
fogueira ou com monólogos interiores sobre a dualidade da natureza humana — quando você lhe confere uma forma própria —, você
está conferindo à guerra mais reverência do que ela merece.
“Veja, não há como retratar a guerra realisticamente, nem em
livro, nem em filme” escreve Fuller em sua autobiografia publicada
postumamente — e cada uma dessas palavras parece ter sido vociferada por telefone de uma cena de crime. “Só é possível capturar
uma fração bem, bem pequena dela. Se você realmente quiser fazer
seus leitores entenderem a batalha, algumas páginas do seu livro
teriam que ser armadilhas, para pegá-los desprevenidos. Para que
os espectadores tenham a ideia do combate real, você teria que atirar neles dos dois lados da tela. Mas mortes na sala de cinema seria
ruim para os negócios.”
Isso vem de alguém que escapou de Rommel no norte da África,
que sofreu o pão que o diabo amassou na praia de Omaha, e que
estava presente durante a libertação de um campo de concentração
na Tchecoslováquia, tudo isso recriado aqui. Claro, e isso vale para
todos os assuntos, não há uma maneira única e irrefutável de representar a guerra. Se parece que deveria haver uma, é simplesmente
porque o abismo que separa os que passaram por essa experiência
dos que não passaram é tão amplo, e porque a natureza da experiência é traumática na melhor das hipóteses e fisicamente arruinadora
na pior — se você tiver sorte o bastante para ter sobrevivido àquilo,
claro.
O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998), provavelmente um dos filmes mais influentes dos últimos vinte anos, é
o óbvio contraponto. Como o dia D de Fuller pode ser comparado
ao de Spielberg? Spielberg certamente ganha em termos de puro
impacto físico, graças à sua habilidade consumada de lidar com sets
com múltiplos campos de ação e entrecruzar movimento e som. A
versão de Fuller é muito menos espetacular, o coeficiente “você está
lá” é mais baixo, os momentos são dispostos como momentos no
melhor sentido hollywoodiano, e não como instantes que parecem
ter sido capturados de um fluxo contínuo de realidade. No entanto, a
cena de Spielberg funciona mais como uma experiência abstrata que
qualquer outra coisa, uma espécie de instalação audiovisual maximizada que poderia ser chamada “Praia de Omaha” ou “Massacrado
por todos os lados”. Como sequência de cinema, é brutalmente resoluta, enquanto a de Fuller é impulsionada por uma lógica dramática,
assim como uma maior preocupação com detalhes mundanos, mas
não menos cruciais. Entendemos que as granadas norte-americanas
caíram muito além da praia, que os alemães posicionados acima não
são soldados inaptos para o combate (como se acreditava), que as
cercas de arame farpado precisavam ser destruídas antes que os
soldados que se acumulavam na praia pudessem avançar. Para mostrar a passagem do tempo, Fuller estabelece um dispositivo perspicaz que sobreviveu ao primeiro corte: um relógio de pulso no braço
de um soldado morto, flutuando nas ondas cada vez mais sangrentas
da Normandia. A cena é, então, centralizada nos torpedos Bangalore e nos homens sendo continuamente massacrados, até que Griff,
interpretado por Mark Hamill, consegue sair dali, sob fogo cruzado.
Na versão de 1980, a cena tem um poder simples e solene. Na
versão reconstruída, Robert Carradine reencena Fuller correndo
pela praia para alertar a seu comandante que a armadilha foi destruída. Um pouco antes de ele alcançar o coronel, ele repentinamente
cai. Há um soldado morto a seu lado. A câmera faz uma panorâmica
53
para baixo e vemos, por um breve instante, que o estômago dele
foi estourado e que seu intestino está exposto. A isso, segue-se um
detalhe dos mais estranhos: Carradine enxerga um cigarro em bom
estado próximo ao soldado moribundo, pega-o, coloca-o na boca
dele, e levanta-se para continuar a corrida. Tão estranho quanto este
momento é a cena em que o coronel recebe a notícia. Ele se levanta
e grita: “Há dois tipos de homem lá fora: os mortos e os que estão
prestes a morrer. Então vamos sair logo desta praia e pelo menos
morrer longe da costa.” Foi o fim da satisfação por ter avançado.
Fuller não tenta recriar o evento, como Spielberg faz. Os detalhes mais traumatizantes são quase sempre deixados de fora das
histórias contadas pelos veteranos — eles estão além da compreensão de tal forma que é impossível recontá-los. “Cabeças, braços, dedos, testículos e pernas estavam espalhados por todo lado quando
corremos pela praia, tentando desviar dos corpos”, escreve Fuller a
respeito da chegada à praia de Omaha, colocando no papel o que
é ao mesmo tempo muito chamativo para uma conversa casual e
muito constrangedor para ser retratado visualmente com artefatos protéticos. Ao contrário de Spielberg, Fuller não tenta nos convencer de que estamos assistindo a um evento real. Ele sabe que,
assim que você mostra alguma coisa, você não só está implorando
para que a plateia questione a realidade daquilo como também está
acobertando o horror, dando a ele a forma e a finitude que ele é
impossibilitado de possuir quando é realmente vivenciado. Fuller
permite que compartilhemos de seu próprio horror convulsivo ao
nos dar imagens únicas, quase ideogramáticas — o braço de um
morto, um cadáver com o intestino exposto —, que sugerem uma
variedade de associações.
No que o corte de 1980 era relativamente sóbrio, a nova versão
é surpreendente. Quase todas as cenas agora ressoam por conta de
detalhes excêntricos, porém, críveis, dos Legionários que cortam
as orelhas dos soldados mortos (no clímax de uma cena de batalha a cavalo maravilhosamente intrincada) aos velhos fazendeiros
alemães defendendo a pátria dos invasores norte-americanos, mas
que se encolhem ao primeiro disparo do rifle de Marvin. Agora há
uma cena com um jovem atirador, um corolário direto do clímax
de Nascido para Matar, que termina muito perto do episódio de
Soldado Ryan em que o esquadrão é atormentado sobre o destino
do prisioneiro alemão. A cena do filme de Fuller é menos grandiosa
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que ambas. O que fazer com esse impenitente jovem hitlerista que
ninguém quer matar? Marvin encerra a discussão muito antes de
Tom Hanks conseguir o mesmo, e decide dar ao menino a pior surra
de sua vida, que o faz gritar pelo seu pai. De certo modo, é até divertido, uma dessas algazarras que geralmente se vê em filmes antigos
sobre a Segunda Guerra, mas essa cena também tem uma lógica
tresloucada: o que mais se faz com um menino?
Fuller supostamente iniciou o projeto de Agonia e Glória na
Warner Brothers em 1959, com John Wayne como protagonista, e
tanto Richard Brooks quanto Dalton Trumbo sabiamente o aconselharam contra. A sentimentalidade sofrida de Lee Marvin fez maravilhas por Aldrich e Boorman, mas não acho que eles tenham encontrado melhor lugar para ela do que neste filme. Nesse ponto tardio
de sua carreira, Marvin havia perdido aquele ar de Liberty Valance e
adquirido sua autoridade desencantada, e, numa jogada inteligente,
Fuller acertou todo o filme no ritmo solto do ator. “Lee realmente
ficou bêbado umas duas vezes, mas, pelo amor de Deus, ele estava carregando o filme todo nas costas”, escreve Fuller, que afirma
que ele e Marvin não tiveram que conversar muito. Não surpreende.
Marvin lutou no Pacífico, onde foi o único sobrevivente de seu esquadrão em Saipan, e está enterrado em Arlington. É por isso, sem
dúvida, que sua performance aqui é um milagre tão sereno.
Na nova versão de Agonia e Glória, crianças são atraídas continuamente para Marvin — uma menina tunisiana, um menino siciliano que o agradece por ter se encarregado do enterro de sua mãe,
e uma menina que decora seu capacete com flores e que depois é
morta quando corre para se despedir dele com um beijo. Ele deixa as crianças se sentarem quietas a seu lado, nem acolhendo-as
afetuosamente nem enxotando-as dali, permitindo que elas fiquem
dentro de sua aura protetora, mas evitando o apego. E isso faz o já
devastador episódio final do menino que morre em Falkenau ser
muito mais forte. Três dos mais eloquentes minutos do cinema — o
menino é carregado por Marvin, colocado sobre uma cama, retirado
das sombras, trazido para a margem do rio e içado aos ombros de
Marvin por alguns segundos, ao sol, antes de morrer. A ternura mais
incomum, a simplicidade mais brutal.
Se você quiser tremer de medo, veja O Resgate do Soldado
Ryan — mas, lembre-se, só funciona uma vez. Se você quiser ponderar sobre se o mal está ou não dentro de nós, veja Além da Li55
nha Vermelha (The Thin Red Line, 1998). Se você quiser segurar
o conceito da guerra em suas mãos, como um diamante preto elegante e perfeitamente formado, veja Nascido para Matar. Sem querer depreciar esses filmes, Agonia e Glória, em sua versão atual,
pode ser o único que leva a experiência da batalha às últimas consequências. O filme nos dá uma ideia de por que homens como meu
pai, cinquenta anos depois do término da Segunda Guerra, ainda
choram quando as lembranças do que vivenciaram ressurgem rapidamente à superfície.
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57
er por
Feluellmesmo
I.
The
Dark
Page
1
60
Naquela noite Carl Chapman tocou a grandeza.
Amanhã, as manchetes diriam: 12.000 ENCONTRAM A FELICIDADE!
Quarenta e oito cabines cercavam a pista de dança no Madison
Square Garden; sobre cada uma, uma flâmula na qual se lia o nome
de um estado.
O local estava lotado.
Uma alegre mocinha polonesa de suéter vermelho encarava esperançosamente o rosto recém-barbeado de um motorista de caminhão com emprego fixo; um garçom-filósofo húngaro conversava
gravemente com uma viúva russa inquieta e sem filhos; um bem
esfregado servente de lavatório sorria tolamente para uma Cinderela obesa; um jovem alemão perplexo que não falava inglês ouvia
atentamente ao agudo e enervado tagarelar de uma garçonete; um
octogenário mascador de chicletes proveniente de Coney Island persuadia uma nervosa professora a compartilhar de seu interesse em
antropologia, chamados de pássaros e sexo.
Romeus bailavam com Julietas que tinham os dedos cruzados – sonhadores, grevistas, analfabetos, imigrantes nos primeiros
estágios do processo de naturalização, balconistas otimistas que falavam lugares-comuns de maneira apaixonada, aventureiros outrora briosos diminuídos na presença de parteiras de meia-idade que
entretinham sonhos quase desaparecidos e arrependimentos cada
vez maiores.
Olá, eu sou o Glen... Olá, eu sou a Pola... Aquele loiro é bonito...
Olha, está olhando para nós... Venho de uma fazenda em Stor-Vindelsjo... Não seja tímido... Esse vestido é lindo. Eu faço vestidos. Trabalho numa fábrica... Você dança bem, moço...
Esse era o Baile dos Corações Solitários.
Um estandarte de quase vinte metros estendia-se de um canto
a outro nos fundos do salão; dois enormes corações flanqueavam a
legenda: CLUBE CORAÇÕES SOLITÁRIOS DO COMET.
Cada um dos doze mil membros usava um crachá escarlate em
formato de coração dependurado de um barbante vermelho afixado
a um vestido ou lapela – e cada crachá daqueles significava uma
assinatura anual do Comet de Nova York.
Já houvera muitos Clubes Vamos-Nos-Conhecer, Clubes de
1
Originalmente publicado
em The Dark Page
(Glasgow: Kingly Reprieve,
2007). Tradução de Ismar
Tirelli Neto.
61
Amantes Solitários, Clubes de Companhia. Mas o Comet era o primeiro jornal a vender Amor em escala maciça.
E foi Carl Chapman, editor de Cidade do Comet, quem deu à luz
a ideia, além de cuidá-la e fazê-la crescer até se tornar o mais irônico propulsor de circulação do universo jornalístico.
Num canto próximo à cabine do estado de Idaho, ele saboreava seu próprio brainstorm. Seus olhos varriam a multidão com
arrogância. Ela representava dólares e cêntimos, um aumento na
circulação e elogios de seu editor. Ele sempre soubera que tinha o
talento, a experiência e o amor aberrante do choque necessários ao
planejamento de uma tal jogada; essa farsa provaria que jogar migalhas de romance aos famintos de amor pagava espetacularmente.
Os mistérios, perigos, delícias e promessas descobertos hoje à noite,
fariam de cada um dos presentes um leitor vitalício do Comet.
Uma mulher baixa e morena estava diante dele, sorrindo, a cabeça inclinada de maneira coquete. Um grosso aparelho de ouro segurava seus dentes no lugar. Ela o olhava fixamente, esperando. Viu
seu crachá oficial e foi-se embora.
Então ele viu sua esposa. Ela estava dançando com um magro
rapaz de Vermont com o queixo reentrado. Ela o estava fazendo rir.
Rose sempre levara tudo na esportiva. Era essa uma das dúzias de
motivos pelos quais ele se apaixonara tanto por ela. Eram tão afinados
entre si que ela conseguia sentir a sua presença através dos casais que
circulavam. Ela voltou-se, viu–o e acenou. Ele acenou de volta.
Uma diminuta figura adentrou seu campo de visão – Julie Allison.
Era tão pequena, e tão imensamente sincera; estava correndo para
cima e para baixo, tratando que os membros se sentissem confortáveis, respondendo a perguntas, alegrando-se do amor que brotava
entre aqueles estranhos que traziam os próprios corações nas mãos.
Um rapaz alto e magricela atravessava a multidão com dificuldade, seus olhos azuis examinando os rostos impacientemente. Era
a primeira vez naquela noite que Carl via Lancelot Seumas McCleary. Começou a varar as linhas para alcançá-lo.
Uma sueca gorda, ruge aplicado às faces em dois discos flamejantes de laranja amarelado, trajando um vestido de veludo azul,
apaixonou-se por Lance McCleary a poucos passos da cabine de Indiana e bloqueou-lhe a passagem, sorridente.
Carl agachou-se atrás da cabine.
“Sou Hulda”, ele a ouviu dizer para Lance. Ótima festa, yah?”
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Carl deu uma risota. Lance dera um passo para trás ao ver surgir diante de si aquela montanha perfumada e reluzente.
“Yah”, ele resmungou, numa mímica débil.
Ela inclinou-se para a frente e leu-lhe o crachá pendurado na lapela. Número um-quatro-seis-oito-seis. Blick! Veja só, eu sou doistrês-nove. Membra velha. Você acabou de se juntar, yah?”.
Antes que Lance pudesse responder, ela já o tinha arrastado
para a pista de dança lotada. Carl esticou o pescoço para assistir.
Dois compassos e a música parou. Lance desvencilhou-se e fugiu. Porém, a Número 239 não se deixava intimidar. Começara a
caçada. Carl correu de detrás da cabine a tempo de ver as mãos dela
se enroscando no pescoço de Lance. O fugitivo do amor girou.
“Varsor Springer? Por que você foge?”, ela perguntou inocentemente, casualmente esfregando a listra de graxa marrom que tatuava seu cotovelo. Não se acanhe, vacker man. Rapaz adorável, gosto
de você. Você gosta de mim, yah?”
Ela apertou a mão de Lance carinhosamente; ele recuou sob a
pressão. Procurava desesperadamente uma saída enquanto ela lhe
murmurava que eram almas gêmeas. A firmeza do toque dela em
seu braço o compelia a ouvir. Não havia mais nada que ele pudesse
fazer, não havia saída alguma.
Carl decidiu que Lance já sofrera o suficiente. Caminhou até
eles, apartou-os cuidadosamente e dirigiu a ela uma graciosa vênia.
“Logo mais, fotos”, ele lhe disse musicalmente. “Sua foto no jornal, yah?”
“Eu? Porträtt?”, ela ofegou.
Carl instruiu-a a esperar pelo fotógrafo perto da cabine da Carolina do Norte, e prometeu não perder de vista seu recém-encontrado noivo.
“Yah!”, ela disse. Seus olhos bebiam Lance avidamente. Ela acariciou sua bochecha. “Vackerman”, ela disse, cantarolante. Depois
foi-se embora com seus passos de pata-choca. Lance voltou-se para
Carl, que agora ria incontrolavelmente.
“Veja só isso, ele disse mordazmente, golpeando com o dedo o
crachá preso à lapela. “Muito bonito!”
Carl enxugou os olhos.
Lance continuou. “Caí na conversa de Julie feito um tonto. Você
sabia que eu cairia esse tempo todo. Quando eu encontrar aquelazinha –“Carl sorriu. Fora fácil arrastar o seu melhor repórter
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investigativo ao Baile dos Corações Solitários, graças à Julie e seus
olhos calorosos.
Lance olhou secamente para o coração que lhe haviam fixado.
“Eu fui louco de deixar você me arrastar até aqui. Bom, chefe, por
que essa enganação?”
“Acalme-se, Lance. Divirta-se um pouco”.
“Sim, como aquele tonel coberto de pó-de-arroz! Se você não
tivesse respondido ao meu SOS, ela teria –”
“Você não pode culpá-la. O coração fraco dorme só.
“Certo, você já deu suas risadas. De que se trata isso tudo?”
“Você vai cobrir isso aqui hoje à noite.
“Agora quem ri sou eu. Me trazer para cá é uma coisa, me fazer
escrever a respeito é outra.
“Qualquer um poderia escrever essa história, mas ela precisa de
algo. E você o tem.”
Lance bocejou. Passou os olhos pela multidão. “Vou para casa.
Gosto de estar só.”
“Por que você acha que te trouxe até aqui só para ficar te olhando, seu ruivo resmungão? Tenho vários sujeitos aqui cobrindo esse
evento e todos eles vão me entregar a mesma lenga-lenga de sempre, mas o que eu quero é o toque McCleary”.
A isso, a resposta de Lance foi curta, pontual, profana.
“Quem disse que você vai ganhar o Pulitzer?”, disse Carl. “Tudo
o que precisa fazer é andar por aí. A história acabará se escrevendo
por si só”.
“Mais cinco minutos nesse ninho de amor de infelizes e eu abro
o berreiro!”
“Era disso que eu estava falando. Lágrimas e tinta, um melado
grudento e saboroso”.
Lance parecia entediado, o que era bom sinal. Quando estivesse
suficientemente aborrecido, escreveria; e quanto mais aborrecido,
mais sentimental.
“Lance, não há nada que apeteça mais ao gosto majoritário que
um bom melado. Mas não muito grosso. Você odeia essa jogada o bastante para escrever uma ótima matéria. E lágrimas e tinta aumentam
qualquer circulação.” Carl colocou um braço paternal sobre seu protegido. “Que me diz, rapaz? Dê ao papai aqui um bom melado – umas
duas colunas.”
Estranho, pensou que estivesse pedindo isso a Lance em vez de
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mandando. Sabia que bastava dizer-lhe “Escreva!” e a matéria seria escrita. Mas ele compreendia Lance. Fora difícil, no início, guiar
este tolo escrevinhador, seu protegido irlandês; cujas histórias tinham sido vulgares, cheias de peripécias, bombásticas, pejadas de
veemência impassível e um pouco do azedume da gentileza. Ele reconhecera no jovem McCleary, então, um contínuo que ainda nem
saíra do colégio, um jornalista nato – o tipo que, com devido treino,
seria capaz de distanciar-se da matéria, estudá-la friamente, digeri
-la cinicamente e escrevê-la com agudeza.
Lance deu de ombros. “Certo, papai”, disse cansado, perscrutando
a multidão. “Vou te dar tanta gosma que as rotativas vão emperrar.”
Carl observou-o desaparecer.
“Socorro! Sr. Chapman, socorro!”
Voltou-se. 150 quilos de terror, máquina escorada sobre o ombro, faziam-lhe sinais. Era o fotógrafo do Comet; o gordo, simpático Amos Biddle, cercado por uma meia-dúzia de mulheres, o rosto
transpirando de medo. Carl nunca vira fraquejar a imensa figura
de Amos. Aproximou-se do limite do círculo e ouviu as barulhentas
Corações Solitários bombardeando o fotógrafo.
“Sou Pola Nogurski. Poso para retrato de novo, não?”
“Gosto de homens gordos.”
“Por favor, meu retrato no jornal amanhã?”
Amanhã. Amanhã já estariam fora de circulação novamente, de
volta aos seus baldes, esfregões e aventais. Pela segunda vez naquela
noite, Carl bancou o herói. Rompeu o cordão e dirigiu-se a Amos, a
voz cheia de sarcasmo. “Quando estiver cansado de fazer o Casanova.” Os olhos de Amos se esbugalharam num apelo desesperado.
Carl voltou-se para as mulheres. “Deem uma folga para ele, damas.
Ele está cansado, não percebem? Ele também tem trabalho a fazer.”
Ouviram em silêncio, seus olhos ávidos banqueteando-se do
rosto corado de Amos.
“Vamos lá, chefe”, Amos passou com esforço pelas mulheres.
Carl consolou-as dizendo “Depois – mais fotos para todas”.
Ele alcançou Amos, que se detivera perto da cabine do Arizona
para recuperar o fôlego.
“Obrigado, chefe!”
“Não se preocupe. Desperdiçou chapas?”
“Não. A máquina estava descarregada o tempo inteiro”.
“É nisso que dá, brincar que está tirando fotos delas. Agora co65
mece a fazer retratos de grupo dos Corações Solitários frente às
cabines de seus respectivos estados”.
“Todos os quarenta e oito?” protestou o preguiçoso fotógrafo.
“Está reclamando?”
“Não, não, chefe. Quarenta e oito? Quarenta e oito.”
“Certo. Antigos namorados se reencontrando, novos romances,
triângulos. Dê-me contrastes.”
Amos se voltara para ir embora quando foi chamado novamente
e apresentado a um gigante húngaro.
“Este é Walter Zcekely”, disse Carl. “É uma falseta.” Daqui a pouco vou anunciar o espetáculo. Enquanto isso, vá colhendo material
dele e de sua garota, Ilona – hmm.”
“Mathusek”, completou Zcekely, rouco.
“Lá está ela, sorrindo para nós. Flagre-os se encontrando como
se fossem estranhos na cabine de Wisconsin. Mostre-os dançando, discutindo a pátria-mãe, o Tio Sam, os processos de imigração;
mostre-os lendo o Comet, comparando crachás do clube, apaixonando-se, propondo, aceitando e beijando-se.”
“Grande, chefe!” Amos estava vivo novamente. “Vamos lá, Romeu–, disse, conduzindo o cigano para longe. “Vamos começar a
trabalhar nessa sua história de amor verídica. Você também, Ilona”.
Fez sinal com ambas as mãos para que os Corações Solitários se
alinhassem diante de suas cabines, enquanto assistentes corriam de
um lado para outro, fazendo eco às suas ordens.
Carl passeou pela multidão. Próximo à plataforma voltou-se, os
olhos piscando enquanto tramava a próxima falseta. Notou um belo
espécimen masculino a poucos metros de si, e perguntou-se se o
seu corpo era tão bem talhado quanto o do garanhão do Michigan.
Encolheu o estômago, constrangido. Novamente relaxado, balançouse do calcanhar à ponta dos pés, as mãos entrelaçadas atrás de si,
admirando o exército de assinantes do Comet como se fosse César a
admirar os destroços após uma campanha vitoriosa.
Descalço, media 1,70m, mas preferia medir sua estatura em polegadas de letra impressa e ganhos na circulação. Agora entrado nos
quarenta, e segundo seus próprios critérios, era maravilhosamente
alto. Teria sido mau negócio, pensou, se não tivesse sido capaz de
fazer jus à autoconfiança arrogante que exibira nos seus dias no
Chronicle. Era assim que ele era – diferente de todos os outros. Nascera rebelde. Jamais se contentara em ser o melhor copidesque de
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Park Row. Já não vira o que costumava acontecer a copidesques leais? Aos desgrenhados cavalos-de-batalha do ramo? A repórteres de
rua varicosos e outros tantos aterrorizados pela sonda estomacal?
Certo, o melhor copidesque e toda aquela sabedoria acerca da
obediência... que os mansos herdam a terra... mas ele sabia que o
seu chefe ia para casa todas as noites, onde lhe aguardavam uma
esposa fiel e filhos que o admiravam. Ele também queria dar ordens
de uma cadeira giratória, ter uma casa própria e casar-se com Rose.
Doce, adorável, loira Rose dos olhos brilhantes. Sempre frágil. Sempre bela.
Naquela noite, eles saíram... era seu quarto encontro com ela.
Ela disse que ele estava gastando demais, mas ele só pensava na
própria carreira. Pau-mandado do editorialista por dois anos! Não
tinha direito a uma folga? Ele tinha grandes planos. Fora para isso
que viera a Nova York em primeiro lugar: à procura de uma chance,
um recomeço.
“De onde você vem, Carl?” ela perguntou enquanto ele gastava
seu último dólar em vinho. Ele continuou tagarelando, evadindo-se
à pergunta. Sentia-se muito mal...
No dia em que assassinaram o Globe de Nova York, ele foi promovido a um dos maiores cargos do jornalismo de Manhattan – a
editoria de cidade do Comet de Nova York, então novidade nas bancas. Embarcar em algo tão novo revelou-se simples para ele, pois ele
tinha como que selvas e selvas de ideias. O ajuste ao novo emprego,
à nova vida, foi glorioso, empolgante, divertidíssimo. Encontrou uma
equipe turbulenta e brigalhona e conseguiu transformá-la numa
máquina de notícias leal ao extremo do fanatismo, por força da repetição diária, horária de seu slogan predileto: “muito do melhor!”.
No princípio, o Comet representava apenas um morno desafio
aos demais jornais, mas o cérebro de Carl foi a transfusão que lhe
salvou a vida. Ele teve de lutar com jornalistas invejosos por conta
de matérias simplórias. Ele se revoltava, batia com o punho na mesa
e berrava ordens, aterrorizando os funcionários ao ponto de subjugá-los. Os homens lhe temiam e respeitavam, e seus piores inimigos
reconheciam sua capacidade. Mas eram poucos os que o amavam.
As manchetes eram grandes e ousadas, mas nunca tão grandes e ousadas quanto ele as visualizava. Não tinha amigos durante
aqueles dias amargos em que era o rei da editoria de cidade, a coroa
ainda reluzente, um lápis azul numa mão e uma aspirina na outra
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até imortalizar a si próprio como marido e pai com a manchete-dasemana QUE BOM QUE ELE É MENINA, ROSE!”.
No dia em que Tommy nasceu, prometeram-lhe um bônus por
cada aumento de cem ou mil que ele pudesse gerar na circulação
do Comet. Ele trabalhou com afinco, fez hora extra à sua mesa, sem
casaco, em mangas de camisa...
Seu primeiro amor era o jornal. O segundo, seu lar. Mas ele
tinha descoberto a fórmula do contentamento total e jamais comprometeu a harmonia entre casa e mesa de trabalho. Ele a protegia zelosamente, preparado para defendê-la, pronto para lutar com
qualquer um que ousasse roubar-lhe sequer um pedaço dela.
Para ele, a vida estava completa.
Em seguida, fez seus rivais coçarem a cabeça e assobiarem ao
fundar o Clube Corações Solitários do Comet. A circulação foi aumentando rápida e seguramente. Ele tornou-se o prodígio agrisalhado do
jornalismo e recebeu ofertas tentadoras de outros periódicos. Mas
permaneceu leal ao Comet. Podia dar-se ao desfrute de ser leal agora.
E então promoveu o Baile dos Corações Solitários.
O Garden estava lotado. Ele sorriu, balançando-se dos calcanhares à ponta dos pés. Agora tinha tudo. Tinha Rose, dois filhos
adoráveis, sua cadeira giratória, sua casa própria. Tinha alcançado
sua meta. Ele era o Grande Editor. Era um marido devotado, um pai
amado. Era o homem mais contente na Terra.
Então ouviu duas palavras. Duas palavras que ameaçavam despi
-lo de todo seu poder, glória e felicidade.
“John Grant!”
II.
Carl girou sobre os próprios pés. Não conseguia ver nada além
dos olhos negros que o fitavam – estranhos, hipnóticos, penetrantes. Havia neles qualquer coisa de vagamente familiar e amedrontadora.
Acalme-se. Só estou cansado. Muito trabalho antes do baile. São
só os nervos, só isso. Eu conferi. Eles disseram que ela estava morta.
Ela está morta.
Deu um passo para trás. Uma ilusão?
A mulher de olhos negros deu um passo à frente. Uma realidade.
A realidade agarrou-lhe o pulso. ”John, é você. É mesmo você!”
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O sussurro provinha de uma garganta apertada de lágrimas. Do fundo de seus olhos veio uma súplica por reconhecimento. Seu rosto
era pálido e vivo. O impressionante desfile dos anos correu pela
mente dele. Ela fora corada e bonita, não esquelética e tísica.
“Charlotte!”
A palavra se arremessara de sua boca antes que ele pudesse
detê-la. Agora era tarde demais para negar. O silêncio respondeu
a ele. Os dedos dela cavaram a sua carne. Ela estava tentando falar.
Reencontrou a voz, agradecida, trêmula, baixa.
“John!”
Pessoas e cabines e flâmulas e os flashes de Biddle começaram a
tomar forma novamente diante de Carl. Lançou um olhar rápido ao
redor. Preciso tirá-la daqui!
Ninguém lhes prestava atenção. Tomou o braço dela e seguiu
aos empurrões pela multidão, rumo à saída dos fundos que dava
para um beco. Alguém encostou-se a ela no caminho e ela tropeçou.
O botão da manga de Carl enredou-se no fio vermelho que ela levava
fixado no vestido, à altura do coração – o crachá do Clube dos Corações Solitários. Ele desvencilhou o braço e continuou caminhando.
Adentraram o beco. O ar correu para dentro dos pulmões dele.
Ele murmurou uma pergunta e ela balbuciou uma resposta. Ótimo;
ela não morava longe, só a umas doze quadras dali. Ele a ajudou a
subir em seu cupê e saiu dirigindo.
Ele precisava abastecer. Engraçado, como a gente consegue
pensar em coisas bestas como gasolina quando –
“É ali, John. Aquele com a luz acesa”.
Ele parou diante de um edifício, seguiu-a rigidamente por um
lance de escadas baratas – pareciam ser milhares. Do lado de fora
de uma porta no segundo andar, ela remexeu os conteúdos da bolsa.
O som de uma chave numa fechadura e uma porta se abrindo alcançaram os ouvidos dele na escuridão. Sentiu que ela passava adiante.
Ela hesitou, tateou a densa escuridão sobre sua cabeça até encontrar
o cordão de ligar a luz.
“Entre, John.”
Era úmido; um cheiro a remédio causou-lhe certa náusea. Ela
deve estar doente, pensou. Ele fechou a porta e voltou-se lentamente; caminhando como se estivesse num pesadelo rumo à única janela
do apartamento, que dava para a rua suja; baixou as persianas enquanto passava, a poucos dedos de distância, um trem elevado. Os
69
olhos dela não lhe deixaram enquanto ele dava meia-volta. Afinal,
ele voltou-se para encará-la.
Ela usava um vestido negro, esverdeado pelo tempo. Numa tentativa patética de parecer elegante, ela colocara um laço e uma gola
de organdi branco. Ele sentiu-se feliz por poder sentir pena dela, e
por essa pena ser tão impessoal.
Ela interpretou seu silêncio equivocadamente.
“Eu – eu mudei”, disse ela, como que se desculpando. “Não acha?”
O que ele poderia dizer? Para ele, ela não passava de um esqueleto que ele havia fechado, trancado e lacrado num armário. Ele jogara a chave fora, já não lembrava onde. Encontrara paz e felicidade
no esquecimento.
Ela estava chorando. De alguma forma, as lágrimas sempre lhe
caíram bem. Seu corpo bambeou. Por um instante, ele pensou que
ela fosse cair. Ele a conduziu até a cama e uma mola reagiu sonoramente ao peso dela. Ele decidiu sentar-se a seu lado. A cama não
dava para ambos.
“Por quê, John? Por quê?” ela perguntou num sussurro.
Conte para ela. Conte para ela. Mas ele não contou. Sentiu
que os olhos dela o devoravam. Ela tomou as mãos dele nas suas e
gentilmente o guiou até o lado vago da cama. Ele estudou aquelas
mãos. Não eram suaves e róseas, conforme ele lembrava; mal podia
acreditar que se tinham tornado tão ossudas, duras e secas.
Um enxurro de memórias tomou-lhe de assalto. Quantas vezes
já tinham se sentado juntos assim? Por um instante, a angústia acometeu-lhe; ele teria renunciado à carreira e a todas as suas posses
para ser vinte anos mais moço e poder dar um passeio com ela perto
de Holy Cross, em Worcester.
Você sabe que não o faria, nem por todo o dinheiro que há
no mundo.
Lentamente, ela recuou as mãos. “A noite que você me deixou...”. Mostrou-lhe os pulsos, para que ele pudesse ver as cicatrizes
que os riscavam. “Oh, John, estou tão feliz agora que o doutor me
salvou. Eu não queria viver então. Fui-me embora. Vendi tudo. Até
aquelas taças de vinho azuis que você tanto gostava. Lavei prato,
roupa, chão – qualquer coisa que me desse dinheiro, de modo que
eu pudesse continuar procurando. Eu tinha que te encontrar. Metime em encrencas, mudei de nome. Smith. Brown. Jones. Foi terrível,
John. Eu estava sozinha. Tão sozinha! Precisava descobrir por que
70
você tinha fugido. Estava no meu direito. Preciso saber.”
“Charlotte, estou casado”.
Ele sentiu os dedos dela esfriarem. Levantou e começou a caminhar de um lado a outro como se estivesse numa jaula. Então
lhe contou – de como tinha mudado o nome para Carl Chapman,
de como tinha lutado e sonhado, e de como tinha conhecido Rose e
finalmente realizado suas ambições.
“Sou feliz, Charlotte. Você não saberia o que isso significa. Você
nunca me viu feliz. Tenho um lar, um nome, um futuro.”
Pronto, contei-lhe. É assim que se faz. Direto ao ponto. Acabar
logo com isso. Vou conseguir administrá-la.
Finalmente ela se pronunciou. Ele teve de fazer força para ouvir
a palavra.
“Casado?”
Ele aguardou. Ela olhou para cima; olhos de dor encontraram os
dele. O trem elevado passou rugindo, fazendo o quarto vibrar. Ela
levantou, equilibrando-se na cabeceira.
“E eu? Eu sou sua esposa”.
“Não, Charlotte, você nunca foi minha esposa.” Nós ficamos juntos por um tempo e trocamos palavras e você me chamava marido
e eu te chamava esposa, mas você nunca foi minha esposa. Você era
muito possessiva. Sempre teu. Sempre teu. Eu estava numa rotina e
você só me colocava para baixo. Quanto mais você gostava de mim,
mais eu te odiava. Quanto mais você me encorajava, menos ambicioso eu ficava. Você me entediava. Você me irritava. O mais leve toque
teu me dava engulhos. Eu não podia te suportar por mais um instante sequer. Precisava te deixar. Precisava te tirar da minha vida. Não,
Charlotte, você nunca foi minha esposa.
Ele disse, “Charlotte, tenho dois filhos.”
“Não dou a mínima para eles. Você pertence a mim!”
Olhe só para ela. A mesma Charlotte de sempre. Egoísta. Meu!
Meu! Vinte anos e nenhuma alteração. Segurando. Segurando.
“Uma coisa eu não penhorei!”
Ela estendeu a mão esquerda com força. A luz que vinha de cima
bateu de chapa no anel em seu dedo. A aliança piscou para ele. Ela
agarrou seus braços num enlace frenético. “Por que você me abandonou, John? O que foi que eu fiz? Você era tudo para mim. Eu nunca
te magoei. Eu te amava. Eu nunca parei de te amar”.
Ele não conseguia desviar os olhos daquele rosto emaciado.
71
“Você não se divorciou. Isso não seria possível, John”.
“Eles me disseram que você tinha morrido”, ele disse.
Mas ela pareceu não ouvir o comentário. “Somos casados! Somos casados!”
“Você foi casada com John Grant.” Havia uma pungência selvagem nessas palavras. “John Grant está morto. Tudo que tinha a ver
com John Grant está morto. Tudo. Você precisa entender isso”.
“Entender?”, ela berrou. “Você ainda é meu marido. Eu nunca
desisti de te encontrar. Entender? Você é que devia demonstrar um
pouco de compreensão para com a sua esposa. A sua verdadeira
esposa!”
Ela deu um puxão no crachá dos Corações Solitários dependurado sobre o coração. “Você compreende isso? Você compreende o
inferno pelo qual tive que passar; o tanto que me rebaixei, a ponto
de procurar companhia num clube” – num clube – de corações solitários – no seu clube?”
Essas três palavras fizeram-na engasgar. Ela tossiu e ele desviou o olhar, tremendo, apiedado. Ele precisava por um fim a isso.
Ele se endireitou, num gesto de finalidade. “Charlotte, eu amo minha
esposa. Amo minha família. Nada me fará desistir deles. Nada. Você
precisa ser sensata.”
“Sensata! Nós fizemos um juramento. Até que a morte nos separe. Você me abandonou! Você chama isso de sensato? Eu quero
minha chance agora. Eu mereço.
Ele se deu conta de uma mudança de registro em seus pensamentos. A pena que sentia dela foi substituída por impaciência.
“Tenho dinheiro, Charlotte...”
Ela lhe beijava as mãos.
“... você poderia ir embora. Eu conheço um médico nas Bermudas que poderia”
Ela deu um salto. Seus olhos se tornaram furiosos e sua voz, uma
espada balançando. “Seu trapaceiro! Sua fraude! Seu mentiroso!”
“Charlotte!”
“Eu vou contar para eles. Vou contar para eles quem você é de
verdade. Vou contar para eles dessa mulher com quem você está
vivendo! Vou contar... vou contar... vou contar...”
Enlouquecida por sua própria histeria, ela correu em direção à
porta e a abriu. Ele a puxou de volta e fechou a porta com estrondo.
Ela voltou a atacar. “Vou contar!” Ela se atirou na direção da
72
porta. Ele puxou a mão dela da maçaneta, tomou-a pelos ombros e
a afastou com violência.
O rugido ensurdecedor de um trem elevado encheu o cômodo... Ela se agarrou a seu casaco. O punho da aliança por pouco não
acerta o rosto dele. Em si, ele sentiu as paixões de um estranho, um
homem que lhe era desconhecido, e seu punho acertou o lado da
cabeça dela. Ela tombou para trás com um uivo de horror.
A boca dele estava ácida; perdera a língua. Havia um silêncio
vazio no cômodo enquanto ele tentava chamar por seu nome.
Ela estava no chão, imóvel.
Uma dor lhe varou a cabeça. Ele viu a si próprio golpeando-a
e enterrou o rosto nas mãos trêmulas, mas a imagem continuava
correndo diante de si em sua mente, vívida, horripilante. Ele a tinha
golpeado repetidamente, não mais na intenção de impedi-la de alcançar a porta e desmascará-lo; ele tentara apenas destruí-la.
Novamente chamou por ela e novamente fez-se silêncio e ela
continuava no chão, imóvel, a cabeça contra o pé de ferro da cama.
Debruçou-se sobre ela.
Medo e alívio o arrebataram. Ele pôs as mãos atrás da cabeça
dela e quando as retirou, estavam vermelhas...
Passos! Era alguém que subia as escadas? Será que alguém tinha
ouvido? Estão passando. Estão parando. Não, estão prosseguindo.
Ele ainda estava agachado. O pânico tomou-lhe de assalto. Tenho que sair daqui! Mas seus pés estavam grudados ao chão; ele
não podia mover-se... Apenas suas mãos estavam móveis. Com o
lenço, uma mão limpava o sangue dos dedos da outra, cuidadosamente, um a um. Eram as mãos de um estranho.
A ação delas o libertaram. Ele era Carl Chapman! Carl Chapman
não tinha nada a temer, não havia nada que Carl Chapman não pudesse fazer. Ele precisava pensar... pensar...
Obrigou-se a observar o corpo. Mais uma vez, o pânico: Corra!
Saia. Saia. Ele o conteve.
Seus olhos percorreram o cômodo, polegada por polegada; ele o
via em seus mais minúsculos detalhes... Cumpria ensaiar cada passo,
cada variável – e só então agir.
O tique-taque do relógio parecia-lhe alto. Tinha a impressão
de que o tempo passava correndo. Rápido! Rápido! E no entanto,
ele continuava parado.
Agora!
73
A bolsa dela – ele a abriu: um estojo de maquiagem, uma bolsa
para trocados contendo três moedas de um centavo, uma de vinte e
cinco e a chave do quarto, um maço de cigarros amarfanhado e uma
caixa de fósforos, um batom, um pente, um anúncio de jornal, um
lenço sujo e um bilhete da loja de penhores. Ele colocou tudo no bolso.
Vasculhou as gavetas da cômoda começando pela de cima, investigando cada uma rápida e escrupulosamente, recolocando cada
item em seu devido lugar.
Mudei meu nome, tive que mudar. Smith, Brown, Jones. Tanto melhor. Não conseguiriam identificá-la.
A última gaveta estava emperrada. Ele a puxou, balançou, empurrou para cima e para baixo. Uma fúria desarrazoada o invadiu.
Teria mesmo de se delongar nisso? Retirou a gaveta de cima e, com
o punho, golpeou a inferior até abrir. Não havia nada lá dentro.
O armário vazio; a quitinete improvisada; debaixo da cama...
nenhuma mala.
Desfez a cama rapidamente, catou do chão uma revista de historietas de amor. Chinelos gastos também se encontravam ali.Precisava lembrar-se deles. A revista, os cigarros e os fósforos que estavam
na bolsa deviam ficar na mesinha ao lado da cama.
Os chinelos... levou-os ao banheiro, amaldiçoando o segundo
que lhe custou encontrar o cordãozinho de ligar a luz. Uma camisola
e um antiquíssimo robe de chambre estavam pendurados na porta.
Posicionou-os sobre a cadeira do banheiro e trouxe para junto dela
os chinelos. Dobrou uma toalha usada e pendurou-a no cabideiro da
banheira. Sabonete... toalha de mão... pó... sais de banho... não havia
sais de banho.
Colocou a rolha no ralo da banheira e ligou a torneira. A água
morna escorreu preguiçosamente.
Acercou-se do corpo. O sangue! Que faria ele com aquele sangue? Agachou-se e ergueu a cabeça dela. O ferimento já secara.
Fratura basal. Coágulo. Sorte... mas o pé de ferro da cama estava
manchado. Umedeceu um canto de seu lenço e limpou a mancha.
Agora estava pronto... a aliança saiu com facilidade, tão magra ela
estava; tivera de amarrar um barbante em torno dela para mantê-la
no lugar. Tirou-lhe os sapatos e arremessou-os ao outro lado do cômodo, como se ela os tivesse chutado para longe dos pés cansados.
Em seguida, despiu o corpo.
Levantou-se. Era difícil respirar. Esperou, decidido, até que suas
74
mãos parassem de tremer e pudesse engolir novamente.
Encontrou um cabide no armário, colocou sobre ele o vestido e
pendurou-o na porta aberta do armário. Levou meias e roupas de
baixo para a pia da quitinete, encharcou-as, torceu-as e pendurou
-as no varal que se estendia de um canto a outro.
Agora, o último passo...
Ele já tinha ensaiado isso em sua mente de maneira tão sólida,
tão perfeita. Mas estava paralisado, lutando contra o terror que assomava dentro de si de tal modo que ele queria vomitar.
Vamos lá. Você já foi repórter policial. Você já cobriu necrotérios. Você já os viu – tantos deles – de todos os tipos. Não pode parar
agora. Não pode. Ande!
Ele se debruçou, enganchou os braços sob os ombros dela e arrastou seu cadáver até o banheiro.
A banheira ainda estava enchendo. Ergueu as pernas dela e
deixou-as tombar sobre a borda. Agora estava ofegando. Forçando
cada músculo, ergueu o corpo até deixá-lo de pé sobre a banheira.
Os joelhos dela dobraram. Um dos pés escorregou e o corpo
cedeu. Por um instante ele pensou que tudo estava perdido. Precisou
lutar parar manter o equilíbrio. Rangeu os dentes.
Lentamente, medindo a distância, deixou que os pés dela escorregassem até a extremidade da banheira. Pronto! Seu coração batia
grosso à altura da garganta enquanto ele usava de todas as forças
para amparar o corpo. Precisava ficar num determinado ângulo, de
costas para as torneiras, a cabeça diretamente sobre elas. Era isso. O
ferimento tinha que estar diretamente acima das torneiras.
Um momento para se recompor... Ele deu um salto para trás. O
corpo caiu. A nuca chocou-se contra as torneiras com um baque. Os
braços se ergueram. Um dos pés meneou loucamente e caiu n’água
com uma pancada.
A água salpicou a parede, a camisola e o robe, derrubou a lata de
talco e encheu um dos chinelos. Ele saiu ileso.
Na ponta dos pés, evitando as poças no chão, entrou e colocou
sobre uma delas o sabonete.
Ele tinha terminado. Acabara.
De volta ao quarto, arrumou o paletó e ajeitou os cabelos com
as mãos. O contínuo refluir da água e sua própria respiração eram
os únicos sons no apartamento.
Agora vinha-lhe um desejo febril de partir. Abriu a porta, relan75
ceou pelo corredor escuro. Voltou-se para dar uma última e cuidadosa olhada. Precisava ter certeza.
Um lampejo vermelho vivo saltou-lhe aos olhos. O crachá dos
Corações Solitários! Seu pulso martelou. Se o tivesse esquecido!
Rapidamente dirigiu-se ao vestido pendurado na porta aberta
do armário, arrancou o crachá e saiu. Enquanto fechava a porta,
o avassalador rugido de um trem que passava alcançou-lhe pela
última vez.
76
77
Capítulo 5: Corra, Sammy, Corra1
A Third
Face
78
Ainda sem ter completado meu décimo terceiro aniversário,
forcei caminho para dentro do mundo dos jornais. Saía da escola
às duas e meia e tinha que me apresentar ao [New York] Journal às
três em ponto e trabalhar até que a edição ficasse pronta. Às vezes,
dava meia-noite e o trabalho não estava terminado. Muitas noites,
eu acabava dormindo debaixo da mesa de um repórter e aparecendo
na escola no dia seguinte usando as mesmas roupas do dia anterior.
Minha mãe ficava muito aborrecida quando isso acontecia.
“Sammy, olhe pra você!”, ela dizia, com os olhos na minha calça
imunda e camisa suja quando eu finalmente chegava em casa. “É
realmente isso que você quer fazer?”
“Isso é tudo que eu quero fazer, mamãe!”
Até hoje eu não dou a menor importância a respeito de onde
vou dormir, ou o que estou vestindo, desde que eu esteja envolvido
com um projeto que eu adore. Nossa, como eu adorava trabalhar no
Journal! Era uma aventura incrível para um garoto como eu, sedento
para descobrir mais sobre o mundo. Sentado numa sala de aula na
escola, com um livro sobre a carteira e com o professor molengando
sem parar sobre uma fórmula matemática no quadro-negro, meus
olhos olhavam para a janela, e minha imaginação ainda na sala de
redação do Journal. Eu não podia esperar para sair da escola e voltar
para meu trabalho como assistente.
Na Park Row, rodeado por adultos numa frenética busca por
notícias, eu crescia rápido, aprendendo principalmente sobre o lado
mais escuro da humanidade. Havia uma montanha de informações
a serem recolhidas e organizadas a cada santo dia, mas o que realmente vendia jornal era violência, sexo e escândalos. Havia exceções. Grandes julgamentos, brigas trabalhistas, obstruções parlamentares, tesouros escondidos, explorações ousadas e reviravoltas
políticas podiam chegar a ser notícia de primeira página. A morte de
uma pessoa famosa, poderosa ou amada funcionava bem também.
Charles Dana, ilustre editor do New York Sun, estabeleceu o padrão para os repórteres americanos: “Quando um cachorro morde um
homem, não é notícia, porque acontece toda hora. Mas se um homem
morde um cachorro, isso é notícia.” Repórteres eram uma raça especial – parte cão de caça, parte sedutor, parte artesão da palavra –
trabalhando de modo febril para fazer com que suas histórias não só
1
Originalmente publicado
em A Third Face: My Tale
of Writing, Fighting, and
Filmmaking (Nova York: A.A.
Knopf, 2002). Tradução de
Ruy Gardnier.
79
tomem a dianteira dos outros jornais, mas também que superem as de
seus colegas de jornal. Eu estava maravilhado com eles.
Editores eram criaturas totalmente diferentes, onipotentes, enrugados, inabaláveis. Eles tinham o controle de toda a aparência e
do tom do jornal. Com um risco de seus lápis vermelhos, eles designavam as histórias como manchetes de primeira página, encaixando fotos enormes e títulos chamativos. Com outra marca vermelha,
matérias eram relegadas à página dois, ou ainda mais para o fundo
e sem muito destaque. O fantasma de Horace Greenley, fundador do
New York Tribune, devia estar velando os editores. Eles tinham que
fazer escolhas difíceis todo dia em pouquíssimo tempo e em condições impossíveis. À medida que chegava a hora do fechamento, a
tensão era tão palpável que poderia ser cortada com uma faca.
“Quando exatamente esse filho da puta foi assassinado?”, gritava
um editor com seu repórter pelo telefone. “Dois dias atrás? Precisamos de uma testemunha. Encontre uma! Isso, AGORA! Qualquer
testemunha serve! É, imediatamente! Vamos imprimir em uma hora,
porra!”
No fim da hierarquia do jornal, os assistentes iam e vinham.
Eu fiquei. Minha idade, meu entusiasmo e minhas pernas velozes
impressionavam. Rapidamente os editores e os repórteres foram me
conhecendo e apreciando minha velocidade e tenacidade.
“Sammy, leve essa matéria para a mesa de esportes!”
“Sammy, corra com isso até os linótipos!”
“Sammy, vá pegar para mim as provas da sala de impressão!”
Eu também era o garoto encarregado de trazer as caixas de
cerveja clandestina estocadas na adega. Eles serviam a bebida quando atletas apareciam para visitar os jornalistas esportivos. Eram os
maiores jogadores de beisebol do mundo, sujeitos como Tris Speaker, Roger Hornsby e Babe Ruth, passeando pelas nossas dependências, conversando, contando piadas e bebendo com Ring Lardner, Damon Runyon, William Farnsworth e Grantland Rice. Eu não
era capaz de acreditar na minha sorte em ser uma pequena parte
disso tudo.
Durante as férias, eu passei para o turno do dia. Depois de meses e meses correndo com matérias, cerveja ou qualquer coisa que
necessitasse de pés rápidos, fui designado para o necrotério do jornal, no porão, onde as reportagens e as fotografias eram recortadas
e arquivadas. Eu amava a coleção de tesouros lá embaixo. Os repór80
teres precisavam de fatos para o jornal do dia que eram baseados
em artigos já publicados. Eu procurava a informação nos arquivos
poeirentos. Naqueles dias, a memória estava na cabeça de uma pessoa, não no chip eletrônico de um computador.
‘Sammy”, perguntava um editor, “quando Chapman roubou
aquele banco em Jersey City?”
“22 de julho.”
“Que hora do dia?”
“11:45 da manhã. Exatamente na hora em que o gerente estava
saindo para almoçar com sua esposa.”
“Me acha isso aí e me arruma uma ilustração.”
“Sim, senhor.”
Minha ambição maior era ser um repórter – um repórter de
crime – com direito a matéria assinada. Trabalhava-se como assistente ou arquivista até que seu nome aparecesse em alguma promoção. Eles até podiam dar a você uma chance como repórter se você
tivesse idade suficiente. Como eu tinha catorze e era o mais jovem
assistente no jornal. Eu sentia que haveria uma eternidade de espera
antes de ter a chance de seguir adiante. O abismo entre assistente e
repórter parecia maior do que o Grand Canyon. Mas até parece que
eu não ia esperar! Eu ia ser repórter custe o que custasse. Um dia,
talvez, eu até me tornasse um desses editores que soltam fogo pelas narinas. Por Deus, e por que não o editor-chefe de meu próprio
jornal?
Meu objetivo imediato era conhecer o lendário editor-chefe do
Journal, Arthur Brisbane, pessoalmente. Brisbane era como o papa.
Sua Santidade não tinha jamais colocado os pés na sala de redação,
ainda que lançasse uma majestosa sombra por cada mesa do local.
Eu ouvi uma porrada de histórias sobre Brisbane, como ele montou
a circulação, como ele usou a maior tipologia possível para criar
manchetes colossais, como sua coluna “Hoje” era assunto no país inteiro, como ele era o jornalista mais bem pago no mundo. O nome de
Brisbane era pronunciado com o máximo de respeito em qualquer
lugar de Park Row, e mesmo assim eu nunca tinha sequer posto os
olhos no grande homem. Parecia que ninguém tinha visto Brisbane
a não ser os principais editores.
Henry Hudson, um dos telégrafos veteranos do Journal, flagrou-me um dia passeando por perto da entrada da sala do sujeito.
Eu tinha a esperança de ver um relance de Brisbane quando ele sa81
ísse para fazer xixi. O velho Hudson sorriu e explicou que o editorchefe tinha seu banheiro próprio. Eu realmente achava que o patrão
ia usar esses rolos de papel de jornal como toalhas igual a nós, reles
mortais? Brisbane tinha até sua própria entrada particular no prédio
do Journal.
Mas um dia, eu estava no escritório de Mulcahy e ouvi ele dizer
a um dos assistentes mais velhos para ir até o escritório de Brisbane
para um trabalho temporário de leva e traz. Eu segui o rapaz de 18
anos e o vi dirigindo-se ao banheiro para lavar o rosto e pentear o
cabelo. Vi minha chance e decidi aproveitar. Corri até o corredor
do sétimo andar passando pela provação dos sinais proibitivos nas
paredes: “Pare!” “Corredor Privativo” “Não Perturbe!” “Não Entre”.
Corri para o escritório com a placa “Editor-Chefe” e me vi numa sala
de espera imensa e silenciosa como um túmulo. Duas secretárias
estavam trabalhando em suas escrivaninhas. Havia pilhas de jornais
e revistas por todos os lados. Imponentes estantes de livros iam do
chão ao teto. A sala e as secretárias pareciam intocados desde que
[William Randolph] Hearst inaugurara o jornal duas décadas atrás.
Uma das senhoras olhou para mim em silêncio.
“Mulcahy me enviou”, eu disse, mentindo entre os dentes.
Ela pegou um telefone, disse algumas palavras e em seguida
apontou para uma porta de mogno entalhada. Caminhei até o portal
sagrado, abri e entrei como se estivesse entrando num templo. Lá
estava ele sentado atrás de uma grande mesa, o grande Arthur Brisbane em pessoa, o discípulo de Joseph Pulitzer, o cérebro por trás de
Hearst! Ele era alto e forte, impecavelmente vestido, com uma testa
imensa. Apesar de ter 62 anos naquele momento, ele se movia como
um atleta na casa dos vinte anos. Brisbane era ainda mais impressionante do que eu imaginara. Atônito, eu o observava como se ele
fosse uma criatura de um outro planeta.
“Você é da editoria?”, perguntou Brisbane.
“Sim, senhor.”
Ele me arremessou uma pasta. “Na esquina da rua Duane, estacionado no lado esquerdo da delegacia, tem um Lincoln. O nome do
motorista é George. Ele está vestindo um suéter vermelho. Leve a
minha pasta até ele e me espere no carro.”
“Sim, senhor.” Pausei momentaneamente, esperando por alguma instrução adicional.
“Qual o seu nome?”, perguntou Brisbane.
82
“Samuel Fuller.”, disse, “Todo mundo me chama de Sammy.”
“Tudo bem, Samuel. Pode ir.”
Saí correndo pelo corredor, passei pelo elevador e fui voando pela
escada de pedra. Não havia vivalma ali, mas muitos já tinham corrido
por esses degraus antes de mim. Trabalhávamos para um propósito
comum, o de publicar notícias a cada santo dia para um jornal de cidade grande. O lugar cheirava à História. Eu amava aquele aroma.
Teria sido impossível não ver o imenso Lincoln na rua Duane.
Brisbane desceu alguns minutos depois e sentou-se ao meu lado no
banco de trás. O carro deu partida e nós aceleramos pelas ruas em
polvorosa até chegar a seu próximo compromisso. Ele revisou um
texto, assinou com um “AB” e disse para voltar correndo até a editoria. Deslizei as páginas para dentro da minha jaqueta, saltei do Lincoln num cruzamento na parte central da cidade, peguei o metrô e
fui correndo de volta para William Street e de lá até o sétimo andar,
rápido como um relâmpago.
Logo que Mulcahy descobriu minha artimanha, ele falou que ia
me demitir. Passei alguém pra trás e merecia a demissão. Não menti
para Brisbane, mas também não disse a ele a verdade. Verdade que
eu era da editoria, só que não era a minha vez na fila dos assistentes.
Quando Brisbane descobriu o acontecido, ele disse a Mulcahy que
queria me ver novamente.
Corri até o corredor que conduzia ao escritório de Brisbane. As
secretárias velhas gesticularam para que eu seguisse adiante. Brisbane levantou quando eu entrei. Ele foi severo comigo mas admirou
a minha garra. Em seguida, ele disse as palavras mágicas: “De agora
em diante, Samuel, você será meu assistente pessoal”, adicionando
sua expressão distintiva, “Não deixe isso subir à sua cabeça.”
Nossa Senhora, eu era o rei da cocada! Nos meses seguintes, vi
muitas vezes o Lincoln de Brisbane. Na frente de um hotel luxuoso, de um prédio de escritórios ou restaurante, eu dava um oi para
George e sentava no banco de trás. Brisbane aparecia logo depois
de uma reunião, ou após almoço de negócios. No assento largo e revestido de couro, estava o ditafone de Brisbane, com um cilindro de
cera novo no tambor. Ele apertava um botão na máquina e o cilindro
começava a rodar. Brisbane colocava a boca próximo do microfone
do apetrecho e ditava um editorial. Quando terminava, ele me dava
o cilindro e me dizia para correr até o Journal. Ele me dava um dólar
de prata quando eu saía do carro.
83
“Pegue um táxi, Samuel, não um ônibus. Pode ficar com o troco.”
“Sim, senhor.”
“Não deixe isso subir à sua cabeça.”
Isso era primeira divisão para mim, e eu fazia valer cada segundo. Eu estava completamente enamorado por Brisbane. Não fazia
ideia de quanto tempo eu seria seu assistente pessoal, mas eu seria
o melhor que ele já teve. Assim que o Lincoln deu partida, parei um
táxi. Cheio de orgulho e determinação, saltei para dentro e disse
uma palavra: “Journal.”
Era tudo que se precisava dizer para um taxista de Nova York
naquela época. Todo mundo conhecia o Journal em Park Row. Eu
entregava o cilindro de cera para a secretária de Brisbane, que o colocava em outro ditafone para transcrever suas palavras na máquina
de escrever. Daí eu seguia com o texto para os linótipos. Corria com
a prova para a editoria. Faziam correções. Daí de volta para a sala
de redação para mais uma prova e as correções finais. Era “Hoje”,
o famoso editorial de Brisbane, uma coluna que seguia para cada
jornal de Hearst em todo o país.
Ainda que fosse muito sério, Brisbane tinha momentos brincalhões também. Um dia, na rua em frente ao Journal, ele apostou duas moedas que ele me ganhava numa corrida até a ponte do
Brooklyn. Ele até carregaria sua pasta para me dar vantagem. Corremos por Park Row, o editor-chefe varapau e o pequeno leva e traz.
Diabo, aquilo devia ser uma delícia de ver! Corri tudo que podia, mas
Brisbane me ganhou. Dei a ele 25 centavos, mas ele me devolveu. Em
seguida ele me levou ao Max’s Busy Bee pra comer hamburguer e
milkshake. Os hambúrgueres de lá tinham muito molho e custavam
quatro centavos. Os milkshakes eram sete centavos. Com ovo, dez
centavos.
Um dia, Brisbane anotou um endereço em Riverside Drive e me
entregou.
“Estarei aí essa noite”, ele disse. “Traga-me as provas assim que
estiverem prontas, Samuel.”
“Sim, senhor.”
Com as provas do “Hoje” e uma tirinha de Winsor McCay na
mão, segui para Riverside Drive. O lugar era nada mais nada menos que o pied-à-terre de Hearst em Manhattan, um apartamento
magnífico que tinha vista para o rio Hudson. Brisbane se encontrava
com Hearst regularmente para reuniões de estratégia. Eu entregava
84
as provas ou pegava cilindros de ditafone de um mordomo que respondia a campainha por lá.
Numa de minhas visitas ao apartamento de Hearst no Riverside,
o mordomo tinha ordens de me fazer esperar dentro da casa. Avisaram-me para esperar na sala de estar com os magníficos divãs e
as impressionantes estantes entupidas de livros. Aguardei junto à
enorme parede de vidro, desfrutando a vista gloriosa dos penhascos
de Jersey do outro lado do Hudson. Brisbane saiu de um escritório
com alguns executivos. Um deles era um homem alto e pesadão com
sobrancelhas oblíquas e olhos muito tristes. Quando ele falava, fazia
barulhos de ave. Sua voz soava como um pequeno apito agudo. Não
havia nada pomposo a seu respeito exceto seu terno escuro caríssimo. Esse foi meu primeiro encontro com William Randolph Hearst.
Você nunca adivinharia que aquele era o editor de jornal mais poderoso do mundo. Hearst não era só despretensioso, mas, enquanto
os outros homens continuavam a discussão, Hearst persistia virando
para Brisbane e perguntando: “O que você acha, Arthur?”
O que quer que Brisbane aconselhasse Hearst sobre o tópico
corrente seria aceito como decisão final. O Hearst que eu vi estava a uma longa distância do personagem tempestuoso e tirânico de
Charles Foster Kane, que Orson Welles criou para Cidadão Kane,
baseado na vida de Hearst. Eu amava a forma com que o filme de
Welles enfatizava um conflito decisivo no mundo jornalístico da
minha era, um conflito em que Arthur Brisbane desempenhava um
papel central.
Hearst herdou de seu pai o San Francisco Examiner em 1887,
depois adquiriu o New York Morning Journal em 1895. Em 1896, ele
lançou o Evening Journal e ganhou circulação com reportagens sensacionalistas, quadrinhos em cores e atrações escandalosas, outrora conhecidas como “jornalismo marrom”. Isso culminou com uma
guerra de circulação com o New York World de Joseph Pulitzer. Uma
competição feroz entre a velha e a nova escolas de jornalismo era
uma das subtramas essenciais de Cidadão Kane.
Na realidade, Brisbane desequilibrava a balança em favor de Hearst. Brisbane havia sido editor executivo no World, um jornal intelectualmente superior ao Journal. Hearst gastava enormes quantias
de dinheiro para tornar o Journal mais gráfico, mais atraente, mais
espalhafatoso que qualquer outro jornal do mundo. Ele precisava de
mais um elemento: o maior editor-chefe do jornalismo. Ele conven85
ceu Brisbane a deixar Pulitzer e vir trabalhar no Journal em 1897.
Brisbane deu a Hearst credibilidade jornalística, pavimentando
a via para o Journal adquirir o crème de la crème da classe jornalística. Na grande cena de festa de Cidadão Kane, celebrando o
crescimento de circulação do jornal, Kane anuncia a contratação dos
melhores jornalistas que o dinheiro pode comprar, vindos direto de
seu adversário. Foi exatamente isso que Hearst realizou a partir do
momento que Brisbane chegou. Só não consigo imaginar Hearst fazendo um número de canto e dança com uma fila de coristas como
Kane no filme!
Brisbane ficou descontente com o World, muitas vezes em conflito com Pulitzer, que ficou cego no fim de sua carreira e morava em
seu iate, Liberty, ancorado em alguma parte da Riviera. Ainda assim
Pulitzer permanecia sendo o chefe. Ele era idolatrado em Park Row,
sua integridade, sua lenda. Havia uma sensação de segurança ao ler
o World. Cada frase no jornal era baseada em fatos conferidos. Pulitzer teve durante toda sua vida uma aversão por qualquer tipo de
sensacionalismo.
Como tantos outros imigrantes nesse país, Joseph Pulitzer veio
da Europa num barco destinado a ancorar na ilha Ellis em 1864.
Sem papéis de imigração, e com medo de ser mandado de volta pelas autoridades da imigração, Pulitzer pulou do navio na altura do
porto de Nova York. Ele nadou milhas até ser capturado pelo barco
da patrulha militar. Incapaz de falar uma frase em inglês, Pulitzer
conseguiu seu primeiro trabalho no país limpando a estrebaria de
burros da Primeira Cavalaria de Nova York durante a Guerra Civil
americana. Desse começo humilde, ele cresceu para ser o editor de
jornal mais respeitado no país. Essa é uma história e tanto que alguém deveria transformar num filme!
Depois de sete anos trabalhando para Pulitzer, Brisbane não
aguentava mais. Hearst explorava a richa entre os dois gigantes do
jornalismo. No Journal, Brisbane desfrutaria não somente de mais
liberdade para expressar suas próprias opiniões em editoriais de
primeira página, mas também teria o maior salário entre todos os
editores do país.
Em 1952, eu tive a oportunidade de fazer um filme sobre as
origens do jornalismo americano e a paixão pela imprensa livre. A
Dama de Preto (Park Row, nde) foi o único filme que eu produzi com
meu próprio dinheiro. Mas eu tinha que fazê-lo, nem que fosse para
86
prestar homenagem às memórias da minha juventude naquela rua
que eu adorava. Até hoje eu sinto uma tremenda dívida de gratidão
para os jornalistas dedicados que criaram e mantiveram Park Row,
que foram tão essenciais para minha educação, que marcaram a ferro suas virtudes na minha imaginação. Quer saber? Cidadão Kane
era um filme sobre a construção de um império, não sobre jornalismo. Eu quis fazer um pequeno filme em preto e branco sobre as
vidas brilhantes daqueles repórteres e editores pioneiros que eram
a espinha dorsal dos jornais de Nova York.
A única coisa a respeito de Cidadão Kane que me irritou foi
o modo como Welles adaptou Marion Davies, retratada de forma
severa como Susan Alexander no filme. Vi Marion Davies em diversas ocasiões no apartamento de Hearst. Contrariamente à Susan
cabeça-oca de Kane, Marion era esperta, charmosa e divertida. Ela
sempre foi muito doce comigo. Hearts tratava-a com reverência o
tempo inteiro, e ela parecia, até para meus olhos adolescentes, completamente apaixonada por ele. Eu lembro que ia ver os filmes dela
no Cosmopolitan, uma sala de cinema na rua 57, perto de Columbus
Circle, que Hearst tinha comprado para que a MGM exibisse filmes
com Marion Davies.
Contrariamente a Hearst, que se candidatou sem sucesso para
governador de Nova York e para presidente, Brisbane não tinha
ambições políticas. Tampouco ele estava interessado em tornar-se
um magnata. Trabalhar como editor era sua vida. Ele veio de uma
família ilustre. Seu pai, Albert, foi um dos primeiros socialistas nos
Estados Unidos e fundou a Fabian Society junto com George Bernard
Shaw. Um conselheiro respeitado para líderes em diversas áreas,
Brisbane tinha opiniões que abriam clareiras nos anos 20. Enquanto
eu pegava carona no banco da frente do grande Lincoln, eu virava
para trás e observava-o discutindo assuntos complexos no banco de
trás com figuras como Bernard Baruch, Charles Schwab e J.P. Morgan. Meu maior prazer era quando eu conseguia ir de carro sozinho
com Brisbane. Assim eu podia bombardeá-lo com uma avalanche de
minhas perguntas adolescentes. Ele era muito paciente com minha
curiosidade desenfreada e tinha sempre uma resposta,encorajandome a ser questionador o tempo inteiro.
“Quem inventou o ditafone?”, eu perguntava.
“Charles Sumner Tainter”, respondia Brisbane.
“Quando?”
87
“1886.”
“Quem fundou o New York Herald?”
“James Gordon Bennett.”
“Quando?”
“1835. Em sua adega. Com 500 dólares de capital. Foi o primeiro
jornal a usar correspondentes estrangeiros, a ilustrar as matérias, a
imprimir notícias financeiras de Wall Street.”
O cérebro enciclopédico de Brisbane sempre me impressionou. Ele nunca foi condescendente comigo, mesmo nas perguntas mais ridículas. Suas respostas transformavam-se em histórias
fascinantes. Ele explicava muitas coisas para mim a respeito de
tantos assuntos diferentes, de esportes e como ele cobriu a luta
entre Boston Strong Boy e Charley Mitchell na Inglaterra, até a
filosofia e a obra de Charles Fourier, o francês utópico, que fez
sensação com suas quatro leis para atingir harmonia universal,
indo até os socialistas, e também histórias sobre seu próprio pai e
a Brook Farm.
Numa das saídas pelo carro de Brisbane, começamos a conversar sobre a Guerra Civil, um dos meus temas preferidos na escola.
Sentado ao meu lado, estava um homem nascido em 12 de dezembro
de 1864, dia da Invasão de Stoneman, de Bean Station, Tennessee,
até Saltville, Virginia. Brisbane sabia tudo sobre George Stoneman
e me contou mais sobre a Guerra Civil naquela corrida de carro do
que eu tinha aprendido em meses na escola. Ele falava os nomes dos
generais e dos políticos como se fossem velhos amigos, e descrevia
batalhas como se elas tivessem acontecido ontem. Brisbane tinha
o dom de fazer o ouvinte fazer parte de suas histórias vibrantes.
Aprendi pra cacete a respeito de contar histórias com ele. E, mais
importante, Brisbane cativou meu entusiasmo para trabalhar duro e
aprender tudo o que fosse possível.
Em outra ocasião, em seu escritório, Brisbane perguntou meu
aniversário. Quando eu falei, ele começou a lembrar-se de agosto de
1912, quando ele estava cobrindo a guerra de Pancho Villa contra o
governo de Díaz no México. Quando eu tinha apenas quatro anos,
Brisbane estava em Columbus, Novo México, reportando a invasão
de Villa de lá, onde dezesseis americanos foram mortos. Descrevendo Villa, Díaz, Madero e Huerta de experiência direta, ele tecia um
relato emocionante que me mantinha na beirada da cadeira, com os
olhos inchados e quase saindo do globo ocular.
88
Numa noite de sábado, eu tinha que pegar o OK de Brisbane
numas provas da edição de domingo. Ele estava no apartamento de
Hearst na Riverside Drive, onde um baile à fantasia estava acontecendo. Todo mundo estava fantasiado. O mordomo estava fantasiado como Benjamin Franklin. Ele me conduziu do corredor até a
cozinha. Dei uma espiada no que acontecia. Uma orquestra tocava
valsas e, vestidos como condes, caubóis e arlequins, algumas das
maiores celebridades daquele período enchiam a cara na sala de estar barulhenta e esfumaçada de Hearst.
A cozinha de Hearst era algo que eu nunca tinha visto antes,
um aposento moderno de azulejos brancos com quase nada além de
uma mesa de aço inoxidável. O cozinheiro e seus assistentes foram
tirar uns minutos de folga. Brisbane apareceu, ele próprio fantasiado de cozinheiro, vestindo um enorme chapéu e avental. Ele estava
engraçado pra cacete, mas eu não tive coragem de rir. Ele examinou
as provas, assinou com “AB” e depois instruiu o verdadeiro cozinheiro para que ele fizesse um frango para eu levar comigo para casa.
Apertaram um botão e todos os utensílios de cozinha, incluindo um
maldito fogão, apareceram saídos da parede. Uma bandeja cheia de
frangos assados foi tirada do forno. O próprio Brisbane embrulhou
uma das aves em papel de cera. O molho foi colocado num pote de
vidro num saquinho separado.
“Aqui, Samuel”, disse Brisbane, me entregando os dois sacos.
“Agora não vá sujar suas roupas. E não conte nada disso para ninguém no trabalho.”
“Sim, senhor, e obrigado!”
Corri com as provas de volta para o Journal e levei o frango com
o molho para casa, para comer com a minha família. No dia seguinte, não consegui resistir e mencionei para um certo repórter, Nick
Kenny, que ganhei um frango assado da fabulosa cozinha pessoal
de Hearst, das mãos do próprio Brisbane. Minha fanfarronice foi
estúpida, uma ânsia adolescente e petulante de me revoltar contra
as ordens de Brisbane.
“Você está realmente íntimo do patrão, Sammy”, disse Kenny.
“Fale pro Brisbane que eu sou um jornalista bom pra cacete e eu te
dou um dólar.”
Peguei a nota. Era mais dinheiro para minha família. Uns dois
dias depois, achei uma abertura com Brisbane para elogiar Kenny.
“Quanto ele deu a você para que dissesse isso?”, perguntou Brisbane.
89
“Um dólar”, eu disse.
“Diga pra ele que isso não é dinheiro bastante”, sorriu Brisbane.
O jovem repórter correu atrás de mim por toda sala da editoria,
xingando e ameaçando me encher de pancada.
Um de nossos mais respeitados jornalistas esportivos, Bill Farnsworth, costumava me encostar na parede com perguntas sobre
Brisbane, também. Alguma vez o patrão tinha feito um comentário
sobre a página de esportes, sobre os quadrinhos, sobre as colunas?
Eu dava de ombros...
“Se você ouvir alguma coisa do nosso departamento, avise pra
mim”, disse Farnsworth, enquanto me passava dois bilhetes para
uma grande luta no Madison Square Garden.
Nessa época, eu estava frequentando o moderno e amplo colégio George Washington High School na rua 192, a primeira instituição com mistura racial da cidade. Mas meu coração no fundo
não estava na escola. Eu estava me mordendo para ser um repórter
policial, somente passando pelos protocolos escolares para agradar
minha mãe. Um dia, implorei a meu ilustre patrão para me mandar
pra rua e me deixar fazer reportagens de crimes para o Journal.
“Você é jovem demais, meu garoto”, disse Brisbane. “Você tem
que ter ao menos 21 para esse tipo de emprego. Seria irresponsabilidade de minha parte deixar você frequentando delegacias ou indo
em cadeias para entrevistar os meliantes. Samuel, reportagem policial é um trabalho árduo. Você é muito jovem pra isso.”
“Mas eu já fui junto com repórteres, já visitei cenas de crime,
já fui ao necrotério. Já observei como eles falam com a polícia, com
as testemunhas, como eles conseguem as histórias. O senhor sabe
que eu sou rápido, sr. Brisbane. Posso aprender. Estou pronto para
começar agora. Por favor!”
Não tinha como mudar a opinião dele. Mas mesmo assim eu não
estava pronto para abandonar meu sonho de virar repórter policial.
Nem mesmo Arthur Brisbane podia ser capaz de fazer isso comigo.
Foi aí que numa visita a um bar clandestino junto com alguns repórteres do Journal, eu conheci Emile Henri Gauvreau, editor-chefe
do New York Evening Graphic, um diário que havia sido inaugurado
em 1924. Gauvreau era um homem baixo e espirituoso, orgulhoso de
sua incrível semelhança com Napoleão. Ele penteava seu cabelo do
mesmo jeito que Bonaparte para que a semelhança fosse ainda mais
pronunciada. Gauvreau veio para Nova York depois de ter passado
90
pelo Hartford Courant, de Hartford, Connecticut.
“Sei de tudo sobre você, Fuller”, disse Gauvreau. “Você é o leva e
traz de Brisbane. Você ganha 14 dólares por semana. Também soube
que você trabalhou no arquivo do Journal. Sammy, por que você não
vem trabalhar comigo no Graphic? O que você acha de ser o chefe
de nosso arquivo por 18 por semana?”
“Eu quero ser um repórter, sr. Gauvreau”, eu disse. “Um repórter
policial”.
“Você é um pouco novo demais pra isso, não é, Sammy?” Eu
podia usar um rapaz inteligente como você para construir o nosso
arquivo.”
“Só vou deixar Brisbane e o Journal se você me deixar ser um
jornalista de verdade. E com um dedo na editoria policial.”
“Puxa, Sammy, estamos em 1928, caceta!”, disse Gauvreau. “Temos que lutar contra a Lei Seca, contra anarquistas, contra fascistas,
Al Capone, assassinatos do crime organizado, Deus sabe mais o quê,
e você quer ser um jornalista. Não posso deixar você fazer isso, não
aos dezesseis.”
“Dezesseis e meio!”, corrigi. Contudo, notei que não ia chegar a
lugar nenhum com isso, então propus um negócio. “Se em seis meses, quando eu fizer dezessete, sr. Gauvreau, o senhor me deixar ser
um repórter, eu vou trabalhar agora no seu arquivo.”
“Combinado”, ele disse.
E apertamos as mãos para confirmar o acerto.
Foi difícil contar a Arthur Brisbane que eu estava deixando o
Journal e ele. Foi provavelmente a coisa mais difícil que eu já tive
que fazer na vida. Estávamos no banco de trás de seu Lincoln quando eu expliquei o acordo que fiz com Gauvreau para trabalhar no
Graphic. Brisbane ficou sentado, quieto. Foi um daqueles momentos
que parecem durar uma eternidade. Tive que morder meu lábio para
não chorar. O rosto de Brisbane estava sério. Se ele estava chateado,
ele não demonstrou.
“Samuel, o Graphic não vai durar”, ele disse. “O que você quer
fazer da vida, meu garoto?”
“Eu quero ser editor-chefe de um grande jornal, como o Journal!”
“Trabalhar no Graphic não vai arrumar para você um contrato
de editor-chefe em lugar nenhum.”
“Talvez não, sr. Brisbane”, eu disse, “mas eu preciso agarrar essa
oportunidade. Eu quero ser um repórter, e quanto mais cedo melhor.”
91
“Então vá ser um repórter, meu garoto”, disse Brisbane.
Ter sido assistente pessoal de Arthur Brisbane por dois anos e
meio faria sempre parte da minha fibra. Brisbane tornou-se uma
figura paterna essencial para mim. Mas agora eu tinha que seguir
em frente. Saí de seu carro pela última vez. Apertamos as mãos pela
janela aberta. Ele me disse que eu podia ligar para ele toda vez que
precisasse de ajuda. Agradeci pela oferta, mas nunca utilizei o oferecimento.
Corte para doze anos depois. Manhã de natal, 1936. Hollywood,
Califórnia. Esquina de Hollywood e Vine. Na edição matutina daquele dia, eu descobri que Arthur Brisbane tinha morrido. Fiquei atônito
e chorei desavergonhadamente. O menino vendedor de jornais que
me vendeu o exemplar perguntou se eu precisava de um médico. Eu
disse a ele que estava doente de tristeza e que nenhum médico podia
me ajudar.
“Vá em frente e venda seus jornais”, eu disse amarguradamente.
“É pra isso que eles são impressos”.
92
Capítulo 11: Esqueça a grandeza1
Quando eu estava bem no meio da escrita de A Página Negra
(The Dark Page), um velho amigo de Park Row, Hank Wales, apareceu para me ver. Vinte anos mais velho que eu, Wales era um
jornalista renomado, com um montão de prêmios jornalísticos em
seu currículo. Durante a Primeira Guerra Mundial, Hank escreveu
uma série de artigos sobre um soldado corajoso chamado Sargento York, que tornou-se a base para o famoso e homônimo filme com Gary Cooper, dirigido por Howard Hawks em 1941. Hank
também tinha coberto a execução de Mata Hari, a famosa espiã,
e inventou a palavra “tanque” para aqueles indomáveis veículos
militares. Wales era tão conhecido nos círculos de imprensa, que
Robert Benchley escreveu um roteiro, baseado em sua carreira,
chamado Correspondente Estrangeiro (Foreign Correspondant).
Alfred Hitchcock dirigiu a história em 1940, com Joel McCrea e
Laraine Day.
“Vamos escrever um filme juntos, eu e você!”, disse Hank. “Tem
alguma boa história?”
Ambos rimos. Com todas as experiências impressionantes que
ele teve, Hank Wales estava me pedindo um argumento. Eu estava
emocionado com o fato de um sujeito tão formidável querer colaborar comigo. Mas eu tinha um livro para terminar.
“Olha, Hank”, eu disse, “estou escrevendo o grande romance
americano!”
“Todo mundo está escrevendo o grande romance americano,
Sammy. Esqueça a grandeza. Vamos nos divertir.”
Não era uma época alegre. Os acontecimentos no tabuleiro global estavam ficando mais severos. No verão de 1940, a Alemanha
lançou ataques aéreos contra a Inglaterra. Os Estados Unidos olhavam e esperavam, porque a opinião pública era contra entrar na
guerra. Com sua nação em estado de sítio, o magnífico discurso de
Churchill sobre “sangue, sofrimento, lágrimas e suor” injetou fogo
nos corações, estabelecendo o tom para guerra total contra os invasores nazistas:
Vocês perguntam qual é o nosso objetivo? Posso responder em
uma palavra: é vitória, vitória custe o que custar, vitória a despeito
de todo o terror; vitória, por mais longo e árduo que seja o caminho
a tomar; pois sem vitória não há sobrevivência.
1
Originalmente publicado
em A Third Face: My Tale
of Writing, Fighting, and
Filmmaking (Nova York: A.A.
Knopf, 2002). Tradução de
Ruy Gardnier.
93
Hank Wales e a Batalha da Grã-Bretanha me persuadiram a colocar de lado A Página Negra. Durante o bombardeio nazista sobre
a Inglaterra, entre toda a destruição aleatória. Descobrimos que os
escritórios da Associated Press tinham sido atingidos. Eu sugeri a
Hank que nós criássemos a história a partir de alguns jornalistas
que tivessem que se esconder no porão de um hotel em Londres
para sobreviver aos ataques aéreos. Com apenas algumas máquinas
de escrever e um telégrafo, eles continuam enviando as notícias. O
argumento era totalmente no estilo de Hank.
Começamos a trabalhar no roteiro numa manhã de segundafeira. Hank conhecia de cor as ruas de Londres. Enquanto ele andava
de um lado para o outro me fornecendo dados locais para avivar
a história, eu seguia atacando a minha Royal. Conversando assim,
conseguimos montar a ação, as viradas narrativas e os diálogos. O
primeiro tratamento de 90 páginas estava terminado antes do café
da manhã de sábado. Depois de ovos, bacon e bolinhos crocantes de
batata, encontramos um agente, Charles Feldman, que porventura
estava em seu escritório no fim de semana. Ele vendeu nosso roteiro
para a 20th Century Fox na manhã da segunda-feira seguinte por
50 mil, quantia que eu e Hank dividimos, deduzindo aí a comissão
de Feldman.
Chamamos o filme de Confirm or Deny (“Confirmar ou negar”,
nde). A única forma que os jornalistas escondidos em Londres tinham de contatar seu escritório nova-iorquino era por telégrafo. O
editor desvairado quer mais informação sobre a situação na Inglaterra. Do outro lado do Atlântico, parece que Hitler vai atacar em
breve a América do Norte. Enquanto as bombas caem sobre Londres, o escritório de Nova York continua enviando questionários urgentes em código Morse, pontuando cada pergunta com o comando
“Confirmar ou negar”.
A tensão cresce, fazendo com que os jornalistas tenham que lidar com suas mais profundas crenças e temores. Era um argumento
bom pra cacete. A Fox adquiriu para dar a Fritz Lang, que começou
o filme, mas abandonou depois de apenas alguns dias. Archie Mayo
acabou terminando Confirm or Deny (1941) com Don Ameche, Joan
Bennett e Roddy McDowall.
Meses depois do término do filme, recebi uma ligação de Fritz
Lang, me convidando para almoçar. Essa foi a primeira vez que nos
encontramos frente a frente. Eu adorava os filmes de Lang, sobre94
tudo Vive-se uma Só Vez (You Only Live Once, 1937), sobre um inocente que é jogado na prisão.
Lang queria me explicar por que ele largou Confirm or Deny
apenas alguns dias depois do começo da filmagem. Ele me disse que
amava nosso roteiro, mas que o estúdio insistiu que ele fosse reescrito no último minuto, e as revisões foram decepcionantes. Nós
concordamos que o roteiro original tinha mais ação, mais emoção e,
certamente, mais culhão do que o filme de Archie Mayo, que a Fox
eventualmente lançou.
Esse episódio, junto com muitos outros durante meus primeiros
anos em Hollywood, tornou-me cada vez mais consciente da importância do diretor. Como escritor, minha relação com um filme
tinha sempre sido através do roteiro. Progressivamente, eu comecei a apreciar a habilidade do diretor para construir os planos, fazer os atores interpretarem os diálogos e mover a câmera. Cada
diretor tinha uma forma própria de contar uma história. Por que
certos filmes deixavam sua marca por toda a vida? Primeiro, a história era excelente. Mas tão importante quanto, era a forma como o
diretor filmava. Nas mãos de diretores talentosos, os personagens
tocavam você, faziam você sentir as dores e os prazeres, conversavam com a sua alma. Havia alguns tremendos diretores trabalhando
em Hollywood naqueles dias. Alguns deles mudaram para sempre o
modo como eu olhava para os filmes.
Eu adorava Variedades (Varieté, 1925), de E.A. Dupont, porque
ele me fez prestar atenção no estilo. Era uma fábula formidável
sobre um ex-trapezista que é solto da prisão depois de cumprir
anos de pena por assassinato. Dupont rodou o filme como um poema. Outro filme de estilo distintivo era O Fugitivo (I Am a Fugitive
From the Chain Gang, 1932), de Mervyn LeRoy, com o deslumbrante Paul Muni coagido a fazer parte de um campo de prisioneiros
de trabalhos forçados por um crime que ele não cometeu. LeRoy
faz você sentir a injustiça terrível com a qual seu herói deve se
defrontar. Inferno Negro (Black Fury, 1935), de Michael Curtiz,
exerceu um bom bocado de influência em mim também. Paul Muni
é novamente o protagonista, como Joe Radek, que deve lidar com
todas as mentiras e frustrações que acontecem durante uma greve
de mineradores. Tendo visto greves durante meus anos como vagabundo, achei que o filme era convincente.
O soberbo Consciências Mortas (The Ox-Bow Incident, 1943),
95
de William A. Wellman, também deixou uma marca profunda. Ao
contrário da maioria dos faroestes daquela época, o filme de Wellman exibia reações honestas e humanas. Um fazendeiro local é assassinato e tem seu gado roubado. O vilarejo, com o acréscimo de
alguns andarilhos liderados por Henry Fonda, formam uma milícia
para agarrar o perpetrador. Na ânsia de justiça, eles enforcam homens inocentes. Ao invés de lágrimas falsas e remorso, os filhos da
puta bebem para tentar esquecer seus horríveis atos.
Meu filme preferido desses anos de formação foi O Delator (The
Informer, 1935), de John Ford. É realmente uma obra-prima. De todos os diretores maravilhosos que eu conheci em Hollywood antes
da Segunda Guerra Mundial, eu dava atenção especial a John Ford.
John tinha uma visão de cada filme que ele dirigia, e tinha a determinação de passar essa visão para a tela. John me apoiou bastante
nos primeiros anos, quando eu precisava. Ele tornou-se um amigo e
um mentor. Ford me convidava para seus sets, e quando eu comecei
a dirigir, ele aparecia nos meus. Eu estimava os tempos que passávamos juntos.
Alguns críticos, procurando um epíteto que pegasse, me chamaram de “o John Ford judeu”. Era uma coisa ridícula de se dizer,
embora eu entendesse que as pessoas precisassem de pontos de referência. Mas vamos ser sinceros, perto do monumental Ford, eu seria sempre um neófito. Para entender o escopo da carreira de John,
é preciso lembrar que ele começou como ator muito antes do cinema
falado, com um pequeno papel em O Nascimento de uma Nação
(The Birth of a Nation, D.W. Griffith), em 1915. Nos quase sessenta
anos seguintes, John Ford dirigiria por volta de 140 filmes. John era
um gigante, tendo feito de tudo em Hollywood. Eu aprendi coisa pra
cacete com Ford, mas uma das lições mais importantes foi a modéstia. Ford era o mais discreto dos homens. Quando perguntavam o
que fez com que ele chegasse a Hollywood, ele respondia: “o trem”.
Por desejar controle artístico completo, Ford começou a produzir seus próprios filmes. O desejo de modelar cada aspecto de seus
filmes resultou em algumas de suas melhores obras: Legião Indomável (She Wore a Yellow Ribbon, 1949), Rio Bravo (Rio Grande,
1950), Depois do Vendaval (The Quiet Man, 1952) e O Homem Que
Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962). O
modo como ele controlava todo o processo foi sempre uma inspiração para mim. Eu nunca tentei imitar sua obra nem a de ninguém, a
96
propósito –, mas ser mencionado no mesmo contexto que o grande
Ford será sempre um profundo elogio. Permaneci próximo dele até
sua morte, em 1973. Para mim, John Ford era tudo que eu amava e
respeitava a respeito de Hollywood.
Dois outros diretores completos, Howard Hawks e Raoul Walsh, também se tornaram meus amigos. Antes de começar a dirigir,
Hawks, que tinha o apelido de “raposa cinza”, tinha trabalhado como
piloto de avião e automobilista. Como Ford, Hawks queria sua independência, então ele tornou-se seu próprio produtor na maioria
dos filmes. Eu me impressionava com o estilo de Hawks, especialmente com a forma com que ele não hesitava em lidar com todos os
gêneros, fossem eles comédias ou filmes de mistério ou faroestes.
Eu adorei Scarface – A Vergonha de uma Nação (Scarface, 1932),
Uma Aventura na Martinica (To Have and Have Not, 1944) e À
Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946). Mas Howard e eu tínhamos
personalidades muito diferentes. Ele era um sujeito extrovertido e
sofisticado que adorava festas. Eu era mais primitivo, um solitário
que via os amigos um de cada vez. Uma vez, Hawks me perguntou:
“Você caça?”
Balancei a cabeça.
“Não pesca?”, ele perguntou.
“Não”.
“Bem, que tipo de esporte você pratica?”, indagou Hawks.
“Eu escrevo.”
“Olhe só, Sammy”, explicou Hawks com ares de tio, “nesse meio
de trabalho existe um código social. Você não pode ficar sentado
numa mesa dia e noite datilografando. Você tem que caçar ou pescar
ou jogar baralho ou alguma coisa do tipo. Você precisa ir a festas,
beber com as pessoas, ser visto...”
“Não gosto de toda essa presepada”, eu disse. “Ficar fazendo social é um saco. Eu gosto de ficar sozinho, inventando personagens e
histórias na minha Royal...”
“Venha caçar comigo”, ele disse. “Você vai gostar.”
“Atirar num pobre infeliz do cacete, Howard, seja uma raposa,
um rinoceronte ou um coelho, é injusto.”
“OK, Sammy, OK”, disse Hawks, entendendo minha sintonia.
“Você é um escritor, não um caçador.”
Não obstante as nossas personalidades profundamente diferentes, eu era louco por Howard Hawks e pelo modo como ele fazia
97
filmes. Eu nunca fui caçar com ele, mas depois da guerra eu dei a ele
um rifle de caça de dois canos com uma cruz de ferro que eu trouxe
da Alemanha. Na arma estava gravada a frase “À glória de Hermann
Göring”. A Raposa Cinza adorou.
Como Ford, Raoul Walsh era um pilar de Hollywood. Ele adentrou no meio como um ator em filmes mudos, fazendo o papel de
John Wilkes Booth em O Nascimento de uma Nação. Numa carreira
que durou cinquenta anos, Walsh fez mais de cem filmes, incluindo
o fantástico Seu Último Refúgio (High Sierra, 1941). Ele adorava dirigir, e às vezes pegava projetos só para continuar trabalhando, sem
uma convicção profunda a respeito da história. Eu adorava o senso
de humor malandro e o jeito discreto de Raoul, o tipo de cara que
trabalha duro sem se levar demais a sério.
No fim dos anos 70, levei Raoul para almoçar no Musso &
Frank’s com Christa (Fuller, sua última esposa, nde). Ele devia ter
quase noventa anos nessa época. Ele ainda tinha ótima aparência.
Com um grande chapéu de caubói, ele podia estrelar no faroeste
de qualquer um. Nós nos divertimos bastante com Raoul. Essa foi a
última vez que eu o vi.
Eu estava progredindo com A Página Negra, mas toda hora que
eu precisava de algum dinheiro, o livro tinha que ser colocado de
lado. Eu escrevia um roteiro, vendia, depois voltava a trabalhar no
romance. Power of the Press (O Poder da Imprensa, nde) foi comprado pela Columbia, dirigido por Lew Landers e finalmente lançado
em 1943. Era sobre um editor de jornal parecido com Hearst, que
morria, deixando seu jornal nova-iorquino para um velho amigo,
um jornalista respeitável do Meio-Oeste. Gangs of the Waterfront
(Gangues da Orla, nde) era uma continuação de Gangs of New York
[Gangues de Nova York, roteiro de Fuller, filmado em 1938 por James Cruze, nde]. A Republic Pictures produziu e George Blair dirigiu. Só foi lançado em 1945, um filme policial bem direto que eu
finalizei com muita rapidez.
Meu roteiro seguinte se chamava Warden Goes to Jail (O Carcereiro Vai Para a Prisão). John Huston tinha me apresentado a seu
pai, Walter. Fiquei tão impressionado que quis escrever um argumento que pudesse ser um veículo para Walter. Para pesquisar, eu
tive que arrumar algum material de contextualização sobre Alcatraz,
então, fui a São Francisco por duas semanas. Minha história era
sobre um diretor de prisão severo que mata um homem que está
98
em cima de sua mulher e vai preso na mesma cadeia em que ele
outrora havia sido carcereiro. Os prisioneiros não exatamente se
vingam dele. Eles simplesmente observam como ele vai lentamente enlouquecendo, vítima das próprias regras de sua prisão. Adorei
escrever a fábula de um homem que cria suas próprias leis e depois
é morto por elas. A Paramount comprou o roteiro, mas nunca produziu o filme.
Eu estava aprendendo que um dos aspectos mais frustrantes
do sistema hollywoodiano era que, muitas vezes, as histórias mais
enérgicas como Warden Goes to Jail não chegavam até a tela. Isso
me deixou tão furioso que eu pensei seriamente em tentar partir
para a direção. Assim, meus roteiros não apenas seriam filmados,
mas o filme lá na tela também pareceria com o jeito que eu o escrevi.
Olha só, por volta de 1941, eu estava me saindo muito bem em
Hollywood, vendendo histórias e roteiros um atrás do outro. Tinha
alguns amigos bem-sucedidos, e estava ganhando um belo dinheiro. Ainda assim, eu considerava meu período em Hollywood como
algo temporário. No fundo do meu coração, eu sempre sonhei ser
um editor-chefe. Até um jornal de cidadezinha me bastaria. Sempre
me pareceu que eu tinha um pé dentro e outro fora da indústria
cinematográfica. O jeito como eles reescreviam meus roteiros me
deixou progressivamente insatisfeito com o fato de ser apenas um
roteirista. Eu não era mais capaz de ver um filme sem questionar o
julgamento do diretor, imaginando como um plano particular poderia ser melhorado, me perguntando por que diabos o diretor não
gritou “Corta!” antes, numa sequência que não acaba nunca.
Desde o começo da indústria cinematográfica, sempre houve um
conflito entre roteiristas e diretores. O conflito continua até hoje. Há
roteiristas que ficam irritados pela forma como os diretores traduzem suas histórias em filmes. Há diretores que conseguem fazer um
grande filme apenas com o tufo de um roteiro. Finalmente, consegui
entender que é impossível dizer quem é mais importante para o produto final, o roteirista ou o diretor. Não há solução para esse antagonismo natural da forma como os filmes são feitos, e nunca haverá. A
minha abordagem pessoal do tema foi virar escritor/diretor.
Mas, por enquanto, havia conflitos mais importantes com os
quais se preocupar. Hitler era o mestre da Europa Continental, tendo primeiro ocupado a Tchecoslováquia, depois invadido a Polônia,
engolfado a Dinamarca, a Noruega e os Países Baixos, e em seguida
99
a França. Estava claro para todo mundo que os nazistas eram criminosos que precisavam ser detidos.
Na manhã de domingo do dia 7 de dezembro de 1941, eu estava
dirigindo meu carro em Los Angeles, ouvindo o rádio. Foi assim que
eu ouvi a notícia do ataque a Pearl Harbor. Meu romance, os roteiros
que eu estava fazendo em Hollywood, meus planos para começar
a dirigir filmes, tudo isso repentinamente pareceu desimportante.
Essa era, como disse o presidente Roosevelt ao Congresso, uma data
que viverá na infâmia. Os Estados Unidos, o gigante colossal, finalmente atentou para os perigos da passividade. Tão logo o Congresso
votou pela guerra contra o Japão e a Alemanha, eu tinha certeza
sobre aquilo que eu devia fazer.
Fui até o escritório de recrutamento do exército americano e
fiquei na fila junto com todos os jovens que ali esperavam. Com 29
anos de idade, eu era muito mais velho que a média dos sujeitos que
decidiam se alistar. Felizmente eles precisavam de muitos soldados,
então não havia parcialidade contra “velhos” voluntários como eu.
Havia uma entrevista obrigatória com um oficial de recrutamento.
Eu pedi algumas semanas antes de ser mandado para o campo de
treinamento, de modo que eu pudesse terminar a primeira versão
de meu romance. O oficial me deu esse tempo extra. Depois ele me
perguntou por que eu queria ir à guerra. Cacete, eu certamente não
estava me alistando com a ideia de me tornar um herói. Perguntei
se podia ser sincero com ele, e ele disse que sim. Então eu disse a
ele que, claro, eu fiquei inspirado pelo chamamento às armas feito
por Roosevelt contra os agressores; no entanto, os prospectos da
vida militar, ficar de uniforme, marchar, carregar um rifle, lutar –
não me davam exatamente uma ereção. O que permanecia no meu
cérebro era que eu tinha uma puta de uma oportunidade de cobrir
a maior história policial do século, e nada ia me impedir de ser uma
testemunha ocular.
100
Capítulo 15: Falkenau1
No fim de abril de 1945, nós avançamos até a região Sudetenland
da Tchecoslováquia. Seis anos antes, em 15 de março de 1939, os
nazistas invadiram a Sudetenland e dissolveram a Tchecoslováquia,
tornando-a um protetorado alemão. A desculpa era que os tchecos
tinham preconceito contra pessoas que tivessem antepassados alemães. Foi em Sudetenland que Hitler pela primeira vez mostrou suas
pretensões reais como um tirano destruidor de nações e criador de
impérios. Ninguém condenou a agressão nazista naquele momento.
Agora a guerra para acabar com Hitler completava um ciclo, de volta
a seu lugar de nascimento.
Nosso objetivo final nessa ofensiva era Karlsbad, espremendo
os nazistas entre os nossos avanços e os russos que se dirigiam no
sentido oeste. Berlim caiu. Os exércitos alemães na Dinamarca, na
Holanda e no Norte renderam-se. Mas o inimigo ainda resistia na
Tchecoslováquia. Se os nazistas não iam desistir, nós íamos forçá
-los a lutar. Em 6 de maio, nós começamos a sair da cidade de Eger
em direção a Falkenau, uma distância de mais ou menos trinta quilômetros, quando armamentos antitanque destruíram quatro de nossos tanques. O regimento sofreu 51 baixas antes do cair da noite. Na
manhã seguinte, o ataque foi retomado. Nosso oficial em comando,
o general Clift Andrus enviou uma ordem urgente para o quartelgeneral para “cessar todos os avanços”. Os minutos tiquetaqueavam
enquanto nós esperávamos ouvir a definitiva capitulação alemã. E,
finalmente, surgiu a notícia duas horas depois que os alemães tinham assinado uma rendição formal e estavam tentando se comunicar com suas tropas na Tchecoslováquia e na Áustria para ordenar
que eles parassem a luta. O cessar-fogo de 7 de maio foi universal.
Adentramos Falkenau naquela noite e tomamos um tapa forte na cara, primeiro das hordas de alemães chegando de Karlsbad,
fugindo dos russos para render-se aos americanos. Havia milhares
de soldados, muitos acompanhados por suas esposas e filhos. Mais
de 45 mil prisioneiros de guerra passaram por Falkenau nos três
dias seguintes, criando o trabalho fundamental de ter que controlar
toda essa gente. Mas o choque mais profundo nos esperava quando entramos pelo portão da frente do campo de concentração de
Falkenau localizado a apenas umas mil jardas da cidade e cercada
1
Originalmente publicado
em A Third Face: My Tale
of Writing, Fighting, and
Filmmaking (Nova York:
A.A. Knopf, 2002).
Tradução de Ruy Gardnier.
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por barreiras de arame farpado. Entre as duas torres de observação
principais, havia uma placa sinistra que dizia KONZENTRATIONSLAGER FALKENAU.
Ainda havia alguns SS ferrenhos no campo que não sabiam
que a guerra tinha acabado. Eles atiraram contra nosso grupo e
depois tentaram fugir num carro de comando. Um de nossos soldados acertou o carro com um tiro de bazuca, sentenciando a fuga
num cogumelo flamejante de fogo e fumaça. Atacamos os nazistas
remanescentes e os desarmamos. E, então, descobrimos a verdade
terrível sobre o campo. Nas barracas, estavam homens e mulheres
com olhos ocos, incapazes de mexer seus corpos esqueléticos. Eles
foram torturados, surrados e serviram de cobaias. Em outro prédio,
havia cadáveres jogados uns em cima dos outros como jornais velhos. Alguns deles ainda nem eram cadáveres. Como zumbis, eles levantavam suas cabeças raspadas e nos olhavam, com os olhos afundados em aflição, boquiabertos, eventualmente estendendo a mão,
tentando apalpar alguma coisa, implorando por ajuda em silêncio
desamparado.
O que tinha acontecido naquele campo de concentração era impossível de acreditar, ia além de nossos mais horríveis pesadelos.
Estávamos nos sentindo esmagados por presenciar face a face toda
essa carnificina. Ainda tremo ao me lembrar daquelas imagens dos
vivos agachados com os mortos. O fedor dos corpos em decomposição jorrava até seu rosto e fazia você querer parar de respirar.
Num dos prédios, nós nos escondemos atrás de um montinho branco para nos proteger de algum defensor nazista tardio. Foi só então
que eu percebi que o montinho era um amontoado de dentes humanos retirados das vítimas do campo. Um pouco mais distante havia
amontoados de escovas de dentes, óculos e escovas de barba. Ainda
mais estarrecedor era uma pequena colina de membros humanos
artificiais. Numa cabana colada a uma das paredes do campo, havia
uma pilha de cadáveres nus empilhados como lenha.
Uma última visão do horror esperava por nós: o crematório.
Quando irrompemos naquela construção, a fumaça das granadas
que tínhamos jogado pela janela ainda preenchia o salão. Estava tudo
silencioso agora. A fila de portas de aço que conduzia aos fornos
alongava-se à nossa frente. Olhei para os fornos e então examinei o
primeiro deles. Quando eu vi os restos dos corpos lá cremados, eu
não consegui controlar minha repulsa. Vomitei. Eu queria sair dali
102
a todo custo, mas eu não conseguia me impedir de olhar o segundo
forno, e depois o terceiro, hipnotizado pelo impossível. Pelo amor
de Cristo, as pessoas tinham realmente sido cozinhadas naqueles
fornos! A prova incontroversa estava ali em frente, diante de meus
próprios olhos.
Um de nossos soldados, um alistado que afetivamente chamávamos de Weasel, foi olhar o quarto forno. Olhando de volta para
Weasel estavam os olhos assustados de um SS que rastejou para lá
para se esconder entre os cadáveres carbonizados. A Schmeisser
nas mãos do nazista era inútil, pois ele estava congelado de medo.
Desde o treinamento básico até a guerra, Weasel sempre teve um
problema com matar. Apertar o gatilho de sua M1 era a coisa mais
difícil do mundo. Naquele momento, entretanto, ele estava tão dominado pela repugnância que ele atirou à queima-roupa entre os olhos
do SS. Novamente e mais uma vez, ele apertou o gatilho, esvaziando
seu clipe. Depois ele carregou outro clipe e esvaziou esse outro também. Sem palavras, nós caminhamos para fora do crematório tão
retesados quanto múmias, pressionando lenços contra nossas bocas
e narizes, tentando processar o fedor e a repulsa.
A descoberta do que a SS estava fazendo com os presos do campo de Falkenau era coisa demais para tolerar. Encontramos fotografias de mulheres nuas perseguidas por cães ferozes passando
por guardas sorridentes da SS. Eram assassinos perversos, matando
civis inocentes, uma trágica mistura de judeus, tchecos, poloneses,
russos, ciganos e alemães antifascistas.
Os soldados da SS que nós organizamos em forma de círculo
imediatamente começaram a denunciar um ao outro. Na derrota,
toda a mentalidade nazista – sua grande filosofia de coragem, lealdade e superioridade ariana – virou mingau. Eu raramente vi soldados se comportarem daquela maneira. Se apenas Hitler pudesse
estar lá para observar seus amados SS denunciarem uns aos outros.
Goebbels recusou-se a apertar a mão de Jesse Owens nas Olimpíadas de 1936 porque sua super-raça era superior. Como eu gostaria
que Goebbels visse sua super-raça derrotada, lívida de medo, pronta
para entregar Hitler e o soldado ao lado. Eles agiam como animais
acossados e indóceis.
Os médicos chegaram logo em seguida com comida, remédios
e sangue, tentando salvar quantas vidas fossem possíveis. Nós voltamos às barracas cheias de ocupantes subnutridos e separamos os
103
vivos dos mortos. Os sobreviventes tinham mãos macabras e braços ossudos com números tatuados, um conto de Edgar Allan Poe
que virou realidade. Tínhamos que trabalhar com trapos sob nossos
narizes porque o fedor das pilhas de corpos provocava automaticamente ânsia de vômito. Quando carregávamos um sobrevivente de
peso pena, era como ninar uma criança. Os trabalhos forçados e a
malnutrição teriam graves consequências. Nós estávamos liberando
-os. Mas não havia jeito de salvá-los. Muito poucos sobreviveriam.
Eles só estavam livres para morrer.
A cidade de Falkenau era uma comunidade respeitável com uma
população honrada vivendo em casas limpas com jarros de flores
em suas janelas. Não parecia possível que logo depois da colina havia centenas de infelizes em condições sub-humanas que só tinham
duas saídas. Uma rápida, pela câmara de gás. Ou a lenta, via morte
ou inanição.
O comandante de nosso batalhão, capitão Kimble R. Richmond,
levou um esquadrão para Falkenau e juntou o prefeito, o açougueiro, o padeiro e outros representantes respeitados. Ele queria saber
como diabos eles podiam continuar com suas vidas de sempre enquanto as pessoas estavam morrendo no campo ali do lado. Todos
eles juraram que não tinham ideia do que estava acontecendo no
Konzentrationslager. A maioria disse que era contra Hitler. Capitão
Richmond sentiu asco. Nós aprendemos a duvidar das confissões
dos civis durante toda a campanha. Todo árabe na África do Norte afirmava que era antinazista. Todo francês jurava obediência à
França livre. Os sicilianos odiavam Mussolini. Os belgas detestavam
Hitler. Nós descobrimos, como era esperado, mais e mais alemães
que nunca haviam sido membros do partido nazista.
O Capitão Richmond ordenou que uma delegação de moradores
aparecesse nos portões do campo na manhã seguinte ou então teriam que enfrentar o pelotão de fuzilamento. Richmond queria ter
certeza de que aquelas pessoas iriam descobrir o que estava acontecendo apenas a alguns poucos passos das entradas de suas casas.
Naquela noite, eu fui chamado para o batalhão CP. Richmond e eu
tínhamos uma boa relação desde que ele sofrera um ligeiro ferimento de bala nazista que tinha furado seu capacete de aço. Quando
ele saiu da clínica, ele procurou em todo canto por seu capacete.
Ele considerava-o seu talismã de boa sorte. Fui eu que guardei o
capacete para ele.
104
“Filho da puta”, disse o Capitão Richmond, sorrindo enquanto eu
entregava a ele o capacete com o buraco de bala, “Se você quiser um
capacete como esse, Fuller, vai ter que levar bala!”
Richmond sabia que minha mãe tinha me enviado uma câmera
de cinema Bell & Howard 16mm portátil. O capitão queria que no dia
seguinte eu me postasse numa parede com boa vista do campo de
concentração para filmar o abominável espetáculo. Eu estava prestes a fazer meu primeiro filme.
Comecei fazendo imagens do capitão Richmond dando suas
ordens aos honrados cidadãos de Falkenau. Eles tinham que preparar as vítimas para um funeral decente, depois levá-las ao local
do enterro numa carroça. Daquela forma, eles nunca poderiam dizer novamente que eles não sabiam o que estava acontecendo em
seu próprio quintal. Eu filmei umas duas dúzias de cadáveres sendo
retirados daquela cabana pútrida colada à parede do campo e sendo preparados para o enterro, um por um, embrulhados em lençóis
brancos no chão, e posteriormente empilhados na carroça. Quando a
carroça estava cheia de cadáveres, os moradores a empurravam até
o local do enterro especialmente preparado. Prisioneiros de guerra, a maioria dos adolescentes Hitlerjugend, ajudaram a colocar os
corpos amortalhados numa cova coletiva. Por mais reles que fosse a
consolação, essas vítimas nazistas foram enterradas com dignidade.
Meus vinte minutos de película 16mm registraram o solene dia
do juízo daqueles civis. O espetáculo era de torcer o coração, e me
deixou entorpecido. Eu registrei provas da indescritível crueldade do
homem, uma realidade que os perpetradores poderiam tentar negar.
No entanto, uma câmera de cinema não mente. Quando eu finalmente
cheguei em casa, no outono de 1945, eu guardei aquela filmagem e
nunca mexi nela novamente. Seria doloroso demais assistir, traria de
volta todos os horrores dos anos de guerra. Aqueles vinte minutos
foram um testamento para as vítimas de Falkenau e para os milhões
de pessoas que morreram nos campos de concentração nazistas.
Numa inspeção final dos prédios do campo, nosso sargento ouviu
um gemido por trás de uma pilha de roupas surradas. Ele girou e quase atirou numa garota cadavérica que lentamente levantava a cabeça.
Seus olhos pretos e afundados estavam aterrorizados. Ela parecia ter
por volta de dezoito anos porque ela estava tão frágil e esquelética. Ela
podia ser mais velha ou mais nova. O sargento pegou a garota em seus
braços e levou-a para as instalações do ex-comandante da SS.
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Nos dias seguintes, enquanto acampávamos pelas redondezas
e equipes médicas tentavam salvar os sobreviventes dos campos,
o sargento cuidou da garota e tentou trazê-la de volta do limiar da
morte. Ele alimentou-a com rações líquidas e depois convenceu o
cirurgião do regimento a conseguir um pouco de leite, vegetais e
frutas para ela. Ele até conseguiu um bife. Havia uma caixa de música no posto de comando da SS. Ele deu a caixa a ela. A jovem mulher
estava fraca demais até para falar. Aos poucos ela começou a ficar
com as bochechas um pouco mais coradas. Ela ouvia a caixa de música o dia inteiro e, às vezes, conseguia sorrir. Nunca vimos o sargento tão feliz. Ele não conseguia aceitar o fato de que sua protegida
estava doente demais para sobreviver. “Estou tão cansado de matar
gente”, disse ele, “que gostaria de manter pelo menos um vivo”.
A garota morreu alguns dias depois. O sargento não permitiu
que nenhum de nós o ajudasse a enterrá-la, recusando qualquer
assistência, até do capelão. Ele fez um túmulo rústico com as próprias mãos. Ele vestiu a garota morta com um vestido cor-de-rosa
e sapatos marrom escuros que o escriturário de correio de nossa
companhia conseguiu para ele. Ele, cuidadosamente, preparou o cadáver, colocou a caixa de música por cima de sua barriga e colocou
as mãos em volta dela. Ela tinha um sorriso no rosto. Em seguida,
ele fechou o caixão. Ele cavou uma sepultura não muito longe dos
portões do Konzentrationslager e lá depositou o corpo da garota. De
longe, nós o observamos cobrir a cova, enchendo a pá de terra de
modo contínuo e dolorido. Depois que ela foi enterrada, o sargento
nunca mais falou nada a respeito dela. Nós tampouco. Para todos
nós, no entanto, ela permanecia um símbolo daqueles momentos de
luto cheios de sofrimentos e perdas inacreditáveis.
O fim de todas as hostilidades foi um choque silencioso. Era
difícil aceitar que a guerra finalmente tinha acabado. Eu não conseguia acreditar que não tinha mais que dormir com a minha mão no
rifle, que cada barulho não era o começo de um ataque inimigo, que
eu podia acender um charuto à noite sem me preocupar com um
franco-atirador metendo uma bala no meu cérebro. Em pouco tempo estaríamos voltando para casa. Voltar à civilização era o tema de
todas as nossas conversas, de nossas piadas, de nossos sonhos. Mas
a reentrada era assustadora também. Como podíamos contar ao
mundo aquilo que vivenciamos? Aquilo que testemunhamos? Como
cada um de nós conseguiria viver consigo mesmo?
106
Capítulo 31: Mato Gross01
Com oito filmes no currículo, agora estabelecido como um roteirista e cineasta em Hollywood, eu deveria estar dormindo em
paz, coberto por aqueles lençóis de seda do meu casarão de Beverly
Hills. Nada podia estar mais distante da verdade. Eu me revirava a
noite inteira, atormentado por pesadelos horríveis. Visões terríveis
da guerra enterradas em meu cérebro davam as caras assim que eu
começava a cochilar. Pilhas de cadáveres. Uma mão esquelética sendo estendida em direção ao céu pedindo ajuda. Bombas explodindo.
Soldados sendo retalhados.
A música era meu remédio imediato. Eu levantava, descia as
escadas e me deixava imergir em Beethoven, Bach ou Mozart. Eles
aliviavam meu espírito. Percebi que a única forma de me livrar
das minhas memórias de guerra era fazer um filme sobre elas. O
argumento inteiro estava na minha cabeça. Eu estava carregando
ele comigo como se fosse uma peça de mobiliário pesado. O filme
iria capturar a realidade do combate sem nenhuma das mentiradas
hollywoodianas – sem heróis, apenas soldados tentando sobreviver.
Minha versão era profundamente pessoal, mas a violência e a insanidade eram universais. Comecei a escrever as cenas e os diálogos.
Um roteiro surgiu ao longo dos anos e de várias revisões. Talvez,
depois de fazer esse filme eu pudesse dormir melhor. Nem em meus
piores sonhos eu pensei que ainda levaria mais 25 anos até eu ter a
chance de dirigir Agonia e Glória (The Big Red One, 1980).
Naqueles dias, (Darryl) Zanuck organizava festas de fim de semana em sua casa em Palm Springs. Martha e eu fomos algumas
vezes. Minha esposa gostava de fazer social com os executivos de
estúdio e estrelas de cinema que lá apareciam, então eu tolerava
todo esse negócio. Os charutos e a vodca eram OK, mas por mim eu
ficava em casa, e além disso eu poderia ficar escrevendo roteiros na
minha Royal. De qualquer forma, conheci algumas figuras interessantes. Eu admirava a esposa de Darryl, Virginia, uma dama. Hedda
Hopper, a colunista de Hollywood, aparentemente era sempre convidada. Eu me dava bem com Hedda. Ela até perguntou se eu faria
um filme sobre sua vida, mas isso era só papinho de coquetel.
Howard Hughes apareceu uma vez. Conversamos um pouco.
Ele sabia tudo sobre mim, via Jean Peters. Hughes era um sujeito
estranho, mas nos demos bem. Ele me ligou umas duas vezes em
1
Originalmente publicado
em A Third Face: My Tale
of Writing, Fighting, and
Filmmaking (Nova York:
A.A. Knopf, 2002). Tradução
de Ruy Gardnier.
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seguida para fazer um filme com ele. Como tantos projetos, isso
nunca se materializou.
Num fim de semana, Zanuck me levou até seu escritório pessoal
no terraço de sua casa de Palm Springs. Ele tinha acabado de chegar
de uma competição de caça numa fazenda de uma área selvagem da
região central do Brasil chamada Mato Grosso. Ele me deu um livro
para ler chamado Tigrero, de Sacha Siemel. O estúdio tinha comprado os direitos. Zanuck explicou que quando um felino selvagem
ataca algum animal de criação, os donos da fazenda contratam um
tigreiro para seguir o rastro do animal e matar o culpado, geralmente um jaguar, embora o predador pudesse ser um diante de uma
variedade de espécies. O melhor tigreiro de que Zanuck teve conhecimento fora um velho índio da selva que nunca usou um revólver ou
um rifle, apenas uma lança para caçar os felinos. Conversamos sobre preparar um filme que se passaria em Mato Grosso. Eu li o livro.
Tinha um bom material de pesquisa. Mas a melhor coisa era o título.
Antes de escrever o roteiro, eu disse a Zanuck que precisava
conhecer o Mato Grosso. Darryl concordou. Meu apetite para fazer
filmes em lugares longínquos já havia sido aguçado por Casa de
Bambu (House of Bamboo, 1955). Talvez a selva brasileira conseguisse tirar a minha cabeça daquelas dolorosas memórias de guerra.
Embrulhei minha máquina de escrever e minha câmera de 16mm,
dei adeus à minha mulher e à minha mãe, e subi num avião para o
Rio de Janeiro.
As pessoas que eu conheci no Rio disseram que eu era louco de
ir ao Mato Grosso. As tribos indígenas do interior ainda tinham a
fama de cortar e encolher as cabeças de seus inimigos. Num bar no
Rio, soube de um índio xavante cuja fotografia estava na primeira
página de todos os jornais do Brasil. Seus olhos afiados pareciam
estar olhando para mim. O homem tinha sido separado de sua tribo
por uma enorme inundação. Ele foi encontrado longe de sua terra
tribal e recusou todo tipo de alimentação, até que morreu como um
animal faminto. Agora eu realmente queria explorar a selva e ver
esses índios com meus próprios olhos.
Do Rio, voei até São Paulo. Lá eu conheci meu guia, que conhecia
alguns dos muitos dialetos nativos. Também achei que precisava de
uns sujeitos fortes, por via das dúvidas. Dois ex-membros da aviação brasileira que conheci num bar pareciam dar pro gasto. Ofereci
contratá-los como patrulheiros. Eles acharam que eu era um tipo de
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personagem como Hemingway numa grande competição de caça.
Falei que estava fazendo reconhecimento de locações para um filme,
e não caçando animais selvagens. Ao invés de dinheiro, eles queriam
ser pagos em pele de jaguar. Mandei-os ao inferno.
A Fox fretou um avião particular para me levar terra adentro. Era
um avião de dois lugares, o tipo de aeronave que borrifava pesticidas
nas plantações e descarregava suprimentos em pistas de pouso isoladas. Zanuck estocou o avião com bastante vodca e charutos. Primeiro,
viajamos para Ribeirão Preto, depois mudamos para um avião ainda
menor para o voo até Goiânia. Finalmente descemos no coração do
Mato Grosso, numa pequena localidade chamada Tesouro. O piloto
falou que voltaria em algumas semanas para nos pegar de volta.
A selva era um lugar inflexível e bárbaro. Viajamos a cavalo e
de canoa. Os primeiros índios que encontramos foram os jivaros.
Eles não ficaram nada contentes com a nossa chegada, então seguimos adiante. Comecei a fazer algumas imagens do terreno com
minha câmera. Nas margens do rio Araguaia, nos deparamos com
membros da tribo carajá. Eles imediatamente nos convidaram para
visitar seu acampamento isolado. Do outro lado do Araguaia, que
os carajás chamavam de “Rio dos Mortos”, ficava a tribo xavante.
Lembrei da matéria de jornal sobre o xavante que preferiu morrer
de fome a ser separado de sua tribo. Ali estava eu, a um pulo de
distância da terra natal pela qual ele morreu.
Tendo baixa estatura, eu não representava nenhuma ameaça
para os carajás. Logo de início eu me dei bem com os chefes da
tribo, que convidaram a mim e ao meu guia para ficar com eles por
quanto tempo eu quisesse. Os carajás tinham três chefes. Um era o
caçador, outro, o pastor e outro, um guerreiro. O chefe guerreiro
tinha a menor influência, porque a tribo nunca tinha entrado em
guerra. O que eu descobri naquela parte remota do Mato Grosso foi
uma sociedade muito mais pacífica e afetuosa do que a nossa. Pouco
a pouco, eu comecei a me sentir como o selvagem e a ver os carajás
como os civilizados.
Os carajás descenderam dos Incas, e sua língua soava como japonês. Meu intérprete não conseguia entender nada. Mas a língua
nunca foi um problema. Os carajás falavam com seus olhos, e eu
os entendia. Fisicamente, era um povo bonito, com a pele escura,
maçãs do rosto altas e cabelos de ébano. Espiritualmente eles eram
belos também, seres humanos alegres, hospitaleiros e generosos.
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Não tinham leis, juízes ou polícia, nem precisavam. Não tinha crime,
ciúme nem cobiça.
Do amanhecer até o crepúsculo, eles estavam constantemente ocupados, cuidando de suas crianças, consertando suas cabanas,
pescando no Araguaia. A abundância de peixe garantia comida de
sobra para cada um. Dinheiro era inútil. Quando eles precisavam
de arroz e remédios, eles trocavam peixe por suprimentos com os
brancos rio abaixo. As cabanas eram simples e bem conservadas.
Mangas cresciam por toda a parte. As crianças chupavam a fruta –
como se fossem pirulitos – da manhã até a noite.
Os carajás tinham seus deuses para a chuva, para o sol e para
as árvores. Alguns peixes e pássaros eram sagrados. Antes de cada
caçada ou pescaria, os carajás rezavam com seus chefes. O clima
tropical impunha um limite natural a respeito de quanta comida
eles traziam para a vila, porque os restos estragariam. Eles sabiam
exatamente do que precisavam para sobreviver e nunca abusaram
da abundância da selva. Os homens colocavam pequenos gravetos
sob os lábios inferiores para enfatizar sua masculinidade, e também
pintavam os corpos com círculos pretos e brancos.
Apesar de não ter instrumentos musicais, os carajás adoravam
dançar e cantar. Sua dança de fertilidade era um apelo especial para
o bem-estar do Deus da abundância. As mulheres colocavam belas
flores por trás de suas orelhas e moviam os pés no ritmo da batida,
esfregando suas barrigas. O resto da tribo cantava e batia palmas.
Os homens envolviam seus rostos com ramos de plantas e circulavam em volta das mulheres.
Os casais carajá eram monogâmicos, apesar de eles andarem
sempre pelados, exceto por um tapa-sexo preso em suas cinturas.
Eu vestia shorts o tempo todo e fiquei muito bronzeado, exceto na
bunda. Quando eu me lavava no rio, a branquidão dali de trás surpreendia a todos. Eles pegavam as bagas que eles usavam para tatuagens
e esfregavam em mim, tentando me “curar” da minha pele pálida.
Dos costumes dos carajás que eu filmei, um dos mais dramáticos era o rito de puberdade dos garotos. Todo garoto de treze anos
de idade tinha que ser submetido a ele para tornar-se um homem.
Primeiro, eles trespassavam o pênis com uma agulha de madeira.
O rapaz não podia mover um músculo durante o ritual. Depois eles
pegavam um dente de piranha e arranhavam as pernas do garoto
até sair sangue. Ainda assim, ele não podia se mexer. Se ele se mo110
vesse, eles paravam a cerimônia e recomeçavam o ritual do começo.
As adolescentes tinham seus próprios rituais de feminilidade. Eles
aconteciam dentro de uma cabana, longe dos homens. Eu nem cogitei em pedir para filmar, porque eu já me sentia como um intruso.
À noite, se eu precisasse fazer xixi, a vila inteira acordava para garantir que eu não seria atacado por um animal selvagem quando eu
saísse da cabana. Eles foram muito tolerantes comigo. Eu consegui
ganhar o gesto máximo de aceitação ao ser convidado para dormir
na tenda do chefe espiritual. Ele era um homem venerado, cego e
gentil. Foi uma das maiores honras que já recebi.
Durante minha estada com os carajás, escrevi um tratamento
para Tigrero. Minha história começava numa prisão no Rio de Janeiro. Uma mulher ajuda o marido a escapar matando um carcereiro. Depois ela contrata um tigreiro para cruzar o Mato Grosso
com eles. O tigreiro vive num mundo isolado, mas rico em cores,
vistas e sons. Ele vê poesia nas árvores, nos chamados dos pássaros
exóticos, nas trilhas de animais na floresta. Ele consegue fazer com
que o casal cruze um rio caudaloso até uma ilha que está encolhendo como consequência das grandes chuvas. Na subida das águas, a
mulher repentinamente escorrega e cai. O marido tenta salvá-la do
afogamento, mas ele só observa, e tenta salvar sua própria pele. A
mulher sobrevive, mas o grande amor que ela tinha por seu marido se transforma em ódio. Meu argumento não tinha como tema a
covardia ou o egoísmo. A ideia era que não se deve odiar alguém
por tentar salvar-se primeiro. O marido do meu argumento ama sua
mulher, mas ama a si mesmo um pouco mais.
Era hora de ir pra casa. Fiquei vivendo com os carajás por diversas semanas. Parti relutantemente, parcialmente tentado a adiar
meu retorno, mas eu tinha mulher e mãe para cuidar, e um roteiro
para escrever. Foi difícil pra caramba sair de um lugar onde eu vivenciei tanta paz e felicidade. Eu sabia que queria voltar e fazer meu
filme na selva do Mato Grosso. Eu agradeci aos carajás do fundo do
meu coração e prometi que voltaria.
Zanuck adorou meu argumento e os filmes caseiros que rodei
durante minha estada no Brasil. Ele conseguia ver que as minhas
descrições cheias de vida eram tiradas da realidade, e partilhava
meu entusiasmo por fazer um filme tendo como locação a selva. Ele
conseguiu John Wayne para fazer o papel do tigreiro, Ava Gardner
como a esposa e Tyrone Power como o marido.
111
Eu imaginei uma abertura grandiosa para o filme, e filmei parte
dela com minha câmera de 16mm e lentes anamórficas. Um crocodilo ataca um pássaro no Araguaia. Um segundo crocodilo aparece,
maior que o primeiro, e rouba o prêmio. Eles lutam pela presa, retorcendo e espancando a água. O crocodilo grande mata o menor,
fazendo a água ficar vermelha. Um cardume de piranhas aparece e
ataca o crocodilo vitorioso. Finalmente um condor dá um rasante e
voa com a presa. Ali estava o maldito ciclo da vida: sobrevivência. No
fim da sequência, uma palavra gigantesca apareceria na tela: TIGRERO. Ia ser um filme de botar pra quebrar!
Tudo na produção estava alinhado, até que as companhias seguradoras viram um impedimento. Era arriscado fazer o seguro de
grandes estrelas indo filmar nos ermos do Brasil, então os prêmios
eram muito altos: seis milhões de dólares para Wayne, seis milhões
para Gardner e três milhões para Power. Darryl ficou enraivecido.
Ele mostrou aos executivos de seguros as minhas filmagens de locação nas cercanias do acampamento dos carajás. Claramente, a área
toda era segura. Era mais perigoso filmar nos fundos do estúdio da
Fox. Mas aqueles caras de seguradora com seus paletós cinzas e
gravatas borboletas foram inflexíveis. Afinal de contas, a selva brasileira estava cheia de selvagens e animais comedores de gente. O
estúdio decidiu engavetar o projeto. Filmes não produzidos fazem
parte do negócio tanto quanto aqueles que são produzidos.
Fiquei terrivelmente decepcionado a respeito do destino de Tigrero. Ainda assim, consegui perceber que o período que passei com
os carajás me deu uma nova visão da vida, renovando a minha fé
na raça humana por completo. Contra o pano de fundo de sua terra
indômita e as crueldades da Mãe Natureza, os carajás haviam criado
uma sociedade cheia de bondade e felicidade. O riso era um elemento essencial da cultura deles. Na maior parte do tempo, eu não
sabia do que eles estavam rindo. Mas o riso deles era tão contagioso
que eu ria com eles. Uma parte importante da minha alma ferida foi
curada durante o período que passei em Mato Grosso. Eu reaprendi
a diferença entre alegria e prazer. O prazer era passageiro. Escrever, ouvir música, partilhar, amizade real, isso me dava alegria.
Imerso novamente em escrita e pesquisa, rapidamente completei um outro roteiro, chamado Renegando o Meu Sangue (Run of
the Arrow, 1957). Parei de ir aos convescotes de Zanuck, preferindo
passar meu tempo com pessoas mais gratificantes, como meus ami112
gos músicos Max Steiner, Victor Young e Harry e Gretchen Sukman,
ou meus amigos roteiristas, como Richard Brooks ou Dalton Trumbo. Eu estimava aquelas pessoas porque eles conheciam o valor da
vida, da amizade, da integridade. A enorme criatividade deles me
alimentava, e seu afeto me ajudava a superar as minhas violentas
memórias de guerra. Os carajás me mostraram que a vida era um
equilíbrio delicado entre violência e não violência.
Eu nunca conheci um grupo de pessoas mais gentis. A coisa
mais escandalosa que eu vi deles foi quando eles lutavam de brincadeira uns com os outros. Eles tomavam cuidado para não machucar
ninguém e não destruir nada. No entanto, se um membro de outra
tribo invadisse seu território e levasse alguma de suas crianças, eles
perseguiriam o invasor e o matariam. Seus filhos eram seu futuro,
então o ladrão estaria vitimizando toda a tribo. Aconteceu uma vez
quando eu estive por lá. Eles cortaram a cabeça do ladrão de crianças e trouxeram-na à aldeia. Eles penduraram a cabeça do lado de
fora da cabana dos pais da criança e fizeram uma fogueira embaixo
com madeira especial e ervas para que a cabeça encolhesse. O processo durou diversos dias e noites. Eles acreditavam que o ladrão
não era de todo mau. O pouco bem que houvesse no infeliz passaria
para os pais em luto, criando assim algum tipo de retribuição para
o filho perdido.z
113
Capítulo 37: Respirando Vingança1
1
Originalmente publicado
em A Third Face: My Tale
of Writing, Fighting, and
Filmmaking (Nova York:
A.A. Knopf, 2002).
Tradução de Ruy Gardnier.
114
Minha mãe morreu na primavera de 1959 com 85 anos de idade. Durante toda minha vida, Rebecca Fuller foi minha maior apoiadora. Não há nada a dizer quando um homem perde sua mãe. É só
um terrível vazio. Meu casamento com Martha já não ia bem, e a
morte de minha mãe selou o destino do enlace. Eu queria sair da
grande mansão de Hearst cheia de empregados e voltar a viver de
modo mais simples, trabalhar em paz com as minhas histórias e me
reestruturar. Decidi deixar a casa para Martha e tudo dentro dela,
exceto minha máquina de escrever Royal e a escrivaninha de Mark
Twain que eu comprei de Clara, filha de Twain.
Martha assinou os papéis do divórcio contra mim por “crueldade mental”. Eu aceitei a coisa toda. Que diferença fazia o nome
que eles davam? O relacionamento estava terminado. Meu advogado
disse que eu estava completamente doido por deixar a casa para ela.
Ele ameaçou nunca mais falar comigo de novo, a não ser que eu quisesse dividir meio a meio. Todavia, insisti para que Martha ficasse
com tudo. Eu sabia que recomeçaria tudo de novo e queria deixar
garantido que ela estaria em segurança. Eu não tinha paciência para
um acordo de divórcio tortuoso.
Através de mim, Martha conheceu seu outro marido, Ray Harvey. Ray foi um oficial do exército altamente condecorado na Guerra.
Ele se mudou para Hollywood e estava trabalhando para os estúdios
como “consultor técnico”. Como garantia de autenticidade, eu contratei Ray em Baionetas Caladas (Fixed Bayonets!, 1951) e Proibido!
(Verboten!, 1959). Ele veio à minha casa em diversas ocasiões. Nós
três costumávamos nos divertir bastante.
No verão de 1959, eu estava finalmente às vésperas de um acordo multimilionário com a Warner Brothers para escrever, dirigir e
produzir Agonia e Glória (The Big Red One, 1980). O filme acompanharia um sargento corajoso e seu esquadrão de soldados da infantaria durante as campanhas da Primeira Divisão no norte da África,
na Sicília e na Europa. Reuni umas mil páginas de ação e diálogo e
fiz desenhos mentais da maior parte do filme.
Jack Warner adorou meu argumento e arrumou John Wayne
para fazer o papel do sargento. Eu não adorava a ideia de Wayne na
pele do personagem, mas eu segurei meus comentários negativos
naquele momento. A Warner pagou o dinheiro para a pesquisa de
locações, para que eu revisitasse todos os campos de batalha mais
importantes do Big Red One. Decidi levar Martha comigo. Era nossa
viagem de despedida. Levei também Ray Harvey comigo. Enquanto
eu fotografava as locações, Ray estabelecia planos para os detalhes
técnicos da produção, já que ele seria nosso elo com o exército americano para o filme.
Foi durante essa viagem à Europa e ao norte da África que Martha e Ray começaram a ter fortes sentimentos um pelo outro. Eu não
ia ficar no caminho deles. Quando voltamos para casa, me mudei
para um canto modesto em Hollywood, abrindo espaço para Martha
e Ray começarem suas vidas juntos. Permanecemos todos amigos, o
que parecia bizarro para aqueles que viam de fora. As pessoas me
viam como um excêntrico incorrigível por ter mudado de estilo de
vida de modo tão drástico. Nunca me importei com o que ninguém
pensava, porque estava ocupado demais com os preparativos para o
filme mais importante que eu faria.
Richard Brooks e Dalton Trumbo me aconselharam a não filmar
Agonia e Glória com John Wayne. A alegação era que Wayne seria
bem sucedido em encolher a minha história, transformando uma
luta sombria pela sobrevivência e sanidade num filme patriótico de
aventuras. Pensei muito sobre isso e achei que eles tinham razão. Eu
não podia me arriscar a comprometer esse filme. Quando eu falei
ao Jack Warner que eu queria outra pessoa no papel de Wayne, o
acordo malogrou.
A morte de minha mãe, o divórcio e a suspensão de Agonia e
Glória bateram muito forte em mim. Tornei-me uma figura solitária, não socializando nem com meus estimados amigos roteiristas e
colegas músicos. Tudo que eu queria era ficar sozinho para absorver
toda aquela dor do meu próprio jeito. Felizmente não havia muito
tempo para me lastimar, porque eu estava trabalhando em dúzias de
ideias para filmes. Maluco como é o mercado do cinema, meu projeto seguinte veio da Columbia, o estúdio com o qual eu tinha discutido
por causa do lançamento de O Quimono Escarlate (The Crimson Kimono, 1959). Apesar de meus problemas com eles, ofereceram para
mim outro filme com Ray Stark como produtor.
Ray queria que eu escrevesse e dirigisse um filme baseado num
artigo de revista cujos direitos ele tinha adquirido. O artigo, escrito por um jornalista de Boston chamado Joseph Dineen, tinha como
tema os gângsteres que operavam não apenas em Chicago e Nova
115
York, mas também em outras cidades pelo país, como Boston. Boston
tinha até seu equivalente ao chefe Al Capone. Stark adorava o título
do artigo, “Underworld, U.S.A.” [Submundo E.U.A., nde]. Eu também.
O primeiro filme de gângster que eu vi foi Paixão e Sangue
(Underworld, 1927), de Joseph von Sternberg, com Clive Brook e George G. Bancroft. Ben Hecht ganhou um Oscar por aquele roteiro.
O filme definiu o gênero através de sua história e da iluminação,
muito antes dos elementos tornarem-se clichês. Eu queria ir além
dos filmes clássicos de gângster como Inimigo Público (The Public
Enemy, William A. Wellman, 1931) e Scarface (Scarface,1932) para
falar de alienação e corrupção, inspirado mais na dramaturgia grega. Também fui influenciado por um excelente livro chamado Here
Is to Crime [Um Brinde ao Crime, nde], de Riley Cooper, um jornalista cuja pesquisa extensiva provou que o crime nos Estados Unidos
realmente compensava. Minha abordagem de A Lei dos Marginais
(Underworld, U.S.A., 1961) seria manter o foco num criminoso que
fosse um solitário, um homem cujo único motivo para respirar fosse
a vingança. Um solitário não pode, por definição, ser um “gângster”.
Ele ou ela nunca sente-se confortável pertencendo a um grupo.
As minhas relações com os rapazes do estúdio começaram com
o pé errado desde o momento em que deixei que eles lessem minha
primeira cena, um começo arruaceiro que tinha início com o close das costas de uma linda mulher, a câmera subindo numa grua
para revelar cada vez mais mulheres atraentes de pouca roupa e
alinhadas para formar um mapa dos Estados Unidos. Em seguida,
uma das mulheres começa a fazer um discurso estimulante sobre
o novo “Sindicato das Prostitutas”, que ela julga ser necessário para
o prosseguimento de suas carreiras. Corridas de táxi e contas de
lavanderia seriam dedutíveis do imposto de renda. Cafetões seriam
proibidos. A prostituição é um trabalho como qualquer outro, ela
diz, e agora elas querem reconhecimento oficial. A prostituição seria
sempre parte da economia nacional, então, por que não se sindicalizar, estabelecer seus próprios salários mínimos, conseguir planos
de seguridade social e benefícios de aposentadoria, como qualquer
outro trabalhador, mulher ou homem? Enquanto a mulher conclui seu discurso glorioso, o enorme título aparece na tela: UNDERWORLD, U.S.A.
A câmera segue a prostituta de discurso inflamado até um camarim. Enquanto ela troca de roupa, o cano de uma arma desliza
116
por sua boca e dispara, explodindo sua cabeça. Os títulos e os créditos continuam a passar. As prostitutas fogem desesperadas. Uma
delas associa-se com meu protagonista solitário, comprometendo
pessoas do alto escalão da sociedade em prostituição, contrabando
e tráfico de drogas.
Sam Briskin e outros executivos da Columbia acharam minha
sequência de abertura completamente chocante. Bem, eu estava
mostrando como o crime tinha se tornado parte da própria construção da nossa nação. De que outra forma eu apresentaria isso
que não de modo chocante, quase indecente? Fiz a pesquisa para
provar que nenhuma parte do país estava ilesa. Pelo amor de Deus,
crime era um assunto chocante! Lá estava eu, frente a frente com
os formadores de opinião hollywoodianos, com toda aquela atitude
puritana dos anos 50 ainda embutida em seus cérebros. Briskin me
disse que toda a minha sequência inicial tinha que ser eliminada. Era
carnal demais, brutal demais, para dar partida no filme. Por que não
substituir por uma narrativa em voz off? Eu redargui que se eu não
pudesse mostrar as minhas ideias visualmente, seria melhor fazer
um programa de rádio, e não um filme.
“Sam, a sua cena da prostituta é pesada demais”, disse Briskin.
“OK”, eu disse, sem me sentir perturbado pela recusa do meu
argumento. “Vamos nos concentrar no meu solitário. A semente de
uma vendeta para toda a vida foi plantada em sua mente desde cedo,
como Dumas e O Conde de Monte Cristo. Talvez quando ele fosse
apenas uma criança”.
“Isso”, disse Briskin, “o público adora vingança”.
“Então, que tal isso: um filho da putinha criado no mundo do
crime vê seu pai sendo assassinado por gângsteres. O único legado
do pai a seu filho é uma obsessão por vingar-se dos assassinos. O
garoto cresce e entra na vida criminosa também. Ele inventa um
esquema para usar os próprios funcionários do governo dos EUA
para eliminar os homens que ele quer matar.”
“Como assim?”, perguntou Briskin, novamente com ar preocupado.
“Sabe como é, promotores federais.”
“Não podemos mexer com eles, Sammy.”
“Por que não? Já até entrei em contato com o Departamento
de Justiça. Eles me arrumaram diversas informações. Falei também
com Charles Anslinger.”
117
Briskin disse que não era verossímil que meu personagem negociasse diretamente com funcionários federais. Eu disse a ele que
isso acontecia sempre. A ideia era mostrar uma mente criminosa
trabalhando. Meu solitário é lento em certas coisas que pessoas
consideradas “normais” fazem rapidamente, mas ele está dez milhas
à frente em tudo que diz respeito à sua obsessão com vingança. A
sangue-frio, ele usará todo mundo que ele precisar usar, incluindo
a garota que está apaixonada por ele. Por que não também os federais? Se o público entendesse o tipo de obsessão, eles entenderiam
meu protagonista e o clima do meu filme.
“Você tem que mencionar a palavra ‘comissão’?”
“OK”, disse. “Vou chamá-los de ‘Comitê Policial Federal’. São de
oito a dez advogados extremamente inteligentes trabalhando num
escritório, acumulando provas de todo tipo de atividade criminosa.
Mas eles não são tão tortuosos quanto meu protagonista. Quando
chega a hora de ganhar dos outros em esperteza para conseguir o
que quer, ele é tão brilhante quanto o príncipe de Maquiavel. Ele só
tem uma coisa em mente: acertar as contas com os desgraçados que
mataram seu pai.”
Depois de mais uns dois tratamentos de roteiro, Briskin liberou
o projeto para produção. O aspecto do meu argumento que finalmente o convenceu foi a ideia do filho vingando a morte de seu pai.
Na minha versão final, nós conhecemos Tolly Devlin como um garoto na primeira cena de A Lei dos Marginais. Ele já é um ladrãozinho
de rua. Tolly e sua mãe substituta, Sandy, veem um homem apanhar até ser morto num beco escuro. É o pai de Tolly, um bandido
pé-rapado. Apesar de ser capaz de dedurar um dos assassinos, um
gângster chamado Farrar, o garoto se recusa a cooperar com o promotor público, Driscoll. Ainda moleque, Tolly já sabe que ele deseja
conseguir vingança em seus próprios termos.
Vinte anos de vida criminosa depois, Tolly, agora interpretado por Cliff Robertson, se reencontra com Farrar em seu leito de
morte numa enfermaria de prisão. Tolly engana o moribundo para
que ele diga os nomes dos outros três assassinos, atiçando-o com a
possibilidade do perdão. Os três assassinos, Smith, Gunther e Gela,
são parte de um enorme sindicato do crime. Metodicamente, Tolly
persegue os três, um por um.
Primeiro ele resgata Cuddles, uma mulher de bandido, e a convence a denunciar Smith por outro crime que ela o viu cometer. De118
pois Tolly arruma trabalho dentro do sindicato, fazendo um acordo
com Driscoll, agora o comissário do combate ao crime, para incriminar Gunther como traidor. Gunther é morto por um dos próprios
assassinos do sindicato numa explosão de carro. Em seguida, Tolly
ganha as graças do patrão de todos os líderes do sindicato, Connors,
que manda matar Gela porque Tolly também o denuncia.
Enquanto isso, Cuddles se apaixona por Tolly, que de início a
esnoba por ela querer família, e depois decide que ela deveria ser a
mãe de seus filhos. A decisão de Tolly em viver uma vida ordeira não
significa que ele vai continuar cooperando com o comissário policial.
Ele se recusa a armar contra Connors, o chefão. O único motivo de
Tolly foi a vingança pessoal contra os assassinos de seu pai. Mas
quando Connors manda matar Cuddles, Tolly persegue-o até seu
quartel-general numa piscina e o assassina brutalmente. Ferido num
entrevero por um funcionário do sindicato, Tolly cambaleia pelas
ruas, desmoronando no mesmo beco escuro onde ele viu seu pai
morrer. Meu último plano faz um close no punho cerrado de Tolly,
prova fatal de uma vida vivida com ódio e frustração.
Tolly é hostil, rebelde e autocentrado, não muito estimável no
cômputo geral. Motivado pelo egoísmo e pela sobrevivência, Tolly
é concebido num molde semelhante ao de Skip McCoy em Anjo do
Mal (Pickup on South Street, 1953). Quando eu escrevo o personagem assim, eu nunca penso se o público vai sentir empatia por ele.
Algumas pessoas vão. Outros vão balançar a cabeça e reprovar. Tudo
que eu tento fazer é ser verdadeiro. Conheci muitos desses bandidos
no meu expediente como repórter policial lá em Nova York. Eles
eram exatamente assim. Um reles criminoso em Manhattan, um beberrão em Clichy, uma prostituta em São Francisco, um viciado em
heroína em Londres, eles existem e têm uma história. Também não
é uma história bonita. Eles são, como escreveu Milton, tragados e
perdidos no vasto útero da noite antes da criação.
Não estou lidando aqui com reis beneficentes, princesas deslumbrantes ou príncipes charmosos que nasceram com castelos, joias e
legados suculentos. Desde que meus personagens nasceram, suas vidas foram duras e injustas. Eles vão ter que aprender a lutar para sobreviver. Eles são anarquistas, viraram-se contra um sistema que eles
consideram como tendo os traído. É por isso que eles acabam tomando
a lei em suas próprias mãos. Tolly ainda dá um passo além, explorando
o detestável sistema para conseguir a eliminação de seus inimigos.
119
A atitude anarquista de meu protagonista é influência de Jean
Genet, o romancista e dramaturgo francês de meados do século XX,
cujos escritos mostravam muita rebeldia contra a sociedade e suas
convenções. Os livros e as peças de Genet estão cheios de renegados
da sociedade, confrontados pela onipresença do crime, do sexo e da
morte. Suas peças são contaminadas de crueldade. Para Genet, os
conceitos morais são absurdos. Eu li pra cacete o material de Genet
e senti familiaridade com seu universo rude.
Eu também adorei a biografia que Jean-Paul Sartre escreveu
sobre esse homem controverso, Saint Genet – Ator e Mártir (1952).
Genet era o filho ilegítimo de uma prostituta, e foi pego roubando
com dez anos de idade. Ainda no começo da adolescência, ele estava
pagando uma série de penas por roubo e prostituição homossexual
que abarcavam quase treze anos. Em 1947, em seguida à sua décima
prisão por roubo, Genet foi sentenciado à prisão perpétua. Na prisão, ele começou a escrever e ser publicado. Sua crescente reputação literária levou um grupo de autores franceses de ponta a fazer
uma petição pelo perdão a ele. O presidente da França concedeu o
perdão em 1948.
Olhe só, em meus argumentos, eu nunca julgo meus personagens. O papa prega a paz. O gângster prega a morte. Seus meios e
jeitos, seus sermões fazem sentido para eles. Mas um escritor não
torce para nenhum personagem. Ele observa. Ele narra. Ele descreve. É papel do público reagir. Meu chefe mafioso explica friamente a
Tolly como a máfia sempre fica um passo adiante da lei.
CONNORS (sorrindo):
Sempre haverá gente como Driscoll. Sempre haverá gente como
nós. Mas desde que nós não tenhamos qualquer tipo de registro em
papel, enquanto nós gerirmos a National Projects com operações de
negócios legítimas e pagarmos os impostos da renda adquirida com
receita legítima e doarmos para a caridade e gerirmos bazares de
igreja, vamos ganhar a guerra. Nós sempre ganhamos.
É o público que tem que julgar esse sujeito, não o escritor. Um
espectador pensa, “Cacete, que desgraçado esperto!” Outro pensa,
“Meu Deus, ele é astuto como todos os líderes!” Outro ainda pensa,
“Que homem horrível, que assassino a sangue-frio!”
Os assassinos e mafiosos que eu conheci quando estava trabalhando como repórter só queriam uma coisa: sobreviver. A pena
capital para esses criminosos têm como única finalidade a vingança,
120
uma emoção poderosa em todos nós, muito humana, muito difícil
de transcender. Mesmo assim, acho que devemos evitar sucumbir à
vingança. A pena de morte nunca dissuadiu ninguém de praticar assassinato. Sou contra ela apenas porque a considero um ato bárbaro.
Ela nos torna indiretamente assassinos também.
Diabo, eu entendo os bons argumentos para a pena capital, já
que os assassinos e os estupradores são bárbaros também. Eles são
liberados da cadeia e às vezes cometem crimes semelhantes. Nossa
primeira reação a um crime selvagem é dizer: olho por olho, dente
por dente. Mas, e todas as pessoas inocentes que foram executadas
como retribuição a um crime do qual elas foram falsamente acusadas? A grandeza do sistema americano é que a Quinta Emenda garante proteção contra a compulsão humana à vingança rápida, com
o devido processo da lei.
Em A Lei dos Marginais, eu queria mostrar como os gângsteres
não são mais brutamontes, mas executivos respeitáveis e pagadores
de imposto. Há funcionários obstinados do governo tentando erradicar o crime pelos meios legítimos no filme. Meu comissário fala
para sua equipe de jovens advogados, descrevendo o difícil caminho
adiante.
DRISCOLL
O crime organizado hoje é muito mais intelectual do que foi
alguns anos atrás, e muito mais complicado de criar processos, então nós, advogados, fomos indicados para encontrar algum jeito de
processá-los... Nosso trabalho é acabar com a burocracia e surgir
com um plano de batalha jurídico letal para acionar os sindicatos.
Para conseguir a imagem austera e escura que eu precisava para o
filme, eu contratei Hal Mohr como meu câmera. Hal tinha filmado por
volta de dezoito filmes em sua longa carreira como câmera, na ativa
desde os anos 20, com filmes que incluíam Cantor de Jazz (The Jazz
Singer, Alan Crosland, 1927), Shanghai Lady (Shanghai Lady, John S.
Robertson, 1929), Capitão Blood (Captain Blood, Michael Curtiz, 1935)
e O Selvagem (The Wild One, Laslo Benedek, 1953) . Pedi a meu amigo
Harry Sukman que fizesse a trilha sonora. Novamente, Harry surgiu
com a mistura exata de tensão, melodrama e violência.
Selecionar o ator para filmar Tolly era a minha decisão mais importante. Eu tinha um bom número de estrelas promissoras prontas
121
para o papel. Cliff Robertson destacou-se. Cliff e eu nos demos bem
desde o começo porque ele também tinha sido um repórter antes de
virar ator. Ele nunca tinha sido um protagonista, mas ele me convenceu que podia ser Tolly. Minimizando sua aparência de galã, Cliff
deu a Tolly um exterior tranquilo, pilotado internamente por uma
alma torturada e sombria. Cliff acabou tendo uma baita duma carreira. Ele interpretou uma grande variedade de papéis, chegando a
viver até John F. Kennedy em O Herói do PT-109 (PT 109, Leslie H.
Martinson, 1963), e ganhou um Oscar por sua atuação em Os Dois
Mundos de Charly (Charly, Ralph Nelson, 1968). Mas eu me arrisco
a dizer que Cliff nunca teve outro papel que fosse tão perturbador
quanto meu Tolly.
De todas as muitas críticas e análises de A Lei dos Marginais
que apareceram ao longo dos anos, uma permanece comigo. Ela
chegou a mim através de fofoca hollywoodiana, uma observação que
um gângster real aparentemente fez para seus colegas sobre a ofuscante obsessão de Tolly para vingar a morte de seu pai.
“Ah, se o meu filho”, disse o chefe da máfia, “tivesse esse tipo de
afeição por mim!”
122
123
Eric Sherman e Martin Rubin (1968)
Entrevista
Samuel
Fuller
1
124
Eric Sherman e eu éramos dois universitários entusiastas, mas
inexperientes quando entrevistamos Samuel Fuller em sua casa
em Los Angeles em novembro de 1968. Sam e sua adorável esposa, Christa, nos convidaram gentilmente para um jantar primeiro.
Depois de muito vinho e conversa, a entrevista só foi começar um
pouco antes da meia-noite. Com frequência, Sam se referia a cada
um de nós como “rapaz” e ele pareceu tirar um prazer insidioso ao
nos oferecer charutos cubanos e uma vodca potente. Os copos eram
logo preenchidos novamente assim que déssemos um simples gole,
e então vinha o encorajamento para que bebêssemos. Eventualmente, um dos entrevistadores desmaiou, mas ele era incansável. “Qual
é o problema, rapaz? Você está cansado? Eu não estou! Tem mais
alguma pergunta?” Por volta das três da manhã, ele se apiedou de
nós, e voltamos para completar a entrevista um ou dois dias depois.
A personalidade de Sam tinha um campo de força tamanho que, por
muitos dias após a entrevista, Eric e eu nos pegamos falando com
inflexões Fullerescas e usando suas distintivas gírias (“tostão” para
“dinheiro”, “bimbar” para “transar”, “lero-lero” para “besteira”).
Mesmo para novatos como eu e Eric, ficou rapidamente claro
que apenas uns poucos micromilímetros abaixo dos modos fulgurosamente implacáveis de Sam havia muita doçura e gentileza. Talvez tenha demorado um pouco mais para discernir que sua
persona Runyonesque2 era uma fachada para um artista instruído
e sensível, com dimensões que nunca tocaram seus filmes, escritos
ou entrevistas (como o seu judaísmo, por exemplo). Acho que Eric e
eu tivemos sorte ao ver Sam falar de forma tão direta e substancial
sobre sua arte, com menos ênfase no interpretando-o-personagem-de-Sam-Fuller que domina outras entrevistas que li ou ouvi.
Talvez isso tenha ocorrido por conta das horas avançadas, ou da
vodca polonesa, ou ainda por ele ter sido generoso com dois rapazes imaturos de Yale.
Eu Matei Jesse James
P: Em Eu Matei Jesse James (I Shot Jesse James, 1949), o personagem de Robert Ford [John Ireland] aparenta ser um calhorda a
princípio. Mas, com o avanço do filme, ele parece ficar mais afável.
R: Não discorrerei muito sobre Robert Ford. Na verdade, eu gosto
1
Originalmente publicado
em The Director’s Event:
Interviews with Five
American Film-Makers (Nova
York: Atheneum Books,
1970). e republicado em
Samuel Fuller: Interviews
(Conversations with
Filmmakers), organizado
por Gerald Peary (Jackson:
University Press of
Mississippi, 2012). Tradução
de Guilherme Semionato.
(N.D.T.)
2
Referência aos escritos de
Damon Runyon, autor e
jornalista norte-americano
conhecido por contos que
celebraram o demi-monde
nova-iorquino durante a
vigência da Lei Seca. O
adjetivo “Runyonesque”
refere-se aos personagens
e eventos pitorescos que
povoam seus relatos. (N.T.)
125
dele porque ele fez algo que deveria ter sido feito bem mais cedo
na vida de Jesse Woodson James. Jesse James foi um veado incompetente que fingiu ser uma moça para o Quantrill’s Raiders
aos 15 anos. Agindo como uma prostituta, ele tentava os soldados
para dentro de uma cabaninha chamada “A casa do amor”, onde
eram roubados e mortos por aqueles desgraçados do bando dele.
Aos 18, Jesse e seu irmão assaltaram um trem-hospital, onde roubaram todos os feridos e em seguida os mataram.
Já que eu desprezo o sr. James (e daria meu olho direito
para fazer um filme com a verdadeira história de Jesse James),
eu sempre simpatizei com Robert Ford. Um dia, a verdadeira
história de Jesse James será contada. E vai chocar as pessoas.
Implacável! Cruel! Hoje temos fedelhos por aí que supostamente
estão envolvidos com drogas e eles assaltam bancos e mulheres.
Eles são fichinhas diante desses caras antigos. Eles matavam as
pessoas no ato.
P: No seu filme, quão bem você acha que Robert Ford entendeu seus
próprios motivos ao matar Jesse?
R: Ah, ele sabia que seria anistiado. Ele teve que escolher entre a liberdade, uns trocados, uma mulher e uma roça — e seu amigo [Jesse].
Sendo humano, Ford naturalmente decidiu que o cordeiro sacrificado seria seu amigo. Ah, ele entendeu isso muito bem. O que ele
não entendeu, até o fim do filme, foi que ele andava num estupor.
Eu tentei arranjar um homem hesitante, incerto, nem idiota, nem
esperto e alerta. A última fala do filme é minha [versão da] história.
Ford diz à menina: “Vou contar a você algo que não contei para
ninguém. Sinto muito por ter matado Jesse. Eu o amava.” Eu queria
aquele tipo de associação. Robert Lippert, o homem que financiou
o filme, não pescou isso. Ele achou que era só um relacionamento
meio Damão e Pítias, mas deixou assim mesmo.
P: Em que medida você se apoiou no conhecimento popular para a
cena em que Jesse James é baleado? Na sala de estar de Jesse no
filme, o quadro na parede está torto. A plateia saberia a versão
popular da morte de Jesse e reagiria a ela?
R: Mesmo crianças, todos nós já vimos ilustrações de Jesse sendo alvejado enquanto ajustava um quadro na parede. Eu buscava a simplificação do que nós conhecemos, mas também que ela tivesse
126
uma perspectiva nova. Tentei captar a sensação da arma e daquela
sala estranha ao entortar a câmera. Eu queria que a câmera entortasse levemente numa direção e o quadro em outra. De modo que,
quando uma cancela a outra, temos a morte. Queria algo estranho
no começo, mas que, quando acabasse, tudo voltasse a ser simples,
numa linha, mortos ficam geralmente na horizontal.
Eu adoro o oeste. Eu já li muito sobre o oeste e fico chocado,
envergonhado, que não haja um filme que tenha contado a verdadeira história da conquista do oeste — constituindo 90% de estrangeiros, 100% de mão de obra, nada a ver com armas. Ruas,
montanhas, estradas, pontes, riachos, florestas — é isso o que conquistar o oeste significa para mim. Dureza! Uma luta assombrosa,
assombrosa. Mas [em vez disso] nós temos, como vocês sabem,
caubóis e índios e tudo o mais. Shane chega à cidade, dá uma geral
e vai embora. Ele faz isso toda semana agora na televisão.
É por isso que eu não queria cavalgamento no filme. Depois
que terminamos de rodá-lo, Lippert colocou algumas imagens de
arquivo de pessoas cavalgando por aí. Eu não queria aquilo. Não
estou interessado em histórias de cavalaria. Nem interessado em
Jesse eu estou. Estou interessado em Ford, e em como deve ser
difícil para um assassino matar alguém, especialmente uma pessoa que ele conhece. Como é difícil!
Capacete de Aço
R: Eu fiz Capacete de Aço (The Steel Helmet, 1951) em dez dias. Dez
dias! Um set. Metade de um dia com toda a equipe no Griffith
Park! Usei 25 universitários como figurantes. [Só] 25 homens!
Não tínhamos dinheiro para mais nada. Eu os fiz parecerem
umas 350 ou 400 pessoas. Às vezes, quando você não tem grana,
você improvisa, e o resultado é melhor.
P: A relação entre o sargento Zack e o menino em Capacete de
Aço é similar ao relacionamento entre Price e Drew em O Barão
Aventureiro. Zack não percebe o apego do menino a ele até o
menino ser morto...
R: Ah, sim! Entendo o que você quer dizer. O que quer que exista
entre eles de emocional cresce neles. Sim, você está certo. Zack
simboliza perfeitamente um sargento: não tem emoções. Ne127
nhuma! Porque se você tiver emoções, você não está na guerra.
Não há tempo para emoções. A guerra vira um trabalho. Você
acorda. Você trabalha um pouco. Talvez você saia em patrulha
ou para a batalha. Sua luta é muito breve. Você descansa. Você
caga. Você come. Então você sai e atira de novo. Você vai dormir. Então você acorda...
Se você fizer isso por três anos, é só um trabalho. É uma
máquina poderosa dentro de você. A única emoção que você tem
é: “Quando vou sair daqui; quando alguém vai me substituir?” É
a única emoção que se experimenta na guerra. Você fica ciente
dos sons. Você fica ciente da observação. E você fica ciente da
confiança num homem. Muito ciente. Se eu souber que vocês dois
estão à minha direita, então tudo bem. Se eu estiver preocupado
com vocês, estarei em apuros.
Então eu pensei que seria uma cena muito eficiente se Zack
estourasse, não apenas por causa do inimigo ou do tiroteio e tudo
aquilo, mas por causa do garoto. Você nunca deve perder a cabeça
com alguém que está do seu lado. O garoto estava do lado dele.
Você entendeu o riscado; havia um amor crescente ali. Era uma
história de amor.
Quando Zack explodiu, matou um prisioneiro de guerra
desarmado. Para mim, aquilo não deveria causar choque. Mas
causou na imprensa. Um tremendo choque. Muitos editoriais.
Tenho todos os jornais. Entrevistas enormes de página inteira
perguntando: “você mataria este homem?” Veja, eu acho que é
meio estúpido quando você está na guerra, não atirar só porque
um homem colocou as mãos dele para cima. Cinco minutos atrás,
ele estava atirando em você. A munição dele acaba e ele coloca as
mãos para cima. O que quero dizer é que certamente não há lei.
Se houver lei na guerra, então estamos completamente loucos. Do
jeito que as coisas estão, só estamos 99% loucos. Mas se existir
uma lei... Como pode haver uma lei para um ato ilegal?
Então, eu não posso me preocupar com a morte de um prisioneiro. Não significa coisa alguma para mim. Absolutamente
nada. Eu acho que a ideia de atirar num homem é mais importante. Eu não me importo se ele é um amigo ou um inimigo. Mas a
ideia de que nós tenhamos leis, a Convenção de Genebra, regras e
regulamentos serve para ocultar muitas coisas estúpidas.
P: Por que você deu tanta ênfase ao monumento de Buda no filme?
128
R: Eu queria colocar sangue nas mãos do Buda, especificamente.
Queria mostrar o sangue escorrendo de suas mãos para o comunista. Achei que seria muito tocante ter uma morte ali no colo do
Deus dele, e instantes antes de o templo todo desaparecer. Mas
Buda ainda permanece.
O grande Buda, em Kamakura, no Japão, estava cercado por
um enorme templo. Há centenas de anos, houve um terremoto. Tudo foi demolido, exceto este Buda... Ah! Você viu isso em
Casa de Bambu (House of Bamboo, 1955). Aquele era o Buda de
Kamakura. Eu conhecia a história daquele Buda e achei estranho
o fato do monumento ter sido poupado, assim como as relíquias
gregas que temos hoje. Não sei como diabos algumas colunas
permanecem e outras não. Era essa peculiaridade que eu queria
alcançar com a presença do Buda em Capacete de Aço.
P: No fim do filme, após o grande ataque ao templo, os três sobreviventes são todos excluídos de alguma forma — o negro, o oriental
e o sujeito careca. Isso adiciona uma nota um tanto derrotada à
“vitória” sobre os norte-coreanos.
R: Eu adicionei uma fala de propósito nessa cena que é estritamente coisa de milico. Não importa o que acontecer, quando a batalha chega ao fim, tem sempre alguém que vai dizer: “Estou com
fome.” E tem sempre um camarada que está prestes a vomitar.
Mas o tema de Capacete de Aço está no final. É o que eu queria
mostrar: que aquele não é o fim. Guerras continuam e continuam.
Não há fim para a história.
Baionetas Caladas
R: Em Baionetas Caladas (Fixed Bayonets, 1951) queria contar a
história de um sujeito [Richart Basehart] que não consegue matar
um soldado inimigo. No final, quando ele consegue — por puro
desespero, pânico, frustração e falta de coordenação —, eles o
elogiam, e ele aceita o louvor. É isso o que acontece nas guerras.
Para mim, a emoção das guerras — e há uma emoção tremenda — está na morte. É nela que estou realmente interessado,
porque é o único mistério. É por isso que eu sempre a dramatizo. Não acho que nada seja mais dramático em filmes do que a
morte, mesmo que suponhamos ter sangue frio e ser levianos em
129
relação a ela. Não conheço outro assunto.
[Na guerra,] eu raramente ouvi um moribundo fazer um discurso. O que geralmente se ouvia, quando um homem era alvejado perto de você, era: “Ah, não. Que droga. Ah, que droga. Ahhh,
nããããão. Por favor. Por favor. Eu, não.”
P: É isso que o soldado “mudo” de Capacete de Aço diz quando é
morto.
R: Ah, verdade! É isso que ele diz. É isso que se diz, e se diz mesmo.
É egoísta. Todas as saídas são egoístas e pessoais. E é assim que
deve ser.
P: As cenas de batalha em Baionetas Caladas são impressionantes
e bastante incomuns: cortes rápidos, enclausuradas, nada espetaculosas, muito realistas e assustadoras.
R: Bastante íntimas, sim. Para começar, eu tinha uma tremenda máquina de gelo. O set foi construído, e eu ensaiei os atores e os
dublês. Então estava preparado. Disse a todo mundo: “Só saiam
do palco. Vão tomar um ar. Dar uma relaxada.” Depois disse: “Encham de gelo.” Aí a mangueira fez uma barulheira e o set todo era
gelo puro. Então eu chamei os atores de volta. E qual foi a surpresa deles! Aqueles tombos eram reais, nada de atuação. Você não
ficou meio em pânico? Eram reais. Eles escorregavam por todo
lado. Eles sabiam que explosões estavam acontecendo por ali, e
tinham que escapar de lá.
Isso me faz lembrar de um incidente engraçado em Baionetas Caladas. Um de nossos dublês estava machucado. Nada
sério, ele só torceu a perna. Mas eu descobri que quando dublês
se ferem e deixam o filme seus pagamentos são interrompidos.
Então tive uma ideia. Disse a meu assistente: “Use-o como um ferido.” Bom, no final daquela semana, eu tinha uma lista de feridos
gigantesca! Qualquer um que se machucasse continuava no filme
como ferido. Só que eram feridos de verdade! Se um camarada
não conseguia andar no filme é porque ele realmente não conseguia andar.
P: Eu gosto da cena no início do filme em que toda a tropa bate
em retirada, e o pelotão da retaguarda fica para trás. Eles estão
parados lá, congelados de frio, enquanto uma melodia abafada e
130
muito distorcida aparece na trilha.
R: Eu queria uma combinação de “On the Banks of the Wabash” e
“Taps”. Pensei que era uma melodia tocante para a cena. Estava
muito ansioso para captar o efeito da retaguarda: o abandono.
P: Nesta cena, quando as tropas batem em retirada, você passa pelos
rostos dos homens na retaguarda. Quando eles cruzam o rio no
final, suas caras passam todas pela câmera e eles parecem quase
idênticos em relação ao início. A situação deles é a mesma.
R: Você pegou a ideia de equilíbrio disso? Todos, exceto os que não
sobreviveram.
Anjo do Mal
P: A cena de abertura de Anjo do Mal (Pickup on South Street, 1953)
— quando Richard Widmark pega o caderninho da garota que
contém a informação secreta — é encenada sem diálogos. Isso
confere à ação bastante ambiguidade. É só muito depois que você
descobre o que realmente aconteceu. Então, em vez de “comunistas versus mocinhos”, você está preocupado com assuntos pessoais desde o princípio.
R: Você está certo sobre a ambiguidade. O final é assim também.
Algumas pessoas pensaram: “Bom, acho que Widmark vai fugir
com a menina e serão felizes.” Eu dei a ela uma fala no final para
mostrar que eles nunca vão mudar. O policial diz: “Não importa o
que aconteça, eu vou encontrar esse filho da mãe em uma ou duas
semanas com a mão no bolso de alguém.” Ela diz: “Quer apostar?”
O modo como ela disse isso serviu para que a plateia sentisse que
ele eventualmente vai voltar a roubar, e ela vai voltar a fazer o
que quer que estivesse fazendo antes.
É isso que eu curti à beça no filme: a ideia de ter um ladrão,
um informante da polícia e uma prostituta incompetente como
os três personagens principais. O filme foi rodado entre 18 e 20
dias na Fox. Um filme grande para mim. A coisa toda foi filmada
no centro de Los Angeles, e eu usei vários truques para fazê-lo
parecer Nova York.
P: Ainda que você tenha estabelecido a cidade de forma indelével
no filme, você parece mais interessado nos indivíduos do que nas
estruturas, políticas ou não, que os envolvem.
131
R: É por isso que eu minimizei a situação política em Anjo do Mal.
Não estava interessado na estrutura. Eu poderia ter uma grande cena com cinquenta ou sessenta figurantes. Eles estão todos
reunidos, e o cabeça diz: “Isso é terrível. E quanto ao partido [comunista]?” Você nunca escuta a palavra “partido” no meu filme.
Você nunca é avisado de que o homem do FBI em, Anjo do
Mal, é do FBI. Ele é só do governo. Eu não queria especificar
isso. Logo antes de eu filmar, [Klaus] Fuchs, o espião britânico,
foi preso por vender informações à Rússia. O homem do governo
no filme diz a Widmark: “Você sabe do Fuchs. Você sabe o que ele
fez.” Widmark diz: “Eu não sei do que você está falando. Eu não
me importo.”
personagens favoritos, Lightnin’ Louie.
R: Lightnin’ Louie foi interpretado por Victor Perry, um mágico expert em carteado de Chicago. Foi seu primeiro e último filme. Eu
o encontrei por acaso. Perguntei a ele: “Você tem habilidade com
as mãos?” Ele disse: “Se eu tenho habilidade? Veja minha performance.” Eu disse: “O que eu queria no meu filme é um homem tão
indiferente às pessoas que ele despreza inclusive as pessoas para
quem vende informação — especialmente se elas o incomodarem
enquanto ele come. É por isso que eu quero um homem como
você, com um barrigão. Agora eu quero ver você pegar uma grana com os pauzinhos e continuar a comer com eles.” Você gostou
desse toque? Foi exatamente por isso que eu o usei.
P: Este parece ser seu filme mais marcado pelo close-up. Até mesmo
os close-ups viravam supercloses.
R: Ah, sim. Você notou isso? Eu gosto de fazer isso às vezes. Eu Matei Jesse James também foi filmado com muitos close-ups porque
não estou interessado no banco ou nas pessoas do banco. Estou
interessado no funcionário que será morto e no homem que vai
atirar nele. É a mesma coisa em Anjo do Mal. Agora que penso
nisso, havia poucos figurantes no filme, poucas pessoas por ali.
Casa de Bambu
P: Eu gostei do modo que você moveu a câmera principalmente.
R: Se sua câmera está movendo, e sua ação também prossegue — rapaz, ação é o que você tem. Se há ação e sua câmera está imóvel,
não funciona tão bem. É melhor também não acompanhar a ação
apenas. Novamente, é o seu olho. Eu quero ir além dele. Então
você tem dois pares de olhos: a câmera está se movendo e seus
próprios olhos também.
P: Logo antes da cena da morte de Thelma Ritter, há uma tomada
em que ela vende suas gravatas, à noite, numa área de construção. Aquela cena me deu uma sensação infernal de submundo.
Era isso que você queria?
R: Ah, não. Eu queria algo que está nascendo logo antes de alguém
morrer. Eu queria algo vivo. Eu queria uma daquelas máquinas
incríveis, fogo, luzes e vida. Vivo! Ruidoso! Porque logo vai estar
muito quieto — para ela.
P: Só mais um detalhe: queria perguntar a você sobre um dos meus
132
R: Casa de Bambu foi o primeiro filme norte-americano que fiz no
Japão, e marcou a primeira vez que realmente usei locações.
P: A sequência anterior aos créditos — o assalto ao trem e o assassinato à sombra do Monte Fujiyama — foi muito impressionante.
R: Eu não queria mostrar o Monte Fuji como você sempre o vê,
com as cerejeiras em flor. Eu queria branco contra branco contra branco. No primeiro plano, eu queria aquele trem preto. Eu
queria um quê sombrio, austero. Então, enquanto nos afastávamos da morte, do assassinato do soldado, você via uma mulher
correndo. Os créditos entravam, e a gente começava a ganhar a
riqueza da cor aos poucos. Quando ela reporta o crime à polícia,
estávamos em cores. Isso me excitou.
P: Como Capacete de Aço, Casa de Bambu é essencialmente uma
história de amor entre dois homens, Robert Stack e Robert Ryan.
R: Certamente. O melhor exemplo disso foi uma fala que dei a Ryan.
Ela aparece logo depois do primeiro roubo. Ryan está tentando
entender por que, no caso de Stack, ele quebrou a regra da gangue de matar homens feridos para que eles não falem com a polícia. Primeiro, ele diz a Stack: “Não sei por que salvei seu pescoço.”
Então ele se vira para os outros homens e diz: “Alguém poderia
me dizer por que eu fiz isso, por favor?”
Esta é a grande fala, a que os estabelece de modo firme. Eu
133
queria que ela deixasse as pessoas um pouco nervosas, porque é
geralmente algo que um homem diz sobre uma mulher: “Por que
eu me casei com ela? O que estou fazendo com ela? Por que saí
com ela? Alguém poderia me dizer por que fiz isso, por favor?”
Ryan enunciando essa fala foi o máximo que consegui chegar a
esse respeito.
P: O modo com que julgamos ambos os personagens é típico dos
seus filmes. Nos níveis estrutural e institucional, Stack é um policial disposto a pôr fim numa onda de crimes, e devemos nos
simpatizar com ele. Mas na esfera mais pessoal — a história de
amor entre dois homens —, Ryan desperta mais compaixão.
R: Eu disse a Ryan para nunca dizer “meu pai”, e sim “papai”. De cara,
você tem que gostar de qualquer sujeito que diz “papai”, porque
ele gosta do pai dele. Quando Stack fala sobre sua família, foi
chato. Afinal, ele é só um policial. Um policial da Califórnia. Não
significa nada.
P: O modo como Ryan dirigia seu sindicato do crime era fascinante.
Um assalto era conduzido como uma manobra militar, com mapas de batalha, instruções, reconhecimento, fotografias.
R: Depois da guerra, tentei vender à MGM uma história sobre um
grupo de homens que pertenciam ao mesmo pelotão e que, quando a guerra acaba, formam uma quadrilha. Eles tomam o Forte
Knox usando a mesma manobra militar com que destruíram uma
fortificação na praia de Omaha. O estúdio não gostou da ideia.
Então, quando me pediram para fazer Casa de Bambu, pensei
em usar isso.
Renegando o Meu Sangue
R: Eu queria que Rod Steiger fizesse o protagonista porque ele não
parecia um típico herói norte-americano. Ele era gorducho. Pensei que ele fosse parecer desajeitado em cima de um cavalo, e
foi o que aconteceu. Ele era perfeito para aquele papel; era um
desajustado. O personagem de Steiger se tornou um fanático religioso no que se refere ao ódio. Ele agia da mesma forma que
perdedores agem na guerra, nesse caso, os confederados.
P: Você frequentemente usa objetos de cena como algo além de um
134
símbolo ou motivo, quase como um personagem, como o capacete de Capacete de Aço e o projétil em Renegando o Meu Sangue
(Run of the Arrow, 1957).
R: Sim. Meu título original para o filme foi O Último Projétil (The
Last Bullet). Foi isso que me fez começar a pensar em toda a história: o que aconteceu com o último cartucho disparado na guerra civil? Achei que era um bom título, mas ficaria parecendo um
faroeste.
P: Neste filme e em Dragões da Violência (Forty Guns, 1957) você
usou várias fusões muito lentas. Por quê?
R: Para contribuir com o clima. Eu tentei cronometrar cada uma
daquelas fusões para fazer com que parecessem música, uma
melodia bonita, e eu tinha o inferno acontecendo logo antes ou
logo depois delas. Não conseguiria outro contraste a não ser
que usasse uma cena extensa amparada em diálogos e eu não
queria isso.
P: Por que você se concentrou em pés em vez de em rostos na cena
da corrida da flecha?
R: Eu filmei essa cena sem meu protagonista. Steiger havia torcido
o tornozelo logo antes de sua filmagem, e foi levado ao hospital.
Usei um índio jovem em seu lugar. Ninguém notou. Eles acharam que eu estava sendo supercriativo, muito artístico: “Imagine só! Quase um garoto maravilha, um gênio! Sensacional! O
modo como ele filmou a cena mostrando apenas os pés!” Bom,
de qualquer forma, eu teria filmado cerca de 80% dessa sequência apenas com pés, porque está aí toda a ideia da corrida. Mas
ocasionalmente eu teria elevado a câmera e mostrado o rosto
de Steiger, assim como fiz com [Jay C.] Flippen. Mas não podia,
porque ele estava no hospital.
Joe Biroc, o operador de câmera, foi excelente nesta cena.
Há duas tomadas com dois pequenos pontos à distância; é o
índio correndo atrás de Steiger. Não sei como Biroc captou isso,
mas foi exatamente aquilo que eu queria: você precisa olhar
por um tempo antes de conseguir notá-los, porque ao redor as
cores são muito vívidas, e aí você vê um pontinho perseguindo
outro.
135
No Umbral da China
P: Eu gosto da cena em que Angie Dickinson deixa [Lee] Van Cleef e
explode o depósito de munições, o que ocasiona a morte dela. É
feito tão rápido. Ela nunca para e pensa: “O que eu estou fazendo?” Ela simplesmente faz, porque precisa. Decisões como essas
são encontradas com frequência em seus filmes — por exemplo,
em A Lei dos Marginais (Underworld U.S.A, 1961), quando Tolly
Devlin mata Boss Connors, e em O Beijo Amargo (The Naked
Kiss, 1964), quando Kelly mata Grant.
R: Se há algo conectado à morte, deve ser rápido, a não ser que você
tenha uma boa razão dramática para prolongar. Por exemplo, em
A Lei dos Marginais, quando [Cliff] Robertson vai matar Paul
Dubov. Eu não me importei em prolongar ali, porque para início
de conversa ele vai manipular a morte deste homem; depois, ele
vai torturá-lo; e, por último, não será ele que o matará. Mas se
Robertson fosse ele mesmo cometer o ato, eu o teria colocado
atirando na cabeça de Dubov assim que entrasse pela porta. É
bastante difícil para mim aceitar muito lero-lero antes de um tiroteio. Em vez disso, eu quero impacto.
Quando disse a Angie para correr por aquela caverna, eu
concebi tudo aquilo como algo que duraria cinco segundos ou
menos, desde o início da corrida até a explosão. Não apenas
porque o tempo é importante, mas porque se ela andasse entraríamos numa categoria perigosa: agora ela vai refletir a respeito. Ela estaria hesitante e ela não deveria estar hesitante. É
como um suicídio. Se você vai se matar, se mate. Não chame a
polícia, sua mãe, seu pai e seu tio. Mas você mencionou algo
que me é muito específico: a rapidez. Essa cena não chocou
você um pouco?
Dragões da Violência
3
Título original do filme.
Literalmente: Quarenta
armas. (N.D.T.)
136
R: Eu não gosto do título Forty Guns3; é insignificante para mim. Eu
ia chamá-lo de Mulher com um chicote (Woman with a Whip).
Originalmente, Marilyn Monroe queria interpretar a protagonista. Ela gostou da ideia de uma menina cercada por tantos homens. Achei que ela era nova demais para o que eu queria. Queria
algo meio mãe-irmã ali.
Os dublês se recusaram a fazer a cena em que a personagem de Stanwyck é arrastada por um cavalo. Eles acharam que
era perigoso demais. Mas Stanwyck disse que faria ela mesma,
e fez. Fizemos pela primeira vez, e eu disse: “Não gostei. Foi
longe demais da câmera. Não está saindo como eu quero.” Então
tentamos novamente, e eu também não gostei. Ela não reclamou.
Tentamos uma terceira vez, e foi exatamente como queria. Ela se
machucou um tanto.
P: Há um vigoroso senso de morte no filme, conectado especificamente a atos sexuais. O exemplo mais notável disso é a cena do
casamento, em que o noivo é baleado e cai morto em cima da
noiva.
R: Eu gostei da ideia de uma cama de lua de mel ser um túmulo.
Ele estava morto na única vez em que conseguiu tocá-la. Pensei
até em contrastar essa cena um pouco, no que tange seu aspecto
sexual, com outra em que a filha do armeiro tenta conseguir de
[Gene] Barry uma arma. Eu achei que poderia me divertir um
pouco com sexo, porque as conotações estavam todas lá. Tinha
uma tomada em que ele olha para a garota pelo cano de uma
arma, e, enquanto ela caminha, ele a acompanha, assim como a
câmera. Quando estive em Paris, Godard me disse que usou essa
tomada em Acossado, exceto que, em vez de um rifle, [Jean-Paul]
Belmondo enrola um jornal e segue [Jean] Seberg quando ela
anda pelo quarto dele.
Não pude usar meu desfecho original. Pediram para que eu
o mudasse, e o mudei. O final original era poderoso. Tinha [Barry] Sullivan encarando o assassino, o irmão caçula de Stanwyck.
Nele, o irmão pega Stanwyck e a segura à sua frente. Ele sabia
que tinha atingido o ponto fraco de Sullivan. Eu o fiz desafiar
Sullivan. E Sullivan mata Stanwyck. Então ele mata o sujeito e
some. Era o fim do filme.
Eu precisei adicionar aquela fala em que Sullivan diz que
posicionou a arma de forma tal a não matar Stanwyck. Ela está
viva no final, e eles estão felizes. Não gostei daquele final. Muitas
pessoas gostaram, porque elas gostam de ver o rapaz e a moça
juntos. Eu não acho isso importante. Acho que é muito mais dramático da outra forma, porque Sullivan precisa explodir. É por
isso que ele não usava uma arma havia dez anos. Mas, assim que
137
ele aperta o gatilho, ele é um homem diferente. Ele é um carrasco
e mata tudo o que aparecer à sua frente. É um final pesado.
Já vi muitos filmes, Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952) e outros, em que o vilão pega a moça e a coloca à sua
frente, o que põe o herói numa situação bem constrangedora. Sempre, no último minuto, ela o empurra e o herói o mata. Não gosto
disso em nenhum faroeste. Não faz sentido.
Proibido!
P: Proibido! (Verboten!, 1959) parece ser seu filme mais caótico.
Todas as cenas foram feitas num estilo diferente. Por exemplo,
cenas documentais se alternaram a outras filmadas num set de
rua, e montagens rápidas se mesclaram a longas tomadas. O que
uniu essas cenas foi que quase a totalidade delas lidava com uma
forma de histeria.
R: Fico feliz que você tenha comentado isso. Eu usei esse contraste
durante as filmagens para ajudar a manter o caos, porque eu sou
muito sensível a respeito do tema da Alemanha do pós-guerra. Eu
tinha um final bom, mas fui forçado a mudá-lo. O soldado norte-americano era alvejado no final. Ele era morto por um policial
militar, outro soldado norte-americano, que viu esse camarada
andando perto da fogueira e atirou nele porque estava vestido
como um civil. O outro soldado aparece e diz: “Quem é?” Depois,
vira o corpo com seu pé e diz: “Ah, caramba, outro chucrute.” Não
que eu queira que todo herói morra. Nesse caso, achei que seria
mais impactante.
Sou muito próximo do tema de Proibido!. Durante a guerra,
discutíamos muito sobre se havia diferença entre um alemão e
um nazista. Com a exceção de uma experiência que tive, não encontrei um alemão sequer, do dia que invadimos a Alemanha, ao
final da guerra, na Tchecoslováquia, que disse ser nazista. A única
exceção foi uma menina de 15 ou 16 anos numa cidadezinha nas
redondezas de Aachen. Estava em patrulha junto com vários homens, e pedimos água a ela. Ela nos disse para sumirmos dali. A
gente até tentou impressioná-la dizendo que atrás da gente havia
a primeira divisão de infantaria, com 12 mil homens. Mas ela nem
ligou. Foi a única alemã que eu encontrei que disse ser nazista e
nos mandou para o inferno. Não vou me esquecer disso. Todo
138
mundo disse: “Não sei o que está acontecendo.” Assim como o
sulista de Renegando o Meu Sangue. Sabe, é sempre o outro.
Era algo delicado para mim. Eu filmei muito durante a guerra. Não apenas as coisas boas. Coisas ótimas. Coisas minhas. Coisas que você não vê nos filmes oficiais do exército.
A última batalha da Segunda Guerra Mundial foi em Falkenau, na Tchecoslováquia. A cidade era próxima de um campo de
concentração. Era um campo para soldados russos, mas muitos
norte-americanos estavam nele. Eles morriam de tuberculose. As
plaquetas de identificação foram removidas, então não dava para
saber quem era norte-americano e quem não era.
O comandante da companhia [norte-americana] foi para a
cidade de Falkenau com um grupo de homens. Ele parou pessoas
na rua e perguntou: “E quanto ao campo? Como eles os tratavam?” Eles disseram: “Não sabemos nada sobre o campo.” Ele disse: “Dê uma pá a eles.” Ele pegou um grupo de pessoas — alemãs
— e marchou com elas em direção ao campo. Ele as obrigou a
pegar os mortos, enfileirá-los, vesti-los, colocá-los em carrinhos
e levá-los à cidade onde os enterrariam.
Eu tenho tudo isso em filme [de 16mm]. Dureza! Registrei
coisas como eles jogando terra num túmulo, o rosto do cadáver
descoberto. Esses jovens hitleristas tinham que descer, cobrir
o rosto com um lenço, e prosseguir o enterro. Bem pesado! Os
mortos eram trazidos em carrinhos para a cidade, e um menino
bem jovem corre com um rifle de brinquedo. Ele não sabe que um
funeral está ocorrendo. Ele faz bang-bang-bang em direção aos
corpos com seu rifle. Tenho tudo isso em filme.
P: Você achou as pessoas que você encontrou na Alemanha do pósguerra ideológicas?
R: Não havia política. Frustração, fome, derrota e jovens selvagens,
bem selvagens. A Alemanha era assim naquela época.
P: Por que você usou tanto Wagner e Beethoven na trilha?
R: Para mim, Beethoven e Wagner são política, espiritual e musicalmente incompatíveis. É por isso que eu fiquei muito excitado em
usá-los. O surgimento de Hitler foi contado por Wagner. [Fuller
murmura Wagner, e progressivamente sobe a voz]. Foi assim que
Hitler fez. Ele começou com um homem, depois eram dois, [ de139
pois três etc.]. É por isso que eu usei muito a música. Além disso,
foi ótima para o final. Minha nossa! Wagner, o fogo, os rapazes
loiros e os cavalos. Meu Deus, impossível não dar certo.
P: As forças destrutivas no filme parecem perder o controle.
R: Sim. Eu tentei expressar isso numa cena especialmente, em que
um neonazista diz ao jovem líder alemão: “Não podemos explodir
esses caminhões porque eles estão carregando remédios para as
pessoas. Nós vamos lutar contra esses americanos malditos, e
nós vamos mentir, trapacear, roubar e matar. Faremos tudo, mas
as pessoas precisam dos remédios.” O líder diz: “Que se danem.” O
outro diz: “Mas são alemães!” E o líder diz: “que se danem!”
É por isso que, em Proibido!, eu queria captar essa sensação
de... você usou a palavra caos, que é boa. Eu queria captar a sensação de fúria e perversidade animais.
O Quimono Escarlate
R: Uma das mais antigas expressões para se referir a sexo é: “Vamos mudar a nossa sorte.” Isso significa: “Vamos lá pegar uma
mulher de cor.” Achei que daria um efeito legal inverter isso, para
que, quando a moça branca tivesse se apaixonado pelo camarada japonês, ele dissesse: “Espere aí. Eu quero ter certeza de que
você realmente me ama. Algo me diz que, assim como os brancos
‘mudam a sua sorte’ com negros, você está se divertindo ao saber
como é transar com um oriental.” Não sei por quê, mas deixei
essa fala. Não sei se [agora] dá para entender essa ideia. Um dia
eu consigo. Certa vez até planejei usar essa fala em Renegando
o Meu Sangue. Eu queria que aquela índia pensasse: “Como será
que é transar com um branco?”
Enfim, essa ideia originou O Quimono Escarlate (The Crimson Kimono, 1959). Há um quê experimental nesse filme. A coisa
toda foi filmada no centro [de Los Angeles], no bairro japonês. Já
que eu estava filmando muita coisa à noite nas ruas com câmeras
escondidas, precisei usar um filme de alta sensibilidade. Não podia usar iluminação. A cena inicial foi a mais difícil que já filmei,
e olha que eu já rodei cenas com mil homens em Mortos que
Caminham (Merrill’s Marauders, 1962). Eu escondi três câmeras,
uma num telhado, outra num caminhão, outra num carro. Quan140
do a garota caiu, depois do tiro, ela o fez no meio de uma rua de
muito tráfego. Não encenamos aquilo. Era tráfego de verdade. Se
um idiota tivesse saído com um carro, ela seria atingida. A cena
mais perigosa que já filmei.
P: Eu gosto dos contrastes no final. O assassino é alvejado na rua,
enquanto todas as pessoas ao redor estão vestidas com esmero,
usando adereços que tilintam.
R: Há outra cena em que usei música para estabelecer um contraste.
Várias bandas participam daquela celebração no final. Uma toca
música clássica, outra música japonesa, outra músicas de sucesso.
Sempre que eu cortava do assassino para seu perseguidor, a música mudava. Isso me deu a nota destoante e caótica que eu queria.
Eu achei que o final do filme foi muito honesto. Eu detesto
fracassados, mentirosos e falsos. Detesto cenas, e eu já vi milhares delas, em que um cara perde a moça para outro sujeito e diz:
“Bom, nós continuaremos amigos. Não se preocupe.” Não! Não no
meu filme. Ele se lixava se o cara era japa ou branco. Ele estava
irado porque o cara roubou a garota dele. E continuou irado.
A Lei dos Marginais
R: Eu pensei em fazer [O Conde de] Monte Cristo, fazer algo do
Dumas. Com uma exceção: em vez de se vingar dos rapazes pessoalmente, ele [Cliff Robertson] usaria a lei para matar as pessoas
de que não gosta. Achei que era uma abordagem bem boa para
a história.
P: O tema da purificação está presente no filme inteiro. Começa
com Tolly Devlin [Cliff Robertson] esterilizando instrumentos no
hospital penitenciário e termina quando, ao morrer, ele tropeça
numa lata de lixo que diz: “Mantenha sua cidade limpa.”
R: Novamente, eu queria um contraste. Além da esterilização dos
utensílios, disse a Robertson para colocar as ataduras bem gentilmente, bem precisamente no homem, tal qual um cirurgião. Eu
queria atingir esse efeito: ele é asseado em relação às ataduras,
mesmo que esteja enganando o homem que as recebe.
Também tentei tirar um contraste sempre que podia entre o
asseio do líder da National Projects e a discussão que ele conduz
sobre drogas, prostituição e assassinatos. É por isso que eu esco141
lhi a locação na piscina. Eu queria aquela atmosfera vazia, limpa
que se tem ao redor de uma piscina. É uma pena que não dá para
cheirar nos filmes, porque há um odor antisséptico numa piscina,
como numa academia. Pensei que a coisa mais limpa do mundo
é uma piscina. Então eu coloquei a tal organização criminosa se
reunindo lá, em vez de num escritório pomposo, ou numa sinuca
ou num desses lugares sombrios onde gângsteres se reúnem geralmente. Eu queria alcançar um contraste em relação ao que eles
falam, que é tão sórdido e baixo.
P: Você retratou a National Projects, a organização de fachada de A
Lei dos Marginais, como uma típica empresa, com calculadoras,
contadores e tudo o mais.
R: Tudo é feito mecanicamente, quase como robôs, como computadores. Eu não duvido que o crime hoje seja controlado por computadores. Se eu fosse fazer esse filme hoje, mostraria apenas
vinte máquinas, mais nada. Sem pessoas, só todas as máquinas.
Eu queria passar a ideia de mecanização com o filme.
P: Parece que crime foi definido em A Lei dos Marginais como
ausência de emoção.
R: Sim. E também como uma fachada de cidadania participativa. Não
se esqueça de que Boss Connors [Robert Emhardt] disse: “Tudo o
que precisamos fazer é pagar um pouco de impostos, ir à igreja,
mandar algumas crianças para a escola, arranjar uns projetos beneficentes. Vamos vencer. Sempre vencemos. Sempre venceremos.”
P: A frieza da organização se reflete particularmente bem em Gus,
o personagem de Richard Rust, o assassino de aluguel. Ele mata
sem qualquer comprometimento, de modo quase casual.
R: Pois aí está um personagem honesto. Ele não é um psicopata; não
há insanidade alguma nele. Ele só tem um emprego. Ele certamente não está interessado em matar aquele menino. Não há vingança naquilo. Não há qualquer emoção nele. É isso o que acaba
por aterrorizar Robertson — o modo como Rust diz: “Temos que
matar essa garota. Se você fizer um bom trabalho, vai cair nas
graças do chefão.” Sua única emoção reside no fato de que aquilo
vai aproximá-lo do chefão. Matar a garota não significa nada.
Não queria que Rust fizesse algo que desviasse do persona142
gem do assassino de aluguel, exceto por uma coisa. Disse a ele:
“Quando você estiver se preparando para matar alguém, coloque
seus óculos escuros. Daí nunca saberemos se você quer ver algo
ou não, ou se você sente ou não alguma coisa.” Perceba, eu queria
me afastar da emoção. Não queria um personagem como nos velhos filmes de gângsteres: ele gosta de sua mãe, sustenta o irmão,
tem um cachorrinho, alimenta seu peixinho dourado.
P: Tolly Devlin [Robertson] é o único no filme que age por razões
pessoais. Ele não foi motivado por uma matéria de jornal; ele
realmente presenciou o assassinato de seu pai.
R: Eu usei a mesma coisa em Anjo do Mal. Esta é a natureza humana: [Richard] Widmark não se importava com nada. Nadinha!
Mas quando ele descobriu que alguém apanhou por ele, que alguém que ele conhecia foi agredido, ele disse: “Então é isso. Chega!” e foi logo atrás dos inimigos.
É um tema de que eu gosto num filme. Nunca gostei de um
homem que faz coisas heroicas por motivos falsos ou chauvinistas, que não seja por uma necessidade emocional, pessoal. Se
uma manchete de jornal diz: “grande herói salva 12 mil pessoas
de serem bombardeadas num estádio”, nós sabemos que ele não
salvou 12 mil pessoas. Ele salvou uma. É isso que eu estou tentando mostrar.
Mortos que Caminham
P: O tema do lutador é transferido para o seu próximo filme, Mortos
que Caminham. É resumido quando Merrill [Jeff Chandler] diz:
“Contanto que você consiga dar mais um passo, você pode lutar.”
R: Isso é só 50%. Eu queria ir além disso. Queria mostrar que, quando ele diz: “Você faz o que eu faço”, isso significa: “Quando eu
morrer, você morre.” Isso é o principal que eu queria mostrar.
Filmamos tudo em locação. Quando filmávamos nessa cidadezinha nas Filipinas, eu notei um menino que sempre me seguia.
Então eu disse a Claude Akins, um dos meus atores: “Eu tive uma
ideia.” Esta cena foi improvisada, e ficou muito boa. Os Marauders chegam à cidade. Eles estão descansando, estão exaustos,
estão famintos, mas estão muito cansados para comer. O menino
aparece e olha para a barba de Akins. Quando ele começa a coçar
143
a barba, isso me deu outra ideia: alimentá-los. Então uma senhora chega e oferece arroz ao soldado norte-americano, que, como
você sabe, é o soldado mais bem alimentado do mundo. Quando
Akins [sargento Kolowicz] percebe a idiotia e a estupidez, a ironia
e a vergonha, de que ele, um homem grande, corpulento e bem
alimentado, estava recebendo comida de uma velhinha magricela,
ele começa a chorar. Isso, para mim, é mais importante que qualquer outra coisa no filme.
P: O filme terminou de modo estranho, antes que fosse resolvido.
R: O final foi um fracasso. O filme ia terminar originalmente com
o aeroporto sendo tomado. Seria um desfecho com muita ação.
Eles decidiram não filmá-lo por duas razões, as duas envolvendo dinheiro. Então eu disse: “Tudo bem. Tudo o que me resta é
terminar o filme no momento em que eles andam e dar um fade
out.” Alguém se adiantou e colocou não apenas uma narração ali,
mas também imagens de arquivo de soldados marchando. Bem,
isso foi coisa deles.
Paixões que Alucinam
R: Não sei há quantos anos queria fazer um filme expondo as condições em manicômios nos Estados Unidos. Então eu decidi que
o faria como ficção, em vez de um documentário denunciando
a situação. Disse: “Que se dane. Consigo dar uma de Nellie Bly!”
Nellie Bly, como você sabe, fingiu ser uma maluca por um tempo
no hospício da Wards Island muitos anos atrás. Então pensei em
dramatizar a história de um homem que vai para um manicômio
a fim de resolver um caso de assassinato e acaba louco. Fico feliz
que não tenha feito o filme assim que pensei na ideia. Mesmo que
a história tivesse sido a mesma, não seria tão atual: a combinação
Oppenheimer-Einstein-Teller, a tremenda situação que envolve
[James] Meredith, e os vira-casacas da Coreia. Então coloquei
tudo isso junto e modernizei, o resultado foi Paixões que Alucinam (Shock Corridor, 1963).
Gostei de ter feito esse filme. Gostei da ideia de usar cor antes de um homem ficar lúcido. Quando ele está em desvario e
pensando em alguma coisa, assim que vemos a cor, sabemos que
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logo depois ele voltará a ser racional por alguns instantes. Então
cada pessoa tinha suas próprias visões. Para o soldado sulista, eu
usei muita coisa que filmei com minha própria câmera no Japão,
quando pesquisei locações para Casa de Bambu. Foi o que usei
para o pesadelo dele. Eu tenho uns oito mil pés de filme rodados
em Mato Grosso. Fui lá uma vez para achar locações, e vivi com
a tribo dos Carajás por seis ou sete semanas. Usei isso para o pesadelo do negro. No pesadelo de Peter Breck no final, a cachoeira
faz parte das Cataratas do Iguaçu, em Mato Grosso. Filmei tudo
isso em Cinemascope e em 16mm. Não tinha nada em 35mm, daí
tive que fazer a ampliação de negativo de 16mm para 35mm. E lá
estavam elas, dando um efeito maluco sem qualquer esforço meu.
P: Há alguma razão para que o dr. Boden [Gene Barry] não tenha um
pesadelo visual, e sim um auditivo?
R: Ah, foi intencional. Não sei bem por quê, mas quando penso em
laboratórios, Oppenheimer e tal, me dá alguma coisa. Vejo edifícios e grandes cômodos, câmaras vazias, buracos minúsculos, e
vozes saindo deles. Tipo “Dr. Fulano, você poderia comparecer a
tal lugar.” Não vejo telefones. Apenas interfones. Uma coisa estranha, grande, meio ficção científica — era isso que eu queria.
Também queria algo que afastasse Boden dos outros: vozes e,
mais importante, a frieza delas.
P: O grande tour de force é claramente a cena da tempestade com
raios e trovões no corredor. Você poderia falar mais sobre como
a filmou?
R: Claro! Eu achei que seria original mostrar uma tempestade como
se ela estivesse acontecendo bem ali naquele lugar. Eu precisei
de muita água. Você deve entender que aquilo era uma situação
perigosa, porque não havia lugar para que a água escoasse naquele palco sonoro em particular. Você tem que ter um tanque
subterrâneo para a drenagem. Do contrário, você pode destruir
muitos equipamentos.
Não tínhamos nada disso, mas fizemos mesmo assim, porque sabia que seria o último dia de filmagem. Eu precisava de
que desse certo na primeira tomada. Para me assegurar disso,
eu tinha uma câmera normal no [Peter] Breck e uma segunda posicionada acima dela, inclinada para baixo e filmando em
145
close-up. Não queria ter que parar; não havia tempo. Então estava tudo preparado para mim. A porta estava aberta, e meu
carro estava ligado. Acabei saindo bem rápido, porque sou um
covarde. Não queria estar por perto quando o gerente de estúdio entrasse e começasse a fazer perguntas. Quando Breck
gritou, esperei uns vinte segundos. Queria o maior grito que
conseguisse. Depois, disse “Deixa pra lá” e saí correndo. Nunca
retornei — ao estúdio e ao set.
P: Como você avalia o personagem do dr. Cristo [John Matthews]?
Você o acha compassivo ou memorável?
R: Não acho. Para mim, o dr. Cristo é um símbolo de todas as autoridades num hospital. Eu o dramatizei para que ele se mostrasse
compreensivo até o ponto em que ele fica levemente desconfiado.
P: Cristo diz: “Não dá para interferir na mente”, sugerindo que esta
é a razão pela qual o repórter ficou louco. Mas me pergunto se
você estava tentando dizer mais do que isso, que todos têm essa
insanidade dentro de si.
R: Claro. Eu deveria ter enfatizado mais isso no filme. Deveria ter
deixado mais claro que, para o repórter querer fazer isso, voluntariar-se como interno num hospício, ele já tinha que ser um
pouco louco antes de mais nada.
Todos nós temos uma inclinação natural para gritar, ou dar
ataques ou quebrar coisas. Mesmo que você não ache que isso
seja uma forma de insanidade, eu acho. Tenho certeza de que,
junto com a morte, a insanidade é um dos temas mais interessantes. Digo, ela me intriga.
O Beijo Amargo
P: Eu acho que, em muitas maneiras, O Beijo Amargo é mais “chocante” do que Paixões que Alucinam.
R: É, sim.
P: Na verdade, eu diria que é o filme mais chocante que você fez.
Parece que você se esforçou muito para obter uma reação da plateia, especialmente quando você puxa o tapete de tudo na cena
do abuso infantil.
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R: Eu queria trazer algo diferente à tona, mas não sei se fui bem-sucedido, porque não tínhamos muito dinheiro, cacete. Eu tinha uma
cena em que Constance Towers [Kelly] confronta os moradores da
cidade depois que eles descobrem que ela é inocente. Inicialmente
eles estavam prontos para linchá-la, agora eles queriam vindicação.
Ela os manda para o inferno. Não filmei essa cena, não tinha dinheiro. Ela os chama de hipócritas, o que é compreensível. Mas o mais
importante é que ela percebe como ela era feliz em sua profissão
[prostituição]. Ela diz, com efeito: “Como é emocionante quando você
termina de se deitar com esses cretinos, eles te pagam e você vai embora. Você não tem mais que escutá-los, suas histórias e suas mentiras, como eu tenho que escutar as mentiras de vocês todos os dias.”
Eu achei que seria bem eficiente se a garota matasse um santo, e ninguém acreditasse que o santo é, na verdade, culpado de
um crime horrível. Era a premissa que eu queria. Como eu transformo esse homem num santo e o canonizo? Eu o transformei
no homem mais doce do mundo, tão afeito à caridade: hospitais,
uma cidade que recebe seu nome, e assim vai.
Então quando eu concebi o filme como algo chocante, a impressão original que queria era de uma história de amor maravilhosa, mas quase sem graça, porque muito, muito comum: a
menina pobre vinda de um lugar miserável, o cara rico que se
apaixona por ela. Bom, eu odiava essas histórias. Então eu sabia
que ia me divertir no momento em que ela o encontra molestando a criança. Quando você viu o filme, esta cena chocou você?
P: Para dizer o mínimo.
R: Que bom. Era o que eu queria. Não estou dizendo que eu queria
que ela chocasse você em si, isoladamente, mas sim diante da
narrativa. Muitas pessoas não gostaram do filme. Alguns amigos
meus disseram: “Ah, por que você o colocou tentando abusar da
menina?” Não sei, talvez eles se ressentissem da cena devido a
algum segredo, algum desejo secreto. O que eles esperavam que
eu fizesse? Digamos que não houvesse aquela cena. Eu não teria
filmado a história. Não haveria história, na minha opinião. Não
estou interessado na menina pobre. Eles filmaram essas histórias na Metro e na Warner por cinquenta anos: ela muda de vida,
conhece um cara, às vezes, descobre que ele é bacana, às vezes,
descobre que ele é ordinário, mas há sempre um final feliz.
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P: A sequência de abertura, em que Towers surra o cafetão enquanto
sua peruca cai, é estonteante. A plateia sofre uma agressão antes
mesmo da aparição dos créditos iniciais.
R: Isso surpreendeu você, esse começo? Não há fade in, como você
sabe. Abrimos com um corte direto. Naquela cena, os atores usaram efetivamente a câmera. Eles seguraram a câmera; ela estava
amarrada neles. Para a primeira tomada, o cafetão tem a câmera
atada a seu peito. Eu disse a Towers: “Bata na câmera.” E ela bateu na câmera, na lente. Daí eu inverti. Coloquei a câmera nela,
enquanto ela batia à beça nele. Achei que funcionava. Ela teve
dificuldades de se maquiar no fim da cena, porque teve que usar
a lente como espelho. Quando os créditos vêm, ela está olhando
para a lente.
P: Há muitas referências artísticas no filme, referentes especialmente a Grant [Michael Dante], o milionário. As mais incríveis
são relativas a Beethoven.
R: Ah! Para começar, eu queria mostrar que o milionário é um homem muito “bacana”; ele gosta de se sentar e ouvir música, e
todas essas coisas. A menina é carente disso tudo. Beethoven é
um símbolo. Poderia ser qualquer outro compositor ou artista.
P: Qual era o seu objetivo com a viagem imaginária a Veneza durante aquela cena romântica?
R: Eu queria muito aquilo por várias razões. Para começar, estou
tentando vendê-lo como um cara poético, musical — o camarada
que ela tanto quer. Ela nunca teve nada assim antes. As cenas em
Veneza me deram a chance de mostrar aquilo efetivamente.
Mas o que eu queria mais do que qualquer outra coisa era
usar aquilo para chegar ao Beijo, ao Beijo Amargo. Para essa
cena, eu os coloquei na gôndola, com as folhas caindo. Eu cortei
dali para a cena em que eles se beijam no sofá. Outra folha cai.
Nunca saberemos se aquilo é coisa da cabeça dela ou se realmente aconteceu. Assim que ela o beija, ela se afasta. Ele diz: “Qual é o
problema?” Ela diz: “Nada.” É nesse momento que ela deveria ter
dito: “Há algo de errado com você.” Mas ela não disse.
Eu precisava ter coisas melosas, piegas e românticas naquela cena. Não poderia apenas colocá-los se beijando no sofá.
Precisava de todo aquele climinha falso por uma razão: pensei
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que se desse a ele muito lero-lero — tudo aquilo sobre poetas,
pintores, escritores e músicos —, nós entenderíamos melhor por
que ela não faz objeção a ele naquele instante. Eu precisava ter
um homem que simbolizasse tudo que ela desejava. Daí exagerei.
Precisei exagerar.
Quando ela descobre o segredo do homem e percebe que ele
lhe deu um Beijo Amargo, ela fica chocada, e ele fica chocado por
ela estar chocada. Já que ela é uma prostituta, ele achou que ela
fosse entender por que ele gosta de menininhas.
Tubarão
R: Quando fiz Tubarão (Shark, 1969), eu tive o que achei ser um
lampejo de inspiração: fazer uma história sobre quatro personagens amorais. Um é cientista [Barry Sullivan]: amoral. Outro é a
menina com quem ele transa [Silvia Pinal]: amoral. Outro é o jovem herói [Burt Reynolds]: amoral. O último é o policial [Enrique
Lucero]: amoral. Achei que seria interessante mostrar não apenas
traição em cima de traição, mas também acharmos que sabemos
quem é o maior sacana deles e então descobrirmos que a garota
está por trás daquilo tudo: ela é a mais desprezível. Ela tem uma
chance de sair dali viva, se ela for sincera com o protagonista.
Mas ela não faz isso. Ela é responsável pela própria morte. Ele a
deixa morrer. Tentei algo diferente ali. Eles estão apaixonados e
tudo o mais, e eu coloquei o herói na posição de não apenas deixá
-la morrer, como também na de fazer pouco caso daquilo. Achei
que aquilo era excitante.
Eu gosto da ideia de um caso de amor em que o homem descobre que era usado pela mulher. Eu dei a ela uma fala ótima.
Na última fala do filme — agora descubro que os produtores a
colocaram antes e que ela não é mais a última —, ela diz: “Nós somos um casal de sacanas, a diferença é que eu sou rica.” Era isso
que eu queria. Eu filmei coisas bem legais. Por exemplo, quando
o barco está afundando no final, ele pega um cigarro aceso e o
atira ao mar. Eu me concentrei no cigarro. Um peixe o vê (o peixe
sendo um símbolo do tubarão), pensa que é alguma coisa, e então
o apanha. Pssshhht! [Som de um cigarro sendo apagado.] É
o final do filme. Mas eu acho que eles cortaram. Muitas coisas
foram cortadas.
149
Como você sabe, eu pedi para que eles tirassem meu nome daquela coisa, porque eu não gostei do corte que vi. Eu o achei terrível.
Eu disse a eles que queria restaurar meu corte original. Eles disseram que não sabiam se conseguiriam pegar o filme do México. Não
conseguiam localizá-lo. Foi uma confusão tão grande. Então eu disse
a eles: “Não me incomodem mais com isso.” Pode ser o pior filme do
mundo, ou pode acabar sendo uma surpresa para mim. Não sei. O
que eu sei foi que me diverti com os personagens, porque fui além
do básico nisso de revelar o vilão. Eu também não tinha um cara
que deixava a garota ser presa; ele a deixa ser comida por tubarões.
Nunca vi nada assim num filme antes. Você viu? É o meu final. Foi
o que filmei.
A única razão pela qual eu dei o título de Caine para este filme
originalmente foi que nós fomos a um restaurante no México onde o
atendimento era péssimo. Fiquei irritado, e enquanto a raiva aumentava me senti como Caim, então disse: “Bem, vamos chamar o filme
de Caine.” É isso. Cacete. Me senti péssimo. Aí o produtor viu uma
notícia na Life, com algumas fotos de um cara sendo morto por um
tubarão ou algo assim, intitulada “Shark”. Daí eles mudaram o título!
Bem, esta é a carreira cheia de altos e baixos de um ex-office
boy. Uma carreira de trinta anos.
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Secao
de fotos
O Beijo Amargo
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Renegando o Meu Sangue
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Anjo do Mal
Anjo do Mal
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Eu matei Jesse James
Anjo do Mal
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A Lei dos Marginais
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A Lei dos Marginais
O Quimono Escarlate
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Dragões da Violência
Dragões da Violência
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Casa de Bambu
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Casa de Bambu
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Paixões que Alucinam
Paixões que Alucinam
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O beijo amargo
O beijo amargo
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Cão Branco
Cão Branco
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Mortos que
caminham
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173
Fotos de
Samuel Fuller
Fotos de
Samuel Fuller
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175
Fotos de Samuel Fuller
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filmografia
comentada
Eu Matei
Jesse James
I Shot Jesse James
1949, 35mm, 81 min, 1.37 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Ernest Miller
Música: Albert Glasser
Produção: Carl K. Hittleman
Companh ia Produtora: Lippert Pictures
Elenco: Preston Foster, Barbara Britton, John Ireland, Reed Hadley,
J. Edward Bromberg, Victor Kilian, Tom Tyler, Tom Noonan,
Eddie Dunn, Margia Dean
Classificação Indicativa: 16 anos
O filme oferece um retrato de Bob Ford (John Ireland), o homem
que matou seu próprio amigo, Jesse James (Reed Hadley), pelas costas para receber perdão da justiça e poder casar com a namorada.
180
A sequência de abertura de Eu Matei
Jesse James possui a contundência e a precisão que vão caracterizar grande parte dos
filmes de Fuller: uma decupagem inscrita a
mármore, onde as figuras dos assaltantes
se contrapõem, num campo e contracampo incisivo, às dos funcionários do banco;
as posições dos oponentes são demarcadas
em planos de uma mineral entalhadura; e a
câmera se esmera em mapear milimetricamente os detalhes – o pé do caixa do banco,
que ameaça pisar no alarme; as mãos nos
coldres que orquestram este explosivo “teatro de câmara”: sim, porque, como em tantas
de suas cenas, o plano médio e o close rivalizam em veemência agônica. Uma microfísica das paixões inaugura-se aqui; teatro de
câmara e arena, onde o gesto acumplicia-se
de forma intensiva com o objeto que designa
ou envolve: amortalha-o. Onde o corpo é o
índice de um campo de forças que se encarnam de forma provisória em seres, ritmos,
objetos; forças que ameaçam, na vitalidade
animosa do contracampo, implodir os frágeis limites dos corpos que as contêm.
Mas esse embate frontal e fatal entre
dois containeres de forças é o signo visível
(diria antes: háptico, em seu entalhe de alto-relevo) de combates mais sutis ou simbólicos: a força e a lei, a reconciliação e a
diferença, o campo e a cidade, o western e
o teatro burguês. Só que esse jogo violento
entre formas de viver e valorar em Fuller
nunca é esquemático ou diretivo; conhece
reentrâncias, intervalos, infiltrações: es-
gueira-se e enleia-se. Ao matar Jesse James,
o que Bob deseja é se apossar de seu desejo:
Cynthy. E em um mesmo movimento, domesticar-se, integrar-se: à lei, à cidade. Mas
o Jesse James que Fuller nos pinta está longe de ser um personagem dominado pela
Hybris, um selvagem indomável. Talvez,
nem Nicholas Ray, – esse diretor camerístico, tão atento à finitude dos seres-, tenha
nos mostrado um Jesse doméstico, comezinho, frágil... e desejante como este. Se o
espetáculo que Fuller encena é um teatro
frontal da guerra, as motivações dos personagens, os atalhos do roteiro são ambíguos,
equívocos: nunca sabemos exatamente a
natureza das relações de Cynthy como atriz
e cantora– o seu patrão, interessado talvez
em explorar seus outros dotes, recita para
John Kelley as peças em que ela atuara;
mas é Cynthy, o objeto deste possível contrato erótico, quem vai avisar a Kelley da
iminente vinda de Bob para matá-lo; Jesse
James se insinua para Bob, parece querer
que ele desempenhe outros papéis, além do
de capataz e filho do coração; e este sublimemente cândido olhar com que a esposa
de James olha para o assassino, em que
programa determinista caberia? O gênio
deste primeiro filme de Fuller reside nesta
contraposição entre a intensidade bélica da
mise en scène e a finura crepuscular com
que se captam as intermitências do desejo e
as inflexões da força.
Luiz Soares Jr.
181
O Barao
Aventureiro
The Baron of Arizona
Proteu é uma figura da mitologia grega
que manifesta a potência de metamorfose, a
polimorfa plasticidade do ser, o querer “ser
um outro”– esta aliás poderia ser a divisa
para a toda a obra de Fuller; uma saga da
diferença, nas palavras de Lourcelles. Este
“barroquismo ontológico”, esta exuberante
e tentacular aspiração a mascarar-se e mimetizar-se possui um cortejo de ilustrações
em seus filmes. Em Casa de Bambu, A Lei
dos Marginais, Paixões Que Alucinam, Renegando o Meu Sangue, o que se encena é
1950, 35mm, 97 min, 1.37 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: James Wong Howe
Montagem: Arthur Hilton
Música: Paul Dunlap
Produção: Carl K. Hittleman
Companhia Produtora: Deputy
Corporation
Elenco: Vincent Price, Ellen Drew,
Vladimir Sokoloff, Beulah Bondi,
Reed Hadley, Robert Barrat, Robin
Short, Tina Pine, Karen Kester,
Margia Dean, Jonathan Hale
Classificação Indicativa: 16 anos
Um drama histórico sobre uma página esquecida da formação
política dos Estados Unidos: James Addison Reavis (Vincent Price),
um trapaceiro notório que se arvorou em dono do estado do Arizona
por volta de 1872.
182
uma aventura de despersonalização, em que
um personagem se infiltra numa comunidade alienígena – um hospício de alienados,
uma tribo indígena, gangues – com o propósito de perverter ou dominar a “economia”
de poder do lugar, mas acaba fulminado
neste jogo: o estratagema torna-se uma armadilha, o jogador virtuose vira peão num
puzzle em que a subjetividade se dispersa e
finalmente se perde, tragada pelo redemoinho das paixões. O Barão Aventureiro é o
filme em que a demiurgia metamórfica da
obra de Fuller se encarna num personagem
exemplar que tenta, ao percorrer um vasto
circuito de máscaras e peripécias, literalmente apossar-se de um mundo – no caso o
estado do Arizona – , encarnar-se em todos
os seus elementos: veios e rios, homens, trabalhos e noites; mas ele possui em comum
com o policial infiltrado de Casa de Bambu
uma paixão, que vai transtornar os seus planos, domar e diferir o fluxo de sua vontade
de potência: Barão é uma grande história
de amor – aqui, à esposa dedicada, que ao
final do filme finalmente encontra o homem
soterrado sob o mutirão dos personagens.
À imagem e semelhança do Proteu que
retrata, o filme integra em sua trajetória outros avatares do romanesco: certo clima de
complô de filme noir, com direito inclusive a cenas de linchamento, sublinhadas por
um expressionismo de bico de pena, sob o
açoite da fotografia metálica de James Wong
Howe; o inventário dos grandes e variados
espaços, cenário de western por onde trafega este pioneiro na arte americana por
excelência da desterritorialização, espacial
e existencial: arredores campesinos de Madrid, acampamento cigano, um mosteiro tenebrista que não estaria mau num thriller
gótico da dupla Tourneur-Lewton; e esta
câmera centrífuga, descentrada, sob o influxo da qual os personagens são implicados
numa arena de forças, sempre instável e flutuante; neste constante ricocheteio entre espaços e personagens, intensificado por uma
montagem em staccato, assinala-se uma
cena de jogo onde o central e o frontal da
estética clássica são dinamizados pela trajetória vertiginosa do personagem. Já neste
segundo filme, todo um programa futuro
se delineia: aqui, a opulência do barroco de
Fuller encontra uma carne e um mundo para
habitar.
Luiz Soares Jr.
183
Capacete de Aco
The Steel Helmet
1951, 35mm, 85 min, 1.37 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Ernest Miller
Montagem: Philip Cahn
Música: Paul Dunlap
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: Deputy Corporation
Elenco: Gene Evans, Robert Hutton, Steve Brodie, James Edwards,
Richard Loo, Sid Melton, Richard Monahan, William Chun,
Harold Fong, Neyle Morrow, Lynn Stalmaster
Classificação Indicativa: 16 anos
Durante a Guerra na Coreia, um sargento e um jovem órfão se
unem a um grupo de soldados norte-americanos. Eles procuram
abrigo num templo budista, imaginando estarem a salvos.
184
Filme de forte teor institucional, realizado em homenagem à Infantaria do
exército americano, Capacete de Aço é a
primeira das produções de guerra de Fuller.
Rodado com um orçamento modesto e quase todo em estúdio, o filme projetou o nome
do diretor dentro dos grandes estúdios (ele
assinaria em seguida um contrato com a
Fox). Alimentando-se da própria economia
dos cenários e imprimindo uma abordagem
frontal e despojada este pequeno grupamento terrestre, Fuller projeta sobre nós
a mítica silhueta do soldado da infantaria,
encarnado de maneira mais ou menos acabada por Gene Evans no papel do Sargento
Zack. Evans aqui é menos um herói do que
um “soldado ideal”: experiente, metódico,
ele não se furta em declarar seu amor pela
Infantaria. Praticamente todas as discussões do filme giram em torno de questões
de caráter militar, sejam as funções exercidas pelos soldados (sargento, oficial, médico, rádio) ou os pelotões onde serviram
anteriormente. Fuller mesmo nunca parece
perder de vista esse espírito institucional, a
exemplo de um plano no final do filme em
que vemos perfilados os rostos de um negro,
um oriental e um branco como os únicos
soldados sobreviventes da emboscada no
templo. Curiosamente, um filme tão orgulhoso do próprio oficialismo nos reserva um
final pouco vitorioso: as chances de sucesso
com o prisioneiro coreano escorrem pelas
mãos num ataque sentimental de Zack, e no
final a única vitória daqueles soldados não
é senão a própria sobrevivência. Quando as
tropas americanas chegam ao templo para
resgatá-los, no lugar dos festejos, nossos
sobreviventes são melancolicamente reincorporados à multidão de soldados em sua
marcha eterna (“Esta é uma história sem
fim”, avisam os créditos finais). Porque os
soldados, em Fuller, não cessam de fazer
este caminho entre a grandeza e a insignificância (sendo a insignificância maior aquela
que se revela, justamente, no momento de
suas próprias mortes inevitáveis). Haverá
sempre no mundo coisas maiores do que o
homem, seja a instituição militar ou uma estátua de Buda, que não se sabe se assombra
ou se protege aqueles soldados insignificantes a seus pés.
Calac Nogueira
185
Baionetas
Caladas
Baionetas Caladas revelam um cineasta de
Durante a intervenção chinesa na Guerra da Coreia, um general
americano recebe ordens para recuar sua divisão além do rio, tendo que atravessar uma ponte aberta ao fogo comunista. Ele decide
tentar enganar os inimigos e deixa na retaguarda um pelotão de 48
homens, colocando-o numa passagem estreita nas montanhas, com
ordens de “fazerem bastante barulho”.
personalidade e talento dentro de uma produção rotineira de filme de guerra. A primeira são dois personagens quaisquer estabelecendo o mote narrativo do filme – “para
liderar é necessário mais que cérebro, é necessário ter coragem” – como um momento
desimportante e corriqueiro. Em seguida, a
reunião de oficiais que monta uma estratégia de retirada e monta uma operação de
retaguarda que vai, com quase certeza absoluta, sacrificar o pelotão que ficará para
defender o território enquanto o resto vai
embora: as decisões são filmadas de modo
seco, sem laivos de patriotismo ou bravura
para condenar 48 homens à morte quase
certa e salvar 15 mil. A matemática está correta, a estratégia é correta, mas ainda assim
o preço da vida humana fica patente. Mas,
no terceiro momento, é que vem a genialidade: a cena seguinte mostra o exército partindo em retirada e o pelotão remanescente
parado, avolumado num canto, e Fuller passa um bom tempo filmando essa procissão
fúnebre antecipada, fixando audaciosamente sua câmera no rosto de cada homem que
está prestes a enfrentar a operação suicida,
em closes, em movimentos de campo e contracampo, e num brilhante travelling lateral
que parece durar infinitamente e já expressa ritmicamente o futuro presumido desses
homens. Uma forma que pensa: a lentidão
1951, 35mm, 92 min, 1.37 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Lucien Ballard
Montagem: Nick DeMaggio
Música: Roy Webb
Produção: Jules Buck
Companhia Produtora: Twentieth Century
Fox Film Corporation
Elenco: Richard Basehart, Gene Evans,
Michael O’Shea, Richard Hylton, Craig Hill,
Skip Homeier
Classificação Indicativa: 16 anos
186
Há três coisas que logo no começo de
Fixed Bayonets
da sequência constrói um bolsão de nada
que precisa ser completado pelos olhos do
espectador. Só depois disso, é que o filme
efetivamente apresenta seus personagens,
e dentre eles, o protagonista, Denno, um
homem que não consegue apertar o gatilho
contra o inimigo e que se vê na iminência –
para ele, no pânico – de ter que liderar seu
pelotão. O que remete diretamente à questão da coragem delineada no primeiro diálogo do filme.
Primeiro filme de Fuller na Fox, Baionetas Caladas é melhor resolvido em termos
narrativos do que seus filmes anteriores,
mas as asperezas temáticas e o prazer pelo
pelotão multirracial são atenuados. Mas os
grandes avanços de Fuller nesse filme não
são como roteirista, são como diretor. A
mesma lentidão usada no começo é a arma
da outra grande cena do filme, quando Denno arrisca a vida tendo que passar por um
caminho cheio de minas para salvar o sargento Lonergan, baleado. Os planos alongados, a sequência de montagem e, sobretudo,
a ausência de música na cena – algo bem
incomum para o tipo de produção – fazem
brotar o comportamento humano em toda
sua nudez na luta da coragem contra o instinto de sobrevivência. Novamente, Fuller
cria o vazio (a espera, o silêncio) para aí inserir a verdade da emoção.
Ruy Gardnier
187
A Dama de Preto
Park Row
1952, 35mm, 83 min, 1.37 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: John L. Russell
Montagem: Philip Cahn
Música: Paul Dunlap
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: Samuel Fuller Productions
Elenco: Gene Evans, Mary Welch, Bela Kovacs, Herbert Heyes,
Tina Pine, George O’Hanlon, J.M. Kerrigan, Forrest Taylor, Don
Orlando, Neyle Morrow, Dick Elliot
Classificação Indicativa: 16 anos
No final do século XIX, um jornalista consegue abrir seu próprio
jornal e logo se transforma num grande sucesso. A herdeira de um
dos maiores jornais da cidade começa uma forte oposição contra ele.
188
“Único filme que produzi com minha
própria grana”, A Dama de Preto é Samuel
Fuller em seu modo mais confessional, apaixonado, livre e idealista. Não era um filme
que ele queria fazer, era o filme que ele tinha que fazer, e assim o filme está inteiramente impregnado de todos os altos ideais
de Fuller para mitigar através do cinema a
carreira que ele queria ter e não teve (ao menos não diretamente), a de um editor-chefe.
Aqui Fuller entrega-se ao máximo de
seu lirismo enfático, à poesia feita à base
de pontos de exclamação (nenhum outro
grande diretor teve dois de seus filmes com
títulos exclamativos), à mistura desbragada entre história do jornalismo, guerra de
ímpetos, canto de louvor e história de amor
frustrado. Mas tudo que o filme tem de malresolvido – em especial a “dama de preto”,
entre a literalidade de personagem e a simbologia de um patamar histórico – ele tem
de magistral na linguagem visual e nos arroubos emotivos.
Não tendo nenhum produtor para podar suas ideias mais extravagantes, Fuller
faz aqui um dos planos-sequência mais geniais da história do cinema, ao acompanhar
Phineas Mitchell do bar à rua – onde acontecem três brigas de socos e pontapés – ao
escritório do jornal adversário, The Star, e
em seguida, às instalações destruídas de seu
próprio jornal, The Globe. Os movimentos
bruscos de câmera, o dinamismo provocado
pelas variações de ângulo e, sobretudo, os
solavancos de uma câmera colada ao corpo
do operador de câmera conseguem traduzir
visualmente uma quase táctil sensação de
ira, injustiça e pura energia cinética, tudo
isso em velocidade atordoante.
A Dama de Preto, pelo caráter factual
do “estive lá” – Fuller foi menino de entregas,
arquivista e repórter policial em Park Row,
embora o filme seja ambientado algumas décadas antes do pequeno Sammy ter lá posto
o pé – e pelo senso de obrigação inigualado
nos outros filmes em “fazer passar a mensagem”, ilustra perfeitamente a fórmula de
Serge Daney segundo a qual Fuller é sempre,
e ao mesmo tempo, “um correspondente de
guerra e um educador louco”. A relação desse
filme com a história do jornalismo americano ajuda a compreender a loucura da pedagogia fulleriana: o que precisa ser ensinado
é a bravura dos homens, é a obstinação, o
ímpeto pela inovação, pelo desbravamento e
pela verdade intensiva – coisas que, no plano
visual, seus filmes mais que traduzem: suscitam. O que no plano estilístico significa:
invenção à frente das normas, e em se tratando do cinema narrativo americano, o conflito é fascinante. A Dama de Preto termina
como uma matéria de jornal, com “Thirty” ao
invés de “The End”, e, mantendo a metáfora,
é óbvio que o subgênero é o panfleto, com a
implícita tomada de posição, as cores excessivas e nenhum distanciamento.
Ruy Gardnier
189
Anjo do Mal
Pickup on South Street
1953, 35mm, 75 min, 1.37 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Joe MacDonald
Montagem: Nick DeMaggio
Música: Leigh Harline
Produção: Jules Schermer
Companhia Produtora: Twentieth Century-Fox
Elenco: Richard Widmarrk, Jean Peters, Thelma Ritter, Murvyn
Vye, Richard Kiley, Willis Bouchey, Milburn Stone
Classificação Indicativa: 16 anos
Skip McCoy (Richard Widmarrk) é um batedor de carteiras que
furta a bolsa de Candy (Jean Peters) no metrô. Dentre os objetos roubados está um microfilme a ser contrabandeado para o exterior por
espiões comunistas. Espiões americanos que seguiam a mulher para
identificarem os agentes inimigos percebem a ação criminosa, mas
não conseguem deter a fuga de Skip. Todos agora estão atrás dele.
190
Anjo do Mal é um dos mais notórios
filmes de Fuller, e é o filme no qual ele deixa sua marca no film noir. Tem todos os
requintes de uma obra-prima do cineasta. É ágil, integrando a ação e a emoção de
seus personagens com movimentos e cortes súbitos e precisos – não possui nada de
excesso. É direto, tudo que está em cena é
essencial. Integra uma rede de intrigas em
que marginais ficam no limite entre serem
heróis ou vilões, muitos caindo pelo caminho, onde quem está lá mantendo a “ordem”,
ou quebrando-a, luta cada um de seu modo
pela sobrevivência. Fuller valoriza um ideal
de moral, colocando sua mocinha, que poderia ser uma femme fatale, mas na verdade
é a personagem mais inocente em cena, dizendo “melhor um batedor de carteiras vivo
que um traidor morto”. Perdida nessa guerra
entre ordem e desordem – que nesse mundo significava comunistas –, ela só consegue
ter esse papel tão tradicional em filmes do
gênero enquanto é roubada no trem pelo
marginal por quem iria depois amar. Aliás,
as sequências nos trens têm um elemento de
sensualidade incrível. A troca de olhares, o
movimento lento das mãos, são cenas que
realmente sugerem uma relação quase que
sexual. Se na primeira sequência o vemos
roubar a carteira da mocinha, fazendo com
que toda essa trama fosse descortinando-se
diante de nossos olhos, mais ao final ele volta em cena para executar mais um assalto,
dessa vez no ex-namorado comunista dela, e
essa segunda vez não é menos sensual, com
o agravante de que ele rouba o revólver do
vilão do filme, sua arma, “castrando-o”. Essa
sensualidade existe em muitos filmes de
Fuller, mas encontra nessas cenas seu momento mais explicito. São apenas pequenas
amostras dentro de um filme incrível, uma
aula de estilo, de construção de um universo
e uma realização de um mestre maior do cinema em seu auge.
Guilherme Martins
191
Tormenta Sob
os Mares
Hell and High Water
Uma pequena cena de Tormenta Sob
os Mares expõe a marca infalível de Samuel
1954, 35 mm, 103 min, 2.55 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Jesse L. Lasky Jr.,
Samuel Fuller
Fotografia: Joe MacDonald
Montagem: James B. Clark
Música: Alfred Newman
Produção: Raymond A. Klune
Companhia Produtora: Twentieth Century-Fox
Elenco: Richard Widmark, Bella
Darvi, Victor Francen,
Cameron Mitchell, Gene Evans,
David Wayne,
Stephen Bekassy, Richard Loo
Classificação
Indicativa: 16 anos
Um cientista e sua equipe rumam ao Ártico em um submarino
em busca de provas de um iminente ataque comunista que poderia
culminar com a Terceira Guerra Mundial.
192
Fuller: após capturarem um prisioneiro, os
personagens liderados pelo Capitão Jones
precisam obter dele uma informação. Um
dos tripulantes do submarino se oferece para disfarçar-se de soldado inimigo e
tentar descobrir o que eles precisam saber
junto ao prisioneiro. A missão é um sucesso, mas o personagem acaba desmascarado
pelo inimigo e morto friamente antes que a
tripulação possa chegar para ajudá-lo. Uma
morte banal, estúpida, completamente inesperada (não estávamos, ali, em um dos clímax dramáticos do filme). Mas que morte
não é, em si, sempre estúpida e banal? Em
Fuller, a morte é uma regra; é preciso que
os personagens morram, trata-se de um de
seus temas centrais. E há também a outra
face da moeda: morte aqui é também sinônimo de sacrifício, outra ideia que guia seus
filmes de guerra.
A morte banal do tripulante provoca
um estranhamento num filme que até então mantinha certa leveza, impulsionado
pela personagem feminina de Bella Darvi,
que alegra o ambiente do submarino. Algumas coisas precisam ser ditas aqui: que
essa presença feminina, tal como a encontramos, não existe em nenhum outro filme
do diretor, sendo, provavelmente, remanescente do roteiro escrito por Jesse Lasky Jr.
Nos filmes de Fuller, as mulheres em geral
ou inexistem, ou são parte natural de uma
realidade brutal e desencantada. Temos
boas razões para acreditar, portanto, que o
romance entre Bella Darvi e o Capitão Jones
é uma concessão. Nada porém que destrua
a eficácia do filme. Digamos apenas que não
é tarefa das mais simples realizar um filme
quase inteiramente passado num submarino, ambiente monótono, feio, apertado,
sem grandes atrativos. O Cinemascope e as
cores, sem dúvida, emprestam aqui alguma
vida, e a decupagem alternada entre exterior/interior do submarino confere eficiência às sequências de ação embaixo d’água. O
maior mérito de Fuller, no entanto, é conseguir transmitir a sensação de claustrofobia
do ambiente, por exemplo, na cena em que
os personagens lutam contra a escassez de
oxigênio enquanto tentam escapar de outro
submarino. Contrariando toda a fantasia infantil que cerca o ambiente dos submarinos,
tudo o que desejamos durante boa parte do
filme, juntamente com aqueles corpos suados dos tripulantes, é reemergir e inspirar
um pouco de ar puro.
Calac Nogueira
193
Casa de Bambu
House of Bamboo
1955, 35 mm, 102 min, 2.55 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Harry Kleiner
Fotografia: Joe MacDonald
Montagem: James B. Clark
Música: Leigh Harline
Produção: Buddy Adler
Companhia Produtora: Twentieth Century Fox Film Corporation
Elenco: Robert Ryan, Robert Stack, Shirley Yamaguchi, Cameron
Mitchell, Brad Dexter, Sessue Hayakawa, Biff Elliot, Sandro
Giglio, Elko Hanabusa
Classificação Indicativa: 16 anos
No Japão, ex-soldados americanos integram uma gangue violenta envolvida em assassinatos, jogos e assaltos. A morte de um
sargento estadunidense em uma ação criminosa coloca a polícia do
exército americano no caso: um militar consegue se infiltrar na quadrilha dos assaltantes com a ajuda de uma mulher japonesa.
194
Entre todos os diretores americanos
que iniciaram suas carreiras ainda durante a
época do sistema dos grandes estúdios, Samuel Fuller foi decerto aquele que demonstrou o menor entusiasmo pelos bons modos
do cinema narrativo. Isso lhe garantiu uma
reputação de um cineasta excêntrico, um
brucutu primitivo que chamava atenção pelas suas ideias e soluções absurdas. Nada
podia ser mais falso e é sempre bom retornar a Casa de Bambu, um filme em que,
sem sacrificar nada da sua personalidade,
revela uma coesão e clareza que desmentem por completo essa reputação. É o filme
mais formalista de Fuller, com destacado
controle do quadro em Cinemascope e uso
dos mais expressivos de cores que não estariam deslocados num filme de um cineasta
mais conhecido pela expressão visual dos
seus filmes, como Vincente Minnelli. A Tóquio do pós-guerra, território semiocupado,
é um dos muitos espaços em transição que
refletem a fronteira moral e as muitas tentações que acometem seus protagonistas.
Os elementos mais tradicionais – o policial
infiltrado, a honra entre ladrões, etc. – servem de ponto de partida, mas o foco emocional de Casa de Bambu se volta para uma
série de triângulos entre personagens que
se identificam com ideias como moralidade,
masculinidade e legalidade de forma escorregadia , e essa lógica triangular acompanha
a fluidez da encenação de Fuller como se o
filme fosse uma série de encruzilhadas em
que cada personagem precisasse optar entre
dois caminhos possíveis carregados de significados. Fuller se aproveita muito bem da
inversão de papéis: o sensível Robert Stack
como um protagonista que tem dificuldades
de disfarçar a própria truculência, enquanto o durão Robert Ryan dá ao seu vilão um
ar sedutor quase romântico, ainda que não
menos violento. Casa de Bambu, por vezes,
se aproxima de um romance neurótico cujos
planos sempre muito equilibrados sugerem
uma violência pronta a brotar a qualquer
momento, como se o filme quisesse sair do
controle, mas desejasse manter um decoro
insuspeito. Diante disso, o final num tiroteio
é notável, com Ryan, sua máscara civilizada
abandonada por completo, a atirar em todas
as direções a partir de um globo giratório
enquanto o universo ao redor dele é mostrado com uma precisão hitchcockiana. É uma
das grandes cenas de ação do período, e,
como todo, este Casa de Bambu é um lembrete de que Fuller é muito mais que o clichê
que se formou em torno dele.
Filipe Furtado
195
Renegando
o Meu Sangue
Run of the Arrow
1957, 35 mm, 86 min, 2.00 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Joseph Biroc
Montagem: Gene Fowler Jr.
Música: Victor Young
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: A Globe Enterprises Inc. Production, RKO
Radio Pictures (presents)
Elenco: Rod Steiger, Sara Montiel, Brian Keith, Ralph Meeker, Jay
C. Flippen, Charles Bronson, Olive Carey, H.M. Wynant, Neyle
Morrow, Frank DeKova, Tim McCoy
Classificação Indicativa: 16 anos
Ao final da Guerra Civil, soldado confederado que não aceita
a derrota é capturado e por fim adotado pela tribo Sioux. Com o
acirramento do conflito entre brancos e índios, ele assume o papel
de intermediário.
196
Os personagens de Fritz Lang são aqueles que fazem do ódio e do ressentimento
sua cruzada moral. Já para os de Samuel
Fuller, cineasta parente de Lang (contrapõe
e interpõe a civilização e as paixões humanas), o ódio e o ressentimento configuram
um impasse moral. Em Lang, o mal absoluto,
em Fuller o mal como evidência comum da
ordem do mundo. O personagem O’Meara,
interpretado por Rod Steiger é um rancoroso que faz da reação a sua ação. Não aceita
a rendição do Sul aos ianques na Guerra da
Secessão, “renega seu sangue” e tenta se tornar um sioux. Casa com uma índia, caça e
guerreia com eles, mas declara “sou cristão”.
Não negocia o destino de sua alma, portanto
a contradição: não pode partilhar do destino
do povo que escolhe.
Fuller filmou a “história dos vencidos”
em quase todos os seus filmes e Renegando
o Meu Sangue é o seu trabalho que frisa a
verdade desse ponto de vista, que assume a
escolha desse lugar do qual Fuller se encarrega com asserção e amor (amor, porque ele
deixa a paixão para o seus personagens).
Como testemunha da História, Fuller
nunca fez um épico e nem o faria, a grandiloquência nunca o atraiu. No western, ao
contrário de Ford que encena o mito do
nascimento de uma nação, Fuller aqui testemunha – é importante insistir nisso – de
maneira seca, coloquial e até brusca (mas
com suprema elegância) um episódio que
encerra uma guerra e dá início aos Estados
Unidos da América: episódio nada heroico.
Há a rendição do general Lee e a vergonha
e o sentimento de traição do soldado O’
Meara. Para ele, o país foi fundado em um
sentimento de derrota e vergonha. Como
sempre em seus filmes, as primeiras cenas
(as aberturas de Fuller mereceriam um longo ensaio) são uma síntese, uma espécie de
relato factual. Fuller foi jornalista e romancista genuinamente “moderno e norte-americano” e por isso sabia que a descrição do
fato só existe enquanto síntese objetiva, não
enquanto digressão subjetiva.
Esse pragmatismo tão americano do
cineasta faz de sua narrativa algo vibrante
em que a crise do sujeito decorre de suas
ações, de suas escolhas, nunca de sua imobilidade; e o filme, fiel a essa ética, não
possui um só plano preciosista, não realiza
um só corte que seja cínico: tudo está em
função da mais elementar franqueza estética e moral, por isso, inimigo da propaganda ideológica, do simulacro, da estupidez
moral e do fascismo. Renegando o Meu
Sangue é de uma ternura inconformista
única no cinema.
Francis Vogner dos Reis
197
No Umbral
da China
China Gate
1957, 35 mm, 97 min, 2.35 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Joseph F. Biroc
Montagem: Gene Fowler Jr., Dean Harrison
Música: Max Steiner, Victor Young
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: Globe Enterprises
Elenco: Gene Barry, Angie Dickinson, Nat ‘King’ Cole, Paul Dubov,
Lee Van Cleef, George Givot, Gerald Milton, Neyle Morrow,
Marcel Dalio, Maurice Marsac
Classificação Indicativa: 16 anos
Um grupo de mercenários precisa atravessar o território inimigo durante a guerra do Vietnã para destruir um depósito de armas.
198
No Umbral da China é um filme premonitório sobre o futuro envolvimento americano no Vietnã. E não apenas por ser um
destes filmes construídos a partir de uma
missão condenada. As imagens iniciais de
cinejornal rapidamente desaguam no mais
puro delírio pulp. No Umbral da China se
interessa não nos fatos da Indochina, mas
por encontrar imagens que traduzam, com
força, a verdade emocional por trás dela.
Suas imagens são puro artifício e Fuller encontra nelas uma instabilidade que reflete a
da sua heroína, uma prostituta euro-asiática,
que nas suas próprias palavras, é “um pouco
de tudo e um muito de nada”. A Indochina
de Fuller é um espaço em ebulição perdido
entre os desejos dos seus vários ocupantes:
os comunistas, os colonialistas, os capitalistas e os quase sempre esquecidos locais. É
um destes conceitos bem típicos de Samuel
Fuller no qual esta ebulição encontra vazão
na confusão de uma prostituta, um conceito,
à sua maneira, grosseiro e exato. Nat King
Cole pode estar em cena a cantar sobre uma
ponte da China, mas o filme se recusa a en-
tregá-la: já não há ponte possível entre as
muitas vontades e posições que dominam
aquele espaço pós-colonial, somente o adiar
de uma explosão inevitável de todas elas.
O filme sugere uma versão contemporânea de Renegando o Meu Sangue, filme
que o cineasta rodou à mesma época. Como
na maior parte dos filmes políticos de Fuller, o que alguns veem incorretamente como
confusão de ideias ou puro primitivismo é,
na verdade, um trajeto muito claro do individuo em meio à confusão ideológica do seu
tempo. No Umbral da China pode, à primeira, vista sugerir um filme menos particular
que outras obras do diretor no período, mas
estão aqui a maioria das suas obsessões: a
Ásia, o racismo, a guerra. O nome The Big
Red One até é invocado pouco antes da primeira tentativa do cineasta em realizar seu
filme de memórias de guerra. Todos esses
elementos se combinam num amplo painel
pulp do homem em conflito numa terra de
ninguém.
Filipe Furtado
199
Dragoes
da Violencia
Forty Guns
1957, 35 mm, 79 min, 2.35 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Joseph Biroc
Montagem: Gene Fowler Jr.
Música: Harry Sukman
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: Globe Enterprises, Twentieth Century Fox
Film Corporation (presents)
Elenco: Barbara Stanwyck, Barry Sullivan, Dean Jagger, John Ericson, Gene Barry, Robert Dix, Jidge Carroll, Paul Dubov, Gerald
Milton, Ziva Rodann, Hank Worden
Classificação Indicativa: 16 anos
Jessica Drummond (Barbara Stanwyck) é uma fazendeira de
pulso firme que comanda uma equipe de quarenta homens. Ela vive
tirando o irmão de encrencas. Quando Griff Bonnell (Barry Sullivan)
chega à pequena cidade, Jessica experimenta um sentimento novo e
seu irmão acaba sendo preso.
200
Durante sua carreira, Fuller teve incursões em diversos gêneros, levando seu
olhar para muitos estilos dos clássicos do
cinemão americano. O faroeste é explorado
aqui e torna-se um campo dominado com
maestria, permitindo que ele subverta regras do gênero sempre que lhe convém. Não
estamos diante de um bangue-bangue usual:
estamos diante de um jogo de poder entre
dois polos, mulher e homem, cuja trajetória
pregressa à narrativa tem fama e traz medo
em quem com eles se depara. Como Fuller
não brinca em serviço, há um pouco de tudo:
tiroteios incríveis, male bonding, um tornado devastando tudo que passa pelo caminho,
arruaceiros, e o crepúsculo do oeste, assombrando o modo de vida dos personagens em
cena. Não é um tema raro no gênero, mas
o fim do estilo de vida dos pistoleiros e do
universo do faroeste poucas vezes encontrou um tratamento tão direto, e não necessariamente nostálgico.
É numa das cenas que dialoga diretamente com isso que o filme tem seu momento
mais fantástico, onde após uma emboscada
perfeita para o assassinato de Griff Bonnell
(Barry Sullivan), seu irmão mais novo surge
inesperadamente atirando no assassino pe-
las costas. O momento, que deveria ser de
alívio e felicidade, torna-se de uma amarga
decepção quando o irmão mais velho pergunta para o mais novo: “O que fazemos
agora? Agora você matou um homem”. A
consciência moral de Fuller retorna em seus
personagens marginais, não apenas no seu
olhar, e ambos os personagens centrais, Griff e Jessica Drummond (Barbara Stanwyck),
estão cientes de que seu status poderá ruir
em pouco tempo, e tudo aquilo que eles representam para aquela sociedade deixará de
existir ao fim do filme, quando, enfim, ficam
juntos e podem isolar-se daquele universo
que um dia dominaram. Faltou citar pelo
menos um elemento clássico do gênero que
aparece ali pra nos divertir: as canções com
seus números integrados à narrativa. Apesar
de ser um filme bem sério, Fuller tira sempre
um humor dessas situações: aquele bando de
homens do velho oeste tomando banho juntos, as cantorias orquestradas com as saídas
e entradas dos personagens na cena. Mais
uma obra de mestre, sempre trabalhando
cada instante, cada reenquadramento para
expressar o sentimento ali em cena.
Guilherme Martins
201
Proibido!
Verboten!
1959, 35 mm, 93 ou 87 min, 1.85 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Joseph Biroc
Montagem: Philip Cahn
Música: Harry Sukman
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: Globe Enterprises, RKO Teleradio Pictures
Elenco: James Best, Susan Cummings, Tom Pittman, Paul Dubov,
Harold Daye, Dick Kallman, Stuart Randall, Steven Geray, Anna
Hope, Robert Boon, Sasha Harden
Classificação Indicativa: 16 anos
Uma história de amor entre um soldado americano e uma alemã durante a Segunda Guerra mistura-se ao tema da impaciência
da população local em relação aos ocupantes e ao mercado negro.
A situação complica-se com as intrigas de um grupo de militantes
neonazistas.
202
Partindo da típica história de amor entre
um soldado das forças de ocupação e uma
moça local (ver Stromboli, entre outros filmes), Fuller empreende um amplo retrato da
Alemanha pós-guerra. O farto uso de imagens de arquivo e a trilha sonora, que recorre a peças de Beethoven e Wagner, conferem
um tom operístico à narrativa, o que serve
para reforçar a pequenez dos personagens
diante da situação. Na realidade, Fuller parece pouco interessado no romance de guerra em si, servindo-se dele ao sabor de seus
interesses: chama atenção, por exemplo, o
caráter dúbio e volátil dado à personagem de
Helga. Longe de encarnar uma heroína virtuosa, ela oferece razões suficientes, a nós e
a David, para que desconfiemos de suas intenções (as circunstâncias da guerra influenciam a personagem, conferindo-lhe um caráter complexo). Por outro lado, há um franco
maniqueísmo quando se trata de abordar os
nazistas, sempre reduzidos à própria monstruosidade. Essa vilanização, porém, não
deixa de ser justificada naquela que talvez
seja a grande cena do filme: a “conversão” de
Franz durante o julgamento de Nuremberg.
Ao recorrer aqui a imagens de arquivo dos
campos de concentração, Fuller expõe uma
faceta sua nem sempre notada: a do cineasta
de exploitation. A Fuller sempre interessou
a brutalidade, jamais tendo se furtado de filmar a deformação (O Beijo Amargo) ou a
violência (todos os filmes) da maneira mais
frontal possível. “Eu vi um filme. Eu não sabia”, grita Franz aos prantos para David. Essa
visão do horror que nos descreve o menino
não deixa de ser aquela que experimentamos
em cada filme do diretor.
Calac Nogueira
203
O Quimono
Escarlate
The Crimson Kimono
1959, 35 mm, 82 min, 1.85 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Sam Leavitt
Montagem: Jerome Thoms
Música: Harry Sukman
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: Globe Enterprises
Elenco: Victoria Shaw, Glenn Corbett, James Shigeta, Anna Lee,
Paul Dubov, Jaclynne Greene, Neyle Morrow, Gloria Pall, Pat
Silver, George Yoshinaga, Kaye Elhardt
Classificação Indicativa: 16 anos
Em Los Angeles, dois amigos, veteranos combatentes da Guerra
da Coreia, trabalham juntos como detetives da divisão de homicídios e
estão encarregados de resolver o assassinato de uma dançarina. Durante as investigações, eles se apaixonam por uma misteriosa mulher.
204
Na Main Street de Los Angeles, às oito da
noite, Sugar Torch, uma loira belzebu, faz um
striptease na casa Burlesque, onde é a atração principal. Ao entrar no camarim depois
de fazer um gracejo no segurança distraído,
encontra uma figura de sobretudo, chapéu e
óculos escuros que atira na pintura pendurada na parede e em seguida dispara em sua
direção. A stripper sai correndo pela rua e
é alvejada por um tiro em meio ao trânsito
de carros. O que esse trecho inicial nos revela? Muito. Isso não quer dizer que nesse
início o filme nos dê as chaves de compreensão do mistério, mas induz o espectador a
uma imersão singular em um universo, tanto
que começa em um plano geral aéreo, seguido de outro que revela a rua de inferninhos,
na sequência um striptease, e, depois dos
tiros, a câmera volta à rua em meio ao movimento urbano noturno onde Sugar Torch
é assassinada miseravelmente. Sua morte é
exato oposto da morte de dimensões épicas
de Tony Camonte em Scarface. Morre como
“qualquer uma”. O tempo não para, e ela é só
mais um cadáver na noite. No dia seguinte,
a imprensa marrom já fez o seu trabalho, e
a polícia começa o seu. Estamos em um dos
grandes filmes noir de Samuel Fuller.
O fato de o diretor trabalhar nas caracterizações e regras do gênero – seja noir,
guerra ou western – dá a ele esta possibilidade de conceber universos atravessados
pela contradição, sem apelar para truques
de roteiro e psicologia vagabunda. Todos os
personagens que conhecemos, entre o assassinato da garota e a descoberta do autor
do crime em O Quimono Escarlate, estão
expostos em suas ambiguidades. Os policiais
de Fuller, como seus bandidos e mercenários,
são profundamente afetados pelo elemento humano em jogo. As paixões, sejam elas
quais forem, é o que os desestabiliza, mas
não os arrefecem. O assassinato da stripper
é um ponto de partida para o desnudamento
de algo que, no entanto, não dissimula sua
imagem: uma comunidade urbana, moderna,
com diferenças profundas – conciliáveis ou
inconciliáveis – e injustiças flagrantes entre
seus membros.
Durante o filme, o crime parece se tornar
secundário, porém, se vimos tudo começar
nele, voltamos para ele em seu final. Nesse
ínterim, temos os dois policiais, o branco e o
nissei, ambos apaixonados por uma pintora a
quem protegem e amigos de uma outra pintora, mais efusiva e inteligente só que constantemente bêbada. Há também uma observação
curiosa sobre mistura de culturas, com freiras coreanas e ocidentais engajados na cultura japonesa, cemitérios de heróis de guerra
nisseis que lutaram contra o país de seus pais
e etc. Para tanto, uma mise en scène que
relaciona fatores distintos. Fuller conjuga os
interiores (estúdio) e exteriores, a construção
de um espaço dramático e o agenciamento
caótico de uma locação a céu aberto. Enfim, o
realismo colateral de Samuel Fuller que aqui
explora todas as suas ambivalências com uma
elegância bruta (na ação, nas asserções) e sutil (no ritmo, nos detalhes).
Francis Vogner dos Reis
205
A Lei dos
Marginais
Underworld U.S.A
1961, 35 mm, 99 min, 1.85 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Hal Mohr
Montagem: Jerome Thoms
Música: Harry Sukman
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: Globe Enterprises
Elenco: Cliff Robertson, Dolores Dorn, Beatrice Kay, Paul Dubov,
Robert Emhardt, Larry Gates, Richard Rust, Gerald Milton,
Allan Gruener, David Kent, Tina Pine, Sally Mills, Samuel Fuller
Classificação Indicativa: 16 anos
Aos quatorze anos, Tolly Devlin (Cliff Robertson), um pequeno
delinquente, vê seu pai sendo assassinado em um beco. Vinte anos
mais tarde, descobre que os assassinos fazem parte do alto escalão do
sindicato do crime, e infiltra-se nele para pôr sua vingança em prática.
206
Ao encarar o assassino moribundo
de seu pai, Tolly Devlin murmura entre os
dentes: “Eu, que sou o retrato de meu pai,
Tom Devlin”. A Lei dos Marginais é a literal
ilustração desse credo filial: o close no rosto
do protagonista arremata cada sequência do
filme, inaugura todo embate. Os incidentes
e personagens com que sua marcha se choca são subsumidos por esta figura esfíngica: uma consciência aqui se forja e se prova
através de uma ominosa trama de acidentes,
uma trilha perversa de pais substitutos (os
chefões) e duas figuras femininas (Cuddles,
a matronal dona do bar; Sandy, a frágil “flor
do lodo”) que prometem refúgio para a atormentada hybris do justiceiro. O modelo descrito aqui corresponde a um gênero clássico
na literatura ocidental: o romance de formação (Bildungsroman). Através do encontro
com várias figuras, um menino vai sendo
aliciado por um vórtice aterrador, um no
man’s land inominável, ao qual é impossível
resistir: crescer, este opróbrio.
Experiência terrivelmente dialética:
identificando-se com os modelos com que
se defronta e, em um mesmo movimento,
ultrapassando-os, substituindo-os, traindo
-os; vingando-se de sofrer o que lhe fazem
sofrer: crescer, esta maldição. A clivagem
esquizofrênica que atravessa a obra de Fuller – na qual um personagem sempre se vê
seduzido ou ameaçado pela possibilidade
de tornar-se um Outro – aqui se refrata e
se distribui ao longo de uma cadeia de personagens venais (os chefões), de escalas na
trajetória de reconciliação com o passado
que o personagem empreende.
A questão aqui é de natureza ontológica:
Tolly não é mais um menino, mas permanece
aferrado às suas origens, faz da sua vida um
meio de servir a um móbil primordial: permanecer à sombra do Pai. A infância é presente, mas como um fantasma; como todo
fantasma – vivência passada que não foi
simbolizada, integrada ao logos – , ela volta,
mas franzida de assombro: a surra mortal
no pai; as bonecas de Cuddles, em grandes
angulares; o assassinato da menina. Nessas
sequências onde refulge um chiaroscuro
febril, o expressionismo aparece em Fuller
com propósitos de conjuração; uma certa
infância do cinema serve ao terror de uma
outra infância – à presentificação de um outro espectro, agora individual.
Este é, com Cão Branco, o grande filme de horror de Fuller; o filme em que as
presenças (e o mundo noir onde se movem)
flutuam na gravitação de uma Origem trágica, um fatum fantasmático. Ao contrário do
calvário final de Brando no filme de Kazan, a
via crucis com que A Lei dos Marginais se
conclui – um estertórico plano-sequência do
personagem em agonia – não sublima, mas
eterniza a culpa e a maldição.
Luiz Soares Jr.
207
Mortos que
Caminham
Merrill’s Marauders
1962, 35 mm, 98 min, 2.35 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Milton Sperling, Samuel Fuller
Fotografia: William Clothier
Montagem: Folmar Blangsted
Música: Howard Jackson
Produção: Milton Sperling
Companhia Produtora: A United States Productions Photoplay,
Warner Bros. Pictures (apresenta)
Elenco: Jeff Chandler, Ty Hardin, Peter Brown, Andrew Duggan,
Will Hutchins, Claude Akins, Luz Valdez, John Hoyt, Charlie
Briggs, Chuck Roberson, Chuck Hayward
Classificação Indicativa: 16 anos
O General Frank D. Merrill (Jeff Chandler) conduz os 3.000 voluntários americanos de sua 5307 Composite Unit, conhecidos como
“Merrill’s Marauders”, atrás das linhas japonesas pelas selvas de
Burma. Baseado no livro de Charlton Ogburn Jr.
208
Oferecido por Jack Warner a Fuller
como uma espécie de “ensaio geral” para, em
sequência, realizar Agonia e Glória, Mortos
Que Caminham é um filme em que brilham
o Fuller roteirista e o Fuller paisagista, mas
o Fuller propriamente cineasta tira férias.
Baseado na campanha do general de brigada Frank Dow Merrill, que avançou com um
contingente de três mil homens atrás das
linhas inimigas pelo território da Birmânia,
o filme segue o ethos fulleriano no que diz
respeito à guerra – na guerra o que importa
é continuar vivo –, mas não apresenta muitas ideias novas sobre como filmar a guerra ou como se deparar visualmente com os
acidentes naturais do sudeste asiático (diegeticamente, a Birmânia; factualmente, as
Filipinas) e a relação dos soldados com o
ambiente. Para piorar, os contratempos: o
filme era para ser estrelado por Gary Cooper, que foi diagnosticado com câncer pouco antes das filmagens; e, no fim, a própria
Warner, descontente com o pouco fervor
patriótico, decide mudar completamente o
fim do filme, além de alterar radicalmente a
montagem de uma cena cabal, uma batalha
num labiríntico local para armazenamento
de combustível.
O núcleo dramático é a relação de pai e
filho entre Merrill e Stock, um segundo tenente sem família que fora simbolicamente
adotado anos antes pelo general. Merrill é
o impiedoso e obstinado líder, que parece querer seguir adiante sem se importar
com o estado lamentável de seus comandados; Stock é o líder que se compadece e
sente cada morte como a sua, e pede a cada
instante pela baixa de seus soldados. Mas é
só no terço final que essa dinâmica efetivamente mostra real alcance dramático, com
os marauders de Merrill absolutamente extenuados, tendo alucinações, andando como
zumbis – finalmente há uma tradução em
português feliz! –, famintos, doentes, desidratados, ou, como resume o médico do
grupo, diagnosticados com “acumulação de
tudo”. Os monólogos de Merrill, sabendo-se
com os dias contados e filosofando que para
seguir adiante é preciso só dar um passo
atrás do outro, traduzem também a devida
intensidade dramática às raias da insanidade para aquele grupo que luta além do limite
de suas forças. Fuller também se esmera em
enquadrar a natureza, usando a grua para
observar a comida lentamente chegando
via paraquedas num descampado, ou em
contra-luzes de soldados chegando ao topo
de uma colina ao entardecer. Mas as ideias
aqui são fragmentadas, pedindo uma real
organização de conjunto que não há nem na
exigência da Warner nem, aqui, na vontade
de Fuller.
Ruy Gardnier
209
Paixoes Que
Alucinam
Shock Corridor
1963, 35 mm, 101 min, 1.75 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Stanley Cortez
Montagem: Jerome Thoms
Música: Paul Dunlap
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: Leon Fromkess-Sam Firks Productions
Elenco: Peter Breck, Constance Towers,
Gene Evans, James Best, Hari Rhodes, Larry
Tucker, Paul Dubov, Chuck Roberson, Neyle
Morrow, John Matthews, Bill Zuckert, John
Craig
Classificação Indicativa: 16 anos
Um presunçoso e respeitado jornalista (Peter Breck) compromete-se a resolver um assassinato cometido num hospício. Para
tanto, ele se interna como louco na própria instituição, mesmo sob
protestos da namorada stripper (Constance Towers). A princípio,
o jornalista sente prazer em simular sua loucura, mas, aos poucos,
perde a lucidez em contatos com os outros internos, principalmente com os que testemunharam o assassinato.
210
Que lugar é esse onde o jornalista Johnny Barrett se interna a fim de investigar um
assassinato? Não é somente um manicômio,
mas o espaço onde algumas imagens fundadoras da identidade americana vagam como
almas penadas (notadamente: o patriotismo,
o racismo, a guerra). Imagens aberrantes ou
reflexos invertidos do que encontra-se nas
ruas, elas não deixam de ser um retrato bastante fiel dos EUA daquele período – e que
América miserável é essa onde um pobre
jornalista ambicioso sonha com as láureas
do prêmio Pulitzer enquanto sua namorada
ganha a vida como stripper (“Pagam melhor
que o escritório”, ela justifica)? Paixões Que
Alucinam é, ao lado de O Beijo Amargo, o
filme em que Fuller confirma sua vocação
de cineasta marginal, distanciando-se definitivamente de grandes gêneros do cinema
americano (o western, o filme de guerra, o
gangster noir) para realizar statements livres sobre a sociedade americana. A modernidade sempre latente de sua obra torna-se
escancarada, irreversível: nesses dois filmes,
Fuller parte da imagem como matéria-prima.
Deixa-se de partir do mundo, como no cinema clássico, para partir-se efetivamente da
própria imagem, investigando suas potências
plásticas e seus sentidos instituídos. Tudo
são imagens em Paixões Que Alucinam, seja
as incrustações de Constance Towers sobre o
rosto atormentado de Johnny ou os internos
que se põem a encenar um barco descendo o
Mississippi: os corpos dos loucos se desdobram em representações infinitas do mundo
dentro do limitado espaço do manicômio. O
hospital psiquiátrico é, assim, um bunker de
imagens aprisionadas que se precipitam e se
impulsionam em direção ao mundo exterior.
Nesse sentido, as imagens em cores da cascata, dos índios e da estátua de um Buda são
menos lembranças perdidas na consciência
do que pontos de fuga: imagens cegas, tácteis, que não dizem nada efetivamente. São
esses breves momentos, porém, aqueles em
que nos vemos livres da prisão do manicômio para, tocando o mundo, reencontrarmos
toda a sua liberdade.
Calac Nogueira
211
O Beijo
Amargo
The Naked Kiss
1964, 35 mm, 90 min, 1.75 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Stanley Cortez
Montagem: Jerome Thoms
Música: Paul Dunlap
Produção: Samuel Fuller
Companhia Produtora: F & F Productions
Elenco: Constance Towers, Anthony Eisley, Michael Dante, Virginia
Grey, Patsy Kelly, Marie Devereux, Karen Conrad, Linda Francis, Bill Sampson, Sheila Mintz, Patricia Gayle
Classificação Indicativa: 16 anos
Kelly (Constance Towers) resolve mudar de vida e vai trabalhar
como enfermeira de um hospital infantil para deficientes físicos
numa pequena cidade. Mas, em Grantville, ela descobrirá que a perfeição e a tranquilidade do lugar escondem pessoas mesquinhas e
doentes, que podem até machucar as mais indefesas criaturas.
212
Depois de realizar seu filme mais escandaloso, com invenções em nível absurdo
de ebulição, Fuller insiste na radicalização,
mas investe, ao contrário, na doçura. O Beijo Amargo não é seu único filme com uma
mulher como protagonista, mas é seu único filme que soa como um drama feminino,
ou como um melodrama, na forma de mostrar um personagem de exceção encalacrado num meio social que exclui aqueles que
vivem fora de papéis bem determinados.
Mas Fuller parece fazer de tudo para que O
Beijo Amargo seja um melodrama impossível: que heroína é apresentada seduzindo e
depois atacando um homem, empunhando
uma garrafa em direção à câmera e sendo
flagrada totalmente careca ao cair de uma
peruca? A violência e o ritmo frenético do
filme transformam-se em elegância e estilização visual quando, meses depois, essa
mesma mulher chega a uma cidadezinha e
transforma-se numa virtuosa enfermeira
que ajuda crianças com problemas ortopédicos a superar algumas de suas deficiências.
No caminho oposto está seu par, ou contrapar, milionário filantropo e verdadeiro dono-coronel da cidadezinha em questão, que
ao longo do filme revela sua ignominiosa
perversão sexual.
Formalmente O Beijo Amargo também
obedece à lógica dos extremos que se chocam. Em termos de ritmo, fotografia e im-
ponência, tem o refinamento de um drama
adulto europeu; mas nas viradas de roteiro
e nos momentos de maior intensidade dramática – em especial a guinada que o filme
dá em seu final para o mistério policial –,
toda a verve pulp é requisitada, sem qualquer medo de quebrar o equilíbrio de tom.
A cena decisiva do filme, por fim, utiliza a
música para curto-circuitar o angelical e o
demoníaco: a mesma canção entoada em
closes pelas crianças com deficiências motoras do hospital, o cúmulo da inocência e
da ternura, é minutos depois trilha sonora
para uma sequência de abuso sexual seguida de violência e morte, ressignificando
brutalmente o pathos da pureza infantil da
música em sonhos estilhaçados de aceitação social e redenção. O Beijo Amargo faz
Kelly traçar o caminho dos dois arquétipos
femininos, de puta a mãe, ainda que substituta (a que protege as crianças), e o faz
à custa da falência da moral masculina (o
homem do dinheiro e o homem da lei não
são dignos da confiança do espectador).
Nada mal para um diretor que é geralmente
acusado de fazer filmes apenas para gostos
masculinos. Constance Towers, paradoxalmente frágil e inabalável, dá o diapasão da
força de uma personagem magnífica, que
espelha um filme brilhante.
Ruy Gardnier
213
TubarAo
Shark
1969, 35 mm, 92 min, 1.33 : 1
Título Alternativo: Caine
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller, John Kingsbridge
Fotografia: Rául Martínez Solares
Montagem: Carlos Savage
Música: Rafael Moroyoqui
Produção: Mark Cooper, Skip Steloff
Companhia Produtora: Cinematográfica Calderón S.A., Heritage
Entertainment Inc.
Elenco: Burt Reynolds, Arthur Kennedy, Silvia Pinal, Barry Sullivan,
Enrique Lucero
Classificação Indicativa: 16 anos
Um atirador perde sua carga perto de uma pequena cidade costeira do Sudão e fica preso por lá. Quando uma mulher o contrata
para invadir um navio afundado nas águas infestadas de tubarões,
ele vê a chance de compensar suas perdas.
214
Este é um filme em que as bordas são
mais cintilantes do que os motivos centrais:
a ambientação do hotel pulgueiro no Sudão
com seu dono gordão e mau-caráter cercado de concubinas, as malandras estratégias
de sobrevivência do (anti) herói oportunista
Caine (Burt Reynolds), o garoto pequeno viciado em tabaco, o médico bêbado, as imagens submarinas com tubarões não adestrados, a gravidade das cenas filmadas em
plongée (tomada de cima dos ventiladores de
teto) e etc. Todos esses elementos possuem
uma energia muito intensa, mesmo com a
sujeira involuntária e com o cadenciamento
um pouco exausto da montagem, bagunçada
pelos produtores. É só experimentar ver o
filme sem som: Fuller faz da composição e
do ritmo interno dos seus planos imagenssíntese da sua força atrevida, ambígua e de
sinceridade cristalina. Sinceridade, que se
diga, que é postura estética antes de tudo.
O diretor repudia o simulacro e não acredita na dissimulação do artifício (talvez nisso
resida seu famoso desprezo por Hitchcock),
por isso, mesmo em condições de produção
adversas, seu talento se sobrepõe aos defeitos com radical desenvoltura.
No entanto, quem conhece a obra do
diretor, estranha uma parte importante da
engrenagem dramática. O vilão interpretado
por Barry Sullivan mais serve aos desencadeamentos do conflito roteirístico do que
aos paradoxos amor/ódio, lealdade/traição
que o filme aqui apenas sugere (as mesmas
polaridades resultaram em maravilhas em
um filme como O Quimono Escarlate); a
trama da busca do ouro escondido no navio
afundado – motivação primordial do drama
– não tem os tradicionais paroxismos que
vemos Fuller realizar em outros filmes em
que as ambições dos personagens se equilibram entre o trágico e o patético.
Só que essa fama de filme-problema
faz mais mal à apreciação de Tubarão do
que ao filme propriamente dito. Essa fama
de filme “genial, mas ruim” é um clichê que
não se sustenta. Se o filme fosse de um Joe
D’Amato, seria chamado de obra-prima.
Burt Reynolds – considerado por alguns um
dos desastres do filme – é um ótimo herói
fulleriano. O personagem físico e cínico se
adequa bem à persona do ator. Mas como
é de costume no universo cinéfilo, as verdades prontas estão à mão e o rigor crítico
está em falta, e o Tubarão de Fuller passou
para a história como o seu filme malquisto
(porque malvisto). Um equívoco, para dizer
o mínimo.
Francis Vogner dos Reis
215
Dead Pigeon
on Beethoven
Street
1973, 35 mm, 102 min, 1.33 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Jerzy Lipman
Montagem: Liesgret Schmitt-Klink
Música: The Can
Produção: Joachim von Mengershausen Companhia Produtora: Bavaria Atelier, Bavaria Film, Chrisam
Productions, e Westdeutscher Rundfunk (WDR)
Elenco: Glenn Corbett, Christa Lang, Sieghardt Rupp, Anton Diffring, Stéphane Audran, Eric P. Caspar, William Ray, Alexander
D’Arcy, Anthony Chinn e Verena Reichel.
Um detetive americano é assassinado na Alemanha por uma
gangue internacional. Seus amigos querem vingança. O filme é na
verdade um episódio para uma série policial alemã.
216
Dead Pigeon on Beethoven Street começa com um pombo morto na Rua Beethoven e termina com uma perseguição
pastelão. Assim como os outros filmes que
Samuel Fuller realizou na Europa, há uma
autoconsciência aqui do que seria “um filme
de Samuel Fuller”, que lembra um pouco os
filmes que Howard Hawks realizou nos anos
60, e, a certa altura, o protagonista até assiste a uma versão dublada de Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959), como que
para reforçar essa conexão. Se Fuller foi o
mais político dos cineastas da sua geração,
tirá-lo da América significa fazer com que
seus filmes operem sem centro, permitindo
que, por vezes, os vários gracejos fullerianos
eternizados pelos seus imitadores existam
quase num universo à parte. Se esse clima de
pastiche atrapalha um pouco os filmes posteriores a Cão Branco, ele se encaixa com
perfeição aqui. Dead Pigeon on Bethoeven
Street é o único filme de Fuller dos anos 70
e trata da sua resposta ao cinema americano
do período, completo com Stéphane Audran
a interpretar uma lésbica identificada como
Dra. Bogdanovich. Na superfície, encontramos a mesma cinefilia que anima vários dos
neo-noirs do período, mas o desespero
aqui é genuíno, e não, emprestado de outros livros e filmes. Dead Pigeon on Beethoven Street não é um filme exatamente
sem centro, mas um filme sobre perder um
centro – não surpreende que alguns dos seus
momentos mais marcantes sejam aqueles
em que se reforça a ideia de exílio –, sua intriga política é expurgada por uma anarquia
trágica. No final termina-se na sarjeta, não
sobre a chave do fatalismo pretensamente
adulto dos seus pares, mas com a certeza
de que se é vitima de uma piada cósmica
perversa. A impotência sugerida pelo filme
lembra muito a que encontramos em vários
filmes do nosso Cinema Marginal. Nas sequências finais, quando o pior detetive da
história do cinema tem a chance de se vingar num duelo de espadas – Fuller acredita
na ideia de que a soma do cinema de ação
americano viril com a sensibilidade europeia
resulta em farsa – e, por fim, escapa numa
fuga digna de comédia muda, já não resta
nada para além de uma risada impotente e
desesperada.
Filipe Furtado
217
Agonia
e Gloria
The Big Red One
1980, 35 mm, 113 ou 162 min, 1.85 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Adam Greenberg
Montagem: Morton Tubor
Música: Dana Kaproff
Produção: Gene Corman
Companhia Produtora: Lorimar Productions
Elenco: Lee Marvin, Mark Hamill, Robert
Carradine, Bobby Di Cicco, Kelly Ward,
Stéphane Audran, Siegfried Rauch, Serge
Marquand, Charles Macaulay, Alain Doutey,
Christa Lang
O filme funciona como o diário de combate da famosa Primeira Infantaria americana durante a Segunda Guerra Mundial, mostrando como se lutou, como se suou e sangrou na guerra e como
foi possível sobreviver a ela. Ao mesmo tempo que participa de
importantes eventos do conflito, o pelotão se envolve em diversos incidentes cotidianos dos civis involuntariamente envolvidos no
horror da guerra.
218
A justamente famosa sequência da descoberta dos campos de concentração, filmados
pelas tropas americanas, é o evento que estabelece o significado da guerra para Fuller. A
guerra é, como o cinema, este horizonte ominoso de vidência onde se deflagram toda a espécie de revelações, todo o espectro de epifanias. Não apenas as epifanias espetaculares da
técnica ou as encenações sangrentas do poder,
em seu campo de provas soberano. Revelações
do caráter dos personagens, seus modos de
sofrer e ser sofrido pelo mundo – de ser Um e
Outro. Agonia e Glória é esse bloco de anotações – um tanto diário, um tanto experimento
entomológico, um tanto In memoriam– em
que o cineasta encontra à sua disposição, pela
derradeira vez, vastos meios para elaborar as
suas estratégias de demiurgia e desvelar uma
perturbadora fenomenologia do mundo, à escala do mundo. A guerra é este tablado gigantesco em que o cerne do fenômeno é revelado
sob o impacto da arma de que o cinema dispõe
para atingir os seus propósitos de manifestação e conhecimento das aparências: o choque.
Subitamente, o verdadeiro significado do
contracampo no cinema de Fuller nos é revelado, pois restituído ao seu meio de cultura original, ao seu stand primeiro. Até então,
o contracampo em seu cinema nos parecera
uma espécie de palavrão na cadeia sintagmática da sequência – uma irrupção e um golpe,
um eletrochoque no campo –, mas situados no
espectro emocional do personagem, tendo assim um significado expressionista. Mas havia
algo aquém, de mais essencial em jogo. Fuller,
em sua participação célebre no Pierrot le fou
de Godard, comparou o cinema a uma praça
de Guerra. Mas reside aí um insight mais sutil
que o simples panegírico do cinema como uma
física das paixões; Agonia e Glória nos prova
que a guerra e o cinema têm em comum o fato
de serem experiências radicais do fenômeno –
aquele momento em que os modos de ser da
aparência se revelam, sob o golpe (certeiro e
violento, em ambos os casos) da câmera e do
tiro. O cinema é uma máquina teratológica
onde se produzem visões bigger than life, cataclismas e holocaustos da percepção; as próprias condições fenomenológicas a que está
submetido o espectador de cinema – amarrado à cadeira e na escuridão – assinalam não
apenas (como bem o pensou Schefer) esta consanguinidade fenomenológica com o sonhador, mas também com o torturado, aquele que
sofre (no sentido de ser objeto de) o império das
imagens sobre si. Uma ontologia da experiência cinematográfica se desdobra aqui, tanto no
objeto da representação (o mundo propriamente dito, devassado pela câmera, retalhado
pela montagem) quanto no da recepção.
Agonia é uma summa da experiência de
Fuller – na guerra, entre os seus e entre os
outros, entre seus filmes e seus filhos. Mas
também é sobre nós, estes sonâmbulos, estes
vampiros. Estes que um dia sonharam o mundo, sem jamais conseguirem serem lá.
Luiz Soares Jr.
219
CAo Branco
White Dog
1982, 35 mm, 90 min, 1.78 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller, Curtis Hanson
Fotografia: Bruce Surtees
Montagem: Bernard Gribble
Música: Ennio Morricone
Produção: Jon Davison
Companhia Produtora: Paramount Pictures
Elenco: Kristy McNichol, Christa Lang, Vernon Weddle, Jameson
Parker, Karl Lewis Miller, Karrie Emerson, Helen Siff, Glen
Garner, Terrence Beasor, Tony Brubaker
Uma jovem (Kristy McNichol) aspirante a atriz encontra um cão
branco perdido na rua e resolve adotá-lo. Ela, aos poucos, percebe
que se trata de um animal treinado a vida toda para atacar pessoas
negras (a exemplo dos ‘cães brancos’ da África do Sul). Ao perceber o
comportamento racista do cachorro, ela o entrega a um treinador de
animais, ele próprio negro, para tentar reeducar o animal. Baseado
no romance de Romain Gary.
220
Samuel Fuller realizou alguns dos mais
evocativos closes de todo o cinema. Poucos
diretores se mostraram tão habilidosos ao
deixar sua câmera repousar sobre o rosto
de seus atores. Mais do que qualquer um
de seus outros filmes, Cão Branco é um trabalho construído em cima de closes, ainda
que não necessariamente no volume desses planos, certamente na ressonância dos
mesmos. Porém, não é sobre um ator que
a câmera de Fuller se volta, mas sobre o
cão branco do título. Os melhores momentos de Cão Branco são aqueles em que seu
personagem principal se vê frente a frente
com o treinador negro que tenta descondicioná-lo e a câmera de Fuller baixa à altura
do animal e permite o drama chegar até o
espectador com todo seu impacto. O filme
consegue captar a violência extrema do
processo de condicionamento, tanto aquele
que seu protagonista sofreu antes do filme
começar, quanto do duro processo de tentar
rompê-lo. Cão Branco é o Au Hasard Balthazar do cinema americano, seu animal é
tocante justamente porque é um completo
inocente que carrega com ele toda uma violência sócio-histórica imposta pelo homem.
Um dos maiores talentos de Samuel Fuller
sempre foi justamente localizar conceitos
fortes e dar a eles uma vida bem distante da
abstração de uma simples ideia. Nesse sentido, Cão Branco é o seu maior triunfo, seu
personagem principal capaz de expressar
consigo todo um longo processo histórico de
violência. O filme mostra o racismo em ação
com uma selvageria rude, de uma honestidade que o cinema raramente alcança. Por
exemplo, uma das melhores e mais simples
soluções de Fuller é deixar claro que nenhum personagem negro mostre qualquer
surpresa diante da existência do cão, ele é
mais um dado da violência racial diária e
não algo que possa chocar. Isso tudo porque
Cão Branco é um filme desinteressado em
ensinar lições ou destacar as virtudes dos
seus personagens: é um filme honesto porque sabe que não há redenção possível para
o racismo. Cão Branco se ocupa somente
de posar a câmera sobre aquele animal, ao
mesmo tempo uma figura brutal e o único
inocente em toda a história, e nos lembrar
de que ele traz consigo todos nós.
Filipe Furtado
221
Ladroes do
Amanhecer
Les voleurs de la nuit
1984, 35 mm, 98 min, 1.37 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Olivier Beer, Samuel Fuller
Fotografia: Philippe Rousselot
Montagem: Catherine Kelber
Música: Ennio Morricone
Produção: Antoine Gannagé
Companhia Produtora: Parafrance Films, Alain Sarde
Elenco: Véronique Jannot, Bobby Di Cicco, Victor Lanoux, Stéphane
Audran, Camille de Casabianca, Micheline Presle, Rachel Salik,
Marthe Villalonga, Andréas Voutsinas, Claude Chabrol, Samantha Fuller, Christa Lang
François (Bobby Di Cicco) e Isabelle (Véronique Jannot) se conhecem em um escritório de desempregados. Ele é violoncelista e
ela, historiadora de arte. Os dois acabam se apaixonando e tentam
ganhar dinheiro como músicos de rua, mas nada parece dar certo.
Isabelle sugere, então, que eles roubem três escritórios.
222
Após o lançamento fracassado de Cão
Branco ter atormentado sua vida, Fuller
foi à França dirigir este pequeno filme de
roubo. Se em tese é um filme de gênero, na
prática, é um trabalho – que soa bem atual – sobre dramas cotidianos da sociedade
contemporânea, já que é um filme sobre
desemprego. Seus dois protagonistas, jovens perdidos – especialmente o rapaz –,
meio malucos, na forma como alternam
suas emoções e parecem sempre descontrolados. Depois de trombarem com alguns
personagens que enriquecem o universo
fulleriano, cheio de participações divertidas, eles resolvem que vão se vingar das
pessoas que deveriam auxiliá-los na busca
por emprego no auxílio social, mas apenas
os humilhavam. É tudo bobo, mas não há
como não rir de Claude Chabrol interpretando um dos inimigos. Dali em diante, o
filme se diverte ao colocar os personagens
comparando-se a grandes bandidos do cinema, embora sua saga seja pé-no-chão,
com roubos fracassados, visitas envergonhadas a bandidos de verdade, longe do
glamour do crime. Quando uma das vítimas morre num acidente – e, claro, eles não
têm culpa de nada –, os dois iniciam uma
fuga desajeitada, que terminará de forma
trágica. Não sem a piscadela no fim, em
que se descobrirá que eles realmente não
tinham cometido o crime. Mas já era tarde
demais: na tentativa de escapar dali, eles
acabaram deixando vítimas no caminho.
Há algo de verdadeiramente estranho
neste filme. São muitos personagens inocentes, num sentido quase infantil, como o policial que trabalha no teatro e mesmo o casal
central – em contraste com o exagero dos
outros, que poluem esse ambiente com atuações pesadas, até bem engraçadas. Fuller
apostou em realizar na França um filme que,
em sua concepção, falasse aos franceses. Esses, aparentemente, não compreenderam o
que fazia um mestre do “cinema americano”
naquele universo. Não é muito justo que se
critique o filme sobre este aspecto: ele funciona como fábula sobre o assunto, mas está
longe de ser um de seus melhores trabalhos.
Há alguns bons momentos, mas Ladrões do
Amanhecer oscila em sua força, e é bem esquecível.
Guilherme Martins
223
Uma Rua
Sem Volta
Street of no Return
1989, 35 mm, 93 min, 1.85 : 1
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Jacques Bral, Samuel Fuller
Fotografia: Pierre-William Glenn
Montagem: Jacques Bral, Jean Dubreuil, Anna Ruiz
Música: Karl-Heinz Schäfer
Produção: Jacques Bral
Companhia Produtora: Animatógrafo, France 3 Cinéma, Thunder
Films International
Elenco: Keith Carradine, Valentine Vargas, Bill Duke, Andréa Ferréol, Bernard Fresson, Marc de Jonge, Rebecca Potook, Jacques
Martial, Christa Lang, Samantha Fuller
Depois de alcançar o sucesso, um cantor (Keith Carradine) tem
sua carreira arruinada ao disputar o amor de uma mulher (Valentine
Vargas) com um criminoso (Bill Duke) que destrói sua garganta no
meio de uma luta. Baseado em livro de David Goodis.
224
Quanto já não se disse que o último
Fuller para o cinema, Uma Rua Sem Volta,
é um trabalho menor? Muitas vezes, e dizse “menor” para não se dizer “ruim”. É um
clichê que não serve de argumento valorativo para os filmes do diretor. Fuller não
é Fellini. Todos os filmes de Fuller – seja
o coloridíssimo cinemascope de Tormenta
Sob os Mares da Fox, seja este ordinário e
opaco filme B, Uma Rua Sem Volta – são,
sob certo aspecto, “filmes pequenos”, “filmes
menores” frente ao sistema de valores que
rege o juízo do bom desempenho artístico,
da grande obra de arte. O diretor forjou um
método no qual sempre e em qualquer situação consegue extrair uma expressividade
singular e intensa. Não depende do aparato
e nem do artifício, mas de uma organicidade da câmera com a ação, do ponto de vista
com a moral.
Sendo assim, com todo respeito: quanto
pior o filme de Fuller, mais evidentes são as
suas qualidades. Afirmar isso não é inverter valores: na falta de equilíbrio, os filmes
“ruins” de Fuller deixam ver, sem cerimônia,
a violência criadora da câmera, a redução de
tudo ao mínimo denominador comum. A câmera serve para documentar intensidades:
a força intimidadora dos primeiros planos,
o corpo a corpo da câmera com a violência
que filma, o ritmo sereno das panorâmicas
que perseguem ações frenéticas e o efeito
emocional dos cortes. O primeiro plano de
Uma Rua Sem Volta é de um homem tomando uma martelada na testa, e o que se
vê a seguir é uma briga de gangues. A violência é explícita e frontal, como nunca antes
na carreira do diretor. A câmera de Fuller
atravessa a briga: só pode filmar uma ação
desse tipo a partir de um ponto de vista interno. Era a única maneira de não ser cínico
em uma época (os anos 80) em que a violência no cinema apostava na ironia pós-moderna. Fuller experimentou as trincheiras da
Segunda Guerra, documentou um campo de
concentração, e para ele não se pode filmar
impunemente a violência: deve-se filmá-la
de perto e sem muitas mediações.
Essa abertura de Uma Rua Sem Volta
adota o ponto de vista dos mendigos (e é a
eles que voltaremos no fim), mais especificamente de um mendigo mudo interpretado
por Keith Carradine que (admirável paradoxo) era astro de rock. O cineasta, como sempre, se interessa mais pelo olhar do homem
pequeno, do marginal, da escória, do pária.
E não é só um olhar gerador de sentido, mas
um olhar de testemunha, pois, para um exjornalista como Fuller, não há nada escondido que não peça para vir à luz.
Francis Vogner dos Reis
225
La Madonne
et le Dragon
1990, 90 min
Título Alternativo: Tinikling
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Samuel Fuller
Fotografia: Alain Levent
Montagem: Catherine Kelber
Música: Marc Hillman e Patrick Roffé
Direção de Arte: Jean-Pierre Clech
Produção: Jean-François Lepetit
Companhia Produtora: Canal +, Flach Film e TF1
Elenco: Jennifer Beals, Luc Merenda, Patrick Bauchau, Behn Cervantes, Pilar Pilapil, Christa Lang, Reginald Singh
e Samuel Fuller.
A história de dois fotógrafos de notícias que cobrem a revolução do povo nas Filipinas.
226
Mais uma vez, Fuller parece tentar se
aproximar de linguagens contemporâneas, ao mostrar um grupo de fotógrafos que
acompanha de perto uma guerra sanguinária em território tomado pela miséria. A
pobreza, e os personagens marginalizados
por ela ressurgem outra vez, embora o filme seja mostrado sob o ponto de vista dos
fotógrafos ocidentais, em meio à guerra nas
Filipinas. É um filme estranho, sem medo de
pesar a mão ao mostrar imagens como as de
crianças lutando por comida no lixão, muito
pela firmeza de Fuller – as imagens nunca se
tornam pornográficas. A primeira metade do
filme acompanha uma trama de guerra, em
que os fotógrafos, um casal, e um garoto que
eles ajudam, tentam sair vivos do combate
sanguinária entre exército e militâncias.
Fuller sabe bem como situar os personagens para que só conheçamos aquilo que
forma a moral de cada um a seu momento.
Ao retornar para a segurança da região urbana, o rolo de filme com a foto de um militar executando uma mulher desaparece, e
esse item passa a ser decisivo na luta pelo
poder na cidade. O filme se torna mais uma
aventura com personagens trapaceiros e um
universo cheio de marginais, cada um lutando pelo seu objetivo – seja dinheiro, seja
política, seja salvar um inocente envolvido.
É um filme quase invisível, desconhecido
mesmo dos entusiastas do cineasta – injustamente –, mesmo que não se trate de um
ponto alto de sua obra. Lembra demais os
faroestes políticos, em que personagens
amorais vão se conscientizando ao se envolverem no meio de um combate guerrilheiro.
Tem a sua força e não merece o desconhecimento, já que sequer podemos dizer que
o filme sumiu. Talvez o que atrapalhe é que
parte da trama em que o filme com a foto
fica sendo negociado entre vários grupos é
um pouco desinteressante, e soa como se ele
apenas repetisse uma cartilha que domina.
Isso não é suficiente, em todo caso, para diminuir La Madonne et le Dragon.
Guilherme Martins
227
Sobre os
Autores
Manny Farber
Pintor, professor e crítico de arte e de cinema. Escreveu para publicações como Time,
The Nation, The New Republic, Artforum,
Film Culture e Film Comment, entre outras.
Foi professor de arte e de cinema na University of California, San Diego, de 1970 a 1987,
dedicando-se a partir daí às artes visuais, ao
lado de sua mulher Patricia Patterson. Faleceu em 2008.
Filipe Furtado
Redator da Revista Cinética e ex-editor da revista Paisà. Escreveu para espaços
como Contracampo, Cine Imperfeito, Teorema, Rouge, The Film Journal e La Furia
Umana. Mantém o blog Anotações de um
Cinéfilo (http://anotacoescinefilo.com).
Ruy Gardnier
Crítico e pesquisador. Foi fundador da
revista de cinema Contracampo, que editou
até 2008. É editor do blog de crítica musical Camarilha dos Quatro, crítico de cinema para o jornal O Globo e pesquisador
do acervo audiovisual do Circo Voador. Foi
curador de retrospectivas de Julio Bressane
228
e Rogério Sganzerla, e editor dos catálogos
das retrospectivas John Ford, Abel Ferrara
e Revisão do Cinema Novo.
Nicholas Garnham
Professor emérito de estudos de mídia
na Universidade de Westminster, em Londres. Entre 1962 e 1970, foi montador e diretor na BBC. Foi diretor do British Film Institute entre 1973 e 1977. Publicou, entre outros,
os livros M: A Film by Fritz Lang (1968),
Samuel Fuller (1971), The Economics of Television (1987) e Capitalism and Communication: Global Culture and the Economics
of Information (1990), entre outros.
Kent Jones
Crítico de cinema, arquivista e diretor
-assistente de programação na Film Society of Lincoln Center, Nova York. É membro
do conselho editorial da revista Film Comment, colaborador das publicações Cahiers
du Cinéma, Bookforum e Cinemascope, e
membro permanente do comitê de seleção
do New York Film Festival. É também corroteirista de Minha Viagem à Itália (1999),
documentário de Martin Scorsese sobre cinema italiano.
Luiz Soares Junior
Calac Nogueira
Crítico de cinema e tradutor. É redator da Revista Cinética e mantém o blog
Dicionários de Cinema (http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br), de traduções
de crítica de cinema francesa. É mestre em
filosofia da arte pela UFPE com dissertação
sobre Heidegger e fenomenologia.
Crítico de cinema e atual editor da revista eletrônica Contracampo (www.contracampo.com.br).
Guilherme Martins
Crítico de cinema. Foi redator da revista eletrônica Contracampo e da revista
Paisà. Atualmente escreve para a revista
eletrônica Interlúdio ( www.revistainterludio.com.br )
Francis Vogner dos Reis
Crítico de cinema, professor e roteirista. Foi editor e cofundador da revista Cine
Imperfeito, é redator da Revista Cinética e
colaborador das revistas Cahiers du Cinéma
España, Filme Cultura, Teorema, Miradas
del Cine, La Furia Umana e Foco Revista de
Cinema. É roteirista do filme Carisma Imbecil, de Sergio Bianchi, além de ter ministrado
cursos (Cinesesc) e oficinas (Faculdade Cásper Líbero) de cinema.
Luc Moullet
Crítico de cinema e cineasta. Começou a
escrever sobre cinema nos Cahiers du Cinéma aos dezoito anos, tendo sido o primeiro a defender o cinema de Fuller com mais
consistência. Seu primeiro longa-metragem
é Brigitte e Brigitte (1966). Outros filmes:
Uma Aventura de Billy le Kid (1971), Anatomia de uma Relação (1976), Gênese de
uma Refeição (1978) e Os Assentos do Alcazar (1989).
229
creditos
Patrocínio
Banco do Brasil
Realização
Centro Cultural Banco do Brasil
Produção
Firula Filmes
Curadoria
Julio Bezerra
Coordenação de Produção
José de Aguiar
Marina Pessanha
Produção Executiva
José de Aguiar
Marina Pessanha
Assistente de Produção Executiva
Rafael Bezerra
Produção de Cópias
Fábio Savino
Produção Local
Maria Sayd ( RJ)
Daniela Marinho ( DF)
Renata da Costa ( SP)
230
Identidade Visual
PANTALONES:
Igor Moreira
Jandê Saavedra Farias
Ricardo Souza
Projeto Gráfico-Editorial PANTALONES:
Ricardo Souza
Legendagem Eletrônica
Tucumán Distribuidora de Filmes
Revisão de Cópias
KM Comex
Transporte Nacional
KM Comex
Liberação Alfandegária
Luiz Balthazar
Carlos Henrique Vasconcelos
Transporte Internacional
Luiz Balthazar
Carlos Henrique Vasconcelos
Assessoria de Imprensa
Thiago Stivaletti (SP)
Cristiano Bastos (DF)
Cláudia Oliveira (RJ)
Catálogo
Agradecimentos
Idealização
Julio Bezerra e Ruy Gardnier
Ana Beatriz Vasconcelos
Carlão Reichenbach
Christa Fuller
Dona Lenha Mediterrâneo
Eduardo Cantarino
Eduardo Valente
Ever Vaca
Eric Sherman
Fabio Savino
Hernani Heffner
Hotel Meliá
Inácio Araújo
Jaiê Saavedra
Juliano Gomes
Kent Jones
Luc Moullet
Manny Farber
Martin Rubin
Mika Kaurismaki
Nicolas Garnham
Samantha Fuller
Organização Editorial
Ruy Gardnier
Tradução de Textos
Mariana Barros
Ruy Gardnier
Ismar Tirelli Neto
Guilherme Semionato
Luiz Soares Jr.
Revisão
Ana Vitor
Manuela Medeiros
As imagens publicadas neste
catálogo tem como detentoras
as seguintes produtoras/distribuidoras: FOX, Park Circus,
Hollywood Classics, Beta Filmes,
Thurner Films; além de Samantha Fuller e Christa Fuller. A
organização da mostra lamenta
profundamente se, apesar de
nossos esforços, porventura houver omissões à listagem anterior.
Comprometemo-nos a reparar
tais incidentes em caso
de novas edições.
231
Samuel Fuller: Se você Morrer eu te Mato !
CCBB SP - 20 a 31 de março de 2013
Rua Álvares Penteado, 122, Centro, São Paulo - SP
CCBB DF - 26 de março a 14 de abril de 2013
SCES, Trecho 02, lote 22, Brasília - DF
CCBB RJ - 16 abril a 05 de maio de 2013
Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro - RJ
O papel empregado neste livro é o Pólen Soft 80g/m2
As fontes utilizadas são das famílias Firepower, TrashCinema e Kreon
A produção gráfica – impressão e acabamento – foi executada na Gráfica Stammpa, no Rio de Janeiro, RJ.
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Samuel Fuller ? Se Você Morrer, Eu Te Mato!