APRENDIZAGEM DE FUNÇÕES REAIS UTILIZANDO GEOMETRIA DINÂMICA Filipe Hasche [email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro Neste artigo é feita uma síntese de uma experiência de ensino de Funções Reais utilizando Geometria Dinâmica. Relatam-se aqui alguns episódios dessas atividades ligados a reflexões sobre pesquisas acerca do ensino e aprendizagem de matemática. Através do acompanhamento do aprendizado dos alunos, analisam-se possibilidades e cuidados em elaborar um ambiente que possa promover aprendizagens significativas no processo de desenvolvimento intelectual e que explorem a interatividade com a matéria permitida pelo uso do software. INTRODUÇÃO Nas últimas décadas, muitos estudos exploraram aplicações de tecnologias computacionais para o ensino de matemática. Em uma revisão bibliográfica sobre esse assunto, Giraldo & Carvalho (2004) comentam que muitas vezes era delegado à maquina o sucesso ou fracasso do experimento (p. 31). Estes autores, entendendo que a máquina não encerra em si nenhum atributo intrínseco à qualidade de sua utilização no ensino, também destacam uma observação sobre o trabalho de Laudares & Lachini (2000) onde vemos (p. 12): [...] o uso de tecnologia pode se constituir em uma importante alternativa para o modelo tradicional da aula de matemática. No entanto, [...] os autores afirmam que isso não depende do fato de se usar computadores por si só: tal perspectiva só pode ser concretizada por meio do planejamento cuidadoso de atividades de laboratório que estimulem a formação de uma postura investigativa por parte dos alunos e da preparação e motivação dos professores para conduzi-las. Nesta mesma direção, na área de formação de professores, Belfort & Guimarães (1998) alertam para algumas falhas nas práticas docentes ao analisar professores lidando com softwares de Geometria Dinâmica (GD). Os autores apontam para o fato de que, em geral, os professores não adotam uma postura de análise crítica perante os resultados emitidos pela máquina. Diante disso, demanda-se uma necessidade na formação docente que capacite o professor a saber lidar com ferramentas computacionais no sentido de saber criar tarefas apropriadas para esta nova possibilidade de situações de ensino e que também o possibilite a assumir um papel de guia de aprendizagem dos seus alunos neste ambiente. Neste artigo, pretende-se relatar abordagens de ensino de funções em ambiente dinâmico; relacionando o uso de novas tecnologias com teorias acerca de saberes docentes e de aprendizagem em matemática. PREPARAÇÃO DAS ATIVIDADES Foi colocado em prática, no terceiro bimestre do ano letivo de 2007, uma proposta de abordagem do estudo de Funções Reais com alunos de uma turma de AtiCom¹ do 1° ano do Ensino Médio de uma Escola da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro. Nessa abordagem, o aluno, inicialmente, explorava o comportamento de algumas funções utilizando o software GeoGebra, sob um rotina de análise por mim elaborado que tinha por objetivo conduzi-los às desejadas conclusões quanto aos conceitos e definições destes conceitos ali presentes. Segundo Piaget (1978), fazer e compreender estão intimamente vinculados. Destaca que fazer é conhecer o processo que permite executar com sucesso determinada ação. Compreender, por sua vez, é de um nível intelectual de grau mais elevado. Implica dominar em pensamento a mesma situação do fazer, em relação ao porquê e ao como de cada ação realizada ou a ser realizada. Com base nessas reflexões, as atividades com GD eram preparadas para que o aluno tivesse a oportunidade de manipular os objetos na tela a fim de conjecturar, descobrir e formalizar as relações pertinentes ao assunto em estudo. Os alunos sentavam-se aos computadores em duplas ou trios para trabalhar com telas pré-produzidas por mim no software. Essas telas funcionavam como uma revisão interativa dos passos da construção visando a análise da função. Ao longo das atividades, era sempre pedida a averiguação das propriedades dos objetos representados por meio da experimentação. ¹ As ementas das Turmas de AtiCom (Atividade Complementar) são compostas por matérias vinculadas às disciplinas básicas servindo de nivelamento para o aprimoramento da aprendizagem dos alunos. DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES No bimestre anterior, os alunos desta turma de AtiCom já haviam sido apresentados às idéias iniciais de função real expressa por uma sentença. As atividades na sala de informática eram baseadas na observação do comportamento dos objetos (variáveis) livres e dependentes com o arrastar do mouse na tela. A Figura 1 ilustra a primeira etapa da atividade, onde era pedido para que os alunos identificassem o significado de cada objeto na tela, bem como as relações entre eles ao movimentar o objeto livre (o ponto ‘A’): Figura 1: Janela computacional, na qual vemos a sentença que define a função a ser estudada, o valor instantâneo da variável independente “x” (que varia de acordo com o arrastar do ponto ‘A’, no eixo horizontal) e o valor calculado, em tempo real, da variável dependente “y”. A demanda de uma revisão de conceitos Embora eu considerasse esta primeira etapa de simples compreensão dos alunos, muitas dúvidas emergiam quanto às propriedades dos números representados na reta numérica, que pareciam ser fruto de confusão sobre conceitos matemáticos. Por exemplo, havia dificuldades dos alunos em perceberem o fato de “-3” ser maior que “-5” (os alunos tendiam a fazer uma comparação indevida pelo valor absoluto); de o “1,8” ser maior que “1,23” (comparação indevida pela parte decimal); e até mesmo o simples contato com números racionais expressos com mais de 2 ou 3 casas decimais. Assim, essas atividades ganhavam um potencial onde alguns conceitos elementares do Ensino Fundamental eram naturalmente revisitados (ou até mesmo apresentados a eles pela primeira vez) com um olhar mais maduro e mais profundo. Segundo Sierpinska (1992), gerar situações onde o aluno é colocado frente a suas dificuldades é uma das formas de construir bases sólidas para o conhecimento, dada a oportunidade de superar obstáculos da matéria em vez de contorná-los com um conhecimento “algoritmizado”. Representação de imagens de um conceito No próximo passo da atividade, a tela apresentava um novo objeto, como vemos na Figura 2: Figura 2: Tela com um ponto no eixo das ordenadas. Ao questionar a respeito das propriedades deste novo ponto, era comum ouvir respostas ingênuas do tipo: “-Quando mexe o ponto A, ele sobe e desce.”; ou: “-Quando muda o valor de “x” ele mexe também.”. Parecia que eles ainda não relacionavam a posição do ponto L com o valor de “y”. Após algumas intervenções minhas, questionando a respeito das coordenadas do ponto L (repare que, ao contrário do ponto A, o ponto L não exibe suas coordenadas), um aluno chegou à conclusão de que este ponto é a imagem do ponto A. Continuando a análise da função, era pedido para que os alunos identificassem algum intervalo de “x” que fazia com que o valor de “y” aumentasse. Muitos alunos falavam acerca do crescimento da função apenas onde ela era crescente e positiva, desconsiderando o fato de ela poder ser crescente quando negativa. Outros confundiam o crescimento da função com seu máximo local, com comentários do tipo: “-A função é crescente quando x vale -1,36.”. E mesmo aqueles que tratavam o crescimento da função em um intervalo, alguns ainda tratavam de forma confusa, dizendo: “-Quando o “x” vai pra direita, o y cresce; mas quando volta, ele diminui.”. Construindo a idéia de Imagem de Conceito, Tall (1981) a define como estruturas cognitivas associadas a um certo conceito que ainda podem se distinguir da definição formal. Assim, os alunos com base nas suas próprias respostas, puderam ver a necessidade de começar a definir o conceito de crescimento e decrescimento de uma função e de máximos e mínimos locais (mesmo que de uma forma ainda intuitiva e informal) uma vez que diferentes interpretações de uma imagem os levavam a conclusões inconsistentes. Saltos epistemológicos Na etapa seguinte da construção, o novo objeto que aparecia na tela era um outro ponto tal como podemos ver na Figura 3: Figura 3: Tela com o ponto “P”. Frente a isso, era perguntado aos alunos a respeito da relação deste novo objeto com os objetos anteriores na construção. Ainda era esperado ouvir as mesmas respostas informais de antes, como: “-O ponto P se mexe junto com os outros”, mas a resposta desejada (sobre as coordenadas de P) surgiu com mais naturalidade. Sierpinska aponta para cuidados em lidar com a interpretação de um gráfico. Destaca que ele é uma representação estática que esconde o dinamismo das funções, uma vez que um único ponto (x,y) é o símbolo que encerra em si o argumento, o valor e a lei de correspondência da função; formando, assim, um obstáculo epistemológico em potencial. Para tentar “devolver” esse caráter dinâmico da construção de um gráfico, visando superar este obstáculo, foi utilizada a ferramenta “Exibir Traço”. Assim os alunos podiam conferir com o próprio manuseio a trajetória descrita pelo ponto P à medida que variavam o valor de ‘x’. Figura 4: Trajetória descrita pelo ponto P ao arrastar o ponto A. Durante o desenhar do gráfico, alguns alunos arregalavam os olhos e serenamente exclamavam: “-Aaahh, uma parábola...!!”. Sierpinska caracteriza Salto Epistemológico como uma nova forma de (re)conhecer conceitos anteriormente vistos que possibilitam mudanças qualitativas na construção e no aprimorar do saber. Assim, pelo fato de funções quadráticas já terem sido visto em aulas na lousa, podemos interpretar essa reação dos alunos como a evidência de um salto epistemológico; diante da superação do obstáculo de, na representação de um gráfico, identificar aspectos dinâmicos nele. Após sucessivas aulas na sala de informática nas quais esses conteúdos eram refinados e apurados, um dos objetivos era fazer com que os alunos reconhecessem elementos notáveis em um gráfico e a conveniência da sua leitura para a interpretação e análise das propriedades da função. Assim, ao fim de cada uma dessas aulas, era pedido que os alunos refizessem toda a análise da função (análise do sinal, de crescimento e decrescimento e de máximos e mínimos locais) apenas olhando para o gráfico pronto, sem mexer no ponto móvel, e comparando com os dados anteriormente anotados. Riscos de um aprendizado com ferramentas computacionais Trabalhos como os de Giraldo (2004) e Abrahão (1998) nos despertam para o risco de os alunos atribuírem ao computador o papel de estabelecer verdades matemáticas absolutas em detrimento do seu próprio conhecimento. Temendo também o risco de que uma maior intimidade com o manuseio do software tolhesse o conhecimento da teoria que preconizava as construções, era necessária uma atividade onde uma análise meramente visual na tela do computador levaria a conclusões equivocadas. Antes dessa atividade, um dos alunos chegou a comentar que não seria mais necessário saber aquela teoria, já que bastava o arrastar do mouse para obter as respostas da análise das funções. Para mostrar a necessidade do conhecimento teórico ao analisar uma função em ambiente dinâmico, foi proposto o estudo do sinal da função em uma janela como vemos na Figura 5: Figura 5: Gráfico a ser analisado. Ao analisarmos apenas visualmente os pontos de interseção do gráfico com o eixo das abscissas, somos induzidos ao erro de concluir que a função se anula apenas em dois pontos. Daí surge a importância de uma análise algébrica que forneça conclusões precisas quanto ao número de raízes da função. Feita esta análise algébrica, os alunos podiam conferir o resultado encontrado ao mudar a escala dos eixos na janela gráfica, utilizando a ferramenta “Ampliar”, como podemos ver na Figura 6: Figura 6: Janela gráfica ampliada que permite identificar a mudança de sinal da função. Assim, o papel do professor não foi e nunca deve ser substituído pelo uso de ferramentas computacionais, pois os alunos não aprendem com o mero arrastar de objetos na tela. A elaboração de tarefas adequadas e as intervenções do professor ao conduzi-las desempenham um papel fundamental para o sucesso na utilização de tecnologias interativas (Lagrange et al. 2001). CONSIDERAÇÕES FINAIS A estratégia de utilizar Novas Tecnologias no ensino também pode ser efetiva por ter respaldo na motivação dos alunos em lidar com novas situações para a construção de seu conhecimento. Mas fazer com que os alunos manipulem entes matemáticos abstratos em uma representação à sua frente não deve ter a intenção de “poupá-los” do desenvolvimento teórico para o seu aprendizado. Ao contrário, a intenção presente deve ser gerar situações que demandem revisitar a teoria (ou criar motivação para novos desenvolvimentos teóricos) nas quais o aluno possa ser verdadeiramente confrontado com dificuldades intrínsecas da matéria. Assim, no intuito de superar suas dificuldades, podemos criar um ambiente fértil para solidificar bases na construção do seu saber. Essas atividades tiveram por objetivo buscar um aprendizado em matemática que permitisse ao estudante desenvolver capacidades que caracterizam atos próprios do “fazer matemático” como experimentar, representar, analisar e concluir. Paralelamente a isso, devemos também superar desafios na utilização de Novas Tecnologias ensino de matemática visto que a questão mais desafiadora não é o que o uso da máquina pode acrescentar nos modelos atuais de ensino, mas que novos modelos de ensino podem ser inaugurados pelo uso da máquina (Giraldo, 2004, p. 1) Referências Abrahão, A. M. C. (1998). O Comportamento de Professores Frente a Alguns Gráficos de Funções f:R → R Obtidos Com Novas Tecnologias.. 94 f. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Matemática, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998. Belfort, E. & Guimarães, L.C. (1998). O papel do software educativo na formação continuada de professores de matemática. In: Anais do VI Encontro Nacional de Educação Matemática, volume 2, pp. 104-107. Sociedade Brasileira de Educação Matemática, 1998. Giraldo, V. (2004). Descrições e Conflitos Computacionais: O Caso da Derivada. 221 f. Tese (Doutorado) - Curso de Engenharia de Sistemas e Computação, COPPE-UFRJ, Rio de Janeiro, 2004. Giraldo, V. & Carvalho, L.M. (2004). Breve bibliografia comentada sobre o uso de tecnologias computacionais no ensino de matemática avançada. In: Anais do VII Encontro Nacional de Educação Matemática, pp. 1 – 17. Sociedade Brasileira de Educação Matemática, 2004 Lagrange, J.-B., Artigue, M., Laborde, C., & Trouche, L. (2001). Meta study on IC technologies in education. Towards multidimensional framework to tackle their integration into the teaching of mathematics. In : M. v. d. Heuvel-Panhuizen (Ed.), Proceedings of the 25th conference of international group for psychology of mathematics education. (Vol.1, pp.111-122), Utrecht, Pays Bas: Freudenthal Institute, Utrecht University. Laudares, J. & Lachini, J. (2000). O uso do computador no ensino de matemática na graduação. In: 23ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, volume eletrônico, 2000. Piaget, J. (1978). Fazer e compreender. São Paulo: Melhoramentos, Edusp. Sierpinska, A. (1992). On understanding the notion of function. In: Dubinsky, E.; Harel, G. (Org.). The concept of function: Elements of Pedagogy and Epistemology. New York: Notes And Reports Series Of The Mathematical Association Of America. v. 25, p. 25-58. Tall, D. & Vinner, S. (1981). Concept image and concept definition in mathematics, with special reference to limits and continuity. Educational Studies in Mathematics, 12, 151-169. Software de referência GeoGebra 3.0 - Dynamic Mathematics for Schools: Markus Hohenwarter, 2001-2007 http://www.geogebra.org