ROTEIRO PARA TELEVISÃO MISTÉRIO SOB AS LUZES DA ARCÁDIA Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Categoria: longa, televisão. Proposta: 17 capítulos Mistério sob as luzes da Arcádia / Francisco Rodrigues Júnior Tel. Cel. 9168-6653 - Res. (38)3213-2028 Endereço de e-mail: [email protected] Endereço: Rua Almandina, 881 - Bairro: Lourdes Montes Claros – MG. CEP: 39401-484 Longa /inédito / versão 2012 TRAMA Num certo final de semana do ano da graça de 1784, o Narrador conhece Tomás Antônio Gonzaga, através de padre Luís Vieira. Três anos depois, em 1792, quando Gonzaga se envolve no Movimento da Inconfidência Mineira e está próximo a ser degredado à África, eis que o Narrador cumpre-lhe uma promessa de visitá-lo na Serra da Fortaleza do Patriarca de São José da Ilha das Cobras. Ao entrar na cela de Gonzaga, o Narrador – jovem a que ninguém sabe quem é – se transforma em Dirceu, por Gonzaga. Ele, portanto, tem uma missão a cumprir, qual, não se resume apenas em viver um romance de amor com Marília, mas a difícil missão de uma tarefa cheia de mistério e aventura, que também envolverá o Iscaríotes, no dia da última ceia de Jesus Cristo. Tudo acontece num espaço genuinamente arcádico: Minas Gerais se faz cenário principal ao mundo da trama em plena época, quando o Brasil vivia o ciclo do ouro. 2 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior À Tizuka Yamasaki A quem tenho grande apreço pelo sublime trabalho na arte do cinema brasileiro. “Chega um momento em sua vida, que voce sabe: Quem é imprescindivel para voce, quem nunca foi, quem não é mais, quem será sempre”! (Charles Chaplin) 3 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SUMÁRIO CAPÍTULO 1 SEQUÊNCIAS 01-35.....................................................................6 CAPÍTULO 2 SEQUÊNCIAS 35-35.9................................................................58 CAPÍTULO 3 SEQUÊNCIAS 37-56....................................................................102 CAPÍTULO 4 SEQUÊNCIAS 57-76....................................................................141 CAPÍTULO 5 SEQUÊNCIAS 77-94....................................................................197 CAPÍTULO 6 SEQUÊNCIAS 95-114..................................................................247 CAPÍTULO 7 SEQUÊNCIAS 115-136................................................................298 CAPÍTULO 8 SEQUÊNCIAS 137-156................................................................381 CAPÍTULO 9 SEQUÊNCIAS 157.3-168.............................................................405 CAPÍTULO 10 SEQUÊNCIAS 169-184................................................................455 CAPÍTULO 11 SEQUÊNCIAS 185-202.1 .............................................................511 4 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CAPÍTULO 12 SEQUÊNCIAS 203-215................................................................566 CAPÍTULO 13 SEQUÊNCIAS 216-230................................................................615 CAPÍTULO 14 SEQUÊNCIAS 231-239................................................................671 CAPÍTULO 16 SEQUÊNCIAS 258-264 ...............................................................717 CAPÍTULO 15 SEQUÊNCIAS 245-257................................................................768 CAPÍTULO 17 SEQUÊNCIAS 265-282................................................................820 5 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CAPÍTULO 1 SEQUÊNCIAS 01-35 Personagens deste capítulo: Narrador Tomás Antônio Gonzaga Padre Luís Vieira Pai do de 16 anos Criada de 18 ou 19 anos Dirceu (passagem do Narrador) Maria Antônia Zé Antônio Marília Josias Dragão alto e magro Dragão gordo e baixo Inconfidentes mineiros Joaquim José da Silva Xavier Homens negros e fortes Crianças brancas e negras Mulheres brancas e negras Dragões Tropeiros (homens a cavalos) Dragão moreno Dragão loiro Narrador Juvêncio Dragões Felipe dos Santos Freire Mãe do menino de 12 anos e das filhas de 14 e 16 anos Menino de 12 anos Filha de 14 anos Filha de 16 anos 6 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 1 – INT./DIA. VILA RICA. Legenda: "Vila Rica, 1784”. Manhã. Imagem panorâmica de Vila Rica. Vemos do alto os telhados do casario, depois o casario, as praças, as ruas e pessoas brancas e negras andando pelas ruas. Comércios abertos, placas dos comércios detalhando nos letreiros a escrita da época. HOMENS NEGROS montados em seus cavalos puxando jumentos com bruacas nos lombos. Sinos repicando nas torres das igrejas do centro de Vila Rica. Igreja de São Francisco. REVOADA DE PÁSSAROS FUGINDO DA TORRE DA IGREJA DE SÃO FRANCISCO. SEQUÊNCIA 2 - SLIDE. Exposição de imagens individuais dos inconfidentes mineiros, conforme constam no inconsciente coletivo. São eles: JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER, INÁCIO JOSÉ DE ALVARENGA PEIXOTO, SARGENTO-MOR LUÍS VAZ DE TOLEDO PISA, CORONEL DOMINGOS DE ABREU VIEIRA, CORONEL FRANCISCO ANTÔNIO DE OLIVEIRA LOPES, PADRE JOSÉ DA SILVA, PADRE OLIVEIRA ROLIM, PADRE CARLOS CORRÊA DE TOLEDO, CÔNEGO LUÍS VIEIRA DA SILVA, CLÁUDIO MANUEL DA COSTA E TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA. Damos importância para a figura de TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA, qual será personagem desta história. A imagem de Tomás Antônio Gonzaga se expande em um grande close e depois ganha uma pausa. A imagem dele se converte no personagem para entrar em cena. SEQUÊNCIA 3 – EXT./DIA. VILA RICA. CASA DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA. 7 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA, magro, alto, olhos castanhos, peruca (cabelos encaracolados, caídos aos ombros), 40 anos, sentado em uma cadeira de braço na sala de visita de sua casa ao lado do NARRADOR, um jovem de 23 anos, pele branca, olhos claros, alto, magro, cabelos loiros, grandes e encaracolados e o PADRE LUÍS VIEIRA, senhor de 50 anos, estatura mediana, olhos claros, cabelos curtos, cercilhado ao centro, vestido a uma batina preta. NARRADOR (VOICE OVER) Quando eu soube que o meu admirado e velho amigo, Gonzaga havia deixado se pegar no famoso vulto da independência, e que todos diziam ser o verdadeiro líder da conspiração, eu quase não acreditei. Eu conheci Antônio Tomás Gonzaga em Vila Rica, num final de semana do ano da graça de 1784, quando acompanhei o padre Luis Vieira a casa dele. CORTA PARA Sala de visita da casa de Tomás Antônio Gonzaga. Padre Luís Vieira está sentado em frente do Narrador e de Tomás Antônio Gonzaga. PADRE LUIS VIEIRA (falando entusiamado) Este jovem, prezado Gonzaga, quando criança, sempre que o senhor pai dele o levava em Mariana, ele estava sempre a perguntar por tudo. Ele era um eterno admirador do céu e queria saber o que faria para ver os anjos. Creio que, pelo fato de eu ser padre, ele pensava que eu era capaz de mostrá-lo e, até levá-lo ao mundo dos anjos... (sorri olhando para o Narrador) Mal ele sabia que para vê-los seria preciso trancar os olhinhos, morrer... Mas ele, felizmente, se contentava em ver os anjos dos afrescos da igreja. Ainda bem, que havia esse consolo... CORTA PARA 8 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FLASH BACK – NARRADOR CRIANÇA - O Narrador é um menino de aproximadamente 10 anos, pele branca, olhos claros, alto, magro, cabelos loiros, grandes e encaracolados. Ele está em uma dada igreja em Vila Rica, acompanhado pelo Padre Luís Vieira, qual se encontra um pouco jovem. O Narrador olha para os afrescos de anjos, admirando-os. PADRE LUÍS VIEIRA (OFF) Ele viajava com os olhos pregados ao tetos, ria, a ponto de ficar perdido, verve em pensamentos. Eu cá pensava, que quando ele fosse jovem, seria logo tonsurado pelo santo bispo. Daria um excelente padre. Porém, o danado, creio que incentivado pelo pai, acabou escolhendo outra carreira... CORTA PARA Sala de visita da casa de Tomás Antônio Gonzaga.Tomás Antônio Gonzaga está sentado de frente ao Narrador e ao padre Luís Vieira. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (olha para o Narrador um pouco surpreso) Não quiseste seguir o celibato? Então qual a carreira foi incentivada a ti, pelo senhor, vosso pai? NARRADOR (olha para o padre Luís Vieira, depois para Tomás Antônio Gonzaga) O senhor meu pai, na verdade, não foi o principal culpado de incentivar-me a carreira. Foram os amigos dele, a maioria fluente em assuntos ligados às leis e aos cânones... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Então, tu pretendes bacharelar-se em leis? 9 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior NARRADOR (entusiasmado) Sim, senhor Gonzaga, estou a caminho. Estudo em Portugal, na Universidade de Coimbra... PADRE LUÍS VIEIRA (olhos arregalados, tom de voz profética) E há de surpreender a todos, pois este menino é muito estudioso, ativo, gosta de filosofia, sempre está a especular sobre tudo, inclusive sobre os problemas da colônia. Sabe de todos os acontecimentos de Portugal, lê quase todos os jornais... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Isto é bom, padre Luís, isto é muito bom. Como sabemos esta colônia está a passar por duras provas, pois o rei do outro lado, qual se diz ser também rei dela, nada faz senão nos cobrar duros impostos e duras penas. Sonhamos com o futuro desta colônia acreditando em torná-la uma das maiores nações do mundo. É uma pena que isso há de levar muitos e muitos anos, senão, uma causa secular... PADRE LUÍS VIEIRA Às vezes eu chego a sonhar que esta colônia seja a terra prometida, pois nela está a fluir leite e mel para Portugal... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Portanto, padre Luís, para que possamos provar que cá seja a terra prometida é preciso que tenhamos um Moisés capaz de lutar pela liberdade deste povo, que a cada dia torna-se todos escravos de Portugal. Que tenhamos um Moisés, sim, um Moisés corajoso, capaz de nos libertar das mãos de Portugal... PADRE LUÍS VIEIRA Ou mais cedo ou mais tarde isso haverá de acontecer, Gonzaga. Para tudo é preciso ter esperança, nada acontece 10 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior sem antes passar por um amadurecimento. O que fazemos agora é semear a semente e esperar que um dia alguém a colha os seus frutos. Vejo hoje, por exemplo, este jovem a se preocupar com as questões do mundo... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Este jovem a se preocupar com as questõs do mundo? Como assim? PADRE LUÍS VIEIRA Ora, ele touxe-me uma folha de jornal, mostrando interessado pelo assunto do tratado de Cabinda... Padre Luís Vieira põe-se de pé. Rápido close no bolso da batina do padre Luís Vieira. Ele enfia a mão no bolso da batina e tira para fora uma folha dobrada de jornal. Ele entrega a folha dobrada para Tomás Antônio Gonzaga. PADRE LUÍS VIEIRA (ainda entusiasmado) Ele trouxe-me esta folha de jornal de Portugal, disse-me que era para eu ficar inteirado do tratado franco-português sobre Cabinda. Tomás Antônio Gonzaga está com a folha de jornal nas mãos. Ele desdobra a folha de jornal e passa os olhos sobre os textos impressos. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Obtive alguns conhecimentos sobre esse tratado. Tudo o que eu sei é que Portugal está confiando nos seus direitos incontestáveis e absolutos, porém, Leopoldo 11 sugeriu uma reunião de uma conferência internacional para delimitar os territórios em África. Creio que Portugal acabará ficando com os territórios de Cabinda, Malembo e Massábi, ao norte do Zaire... 11 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Folha de jornal nas mãos de Tomás Antônio Gonzaga. Ele dobra a folha de jornal. O padre Luís Vieira olha para Tomás Antônio Gonzaga. Tomás Antônio Gonzaga devolve a folha de jornal ao padre Luís Vieira. O Narrador, sentado em seu canto, fica observando o padre Luís Vieira conversando com Tomás Antônio Gonzaga. Tomás Antônio Gonzaga mira-se para o Narrador cheio de convicções. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Eu também estudei na Universidade de Coimbra e quase fui professor lá. A minha tese foi sobre Tratado de Direito Natural. Mas depois, devido algumas pretensões pessoais, resolvi não seguir o magistério. Optei-me à magistratura. Exerci o cargo de juiz de fora, na cidade de Beja, em Portugal e em 1782, ao retornar-me para cá, fui nomeado Ouvidor dos Defuntos e Ausentes desta comarca, prosseguindo, até hoje, a minha labuta... VENTO FORTE NAS JANELAS DA SALA, AS CORTINAS SOBEM E DESCEM. CORTA PARA SEQUÊNCIA 4 - EXT./NOITE/DIA. VILA RICA. PEQUENA VILA DO MORRO DAS QUEIMADAS. Legenda: "Revolta de Vila Rica, 1720". Noite do ano de 1720. DRAGÕES a cavalos, com tochas de fogos nas mãos invadindo uma pequena Vila do Morro. Os dragões ateiam fogo nas casas. Gritos de desesperos de homens, mulheres e crianças. Casas pegando fogo, dragões com tochas de fogo nas mãos e homens, mulheres, crianças e animais correndo pelas ruas. 12 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 5 – EXT./DIA. VILA RICA. PRAÇA COM CADAFALSO. Manhã nublada. Vila Rica com cadafalso em uma de suas praças. DRAGÕES imponentes cavalgando pelas ruas. PESSOAS andam pelas ruas de Vila Rica indo encontrar-se com outras pessoas na praça onde está o cadafalso. FELIPE DOS SANTOS FREIRE, português, cor branca e olhos claros, de 40 anos de idade, é enforcado no cadafalso e depois retirado da forca por alguns dragões. O corpo de Felipe dos Santos Freire é arrastado pelas ruas de Vila Rica. SEQUÊNCIA 6 - INT./EXT. NOITE. VILA RICA. NUMA DETERMINADA CASA EM VILA RICA. Noite. Sala ampla iluminada por candeeiros. Mesa. Vestido de casamento sobre a mesa. Agulhas sobem e descem, costurando o vestido de casamento. Mãos delicadas costurando o vestido. MÃE, mulher branca, alta, gorda e olhos escuros, de 30 a 35 anos e as TRÊS FILHAS, uma de 12 anos, pele clara, alta e olhos escuros, outra de 14 anos, pele morena, olhos escuros e gorda e outra de 16 anos, alta, magra, pele morena e olhos escuros bordam o vestido de casamento. Sala de visita. Janela da sala de visita, aberta, vista do lado interno da casa. Tamborete de couro encostado à janela aberta, da sala de visita. MENINO de 10 anos, pele morena, magro, olhos escuros e cabelos corridos de pé no tamborete de couro, espiando o lado de fora da rua. Rua. Casas. Portas e janelas das casas fecham-se rapidamente. Rua. Cavalos. DOIS DRAGÕES (soldados da coroa portuguesa, no Brasil, uniformizados conforme os militos da época colonial do séc. XVII. Eles são dentificados pelas suas fisionomias: um gordo e baixo; outro magro e alto, os dois de aproximadamente 40 anos de idade, usam bigodes, barbas e cabelos ruívos) cavalgam pela rua. O menino de pé no tamborete de couro, espiando o lado de fora da rua observa os dois dragões cavalgando pela rua. Os DOIS DRAGÕES vêm em direção à casa do menino que está de pé no tamborete de couro, espiando o lado de fora da rua. Janela. O menino de pé no tamborete de couro, espiando 13 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior o lado de fora da rua fecha a janela. O menino salta-se do tamborete e corre. Sala ampla, MÃE e FILHAS DE 12, 14 E 16 ANOS, costurando o vestido. O menino chega correndo na sala ampla. A mãe e as três filhas de 12, 14 E 13 anos olham assustadas para o menino. A mãe põese de pé. Vestido de casamento sobre a mesa. MENINO (olha para a mãe, apavorado) Mamãe, soldados da coroa, soldados da coroa estão vindo cá... MÃE (assustada pega o vestido de casamento da mesa, embolandoo nas mãos e nos braços) Corram para o quintal, meus filhos. Corram! Escondam-se lá fora... As três filhas de 12, 14 e 16 anos e o menino saem correndo da sala ampla para o quintal da casa. Quarto de casal. A mãe corre para o quarto de casal com o vestido nas mãos. Porta aberta do quarto de casal. A mãe entra no quarto de casal. A mãe vê o baú no canto próximo à cama de casal. A mãe abre o baú e joga o vestido dentro. A mãe fecha o baú. Baú fechado. Porta aberta do quarto de casal. A mãe espia a sala ampla, pela porta aberta do quarto de casal. A mãe sai do quarto de casal e corre para a sala de visita. Sala de visita. Tamborete caído no chão. A mãe na sala de visita. Porta da sala aberta. A mãe olha para a porta. DOIS DRAGÕES, UM ALTO E MAGRO, OUTRO GORDO E BAIXO aparecem na porta aberta da sala de visita. A mãe se assusta ao ver os dos dois dragões na porta de entrada da sala de visitas. Os dois dragões entram na sala de visitas e, em seguida, marcham para a sala ampla. A mãe segue-os. O dragão magro e alto se destaca ao entrar na sala ampla DRAGÃO ALTO E MAGRO Estamos cá para cobrar-lhe o imposto... 14 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MÃE (trêmula) O senhor meu marido se encontra no garimpo, há dias não volta para casa. Temos dificuldades em manter nossos filhos, a nossa família... Há meses, ninguém consegue nada nos garimpos. DRAGÃO ALTO E MAGRO (fecha a cara) Eu cá tenho alguma coisa com isso? Vós mercês devem à coroa alguns réis. O rei, como todos sabem, exige as nossas providências... MÃE Mas o que temos, cada dia está mais pouco... O rei está a nos tirar até as migalhas que caem debaixo da nossa mesa... DRAGÃO BAIXO E GORDO (dá risadas) Ora, ora, se está a cair migalhas debaixo da mesa, é sinal de que os pães estão fartos... MÃE (chorando) Não compreendem o meu tormento, nem recorrendo à bíblia, vossemecês são capazes de nos entender... Senhores, eu nada posso fazer... DRAGÃO ALTO E MAGRO Não? Pois bem, então vasculharemos toda a casa, e, quem sabe, encontraremos alguns bens que possam servir à coroa... A mãe solta um grito e corre para o quarto de casal. Sala. Os dois dragões vasculham a sala ampla. Porta aberta do quarto de casal. O dragão gordo e baixo aparece na porta do quarto de casal. Baú perto da cama de casal. O dragão gordo e baixo entra no quarto de casal e dirige15 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior se ao baú. A mãe tenta impedi-lo de se aproximar do baú. O dragão gordo e baixo empurra a mãe. Cama de casal. A mãe cai deitada de costas na cama de casal. O dragão gordo e baixo aproxima-se do baú e abre-o. Baú aberto. Vestido de noiva dentro do baú aberto. O dragão gordo e baixo vê o vestido de casamento enrolado no baú. DRAGÃO GORDO E BAIXO (olha para o vestido e em seguida para o dragão gordo e baixo) Venha até cá, amigo. Creio ter encontrado algo útil... Traga cá uma candeia, preciso de luz para observar direito este objeto... Porta do quarto de casal. Dragão magro e alto com uma candeia na mão estendendo a fraca luz para o interior do quarto de casal. Quarto de casal ilumina-se. O dragão magro e alto entra no quarto de casal e apressa os passos até o velho baú. Candeia. Dragão magro e alto aproxima-se a luz da candeia no baú. Dragão gordo e baixo segura a tampa do baú. Luz da candeia no interior do baú. Vestido de noiva. Dragão gordo e baixo tira o vestido de noiva do baú. Cama de casal. A mãe deitada na cama de casal tenta reagir, levantado e empurrando o dragão gordo e baixo. O dragão gordo e baixo empurra novamente a mãe na cama de casal. A Mãe caída na cama de casal. Dragão gordo e baixo abre o vestido de noiva e fica a repará-lo. DRAGÃO GORDO E BAIXO Peça muito valiosa. Olha só, prezado amigo, fazenda francesa, flores bordadas com linhas de ouro... DRAGÃO MAGRO E ALTO Servirá à coroa. Parece roupa de princesa, enviaremo-lo para a corte... 16 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MÃE (deitada na cama assustada e com a voz trêmula) Senhores, não façam isso. Não levem este vestido. Ele está sob a minha responsabilidade. O vestido pertence a uma noiva de um comendador de Mariana. É para um casamento que acontecerá em breve... DRAGÃO GORDO E BAIXO Não temos nada com isso. Apenas cumprimos ordens. Devem-se ao erário, pagam-se por via de qualquer forma... Se quiseres resgatar o vestido, procure-nos para saldar as suas dívidas... Vestido de noiva nas mãos do dragão gordo e baixo. Dragão gordo e baixo enrola o vestido de noiva de qualquer jeito, coloca-o debaixo do braço e sai do quarto de casal. A mãe sai do quarto de casal, atrás do dragão gordo e baixo, tentando tomar-lhe o vestido de noiva. Sala de visita, próximo à porta de saída da casa, a mãe aflita, esmurra as costas do dragão gordo e baixo. O Dragão alto e magro agarra a mãe de qualquer jeito e joga-a no canto da parede da sala. A porta está aberta. Os dois dragões saem. A mãe levanta-se do chão, corre para a janela e abre-a. A MÃE faca a fitar o lado de fora da rua. Rua. Cavalos. Os dois Dragões cavalgam longe. Interior da sala de visita. A MÃE se atrira no chão chorando. Menino e as três filhas de 12, 14 e 16 anos entram correndo na sala de visita para socorrerem a mãe. O menino e as três filhas de 12, 14 e 16 anos e a mãe agarram-se mutuamente. Eles choram agarrados uns aos outros. NARRADOR (OFF) Embora eu soubesse que em nossa colônia, desde o século passado, cogitavam-se guerrilhas entre brasileiros e reinóis, ora pela posse do ouro, ora pela libertação e organização da nossa capitania. Eu não imaginava que, após tantos insucessos, alguém em nossa vila fosse capaz de seguir à risca os ideais dos grandes iluministas europeus para colocar em ação um plano contra a Coroa Real. 17 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 7 - INT./NOITE. VILA RICA. CASA DE CLÁUDIO MANUEL DA COSTA. Sala ampla, janelas fechadas com cortinas de rendas brancas e lampiões acessos. Há uma enorme mesa de cavalete forrada com uma toalha azul de rendas brancas, onde estão sentados em volta dela os inconfidentes mineiros. Joaquim José da Silva Xavier apresenta uma bandeira branca com um triângulo e a expressão latina “LIBERTAS QUAE SERA TAMEM” aos inconfidentes e depois a bandeira é passada pelas mãos de todos até chegar nas mãos de Tomás Antônio Gonzaga, qual beija a bandeira respeitosamente. NARRADOR (OFF) Imaginei o meu amigo Gonzaga, juntamente com um grupo de amigos, aspirando a esse ideal... SEQUÊNCIA 8 – INT./DIA. VILA RICA. CASA DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA. SALA DE VISITA. Janela aberta da sala de visitas. Tomás Antônio Gonzaga observa cautelosamente pela janela o lado de fora da casa. O Narrador observa Tomás Antônio Gonzaga na janela aberta. O Narrador, meio desajeitado, levanta-se da poltrona, pondo-se de pé. NARRADOR Estás a esperar alguma visita, senhor Gonzaga? Tomás Antônio Gonzaga afasta-se da janela, observa o interior da sala e aproxima-se tranquilamente do Narrador. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Não, não estou a esperar visita alguma, prezado jovem. 18 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior NARRADOR (um pouco desajeitado) Mesmo assim estou de saída, quero respirar o ar puro do entardecer de Vila Rica... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (respira profundamente e sorri) Creio que o ar de Vila Rica anda um pouco pesado,ultimamente. É perigoso respirar ou aspirar alguma coisa que está por alterar-se... NARRADOR Estas a falar por enigmas, senhor Gonzaga? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (olha para o lado de fora da janela e depois olha firme para o Narrador) Ao bom entendedor não existe enigmas, meu prezado jovem. Poucas palavras bastam, não acha? (afasta-se do Narrador, vai até a janela e olha para o lado de fora. Em seguida olha para o Narrador) Quando o ar de Vila Rica tornar-se um nevoeiro e poeiras de sangue começarem a espalhar-se pelos ares, quero que tu estejas do meu lado. Estando do meu lado, estarás ao lado do povo brasileiro... (pausa) És meu amigo? Um amigo verdadeiro? O Narrador olha para Tomás Antônio Gonzaga com um olhar assustado, respondendo "sim" com a cabeça NARRADOR (VOICE-OVER) Quem teria coragem de lutar em prol desse grande bem? 19 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 9 – INT./DIA. VILA RICA. CASA DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA. SALA DE VISITA. Legenda: "Vila Rica, 1788, quatro anos depois..." Tomás Antônio Gonzaga na sala de visita acompanhado pelo Narrador, sentado ao lado dele. Tomás Antônio Gonzaga se encontra com 44 anos de idade. NARRADOR (VOICE OVER) Em maio de 1788, quando terminei os estudos em Portugal, voltei definitivamente para o Brasil. Alguns meses depois visitei Gonzaga. Eu encontrei-o calado, pensativo e preocupado. Ao ver-me, ele não demonstrou surpresa. Conversou pouco, não perguntou sobre Portugal ou comentou qualquer acontecimento na colônia. Janela. Tomás Antônio Gonzaga espreitando o lado de fora pela janela. Ruas dos arredores da casa de Tomás Antônio Gonzaga. Pessoas passando nas ruas dos arredores da casa de Tomás Antônio Gonzaga. Tomás Antônio Gonzaga olha de repente para o interior da sala. NARRADOR (levanta-se rápido da poltrona) Por obséquio, espera alguma visita, Senhor Gonzaga? Tomás Antônio Gonzaga está na janela. Ele olha novamente para o interior da sala. O Narrador está de pé, olhando para a porta de saída da sala. O Narrador fica-se de pé. NARRADOR Se estiveres a esperar alguma visita, por favor, senhor Gonzaga, estou-me de saída. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Preocupo-me com algumas coisas, meu prezado jovem. Desculpe-me se faço ausente, cá, neste momento. Quem sabe 20 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior um dia entenderás o fausto da minha história. Quem sabe, não posso pedir-lhe uma promessa? NARRADOR Pedir-me uma promessa? Qual TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Cumpriria a mim? NARRADOR Obviamente que sim, senhor Gonzaga... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Então quando souberes dos meus augúrios, procure-me. Pedirei a ti para cumprir-me uma promessa. Entra na sala uma CRIADA, negra, traços bonitos, corpo esbelto, de aproximadamente 18 ou 19 anos, com uma bandeja composta por dois copos e uma jarra com suco de pitanga. A criada coloca-se a bandeja na mesa e, com uma certa delicadeza, enche os dois copos com o suco de pitanga e se retira da sala. Tomás Antônio Gonzaga e o Narrador servem-se do suco de pitanga. NARRADOR Quando eu souber de seus augúrios, procurá-lo-ei, porque os amigos, senhor Gonzaga, deverão estar prontos para todas as horas. (bebe um pouco do suco de pitanga e prossegue) É preciso que eu vá, agora. Se eu descobrir porque o ar de Vila Rica não está tão puro, lá fora, quem sabe eu não me envolva em algum mistério. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (responde com um tom de brincadeira) Envolver-se em mistérios no Brasil é como se sentir o mundo às avessas e nunca poder fazer nada... 21 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior (olha nos olhos do Narrador e fala por solilóquio) Tu envolverás em muitos mistérios, prezado jovem. NARRADOR (vira o copo na boca e toma todo o suco de pitanga) Devemos dar tempo ao tempo, senhor Gonzaga. Quem sabe um dia, no percurso de sua história, o Brasil não se verá livre de Portugal? Quem sabe, talvez, não precisará haver guerras, sangue, dores e sofrimentos... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (aproxima-se da mesa e coloca o copo na bandeja) Talvez, possas ter razão, mas por enquanto, tudo o que a nossa história nos mostra é que o rei luso nos enxerga como meros escravos do seu reino. NARRADOR A lei é dura, mas é lei, senhor Gonzaga... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA É verdade, isso é o que nos ensina o antigo provérbio latino "Dura lex sed lex"! Rápido silêncio entre o Narrador e Tomás Antônio Gonzaga. O Narrador olha para a porta de entrada da casa e dá um passo. NARRADOR Adeus, senhor Gonzaga. Porta da sala. Ao dirigir-se à porta da sala, o Narrador vê Tomás Antônio Gonzaga dirigir-se ao cabide e pegar o chapéu. Antes de o Narrador alcançar a porta, Tomás Antônio Gonzaga, com o chapéu na mão, apressa os passos, alcança a porta e abre-a ao Narrador. Apenas o Narrador sai. 22 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 10 - EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. O Narrador sai da casa de Tomás Antônio Gonzaga e anda pela rua em frente da casa de Tomás Antônio Gonzaga. Ele para na rua e olha para os arredores. Passam-se dois negros fortes carregando uma liteira. Um homem branco dentro da liteira acena as mãos para o Narrador. O Narrador continua andando pela rua. Ruas de Vila Rica. Tomás Antônio Gonzaga, a passos rápidos, cruza uma das ruas de Vila Rica. O Narrador para e observa Tomás Antônio Gonzaga cruzando a rua até desaparecer numa esquina. Ele fala por solilóquio. NARRADOR Então é isso, reunião marcada com os amigos na casa do poeta Claudio Manuel da Costa. É daquela casa que sairá o ar a que todos nós, de Vila Rica, deveremos respirar. O Narrador respira artificialmente, elevando os ombros e esticando as costas. Tomás Antônio Gonzaga desaparece em uma das esquinas de uma rua. Barulho de trotes de cavalos. Alferes cavalgando pelas ruas de Vila Rica. Três alferes passam, olham para o Narrador e cavalga em direção da rua tomada por Tomás Antônio Gonzaga. NARRADOR Espero que o senhor Gonzaga e seus respectivos amigos, não estejam sendo perseguidos por estes alferes... BARULHO DE SINETA. UM BODE COM UMA SINETA AMARRADA NO PESCOÇO CRUZA UMA DAS RUAS MOVIMENTADAS DE VILA RICA. SEQUÊNCIA 11- EXT./ DIA. VILA RICA. LOCAL PRÓXIMO À IGREJA DO PILAR. Pessoas andando nas ruas de Vila Rica. Rua da igreja do Pilar. Imagem geral do casario do lado esquerdo e direito da rua da igreja do Pilar. O 23 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Narrador aproxima-se da igreja do Pilar e encontra-se com um homem branco,50 anos alto, magro, olhos claros, bem vestido, com chapéu e bengala, andando apressado na direção dele. O Narrador olha para a porta da igreja, vê algumas pessoas entrando na igreja dá um passo e para. Ele vê que o homem branco é o pai dele. Ele espera a aproximação do pai, qual vem alegre ao encontro dele. PAI DO NARRADOR Filho, estou a procurá-lo a um farto tempo. Tenho boas notícias para vós mercê... NARRADOR (olha indiferentemente para o pai) Boas notícias? Que boas notícias, senhor meu pai? PAI DO NARRADOR Não irás querer acreditar, filho! NARRADOR Talvez eu não queira acreditar, meu pai, pois desde que sai de casa nesta manhã, ouvi de ninguém notícias boas. Ficamos apenas com as notícias ruins sobre o Fanfarrão Minésio, que, de Portugal, a cada dia, devora todo o nosso ouro, deixandonos apenas poeiras... PAI DO NARRADOR Ora, filho, não seja um proditor. Deixe o rei resolver por lá os seus problemas. Escute isso... (faz uma pausa para respirar e depois prossegue em tom engraçado) As proezas a mim foram concebidas, filho. Consegui para vossa “mercezinha” uma nomeação ao cargo de ouvidor, para a comarca de Soledade de Itajubá... 24 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior NARRADOR Então o pródigo governador de Minas, o senhor Visconde de Barbacena, cumpriu a promessa feita ao senhor meu pai? Arranjou-me uma ocupação? PAI DO NARRADOR Sim, filho! Não simplesmente uma ocupação, mas um ofício digno de um homem letrado. O ofício é um cargo bom, importante... NARRADOR O ofício é um cargo bom e importante? PAI DO NARRADOR Sim, filho. Trata-se de um cargo de ouvidor. NARRADOR Ouvidor?! PAI DO NARRADOR Sim, ouvidor! Vossa “mercezinha” não terá tempo para pensar e responder se quer ou não. Sabe por quê? Porque eu mesmo acertei tudo com o governador. Prometi a ele que daqui a dois dias vossa “mercezinha” embarcará para Soledade de Itajubá... Vou providenciar a caravana e assegurar a vós “mercezinha” uma viagem tranquila, com boas companhias. NARRADOR O senhor meu pai, acha que eu deva ir mesmo? PAI DO NARRADOR (abana a cabeça, fazendo o sinal de "sim") Óbvio que sim! 25 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 12 - INT./NOITE. VILA RICA. CASA DE CLAUDIO MANUEL DA COSTA. Casa de Cláudio Manuel da Costa. Sala ampla e arejada. Lampiões acessos pendurados nos cantos da parede da sala ampla e arejada. Grande mesa de cavaletes com os inconfidentes sentados. Há um enorme mapa de estradas e vicinais estendido na mesa. Os inconfidentes estudam o mapa; alguns passam os dedos nos pequenos desenhos das estradas. Um copo de vinho na mão de Tomás Antônio Gonzaga. Ele degusta o vinho sorridentemente. SEQUÊNCIA 13 - EXT./NOITE. VILA RICA. RUAS, IGREJAS E PRAÇAS DE VILA RICA. Noite. Movimentos e rumores de pavores nas ruas de Vila Rica. Pessoas saem apressadas de algumas igrejas e praças da cidade para esconderemse em suas casas. Em várias ruas de Vila Rica surgem dragões com tochas de fogo nas mãos marchando em seus cavalos. Os dragões encontram-se numa praça do centro da cidade. Homens negros e fortes correm carregando liteiras nos ombros com os seus senhores brancos. Alguns homens negros e fortes tropeçam ao correr e deixam as liteiras de seus senhores brancos caírem. Eles fogem desesperados pelas ruas de Vila Rica largando as liteiras. Porta da casa de Cláudio Manuel da Costa. Os dragões chegam à porta da casa de Cláudio Manuel da Costa e detém todos os inconfidentes. O vento bate uma janela aberta de uma casa do centro de Vila Rica. Ouve-se (em off) gritos de lamento de mulheres. Corujas voam de uma das torres de uma igreja de Vila Rica. SEQUÊNCIA 14 - EXT./INT./DIA. SOLEDADE DE ITAJUBÁ. PORTA DE UM ENORME SOBRADO. PEQUENA SALA DE TRABALHO DO NARRADOR. ESTRADA REAL. Legenda: "1792, três anos depois..." 26 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Janelas abertas de um enorme sobrado. As janelas abertas apontam para uma pequena sala de trabalho do Narrador. Luz do sol invade a pequena sala do enorme sobrado. Interior da pequena sala do enorme sobrado. Mesa com gavetas abertas. Ao lado da mesa, no chão, um pequeno baú feito de couro. o Narrador sentado em um frailero tira papéis das gavetas abertas e os colocam dentro do pequeno baú. NARRADOR (VOICE OVER) Em abril de 1792, após ficar inteirado dos últimos acontecimentos ocorridos em Vila Rica, qual final trágico resultou-se em prisões, mortes e degredos, resolvi, sem comunicar ao senhor meu pai, exonerar-me do cargo de ouvidor em Soledade de Itajubá. Janelas fechadas do enorme sobrado. Lado de fora do enorme sobrado. O Narrador está próximo das portas fechadas do enorme sobrado em companhia de alguns senhores, de várias idades, muito bem vestidos. NARRADOR (VOICE OVER) Creio que o meu impulso maior para essa decisão foi ao saber que o meu amigo Gonzaga fazia parte do movimento da revolta em prol de uma autonomia à nossa colônia. Embora tudo desse errado, passei a admirar mais o meu amigo Gonzaga, que, mesmo preso, enfrentou o destino dele com dignidade. O Narrador acena-se as mãos aos senhores, de várias idades e, acomodado em um cavalo, alia-se aos dois homens pardos. Patas de cavalos e de jumentos carregando cargas marcham lentamente pela estrada em silêncio. SEQUÊNCIA 15 - INT./EXT./ DIA. VILA RICA. IGREJA DE SÃO FRANCISCO. 27 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Igreja de São Francisco de Assis. Bancos da igreja. O Narrador está ajoelhado em um dos bancos da igreja frente ao altar-mor. Lábios do Narrador balbuciando preces. NARRADOR (VOICE OVER) Eu tinha uma promessa para cumprir. Gonzaga, certamente, aguardava por mim. Eu não podia acovardar-me e devido a minha dignidade, procurei um amigo, Juvêncio, em Vila Rica, para que ele conseguisse para mim uma autorização com o governador de Minas para eu visitar Gonzaga em seu longínquo confinamento, em São Sebastião do Rio de Janeiro, na Ilha das Cobras. Portas laterais da igreja de São Francisco de Assis. Um moço de 30 anos, cor parda, baixo, magro, cabelos pretos e lisos entra em uma das portas laterais da igreja que está aberta, O nome do moço é JUVÊNCIO. Ele entra na igreja com um cartucho na mão, procurando pelo Narrador. Ele vê o Narrador ajoelhado em um dos bancos da igreja e va ao encontro dele. O Narrador vê Juvêncio ao seu lado e mostra-se surpreso. NARRADOR Juvêncio! Que bom ver-te cá, ainda tão cedo... JUVÊNCIO (sorri e toca o cartucho na cabeça do Narrador) Quando os amigos pedem algum favor para mim, eu prometo cumpri-lo. (entrega o cartucho ao Narrador, prosseguindo a fala) Cá, está a encomenda. Consegui através de um amigo comendador, a permissão para que vós mercê possa ir ao Forte da ilha das Cobras, visitar o seu amigo Gonzaga... NARRADOR Que bom, Juvêncio! Conseguiste?! 28 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior O Narrador abre o cartucho e observa o pergaminho com os olhos arregalados. Ele olha para Juvêncio com um ar de felicidade. NARRADOR O senhor meu pai acha tudo isso uma loucura, mas como eu fiquei a dever uma promessa ao Gonzaga, creio que não custa tentar ajudá-lo. Dizem que promessa é promessa e eu fiquei a devê-lo uma... JUVÊNCIO (toca nos ombros do Narrador) E que promessa, meu caro amigo! Mal sabes o que pode estar por vir atrás desta promessa. Lembra-te dos que partiram desta vida tão tragicamente, devido a promessas em prol da colônia. NARRADOR Isto é verdade, Juvêncio, mas terei cautela, daqui por diante... JUVÊNCIO Isto mesmo, eu ia recomendar-te isso. Antes da promessa ao tal Gonzaga, tenha cautela, prezado amigo com a viagem para São Sebastião do Rio de Janeiro. Sabes que a viagem é longa. É preciso que vós mercê invista numa confiável caravana... NARRADOR (olha para Juvêncio e para o pergaminho) Agradeço ao amigo pela autorização e pela preocupação de promessa de Gonzaga e da minha longa viagem. Porém, deixo-o tranquilo, primeiro prometendo ser cauteloso e segundo, consultar o senhor meu pai para que ele ajude a mim, quanto aos companheiros de viagem. Logo que eu colocar o senhor meu pai a par de minhas aventuras, ele, decerto e, sem dúvida, se empenhará em arranjar para mim uma boa caravana a quem ele e eu possamos confiar a viagem... 29 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JUVÊNCIO Garanto ao amigo, que, com essa autorização, a que tens em mãos, expedida pelo governador de Minas, não terás dificuldade alguma para encontrar o teu amigo Gonzaga. Pergaminho na mão do Narrrador. O Narrador enrola o pergaminho deixando-o em forma de cartucho novamente. O NARRADOR OLHA SATISFEITO PARA JUVÊNCIO. SEQUÊNCIA 16 - INT./NOITE. RICA. TERRENO BALDIO. TEMPO NUBLADO. VILA Tempo nublado, terreno baldio no fundo de uma das igrejas da cidade. Alguns homens ou tropeiros montados em seus cavalos seguram jumentos pelas rédeas. Cargas nos lombos dos jumentos. O Narrador afasta-se do pai e se junta aos homens ou tropeiros. O Pai do Narrador, montado no cavalo, aperta a rédea do cavalo e, parado, tira o chapéu da cabeça e acena ao Narrador. O Narrador puxa a rédea do cavalo, afrouxa-a e vira em direção ao pai. Mãos do Narrador acenando-se para o pai. Cavalos iniciam-se a grande viagem para São Sebastião do Rio de Janeiro. Estrada. Patas dos cavalos marchando pela estrada. Homens ou tropeiros, juntamente com o Narrador, seguem a viagem. Pai do Narrador, montado em um cavalo observa os tropeiros desaparecerem entre uma nuvem de poeira. NARRADOR (VOICE OVER) Após receber das mãos de Juvêncio a carta de autorização, contei ao meu pai o plano de visitar o amigo Gonzaga na Ilha das Cobras, em São Sebastião do Rio de Janeiro. Ele, contudo, não fez nenhuma objeção. Conforme, eu esperava, ele indicou para mim uma caravana confiável para que eu viajasse e deixasse a minha mãe e ele, despreocupados. 30 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 17 - EXT./DIA. SERRA DA FORTALEZA DO PATRIARCA DE SÃO JOSÉ DA ILHA DAS COBRAS. Tarde. O Narrador e os três cavaleiros chegam a um ponto alto de uma bonita serra de São Sebastião do Rio de Janeiro. Eles fream os cavalos e miram do alto da bonita serra a Ilha das Cobras. O Narrador, surpreso, sorri. O Narrador e os três cavaleiros tiram os chapéus da cabeça e limpam os suores da testa. O Narrador, fixa a serra e olha para os três cavaleiros. NARRADOR Dizem que nesta ilha tinha em si infinitas cobras e essas muito peçonhentas, e por isso, deram-lhe o nome de ilha das Cobras. Por incrível que pareça, segundo contam, alguns que, por cá estiveram, as cobras agasalhadas nos leitos desta ilha, nunca fizerm mal algum a ninguém. Cá estou eu, não para enfrentá-las, mas para aceitar o desafio de se cumprir uma promessa a um amigo. UM DOS TRÊS CAVALEIROS A nossa missão encerra aqui, senhor... Agora, basta o senhor descer a serra e logo estará dentro do forte de São José da Ilha das Cobras. NARRADOR Cá, sinto-me seguro, senhores... Sela do cavalo do Narrador. Alforje preso à sela do cavalo. O Narrador pega o alforje preso á sela e retira de dentro dele um pequeno saco de pano com moedas. Ele balança o saco de moedas, apontando-o aos três cavaleiros. NARRADOR Aqui está o pagamento e creio que há um pouco mais do preço combinado... 31 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Os três cavaleiros olham para o Narrador. O Narrador atira o pequeno saco de moedas pelo ar em direção aos três cavaleiros. Um dos três cavaleiros apara o pequeno saco de moeda. O Narrador tira o chapéu e cumprimenta os três cavaleiros. Os três cavaleiros acenam as mãos para o Narrador e saem cavalgando por uma pequena trilha. O Narrador afrouxa a rédea do cavalo e desce a serra. Visão panorâmica da Fortaleza do Patriarca de São José da Ilha das Cobras. Pôr-do-sol. O Narrador entra na pequena vila. Três alferes magros, altos e olhos escuros, vão ao encontro do Narrador. SEQUÊNCIA 18 - INT./EXT. DIA. SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO. FORTALEZA DE SÃO JOSÉ DA ILHA DAS COBRAS. MASMORRA. CELA DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA. Interior da cela onde está Tomás Antônio Gonzaga. Barulho de passos. O Narrador aproxima-se de uma enorme porta de grades de ferro. Frestas de luzes no interior da cela. Há, no interior da cela, uma cama. Na cama há um homem sentado. O homem é Tomás Antônio Gonzaga. Ele está magro, mal vestido, cabelos longos e barba grande. Tomás Antônio Gonzaga levanta-se de ímpeto da cama e aproxima-se da porta de grades. O Narrador olha para Tomás Antônio Gonzaga. NARRADOR (VOICE OVER) Penalizei ao ver o ex-ouvidor e poeta escondido naquela minúscula e escura cela. A verdade verdadeira era que Gonzaga encontrava-se ali, preso, incomunicável, desde todo o período da longa devassa. Abati-me ao vê-lo desamparado naquela masmorra aguardando uma sentença ou qualquer palavra a favor ou contra a vida dele. Confesso que eu não encontrava palavras para confortá-lo. Porta de grades da cela. Tomás Antônio Gonzaga frente ao Narrador na porta de grades da cela. Ele olha surpreso para o Narrador. 32 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Eu sabia que podia contar contigo... NARRADOR (assustado, vasculha com os olhos todo o ambiente) Ainda te lembras de mim? Cá estou para cumprir a promessa... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Como não, claro? O jovem a quem conheci através do cônego Luís Vieira. Como conseguiste chegar a mim? NARRADOR Tudo o que importa é que eu fiquei a dever-te o cumprimento de uma promessa e cá estou... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Isto é muito importante para mim... Interior da Cela. Tomás Antônio Gonzaga dirige-se a uma mesa pequena onde mesa há tinteiro, papéis, um livro, moringa de água em pedra sabão, um prato e uma caneca. Ele pega a caneca e volta até a porta de grades. Tomás Antônio Gonzaga bate a caneca nas grades da porta. O Narrador assusta-se. Corredor escuro, passos apressados vindos pelo corredor escuro. Dois dragões, um de cor parda, 40 anos, outro de cor clara, 32 anos de idade. Os dois dragões se aproximam da porta de ferro da cela onde está Tomás Antônio Gonzaga. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Por favor, senhores, preciso que permitam a entrada deste jovem em minha cela... O dragão de cor parda revista o Narrador. O dragão de cor clara abre a porta de ferro da cela. O Narrador entra na cela um pouco acanhado. O dragão de cor clara tranca a cela e sai juntamente com o outro dragão de cor parda pelo corredor. Interior da cela de Tomás Antônio Gonzaga. 33 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior O Narrador, no interior da cela, vasculha todo o ambiente com os olhos. O Narrador fixa o olhos em Tomás Antônio Gonzaga, que encontra-se desfigurado, tanto na aparência, quanto nas vestimentas. NARRADOR Então, qual é a promessa que compete a mim, cumprir-te? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (aproxima-se do Narrador e fala com um tom sóbrio) É uma promessa simples, tu a entenderás como a um conselho. NARRADOR Qual? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (denota-se um pouco angustiado) Tu és ainda muito jovem, viverás muito. Portanto, ouça o que tenho para dizer-te. Por ceitil algum venda a tua liberdade. Também não te arrisques, jamais, perdê-la em prol da coletividade... NARRADOR Não valeu a pena viver ideias revolucionárias? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (um pouco confuso, ainda denotando angústia) Não ouso questionar-me, prefiro deixar ao julgo da posterioridade. O que posso afirmar-te, neste momento, caro jovem, é que não me arrependo de forma alguma ter feito parte do grupo idealista e sonhador. O pior de tudo foi o nosso emblema. Quando pensamos na coletividade, esquecemos da ala da minoria que nos reteve todas as forças. Nessa ala havia poucos homens, mas, infelizmente, poderosos, capazes de vender a liberdade do povo brasileiro pelo vil metal... 34 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior NARRADOR Estás a pedires que eu viva uma liberdade centrada em meus interesses próprios? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Se entendeste bem... NARRADOR (coça a cabeça, esfrega o nariz com os dedos e espirra devido à poeira do cárcere) Não foi em nome da liberdade de interesses próprios que o coronel Silvério traiu todo o grupo? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Sim! O mesmo não fez o Iscariotes? Não pregarei para ti uma liberdade individual, covarde. Falarei para ti de uma liberdade individual em que mantenha na alma todo o brio e o caráter de confiar na força coletiva... NARRADOR Não consigo entender aonde queres chegar... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA És ainda muito jovem, meu amigo. Somente reconhecerás o valor das coisas, mesmo que estas coisas forem mundanas, quando tornares um gajo consciente, maduro... O senhor meu pai sempre pregava a mim que o amadurecimento surge da dor... Agora, creio a razão dele, principalmente ao ver-me cá, entre um ou a poucos dias a ser arrastado para uma terra nunca vista antes. Não serei lá um aventureiro, mas um prisioneiro... NARRADOR Então, tu sabes qual é a tua sentença? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA 35 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Sim, tudo indica que serei banido à África... NARRADOR Como sabes? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Alguém adiantou para mim... Lá, manter-me-ei vivo, mesmo louco, em memória de três grandes pessoas, quais, sem dúvida, perderam a vida nessa honrosa empreitada. Um foi o poeta Cláudio Manuel da Costa. Outro, o alferes, Joaquim José da Silva Xavier e a outra uma mulher, que embora esteja viva, nutrirá até os fins dos seus dias a esperança de um amor impossível. NARRADOR (os olhos turvam-se de lágrimas) Tu estás a falar de dona Maria Joaquina de Dorotéia? Tomás Antônio Gonzaga balança a cabeça afirmando "sim". Bolsos da calça de Tomás Antônio Gonzaga. Ele retira de dentro de um dos bolsos um pedaço de papel e abre-o. No pedaço de papel há escrito um poema, ele lê recita-o, lendo. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Conheço a ilusão minha;/ a violência da mágoa não suporto;/ foge-me a vista e caio,/ não sei se vivo ou morto./ Enternece-se Amor de estrago tanto;/ reclina-me no peito, e com mão terna/ me limpa os olhos do salgado pranto. O Narrador olha firmemente para Tomás Antônio Gonzaga. Dos olhos de Tomás Antônio Gonzaga saltam algumas lágrimas. Ele embola o papel e enfia-o em um dos bolsos da calça. Toca nos ombros do Narrador. 36 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Aos que continuaram vivos, prezado jovem, bem sabes, nada restou senão o degredo, principalmente a mim. NARRADOR Então não valeu a pena viver ideias revolucionárias? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (voz trêmula) Não importa eu questionar se valeu a pena ter vivido ideias revolucionárias, ou não. Por favor, não tortures a mim, com este tipo de pergunta. Posso dizer-te uma coisa: tudo ao homem serve de experiência. Eu também quero que vós mercê viva uma, assim como eu gostaria, também, de vivê-la intensamente. Trata-se de uma aventura em que apenas o coração compadece, mas depois, de gostosas lutas, se ganha as suas devidas recompensas... Por isso quero que cumpras a minha promessa... Meu tempo é curto. Sonhei um dia fazer desta colônia um país livre. Portanto, em nome de uma liberdade individual e honrosa, restaram-me os sonhos... NARRADOR (resposta súbita) Quais sonhos? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (aponta a velha cama ao Narrador) Sente-se ali, por favor, naquele velho e humilde catre... Cama de Tomás Antônio Gonzaga quase encostada à parede da masmorra. Tomás Antônio Gonzaga e o Narrador vão até a cama. O Narrador senta-se na cama. Tomás Antônio Gonzaga fica em pé, frente ao Narrador. 37 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior NARRADOR (VOICE OVER) Quando sentei no velho catre, creio que eu aceitei jogar com Gonzaga. Fixei o meu olhar no dele e permiti que ele cumprisse a tarefa misteriosa que lhe cabia. Ele passou as mãos no meu rosto, fitou-me com um olhar sereno e aos poucos falou, murmurando. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Olhe profundamente nos meus olhos, prezado jovem... O Narrador olha nos olhos de Tomás Antônio Gonzaga. Tomás Antônio Gonzaga ajoelha-se frente ao Narrador, arregalando-lhe os olhos e falando murmuramente. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Farei a ti um presente. Ouça bem isso, a liberdade é o maior bem que o homem possui, goze eternamente dela. Quando observares a constelação do céu, deixe que uma estrela o seduza. Quando cá, na terra, encontrares com essa estrela, por favor, ame-a com toda a força do teu coração e assim, cumprirás a minha promessa... Nunca esqueças que o amor é universal e, quando sincero, eterno. Não deixe que os homens o escravizem pelo vil metal. Se sob o solo há ouro e prata, sobre ele há mais riquezas do que o homem possa imaginar. A liberdade não está no poder de ter e de possuir, mas no poder de viver e avaliar a essência da vida nas coisas mais simples. Carpe diem! O Narrador continua sentado na cama e Tomás Antônio Gonzaga ao lado dele balbuciando algumas palavras. NARRADOR (VOICE OVER) Abaixei a cabeça, fechei os olhos e deixei as suas palavras penetrarem em minha mente. Ele surpreendeu-me um pouco mais... 38 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Por falar em simplicidade, em nome de toda pureza, tu agora, meu jovem, serás conhecido como Dirceu. Tu serás confundido a mim, porque, a partir de agora, nós dois seremos uma só alma, o suficiente para que possamos ser eternos nas memórias das futuras gerações. Eu, lá em terras desconhecidas, expatriado. Tu, cá, no Brasil a viveres os desejos a mim proibidos. Não sei se esses desejos foram proibidos pelo destino, ou por mim mesmo. A única impressão que trago comigo é que tudo isso estava escrito num grande livro e bastou um leitor atrever a lê-lo, para que a história acontecesse... O Narrador coloca-se de pé, abre bem os olhos e tenta falar alguma coisa, mas é interrompido por Tomás Antônio Gonzaga. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA A história aconteceu sem que os meus desejos cumprissem, meu jovem... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (olhos cheios de lágrimas) Portanto, meu amigo, creio que um dos meus desejos poderá ser vivido por ti... TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (sorri esperançoso aumentando o tom de voz) Sim, tu irás viver um deles e se não fores feliz, perdoe-me, por favor. Quero que saibas, antes de tudo, que toda tentativa de se fazer alguma coisa, em prol de um dos meus desejos, será válida. Tomás Antônio Gonzaga pega novamente a caneca em cima da mesa, aproxima-se da porta e bate-a na grade da porta. Barulho de passos 39 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior rápidos vindo do corredor. O dragão de cor clara aparece na porta da cela trazendo nas mãos um pacote. O Dragão de cor clara espia o interior da cela. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Prezado senhor, se for possível, por favor, peça ao alferesmor que devolva para mim o meu matolão de couro. Eu mesmo pedi para que ele guardasse-o para mim. Preciso dele, neste momento. DRAGÃO LOIRO Ora, ora, senhor ouvidor, parece que nós estávamos adivinhando. Desde a semana passada estou com esta encomenda para entregá-lo. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (olha para o pacote na mão do dragão loiro) Tens certeza que essa encomenda é para mim? DRAGÃO LOIRO Sim, creio que neste pacote esteja o matolão de couro de vossa senhoria. O alferes, a quem vossa senhoria chamava de alferes-mor foi promovido para outra comarca. Há dias, ele pegou estrada. O dragão de cor clara abre um pequeno compartimento da porta e entrega o pacote para Tomás Antônio Gonzaga. O dragão de cor clara fecha o compartimento e afasta-se da cela. Tomás Antônio Gonzaga com o pacote agarrado entre os peitos dirige-se até o Narrador. O Narrador está em pé, próximo à mesa e recebe o pacote das mãos de Tomás Antônio Gonzaga. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Prezado gajo, leve isto contigo. Teu lugar não é cá, não é nas terras aonde irei e, nem tampouco em Vila Rica. Tu viverás a natureza, completarás a ela e deixarás a tua alma ultrapassar 40 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior todas as barreiras. Quando quiseres tornar-te humano, poderás sê-lo; se quiseres tornar-te um deus, também. Tanto homem, quanto deus, tu tornarás um eterno herói. Quanto a mim, ao colocar-me os pés na pátria desamada, nas terras forjadas, inventadas para o meu degredo, lá não passarei de um simples Gonzaga. Lá serei puramente carne e osso. Mas, tu, cujo viverás aqui, serás o meu espírito, cheio de aventuras, realizações e desejos. Chegarei ao ponto de enlouquecer, mas a minha loucura o mundo compreenderá, graças a vossa mercê, que sentirás na alma, o verdadeiro Dirceu. O Narrador demonstra-se surpreso e confuso. NARRADOR Dirceu? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Sim, Dirceu. Tu, mesmo sem saberes, vestirás este matolão e conquistarás o teu maior sonho. Assim, tu realizarás a minha promessa. Tomás Antônio Gonzaga aponta para o Narrador o fundo da parede. O quarto enche-se de luz. Na parede do fundo surge uma bonita bandeira com o símbolo da Santíssima Trindade gravados em suas bordas os seguintes dizeres: “LIBERTAS QUAE SERA TAMEM”. Desfaz-se a luz clara. Tomás Antônio Gonzaga dirige-se até a mesa. Em cima da mesa há um grande livro. Tomás Antônio Gonzaga abre o grande livro ao meio. Na página do livro aberto ao meio há um desenho de uma pequena caixa de madeira. Tomás Antônio Gonzaga passa as mãos na figura da caixa desenhada e, magicamente, retira-a da página do grande livro. Tomás Antônio Gonzaga está com a pequena caixa retirada da página do livro nas mãos. Ele olha para o Narrador e sorri. Tomás Antônio Gonzaga aproxima-se do Narrador e abre cuidadosamente a pequena caixa de madeira. Dentro da pequena caixa de madeira há restos de cinza. Tomás Antônio Gonzaga mostra os restos de cinza que há na pequena caixa de madeira para o Narrador. 41 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Estas cinzas são os restos mortais da minha história. Eu as lançarei ao vento e tu darás início à outra... NARRADOR Como assim? TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (voz sob efeito sonoro) Tu serás o meu personagem. A promessa que cumprirás a mim consiste em viveres a minha história, qual, o destino recusou-me a vivê-la... Pequena caixa de madeira nas mãos de Tomás Antônio Gonzaga. Tomás Antônio Gonzaga sopra a cinza de dentro da pequena caixa de madeira. A cinza voa em direção ao grande livro aberto ao meio. O grande livro cresce gradualmente. O vento abre as páginas do grande livro, até fixar a uma página, onde há uma figura de uma linda colina verdejante e um cavalo arreado pastando numa campina verde. Tomás Antônio Gonzaga olha para o Narrador. Ele ainda está com a pequena caixa de madeira aberta nas mãos. Ele sopra o restante da cinza que está na pequena caixa de madeira para a direção do Narrador. As cinzas sopradas por Tomás Antônio Gonzaga formam um redemoinho. O redemoinho transfere o Narrador para a página do grande livro. O Narrador aparece na figura do grande livro montado no cavalo. A página do grande livro ganha a dimensão de uma tela. O Narrador cavalga por uma estrada de uma linda colina verdejante. Tomás Antônio Gonzaga fica olhando para a grande tela. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA A partir de agora, prezado jovem, tu serás o meu eterno personagem. Tu chamarás Dirceu e viverás um eterno romance de aventura, amor e mistério... NOTA IMPORTANTE: a partir das sequências seguintes o Narrador passará a ser um personagem de Tomás Antônio Gonzaga. O nome 42 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior dele será DIRCEU, um simples vaqueiro e personagem principal de toda a trama. SEQUÊNCIA 19 - EXT./INT./ DIA. COLINA VERDEJANTE. CASA SIMPLES COM VARANDA. Tarde. Linda colina verdejante. DIRCEU cavalga em seu cavalo numa estrada da colina verdejante tomando a direção de uma casa simples com varanda vista em um dos pontos da colina verdejante. Dirceu afrouxa a rédea do cavalo e apressa o galope. Casa simples com varanda, relvado no terreiro de frente da casa e currais de ovelhas, gados, galinhas e porcos no fundo do quintal. Os animais berram impacientes no cercado. Zé Antônio, de cor branca, esguio e idoso, 60 anos, pai de Dirceu, arruma a cerca de um velho chiqueiro de porcos. Uma das janelas da casa simples com varanda bate-se com o vento. Dirceu montado no cavalo aproxima-se da varanda da casa. Maria Antônia, uma mulher negra, 50 anos, magra e alta, aparece em um das janelas de frente da casa simples com varanda e acena as mãos para Dirceu. Ele chega no quintal de frente da casa simples com varanda. Janela aberta da casa simples com varanda. Maria Antônia aparece na janela aberta e ao ver Dirceu se aproximar da varanda da casa, ela foge da janela enfiando a cabeça para dentro. Dirceu apeia-se do cavalo em frente à varanda da casa simples. Porta aberta da frente da casa simples com varanda. Maria Antônia sai pela porta de frente da casa simples com varanda. Maria Antônia vai ao encontro de Dirceu. Mãos de Dirceu desamarrando um grande alforje preso à sela do cavalo. Maria Antônia aproxima-se de Dirceu. Grande alforje nas mãos de Dirceu. Ele vê Maria Antônia e entrega a ela o grande alforje. Maria Antônia recebe o grande alforje e coloca-o no chão, em um dos cantos da varanda. Dirceu puxa a rédea do cavalo e amarra-o numa cerca de madeira no quintal de frente da casa simples com varanda. MARIA ANTÔNIA Nhozinho deve tá com fome. Todas às vezes quando nhozinho vai na freguesia, volta com fome e cansado. A 43 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior comida tá no fogão, quentinha. Parece que na freguesia não dão comida pra nhozinho... DIRCEU (amarra o cavalo em um dos paus da cerca, enquanto fala) Comida, isso tem lá, Maria Antônia. Mas igual a sua, não existe em freguesia alguma... MARIA ANTÔNIA Quá, isso aí é prosa de nhozinho. Alguém por lá faz até mió. Em Vila Rica e Mariana tá cheia de negas cozinheiras das boas. Dirceu tira o chapéu de vaqueiro e entra na sala da casa. Maria Antônia acompanha Dirceu até a sala. Chapéu nas mãos de Dirceu. Maria Antônia tira o chapéu das mãos de Dirceu. Cabide em um dos cantos da sala. Maria Antônia coloca o chapéu de Dirceu no cabide. DIRCEU Tô dizendo isso tudo, não é porque eu tô com fome não, negra velha, é porque passei o dia rodando em Vila Rica para resolver algumas capenguices do senhor meu pai. Eu pensei em comer naquelas pensãozinhas de lá, mas como eu estava com pressa, acabei deixando para comer cá. Como a sua comida é gostosa, vale a pena qualquer sacrifício. MARIA ANTÔNIA Quá, menino besta. Isso tudo é só para engabelar a nega, aqui... Cozinha. Dirceu marcha para a cozinha da casa simples com varanda. Maria Antônia segue atrás dele. Dirceu passa os olhos em toda a cozinha. 44 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Torresmo, linguiça e feijão de tropeiro. Depois queijo com rapadura ou melado. DIRCEU (olha para um pequeno pote em um suporte da parede) Está tudo ali, embalado nos potes... MARIA ANTÔNIA Deixa de tanta faladeira besta, nhozinho. Fogão de lenha da cozinha da casa simples com varanda. Prato em cima do fogão de lenha. Maria Antônia pega o prato em cima do fogão e o entrega para Dirceu. MARIA ANTÔNIA Tão aqui esse prato, nhozinho, põe a comida do tanto que vossemecê gosta e farta essa pança vazia... Até parece menino que num cresce... Dirceu pega o prato. Os dois dão risadas. Porta da cozinha. Zé Antônio, pai de Dirceu, branco, alto e magro, de aproximadamente 50 anos de idade, aparece na porta da cozinha. Zé Antônio olha para Dirceu. Dirceu mastiga uma colherada de comida e, em seguida, olha para Zé Antônio. DIRCEU Tudo resolvido meu pai, tudo resolvido. Já, já esclareço ao senhor todo o meu feitio. O moço entregou-me o dinheiro e disse que o negócio foi muito bom... ZÉ ANTÔNIO Foi sim, pois haveria de ser... Bom, muito bom... Aquele português é muito ganancioso. (faz uma pausa rindo maliciosamente) 45 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Coma devagar, sem pressa, depois, conte-me os detalhes... Vou aguardar vós mercê na varanda, para vós mercê colocarme a par de tudo... Dirceu levanta-se da mesinha, vai até ao fogão e enfia uma colher de pau no caldeirão de feijão. Dirceu apenas olha para Zé Antônio e responde "sim", com a cabeça. Zé Antônio sai da cozinha. SEQUÊNCIA 20 – INT./EXT./ NOITE. CASA SIMPLES COM VARANDA. Noite. Varanda. Uma rede balança na varanda. Dirceu está deitado na rede que balança na varanda. Interior da casa simples com varanda. Luz fraca no interior da casa simples com varanda. A porta de um quarto abre-se. Sai Maria Antônia da porta de um quarto que se abre. Ela anda pelo corredor e aproxima-se de outra porta. A porta é a do quarto de Zé Antônio. Maria Antônia abre a porta do quarto de Zé Antônio e entra. Interior do quarto de Zé Antônio. Criado mudo. Mãos de Zé Antônio acendendo uma candeia. Candeia acesa. Zé Antônio está sentado na cama de casal. Maria Antônia, em pé, deixa a roupa do corpo cair no chão. Zé Antônio deitado olha para Maria Antônia. Ela está nua e deitase na cama ao lado de Zé Antônio. Zé Antônio deita-se por cima de Maria Antônia. Ele apaga a candeia com um sopro. Quarto escuro. Zé Antônio e Maria Antônia amam-se no escuro. Escutam-se gemidos de prazer de Maria Antônia e Zé Antônio. SEQUÊNCIA 21 – INT./EXT./NOITE/ DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Varanda da casa simples. Chapéu de Dirceu caído no chão próximo a rede. Rede balançando suavemente com Dirceu deitado nela. As pernas de Dirceu estão forradas com um gibão de couro. 46 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 22 - FLASH BACK – SONHO DE DIRCEU. VÁRIOS. Céu. Estrela brilhando no céu. Dirceu, vestido de pastor, está sentado em um banco de nuvens, no meio das estrelas. As estrelas transformamse em ovelhas e pastam em um imenso campo verde e azul. A Lua brinca de esconde-esconde por entre as nuvens escuras. A Lua, ora aparece, ora some. Dirceu levanta-se segurando um cajado e olha rápido para uma direção do céu, de onde surge um cometa, transformando-se em um lobo. Dirceu ataca o lobo com o cajado. Ele toca o cajado no lobo. O lobo se desfaz em cinzas. Vê-se um bonito trono. Dirceu sentase em no bonito trono. As estrelas transformam-se em lindas pastoras e formam-se em círculo ao redor do bonito trono, onde Dirceu está sentado. A Lua abaixa-se e de dentro dela surge uma linda pastora com uma coroa de flores na cabeça. A pastora é MARÍLIA, loira, olhos claros e pele branca e delicada. Marília aproxima-se do trono de Dirceu, tira a coroa da cabeça e coloca-a na cabeça de Dirceu. SEQUÊNCIA VARANDA. 23 - INT./NOITE. CASA SIMPLES COM Rede balança. Mão de Dirceu passando-se pela cabeça. Dirceu corda assustado, levanta-se da rede e vai para o quintal da frente da casa simples com varanda. Dirceu está no quintal olhando para o céu. SEQUÊNCIA 24 - EXT./NOITE. CASA SIMPLES COM VARANDA. Noite. Quintal da casa simples com varanda. Céu. Estrelas brilham no céu. Dirceu, em pé no relvado, fica a observar as estrela brilharem no céu. O cenário é envolvente, como um vídeo game, qual jogo se expande a todas as galáxias. Relvado. Dirceu, sentado no relvado, fita as estrelas do céu. Uma estrela no céu brilha fortemente. Dirceu levanta-se 47 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior do relvado e, em pé, fica a mirar a estrela que brilha fortemente. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Qual mistério há naquela estrela, capaz de fazer-me abandonar todas as outras para olhar só para ela? Será aquela estrela, a Alpha Andromedae, conhecida comumente como Alpheratz? Ah, sim, decerto, a estrela mais brilhante da constelação... Senão, seria ela a Alpha Bootis ou Arcturus, que dá guarda à Ursa Maior? Ou que sabe a Maravilha da Baleia, descoberta em 1596, por David Fabricius. Não, ela não haveria de ser nenhuma dessas estrelas já conhecidas e estudadas pelos homens. A estrela intensifica-se o brilho. Dirceu sorri e continua a falar por solilóquio. DIRCEU Será se aquela estrela quer transformar-me num poeta, num versejador, capaz de cantá-la em meus versos? Ah, posso dizer que ela é a minha estrela, talvez uma das sete filhas de Arlas, formadoras do aglomerado das Plêiades. Claro, quem sabe ela não seria uma das sete filhas de Arlas, ou talvez de Eta Tauri, conhecida pelo nome de Alcyone. Não, nada disso. (faz uma pausa, olha fixamente para o céu e prossegue o silóquio) Aquela estrela não tem nome, ela surgiu no céu naquele instante para ser contemplada por mim... Aquela estrela é a minha Estrela, eu haverei de dar-lhe um nome, personificá-la, transportá-la em forma humana para a terra, casar-me com ela e fazê-la eternamente feliz. (sorri, feito um louco) Por enquanto, ela será para mim um mistério, um segredo somente meu. 48 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 25 - EXT. /NOITE. VÁRIOS LUGARES DA COLINA. Dirceu está enrolado com o gibão de couro em vários lugares da colina, à noite, observando a estrela cintilante no céu. Há uma ilusão de que ele está fazendo uma grande viagem etérea e só a termina quando amanhece o dia. SEQUÊNCIA 26 - INT./ NOITE. CASA SIMPLES COM VARANDA. QUARTO DE DIRCEU. Madrugada. Barulho de chuva no telhado da casa simples com varanda. Escuta-se o cantar do galo. Quarto de Dirceu. Ele está dormindo na cama, virando-se de um lado para o outro. SEQUÊNCIA 27 - INT./EXT. NOITE/DIA. VÁRIOS (IMAGENS ONÍRICAS). Flash back – Sonho de Dirceu Uma estrela brilha no céu intensamente transformando-se paulatinamente em uma figura humana de uma mulher, vestida igual a Iemanjá. Esta mulher é Marília. Há um excesso de luz sobre o corpo dela. Ela desce do céu feito um facho de luz e choca-se na janela do quarto de Dirceu. Marília chama por Dirceu com a voz sob efeito sonoro. MARÍLIA Dirceu! Dirceu! Quarto de Dirceu. Janela. Dirceu abre a janela. Intenso facho de luz invade a janela e todo o quarto de Dirceu. Ele tapa o rosto com as mãos. 49 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Quem é que está a chamar por mim? MARÍLIA Sou eu, a sua estrela guia... DIRCEU (demonstra-se maravilhado) A minha estrela do céu? Eu sabia que vós mercê havia surgido no céu somente para mim... Se as estrelas são dos cientistas, eu, humilde vaqueiro, também sou digno de ter uma no céu? A luz diminui-se o brilho na janela e em todo o quarto. Marília está defronte à janela do quarto de Dirceu. Ele, encantado, olha para Marília. DIRCEU Olha só, a minha estrela parece uma menina, um anjo delicado, tão graciosa... Vieste mesmo do céu? MARÍLIA (voz suave, como se fosse o sussurro do vento) Sim, venho do céu! Porém, sou uma estrela oriunda do mar... DIRCEU Do mar? Mas em Minas não existe mar, Minas é somente campos, fazendas, vilas e povoados atraindo pessoas, devido ao ouro a jazer-se do chão. MARÍLIA Tornei-me uma estrela viajante de ilha em ilha, sob o ímpeto do mar, até que finalmente cheguei ao firmamento. Lá jurei resplandecer a minha luz somente para aquele que realmente for capaz de me amar... Em Minas não existe mar, mas tem as suas fontes cristalinas, onde esperarei por vossa mercê... 50 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Oh, minha pastora, minha estrela do mar, da fonte, das relvas, diga-me em qual fonte queres encontrar-me? MARÍLIA Venha, Dirceu, venha ao meu encontro! Dirceu aparece de repente em um maravilhoso relvado. Ele para e olha fixamente para Marília, qual está distante dele com os braços abertos. MARÍLIA Venha! Dirceu anda pelo relvado ao encontro de Marília. Ela anda pelo relvado ao encontro dele. Ambos se aproximam, mas não conseguem se tocarem. Ambos lado a lado correm pelo relvado. Aparece um rebanho de ovelhas no bonito relvado. Dirceu desvia-se do rebanho e cai no relvado. Marília, porém, continua correndo. Dirceu levanta-se e procura por Marília. Dirceu vê uma bonita fonte. Marília está nadando nua em uma bonita fonte. Dirceu corre para a fonte e se atira na água. A fonte transforma-se em um mar com ondas imensas. As ondas levam Marília. Dirceu enfrenta as ondas. Ao dar as primeiras braçadas Dirceu cai no terreiro de sua casa. Ele olha para o céu e vê Marília sorrindo entre o terrível labirinto de Cnossos. Dirceu senta-se no relvado. DIRCEU Onde haverei de encontrá-la? Onde está a minha estrela? Onde está a minha menina? No mar, na terra ou no céu? Não, não, vejo-a presa no terrível labirinto de Cnossos... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 26.1 – CONTINUIDADE - INT./ NOITE. QUARTO DE DIRCEU. 51 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Quarto de Dirceu. Dirceu acorda assustado. Ouve-se o cantar do galo. CORTA PARA SEQUÊNCIA 28 - EXT./DIA. FUNDO DO TERREIRO DA CASA SIMPLES COM VARANDA. Zé Antônio cuida dos animais no terreiro da casa. Maria Antônia sai da porta dos fundos da casa com uma cuia de milho para jogar às galinhas. Ela passa por Zé Antônio. ZÉ ANTÔNIO Dirceu acordou ou ainda está dormindo? MARIA ANTÔNIA Ele saiu do quarto não, "sinhô". MARIA ANTÔNIA (faz uma cara esquisita) O nhozinho, ultimamente, parece cansado, quase todos os dias só acorda depois do sol alto... ZÉ ANTÔNIO (toca umas cabras com uma vara) Não é bom quando um homem feito ele se deixa ser apanhado na cama, pelo sol. Outro dia ouvi-o na rede da varanda, sozinho, conversando com as estrelas do céu. Até parece que está louco. MARIA ANTÔNIA (ri um pouco espantada) Onde se viu gente conversar com estrelas?! (faz o sinal da cruz) Credo Deus pai poderoso, será se o "nhozinho" está ficando doido mesmo? 52 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZÉ ANTÔNIO Está nada, esses gajos de hoje vivem a inventar modas. Daqui a pouco está aí, dizendo que vai casar com uma estrela. MARIA ANTÔNIA Credo, Zé Antônio, vira essa boca pra lá. Casar com estrela? Eu acho que até nhô tá ficando doido... SEQUÊNCIA 29 – EXT./DIA. QUINTAL DO FUNDO DA CASA SIMPLES COM VARANDA. Tarde. Quintal do fundo da casa simples com varanda. Dirceu está carregando dois baldes com comidas (ou lavagens aos porcos. Ele tropeça em uma pedra e cai. Os baldes com comidas (ou lavagens) derramam sobre ele. Maria Antônia e Zé Antônio correm para socorrêlo. Maria Antônia e Zé Antônio tapam os narizes com as pontas dos dedos. Dirceu olha para o corpo sujo e faz uma careta de nojo. Todos dão risadas. ZÉ ANTÔNIO É nisso que dá, quando não se dorme direito para ficar perdendo tempo com estrelas... Ultimamente, Dirceu, vossemecê tá um tanto lerdo. É melhor investir no sono, dormir mais cedo e nda de ficar olhando estrelas ou não sei o que, no céu... SEQUÊNCIA VARANDA. 30 - INT./NOITE CASA SIMPLES COM Varanda da casa simples. Rede balançando. Dirceu está dormindo na rede. A rede trepida e Dirceu acorda assustado. Ele levanta-se da rede e olha para o céu. No céu não há estrelas. Ele anda cambaleando até a porta da frente da casa, empurra a porta e entra na sala. Candeia acessa em uma das mobílias do canto da sala. Ele dirige-se ao corredor, indo 53 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior até a porta do quarto de Zé Antônio. Ele empurra a porta do quarto de Zé Antônio, de ímpeto. Ele entra no quarto de Zé Antônio e tropeça numa caixa de couro que está em um dos cantos da entrada do quarto. Dirceu cai de joelhos no chão, soltando um gemido de dor. Zé Antônio acende-se uma candeia e vê Dirceu caído no chão. Zé Antônio senta na cama, puxa a coberta e cobre a nudez de Maria Antônia. Dirceu levantase e sai do quarto de Zé Antônio. Zé Antônio apaga a candeia com um sopro. No corredor da sala, Dirceu tropeça novamente em uma velha poltrona. Dirceu anda pelo corredor mancando no escuro. Porta do quarto de Maria Antônia está aberta. Dirceu entra no quarto de Maria Antônia e, meio desajeitado, atira-se na cama de Maria Antônia. Ele dorme na cama de Maria Antônia. Escridão total. SEQUÊNCIA 31 – INT./EXT. DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Manhã. Sol quente no quintal da casa simples com varanda. Porta do quarto de Maria Antônia aberto. Dirceu deitado na cama de Maria Antônia. Ele acorda com o barulho de animais vindo do terreiro e levanta-se de ímpeto da cama de Maria Antônia. Janela do quarto. Dirceu vai até a janela e abre. Ele vê a colina verdejante. O sol alcança quase toda a colina verdejante. Ele deixa a janela aberta do quarto e segue até a porta do quarto de Maria Antônia. Dirceu vai até o corredor e passa pelo quarto de Zé Antônio. A porta do quarto de Zé Antônio está aberta. Dirceu vê a cama de casal de Zé Antônio arrumada com um lençol velho. Cozinha. Dirceu entra na cozinha, olha para o fogão de lenha e para a mesa vazia. Ele aproxima-se da janela da cozinha, abre-a e espia o lado de fora. Ele vê ninguém no quintal do fundo da casa. Ele deixa a janela e vai até a porta da cozinha. Ele tira a trave da porta da cozinha e sai para o quintal do fundo da casa. Ele procura por Zé Antônio e por Maria Antônia. Ele somente vê os bichos no terreiro da casa. Ele retorna, a passos rápidos, para a casa simples com varanda. 54 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 32 – INT./EXT. DIA/NOITE. CASA SIMPLES COM VARANDA. Manhã. Dirceu no fogão de lenha da cozinha coando café em um enorme quador de pano. Quintal do fundo, Dirceu cuidando dos animais. Cozinha, Dirceu preparando a comida. Tarde. Quintal do fundo da casa simples com varanda, Dirceu capinando o mato e cuidando das plantas. Pôr-do-sol. Dirceu está deitado na rede da varanda. Noite. Dirceu está no relvado observando as estrelas. DIRCEU (VOICE OVER) Desde quando descobri que o senhor meu pai havia fugido de casa com a Maria Antônia, passei a aprender sozinho a cozinhar, a cuidar dos animais e a fazer pequenos reparos na roça. O início foi difícil, mas aos poucos aprendi a lidar com tudo aquilo que o meu pai confiou em mim, ou talvez, deixara a mim como castigo. Eu aprendi também a não varar as madrugadas, quando eu namorava a minha estrela, no terreiro, às noites. SEQUÊNCIA 33 – INT./EXT. DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Quintal do fundo da casa. Bichos inquietos no quintal do fundo da casa: cabras e bois berrando no curral e galinhas cocoricando e voando no galinheiro. Vulto de um homem correndo no terreiro da casa. Este vulto de homem é o de JOSIAS, um negro, magro, alto, boca e dentes aprumados, tem 35 anos de idade. CORTA PARA Quarto de Dirceu. Dirceu está deitado na cama e acorda assustado com o barulho dos animais, vindo do quintal do fundo da casa. Dirceu levanta-se apressado, corre até a janela do quarto, abre-a, espia o lado de fora do quintal. 55 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (fala por solilóquio) Estaria ali um lobo ou algum animal feroz para vitimar os meus animais? Escuta-se o cocoricar impaciente das galinhas. DIRCEU (fala por solilóquio) Uma raposa! Estaria ali uma raposa? Barulho das cabras e dos outros animais dos currais e dos chiqueiros. DIRCEU (fala por solilóquio) Um lobo, seria um lobo ou uma onça enorme? Dirceu fecha a janela do quarto e corre para a sala. Pau de travar portas em um canto da sala. Ele pega o pau de travar portas e corre para uma das portas, qual dá acesso ao fundo do quintal da casa. Ele ajeita-se o pau de travar porta nas mãos, abre a porta devagar e sai até o quintal do fundo da casa. CORTA PARA Vulto de Josias correndo no terreiro de frente da casa. Josias. Touceira de capim. Josias cai numa touceira de capim próxima ao passadiço do terreiro de frente da casa. Corpo de Josias caído na touceira de capim. CORTA PARA Quintal do fundo da casa. Pau de travar portas nas mãos de Dirceu. Dirceu sai andando devagar pelo fundo do quintal, passo a passo. Quintal do fundo da casa. Chiqueiro, curral, galinheiro. Dirceu espia todos os cantos oblíquos do quintal do fundo da casa. Ora ele abaixa, ora ele levanta o corpo, procurando proteger-se. Quintal frente ao 56 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior quintal da casa simples com varanda. Dirceu vai até o quintal da frente da casa. Dirceu olha para a touceira de capim. A touceira de capim balança. Dirceu aproxima-se da touceira de capim e abre-a com o pau de travar porta. Corpo de Josias caído no chão, atrás da touceira de capim. Dirceu vê o corpo de Josias caído no chão. Dirceu aproxima-se de Josias, ajeitando o pau de travar portas, nas mãos. Josias vira o rosto para Dirceu respirando fundo e gemendo de dor. Josias está com as roupas rasgadas, com arranhões pelo corpo e uma mordedura de cobra na perna direita. Ele tenta falar algo, mas se encontra fraco. Bota do pé esquerdo de Dirceu sobre o corpo de Josias. Dirceu balança o corpo de Josias com o pé esquerdo. DIRCEU O que queres cá, em minhas terras? Josias, com os lábios trêmulos e sujos de sangue, não consegue falar. Bota do pé esquerdo de Dirceu deixa de tocar o corpo de Josias. Dirceu atira longe o pau de travar portas e olha para o corpo de Josias. DIRCEU Meu Deus, que tanta desgraceira para um homem só. DIRCEU (olha para um lado e outro, baixa e arrasta o corpo de Josias até a varanda da casa) És um escravo fugitivo? Está sendo perseguido por homens de seu senhor e dono? JOSIAS (balança a cabeça dizendo "não", gemendo) Zenilda, onde está minha Zenilda... DIRCEU (põe-se de joelhos) Ainda tem mais essa, ele me faz perguntas sobre uma pessoa a quem não conheço? 57 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 34 – INT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. QUARTO DE MARIA ANTÔNIA. Josias no quarto deitado na cama a que pertencia a Maria Antônia. Sobre a testa de Josias há um pano branco com compressa quente. Pernas de Josias estendidas ao alto, por travesseiros improvisados. Perna direita enrolada com retalhos de panos brancos. Lábios de Josias balbuciando o nome de uma mulher chamada "Zenilda". DIRCEU (VOICE OVER) Zenilda, ele repetia esse nome sem cessar. Acolhi-o em minha casa, fi-lo deitar no velho catre que pertencia a Maria Antonia e arrumei mezinhas para curá-lo. Dias depois, o negro, que dizia chamar-se Josias, estava bom e pronto para relatar-me a sua história. CAPÍTULO 2 SEQUÊNCIAS 35-35.9 Personagens deste capítulo: Dirceu Josias Comandante Homens brancos e negros (tropa do comandante) Dom Miguel Pai de dom Miguel Dois irmãos de dom Miguel Cavaleiros de dom Miguel Raimundo Cocheiro de dom Miguel Jucá Homens brancos e negros (da fazenda de dom Miguel) Homem moreno Dois homens galegos Arigó 58 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Zenilda Safira Jera Escravos(as) das fazendas Homem branco de 40 anos Homem branco de 30 anos Mulher negra de 40 anos SEQUÊNCIA 35 - INT./ DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Legenda: "Algumas semanas depois”. Josias na varanda da casa simples sentado em um tamborete, com uma caneca na mão. Pernas de Dirceu balançando devagarzinho na rede da varanda. Dirceu está sentado na rede. Josias olha para o tempo e franje a testa. Caneca em uma das mãos de Josias. Ele bebe uma dose do líquido da caneca e faz uma cara ruim. JOSIAS Chá margoso, sô! As velhas sinhás que moram lá, de onde eu venho, diziam que chá margoso é que faz bem pra saúde. (bebe outra dose do líquido da caneca, colocando-a em seguida no chão e fazendo cara ruim) Não sei como nhozinho achou tanta erva por cá, capaz de me levantar tão rápido do catre... DIRCEU (olha para a cara feia de Josias e dá risadas) O senhor meu pai sempre me dizia que nesta colina tem de tudo, desde ouro, índios, bichos raros e até mesmo todos os tipos de mezinhas para curar as nossas dores, Josias. JOSIAS Nhô Dirceu é homem muito espirituoso, tem bondade de Deus no coração. Há de ser muito feliz no decorrer da vida... 59 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU A felicidade está para todos, Josias. Para tê-la, basta que cada um saiba como servir-se dela. Uns são felizes porque tem pouco, outros são infelizes, porque tem muito. O certo, porém, é que ninguém nunca se dará por satisfeito. Olha só, vós mercê, está cá, quase curado, mas não ainda feliz... JOSIAS Por qual modo está dizendo isso, nhô Dirceu? DIRCEU Todas as noites, desde que vós mercê chegou aqui, está a queimar de febre, gritando por uma mulher... JOSIAS (acanhado) A Zenilda, não é? Eu sei que é... DIRCEU (coloca os pés no chão e para de balançar da rede) É sim, Josias. E quem é essa Zenilda? JOSIAS (pega outro tamborete ao lado da rede e senta-se nele, aproximando-se mais de Dirceu) Vou contar para vossemecê a minha história, nhô Dirceu. Ela é cumprida, mas só vou contar o que se sucedeu de uns tempos prá cá. Daí Zenilda entra na história e, até onde ela fica, nhozinho vai conhecer... DIRCEU Vai lá, Josias. Nosso tempo hoje é todo aquele que podemos gastar... 60 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Josias se ajeita o corpo no tamborete. Dirceu levanta as pernas e recolhe-as para dentro da rede. Ele deita-se na rede de forma que dá para olhar para Josias. CORTA PARA SEQUÊNCIA 36 – EXT./DIA. ESTRADA. Flash back - Relato de Josias. Manhã. Estrada. Patas de cavalos levantando poeira na estrada. Cavalos. HOMENS BRANCOS E NEGROS vestidos de vaqueiros, cavalgando em seus respectivos cavalos, entre eles está Josias, com um enorme berrante amarrado na sela do seu cavalo. Riacho. Cavalos bebendo água no riacho e homens brancos e negros lavando o rosto no riacho. Tarde. Homens brancos e negros montando em seus cavalos. Poeira. Homens brancos e negros galopando em seus cavalos. Noite. Cavalos pastando no relvado. Redes amarradas em árvores. Homens brancos e negros deitados nas suas redes. Alguns homens brancos e negros deitados em suas redes fumam cigarros de palha, enquanto outros comem em cuias e bebem água nas cabaças. Homens brancos e negros dormindo em suas redes. Madrugada. Berrante. Barulho de berrante. Cavalos. Homens brancos e negros na estrada, montados em seus cavalos. Poeira levantase em uma encruzilhada. JOSIAS (VOICE OVER) Eu, nhô Dirceu era vaqueiro numa fazenda muito distante, que pertencia às terras da Bahia. O dono da propriedade tinha uma grande estima por mim, pois, igual a ninguém eu sabia conduzir boiadas quilométricas de fazenda a fazenda e região a região, por mais distantes que fossem umas das outras. Eu conheci muitos lugares da colônia, desde as fazendas pertencentes à capitania da Bahia, até Pernambuco, São Sebastião do Rio de Janeiro, São Paulo de Piratininga e Minas Gerais. 61 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Estrada. Homens brancos e negros cavalgando pela estrada. Josias assopra o seu berrante. Estrada. Vem na mesma estrada uma pequena carruagem, estando DOIS HOMENS NEGROS montados em cavalos, em suas laterais, cada um puxando dois burros com cargas e indumentos de viagem. CORTA PARA SEQUÊNCIA 35.1. INT./DIA - CASA SIMPLES COM VARANDA. Apenas a imagem de Josias narrando. JOSIAS Porém, nhozinho, a minha aventura de vaqueiro terminou quando, na volta de uma dessas viagens, um comandante de tropa decidiu agir de forma errônea ao armar, bestamente, uma tocaia contra uns tropeiros que eles avistaram numa estrada. A tropa era um bando de portugueses ricos que seguiam viagem para São Paulo de Piratininga. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 36.1 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS. EXT./DIA. ESTRADA. Homens brancos e negros troteando na estrada. O COMANDANTE da tropa, um senhor branco, de 50 anos, à frente, OUTROS SEIS HOMENS BRANCOS, de 30, 35, 40 anos, nas laterais direitas e esquerdas da estrada margeada de végeis. TRÊS HOMENS NEGROS, entre 35, 40 e 45 anos, ao centro, troteando conforme os demais. Entre os três homens negros está Josias. O comandante frea o cavalo e olha para um monte descampado. Ele dá um sinal para que os homens freem os seus cavalos também. Todos o obedecem. O comandante cavalga rápido até o alto do monte. Do alto do monte descampado, o 62 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior comandante vê a pequena carruagem, estando os dois homens negros montados em cavalos, em suas laterais, cada um puxando dois burros com cargas e indumentos de viagem. O comandante sorri e coça a cabeça. Ele espora o cavalo e desce do alto do monte descampado. Ele fala alto, olhando para os companheiros. COMANDANTE Homens, quem de vossemecês não gostaria de possuir riquezas e tornar-se livre para sempre... Os homens brancos tiram os chapéus e os erguem para o ar, com as mãos afirmando "sim" com as cabeças. Os homens negros abaixam a cabeça, reprovando. Josias espora o cavalo no meio dos homens e cavalga até ao comandante. JOSIAS (colocando-se frente a frente do comandante) Por acaso descobriu alguma mina por esse morro que nhô acabou de subir? COMANDANTE Parece que sim e está vindo em nossa direção. Venham todos, cá, para junto de mim... Os homens brancos e negros troteam e fazem um circulo em volta do Comandante. COMANDANTE O que tenho para dizer é sobre um plano, qual, estou cá, a matutar. Se vossemecês concordarem, vai ser bom para todo mundo... Ao longe dali, na mesma estrada, vem a pequena carruagem. Quatro homens brancos a cavalo, entre eles um chamado de RAIMUNDO, alto e magro, de aproximadamente 30 anos de idade e outro chamado JUCÁ, alto e gordo, de aproximadamente 25 anos de idade. Eles viajam pela 63 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior retaguarda da carruagem; porquanto, ao lado, há os dois homens negros, cada um puxando dois burros com cargas e indumentos de viagem. Dentro da carruagem há três homens brancos, portugueses, DOM MIGUEL, jovem de aproximadamente 27 anos, corpo esbelto e trajado a um príncipe; DOIS IRMÃOS DE DOM MIGUEL, um de 25 anos e outro de 20 anos, trajados também iguais a uns príncipes; PAI DE DOM MIGUEL, de aproximadamente 50 anos e muito bem trajado, igual aos filhos e o COCHEIRO, um homem moreno, de 30 anos, qual conduz a carruagem. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 35.2. INT./DIA - CASA SIMPLES COM VARANDA. Tarde. Josias volta à tona na varanda da casa simples, ao ladoa de Dirceu, qual está sentado na rede. JOSIAS Homem que é ambicioso acaba ficando tolo. Imagina nhô Dirceu que o comandante inventou o plano de tocaiar uma carruagem que ia de Minas Gerais para São Paulo de Piratininga. Segundo ele, se tudo corresse dentro dos conformes, todos ficariam bem de vida. Ele casquetou na cabeça de que a carruagem trazia ouro, muito ouro de Vila Rica... Pensei logo na confusão que aquilo resultaria. Todos nós, boiadeiros, não sabíamos de briga e de repente teríamos de enfrentar quem nós não conhecíamos... Eu tentei avisar, tirar do pensamento do comandante aquelas ideias, mas não adiantou não... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 36.2 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS. EXT./DIA. ESTRADA. 64 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cavalos agitados. O comandante na frente dos cavalos agitados. Homens brancos e negros galopam rápidos pelo areião da estrada. Levantam-se poeiras. Homens brancos e negros passam por uma curva da estrada e entram numa reta. Ao longe da estrada vem a pequena carruagem. Homens brancos e negros fream os cavalos e ficam observando a pequena carruagem que vem ao longe. COMANDANTE Mirem-se senhores. Vejam, lá na capoeira! Está chegando a nossa preciosa riqueza... Os homens dão risadas. Galopam avante. Josias frea o cavalo ficando para trás. O Comandante larga à frente e galopa rápido até Josias. COMANDANTE (vira para Josias um pouco nervoso) O quê foi Josias? Resolveu amoar aí feito boi tapado? Está na hora de avançar e atacar, Josias... JOSIAS (olha à frente da estrada e vê homens a cavalos e carruagem vindos na estrada em direção a eles) Carece não, comandante. Deixa disso. Isso tudo vai dar numa desgraceira só... COMANDANTE Se todos pensarem igual à vossemecê. COMANDANTE (grita nervoso) Adiante, homens, adiante! Querem ser escravos por toda a vida?!!! JOSIAS Prefiro, porque não quero morrer hoje não. 65 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Estrada. O comandante dá meia-volta, em círculo e à frente da estrada vê a carruagem. Sorri. Olha para Josias COMANDANTE Vem, lá a nossa riqueza. Posso perder tempo com vossemecê, não, Josias. Estrada. Carruagem aproximando-se. O comandante galopa mais à frente para liderar os homens brancos e negros. Ele grita. COMANDANTE (grita aos homens) Avante, avante. Vamos saquear todo o ouro que está naquela rica carruagem... São contrabandistas, não são? Nós também somos, a partir de agora... Mãos de homens brancos e de homens negros para cima. Arreios sacodem-se. Cavalos relincham. Os homens brancos e negros se espalham pelos cantos da estrada. A poeira levanta-se. Josias trotea devagar na retaguarda, ficando só. Ele olha à frente da estrada. Cavalos, cavaleiros, a carruagem aproxima-se. O comandante tira um punhal de um alforje, preso à sela. Ele ergue o punhal para cima e vai de encontro a um dos homens negros, próximo à carruagem. Ele derruba o homem negro do cavalo com um só golpe de punhal nas costas. O homem negro cai no chão gemendo. Josias assusta-se ao ver os homens negros e brancos, da sua tropa, atacar a carruagem. Ele pula do cavalo dele e foge para o mato pela lateral esquerda da estrada. JOSIAS esconde-se dentro de uma grota, onde fica escutando o barulho de tiros de bacamartes e homens gritando. Estrada. Bacamarte nas mãos do cocheiro da carruagem. O cocheiro atira por todos os lados, acertando um homem, ora branco, ora negro, da tropa do comandante. A carruagem perde o controle e tomba. O cocheiro cai no chão e perde o bacamarte. Ele levanta-se do chão e corre até a carruagem tombada. O pai de dom Miguel está preso na carruagem. Corpo do irmão de dom Miguel está caído na estrada. O Cocheiro enfia os braços dentro da carruagem tombada e saca uma espada. Um dos homens negros, da tropa do 66 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior comandante, a cavalo, corre em direção ao cocheiro, mas cai do cavalo. O cocheiro sangra o peito do homem negro com a espada e corre para atacar os outros homens da tropa do comandante. O cocheiro tropeça na areia e cai. O comandante avança para cima do cocheiro e apunhalaos pelas. O cocheiro agoniza e morre. Carruagem tombada. Dom Miguel tenta empurrar a carruagem para livrar o corpo do pai de uma das rodas. O pai de dom Miguel está agonizando, com as mãos escorrendo sangue. Ele geme-se de dor. DOM MIGUEL (grita desesperado) Alguém me socorre, cá. O senhor, meu pai está ferido. Ajudem-me a erguer está diligência... Raimundo acha o bacamarte e sai correndo atrás do comandante e de dois homens brancos, quais ainda restavam da tropa do comandante. Cavalos assustados fogem pelo mato. Raimundo mata os dois homens brancos da tropa do comandante. O comandante foge de Raimundo. Carruagem. Corpo do pai de Dom Miguel preso na carruagem. O pai de dom Miguel agoniza e morre. Dom Miguel fecha os olhos do pai com as mãos. Ele chora, levanta-se e vai ao encontro dos irmãos. Corpos dos irmãos. Dom Miguel solta um grito ao ver os corpos dos irmãos. Serra. Os gritos de Dom Miguel ecoam pela serra. DOM MIGUEL (grita desesperado) O quê fizeram? Mataram também os meus irmãos. Mutilaram a minha família? Tiros de bacamarte. Corpos dos dois irmãos de Dom Miguel. Dom Miguel cai no chão de joelhos. Areia suja de sangue. Dom Miguel pega um pouco da areia com o sangue, esfrega-a nas mãos e passa entre os peitos, tentando sufocar o choro, mordendo os lábios. 67 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DOM MIGUEL (cai de joelhos e ergue as mãos aos céus) Custe o que custares, vingarei toda esta atrocidade feita ao senhor meu pai e aos meus dois irmãos... DOM MIGUEL ABAIXA-SE E DEITA O ROSTO NA AREIA DA ESTRADA. Homens mortos na estrada. Morro alto à direita da estrada. O comandante, a pé, tenta fugir para o morro. Bacamarte na mão de Raimundo mirando-se para o comandante. Ouve-se um tiro de bacamarte. O comandante recebe um tiro pelas costa e cai morto na margem do morro. Um dos burros carregados de indumentos de viagem foge assustado para o mato pela lateral esquerda da estrada. Dom Miguel, ainda caído de joelhos, chora a morte do pai e dos irmãos. Jucá anda devagar e aproxima-se de Dom Miguel com a espada na mão. Espada. Jucá parado atrás de Dom Miguel com a espada. Dom Miguel vê Jucá pela sombra na areia com a espada na mão. DOM MIGUEL (fecha os olhos e abaixa-se a cabeça) Faças o que tenhas de fazer, mas, por favor, mate-me com um só golpe. Dom Miguel deita-se na areia da estrada e estende-se o pescoço. Jucá, com a espada nas mãos, responde com a voz comovida e entre lágrimas. JUCÁ Levante-se, Dom Miguel, sou eu, o Jucá... Parece que depois desta desgraceira toda, somente restaram o senhor, o Raimundo e eu... Dom Miguel levanta a cabeça chorando. Raimundo vem em direção a Dom Miguel e Jucá. Dom Miguel vira o rosto para Jucá, depois para Raimundo e limpa as lágrimas dos olhos, esfregando-os com os braços. 68 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DOM MIGUEL Armaram-nos um tocaia, Jucá. Armaram-nos uma tocaia, Raimundo. Meu irmão havia avisado ao senhor meu pai que estas viagens se tornariam perigosas... Silêncio. Estrada. TRÊS HOMENS vêm galopando rápidos na estrada em seus cavalos. UM HOMEM MORENO, vestido de vaqueiro, é baixo, beiçudo, pele morena e 40 anos de idade; os OUTROS DOIS HOMENS GALEGOS, vestidos de vaqueiros, têm peles e olhos claros, cabelos loiros e idades entre 30 e 27 anos. Dom Miguel, Raimundo e Jucá tentam levantar a carruagem. Eles fazem força para erguer a carruagem, mas não conseguem. Os três homens aproximam-se deles, fream os cavalos e olham para a estrada. Corpos de homens mortos caídos na estrada. HOMEM MORENO O que foi que sucedeu por aqui, meu Deus de Jericó... Uma tocaia, foi? RAIMUNDO (desiste de empurrar a carruagem e olha surpreso para os três homens) Sofremos uma das perigosas... olha só no que se deu... HOMEM MORENO Desgraceira, sô! Isso é difícil acontecer por estas bandas... DOM MIGUEL (olha para a carruagem e para os três homens) Pois aconteceu, vejam os senhores, foi uma desgraceira danada, perdi o meu pai, dois irmãos e alguns de meus escravos e trabalhadores... Tarde. Estrada. Carruagem tombada. Corpo do pai de Dom Miguel preso nas rodas da carruagem. O homem moreno olha para o corpo do 69 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior pai de Dom Miguel preso entre as rodas da carruagem e faz o sinal da cruz na testa. HOMEM MORENO O carro não sofreu muitos danos, as rodas estão inteiras. Vamos aprumar os cavalos e usar o carro para transportar os corpos... Há um cemitério numa freguesia próxima daqui, onde vossemecês podem enterrar os seus mortos... Qualquer terra é terra mesmo... UM DOS OUTROS DOIS HOMENS GALEGOS Se necessitam de ajuda, temos tempo. Vamos arribar a carruagem e tirar o corpo deste santo homem daí de baixo e levar os corpos para um cemitério de uma freguesia aqui próxima... Querem ajuda? Dom Miguel, Jucá e Raimundo aceitam a ajuda dos três homens balançando um "sim" com as cabeças. Os TRÊS HOMENS aproximam-se da carruagem. Cavalos caídos no chão, trelados à carruagem. Os TRÊS HOMENS pulam-se de seus cavalos, vão até a carruagem e desatrelam os cavalos da carruagem. JUCÁ, RAIMUNDO e os TRÊS HOMENS fazem força e colocam a carruagem em pé. Dom Miguel cai de joelho áo lado do corpo do seu pai. O homem moreno observa toda a carruagem HOMEM MORENO O carro não sofreu muitos danos, as rodas estão inteiras. Vamos aprumar os cavalos e usar o carro para transportar os corpos... Há um cemitério numa freguesia próxima daqui, onde vossemecês podem enterrar os seus mortos... Qualquer terra é terra mesmo... JUCÁ Levaremos apenas os corpos dos nossos homens; os outros carecem ser comidos pelos urubus... 70 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DOM MIGUEL Vou deixar os teus corpos guardados nestas terras, meu pai, meus irmãos, mas um dia eu volto e busco os ossos de vós mercês para continuar o repouso em um cemitério junto aos seus antepassados... Estrada. Corpos dos homens mortos. Uma revoada de abutres voa pelos ares em círculo dos corpos dos homens mortos na estrada. Pôrdo-sol. Grota. Josias aponta a cabeça para fora de uma grota. Ele sai da grota e anda pelo mato. Estrada. Corpos dos homens do comandante e do comandante jogados pela estrada. Josias chega à estrada para e olha indignado para os corpos dos amigos de viagem. Josias anda por entre os corpos dos homens mortos. Josias para ao lado do corpo do comandante, à beira da serra e tira o chapéu da cabeça. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 35.3 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Tarde. Josias volta à tona, na varanda da casa simples, ao lado de Dirceu, qual está sentado na rede. JOSIAS Depois de toda a confusão, eu sai da grota, examinei rapidamente os corpos dos meus amigos mortos e abandonei a estrada ganhando o mato. Cavalguei sem rumo, subindo a serra... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 36.3 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS: EXT./DIA/NOITE. CAMPO LARGO. SERRAS. ESTRADAS E VEREDAS 71 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Vereda. Um campo largo na vereda. Burro pastando com cargas nas costas. Josias vê o burro. Ele cavalga depressa para pegar o burro. Josias aproxima-se do burro, pula do seu cavalo e corre para pegá-lo. Josias passa as mãos na cabeça do burro até tocar nas cargas. Bruacas. Josias abre uma das bruacas penduradas no lombo do burro. Ele enfia as mãos na bruaca e retira dela um alforje. Josias abre o alforje e tira de dentro dele pedaços de queijo, de rapadura, um pequeno pote com melado e outras iguarias de guloseimas de viagem. Josias morde um pedaço de queijo e guarda tudo novamente dentro do alforje. Ele coloca o alforje dentro da bruaca. Josias monta no cavalo dele e sai galopando levando também o burro com as cargas no lombo. Noite. Serras. Josias galopando serras, estradas e veredas. Josias enfrenta o sol, a chuva e a cerração durante noites e dias. JOSIAS (VOICE OVER) Ao entardecer, antes que o sol morresse no ocaso, encontrei não muito distante um burro com duas bruacas presas ao lombo. Acalmei o burro, abri uma de suas bruacas trazidas ao lombo e achei dentro de um alforje pedaços de queijo, de rapadura, um pequeno pote com melado e outras iguarias. Um pedaço de queijo bastou para matar a minha fome. Guardei tudo novamente no alforje e coloquei na bruaca do burro. Peguei o meu cavalo, a rédea do burro e levei-o comigo na longa viagem, subindo e descendo morros. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 35.4 – CONTINUAÇÃO - INT./TARDE. CASA SIMPLES COM VARANDA. Josias volta à tona, na varanda da casa simples, ao lado de Dirceu, qual está deitado na rede. 72 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Enfrentei sol, chuva e cerração, até chegar numa fazenda. O nome da fazenda era Paraíso. A fazenda pertencia a um mineiro bonachão, chamado Arigó. Nessa fazenda, o senhor Arigó deu-me abrigo em troca de trabalho. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 36.4 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS: EXT./INT. DIA/NOITE. FAZENDA PARAÍSO. VÁRIOS. Tarde. Fazenda Paraíso. Josias entra no pátio de frente da fazenda Paraíso. Casarão da Fazenda Paraíso. Varanda do casarão. Josias aproxima-se do casarão da Fazenda Paraíso. Josias frea o cavalo e olha para a varanda do casarão. Na varanda do casarão está ARIGÓ, um senhor branco, baixo, gordo, barba cerrada e cabelos grisalhos, 60 anos de idade. Arigó vê Josias montado no cavalo, segurando o burro com as duas bruacas. Arigó aproxima-se do muro da varanda do casarão para observar a chegada de Josias. ARIGÓ (fala por solilóquio) Será se aquele negro está a trazer-me alguma encomenda? Não encomendei nada a ninguém, de lugar algum... Josias está montado em seu cavalo empurrando o burro com cargas. Ele acena para Arigó. Escadas da varanda, que se dão à frente do terreiro. Arigó desce as escadas da varanda um pouco apressado. Josias montado em seu cavalo aguarda por Arigó, no pátio. Arigó aproxima-se de Josias no pátio da fazenda Paraíso. JOSIAS Venho de uma longa viagem, nhô. O meu comandante, juntamente com meus companheiros de viagem, foram todos mortos numa terrível tocaia na estrada que segue de São Paulo 73 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior de Piratininga para Minas Gerais. A desgraça foi tão desgraçadamente feia que restou apenas eu para contar a vossemecê a história. Imagine "nhô", que Deus poupou este pobre diabo da morte para tornar-se criado de vossemecê. O pior de tudo para mim, não foi a tocaia, Senhor, foi a viagem. Eu enfrentei tudo: bicho perigoso, capoeiras, morros e veredas, dia e noite... ARIGÓ Vós mercê não é escravo foragido? JOSIAS Nhô, não. Sou vaqueiro, viajo pelas estradas afora de capitania a capitania, tocando boiada para o meu patrão. Ele mora na Bahia, nhô. Ele é um grande produtor de boi Nelore, raça muito procurada no Brasil. ARIGÓ Tenho alguns nelores, cá, na fazenda... JOSIAS Se nhô estiver precisando de alguém no trato dos bois, posso ficar aqui por alguns tempos... ARIGÓ E por que não? A fazenda sempre carece de gente bem intencionada... CORTA PARA Noite. Celeiro. Quarto de Josias. A janela pequena do quarto está aberta. A luz da Lua reflete-se no quarto, ora através da janela pequena aberta, ora por algumas frestas abertas nas paredes. Cela pendurada em um arreio preso ao caibro do telhado. Há duas bruacas de couro encostadas em um canto, abaixo da janela. Cama. Na cabeceira da cama há um alforje pendurado. Bruacas de couro. Em uma das bruacas há três letras 74 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior gravadas a fogo, quais iniciais são "JSN". Josias dirige-se até as bruacas. Ele escolhe a bruaca com as letras gravadas, sem perceber as letras e abre-a. Bruaca aberta. Josias olha atentamente as coisas que estão dentro da bruaca. Ele tira da bruaca três panelas de pedra sabão, usadas, um pequeno caldeirão de ferro e alguns talheres e xícaras de porcelanas portuguesas e as espalham pelo chão. Fundo da bruaca. Josias olha para o fundo da bruaca e enfia novamente as mãos. Josias pega uma pequena caixa de couro. Olhos arregalados de Josias. Josias repara a caixa de couro atentamente. Alforje na cabeceira da cama. Josias pega o alforje, abre-o e retira dele um pequeno punhal. Cama. Josias ajeita-se na cama. Punhal nas mãos de Josias. Ele corta, pacientemente, as amarraduras da pequena caixa de couro. Caixa de couro aberta. Josias tira de dentro da pequena caixa de couro uma pequena imagem de uma santa esculpida em cedro. A imagem é de Santa Ifigênia. Josias coloca a imagem de cedro em cima da cama. Josias enfia a mão na caixa de couro. Rosto de Josias. Josias sorri. Mãos de Josias fechadas. Josias abre as mãos tendo nelas algumas pepitas de ouro. Imagem de Santa Ifigênia em cima da cama. Josias pega a imagem de Santa Ifigênia e olha-a atentamente, sorrindo. Josias beija a imagem de Santa Ifigênia e faz o sinal da cruz. JOSIAS (VOICE OVER) Ao acomodar-me em um velho celeiro, na fazenda Paraíso, numa certa madrugada, resolvi abrir uma das bruacas de couro, qual eu nunca havia mexido. Eu fiquei surpreso ao encontrar nela uma pequena caixa de couro. Eu peguei o meu punhal, descosturei ponto por ponto e, ao abrir a caixa, deparei com uma pequena imagem de Santa lfigênia e uma boa quantidade em pepitas de ouro. Eu quase não acreditei. Eu beijei a santinha e me abençoei com o sinal da cruz. Bruaca fechada. Josias sentado na cama com as pepitas de ouro nas mãos. JOSIAS Ouro é coisa do demô. Se o homem não tiver cuidado fica tolo. 75 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Josias coloca a imagem de santa Ifigênia e as pepitas de ouro dentro da pequena caixa de couro. Ele levanta-se da cama e arrasta-a de qualquer jeito para outro lado. Punhal. Ele estende as mãos em um canto escuro e pega o punhal. Chão batido. Ele cava o chão com o punhal e faz um buraco. Ele pega a pequena caixa de couro e enterra-a no buraco do chão batido. Josias empurra a cama para o mesmo lugar. Punhal em cima da cama. Josias senta-se na cama, esfrega e sopra as mãos cheias de calos. JOSIAS Nunca vou contar para ninguém sobre este tesouro guardado debaixo da minha cama... Foi a santinha que quis tornar-me dono de todo esse ouro... LÁ FORA, UMA CORUJA VOA, POUSA EM UMA ÁRVORE E SOLTA UM PIO. Fazenda Paraíso. Amanhece o dia. Canto dos galos, coricocós das galinhas e berrados de boi. Telhado de uma velha casa de palha. Revoada de pássaros voam-se do telhado da velha casa de palha. Interior da velha casa de palha. Arigó termina de vestir um casaco. Seios e corpo de uma mulata, deitada em um lençol azul, entre palhas de milho e capim seco. A mulata, bonita e fogosa chama-se ZENILDA, 22 anos, esbelta, corpo e peitos bem desenhados. Porta da velha casa de palha. Arigó observa o lado de fora e sai pela porta. CORTA PARA Varanda do casarão. SAFIRA, esposa de Arigó, portuguesa, de 50 anos, gorda, baixa, de olhos azuis e de cabelos claros e cacheados, pela varanda da casa, espia os arredores da fazenda. CORTA PARA Terreiro da fazenda Paraíso. Arigó, a passos rápidos, dirige-se até o curral. No curral, ALGUNS HOMENS NEGROS ordenham as vacas. 76 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA Velha casa de palha. Porta aberta. Josias entra na velha casa de palha com um enorme cesto nas mãos. Há no canto da parede um monte de espigas de milho secas. Josias se dirige até as espigas.Chão batido. Pontas de um lençol azul. Zenilda dorme. Corpo nú de Zenilda. Mãos de Zenilda entre os seios. Josias dá alguns passos e chega onde está Zenilda. Josias vê Zenilda com as mãos entre os seios, dormindo. Os olhos de Josias viajam sobre o corpo de Zenilda. Uma galinha faz coricocó, fugindo com uma ninhada de pintos. Zenilda acorda assustada. Zenilda vê Josias parado, observando-a. Zenilda assusta-se, cobre o corpo de qualquer jeito e solta um pequeno grito. Josias foge dali, rapidamente. CORTA PARA Manhã. Fazenda Paraíso. Terreiro do quintal. Um galo corre atrás de uma galinha. Grande cesta com milho debuiado. Josias sentado em um tamborete debuiando milho. Zenilda passa, olha para Josias e faz um rebolado com o corpo. Josias para de debuiar o milho e fica parado, observando Zenilda. ZENILDA ENTRA NA VELHA CASA DE PALHA. Fazenda Paraíso. Noite. Dentro da casa velha de palha, Zenilda está nua, sendo possuída por Arigó. CORTA PARA Manhã. Josias sentado em um tamborete debuiando milho. Zenilda passa, olha para Josias e faz um rebolado com o corpo, tentando seduzilo. FADE OUT/FADE IN 77 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Tarde. Zenilda rebola, dá um sinal para Josias e corre em direção ao bananal da Fazenda Paraíso. Josias corre atrás de Zenilda. Bananal da Fazenda Paraíso. Folhas secas do bananal. Zenilda cai entre as folhas secas das bananeiras. Josias cai em cima do corpo de Zenilda. Josias e Zenilda beijam-se. Josias se despe e despe também Zenilda. Josias e Zenilda unem-se os corpos em um ato sexual. FADE OU /FADE IN Madrugada. Casa velha de palha. Josias está dentro da casa velha. Porta de dentro da casa de palha. Josias está escondido atrás da porta de dentro da casa de palha. Josias observa Zenilda e Arigó deitados praticando sexo. CORTA PARA Legenda: "Três meses depois”. Manhã. Campo de pasto. Bois e ovelhas pastando. Zenilda passeando de mãos dadas com Josias. Zenilda e Josias deitam-se no capim, beijam e trocam carícias. JOSIAS tira a roupa de Zenilda. Tarde. Varanda do casarão. Safira, na varanda do casarão, observa Josias e Zenilda fugirem para o bananal da fazenda. Pôr do sol. Roupas jogadas na margem de um pequeno rio. Zenilda e Josias, pelados, trocam carícias dentro do pequeno rio. Noite. Celeiro. Quarto de Josias. Cama. Zenilda com as mãos entre os seios, deitada ao lado de Josias. Meio-dia. Trouxa de roupas na cabeça de JERA, uma senhora negra, gorda e que tem 50 anos de idade. Escada da varanda. Jera desce os últimos degraus da escada da varanda e vê Zenilda sentindo náuseas em um dos cantos do casarão. Jera coloca a trouxa de roupa no chão e corre para acudir Zenilda. Ela está pálida e faz vômito. Jera ergue a cabeça de Zenilda, segurando-a pela testa. JERA Oxalá, meu pai e salvador! Tenho experiência em assuntos de mulheres e nunca errei os meus palpites. Vossemecê tá 78 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior prenha, minha filha. Andou enrabichando com homem, não andou? É nisso que dá... CORTA PARA Campina. Capim alto. Rabos de cavalos. Arigó e um de seus vaqueiros, um negro magro e alto, vinte anos de idade, cavalgam tranquilamente pelas campinas da fazenda Paraíso. ARIGÔ Parece praga amaldiçoada, sô! Toda negra que eu meto a besta de tocar acaba-se emprenhando? Essas negrinhas parecem terra fértil, daquelas bem adubadas. Caiu a semente e pronto, já começa a germinar... (cospe pelo ar, com raiva) Merda, bosta, diabo de atentação. Deus me dá filho com quem não posso criar... Vou fazer com ela igual eu fiz com as outras, Bernardo, venderei ao primeiro mercador de escravo que por cá aparecer. A Zenilda é escrava boa, fogosa, bem tratada, bonita e muitos mercadores haverá de querê-la com bucho grande e tudo. CORTA PARA Jera está pilando arroz no pilão. Mão-de-pilão cai no chão. Jera, imóvel, arregala os olhos para a varanda do casarão. Varanda do casarão. Arigó na varanda do casarão em companhia de Serafina e DOIS HOMENS BRANCOS, um de 30 e outro de 40 anos de idade, baixos e gordos. JERA, com o olhar assustado, comenta para TRÊS MULHERES NEGRAS que estão próximas a ela, no pilão. As três mulheres negras peneiram e sopram arroz. JERA Meu Deus, o nhô Arigó vai mandar levar a Zenilda. Olha só, aqueles homens lá... Aqueles homens são os mesmos. Quando eles aparecem aqui, ou é para trazer ou levar negros. Se não 79 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior trouxeram negros, vão levar alguém. Dessa vez é a pobre da negrinha. Arrumou barriga emprestada tai no que dá... Jera e as três mulheres negras olham para a varanda do casarão. Escada da varanda do casarão. Zenilda sobe a escada da varanda do casarão. JERA Eu não erro os meus palpites. Olhem lá. A Zenilda vai ser mostrada para eles. Daí, a coitada vai ser vendida. Não sei porque, mas nessa fazenda não nasce crianças. Toda mulher que aparece prenha, o "nhô" Arigó acaba vendendo... Tenho cá as minhas desconfianças. A sinhá Safira é seca, não pode ficar prenha e acho que não gosta de ver mulher prenha. Deve-se aborrecer com choro de menino... Varanda. Zenilda sobe os últimos degraus da escada e anda em direção a Arigó, Safira e os dois homens brancos. Um dos homens olha para Zenilda que já se aproxima deles. HOMEM BRANCO DE 30 ANOS Aquela que vem cá? Não, ela não há de nos servir. Ela é muito francina, não vai tolerar o tipo de trabalho a ser submetido por lá... SAFIRA Vossemecês não irão se arrepender. A cachopa parece francina, mas é muito talentosa. Não há outra igual, na cozinha... Os dois homens brancos de 30 e 40 anos se entreolham. HOMEM BRANCO DE 40 ANOS Mas por que vossemecês estão colocando a menina à venda, se a elogiam e afirmam sê-la tão boa na cozinha... 80 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ARIGÓ Não estamos colocando a menina à venda, senhores. Não temos o hábito de vender nossos escravos. Como vossemecês insistiram em ficar mais tempo, cá, na fazenda, aproveitamos para oferecê-los uma de nossas melhores prendas... HOMEM BRANCO DE 30 ANOS Ficaremos com ela, senhor. Quem sabe faremos um bom negócio. Não temos o costume de negar aquilo que a nós é oferecido. Dê o preço, quem sabe, ela não vale um bom colchão de casal feito de penas e feno, com um luxuoso revestimento de seda ou brocado. ARIGÓ Temos cá, esse colchão brocado com penas e fenos, vindo da europa. Creio que ela vale bem mais do que vinte contos de réis... HOMEM BRANCO DE 30 ANOS Fecharemos em quinze contos de réis, senhor. Dinheiro bem pago, sem precisar consultar dentes, corpo... Varanda do casarão. Safira chama Arigó a um canto da varanda e cochicha com ele. Zenilda, parada a um canto apenas observa tudo. SAFIRA É melhor que aceite o lance dos moços e despache a moça de uma vez. Desta forma não temos nada a declarar sobre a gravidez dela... Safira e Arigó voltam aos homens brancos de 30 e 40 anos. HOMEM BRANCO DE 40 ANOS Então, vão fechar o negócio? 81 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SAFIRA Se assim desejam, por mim, a mulata condiz ao valor estipulado pelos senhores... Arigó olha para Zenilda e abaixa a cabeça. Zenilda engole a seco. Arigó anda a passos rápidos. Porta aberta do casarão. Arigó atravessa a porta e entra para dentro do casarão. Varanda. O homem branco de 30 anos entrega uma quantia em dinheiro para Safira. Safira sorri, conferindo o dinheiro. Zenilda olha para Safira com os olhos cheios de ódio e fala por solilóquio. ZENILDA Os seus dias não vão demorar muito, dona Safira... Virá também o dia da minha vingança.Vossemecê me vende com dinheiro e o demônio vai te comprar com sangue... Quem sabe não vai comprar com também o seu marido... ROSTO DE ZENILDA COM A EXPRESSÃO DE ÓDIO. Varanda do casarão da fazenda Paraíso. Safira está sozinha na varanda. Ela olha para a entrada da fazenda. cancela aberta. Os homens brancos de 30 anos e de 40 anos estão montados em seus cavalos. Zenilda encontra-se ao lado deles com as mãos amarradas. Ela será levada por eles para outra fazenda. Alguns escravos mantêm-se distantes, com os olhares voltados para Zenilda. Jera está estendendo algumas roupas no varal, juntamente com três mulheres negras. Uma MULHER NEGRA DE 40 ANOS corre em direção de Jera. MULHER NEGRA DE 40 ANOS Vossemecê tava certa, nhô Arigó vendeu Zenilda. Olha lá, na cancela, os dois homens tão levando ela... Cancela da Fazenda Paraíso. Zenilda e os homens brancos de 30 anos e de 40 anos montados em seus cavalos. Zenilda está na garupa do cavalo de um dos homens brancos de 30 anos. Jera olha para a cancela. 82 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JERA É, tô vendo que a coitada vai ser mesmo arrastada para longe. Não sei por que diabo tem de ser desse jeito, com mãos amarradas, feito bicho bravo que se pega no mato e depois amansa. MULHER NEGRA DE 40 ANOS Isso é maldade de homem branco. Homem branco trata negro feito bicho. Deus, lá do céu, parece que não pode fazer nada... JERA Deixa de meter Deus nessas histórias, menina. Deus tem muito o que fazer. Os homens brancos também não mataram o seu único filho, Jesus Cristo? Deus mostra que a recompensa não está aqui, não, mas no céu, depois da morte... Homens brancos de 30 e 40 anos saem pela cancela levando Zenilda com as mãos amarradas. Zenilda é puxada por uma corda. Celeiro. Porta abre-se. Josias sai pela porta, correndo para o bananal. Bananal. Ele se joga de joelhos no chão, chorando e soluçando. JOSIAS Custe o que custar, Zenilda, eu não vou demorar a te buscar. JOSIAS Custe o que custar, Zenilda, eu não vou demorar a te buscar. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 35.5 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Tarde. Varanda da casa simples. Josias na varanda da casa simples sentado no tamborete ao lado de Dirceu. Dirceu continua deitado na rede. 83 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Inconformado com a situação eu engoli tudo calado. Eu, velho escravo, com a vida má resolvida, não podia comprar Zenilda por qualquer preço em ouro que eu escondia enterrado no chão, debaixo do velho catre. Quase morto de paixão e saudade da minha nega, numa certa madrugada resolvi abandonar aquela fazenda em busca dela. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 36.5 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS. EXT./DIA. SERRA. FAZENDA DE DOM MIGUEL. Josias trotea no cavalo entre as veredas da serra. Fumaça de poeira, abaixo da serra. Josias frea o cavalo e observa a fumaça de poeira. Ele fala por solilóquio. JOSIAS Aquela poeira vem de uma mina de ouro. Onde tem uma mina de ouro, sempre tem uma fazendinha por perto... Vista panorâmica da serra. Abaixo da serra uma fazenda, onde há também uma mineradora disfarçada, qual pertence a Dom Miguel. Josias cavalga, desce a serra e vê a fazenda de dom Miguel. Riacho de águas cristalinas. Josias apea do cavalo, pega o cavalo e o burro pelos cabrestos e amarra-os na frondosa árvore. Riacho. Josias segue o percurso do riacho e entre as folhagens, espia os arredores da fazenda de Dom Miguel. Josias mergulha na água do riacho e alcança a outra margem. Ele escuta risadas de mulheres vindas da direção da fazenda de Dom Miguel. Ele abre uma pequena fenda entre as folhagens e vê o quintal da fazenda Dom Miguel. No quintal da fazenda há um grupo de mulheres negras em torno de um jiral de madeira cuidando de um capado de porco cortado ao meio. Pedra. UMA MULHER ALTA E MAGRA sentada na pedra. Josias observa a mulher alta e magra sentada na pedra. A mulher é Zenilda. Ela está descascando mandiocas. Olhos 84 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior de Josias fixos em Zenilda. Folhagens balançando. Josias ajeita o corpo e anda um pouco mais entre as folhagens. Josias fixa o olhar para a direção de Zenilda. Josias dá risadas, esfregando os olhos. JOSIAS Meu Deus, será se aquela mulher é a Zenilda ou eu estou tendo alguma visagem? É ela, é ela, sim, a minha neguinha... Folhagens balançam. Árvore frondosa. Cavalo e burro amarrados na árvore frondosa. Josias, a passos largos, volta até onde os animais estão amarrados. Burro. Josias dirige-se até o burro. Bruacas no lombo do burro. Josias abre uma das bruacas e tira dela uma pequena caixa de couro. Josias coloca-a no chão. JOSIAS Vou esconder esta caixa em algum lugar. Depois que eu pegar a Zenilda, seguirei o meu destino de homem rico e livre... Pequena caixa de couro no chão. Josias desamarra o cavalo do tronco da árvore e monta-se nele ajeitando a pequena caixa de couro entre os braços da mão direita. Josias deixa o burro amarrado em uma árvore frondosa e galopa rápido até o alto da serra. Alto da serra. Campo de cristais rochosos. Alforje na sela do cavalo. JOSIAS abre o alforje e retira dele um punhal. Pequena caixa de couro entre os braços da mão direita, punhal, também seguro na mão direita. Josias dá uma volta rápida pelo campo de cristal e, ao pequeno centro, apea-se do cavalo. Terreiro pedregoso. Josias olha para o terreno pedregoso, coça a cabeça, coloca a pequena caixa de couro no chão e ajeita o punhal na mão para cavar a terra. Josias cava a terra fazendo um buraco raso. Ele coloca a pequena caixa de couro dentro do buraco e enterra-a. Ele vê uma grande pedra próxima ao local da pequena caixa enterrada. Ele rola a pedra colocando-a em cima do esconderijo da pequena caixa enterrada. Josias limpa as mãos, senta-se na pedra e respira aliviado. 85 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Esta pedra há de marcar bem este local. Não é para ninguém no mundo nunca pensar que debaixo dela existe uma caixa com santa e pepitas de ouro. No mundo há tantas desgraças, que se eu morrer, Deus há de permitir que eu ajudarei alguém de minha estima, encontrá-la... Quem sabe Zenilda e, até um dia, o meu filho ou um grande amigo... Josias põe-se de pé, corre até o cavalo, monta-o e galopa rápido. Josias desce a serra. Riacho. Árvore frondosa. Burro amarrado na árvore frondosa. Josias apea-se do cavalo. JOSIAS Não sei se vou fazer besteira, mas tenho de chegar até aquela fazenda e pegar a minha nega. Árvore frondosa. Josias desamarra o burro da árvore frondosa. Ele monta-se no cavalo, ajeita a rédea do burro nas mãos e sai galopando devagar em busca da entrada da fazenda de Dom Miguel. Clareira. Raios de sol. Cancela da fazenda de Dom Miguel. Josias aproxima-se da cancela da fazenda de Dom Miguel. Pátio da fazenda de Dom Miguel. Raimundo (qual parpicipara da tocaia contra a família de Dom Miguel) vê Josias. Cavalo e burro. Josias montado no cavalo, segurando a rédea do burro. Raimundo dá um sinal a três homens brancos, quais estão vigiando a entrada da fazenda. Um dos três homens brancos é Jucá (qual participara também da tocaia contra a família de Dom Miguel). Varanda da casa. Raimundo vai até a varanda da casa. Bacamarte em um canto da parede da varanda. Raimundo pega o bacamarte e, armado, vai ao encontro de Josias. Josias, firme em seu cavalo, segura também o burro pela rédea. Bacamarte nas mãos de Raimundo, mirado em direção a Josias. Cancela fechada. Josias segura na cancela fechada, ajeita em uma das mãos as rédeas do cavalo e do burro. Ele tira o chapéu e cumprimenta Raimundo e os três homens brancos. 86 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Bom dia, inhores. Há dias viajo por essas bandas em busca de serviço pro meu sustento... Bacamarte nas mãos de Raimundo. Josias olha para Raimundo corajosamente. JOSIAS Sou do mal não, moço. Nhô tem um servicinho pra mim, nessas terras? Faço tudo que é tipo de serviço, sei ordenhar, capinar, amansar cavalo bravo e... Burro. Cargas do burro. Os olhos de Raimundo se fixam nas cargas atreladas no burro. Raimundo continua com o bacamarte apontado para Josias. RAIMUNDO Vossemecê não é escravo fugido? JOSIAS (faz o sinal de "não", com a cabeça) Tô dizendo ao nhô que não... RAIMUNDO Vossemecê não é um tocaiador de estrada? JOSIAS Nhô, não. Sou homem de bem. Apenas fugi de uma fazenda distante daqui, mas eu não pertencia ao dono. Não tenho carta livre, mas fui largado no mundo pelo meu "nhozinho", lá nas bandas da Bahia... Vivo assim, um dia aqui, outro dia ali. Vivo de favores numa fazenda e n´outra... RAIMUNDO Então se vossemecê diz ser homem de bem, pode apear do cavalo, atravessar a cancela e se "achegar" junto a nós. 87 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cancela aberta. Josias atravessa a cancela e entra no terreiro da fazenda, empurrando o cavalo e o burro. Raimundo aproxima-se do burro. Cargas atreladas ao burro. Raimundo observa as cargas atreladas no burro. RAIMUNDO (passa as mãos em uma das bruacas) Estas cargas são suas? JOSIAS (olha para Raimundo meio desconfiado) Sim, quer dizer, não... RAIMUNDO (olha para Josias alterando a voz) Sim ou não? São suas, ou não são suas?! JOSIAS Na verdade, não, nhô. Pertencia ao dono da fazenda de onde fugi... RAIMUNDO (aproxima-se de Josias) Então vossemecê é um fugitivo. A fazenda de onde vossemecê fugiu fica longe daqui? JOSIAS É, nhô, é sim, fica depois do capoeirão para quem segue a estrada ao sul... Cargas atreladas ao burro. Raimundo volta a tocar nas cargas. Letras inscritas em uma das bruacas "JSN". As letras "JSN", gravadas em uma das bruacas, chama a atenção de Raimundo. Letras gravadas. Raimundo aproxima-se da bruaca e passa os dedos entre as letras gravadas. Raimundo fica um pouco impressionado. Raimundo passa os dedos em cada uma das letras "J.S.M" gravadas na bruacae fala por solilóquio. 88 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior RAIMUNDO João Souza Nascimento, português, pai de Dom Miguel, morto numa tocaia armada para ele e todos nós, na estrada entre Minas Gerais e São Paulo de Piratininga. Finalmente, estamos de posse nas provas... Deus escutou as minhas preces, agora tenho de acertar com o diabo... RAIMUNDO (olha para a carga, para o burro e, finalmente, para Josias. Cospe no chão) Se estiver procurando trabalho, isso aqui não falta. Adianto a vossemecê, que o quê vossemecê vê aqui, não é propriamente o que se vê... JOSIAS Mas o que vejo aqui é uma fazenda igual um tanto que existe por aí, não é? RAIMUNDO Dom Miguel consegue enganar a todos, muito bem... Aqui não é uma fazenda. É uma mina particular, que não pertence ao Rei de Portugal e nem a qualquer governo desta capitania. O dono desta mina é um moço novo e experiente, ele extrai o ouro e manda-o para São Paulo de Piratininga e para São Sebastião do Rio de Janeiro. De lá, embarcam-se as pepitas para o mundo inteiro... RAIMUNDO (olha para os três homens brancos que vigiam a fazenda) Vossemecês três aí larguem os seus postos, desatrelem o burro e guardem as cargas no quarto que está desocupado, ao lado do casarão... RAIMUNDO (tira uma enorme chave do bolso e entrega a um dos homens que é o Jucá) 89 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Jucá, estou confiando em ti, esta missão. Desatrelem o burro do moço, coloque as cargas naquele quarto. (aponta para um quarto próximo ao casarão) Depois, traga-me a chave. Quero proteger as cargas do moço... JOSIAS (meio confuso olha para Raimundo e para os homens que estão tirando as cargas do seu burro) Carece não, nhô, nelas não tem nada de valor. Só tem apetrechos de viagem de negro pobre, fugitivo... CORTA PARA Quarto da fazenda Paraíso. Raimundo está dentro do quarto juntamente com Jucá observando as bruacas tiradas do burro de Josias. Raimundo demonstra-se surpreso ao verificar tudo, com a ajuda de Jucá. RAIMUNDO O burro é o mesmo, as bruacas também são as mesmas, tem até gravado em uma delas o nome do nosso finado patrão. "J.S.N". João Souza Nascimento. Há meses estamos procurando o responsável de toda aquela desgraceira, para cumprir a nossa terrível vingança... Deus está a nos apontar o rastro do tal mandante sanguinário. Quando Dom Miguel aparecer por aqui, colocarei ele a par dessas coincidências... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 35.6 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Tarde. Varanda da casa simples. Josias na varanda da casa simples sentado no tamborete ao lado de Dirceu. Dirceu continua deitado na rede. 90 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Sabe, nhô Dirceu, trabalhei por alguns dias nessa fazenda, sem ganhar a confiança de ninguém. Eu acordava pela manhã, capinava aqui e acolá e ficava reparando aquele bando de homens indo pra lá e vindo prá cá. Eram todos mineradores e extraiam ouro para vender sem o conhecimento do governador da capitania. Aos poucos fui pescando as coisas e descobri que o moço que havia me recebido, não passava de um capanga do dono daquilo tudo, um tal de Dom Miguel. Esse, fiquei sabendo depois que era filho de um homem morto numa tocaia. Ora, sô e essa tocaia, não foi a mesma inventada pelo comandante da minha tropa?! VOLTA PARA SEQUÊNCIA 36.6 – (CONTINUAÇÃO) - EXT./DIA. FAZENDA DE DOM MIGUEL. PÁTIO, FRENTE AO CASARÃO DA FAZENDA. Cancela aberta. Cavalos. DOIS HOMENS BRANCOS, montados em cavalos, entram pela cancela da fazenda de Dom Miguel. Atrás dos dois homens brancos, montados em cavalos, surge uma carruagem. Cocheiro. Janela da carruagem. Há um HOMEM JOVEM encostado na janela da carruagem. O HOMEM JOVEM é DOM MIGUEL. Ele está cochilando. Pátio. O cocheiro estaciona a carruagem no pátio, frente ao casarão. Laterais do casarão da fazenda de dom Miguel. Josias capina o mato nas laterais do casarão da fazenda. A porta do casarão se abre. Raimundo sai do casarão e vai até o pátio em direção à carruagem. Carruagem. O cocheiro pula-se da carruagem. A carruagem balança. Interior da carruagem. Dom Miguel acorda assustado com o balanço da carruagem. Cavalo. UM HOMEM dos dois homens brancos pula-se do cavalo e corre para abrir a carruagem. Dom Miguel sai da carruagem indo ao encontro de Raimundo. Ele e Raimundo cochicham olhando para Josias. 91 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FADE OUT/FADE IN Tarde. Pátio do casarão de Dom Miguel. Josias está sentado em um tamborete de couro cercado por Dom Miguel e Raimundo. No fundo vê se Jucá e os dois homens brancos armados com bacamartes, andando para um lado e para o outro no pátio do casarão. JOSIAS (VOICE OVER) Quando o tal de dom Miguel chegou às suas terras, logo quis saber sobre mim. Ele e o capanga, o tal do Raimundo, vieram me perguntar sobre coisas que eu não sabia responder. CORTA PARA Pátio do casarão da fazenda de Dom Miguel. Josias sentado em um tamborete. Raimundo e dom Miguel ao lado de Josias. Raimundo dá um tapa no rosto de Josias RAIMUNDO (nervoso) Conte-nos, desgraçado, quem foi o autor da tocaia... Vossemecê também fez parte, não fez? JOSIAS Fiz não, nhô. Mas eu conto para vossemecês que a tocaia foi armada pelo dono da fazenda de onde fugi. Está com ele todo o ouro, dentro de uma caixa de couro, com santa e tudo... DOM MIGUEL (fica alegre, confuso e encabulado. Solta com força o seu sotaque português) É a imagem de Santa Ifigênia, veio de Portugal, era uma relíquia de família. A santa pertencia à minha adorável mãezinha... Leve-nos até essa maldita fazenda. Queremos acabar com o dono e com toda a sua família. Quero entregar a 92 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior eles o troco, da mesma forma que eles fizeram com o meu pai, com os meus dois irmãos e todo o nosso povo... RAIMUNDO Basta que vossemecê nos leve até lá, temos sede de vingança e... DOM MIGUEL Se vos mercê nos levar até ao fazendeiro, prometo que após matar a ele e toda a família, lhe darei a fazenda dele, com documento, escravos e tudo. Além disso, o presentearei com uma boa quantidade em ouro... DOM MIGUEL (abaixa a cabeça e assinala um "sim".) Não temos tempo a perder. DOM MIGUEL (afasta-se um pouco de Josias e grita pelos empregados) Homens, depressa. Ordeno a todos que preparem os cavalos para fazermos uma longa viagem. Levaremos bacamartes, espadas, tochas de fogo, tudo que for possível para acabar com a raça daquela gente... Sairemos de madrugada, antes do cantar dos galos... Fundo do quintal. Cavalo galopando em direção ao pátio do casarão. Jucá, galopando rápido, mal se aproxima de Dom Miguel, Raimundo, Josias e alguns outros homens, ali, no pátio e grita. JUCÁ Um acidente... Aconteceu um acidente dentro da mina... Alguns homens estão presos na mina, creio que alguns deles morreram... Barreira, dom Miguel, queda de barreira bruta... 93 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DOM MIGUEL Meu Deus, há anos não acontece isso! Junte todos, vamos socorrer os nossos homens... Cavalos. Dom Miguel corre rápido para montar em seu cavalo. Dom Miguel monta no cavalo dele e ordena a todos ali que o sigam. Raimundo, Jucá e todos os homens ali presentes montam rápidos em seus cavalos e saem galopando em direção à mina. Todos desaparecem pelo fundo da fazenda. Josias fica só no imenso pátio falando por solilóquio. JOSIAS Meu Senhor Jesus Cristo, o que fiz. Entreguei gente inocente a Dom Miguel e ao seu bando. Tenho que desfazer isso, eu preciso agir rápido. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 35.7 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Anoitecendo. Varanda da casa simples. Josias na varanda da casa simples sentado no banco ao lado de Dirceu. Rede. Dirceu sentado na rede. Josias voltando à tona, na varanda da casa simples. JOSIAS Temi ao pensar na mentira inventada por mim. Eu colocava em risco a vida de nhô Arigó e da sua esposa. Eu precisava fazer alguma coisa para salvá-los. Eu não podia e não devia levar o dom Miguel e seus capangas até a fazenda para matar pessoas inocentes... VOLTA PARA 94 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 36.7 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS. EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DOM MIGUEL. Pátio do casarão de dom Miguel. Josias está sozinho no imenso pátio da frente do casarão de Dom Miguel. Ele levanta-se rápido do tamborete e vasculha com os olhos todo o ambiente. Varanda do casarão. Ele entra na varanda. Porta aberta do casarão. Josias observa o lado de dentro da casa e sai da varanda. Ele anda rapidamente até a lateral esquerda da casa, indo para o fundo do quintal. Pequena cabana feita de pau-a-pique. Josias vê a pequena cabana de pau-a-pique. Pedra. Zenilda está sozinha, sentada na pedra. Josias vê Zenilda e se esconde por trás de uma pequena árvore. UMA MULHER NEGRA aproxima-se de Zenilda e entrega para ela uma gamela com feijão em palha para ser debulhado. Zenilda olha para as unhas, sopra os dedos, recebe a gamela e coloca-a ao seu lado, no chão. Árvore. Josias por trás da árvore mostra-se inquieto. Ele inventa alguns sinais e gestos para chamar a atenção de Zenilda. Chão com pequenas pedras. Josias abaixa, olha para o chão e apanha duas pequenas pedras e atira as em direção a Zenilda. A pequena pedra cai próxima a Zenilda. Zenilda se assusta, mas pega a gamela e se ajeita no colo. Pedra na mão de Josias. Josias atira outra pedra em direção a Zenilda. A pedra acerta na gamela. Zenilda atira a gamela no chão e levanta-se de súbito assustada e com raiva. ZENILDA Diabo que tá acontecendo?!! Quem é o capeta que saiu do inferno para atirar-me pedras? Virei passarinho, é? Se eu virasse passarinho, eu estaria voando por aí e não presa aqui, neste inferno a servir homens brancos do capeta... Pedra. Gamela caída no chão. Zenilda dá alguns passos para frente. Ela olha para um canto e outro. Pequena árvore. Josias sai de trás da pequena árvore e corre ao encontro de Zenilda um pouco apreensivo. JOSIAS Zenilda, sou eu, Josias!!! 95 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZENILDA (olha para Josias, admirada com os olhos arregalados) Meu Deus, o que vossemecê tá fazendo aqui? Foi vendido também por aquela peste de homem, foi? JOSIAS (senta-se na pedra e empurra Zenilda para os braços dele) Não, não fui. Eu fugi da fazenda do "nhô" Arigó, poucos dias depois que vossemecê foi arrancada de lá... ZENILDA (caindo nos braços de Josias) Como vossemecê me encontrou cá, nesse fim de mundo, dentro deste buraco... JOSIAS O mundo não tem fim não, Zenilda. Acho que nem tem começo. Há um monte de dias tô procurando por vossemecê, viajando dia e noite, espiando uma fazenda e outra... ZENILDA (sai dos braços de Josias) Vendeu as pepitas de ouro, vendeu? Veio para comprar a negrinha, cá, foi? JOSIAS A história é mais complicada do que vossemecê pensa. As pepitas de ouro estão seguras, bem guardadas, o problema é que o tal do Raimundo e do Dom Miguel descobriram umas coisas e tão querendo derramar sangue de gente inocente... ZENILDA Como assim? VOLTA PARA 96 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 35.8 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Anoitecendo. Varanda da casa simples. Josias na varanda da casa simples sentado no banco ao lado de Dirceu. Rede. Dirceu está sentado na rede. JOSIAS Contei para Zenilda o que se sucedia, inclusive sobre a tocaia causadora da morte do pai, dos dois irmãos de dom Miguel e dos servos deles, armada pelo falecido comandante. Ao contála sobre a minha mentira, qual mal poderia resultar em morte do nhô Arigó, da patroa dele e também de toda aquela gente da fazenda Paraíso, ela nem se importou, ainda brigou comigo porque eu não aceitei a oferta da proposta de Dom Miguel. Ela disse que eu era um negro besta, mas como ela aceitou a fugir comigo, eu nem liguei com isso. Só sei que eu peguei um cavalo dos homens de Dom Miguel e fugi com a Zenilda pela serra acima... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 36.8 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS. INT./EXT. NOITE. MORRO. GRUTA. Lua cheia. Alto da serra. Cavalos. Cavaleiros de dom Miguel cavalgando pelo alto da serra. Mato coberto. Josias e Zenilda escutam o trotear dos cavaleiros de Dom Miguel. Josias frea o cavalo. Árvores. Raios da luz da lua entre as árvores. JOSIAS olha para um lugar e outro. Trotear de cavalos. Zenilda pula de ímpeto da garupa do cavalo e cai de mal jeito no chão. ZENILDA Os homens de Dom Miguel estão seguindo a gente, Josias. Este cavalo parece que não anda? É melhor deixar ele por 97 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior aqui. Assim, a gente corre e esconde em algum lugar. A lua "tá" clareando tudo e eles vão acabar vendo e pegando a gente... JOSIAS Vamos descer a serra pelo outro lado e pegar a estrada... ZENILDA É melhor fazer o que tô falando. Vamos deixar de lado esse cavalo manco e seguir o mato correndo a pé... Trotear de cavalos. Josias pula da sela do cavalo, bate no animal e o faz correr dali. O cavalo sai dando pinote e corre para a direção de uma trilha, um pouco distante dali. O cavalo some rapidamente. O trotear de cavalos aproxima-se. Josias agarra Zenilda. Josias e Zenilda se atiram numa moita de capim. Trilha. Aparecem QUATRO CAVALEIROS dos cavaleiros de dom Miguel. Os quatro cavaleiros fream os cavalos e olham para a moita de capim. UM DOS CAVALEIROS Escutei um barulho por aqui... OUTRO UM DOS CAVALEIROS (soltando uma baforada de fumaça de um cigarro de palha) Eu também escutei o barulho de um cavalo troteando. Deve ser o cavalo do negro... OUTRO UM DOS CAVALEIROS (ajeita o cigarro de palha na boca e olha para adiante da pequena trilha) Vamos seguir em frente, eles devem ter seguido por esta trilha... Os quatro cavaleiros saem galopando pela trilha. Josias e Zenilda levantam-se rapidamente da moita de capim. Zenilda está trêmula. 98 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZENILDA Ufa, por pouco eles não pegaram vossemecê e eu... Não falei, são os homens de Dom Miguel. Eles farejam os negros, como se fossem uns lobos famintos... JOSIAS São capitães-do-mato e só não trazem com eles, cachorros.Eles seguiram para pegar a trilha adiante, por onde o nosso cavalo seguiu. Vossemecê pensou bem, o cavalo serviu para despistar os homens... ZENILDA Agora vamos procurar um esconderijo seguro, amanhã, quando o dia clarear, descemos a serra e pegamos a estrada... para onde vamos, não sei... JOSIAS Deus sabe onde, Zenilda, Deus sabe. ELE nunca desampara ninguém... ZENILDA (chorando) Desampara não, é? Tem raça mais desamparada do que a nossa? Parece que negro também não entra no céu... É tanta covardia. Homens e Deus, parece que todos estão contra a gente. JOSIAS (abraça Zenilda) Pensa assim, não, Zenilda. Deus, no final de tudo, recompesará a gente... ZENILDA Depois da morte? Grande coisa isso.Vejo tantos negros morrerem e serem jogados em valas, como se fossem bichos. 99 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Zenilda limpa as lágrimas com a barra do vestido. Josias e Zenilda brenham-se pelo mato.Andam. Correm. Param assustados. Escondemse por trás de árvores e às vezes se atiram em moitas de capins e entram em grotas e valas. Enorme gruta. Josias avista a enorme gruta. JOSIAS Olha só, ali. Uma gruta. Quem sabe não serve de um bom abrigo, por uma noite, Zenilda... ZENILDA Estou cansada, as minhas pernas estão todas arranhadas, coçando de picadas de formigas e de muriçocas. Estou zonza de sono. É bom mesmo entrar nesta gruta e descansar até o sol nascer de novo e a gente seguir rumo sem lugar algum... Gruta. Josias segue à frente e aproxima-se da entrada da gruta. A luz da Lua ilumina-se o interior da gruta. Entrada da gruta. Josias observa da entrada da gruta, todo o interior dela. Zenilda aproxima-se de Josias, dá alguns passos à frente dele e entra na gruta. ZENILDA (entrando na gruta) Parece uma gruta tranquila, nem morcego tem... JOSIAS (entrando na gruta) Até parece casa de branco, toda limpinha, asseada e clarinha... ZENILDA (solta uma risadinha afiada e dengosa) Vem cá, vem Josias. Vem para os braços de sua nega. Josias aproxima-se de Zenilda. Zenilda está sentada em um canto da gruta. Josias senta-se ao lado de Zenilda. Eles beijam-se na boca, trocam carícias e deitam-se agarradinhos. Josias e Zenilda dormem agarrados. 100 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior UM MORCEGO SAI VOANDO PARA FORA DA GRUTA. Madrugada. O Sol surge entre as serras. Os raios solares penetram, debilmente, entre as frestas da gruta. Canto do interior da gruta. Josias está deitado sozinho. Josias acorda assustado, põe-se de pé e procura por Zenilda no interior da gruta. Ele fala por solilóquio, enquanto a procura. JOSIAS Zenilda, onde está Zenilda. Ela dormiu comigo, não foi sonho e nenhuma visagem... Meu Deus, onde está Zenilda? Entrada da gruta. Josias sai da gruta. Um bando de pássaros foge de uma árvore, em revoada. Ele dá uma volta rápida pelas laterais da gruta. Pedras da gruta. Josias olha para um lugar e outro. Ele se arrisca a gritar por Zenilda. Escuta-se o eco de sua voz. Mato. Ele sai correndo pelo mato. Tarde. Josias correndo pelo mato. Noite. Pés de Josias. Uma cobra Jararacuçu cruza rápido pelo mato. Pés de Josias. Josias pisa na cobra jararacuçu. A cobra pica a perna de Josias. Chão. Touceira de mato. Josias cai gemendo de dor de dor numa touceira de capim. JOSIAS Meu Deus, meu Deus... Até parece que a Zenilda tem razão, será se o Senhor não importa mesmo com os negros? COBRA JARARACUÇU ANDANDO ENTRE AS FOLHAGENS DO MATO. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 35.9 – CONTINUAÇÃO - EXT./ NOITE. CASA SIMPLES COM VARANDA. 101 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Noite. Clarão da lua. Varanda da casa simples. Candeia acessa em um dos cantos da varanda da casa simples. Dirceu deitado na rede e Josias sentado no tamborete, voltando à tona. JOSIAS Taí, nhô Dirceu, a minha história. Eu dormi com a mulher e acordei só. Não sei se os homens pegaram a danada ou se ela, naquela madrugada, resolveu fugir sozinha, para outras bandas. Eu pensei em procurar Zenilda por mais algum tempo, rodar por aquela serra, mas como a coisa estava feia pro meu lado eu tive de fugir, feito um ladrão, para bem longe dos olhos daqueles homens. Foi daí que eu enfrentei a fome, o cansaço e a mordedura de cobra. Jararacuçu é cobra perigosa e, acho que por pensar que Deus havia me desamparado, não é que eu ainda tô vivo, merecendo os cuidados de nhozinho? Eu saberei como recompensar vossemecê, nhô, saberei sim... DIRCEU A sua história é muito bonita, Josias e acho que ainda não terminou aí. O mundo é cheio de mistérios e, creio eu, que com o tempo, cada um vai desvendando o seu mistério. Creio que vós mercê ainda há de ver e ter a sua Zenilda. JOSIAS FECHA OS OLHOS E DÁ RISADAS. MUGIDOS DE BOIS. CÉU ESTRELADO. DIRCEU PULA PARA FORA DA REDE. CAPÍTULO 3 SEQUÊNCIAS 37-56 Personagens deste capítulo: Dirceu Josias Velho Pedro 102 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Brancos e negros Feirantes: compradores e vendedores Zé Tomázio Marília Rosa Homens negros e brancos (empório de Zé Tomázio) Farias Homens negros Hipólito Miliquito Sebastiana Conceição Ernestino Rapazes negros (engenho) Homens negros (africanos) Homens negros e brancos (Porto de Galinhas) Homens, crianças e mulheres negros Negros das lavouras Esposa de Zé Antônio Zé Antônio (jovem) Dirceu (bebê de colo) Dois rapazes negros Duas mulheres negras Taipeiros, pedreiros e Homens negros e brancos cortadores de pedras Fiéis (pessoas brancas) Padres Homens negros Índios botocudos Índios Goitacazes Escrivão FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 40. 103 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 37 – INT./EXT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Manhã. Fundo do quintal da casa Galinhas cocoricando, cabras e bois berrando. Mato. Josias capinando o mato. Pequeno curral. Balde com leite. Dirceu termina de ordenhar uma vaca. Dirceu pega o balde e segue até a porta da cozinha. Porta da cozinha. Dirceu entra na cozinha da casa. Leiteira perto de uma prateleira da cozinha. Ele despeja o leite na leiteira e o prepara com o coalho. Fundo do quintal da casa. Josias está catando ovos no poleiro. Tarde. Gamela com queijos frescos. Dirceu e Josias fabricam queijos. Punhal afiado em cima de uma pedra. Josias amarrando uma ovelha de cabeça para baixo, no pé de uma árvore. Varanda da casa. Arreios de couro pendurados na varanda. Josias e Dirceu sentados em tamboretes, cortando couro e fazendo arreios. Cozinha. Mesa da cozinha. Josias está em pé, na mesa da cozinha, cortando uma enorme manta de toucinho. Dirceu pendura as tiras de toucinho em um estendal de vara, acima do fogão de lenha. Tarde. Fundo do quintal da casa simples com varanda. Bananal. Dirceu e Josias cortam cachos de bananas. Despensa da casa. Dirceu embalando pencas de bananas em um enorme balaio de bambu. Noite. Josias dormindo no quarto dele. Dirceu olhando as estrelas na varanda. Madrugada. Quintal, frente à casa. Jumento. Josias apertando uma cinta de couro entre as duas bruacas cheias de mantimentos no lombo do jumento com bruacas. Cavalo de Dirceu. Dirceu monta no cavalo, tira o chapéu e acena para Josias. Josias empurra o jumento e entrega-o para Dirceu. Dirceu sai galopando, empurrando o jumento pela rédea. Josias corre para abrir o colchete que serve de entrada e saída das terras de Dirceu. Dirceu montado no cavalo, puxando o jumento, passa pelo colchete e galopa lentamente por uma pequena estrada. Ele desaparece em uma curva da estrada. DIRCEU (VOICE OVER) Josias e eu estávamos a trabalhar a semana inteira, portanto, queríamos ver o resultado do nosso trabalho transformado em patacões. Eu, embora inexperiente, teria de ir até Vila Rica vender ou trocar as nossas mercadorias por mantimentos 104 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior necessários à nossa sobrevivência. Contávamos com queijos, quartos de carne de porco e de carneiro, toucinho defumado, cachos de bananas e arreios de couro para serem comercializados. Certo dia, acordamos cedo, arrumamos as cargas no lombo de um jumento e, antes que o sol começasse a iluminar por inteiro, peguei o meu chapéu de vaqueiro, montei no meu cavalo, empurrei o jumento e desci a serra em busca da estrada, qual rumava até Vila Rica. SEQUÊNCIA 38 – EXT./DIA. ESTRADA DA SERRA. VILA RICA. Serra. Estrada estreita e íngreme. Jumento. Bruacas balançando no lombo do jumento. Dirceu cavalgando, descendo a serra. Cavalos. GRUPO DE HOMENS MORENOS, BRANCOS E NEGROS galopando a trotes lentos,uns puxam um; outros, dois jumentos. Bruacas fechadas, outras abertas, cheias de mantimentos, sobre os lombos dos jumentos.Entre o grupo de homens morenos, brancos e negros, está um velho senhor galelo, olhos azuis, baixo e gordo, de sessenta anos de idade, conhecido como VELHO PEDRO. O velho Pedro conduz dois jumentos com bruacas abertas carregadas de rapaduras, bananas,laranjas e pequenos potes de barro. Ele vê Dirceu. Cavalo de Dirceu. Cavalo do velho Pedro aparelha-se com o cavalo de Dirceu. O velho Pedro tira o chapéu da cabeça e acena-o para Dirceu. Ele coloca novamente o chapéu na cabeça e frea a rédea do cavalo. VELHO PEDRO Mas olha quem eu vejo nesta estrada, o filho do meu bondoso amigo, Zé Antônio... DIRCEU Bom dia, senhor Pedro. Já tão cedo e descendo a serra? 105 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VELHO PEDRO Deus ajuda a quem cedo madruga, Dirceu. Assim, como todos, vou negociar em Vila Rica rapaduras e uma pacatas frutas do meu pomar. E o vosso pai? Quais são as notícias de Zé Antônio? DIRCEU O senhor meu pai? ora, senhor Pedro, imagina vós mercê, que ele resolveu fugir de casa com a Maria Antônia... O velho Pedro se assusta e dá uma risada. Dirceu prossegue, sem tirar os olhos da pequena estrada. DIRCEU Foi numa madrugada dessas. Eu acordei pela manhã e cadê ele e a Maria Antônia? Evaporaram-se na serra... Ele deve terse acometido de alguma loucura para fazer isso... VELHO PEDRO A vida é assim mesmo, cada cabeça uma sentença. Não creio que ele tenha se abatido de nenhuma loucura. Isso é vontade de viver e provar as suas capacidades de ir longe. O pai de vossemecê sempre foi um homem aventureiro... DIRCEU (balança um “sim” de cabeça) Desde menino eu tenho percebido isso... VELHO PEDRO Então ele deixou vossemecê sozinho, naquele topo de serra? DIRCEU (mede o percurso da estradinha íngreme com os olhos) Sozinho e Deus, até que apareceu um bom cristão por lá e está a me ajudar em algumas tarefas do roçado e da casa... 106 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VELHO PEDRO Deus não desampara ninguém. Ainda bem que vossemecê já se fez homem feito, capaz de tocar a vida sozinho... Isso é bom, fui criado dentro dessas condições também. Creio que o pai de "nhozinho" deve ter achado ouro por essas bandas. Ele estava sempre garimpando num lugar e outro. Ele parecia um tatu, vivia atolado na lama em busca de riqueza. DIRCEU O senhor crer nisso? VELHO PEDRO Não só creio, como tenho certeza, o pai de vossemecê é homem rico, possuidor de ouro e diamantes. Não foi à-toa que ele morou no Arraial de Tijuco e depois de ter voltado para cá, ter se embrenhado no alto deste morro. Ele gostava de ouvir as histórias dos índios, principalmente dos botocudos, vindos de outras regiões. Esses índios contavam muitas histórias sobre onde havia ou não ouro e pedras preciosas. Enquanto todos mangavam das histórias dos índios, o vosso pai não perdia tempo, tomava nota de tudo e rastreava os locais. DIRCEU Vós mercê também mangava das histórias dos tais índios botucudos, senhor Pedro? VELHO PEDRO O pior que sim. Eu ouvia as histórias deles contadas pelo povo da região. Lembro-me que também contavam haver alguns padres metidos a serem donos dos índios. As histórias eram engraçadas, pois diziam que padres desarmavam e vestiam os índios com roupas de gente branca. Dizem que os índios ficavam engraçados. Onde se viu índios sem flechas, sem tacapes ou sem roupas feitas com coisas do mato? 107 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu e o grupo de homens morenos, brancos e negros dão risadas. Cavalos troteando. Alguns o grupo de homens morenos, brancos e negros apressam o galope de seus cavalos e atrelam-se ao lado do velho Pedro. Silêncio. Dirceu troteia o cavalo, ficando um pouco para trás. O velho Pedro segue-se à frente aparelhando o cavalo dele aos outros homens do grupo de homens morenos, brancos e negros. Cavalos, grupo de homens morenos, brancos e negros puxando jumentos desaparecem numa pequena curva. SEQUÊNCIA 39 – EXT. /DIA. VILA RICA. PRAÇA AMARRACAVALOS. FEIRA NUMA GRANDE PRAÇA. Praça amarra-cavalos. Cavalos amarrados em postes. Lonas estendidas pelos chãos com verduras e frutas, dentro de gamelas e enormes masseiras. Galinhas presas com peias em jirais feitos de forquilhas. Leitões peados ao lado dos donos. Pedaços de carnes expostos em pequenos jirais de bambus. Produtos extraídos por todos os sitiantes da região (laranja, ovos, doces, biscoitos, bolos, pequi,umbú,marolo,etc.). HOMENS, MULHERES e CRIANÇAS andando para lá e para cá, na grande feira livre. Dirceu vende suas mercadorias na feira livre (dentro de todo o movimento da feira, ele receberá closes, negociando suas mercadorias). O burburinho da feira livre é geral. COMPRADORES BRANCOS escolhem as mercadorias, compram e as colocam nas cestas carregadas por ESCRAVOS e/ou ESCRAVAS. Há em um dos cantos um MERCADOR DE ESCRAVOS. HOMENS BRANCOS escolhendo escravos e/ou escravas, como se comprassem animais, consultando-lhes os dentes, corpos e pernas. Lona estendida com poucas mercadorias e Dirceu vendendo as suas mercadorias estendidas na lona. Fade out/fade in. Dirceu cansado, sentado em um tronco de madeira, confere alguns patacões e coloca-os em um alforje. DIRCEU (VOICE OVER) Em Vila Rica a aventura foi proveitosa. Na praça principal do comércio, conhecida pelo povo da roça de amarra-cavalos, fiz bons negócios. 108 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 40 – EXT/INT. DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PORTA DA VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. Ruas de Vila Rica. Dirceu anda a cavalo pelas ruas de Vila Rica. Dirceu frea o cavalo e observa alguns pequenos comércios. Um grande empório. Parede frontal do empório. Entre uma porta e outra da venda há uma placa de madeira com as seguintes inscrições: “EMPÓRIO DO TOMÁZIO”. A placa chama a atenção de Dirceu. Dirceu afrouxa a rédea do cavalo e segue para o “EMPÓRIO DO TOMÁZIO”. Postes de madeiras em frente ao empório. Há alguns cavalos amarrados nos postes. Dirceu apea do cavalo e amarra-o no poste. Calçada do empório. Dirceu dirige-se para a calçada. Portas do empório abertas. Dia. Vila Rica. Empório de Zé Tomázio. Ao entrar na porta do empório de Zé Tomázio, Dirceu para e observa rapidamente uma moça alta, esbelta, de cabelos cacheados, louros e finos, olhos azuis, de 17 anos. A jovem é MARÍLIA (a mesma que aparecera a ele no sonho). Marília sai da venda aos passos delicados. Ela está acompanhada por uma jovem negra, cujo nome é ROSA, também esbelta, alta, de aproximadamente 18 anos. Rosa ao ver Marília colocar os pés na rua, logo abre um guarda-chuva delicado, de cor rosa e bordado de rendinhas. Rosa protege a sua jovem patroa contra o sol da tarde. Porta do empório de Zé Tomázio. Dirceu parado próximo a porta do empório fica a observar Marília. Ele, com um sorriso nos lábios, contempla Marília. Marília e Rosa na calçada do empório. Marília olha para Dirceu e, delicadamente, sorri. Ela disfarça o sorriso, levando as mãos aos lábios. Dirceu, estagnado, olha para Marília. Rosa puxa Marília pelas mãos e protege-a com o guarda-chuva cor de rosa. ROSA Vamos sinhá Marília, vamos! Não é bom dar confiança para esses moços que nem a gente sabe de onde vem... Rosa e Marília apressam-se os passos e dobram a esquina de uma pequena rua. Dirceu entra no empório. Balcão largo. ZÉ TOMÁZIO, o dono do empório é um português gordo,baixo, olhos claros, cabelos 109 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ruívos, de 47 anos. Ele está por trás do balcão atendendo alguns fregueses. Sacos de feijão amotoados a um canto da parede. Dirceu se atrapalha e esbarra nos sacos de feijão. Zé Tomázio, num carregado sotaque português, dá risadas, cumprimentando Dirceu. ZÉ TOMÁZIO Boa tarde, meu prezadíssimo jovem. Ficaste impressionado com a rapariga, não ficaste? Bonita a cachopa, não é? O nome dela é Marília. O pai é um ex-minerador afortunado e cansado de aventuras... Dirceu olha para Zé Tomázio um pouco corado e sem graça. Dirceu encosta-se a sacaria e fica calado, tentado ver Marília lá fora. DIRCEU (VOICE OVER) Marília. Esse nome bateu-me na mente como se fosse um sino a repicar docemente. Marília, nome oriundo da palavra mar. Pensei. Será se eu estaria a encontrar naquele momento a minha Estrela, cá na terra? Porta do empório. ALGUNS HOMENS BRANCOS e HOMENS NEGROS entram no empório, dirigindo-se ao balcão. Balcão. Zé Tomázio abre garrafas de vinho e despeja em canecas, servindo aos homens. Prateleiras. Sacos abertos com mantimentos. Zé Tomázio mede feijão em uma medida de madeira e despeja-o em um alforje. Ele entrega o alforje cheio de feijão a um dos homens negros. Balcão. Moedas (ou patacas) em cima do balcão. O empório esvazia-se de repente. Dirceu aproxima-se do balcão olhando para as prateleiras. Zé Tomázio toca o dedo indicador da mão direita na testa de Dirceu dando risadas. ZÉ TOMÁZIO Creio que o rapaz se impressionou mesmo com a beleza da rapariga... Se quiseres conhecer a rapariga, sei como fazer... 110 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Zé Tomázio sorri. Gaveta do balcão vista do lado de dentro. Zé Tomázio abre a gaveta do balcão e tira de lá um leque antigo. Leque na mão. Ele abre o leque e mostra-o para Dirceu. ZÉ TOMÁZIO Este leque pertence dona Marília. Há tempo ela esqueceu-o cá, no balcão. Todas as vezes que ela vem cá, com a Rosa, a criada dela, eu me esqueço de entregá-lo... Ficarei calado e deixarei que vós mercê o entregue a ela. Invente qualquer coisa, diga a ela que vós mercê achou em outro lugar. Foi dessa maneira que eu conquistei a minha esposa, lá em Mariana... Leque na mão de Zé Tomázio. Zé Tomázio entrega o leque para Dirceu. Dirceu pega o leque e sorri. Alforje pendurado nas costas. Dirceu abre o alforje e coloca o leque dentro dele. SEQUÊNCIA 41 – EXT. DIA. ESTRADA ÍNGREME DA SERRA. Estrada da Serra. Dirceu, silenciosamente, trotea em seu cavalo, puxando o jumento. Bruacas balançando no lombo do jumento. Cavalos. Grupo de homens morenos, brancos e negros montados em seus respectivos cavalos, puxando jumentos com bruacas. Nas bruacas há mercadorias compradas em armazéns de Vila Rica. Alguns cavaleiros estão aparelhados aos outros, proseando alegremente. DIRCEU (VOICE OVER) Não demorei a sair de Vila Rica. Durante a viagem eu pensava na doce e jovem Marília, convencendo-me de que ela seria a estrela do céu despencada no mar e acolhida pela terra para que eu a contemplasse. VOLTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 111 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Flash back sobreposto em voice-over SEQUÊNCIA 40 – EXT/INT. DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PORTA DA VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. Dirceu parado próximo à porta do empório fica a observar Marília. Ele, com um sorriso nos lábios, contempla Marília. Marília e Rosa na calçada do empório. Marília olha para Dirceu e, delicadamente, sorri. Ela disfarça o sorriso, levando as mãos aos lábios. Dirceu, estagnado, olha para Marília. Rosa puxa Marília pelas mãos e protege-a com o guarda-chuva cor de rosa. DIRCEU (VOICE OVER) Eu havia encontrado a minha Estrela incorporada na alma de uma jovem de cabelos compridos, louros e ondulados, testa lisa e sobrancelhas arqueadas, olhos negros, da cor da noite enluarada, de faces rosadas, beiços e dentes delicados... CORTA PARA Dirceu cavalga escutando apenas a voz dele sussurrada pelo vento. DIRCEU É ela, é ela, é ela! Dirceu assustacom a própria vozdele, sussurada pelo vento. Ele frea o cavalo. A voz dele volta a sussurrar como se tocada pelo vento. DIRCEU É ela, é ela, ela, a estrela que caiu do céu e fugiu do mar para ficar contigo... Dirceu afrouxa a rédea do cavalo. O cavalo dá um salto, relichando e troteia ligeiramente. Ele sorri. 112 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (fala por solilóquio) Ora, parece que até o meu coração está a me dizer coisas, através do vento? VELHO PEDRO (aparelha o cavalo, ao cavalo de Dirceu) Então, prezado Jovem, fizeste bons negócios, na feira? DIRCEU (assusta-se com a voz do velho Pedro) Sim, senhor Pedro, a vida está a iniciar para mim bons negócios... CLOSE NO ROSTO DE DIRCEU COM UM SORRISO FROUXO NOS LÁBIOS SEQUÊNCIA 42 – EXT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA. Tarde. Quintal da frente da casa. Josias está na frente do quintal acompanhado por FARIAS, um senhor ruivo, cabelo grisalho, olhos claros, baixo, magro, de 60 anos, qual tem uma aparência de um cigano. Farias está na varanda sentado em um tamborete pitando um cachimbo. Dirceu aparece cavalgando ainda longe, na estrada da colina. Josias, estando de pé, sai da varanda e, do quintal de frente, avista Dirceu vindo a galope em direção à casa. Dirceu apressa o galope até chegar à entrada de suas terras. Josias corre para abrir a pequena cancela. Farias encostase na parede da varanda. Dirceu entra no quintal de frente da casa. Farias olha atentamente para Dirceu. Cavalo. Dirceu apea-se do cavalo. Josias pega o cavalo e o jumento com as bruacas e leva-os para o fundo do quintal da casa. Dirceu observa Farias um pouco surpreso. Cachimbo na boca de Farias. Baforada de fumaça pelo ar. Farias ajeita o cachimbo na boca, sai da varanda e vai ao encontro de Dirceu no quintal de frente da casa. Farias aproxima-se de Dirceu. 113 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FARIAS Sinhozinho é o filho do Zé Antônio, não é? (tira o chapéu e cumprimenta Dirceu respeitosamente) Meu nome é Farias, estou aqui a mando do pai de sinhozinho... DIRCEU Sim, sou o filho dele. (respira apreensivo) Traz a mim notícias a respeito do senhor meu pai? Aconteceu alguma coisa com o senhor meu pai? Pequeno alforje entre os peitos de Farias. Farias abre o pequeno alforje, enfia a mão dentro e retira de dentro um pequeno pedaço de pergaminho. Dirceu olha para o pergaminho. Farias estende a mão e entrega o pergaminho para Dirceu. FARIAS Nada de mal aconteceu ao senhor seu pai. Estou cá, a mando do pai de sinhozinho. Ele está bem, pediu para entregar a vossemecê esta encomenda... Pergaminho nas mãos de Dirceu. Dirceu afasta-se um pouco de Farias e abre o pergaminho apressadamente. Olhos de Dirceu correndo sobre as linhas escritas do pergaminho. ZÉ ANTÔNIO Meu filho, eu espero que esteja bem ao receber esse comunicado. A vida inteira desejei fazer a vós mercê essa surpresa. Espero que goste. Comprei uma fazenda para vós mercê tocá-la sozinho. A fazenda fica abaixo do ribeirão, conhecido como Rio dos Cascalhos. É a fazenda Ribeirão do Meio, não sei se você ainda se lembra dela. Creio que nela ainda há marcas dos seus primeiros passos, quando criança. Estou morando com a Maria Antonia num rancho, acima 114 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior deste rio e, quem sabe, podemos ainda nos encontrar por essas bandas. Um abraço do seu estimado pai, Zé Antônio. Pergaminho nas mãos de Dirceu. Dirceu fecha os olhos e sorri. Depois ele abre os olhos olha para o pergaminho e em seguida para Farias. DIRCEU Juro pela vida do meu pai, pela bela estrela do céu e pela maravilhosa mulher que vi hoje em Vila Rica, que eu tornarei na fazenda, Ribeirão do Meio, um grande vaqueiro... Dirceu enche o peito de ar e solta um grito de alegria. O eco da serra devolve-lhe o grito. Porta da casa simples com varanda. Josias corre do terreiro do fundo da casa simples com varanda para ver o que estava acontecendo com Dirceu. Farias solta uma gargalhada juntamente com uma baforada de fumaça do cachimbo. FARIAS Sou o servo de sinhozinho e posso dizer que a fazenda lá é bem aprumada. DIRCEU Fui criado lá. A fazenda já foi do meu pai. Ele vendeu-a apostando em minérios. Uma vez ele largou tudo e mudou para o Arraial do Tijuco em busca de diamantes. Moramos por lá uns cinco anos, quando ele, desiludido em ficar rico, retornou para esta região e construiu esta casa. Como ninguém reclamou as terras, ele apossou-se delas e construiu esta pequena propriedade. Desde quando ele vendeu a fazenda Riacho do Meio, ele jurava que um dia compraria ela novamente. FARIAS O pai de sinhozinho é homem de posse, tem ouro e diamante pra negociar... A dona dele é beiçuda, mas bonita, bem 115 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior vestida, feito mulher branca. Ela apareceu lá na fazenda com ele... DIRCEU O senhor mora lá na fazenda? Conte-me, como está a fazenda, quem foi o último proprietário dela? FARIAS Carece falar sobre ela não, sinhozinho. Sinhozinho mesmo vai ver ela de perto e avaliar por quantos danos ela passou. Os outros donos não foram muito cuidadosos como o senhor seu pai... Mas lá ainda está aquelas velhas negras, a Sebastiana e a Conceição... DIRCEU Elas estão vivas? Moram na fazenda? Foram elas que cuidaram de mim, quando criança... E o Ernestino? Ele também mora por lá? FARIAS Conheci esse não. Sei que na fazenda comprada pelo senhor seu pai tem quatro rapazes negros e muito bons, o nome deles é Miliquito, Cirilo, Hipólito e Ambrósio. Eles foram deixados na fazenda pelo último dono. O último dono da fazenda era doutor letrado, mas se envolveu em problemas da colônia e acabou sendo castigado. Dizem que ele foi mandado para outro país, sozinho, sem família e sem nada. O senhor seu pai comprou a fazenda Ribeirão do Meio, num leilão, seguindo ordem do rei. DIRCEU Quero que o senhor fique cá, conosco, até a semana que vem, para que possa nos ajudar na mudança. Atrelaremos as bruacas nos jumentos, recolheremos os animais e fecharemos a casa para tocarmos estrada, rumo à fazenda Ribeirão do 116 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Meio, qual pertenceu um dia ao senhor meu pai e agora a mim... SEQUÊNCIA 43 VARANDA. INT. /NOITE. CASA SIMPLES DE Casa simples de varanda. Varanda da casa simples. Josias dorme na rede da varanda da casa simples. Farias dorme no quarto na cama de Josias. DIRCEU (VOICE OVER) Hospedei o velho Farias em minha casa, durante uma semana, até que preparássemos a mudança para a fazenda Ribeirão do Meio. SEQUÊNCIA 44 - EXT./ DIA. QUINTAL DE FRENTE E DO FUNDO DA CASA SIMPLES COM VARANDA. ESTRADA ÍNGREME DA SERRA. Madrugada. Cantar do galo. Frente do quintal da casa simples com varanda. Três jumentos com bruacas atreladas. Josias e Farias acabam de atrelar duas bruacas no quarto jumento. Gaiola de madeira perto de um dos jumentos. Algumas galinhas e um galo, peados, dentro da gaiola de madeira. Três leitões peados, sobre o relvado. Josias pega a gaiola de madeira e coloca-a dentro de uma das bruacas. Farias pega os leitões peados e coloca-os em outra bruaca. Dirceu sai de dentro da casa com alguns utensílios domésticos, dirige-se a um dos jumentos, coloca os utensílios no chão e arruma um a um, nas bruacas do jumento. Ovelhas amotoadas a um canto, próximo da varanda da casa simples. Dois bois e quatro vacas pastam no canto da cerca, próxima á pequena cancela. Porta de frente da casa simples com varanda. Dirceu fecha a porta de frente da casa simples com varanda. Quintal de frente da casa simples com varanda. Cavalos de Dirceu, Farias e Josias. Dirceu, Josias e Farias montam em seus respectivos cavalos. Josias sopra um berrante de chifre de boi. Bois, vacas e ovelhas atravessam a pequena cancela. 117 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Outra semana depois, preparamos a mudança, atrelamos as bruacas nos jumentos, recolhemos os animais, fechamos a casa e tocamos pela estrada, rumo à fazenda Ribeirão do Meio. Estrada íngreme. Josias segue à frente, montado em um cavalo,tocando bois e ovelhas. Berrante. Josias sopra o berrante. Cavalos. Jumentos com bruacas. Dirceu e Farias, montados em seus cavalos, seguem atrás de Josias, cada um puxando dois jumentos com bruacas carregadas. DIRCEU (VOICE OVER) A viagem foi divertida. Enquanto enfrentávamos os íngremes caminhos e grotas, tocando gados e ovelhas, Josias ia à frente soprando um berrante inventado por ele, na véspera da partida. A viagem, ao contrário das outras, iniciou-se numa tarde, ao baixar o sol. Como levávamos alguns apetrechos atrelados aos jumentos, a viagem curta tornou-se longa. SEQUÊNCIA 45 - INT./EXT. NOITE. RELVADO. CABANA (OU TAPERA VELHA). Noite clara de Lua cheia. Ovelhas, cavalos e bois pastando. Frondosa árvore. Gaiolas de madeira com galinhas debaixo da frondosa árvore. Porcos peados, fuçando o chão. Relvado. Dirceu está deitado no relvado, com o olhar fixo para o céu. Velha cabana de pau-a-pique. Fumaça saindo de dentro da velha cabana de pau-a-pique. Interior da cabana. Paredes furadas. Fogo. Fogão feito de pedras. Farias, dentro da cabana. Colher de pau na mão de Farias. Ele mete a colher de pau dentro de uma panela fervente. Árvores. Troncos de árvores. Josias amarra redes nos troncos das árvores. Relvado. Dirceu deitado sobre o relvado. 118 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Na primeira noite paramos próximo a uma cabana abandonada, para descansarmos. Dentro da velha cabana, o velho Farias improvisava uma ceia para enganarmos o estômago. Eu, ao descobrir no céu a Lua cheia, deitei-me no relvado e fiquei a observá-la, juntamente com as estrelas. Eu procurava a minha estrela, de brilho reluzente, porém, não a encontrava. Ela parecia avisar-me que abandonara o céu para ficar na terra, pertinho de mim. Se assim fosse, Marília estaria em Vila Rica, a rir e a fugir de mim assustada e confusa por não saber qual seria o seu destino. Seria a jovem Marília, a minha pastora, a gentil e doce senhora da fazenda reconquistada a mim, pelo senhor meu pai? SEQUÊNCIA 46 - INT./EXT./ NOITE. INTERIOR DA CABANA. RELVADO. RIACHO. Interior da cabana abandonada. Pequenas gamelas nas mãos de Farias e de Josias. Farias e Josias servem-se da comida dentro da cabana abandonada. Luz da lua. Mato. Dirceu anda pelo mato. Riacho. Dirceu encontra-se um riacho próximo dali. Riacho. Água caindo de um penhasco. Lago com água cristalina, feito a um espelho. A Lua cheia e as estrelas refletem-se na água. Margem do lago. Dirceu observa a Lua e as estrelas refletidas na água. Dirceu põe-se de cócoras às margens do riacho. DIRCEU Olha só quem está na água, a minha estrela, brincando com a Lua... Margem do lago. Dirceu abaixa, estende as mãos ao lago, toca-se na água e lava o rosto DIRCEU Quero também brincar com a minha estrela... 119 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior EFEITOS: Margem do lago. Dirceu põe-se de pé e tira a roupa do corpo. Relvado. Roupa de Dirceu no relvado. Nu Dirceu pula para dentro do lago. Dirceu mergulha sob a água, tenta pegar a Lua e as estrelas refletidas no lago. Dirceu joga beijos para as estrelas do céu e tenta abraçar o reflexo delas, no lago. Céu. Lua e estrelas no céu. Lago. Lua e estrelas refletindo-se no lago. Uma estrela do céu cai no lago e transforma-se em Marília. Marília, nua, nada no lago. Dirceu vê Marília, nua, nadando no lago. Ele, de ímpeto, sai nadando apressadamente ao encontro de Marília. Ele alcança Marília. Marília se transforma em uma estrela e foge rapidamente para o céu. Lago. Água parada. As imagens da Lua e das estrelas refletem-se no lago. Margem do lago. Dirceu, nu, sentado à margem do lago. Dirceu observa o reflexo da Lua e das estrelas no lago. DIRCEU (VOICE OVER) A Lua e as estrela refletiam-se naquele enorme espelho aquático, convidando-me, com ímpeto, a brincar com elas. Sorri feito homem tolo a perder a razão por causa de uma estrela... Sorri ao lembrar que aquela estrela, além de estar na terra, estaria também no céu. Fiquei observando o reflexo dela na fonte e constatei o quanto radiava alegria. A estrela do meu sonho, a menina de Vila Rica, estava ali, na fonte, iluminando o meu corpo e aliviando-me do cansaço. Dirceu pula novamente no lago. Aparece, no centro do lago, apenas o reflexo de uma estrela luzente. Ele mergulha e vai ao encontro dela. A estrela luzente transforma-se em Europa. Dirceu mergulha na água e transforma-se em Touro. Europa e Touro, ambos da mitologia grega, mergulham no lago. Touro consegue pegar Europa. Europa, ao ser tocada por Touro, transforma-se em Marília. Touro, porém, transformase em Dirceu. Marília e Dirceu, os dois nus, se abraçam. Dirceu tenta beijar Marília, mas surge as ondas do mar e carrega Marília para longe. Dirceu nada contra as ondas, mas as ondas transportam Marília para o céu, transformando-a na estrela luzente. Água. Dirceu surge de um megulho e olha para o céu. Céu. A estrela luzente brilha lá do céu. Dirceu nada, alcança a margem do lago e sai. Relvado. Ele, nu, deita-se 120 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior no relvado e fica a observar a estrela luzente. Roupas de Dirceu. Mãos de Dirceu pegando as roupas. DIRCEU (VOICE OVER) Mergulhei na água como se eu fosse o Jove disfarçado em touro, pronto para roubar Europa e levá-la para o longínquo oceano, fazendo-a minha esposa. Europa, não era Europa, mas minha Marília de Vila Rica, que a partir de então não mais sairia facilmente da minha mente. SEQUÊNCIA 47 - EXT. /NOITE. FRENTE À TAPERA. Árvores. Redes amarradas nas árvores. Josias e Farias dormem em suas respectivas redes amarradas nas árvores. Labaredas de fogo. Pequena fogueira, próxima às redes amarradas nas árvores. Dirceu sentado à beira da fogueira. Mãos de Dirceu com gravetos. Dirceu alimenta a pequena fogueira com gravetos. O fogo crepita-se, aumentando e abaixando as suas labaredas. Brilho do fogo no rosto de Dirceu. Labaredas de Fogo da fogueira. SEQUÊNCIA 48 - EXT./INT. /DIA. ESTRADA. MATOS E RIACHOS. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CANCELA. CASARÃO DA FAZENDA E VARANDA. Madrugada. O sol desponta no horizonte. Jumentos. Bruacas. Gaiola na bruaca, porcos pendurados nas cangaias de um burro. Ovelhas, bois e vacas berrando. Dirceu, Josias e Farias troteam em seus cavalos. Grotas. Estrada fechada. Desvios entre o mato.Riacho.Animais bebendo água no riacho. Árvore. Dirceu, Josias e Farias comendo queijo com rapadura debaixo de uma frondosa árvore. Alto da serra. Visão panorâmica da serra. Cavalos de Dirceu, Josias e Farias troteando rápido numa pequena trilha. Tarde. Alto da serra. Dirceu frea o cavalo e avista a Fazenda Ribeirão do Meio. 121 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (sorri e grita entusiasmado) Ribeirão do Meio. Estou enxergando a minha fazenda, estamos chegando... Descida da serra. Caminho estreito da descida da serra. Fila indiana. Jumentos atrelados. Cavalos. Dirceu, Josias e Farias apressam-se os galopes. Pequena grota. Uma ovelha cai dentro da pequena grota. Josias pula do cavalo e corre para tirar a ovelha de dentro da grota. Josias tira a ovelha da grota e toca-a para junto do rebanho. Cavalo de Josias. Ele Corre e monta em seu cavalo. Fim do caminho estreito. Pôr do sol. Estrada de areia. Cavalo de Josias. Berrante. Josias sopra o berrante. Josias, Dirceu e Farias se emparelham os cavalos. Fazenda Riacho do Meio. Cancela da Fazenda Ribeirão do Meio. Josias sopra o berrante. CIRILO, HIPÓLITO E MILIQUITO, homens negros, magros e altos, entre 30 e 32 anos, correm para abrir a cancela da Fazenda Ribeirão do Meio. Cirilo chega á frente e abre a cancela. Hipólito, parado, coloca as mãos na cabeça, segurando o chapéu. Miliquito aproxima-se de Hipólito. Miliquito e Hipólito reparam, admirados, a chegada de Dirceu, Josias e Farias. Cirilo sai do lado de fora da cancela e espera pela chegada dos viajantes. Dirceu se encontra no meio de Josias e Farias. HIPÓLITO O tal do nhozinho, filho do nhô Zé Antônio tá chegando. Olha lá, é ele mesmo. O velho Farias tá com ele e o outro. O novo dono da fazenda é bem moço. Casarão da fazenda. Varanda do casarão. SEBASTIANA e CONCEIÇÃO, mulheres negras, idosas, de aproximadamente 60 anos, estão na varanda do casarão da fazenda. Elas, ansiosas, batem palmas ao ver Dirceu, Josias e Farias atravessarem a cancela e entrarem no pátio de frente da casa da fazenda. Sebastiana e Conceição acenam as mãos para eles. Dirceu tira o chapéu e abana-o para todos. Ele frea o cavalo, olha para o céu e faz o sinal da cruz. 122 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Os poucos criados da fazenda correram para nos receber na cancela. Atravessamos a cancela. Eu tirei o meu chapéu e acenei-o, para todos. A minha alegria foi tamanha, que olhei para o céu e agradeci a Deus, fazendo o sinal da cruz. CORTA PARA Varanda do casarão. Sebastiana cutuca Conceição. SEBASTIANA Assunta lá, Conceição, olhe só o nosso menino no corpo de homem... CONCEIÇÃO É mesmo, Sebastiana. O menino se fez a feição do pai... é a cara e o jeito de nhô Zé Antônio, quando moço... SEBASTIANA Espero que ele se aprume aqui, Conceição, e que ele trate direito desta fazenda... CONCEIÇÃO Peço a Deus que sim, Sebastiana, ultimamente essas terras de cá andam tão maltratadas... SEBASTIANA Vamos lá, Conceição, vamos... Vamos receber o nosso menino... Dirceu, ainda montado no cavalo, calado, mira os olhos para toda a gente, ali, da fazenda. Dirceu gira o cavalo e vasculha com os olhos toda a frente da fazenda. O casarão, a varanda, as árvores e o velho curral, tudo gira formando uma só imagem perante aos olhos de Dirceu. 123 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Calado, senti uma ansiedade louca de correr por toda aquela terra, matar a minha saudade e crer na verdade de estar ali, dando continuidade aos meus sonhos de criança. Meus olhos não davam conta de registrar tudo de uma só vez. Dirceu apea do cavalo e sai andando pela fazenda. Dirceu atravessa o curral, em frente da casa, para e observa os animais, os pastos, as plantas, as montanhas, as cercas, os currais e a pequena e velha senzala, corrompida com o tempo. DIRCEU (VOICE OVER) Apeei-me do cavalo, atravessei o curral em frente da casa e parei para observar os animais, os pastos, as plantas, as montanhas, as cercas, os currais, a pequena senzala; enfim, tudo o que os meus olhos pudessem alcançar em silêncio. Percebi a mudança de algumas coisas, embora, ainda restavam ali fortes resquícios de um passado distante. Quintal de frente da fazenda. Cirilo, Miliquito, Hipólito e Ambrósio estão ao lado de Josias, no quintal de frente da fazenda. Farias aproxima-se deles. FARIAS Vossemecês ficam aí, de papo pro ar e nem ver que a tarde está caindo. Logo anoitece e ainda não desatrelaram os cavalos e os jumentos. Os bichos estão cansados, é preciso dar água para eles e soltá-los no pasto. Separem um lugarzinho no curral e coloquem as ovelhas, amanhã cedo, a gente solta elas no pasto... Miliquito põe o chapéu na cabeça e dá um sinal para os outros. Todos obedecem as ordens de Farias. Josias também acompanha os rapazes da fazenda para ajudá-los a desatrelar os animais. Farias vai para a varanda do casarão. 124 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 49 – EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. COZINHA. Cozinha da casa. Sebastiana e Conceição arrumam a mesa com algumas iguarias. Dirceu entra na cozinha pela larga porta do fundo. Ele ergue o nariz para cima e respira suavemente. DIRCEU Estou sentindo o cheiro de coisas gostosas... SEBASTIANA Bondade do nhozinho, as negras, cá, estão caducando, esquecendo dos temperos e até fazendo coisas erradas na cozinha. Mesa grande. Bolo de mandioca no prato. Dirceu aproxima-se da mesa e belisca um pedaço do bolo, comendo-o e se deliciando. DIRCEU O sabor está do mesmo jeito. Eu sempre gostei deste bolo de mandioca. Só vós mercês mesmo para fazer, assim, um bolo tão gostoso. Mesa. bule esmaltado nas mãos de Conceição. Conceição coloca o bule esmaltado na mesa. CONCEIÇÃO Nhozinho já deu uma voltinha por aí, não foi? Deu para matar a saudade? Muitas coisas mudaram, não mudaram? Dirceu faz "sim" com a cabeça. Banco encostado à mesa. Dirceu sentase no grande banco. Conceição serve-lhe um café com leite. Janela aberta. Dirceu olha pela janela e avista uma grande mangueira. 125 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Olha lá, o meu pé de manga. Foi o Ernestino e eu quem o plantou, quando éramos crianças... Dirceu levanta-se do banco e vai até a janela. Ele olha para o lado de fora. DIRCEU (levanta-se do banco e vai até a janela. Ele espia o lado de fora) Foi o Ernestino e eu quem o plantou, quando éramos crianças... SEBASTIANA (tampa uma das panelas no fogão e olha para Dirceu) O menino deve de estar lembrando das traquinices de infância, não está? DIRCEU Ué, Sebastiana, parece que vós mercê lê os pensamentos da gente... SEBASTIANA O jeito de como nhozinho olhou para o pé de manga... Lembra do pote de barro que vossemecê e o Ernestino quebraram? DIRCEU Lembro, sim... Nós pegamos o pote de barro para molhar o pé de manga... SEBASTIANA É e o tempo estava chovendo, não precisava de tanta malineza. O pote era novo e o pai de inhozinho pagou caro por ele... 126 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Eu lembro também da bronca de vós mercê... SEBASTIANA Depois nhozinho e Ernestino embrenharam-se no mato, que só mesmo o Zé Antônio, pai de vossemecê para ir atrás... DIRCEU (larga a janela e vai sentar-se a mesa) O senhor meu pai ficou tão preocupado com a fuga minha e de Ernestino, que nem nos castigou... E por falar em Ernestino, onde se encontra o Ernestino, Sebastiana? Ele deve estar moço, feito assim, como eu, não deve estar? Fogão de lenha. Pano de prato nas mãos de Sebastiana. Caldeirão de ferro com algo fervente, na chapa do fogão de lenha. Sebastiana puxa o caldeirão de ferro para fora da chapa do fogão de lenha. Sebastiana olha para Dirceu, tristemente. SEBASTIANA Ernestino, nhozinho, Ernestino não teve a mesma sorte que nhozinho, para se ver jovem e bonito. Ernestino partiu dessa vida muito cedo. Faz tempo qu'ele morreu na moenda de cana... Dirceu tira o chapéu e faz o sinal da cruz. Conceição, em dos cantos da cozinha faz também o sinal da cruz. Sebastiana olha para Dirceu e em seguida para Conceição. DIRCEU Na moenda? Meu Deus deve ter sido horrível! Ernestino era um menino tão esperto, vivo e atencioso. Como pôde acontecer isso? 127 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 50 - EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CASA-DO-ENGENHO OU MOITA. Flash back - Relato de Sebastiana. Legenda “1784” Casa-do-engenho ou moita. Engrenagens do engenho moendo canas. Jumentos atrelados ao engenho, fazendo rodar as engrenagens do engenho de cana. DOIS RAPAZES NEGROS raspam as canas com enormes facões e as entregam a um crioulo forte e musculoso. O CRIOULO FORTE E MUSCULOSO enfia as canas raspadas nas engrenagens do engenho de cana. O CRIOULO FORTE E MUSCULOSO afasta-se das engrenagens do engenho de cana. ERNESTINO, negro, com aproximadamente 15 anos de idade aparece enfiando canas nas engrenagens do engenho de cana. Mãos de Ernestino enfiando canas nas engrenagens do engenho de cana. Engrenagens do engenho moendo canas. Mão direita de Ernestino sendo puxada pelas engrenagens do engenho de cana. Caldo de cana misturado com sangue escorre para o aparador. Casa da senzala da fazenda Ribeirão do Meio. Quarto da casa da sensala da fazenda. Ernestino deitado numa cama do quarto da sensala da fazenda. Ernestino morto na cama do quarto da sensala da fazenda. Cemitério do pé do morro. Sepultura de Ernestino no cemitério do pé do morro. SEBASTIANA (OFF) Dissem que o menino distraiu, nhozinho, contam que ele enfiou um taquinho de cana na moenda e, quando viu, a mão foi junta. O coitado perdeu uns três dedos da mão, agonizou por algumas semanas, teve febre, calafrios. A mão do coitado inchou, ficou azul, parecia que ele ia perder tudo, até o braço. Numa madrugada, quando parecia qu'ele estava melhorando da dor, ele morreu caladinho, feito um passarinho no ninho. Agora ele "tá" lá, enterrado no pé do morro e descansando com os anjos, no céu... VOLTA PARA 128 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 49.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. COZINHA. Dirceu olha para Sebastiana e demonstra-se horrorizado com o relato feito por ela. DIRCEU É, que os anjos o tenha no céu. Lá, o Ernestino deve ter se transformado em um anjo... Sim, em um anjinho esperto, voando entre as nuvens e ajudando, cá na terra, um e outro... CONCEIÇÃO E SEBASTIANA FAZEM O SINAL DA CRUZ. SEQUÊNCIA 51 – EXT./INT. VÁRIOS. Flash back – Relato de Dirceu. África. Reino do Congo. HOMENS NEGROS fugindo de Homens brancos. HOMENS NEGROS sendo resgatados à força por homens brancos e sendo jogados nos porões das naus. Mar. Naus chegando em terras brasileiras. Porto de Galinhas. HOMENS BRANCOS negociando os homens negros. Lavouras. Sol quente. HOMENS NEGROS trabalhando nas lavouras de cana-de-açúcar, algodão, mandioca, tabaco e café. Engenhos, oficinas e manufaturas. MULHERES e CRIANÇAS NEGRAS, de várias idades, ajudando os homens negros na fabricação de rapadura, aguardente, farinha de mandioca e tabaco. DIRCEU (OFF) Tanto eu, quanto o meu pai, nunca gostávamos de ter escravos, mas, infelizmente, nessa época, o sistema da nossa colônia não dava outra alternativa senão escravizar os negros para o auxílio da mão-de-obra. Os homens brancos roubavam os homens negros de África, a fim de enriquecerem-se com o triste comércio de tráfico humano. 129 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Efeito: (imagens desbotadas). Legenda: "Vila Rica, 1772". Manhã. Mercado de escravos. ZÉ ANTÔNIO aparece jovem, comprando dois rapazes negros e duas mulheres negras. Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio, varanda da casa recém nova. ZÉ ANTÔNIO e uma mulher branca, ESPOSA dele, jovem de aproximadamente 20 anos, com uma criança branca, de aproximadamente dois anos, no colo - esta criança é Dirceu - estão sentados em cadeiras de canapés, na varanda. Os DOIS RAPAZES NEGROS e as DUAS MULHERES NEGRAS(os mesmos comprados por Zé Antonio)estão na varanda da casa ao lado de Zé Antônio e da esposa, com Dirceu no colo.Todos, na varanda da casa, sentados nos canapés, conversam alegremente. DIRCEU (OFF) Se o meu pai comprava escravos, ninguém acreditava, que eles, em nossa propriedade, eram tratados como cristãos; uns ajudavam os outros. Dessa forma, todos formávamos uma enorme família. Eu aprendi com o meu pai uma importante lição: ninguém pertencia a ninguém, todos éramos criaturas de Deus. SEQUÊNCIA 52 – FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Relvado. Dirceu andando a pé pelo relvado. Pássaros voam entre as árvores. Uma velha capela. Os olhos de Dirceu alcançam a velha capela, qual está nas terras da fazenda Ribeirão do Meio, do mesmo lado do casarão da fazenda, a aproximadamente 2,OOO mts. Para se chegar à capela, é preciso andar sobre uma pequena estrada de pedras. Dirceu andando na pequena estrada de pedras. Capela da fazenda. Frontifício detalhado da capela da fazenda. DIRCEU (VOICE OVER) Meus olhos alcançaram a capela feita de pedra. Ela foi construída entre os anos de 1750 a 1753, quando foi inaugurada. Eu não conhecia muito a história de como ou porque ela fora construída ali, naquele descampado. 130 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA SEQUÊNCIA 53 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CONSTRUÇÃO DA CAPELA DA FAZENDA. Flash back – Relato de Dirceu sobre a construção da capela da fazenda. Construção da capela da fazenda: taipeiros, pedreiros, carpinteiros e cortadores de pedras, trabalhando. Capela da fazenda construída. DIRCEU (OFF) Tudo o que eu sabia é que ela foi idealizada pelos jesuítas, erguida por taipeiros mamelucos e carpinteiros do Reino, pedreiros do Algarve e construtores do Norte, gente do Porto e também de Tras-os-Montes. Todos eles, excelentes cortadores de pedras que vieram para a nossa colônia devido à farta mão-de-obra daquela época. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 52.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CAPELA DA FAZENDA. Dirceu observa os detalhes do altar e do púpito da capela. O altar da capela parece um túmulo, cujos riscos foram copiados da tumba de Artaxerxes II, da Pérsia. Um pequeno púpito simples, contornado e cheio de cores complexas, um pequeno afresco com anjos, tendo ao centro São Rafael e São Miguel Arcanjo. As pinturas são barrocas. DIRCEU (VOICE OFF) O altar e o púlpito da capela, segundo o meu pai, foram projetados e construídos pelo mestre Noronha, sob a proteção de um padre espanhol. Ele somente permitiu as pessoas entrarem na capela no dia da inauguração. Os poucos moradores da região aguardavam curiosos para conhecer a 131 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior beleza pousada no interior dela, mas, segundo o meu pai, eles se desapontaram ao vê-Ia, nada extraordinário. No interior da capela havia um altar, parecendo um túmulo e um pequeno púlpito simples, cheio de contornos e cores douradas com desenhos complexos. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 53.1– CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CAPELA DA FAZENDA. Interior da capela da fazenda. FIÉIS na capela (os fiéis são pessoas brancas). Púpito. UM PADRE ESPANHOL pregando no púlpito da capela. DIRCEU (OFF) O padre argumentava, naquela época, que o segredo mais importante do mundo existia nesta capela. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 52.2 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. INTERIOR DA CAPELA DA FAZENDA. Interior da capela. Bancos. Dirceu sozinho sentado em um dos bancos da capela. DIRCEU Seria a fé? A vocação de servir a Deus? Qual segredo seria esse, que jamais fora revelado? Ora, se era um segredo, então haveria qualquer coisa de mistério... VOLTA PARA 132 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 53.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA. ADRO DA CAPELA DA FAZENDA. Adro da capela. Cova grande. PESSOAS BRANCAS e PADRES ao redor da cova. Caixão de madeira. HOMENS NEGROS descem o caixão de madeira para dentro da cova grande. DIRCEU (OFF) Semanas depois da inauguração o padre espanhol morreu e foi sepultado no adro da capela. Daí, por diante, a capela foi abandonada pelos fiéis, quais, jamais comentaram sobre o maior segredo do mundo, guardado nela. Uma vez abandonada, a capela acabou sendo invadida pelos índios botocudos. Dia. Capela. Aldeia dos índios botocudos na frente da capela. Na aldeia as ocas são feitas com varas, fechada e coberta com palhas. Movimento de índios nas ocas.Porta da capela aberta. ÍNDIOS BOTOCUDOS entram e saem da capela. Interior da capela. Algumas ÍNDIAS BOTOCUDAS estão amotoados no canto do altar fazendo cestas de palhas, enquanto outras, sentadas no chão, amamentam crianças botucudas no peito. Noite. Fogueiras. Festa na aldeia. No centro do terreiro, entre as ocas, há TRÊS ÍNDIOS PUERIS OU GOITACAZES amarrados em um poste. A tribo dos botocudos dança em volta dos três índios pueris ou goitacazes, quais, são seus prisioneiros. Àrvores altas e escuras, ao redor da aldeia dos índios botocudos. ÍNDIOS PUERIS OU GOITACAZES sobem nas árvores e ateiam flechas com fogo nas ocas dos índios botocudos. Labaredas de fogo. Incêncio geral. Barulhos. Gritos dos índios botucudos. ÍNDIOS BOTOCUDOS abandonam a aldeia. Capela. Alguns ÍNDIOS BOTOCUDOS correm para dentro da capela. Interior da capela. Os ÍNDIOS BOTOCUDOS são surpreendidos por um bando de índios pueris ou goitacazes. Fogo. Flechas com fogo voam por todos os lados. ÍNDIOS PUERIS OU GOITACAZES vencem a luta. Corpos de índios botocudos espalhados pela aldeia. Os TRÊS ÍNDIOS PUERIS OU GOITACAZES amarrados no poste são libertados pela tribo deles. 133 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (OFF) Os índios botocudos eram perigosos, desordeiros e praticavam o canabalismo, roubando e devorando os índios de outras aldeias. Após a morte do padre fundador da capela, eles invadiram a capela, construíram a sua aldeia ao redor dela e só saíram dali devido a uma guerra com os índios da tribo dos puris ou goitacazes, que, numa certa noite surgiram de repente para salvar alguns índios de sua tribo que estavam sob o poder dos bototocudos. Embora a capela servisse também de esconderijo para a desavença noturna, felizmente, ela pôde manter-se de pé. Tempos depois, dizeram que os jesuítas alimentavam a esperança de começar ali uma freguesia, mas, infelizmente, ninguém soube o porquê,os padres abandonaram a região deixando de lado as suas missões catequéticas. Cinzas no adro da capela. Tribo dos botocudos abandonada. Imagem da capela. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 52.3 – CONTINUAÇÃO -INT./DIA. INTERIOR DA CAPELA DA FAZENDA. Interior da capela. Altar principal da capela sem nenhuma imagem. Dirceu sozinho olhando para o altar principal da capela. DIRCEU Já ouvi falar de tantos mistérios que possam estar escondidos nesta capela, mas parecia que tudo não se passava de mitos ou lendas inventadas pelo povo desta pacata região de Minas... SEQUÊNCIA 54 – INT. /DIA. VILA RICA. SALA DE UM ESCRIVÃO. 134 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Vila Rica. Manhã. Casa assobradada. Sala ampla e arejada. Escrivaninha. Mesa.Caderno de registro e uma enorme lupa em cima da mesa.Dirceu sentado, juntamente com um escrivão. O ESCRIVÃO é um português magro e alto, de 30 anos de idade, qual mantém forte o sotaque português de Portugal. Caderno de registro sobre a mesa. O escrivão abre o caderno de registro, pega a lupa e confere-lhe algumas folhas. ESCRIVÃO Ribeirão do Meio... Ribei...Ora, Senhor Dirceu, desde que o senhor seu pai vendeu a fazenda, ela passou a pertencer a muitos outros donatários. Portanto, ela passou a ter outros nomes... DIRCEU Quero dar à fazenda o seu antigo nome,Ribeirão do Meio. Posso desfazer esse último registro, não posso? ESCRIVÃO (volta a consultar as páginas do caderno com a lupa) Sim, claro. Basta redigir uma ata e realizar o desejo de vós mercê. Custará alguns réis...Nada que não possas pagar. DIRCEU Dinheiro não é o problema. Quero que a fazenda volte ao seu antigo nome, estou a reformá-la e pretendo dar a ela todas as melhorias possíveis... Mesa. O Escrivão coloca-se os cotovelos na mesa. Caderno aberto. O Escrivão desfolha o caderno e abre uma de suas páginas. Lupa na mão. Com a lupa, o Escrivão consulta as letras escritas na página. ESCRIVÃO Estou a ver que o último proprietário da fazenda foi um magistrado que largou a profissão para dedicar-se à mineração, à agricultura, à pecuária e à industrialização de aguardente. 135 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU E quem era esse magistrado? ESCRIVÃO (apenas prossegue) Mas, infelizmente, esse pobre magistrado, ao se envolver em assuntos da colônia, acabou sendo degredado à África. Tivemos notícias que ele viveu pouco tempo por lá, pois morreu de malária, em Angola. DIRCEU O senhor escrivão está falando do senhor... ESCRIVÃO Não, não nos interessa nomes... Sabemos que alguns desses desgraçados foram mortos e outros degredados, devido ao movimento de tentativa de libertação da colônia, de Portugal.... Mesa. Mãos do escrivão. O Escrivão bate palmas e esfrega as mãos meio apreensivo ESCRIVÃO O senhor seu pai adquiriu a fazenda por um preço quase simbólico, pois o homem que havia arrematado a fazenda, ao saber que ela pertenceu ao tal revolucionário, resolveu vendêla a qualquer preço. Todas as pessoas, por ignorância ou não, diziam que esses revolucionários eram homens excomungados pela Santa Madre Igreja, por intermédio do Papa Pio VI. Porém, segundo eles, tanto os revolucionários, quanto os seus descendentes e bens confiscados estavam endemoninhados... DIRCEU (dá risadas) Meu Deus, que povo bobo, senhor escrivão, pois nada havia de religiosidade naquele movimento. Tudo não se passou de 136 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior uma questão de poderes da coroa real. Ah, deixemos isso de lado, o importante é que eu quero viver bem em minhas terras novamente conquistadas... O Escrivão solta dois ou três gritinhos engraçados, bate palmas e esfrega as mãos. Dirceu fica a encará-lo. ESCRIVÃO Pois bem, veremos o que temos de fazer para que as terras sejam suas, definitivamente suas, senhor Dirceu... Mão direita pelo ar. O Escrivão sinaliza com as mãos que quer dinheiro. Dirceu põe-se de pé, enfia a mão dentro de um alforje e tira um pequeno saco com alguns patacões.O Escrivão sorri, pega o saco de moedas, põe-se de pé, abre o pequeno saco e despeja as moedas sobre a mesa. Moedas tilintam na mesa. O Escrivão arregala os olhos,sorri e abre os braços sobre a mesa, cercando as moedas.Gaveta da mesa. O Escrivão abre a gaveta da mesa e despeja as moedas abraçando-as entre os braços. ESCRIVÃO Creio que estes patacões serão suficientes para pagar as despesas da documentação, senhor Dirceu. Não sou lá tão ambiociosa, mas, como bem sabes, senhor Dirceu, sem dinheiro, ninguém vive. Mesa. Caderno aberto e tinteiro com pena sobre a mesa. O ESCRIVÃO ajeita-se o caderno, molha a pena no tinteiro e escreve alguma coisa na página do caderno. ESCRIVÃO A fazenda, portanto, a partir de hoje pertencerá ao senhor Dirceu. 137 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Que bom, senhor escrivão, dessa forma iniciarei logo a reforma da minha fazenda... ESCRIVÃO Se precisares de bons trabalhadores, alugarei para ti os meus escravos. Eles entendem de construção e de... DIRCEU (levanta-se rápido da poltrona) Fico agradecido, senhor escrivão. É uma pena, mas, antes de passar por cá, eu já havia deixado alguns homens sobre aviso para a reforma. Quem sabe, numa próxima vez, eu venha a contratar os seus serviços. Cabide com alguns chapéus, entre eles um chapéu feminino, com um enorme penacho rosa. Dirceu dirige-se ao cabide e pega o seu chapéu e, sem perceber, toca as mãos no penacho rosa do chapéu feminino. O Escrivão olha para Dirceu, bate palmas e solta um grito afiado. ESCRIVÃO Não, não toques nesse chapéu. Ele é uma lembrança de uma doce rapariga, que eu conheci em Lisboa... DIRCEU (olha para o chapéu feminino) Invés de trazer a rapariga, trouxeste foi o chapéu dela, senhor escrivão? ESCRIVÃO (responde rapidamente) Trazer o chapéu foi mais barato do que trazer a cachopa para cá. Cobraram o preço do bilhete, apenas da minha pessoa. Quem sabe um dia, não trago, cá, a minha rapariga. 138 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu sorri colocando o seu chapéu na cabeça e dirigindo-se até a porta. O Escrivão o segue até a porta. Dirceu sai. O Escrivão olha para o cabide. Cabide com chapéus. Chapéu feminino com penacho rosa. O Escrivão fala com jeito engraçado, meio afeminado. ESCRIVÃO Lembrar-se da Maria do Carmo é muito mais barato do que mantê-la... É muito mais. Chapéu não come, não gasta dinheiro comprando bobagens... (abre a gaveta e sorri) Dinheiro, dinheiro... Hei de logo estar rico nesta colônia de pessoas tão ignorantes... SEQUÊNCIA 55 – EXT. /INT./DIA. CASARÃO DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Manhã. Fazenda Ribeirão do Meio. Árvore alta e magra. Um joão de barro faz a sua casa no alto da árvore. Varanda do casarão sem o telhado. Caibros e ripas. Há QUATRO HOMENS, dois pardos e dois negros, entre 30 e 40 anos, em cima do casarão martelando caibros e ripas.Interior da casa. Cavaletes altos, de madeira, no interior da casa. SEIS HOMENS, três brancos, dois pardos e um negro, entre várias idades, a partir dos 30 anos, em cima de cavaletes, pintando as paredes do casarão. Cozinha. Mesa com biscoitos, queijos e diversas iguarias. Bules de cerâmicas com leite e bules esmaltados com café. Dirceu está na mesa em companhia de três homens brancos, muito bem vestidos. OS TRÊS HOMENS BRANCOS têm entre 27 e 30 anos. Canto da mesa. Planta arquitetônica da fazenda estendida no canto da mesa. Dirceu e os três homens brancos verificam a planta arquitetônica, utilizando-se uma pequena vareta. DIRCEU Então, o senhores garantem que eu não preciso mudar nada? Apenas reformar o casarão? 139 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior UM DOS HOMENS BRANCOS DE 30 ANOS (segurando uma lupa na mão) Ela está em perfeito estado, senhor Dirceu, verificamos toda a estrutura. Esta casa ainda atravessará alguns séculos... DIRCEU Se está certo o que os senhores estão a me garantir,então ficaremos com os pequenos reparos. Quero uma pintura bonita, como de muitas casas que eu tenho visto em Vila Rica. UM DOS HOMENS BRANCOS DE 30 ANOS (coloca a lupa em cima da mesa) Estamos a fazer isso, senhor Dirceu. O senhor não irá arrepender-se. A nossa tinta é de excelente qualidade. Somos os únicos, em Vila Rica, ou em toda a colônia a preparar materiais para tintas a todos os pintores. É certo que eles compunham suas misturas, mas neste caso, iremos entregá-la ao senhor, prontinhas. FADE OUT /FADE IN Tarde. Laterais do casarão da fazenda pintadas na cor azul. Varanda coberta por novas telhas. Todos da faenda Ribeirão do Meio, uma vez e outra, tanto longe ou perto, a pé ou a cavalo e em seus postos de trabalhos, observam com alegria a mudança do casarão. Embora o casarão fosse colonial,ele passa a ganhar, na pintura, um aspecto barroco. Paredes, portas e janelas de parapeitos ganham cores escuras. Fachada da frente do casarão. SEQUÊNCIA 56 – EXT. /INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Legenda: "Agumas semanas depois..." Noite. Lua minguante. Fogueira crepitando no pátio de frente da fazenda. Dirceu, Ambrósio, Hipólito, Cirilo e Josias estão sentados em 140 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior círculo. No meio do círculo está Farias toca a sua sanfona. Gamela com bolos e biscoitos. Conceíção, com a gamela nas mãos, serve Dirceu, Cirilo, Josias, Ambrósio, Hipólito e Farias biscoitos e bolos. Fogueira. Brasas. Bule em volta da fogueira. Sebastiana pega o bule e despeja café em alguns copos. Farias toca a sanfona. Lua minguante. Fogueira apagada. Janela aberta. Quarto de Dirceu. Dirceu está na janela olhando para as estrelas do céu. DIRCEU Custe o que custar, minha estrela, um dia vos trarei para morar nesta nova casa. Se vossa senhoria não gostar da reforma feita, farei outra e mais outra, conforme for o vosso desejo. DIRCEU (respirando fundo) Marília, Marília. Se tu fores a minha estrela, logo, cá, estarás comigo... CAPÍTULO 4 SEQUÊNCIAS 57-76 Personagens deste capítulo: Dirceu Josias Farias Tiziu Zé Antônio (35 anos) Cirilo Miliquito Ambrósio Hipólito Dona Vera Diodato Criada (casa de Carlos) Homens negros (das lavouras) 141 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Três homens brancos (vaqueiros) Homem negro (arrastado na estrada) Pessoas idosas, homens, mulheres, jovens e crianças Negros amarrados em coleiras. Fazendeiros(compradores e comerciantes de escravos) Três jovens negros (Endimião, Alceu e Trácio) Mulatinha Senhor homem branco Três mulheres negras (Inácia,Caliandra e Quitéria) Três negros magros e altos (fazenda de Diodato) Carlos Alguns homens negros e brancos (fazenda de Diodato) SEQUÊNCIA 57 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Tarde. Campo. Arados de tração animal. Mugidos de boi. Miliquito e Cirilo aram a terra. Mato. Revoada de pássaros. Uma touceira de capim cai sobre a terra. Hipólito capina o mato. Curral. Ambrósio está no curral cuidando dos bois. Conceição está sentada em um canto da varanda, com uma gamela, catando feijão. Quintal de frente da fazenda. Árvore frondosa no quintal de frente da fazenda. Farias está encostado no tronco da frondosa árvore de frente do quintal da fazenda, com o cachimbo na boca, cochilando. Campina. Serra dos arredores. Dois cavalos troteam, lado a lado. Dirceu e Josias troteando pela campina. DIRCEU Ontem, meu caro Josias, antes de pegar no sono, pensei seriamente em plantar a cana-de-açúcar para fabricar a cachaça, mas como o ouro anda um pouco escasso, creio que muita gente está a fabricar esse produto... 142 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS (frea o cavalo e atalha o cavalo de Dirceu) Carece não sinhô Dirceu, vossemecê pode investir em gado, ovelhas... Sinhô leva jeito, gosta de aventura. O negro cá é bom vaqueiro, posso ajudar vossemecê... Os rapazes também gostam da fazenda, sabem fazer todos os tipos de serviços, logo, vossemecê terá uma propriedade de fartura. Vaca pro leite, boi pro corte, ovelhas para a lã... DIRCEU Vós mercê está dizendo isso por experiência própria, não é, Josias? Crê que a terra seja boa, o pasto... JOSIAS Quando se dedica a terra com carinho, tudo se prospera, "nhô" Dirceu. Dizia isso, meu "nhozinho" lá da Bahia. Ele era um homem atrevido, inventava fazer as coisas do jeito dele e tudo dava certo... DIRCEU Isso que vossa mercê falou, Josias anima o meu espírito. Vou pensar direito no assunto. Não estou querendo fazer nada pela vil ganância, quero fazer aquilo que seja para mim prazeroso. A vida é uma só, meu amigo, se a gente não aproveitar e viver bem, não adianta esperar viver depois da morte... A vida, cá, agora, é a única certeza da nossa existência... JOSIAS Ora, pois quem morre nunca vem contar aos vivos se está vivo ou não em outro lugar, ou o que está fazendo, se plantando, colhendo ou levando a vida de rezas... DIRCEU Vós mercê é um homem muito espirituoso, Josias. Até parece que frequentou mestre escola... 143 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Quando menino eu fui criado por um padre, os proprietários deram-me a ele como promessa. Quando o padre morreu, um sobrinho dele cuidou de mim e ensinou-me o ofício de vaqueiro. O coitado contraiu uma dívida de jogo e para não sofrer consequências sérias, foi obrigado a entregar-me ao vencedor. Dali por diante fizeram de mim escravo, aprendi vários ofícios e, depois, com o tempo, o próprio sobrinho do padre acabou me comprando de novo... DIRCEU Então era ele o fazendeiro, para o qual tocava a boiada? JOSIAS Sim e ele deve estar aborrecido por ter perdido a mim e aos outros... DIRCEU Os que morreram na tocaia? JOSIAS (afirma “sim” balançando a cabeça) Quer saber nhô Dirceu, aconselho a vossemecê criar gados e ovelhas, pois a região tem clima favorável. Cá embaixo o terreno é plano, o que facilita a engorda do gado. Quanto às ovelhas, podemos fazer um enorme muro de pedras, no fundo da fazenda, onde o lugar é mais rochoso. As ovelhas, vossemecê pode mandar tosquiar e vender a lã. Já ouvi falar que tem um bom preço. DIRCEU Não é que vós mercê tem uma boa visão sobre negócios, Josias! Parece que vós mercê sabe o até mesmo os tipos de matérias primas que os europeus estão a procurar em nossa colônia, inclusive a lã para confeccionar os seus casacos de pele. Mas eu não vou correr atrás de lucros, Josias, somente 144 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior quero o suficiente para que possamos viver com dignidade nestas terras... SEQUÊNCIA 58 – FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Casarão da fazenda. Varanda do casarão. Dirceu está sentado em um tamborete na varanda do casarão. Farias aparece de repente de frente a Dirceu na varanda do casarão com um alforje pendurado entre os peitos. FARIAS Tô procurando pelo nhozinho, pensei que estivesse cavalgando pelas colinas com o Josias... DIRCEU Não, hoje eu não quis andar a cavalo, Farias. Acordei cedo, como todos os dias, ajudei os rapazes nos afazeres da fazenda e resolvi ficar um pouco, cá, para pensar na vida... Hoje, Farias, amanheci lembrando no senhor meu pai, na Maria Antônia.. FARIAS (olha para um lado e outro e cochicha para Dirceu) Carece preocupar com nhô Zé Antônio, não. Ele e a Maria Antônia tão bem... DIRCEU Será? FARIAS Sim. Tenho até uma encomenda do senhor Zé Antônio para nhozinho... 145 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Encomenda do senhor meu pai? Vós mercê tem visto o senhor meu pai, Farias? FARIAS Não. O sinhô seu pai tá longe, sinhô Dirceu, esta encomenda faz tempo que está comigo. Eu vou entregar hoje para sinhozinho porque foi o sinhô seu pai que marcou o dia... DIRCEU O dia? Meu Deus, por que isso? FARIAS Porque eu não sei... Farias olha para um canto e outro do lado de fora da varanda do casarão, tira o alforje preso entre os peitos e entrega-o para Dirceu. Dirceu recebe o alforje com uma das mãos. A mão desce, devido ao peso. Dirceu coloca o alforje no chão. Cancela da fazenda. Farias olha para a cancela da fazenda. Farias vê Josias montado no cavalo empurrando a cancela da fazenda. Farias cutuca Dirceu pelo braço e mostra Josias chegando à cancela da fazenda. FARIAS Vá para o quarto de vossemecê e olhe o que tem aí dentro... Eu vou despistar o Josias, para ele não aborrecer o sinhozinho... DIRCEU Se o senhor acha que deve ser assim, recolherei ao meu quarto... Farias sai em direção á cancela. Dirceu entra para dentro do casarão. Farias encontra-se com Josias debaixo de uma frondosa árvore. 146 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 59 - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Quarto de Dirceu. Interior do quarto de Dirceu. Mesa redonda em um dos cantos das paredes do quarto de Dirceu. Dirceu coloca o alforje na mesa redonda de um dos cantos das paredes do quarto de Dirceu. Dirceu arrasta uma poltrona pesada para perto da mesa redonda. Dirceu senta-se na poltrona, respira fundo, abre o alforje e fala por solilóquio. DIRCEU Será se neste instante, estaria o senhor meu pai a colocar-me a par sobre histórias da minha vida, do meu passado, sobre a senhora minha mãe? Alforje. Dirceu enfia a mão no alforje e retira dele um pequeno saco muito bem amarrado. Dirceu tenta desamarrar o pequeno saco, mas não consegue. Dirceu larga o pequeno saco na mesa redonda de canto. Dirceu abre uma das gavetas da mesa redonda de canto e retira de dentro dela um punhal. Punhal na mão de Dirceu. Dirceu pega o pequeno saco na mesa redonda de canto e corta-lhe as amarras com o punhal. Dirceu despeja o conteúdo do pequeno saco sobre a mesa. Olhos de Dirceu arregalados. Pepitas de ouro. Sobre a mesa redonda de canto estão espalhadas valiosas pepitas de ouro. Mãos trêmulas de Dirceu tocando nas pepitas de ouro. Dirceu respira ofegantemente. Olhos arregalados de Dirceu. DIRCEU Meu Deus, como o senhor meu pai conseguiu juntar toda esta riqueza? Alforje. Dirceu enfia a mão no alforje. Dirceu traz na mão algumas pedras de diamantes bem lapidadas pela natureza. Dirceu fica deslumbrado. DIRCEU Diamantes, o meu pai ainda tinha diamantes guardados... 147 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior (repara os diamantes) O senhor meu pai sempre foi um homem aventureiro; um afortunado aventureiro... (joga os diamantes em cima da mesa redonda de canto) Quando eu podia imaginar que o meu pai, sempre truão e calado, estaria acumulando riquezas para dividir-se comigo? Mesa redonda de canto. Pepitas e diamantes espalhados sobre a mesa redonda de canto. Dirceu põe-se de joelhos e contempla as pedras preciosas. Os olhos de Dirceu brilham juntamente com as pedras preciosas espalhadas na mesa. SEQUÊNCIA 60 – EXT./DIA. ARRAIAL DO TIJUCO, 1771. PEQUENA CASA DE ENCHIMENTO À BEIRA DE UMA ESTRADA. Flash back – Pensamento de Dirceu Legenda: "Arraial do Tijuco, 1771". Tarde chuvosa. Barulho de trovões. Relâmpagos cortam o espaço. Casa de enchimento. Interior da casa de enchimento. Chão batido. Colchões amontoados em um canto, bruaca e caixa de couro aberta com peças de roupa. Fogão de lenha. Fogo crepitando no fogão de lenha. Caldeirão fechado cozinhando feijão com carne. DIRCEU, menino, com aproximadamente dez anos de idade, todo encolhido, com as mãos tapando os ouvidos, sentado em um banquinho encostado na parede da casa de enchimento. Dirceu está trêmulo, ao lado dele, sentado em um velho tamborete de couro, TIZIU, menino negro, magro e alto, com aproximadamente doze anos de idade. Raios, relâmpagos e barulhos de trovões. Dirceu se encolhe a cada barulho. Dirceu chora, devido ao mal tempo. Tiziu levanta-se do tamborete, vai até a caixa de couro e tira algumas peças de roupas. Tiziu escolhe uma blusa de Zé Antônio, veste, pega um pedaço de pau em um dos cantos da parede da pequena casa de enchimento, coloca um chapéu na cabeça e olha para Dirceu. Tziu imita como os velhos andam e depois imita um macaco. Sombra na parde de Tziu imitando os velhos e os macacos. Dirceu dá risadas. 148 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Trovão assustador. DIRCEU solta um grito, e põe-se de cócoras, tapando os ouvidos com as mãos. Abre-se a porta. UM HOMEM entra apressado na casa. É ZÉ ANTÔNIO, 35 anos, magro, barba mal feita e pele queimada de sol. Zé Antônio está vestido com um matolão de couro. O matolão está molhado e sujo de lama. Zé Antônio tira o chapéu, o matolão de couro e pendura-os em um cabide improvisado na parede. Zé Antônio olha para Dirceu. Relâmpago clareia o rosto de Dirceu. Zé Antônio aproxima-se de Dirceu e abraça-o. Tiziu joga o pau no canto do fogão, tira a blusa de Zé Antônio e joga-a dentro do baú. TIZIU Tô tentando fazer nhozinho calar, mas ele não dá prestância na brincadeira... ZÉ ANTÔNIO (ri, olha para Dirceu e o toca pelo queixo) Meu filho, meu pequeno homenzinho, por que choras? Não temas a chuva, nós precisamos dela para que os rios e as plantas nos dêem farturas... Ora, meu pequeno rapaz... (limpa o rosto de Dirceu com as mãos) Fique sabendo que não estou a sacrificar por mim, mas por vossemecê também, meu filho. (enfia a mão direita em um dos bolsos do matolão de couro, tira as mãos e olha para Dirceu) Abra as mãos, Dirceu, abra! Vou mostrar a vossemecê o que encontrei hoje... Dirceu abre as mãos. Zé Antônio deposita uma pedra de diamante nas mãos de Dirceu. Dirceu abre as mãos e olha a pedra de diamante sem nenhuma admiração ou diferença. ZÉ ANTÔNIO É um diamante, um rico diamante, meu filho... DIAMANTE NA MÃO DE DIRCEU. UM RAIO ILUMINA TODA A CASA. BARULHO DE TROVÃO. 149 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VOLTA PARA SEQUÊNCIA 59 - CONTINUAÇÃO - INT./DIA. QUARTO DE DIRCEU. Dirceu continua no quarto sentado na poltrona. Comovido, Dirceu pega os diamantes nas mãos e, com delicadeza, verifica-lhe os detalhes. Cama de Dirceu com lençol branco. Dirceu pega as pepitas de ouro, dirige-se até a cama com lençol branco, senta-se nela e espalha as pepitas de ouro. Dirceu deita-se na cama com o lençol, parecendo um bobo, diante de todas as pepitas de ouro espalhadas. SEQUÊNCIA 61 – INT./NOITE. VARANDA DO CASARÃO DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Escuta-se o coaxar de sapos. Dirceu está reunido com Josia, Cirilo, Ambrósio, Miliquito e Hipólito, na varanda do casarão da fazenda. DIRCEU Quero que vossas mercês opinem sobre o que devo fazer ou não nesta fazenda. Se devo investir em animais, em plantações ou em garimpos... JOSIAS Vossemecê, nhozinho já sabe o que penso sobre o que deve ou não cultivar nestas terras... DIRCEU Sei sim, Josias. Vossa mercê pode ficar tranquilo que eu anotei cá, na cabeça, e não vou esquecer-me do gado e das ovelhas... Quero também ouvir os rapazes, conhecedores desta região, sobre o que devo ou não fazer... 150 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior HIPÓLITO Não sei se nhô sabe, mas próximo a esta região há homens que comercializam gados, ovelhas e cabras trazidos de Vacarias do Mar e Vacarias do Pinhal... DIRCEU É mesmo? já estão trazendo animais da região sul para serem comercializados, cá? MILIQUITO Já faz alguns tempos, nhozinho, os donos de terras comercializam animais lá no Rio das Mortes, uma freguesia um pouco afastada daqui. Já vimos passar por aqui, várias vezes, fazendeiros ricos pedindo informações sobre onde comprar escravos, gados zebu e holandês, cavalos e ovelhas... JOSIAS Virgem, mãe de Jesus, se a tal freguesia é perto daqui, podemos trotear até lá e tornar esta fazenda animada, com barulho de bois, cabras e outros bichos... DIRCEU Uai, sô! Se é assim, vamos arrumar viagem que em poucos dias estaremos em Rio das Mortes... JOSIAS Tô vendo que o patrãozinho tem pressa de se aprimorar ainda mais esta fazenda... AMBRÓSIO Vossemecês estão falando em ir até Rio das Mortes. Rio das Mortes não é tão pertinho daqui, não... Leva léguas e, além disso, tem que se bandear por várias fazendas para garantir a compra dos bichos... 151 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MILIQUITO Isso que Ambrósio ta falando é verdade, mas ouvi dizer que lá tem uma espécie de encomenda, nhozinho, dizem que os fazendeiros entregam os animais na freguesia... DIRCEU Se podemos comprar mais animais para animar a nossa fazenda, por que não nos apressar? AMBRÓSIO Não sei se nhô Dirceu sabe, eu não gosto de viajar não. Mas se confiar em mim, cá ficarei olhando direitinho a fazenda... DIRCEU Esta dado a vós mercê a tarefa de olhar a fazenda, Ambrósio. Eu gosto assim, que cada um assuma o seu posto, confiando naquilo que sabe fazer... CIRILO Hipólito e eu podemos acompanhar nhozinho... O Josias também deve ir... JOSIAS (balança a cabeça fazendo um sinal de "sim".) Nhô, sim! DIRCEU Eu também estou pensando aqui, porque não trazer mais gente para aumentar a nossa família. Acho que vou pedir os rapazes que forem para escolher umas moças lá para servirem de namoradas para vós mercês. Assim, vós mercês não sentiram sozinhos nunca... MILIQUITO Como assim nhozinho, trazer umas moças para servirem de namoradas pra gente? 152 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU E porque não? Sei que a gente não deve comprar gente, mas nesse caso vou comprar as moças para casarem com vós mercês... É isso mesmo, casar com vós mercês na capela da nossa fazenda. Mas antes disso, claro, cada um tem gostar primeiro da moça que escolher... SEQUÊNCIA ÍNGREME. 62 - EXT./DIA. ESTRADA ESTREITA E Manhã. Estrada estreita e íngreme. Margens da estrada. Vergeis nas margens da estrada. Revoada de pássaros. Poeira. Rabos de cavalos. Cavalos. Estrada. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito troteiam em seus respectivos cavalos, pela estreita estrada. Eles seguem para o Rio das Mortes. DIRCEU (VOICE OVER) Desde o início do século passado, com a corrida do ouro nas capitanias de Minas e de Goiás, muita gente abandonava as atividades rurais sonhando em ficar rico da noite para o dia. Isso causou um grande desenvolvimento urbano. Vila Rica, por exemplo, passou a gozar de grande prestígio, com lojas e variedades de comércio. Tarde. Cavalos. Estrada. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito troteando pela estreita estrada. Serras. Florestas. Campos. Rios. Riachos. Garimos e garimpeiros. Noite. Cavalos amarrados nos troncos das árvores. Redes. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito deitados nas redes. Manhã. Estrada. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito troteando pela estrada. DIRCEU (VOICE OVER) Com o ouro, as pessoas enriqueciam-se depressa, fazendo a todos pensar que ele duraria para sempre. A coroa portuguesa 153 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior tirava proveito disso, ora levando o ouro para a corte, ora aumentando os impostos e dificultando a vida de todos nós. Tarde. Estrada. Mata burro. Cancela. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito troteando. Cancela fechada. Cirilo pula do cavalo, pega-o pela rédea e corre para abrir a cancela. Dirceu, Hipólito e Miliquito passam pela cancela. Cirilo puxa o cavalo pela rédea passa pela cancela, fechando-a em seguida. Cancela fechada. Cirilo monta em seu cavalo. Estrada. Cavalos. Rabos de cavalos. Pequenos apetrechos de viagem nas garupas dos cavalos de Miliquito e Hipólito. Dirceu cavalga olhando a imensidão do estradão. DIRCEU (VOICE OVER) Agora, no final do século XVIII, quando o ouro começou a dificultar-se, muita gente desenganada, começava a voltar pessimista às atividades do campo. Tanto o gado, quanto o negro aumentavam-se de preços, dificultando a indústria canavieira e demais atividades agrícolas. SEQUÊNCIA 63 – INT./NOITE. PEQUENO VILAREJO DE RIO DAS MORTES. Noite. Pequeno vilarejo de Rio das Mortes. O lugar é uma pequena freguesia com igrejas, praças, ruas, casas e pequenas mercearias. Pequena praça do lugarejo, próximo a uma igreja. Dirceu frea o cavalo em uma pequena praça, próxima à igreja e olha para Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito. DIRCEU Finalmente, chegamos em Rio das Mortes. Vamos, agora, procurar uma estalagem para nos acomodar e rarefazer o nosso cansaço... Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito saem troteando pela vila de Rio das Mortes em busca de uma estalagem. As placas das mercearias ou 154 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior tabernas apenas chamam a atenção de Dirceu. Ouve-se o repicar de sinos de uma igreja. Dirceu faz o sinal da cruz. Casarão antigo. Placa de madeira, gravado "ESTALAGEM DE RIO DAS MORTES". Dirceu frea o cavalo e lê a placa. Dirceu, alegre, grita para Josias, Miliquito, Cirilo e Hipólito. DIRCEU Encontrei uma estalagem. Vós mercês esperem por mim, cá. Vou verificar se há vagas para todos nós... Dirceu pula-se do cavalo, aproxima-se de Josias e entrega a ele a rédea do cavalo. Dirceu observa a estalagem. No fundo da estalagem existe um grande estábulo. Dirceu entra na estalagem, batendo palmas. Na sacada do casarão aparece DONA VERA, uma senhora branca e gorda, de 40 anos. Dona Vera olha para Dirceu e seus companheiros. Dona Vera deixa a sacada. Porta da estalagem. Dirceu na porta da estalagem batendo palmas. A porta da estalagem abre-se. Aparece uma MULATINHA com um pano branco amarrado na cabeça, de aproximadamente 18 anos. A mulatinha é tímida. DIRCEU Preciso de abrigos para passar uma ou duas noites. É para mim e meus companheiros. Estamos em cinco pessoas. Vossemecê tem vagas em quartos e camas confortáveis? MULATINHA (sorri ajeitando o pano na cabeça) Entre, por favor, senhor. Cadê os outros amigos de vossemecê? DIRCEU Estão lá fora, cuidando dos cavalos e dos nossos apetrechos de viagem... Porta da estalagem. A mulatinha abre mais um pouco a porta. Sala de recepção da estalagem. Dirceu tira o chapéu da cabeça e entra na sala de 155 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior recepção da estalagem. A mulatinha pega o chapéu das mãos de Dirceu. A mulatinha anda até um bonito cabide e coloca o chapéu de Dirceu. Uma porta feita de cortina de pano, dando a um corredor, abre-se e aparece a dona Vera. Dona Vera dá um sinal para que a mulatinha se retire da sala. A mulatinha atravessa a porta feita de cortina de pano e desaparece. DONA VERA Meu nome é Veranilda, sou conhecida como dona Vera. Eu sou a dona do estaleiro. Em que posso servi-lo, senhor? DIRCEU Meu nome é Dirceu, senhora, estou chegando de uma longa viagem com alguns amigos. Chegamos em Rio das Mortes para comprar alguns animais... Não sei se ficaremos aqui somente esta noite ou outra, preciso de abrigos para mim e meus amigos... DONA VERA As reservas são feitas comigo mesma... DIRCEU Quero, para os meus amigos e para mim, tudo o que a senhora puder nos oferecer do bom e do melhor, desde banho, comida e cama para descansar... DONA VERA Vossemecês estão em quantos? DIRCEU Estamos em cinco pessoas. Eles estão lá fora, próximos a uma cerca de amarrar animais. E por falar em animais, gostaria também de abrigar os nossos cavalos em um estábulo, creio ter visto um no fundo do quintal desta estalagem. 156 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DONA VERA Temos sim. Incluímos com a hospedagem, mas damos um bom desconto aos nossos hóspedes... DIRCEU Tudo bem, a senhora pode providenciar tudo, pagarei mediante ao preço determinado pela senhora, dona Veranilda. Dê-me licença, um instante, vou chamar pelos meus amigos... Dirceu vai até a porta. Dona Vera o segue. Porta aberta. Dirceu e dona Vera olham para os rapazes. Cavalos no canto de uma cerca. Josias, Hipólito, Miliquito e Cirilo, próximos aos cavalos. Dona Vera faz uma cara feia. DONA VERA São aqueles rapazes, ao lado dos cavalos, próximos à cerca. DIRCEU Sim, são eles. Eles são os meus amigos, quase irmãos... DONA VERA Amigos? Quase irmãos? Vejo ali quatro negros. Não são escravos de vossemecê? DIRCEU Não, não são. São trabalhadores da minha fazenda. Além de trabalhadores, eles são também meus amigos e quase irmãos... DONA VERA Tenho um estábulo no fundo da hospedagem. Há camas feitas de palhas. É lá que ficam os escravos dos senhores, quando... DIRCEU (olha para dona Vera com um olhar de desprezo e fala ironicamente) 157 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Pedi à senhora para nos servir do que há de melhor em sua estalagem. Pagarei pelos serviços. DONA VERA São escravos, não são? São seus escravos e... DIRCEU Por que eles são negros, haverão de ser escravos? Não está à senhora, branca, também a nos servir, dona Vera? DONA VERA Desculpe-me senhor Dirceu. DONA VERA (olha para Dirceu e sorri um pouco sem graça) É que o mundo nos faz ver as pessoas dessa forma. Mas se é assim, providenciarei tudo, conforme vossemecê deseja. Vai custar a vossemecê alguns réis a mais... DIRCEU Eu pago os réis a mais! DONA VERA (sai para dentro da casa balançando os ombros, um pouco sem graça, resmungando) A gente vê por cá, tantas esquisitices, até a ponto de acomodar negros em quartos de brancos,com catres de lençóis de linhos, cheirando à lavanda e tudo... VISTA NOTURNA DE VILA DA MORTE. SEQUÊNCIA 64 - INT./NOITE. PEQUENO VILAREJO DE RIO DAS MORTES. RUAS. VENDAS. ESTALAGEM DE RIO DAS MORTES. 158 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Noite de Lua clara. Ruas de Vila da Morte. Dirceu sai andando á pé pelas pequenas ruas. Duas ou três pequenas vendas abertas. Dirceu entra em uma das vendas. Candeias iluminando o ambiente. HOMENS BRANCOS E MORENOS encostados no balcão, conversando e bebendo vinho e cachaça. Dirceu aproxima-se dos homens brancos e morenos e pede informações. Homens brancos e morenos ouvem Dirceu com atenção. Dirceu sai da venda. Ruas. Dirceu anda pelas ruas. Placa da estalagem. Sala de recepção. Candeias acesas. Poltronas confortáveis. Fazendeiros de várias idades, vestidos de vaqueiros, sentados nas poltronas confortáveis da estalagem. Dirceu, também sentado em uma das poltronas confortáveis da estalagem, conversando com alguns fazendeiros. Entre os fazendeiros está DIODATO, um senhor de cor parda, olhos escuros, barba grande e cabelos grisalhos, de 50 anos de idade. Diodato é quem se aproxima de Dirceu. DIRCEU (VOICE OVER) Em Rio das Mortes o comércio não era tão intenso quanto o de Vila Rica. Lá, naquela mesma noite, deixei os animais descansando no estábulo, os rapazes na estalagem e sai pelas pequenas ruas do vilarejo, a fim de obter informações sobre os comerciantes de animais, daquela região. Eu, após entrar em uma pequena venda, obtive respostas de que alguns senhores, ricos fazendeiros, procurariam por mim na estalagem para fazer as suas ofertas em gados zebus e holandeses, cavalos e ovelhas. Ao voltar para a estalagem, não demorou muito para que eu recebesse a visita deles. Entre todas as propostas, a de um dos fazendeiros, conhecido como Diodato, foi a que mais me atraiu. No outro dia seguinte, pela manhã, eu visitaria a fazenda dele para comercializar gados, cavalos e algumas ovelhas. SEQUÊNCIA 65 – EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DIODATO. Fazenda de Diodato. Cavalos de Dirceu, Diodato, Josias, Cirilo, Miliquito e Hipólito troteando pelas lavouras da fazenda de Diodato. 159 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Escravos trabalhando nas lavouras. Pastos. Bois e vacas zebus, holandeses e nelores pastando. Dirceu e Diodato aproximam-se da cerca para observarem o gado nelore. DIODATO Veja como o gado está gordo, cá, não temos problema com o pasto, ele está sempre verde. Todo esse rebanho, a que o senhores veem, já são crias da fazenda. No pasto,próximo ao curral, deixo confinado os reprodutores, ou, como diz o povo, lá em Vacarias do Mar, as matrizes... DIRCEU Vamos ao curral, quero conhecer as matrizes e quem sabe, negociar algumas, com vossa senhoria... Diodato e Dirceu afrouxam-se as rédeas dos seus cavalos e seguem à frente. Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito seguem atrás, observando o gado no pasto. Cancela. Miliquito apressa o trote, pula do cavalo e abre a cancela. Diodato e Dirceu atravessam a cancela e depois Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito. Terreno pedregoso. Ovelhas pastando. TRÊS NEGROS MAGROS E ALTOS sentados numa enorme pedra vigiam as ovelhas no pasto. Dirceu frea o cavalo. Diodato também frea o cavalo dele, emparelhando-o com o cavalo de Dirceu. Dirceu olha as ovelhas no pasto. Josias afrouxa a rédea do cavalo e emparelha o seu cavalo entre os cavalos de Dirceu e Diodato. Josias olha para Diodato. JOSIAS Nhô Diodato já tosquiou algumas vezes as ovelhas? DIODATO Não, não é o meu interesse trabalhar com a lã. Eu crio para a venda. Atendo encomendas de fazendeiros de vários lugares da colônia. Há pouco tempo é que a minha esposa inventou aproveitar o leite na fabricação do queijo, mas somente para o consumo doméstico. 160 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Diodato afrouxa a rédea do cavalo, dá um sinal para Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito. Todos seguem Diodato galopando até a um curral. Curral. ALGUNS HOMENS NEGROS E BRANCOS, vestidos de vaqueiros, trabalham no curral. Homens negros e brancos estão apartando bois e vacas da raça nelore. Diodato pula-se do cavalo e vai até a cerca do curral e cumprimenta seus trabalhadores. DIODATO Bom dia, homens. Hoje é dia de apartar o gado. Quero que vossemecês confinem as vacas no pequeno pasto, pois, quando tivermos certeza de que elas estejam prenhas, daremos a elas um tratamento diferenciado... DIRCEU (pula da sela do cavalo e aproxima-se, também, da cerca do curral) Esse gado é a da raça nelore, não é senhor Diodato? DIODATO Sim, as das raças Zebu e holandesa estão nos outros currais, mais adiante. Guardo aqui as matrizes.Vou levá-lo já, já, até onde está o gado pronto para o comércio... DIRCEU Não se esqueça senhor, queremos comprar também cavalos e ovelhas... DIODATO Pode ficar tranquilo, já, já, faremos bons negócios... Curral. Dirceu e Josias observam as vacas e os bois nelores, zebus e holandeses. Os vaqueiros de Diodato, com ferrões nas mãos separam os animais escolhido por Dirceu e Josias, tocando-os para um corredor. Curral de ovelhas. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito observam as ovelhas. Os pastores do senhor Diodato, com cajados nas mãos, separam as ovelhas escolhidas por Dirceu e Josias, tocando-as para um 161 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior pequeno compartimento do curral. Pasto com cavalos. Dirceu e Josias observam alguns cavalos. Josias encosta um cavalo na cerca e consultalhe as patas e os dentes. DIRCEU Nesta fazenda compramos cavalos, bois, vacas e ovelhas. O senhor Diodato entregaria os animais no dia seguinte da compra, na estalagem de Rio das Mortes. SEQUÊNCIA 66 - EXT./ DIA. ESTRADA. Estrada. Cavalos. Dirceu, Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito troteando em seus respectivos cavalos. Dirceu trotea devagar, observando os pastos e as lavouras. Homens negros trabalhando nas lavouras. DIRCEU (VOICE OVER) Além de comprar animais, pensei, também, seriamente, em comprar alguns homens negros para nos ajudar nas tarefas, quais, a partir dessas compras, aumentariam os nossos trabalhos. Quanto ao tráfico de humanos, algo pesava em minha consciência. Aproveitei, portanto, para sondar os rapazes. Dirceu, pensativo, trotea lentamente e se põe no meio dos rapazes. DIRCEU, num dado instante, frea o cavalo e olha para Josias, Cirilo, Hipólito e MiliquitoJ, que, também, fream rapidamente os seus cavalos. Cavalos. Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito parados na estrada, mirando para Dirceu. DIRCEU Onde já se viu homens tornarem-se mercadorias de homens? A liberdade é o que há de mais precioso a todas as criaturas de Deus. (tosse secamente) 162 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Jesus havia passado pela terra, redimido os nossos pecados e ainda ignoramos as suas palavras? E a igreja? O que a Santa Madre Igreja, a quem Ele confiou as Santas Escrituras, fazia em prol da liberdade das pessoas negras? Nada! Simplesmente, nada... Haveria Deus de nos vender aos demônios? Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito fazem sinal de "não" com a cabeça. DIRCEU (olha para eles) Por que eu haveria de comprar humanos, só por que a pele deles são diferentes da minha? Dirceu abaixa a cabeça um pouco triste. Josias trotea, aproximando-se de Dirceu. JOSIAS Eta, nhozinho não vai comprar humanos, só porque são negros, nhozinho vai comprar humanos para que eles possam viver livres em suas terras... CIRILO Feliz do negro que "nhozinho comprar, pois este terá gosto de viver livre e trabalhar... DIRCEU Por que? CIRILO Ora, nhozinho, uma coisa é viver trabalhando; outra coisa é trabalhar para viver... DIRCEU Não entendi, Cirilo... 163 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior HIPÓLITO Deixa que eu explico, nhozinho. O que Cirilo quer dizer é que faz gosto trabalhar para vossemecê, porque outros "nhores", por aí, só querem tirar vantagens nos lombos dos pobres negros. Se negro não trabalhar, não come e, mesmo não comendo, tem de trabalhar. Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito dão risadas. Estrada. Barulho de cavalos troteando. Latidos de cachorros. Dirceu olha para trás e dá sinal para Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito para que eles se encostem à pequena margem da estrada. Dirceu, Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito se colocam em fila indiana. Passam por eles TRÊS HOMENS BRANCOS, de aproximadamente 35 a 38 anos, vestidos de vaqueiros, montados em seus cavalos, arrastando um homem negro, jovem, magro e alto estando, este, com as mãos amarradas. O HOMEM NEGRO sangra pela testa. Cachorros latem, seguindos os cavalos. Margem da estrada. Cavalos em fila indiana. Dirceu, Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito se silenciam,ficam parados, olhando para o homem negro sendo arrastado. Estrada. Os TRÊS HOMENS BRANCOS, em seus respectivos cavalos, arrastam o homem negro até sumirem em uma curva da estrada. DIRCEU (VOICE OVER) Ao vermos um negro sendo arrastado por três homens, naquela estrada, guardamos as nossas dores em algum lugar do nosso corpo. Ninguém comentou nada. Foi aí, que, cavalgando, silenciosamente, eu lembrei de ter no céu a minha estrela. E eles, quem sabe, na terra, não poderiam ter também as suas estrelas? Lembrei da história de Josias, da mulher que esperava um filho dele e do amanhecer na gruta, quando ela desapareceu de seus braços. Não vacilei, fiz a eles o seguinte trato. CORTA PARA 164 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Quando chegarmos a Rio das Mortes, vossas mercês escolherão, cada um, uma mulata. Quero que vossas mercês consultem o coração, porque farei gosto de que elas sirvam a vossas mercês de esposas... Hipólito, Cirilo e Miliquito tiram os chapéus da cabeça, erguem os chapéus para o ar e dão risadas. HIPÓLITO E que essas mulatas sirvam também "nhozinho", na fazenda... DIRCEU Comprarei também dois ou três mulatinhos novos para nos ajudar na criação das ovelhas. Eles serão os nossos pastores e todos terão liberdade para correr livres pelas colinas, pelos verdes pastos e pelas nossas montanhas altaneiras. Darei um nome a cada um deles. Todos viverão como bons cristãos em nossas terras. Pequena estrada. Cavalos cavalgando pela pequena estrada. Dirceu, Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito esporam os cavalos e saem cavalgando velozmente pela pequena estrada, na qual se levanta uma nuvem de poeira. SEQUÊNCIA 67 – INT./NOITE. ESTALAGEM DO RIO DAS MORTES. SACADA DA ESTALAGEM. Sacada da estalagem. Dirceu e Josias sentados em um banco de madeira. DIRCEU Amanhã iremos à praça escolher as mulatas a quem vós mercês devem tomá-las como esposas. Vós mercê irá escolher uma, Josias? Quem sabe não pode lhe fazer bem uma companheira... 165 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS (abaixa a cabeça e olha para Dirceu meio chateado) É ordem de nhozinho, que devemos escolher as mulheres para serem as nossas esposas? DIRCEU Não, não se trata de uma ordem, digamos, de uma sugestão. Não quero que vós mercês vivam sozinhos, sem uma companheira... JOSIAS É que nhozinho sabe que... DIRCEU Que o seu coração já tem uma dona, não é Josias? Compreendo. O meu coração também tem uma dona. A de vós mercê perdida em algum lugar da terra e a minha escondida em alguma casa de Vila Rica... JOSIAS A mulher que nhozinho gosta está em Vila Rica sobre bons tratos, a minha, coitada, além de prenha, deve estar enfrentando serviços pesados, sei lá prá quem... Sabe, nhozinho, eu ainda sonho com a Zenilda. Eu vivo como se esperando algum sinal para ir ao encontro dela... DIRCEU Não se deve esperar por sinais, Josias. Deve-se agir rápido. Quando a gente chegar na fazenda Ribeirão do Meio,vossa mercê vai arrumar viagem, pegar o cavalo e cavalgar por todos os lugares da redondeza para encontrar a sua Zenilda. Se por acaso, ela estiver em algum cativeiro, numa situação difícil de ser negociada, deixa que eu resolva o assunto. Nada de querer fugir com ela ou fazer qualquer besteira. É só voltar para a fazenda e nós pensaremos juntos, em o que fazer... Lembre-se para qualquer situação, há de existir um antídoto... 166 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Sei disso nhozinho, vossemecê é homem bom... Vou fazer o que nhozinho está falando. Eu vou deixar o meu coração falar alto e o meu pensamento me contar onde está a danada da Zenilda. Vou tá com ela e vou com ela criar o meu filho que vai nascer... REFLEXO DE LUZ NO PARAPEITO DA SACADA. UMA CORUJA PIA. SEQUÊNCIA 68 – EXT./DIA. PEQUENO LUGAREJO DE RIO DAS MORTES. GRANDE PRAÇA ONDE HÁ UM MERCADO DE ESCRAVOS. Praça da igreja de São Francisco. Repicar de sinos da igreja de São Francisco. Final de missa na igreja de São Francisco. PESSOAS IDOSAS, HOMENS, MULHERES, JOVENS e CRIANÇAS saem da igreja de São Francisco, espalhando-se pela praça e ruas dos arredores. Grande praça. Na grande praça há um mercado livre de escravos. NEGROS amarrados em coleiras de ferros. MULHERES NEGRAS com pés e mãos atados. FAZENDEIROS da região comercializando escravos na grande praça. Os FAZENDEIROS COMPRADORES consultam as peles, os dentes, os olhos e corpos dos escravos. Visão panorâmica da grande praça. Cavalos amarrados em cercas. Capatazes com chicotes, próximos a alguns homens negros e mulheres negras, recém comprados. Dirceu, Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito passeiam pela feira da grande praça, observando o movimento. TRÊS JOVENS NEGROS atados pés e mãos, caídos sobre a calçada. UM SENHOR HOMEM BRANCO, de 60 anos de idade, grita pelo valor de vinte réis, a cada um desses três jovens negros. Dirceu aproxima-se do senhor homem branco negocia os três homens jovens, sem consultar-lhes dentes, corpos, pés ou mãos. Os três jovens negros sentados no chão amarrados os pés com uma corda, olham para Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito, com um olhar de quem pede misericórdia. Dirceu aproxima-se dos três jovens negros. Punhal na mão do senhor homem 167 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior branco. Dirceu pega o punhal da mão do senhor homem branco e corta a corda que prende os pés dos três jovens negros. DIRCEU Eu os comprei para viverem livres em minhas terras. Vós mercês vão gostar do lugar. Quero que vós mercês sirvam-me como pastores, para cuidar do meu pequeno rebanho. Nas minhas terras vós mercês irão viver livres, como vivem livres os pastores nos campos. Dirceu entrega o punhal para o senhor homem branco. Os três jovens negros se entreolham, olham para Dirceu, sorriem e erguem as cabeças balançando-as, afirmando um "sim". UM DOS TRÊS JOVENS NEGROS Inhozinho não vai se arrepender, eu e os dois, cá, vamos fazer o que nhozinho precisar, lá na fazenda de inhozinho... MILIQUITO (cochicha aos três jovens negros) A fazenda é um paraíso, tem até igreja para vossemecês rezarem... Lá, todos os santos escutam a gente num canto e outro... DIRCEU Levantem-se criaturas, levantem-se. Tudo o que vossas mercês têm de fazer é seguir a gente e se sentirem livres desde já. Nada de ter medo de ninguém. DIRCEU (olha para Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito) Vamos lá, rapazes, vamos lá, para vós mercês escolherem as suas mulheres... Cirilo, Hipólito e Miliquito observam algumas mulheres negras à venda. Dirceu observa compra feita por Cirilo, Hipólito e Miliquito. Josias está 168 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior parado em um canto da praça, conversando com os três jovens negros, recém comprados. Cirilo, Hipólito e Miliquito parecem satisfeitos com as três mulheres negras, recém compradas, As TRÊS MULHERES NEGRAS têm entre 25 a 27 anos de idade e todas são muito bonitas, tanto de feição, quanto de corpo. DIRCEU (VOICE OVER) Os rapazes, atendendo à minha promessa, cada qual escolheu uma mulher. O meu amigo Josias, como já havia entregado o seu coração à Zenilda, apenas assistia às nossas compras servindo-se de companhia aos três jovens recém comprados. Grande praça. Dirceu olha para Cirilo, Hipólito, Miliquito e os rapazes e moças negros recém comprados na feira da grande praça. DIRCEU Agora, pessoal, vamos voltar para a estalagem da dona Vera e esperar que o seu Diodato nos entregue os animais. Ainda hoje, se Deus quiser, pegaremos a estrada para Ribeirão do Meio... SEQUÊNCIA 69 - INT./EXT./ DIA. RIO DAS MORTES. PORTA DA "ESTALAGEM DE RIO DAS MORTES". ESTÁBULO. Interna. Meio-dia. Sacada da estalagem de Rio das Mortes. Dona Vera está na sacada, sentada em um banco tecendo um forro de mesa. Ela levanta-se de ímpeto e olha para a rua. Movimento de pessoas na rua. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito, os três jovens negros e as três mulheres negras, recém comprados, estão na porta da estalagem. Dona Vera deixa o forro de mesa cair no chão e se aproxima do parapeito da sacada, assustada. DONA VERA Esse homem deve ser louco. Será se ele está pensando que a minha estalagem é uma senzala? Meu Deus, só falta ele querer 169 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior um quarto para toda essa "negrada". Nem pagando caro, vou consentir isso... O tal do Dirceu parece um louco ou inimigo querendo desmoronar a minha estalagem... Dona Vera retroage a alguns passos. Ela cata o forro caído no chão, embola-o de qualquer jeito entre os braços e sai do terraço. Rua. Sopro de berrante. Dirceu e Josias olham para o final da rua. Bois, ovelhas e cavalos. Diodato e dois vaqueiros conduzem o rebanho à frente da estalagem. JOSIAS Mas não é o rebanho comprado por vossemecê, "nhô" Dirceu? Olha só, "Tá" vindo lá, até parece festa... Rebanho vindo em direção à estalagem. Todos olhando para o rebanho. DIRCEU Que beleza! Daqui a pouco pegaremos a estrada para Ribeirão do Meio levando bois, vacas, ovelhas e cavalos... Rua. Cavalos troteando devagar. Os dois vaqueiros de seu Diodato atalham o rebanho pelas laterais da rua. Porta da estalagem. Cara feia de mulher branca e gorda passando pela rua, apressada. Porta da estalagem. Dona Vera aparece na porta da estalagem e segue até a rua e aproximase de Dirceu. Dona Vera faz cara de zangada. DONA VERA O senhor não me vai dizer que quer hospedar, cá, na minha estalagem, toda essa negrada, vai? DIRCEU Não, senhora. Daqui a pouco iremos pegar a estrada para a minha fazenda. Carecemos de comer alguma coisa gostosa. Dá para nos servir uma grande ceia? 170 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DONA VERA (fecha a cara, assustada) Sirvo, sim, ao senhor e aos seu amigos, cá dentro. Os outros, creio que comprados agora, lá na praça,não. Essa gente não tem modos, não sabem comportar-se numa mesa e... DIRCEU Todos precisam comer, minha senhora, arranje cá um jeito, pois a viagem será um pouco longa... DONA VERA O único jeito que posso dar é mandar servir a comida para eles, lá no estábulo... DIRCEU Tudo bem, mande que sirva a todos nós, lá no seu estábulo... DONA VERA Mas o senhor e os seus amigos podem... DIRCEU Não sou diferente de ninguém, dona Vera. Qual a diferença que faz entre comer num estábulo ou dentro da sua bonita estalagem? DONA VERA Tá querendo me ofender, senhor? (fecha a cara) Deixa para lá, deixa... Haverá demora, mas vou ver o que posso fazer... DIRCEU Tudo bem, eu só vou receber aquele rebanho que está vindo cá, comer e seguir viagem com os meus amigos... DONA VERA (olha para Dirceu e sorri) 171 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Tô quase me convencendo de que o senhor é um homem caridoso... Acho que vou servir a comida para vós mercês e todos os seus amigos, cá mesmo, dentro da estalagem... DIRCEU Não carece tanto sacrifício, sinhá Vera. Creio que no estábulo é bem melhor. Eu estou com saudade do cheiro da fazenda, do estrume do gado... Além disso, no estábulo eu ficarei a vontade com o meu pessoal... Lá, todos nós comeremos a vontade, até fartar... DONA VERA Tudo bem, vou lá ordenar para que apressem a comida... DIRCEU É bom mesmo, pois creio todos estarem com uma danada fome... PORTA DA ESTALAGEM ABERTA. DONA VERA ENTRA PARA A ESTALAGEM. Rua. Rebanho na frente da estalagem. Hipólito, Cirilo, Miliquito e Josias estão entusiasmados. Eles reparam o rebalho. Cavalo. Diodato montado no cavalo. Dirceu aproxima-se de Diodato. Ele e Diodato tiram os chapéus e, simultaneamente, cumprimentam-se. DIRCEU Conforme prometeste, cá, está o meu rebanho... DIODATO Os seus rapazes conferiram o rebanho. Eles deram-se por satisfeitos. Pensei que vossemecê estava apenas com os quatro moços, mas estou vendo outros... 172 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Eu comprei três jovens para nos ajudar com o rebanho e mais três mulheres para servirem de esposas aos meus rapazes... DIODATO Assim é que se faz... Em cada cabeça, uma sentença. Olha o rebanho, cá. Todos os animais estão conforme combinamos. DIRCEU Encomendei uma ceia para a dona da estalagem, assim que comermos, pegaremos a estrada. Está servido a ceiar conosco? DIODATO Não, não, quero ir até a casa de uma parenta da minha senhora esposa e depois voltar logo para a minha fazenda... O senhor Dirceu partirá quando? DIRCEU Hoje, assim que todo mundo fartar o "bucho". Dentro de cinco ou seis dias, sem falta, quero estar na fazenda reunido com toda a minha gente... DIODATO Vejo que a viagem é longa, seu Dirceu, mas gente demais vossemecê tem para ajudar a conduzir o rebanho...Os animais são mansos, não darão trabalho na estrada. Como está tudo acertado e eu tenho de resolver uns negocinhos de família, por cá, espero que façam uma boa viagem. Cavalo. Diodato tira o chapéu e acena para Dirceu. Os dois vaqueiros de Diodato fazem o mesmo. Diodato e os dois vaqueiros saem galopando em direção ao centro da vila. Porta da estalagem. UM GRINGO, senhor branco, baixo e gordo, olhos claros, de aproximadamente 45 anos, aparece na porta. O gringo fala a língua portuguesa, com dificuldade. O gringo olha para todos procurando por Dirceu. 173 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior GRINGO Quem é a senhora Dirceu? Todos olham para o gringo. Dirceu olha para o gringo com certo espanto. DIRCEU O senhor Dirceu, sou eu, por que? GRINGO O senhor Vera manda falar que comida está pronto. Ele também mandou esse chave, disse que a senhora Dirceu pode abrir o porta grande da mato ao lado e colocar as animais para descanso... Todos continuam olhando para o Gringo. Dirceu aproxima-se do gringo e pega a chave. DIRCEU Obrigado, senhor... GRINGO Meu nome é John Carl, senhora... O gringo dá as costa e entra para a estalagem. Dirceu cochicha aos outros. DIRCEU Ele não é da colônia, é um estrangeiro e ainda está aprendendo a falar a nossa língua... JOSIAS Coitado, ele está fazendo até confusão com o que é homem e com o que é mulher... 174 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Todos dão risadas. Dirceu aproxima-se de Josias. Chave na mão direita de Dirceu. Dirceu entrega a chave para Josias. Josias segue-se até a cancela e abre-a. Cancela aberta. Todos ajudam a tocar o rebanho para o pequeno pasto. Estábulo. Mesa. Panelas de comida e pratos na mesa, dentro do estábulo. Todos se servem da comida. Eles enchem os pratos de comida e se espalham, sentando-se em pedras e em um velho carrode-boi quebrado, jogado a um canto do estábulo. SEQUÊNCIA 70 – INT./DIA. ESTRADA DE VOLTA À FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Tarde. Estrada de volta à fazenda Ribeirão do Meio. Rebanho. Dirceu troteando no meio do rebanho. Cirilo, Hipólito e Miliquito levam em suas garupas as três mulheres negras, compradas em Rio das Mortes. Hipólito e Miliquito tocam o rebanho à esquerda da estrada. Cavalos. Os tr~es jovens negros, também recém comprados em Rio das Mortes, cada um trotea em um cavalo.Os três jovens negros tocam o rebanho à direita da estrada. Josias troteia, tocando o rebanho pelo fundo, ora ele vai até o meio, até a esquerda e direita, controlando o rebanho. DIRCEU (VOICE OVER) A viagem, apesar de durar seis dias, foi um bocado divertida. Só percebemos a chegada em nossas terras quando Josias tocou o seu escandaloso berrante. Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. A chegada na fazenda Ribeirão do Meio, dá-se de forma festiva. Josias toca o berrante, Cirilo, Hipólito e Miliquito tiram os chapéus e gritam. Bois e ovelhas berram, cavalos relincham. Os três jovens negros e as três mulheres negras, recémcomprados, arregalam os olhos medindo toda a fazenda. Varanda. Farias, Conceição e Sebastiana estão na varanda assistindo a chegada deles. DIRCEU Terra nostra est! Sejam todos bem-vindos à nossa terra! 175 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cancela. Miliquito se apressa na frente para abrir a cancela. Josias atravessa a cancela tocando o seu berrante. Em seguida passa Dirceu e depois os demais. Farias, no quintal da frente da fazenda, faz das mãos uma viseira, observando os novatos que acabam de entrar na cancela. Ambrósio sobe na cerca do curral da fazenda para ver a chegada de Dirceu e todos os companheiros de viagem. AMBRÓSIO Ué, parece que veio mais gente do que foi... Que será que aconteceu? Inhô Dirceu cumpriu a promessa de quando disse que ia trazer umas mulheres. Ichi, vai ter casamento de negro na capela da fazenda... Eu só quero ver... Quintal de frente da fazenda. Farias alegre, aproxima-se do pessoal que está chegando de viagem. FARIAS Parece que tem gente nova chegando à fazenda... Creio que "nhô" Dirceu comprou também gente lá em Rio das Mortes... SEBASTIANA Se ele comprou é por que vai precisar de muita gente para trabalhar aqui... FARIAS Parece que ele trouxe algumas mulheres também... CONCEIÇÃO E não tá errado, nós aqui já estamos velhas, não é Sebastiana? Sebastiana força as vistas, tentando ver as três mulheres que chegavam com os homens da fazenda. SEBASTIANA É, mas ainda Deus nos dará tempo para ensinar a elas tudo aquilo que o nhozinho gosta... 176 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CONCEIÇÃO Eu nunca vi o nhozinho reclamar de nada... Tudo pra ele tá bom... Curral da fazenda. Ambrósio pula da cerca do curral para ver todos e também os novatos chegando de viagem. AMBRÓSIO Ué, não é que nhô Dirceu trouxe mesmo mais gente... E o rebanho de gado e de ovelhas parece bem aprumado... Curral da fazenda. Ambrósio pula da cerca do curral da fazenda e sai correndo para a direção da cancela de entrada da fazenda. CORTA PARA Passam-se alguns dias. Visão panorâmica da fazenda. Dirceu montado em seu cavalo cavalga pelas campinas. DIRCEU (VOICE OVER) Olhei para a fazenda com uma grande felicidade. A nossa família de trabalhadores coletivos aumentava-se. Eu, mais do que ninguém, sonhava em modificar todo aquele espaço, transformando-o numa verdadeira comunidade onde negros e brancos formassem uma só família. SEQUÊNCIA 71 - INT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. TERREIRO DO FUNDO DO QUINTAL DA FAZENDA. Manhã. Quintal do fundo da fazenda. Josias e os três jovens negros, recém comprados em Rio das Mortes andando pelo fundo do quintal da fazenda. Os três jovens negros acompanham Josias no terreiro da fazenda. Josias olha para um local descampado e cheio de pedras. JOSIAS para e olha para os três jovens negros. 177 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Construíremos, cá, o chiqueiro das ovelhas. Creio que teremos de fazer um muro de pedras. Mais adiante temos um pasto reservado para elas comerem á vontade... Josias mapeia o lugar. Ele tira da cintura um facão e entrega a um dos três jovens negros. JOSIAS Vossemecê pega o facão e corta alguns galhos de árvores.Vou ensinar a vossemecês a fazer estacas. Com as estacas enfincadas no chão a gente mede e marca tudo... Assim fica mais fácil. Um dos três jovens negros, qual recebera o facão das mãos de Josias, afasta-se um pouco e entra numa pequena mata. Josias e os outros dois jovens negros pegam enxadas e começam a limpar o terreno. Tarde. Quintal do fundo da fazenda. Dirceu e Ambrósio, a pé, chegam ao fundo do quintal da fazenda. Eles observam Josias e os três jovens negros trabalhando na construção do chiqueiro das ovelhas. Josias e os três jovens negros estão construindo um grande muro de pedras. Josias, ao ver Dirceu e Ambrósio se aproximarem dele e dos três jovens negros. Josias tira o chapéu da cabeça e aproxima-se de Dirceu e de Ambrósio. Os três jovens negros continuam trabalhando na construção do muro de pedras. JOSIAS Tarde boa, sinhô Dirceu e Ambósio... Dirceu e Ambrósio tiram os chapeus e cumprimentam Josias. DIRCEU E AMBRÓSIO Tarde boa, Josias. 178 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Adiantaram bem o serviço, por hoje, em Josias? Desse jeito vamos inaugurar logo o chiqueiro das ovelhas... JOSIAS Os meninos são trabalhadores, sinhô Dirceu. Parecem que eles querem colocar logo, cá, as ovelhas... AMBRÓSIO Aproveitaram mesmo o dia, Josias. Desse jeito, o chiqueiro das ovelhas não vai demorar muito para estar pronto... DIRCEU É verdade, Ambrósio. Se Josias e os três garotos continuarem nesse ritmo, levarão no máximo uma semana para findar todas as tarefas... AMBRÓSIO Até carece festa, quando tudo ficar pronto... DIRCEU Então vós mercê, Ambrósio está escolhido para matar uma ovelha bem gorda para a inauguração. Quero comer ovelha assada no buraco... AMBRÓSIO Ué, nhozinho sabe do buraco de assar bode, lá no terreiro de frente da casa? DIRCEU Outro dia meti o bedelho nele. Quando eu era criança, o senhor meu pai gostava de reunir por cá alguns amigos e assar bovinos, pacas, veados e outras caças naquele buraco. 179 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Então uma ovelha tem de morrer para fazer festa em comemoração ao chiqueiro novo das outras... DIRCEU É, Josias, nós chamamos isso de circulo da vida. É preciso que uns morram para que outros vivam... JOSIAS E AMBRÓSIO DÃO RISADAS. SEQUÊNCIA 72 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. TERREIRO DO FUNDO DO QUINTAL DA FAZENDA. FADE IN e FADE OUT implicando vários dias para a construção de um chiqueiro de ovelhas. Manhã. Terreiro do fundo do quintal da fazenda. Pedras amontoadas. Josias e os três jovens carregando pedras e construindo o muro, circulando o chiqueiro das ovelhas. Tarde. Miliquito, Hipólito, Cirilo e Ambrósio construindo uma choça ou cabana, próxima ao chiqueiro das ovelhas. Manhã. Sebastiana e Conceição levando comida para Josias e aos três jovens negros comida e água. Grande pedra. Josias e os três jovens negros sentados na grande pedra, comendo. ATENÇÃO: O final de toda a encenação da construção do chiqueiro das ovelhas dá-se com as ovelhas berrando e entrando nas novas instalações. Os três jovens negros, vestido de pastores são quem tocam as ovelhas para dentro das novas instalações. Josias, Dirceu, Miliquito, Hipólito, Ambrósio e Cirilo observam os três jovens negros tocarem as ovelhas para dentro das novas instalações. Josias, Dirceu, Miliquito, Hipólito, Ambrósio e Cirilo batem palmas para os três pastores. Visão panorâmica do chiqueiro das ovelhas. SEQUÊNCIA 73 – EXT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. TERREIRO DO FUNDO DE FRENTE DA FAZENDA. 180 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Árvore. Ovelha amarrada de cabeça para baixo em uma árvore. Punhal nas mãos de Ambrósio para matar a ovelha amarrada de cabeça para baixo em uma árvore. Buraco calçado com adobes, cheio de lenha. Cirilo coloca fogo nas lenhas. Brasas acesas no buraco calçado de adobe. Mesa com o carneiro temperado, dentro de uma grande gamela. Tarde. Buraco com braseiro. Carneiro sendo assado espetado em um grande e grosso espeto de ferro. Forquilhas á beira do buraco com braseiro para virar o carneiro. Hipólito e Ambrósio assam o carneiro. Noite. Quintal da fazenda. Labaredas de fogo. Fogueira crepitando. Dirceu, Josias, Miliquito, Cirilo, Hipólito, Farias, Sebastiana, Conceição, Ambrósio e os três jovens negros estão sentados à beira da fogueira. Carneiro assado no buraco. As três mulheres negras servem para todos que estão sentados à beira da fogueira, em pequenas gamelas, com farinha de mandioca, pedaços do carneiro assado. DIRCEU (VOICE OVER) Para a felicidade de todos, programei uma festa de inauguração das instalações das ovelhas. Embora ninguém na fazenda levasse a vida de pangaio, não custava abrir uma exceção para nos divertir um pouco, esquecendo do trabalho sério, executado de sol a sol. A festa foi bem simples, com algumas iguarias para comer e beber e uma fogueira para clarear o quintal e também nos aquecer. Aproveitei a ocasião e inventei dar nomes aos nossos três jovens, que, a partir de agora, passariam a ser os nossos três pastores. Pequenas gamelas nas mãos de todos, com pedaços de carne de carneiro assado. Fogueira crepitando. Os três jovens negros estão sentados próximos à fogueira. Dirceu pega um tição da fogueira e aproxima-se o tição a cada um dos três jovens negros. Dirceu, Josias, Miliquito, Cirilo, Hipólito, Farias, Sebastiana, Conceição, Ambrósio, os três jovens negros e as três mulheres negras olham para Dirceu, com o tição da fogueira nas mãos. Dirceu dá um sinal para que os três jovens negros fiquem de pé, frente a ele. Os três jovens negros põem-se de pé. Dirceu olha para os três jovens negros e ergue o tição. 181 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU A igreja batiza os seus cristãos, com água, eu, porém, os batizarei com fogo. O fogo simboliza a energia, a vivacidade, a chama da vida, qual mantém acessa em cada um de nós. Dirceu dá um sinal, para que um dos três jovens negros se aproxime dele. Um dos três jovens aproxima-se de Dirceu. Dirceu faz o sinal da cruz sobre o corpo do jovem negro, com o tição. DIRCEU Vós mercê, será chamado, a partir de hoje, de Endimião. Um jovem de beleza excepcional que dormia eternamente. Endimião era o rei de Elis ou um pastor no Monte Latmos, em Caria. Diz a história que, Selene, a deusa da lua, apaixonou-se por ele e o visitava todas as noites, assim que ele adormecia numa caverna. Dirceu dá outro sinal, para que outro jovem negro se aproxime dele. Outro jovem negro aproxima-se de Dirceu. Dirceu faz o sinal da cruz sobre o corpo do outro jovem negro, com o tição. DIRCEU Vós mercê, será chamado, a partir de hoje, de Trácio, homenageando, dessa forma o povo mais numeroso e mais poderoso do mundo. No século V a.C., os trácios ocupavam as regiões entre o norte da Grécia e o sul da Rússia. Espero que os descendentes de vós mercê venham a ser igual ao povo traciano, cheio de bravura, mas, porém, unido. Dirceu dá um sinal ao último dos três jovens negros. O último três jovens aproxima-se de Dirceu. Dirceu faz o sinal da cruz sobre o corpo do último jovem negro, com o tição. DIRCEU O seu nome, prezado jovem, será Alceu. Alceu, segundo a história, é pai de Anfitrião, o marido de Alcmena. 182 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Fogueira. Dirceu atira o tição na fogueira. Miliquito levanta-se de onde está e, todo entusiasmado, aproxima-se de Dirceu. MILIQUITO Nomes bonitos, nhozinho, os moços ficaram até satisfeitos... Se junto a Deus do céu, nhozinho tem o poder de dar o nome de alguém, creio que poderá também mudar... DIRCEU (olha para Miliquito e dá risadas) Uai, sô, quer mudar o seu nome Miliquito? Mudar um nome é como se a gente quisesse também mudar uma estrela do céu... MILIQUITO Não, não é meu nome, não nhozinho... (aponta com o dedo para uma das três mulheres negras compradas em Rio das Mortes) É que o nome daquela é Caliandra, onde se viu nome mais esquisito e difícil? Caliandra, uma das três mulheres negras olha para Miliquito e sorri. Ela para e fica observando o que Miliquito e Dirceu estão falando sobre o nome dela. DIRCEU Caliandra! Ora, Miliquito, esse nome não é estranho. É um nome bonito e até admirável. Caliandra é o nome de uma planta ornamental. MILIQUITO (tira o chapéu, coça a cabeça e dá risadas) Um nome de planta? 183 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Sim, um nome de planta! Mas por que vós mercê está preocupado com o nome da moça, se ela foi escolhida em Rio das Mortes, pelo Cirilo? Josias olha para Cirilo. Caliandra e Cirilo olham-se mutuamente. Caliandra abaixa-se a cabeça e aproxima-se de Dirceu e Miliquito. CALIANDRA Ele implicou com o meu nome, nhô Dirceu. Vive dizendo para o Cirilo, que o meu nome é difícil. Esse nome quem me deu foi uma sinhazinha, lá na fazenda Canastra. A sinhazinha tinha lá seus quinze anos e disse que tinha uma amiga com esse nome... Depois, a danada da sinhazinha, só porque não fiz um de seus caprichos, acabou pedindo ao pai que me vendesse... Se nhô mudar o meu nome e Deus no céu dizer amém, isso fará bem a minha alma... DIRCEU Então vós mercê quer outro nome Caliandra? Caliandra olha para Dirceu e balança a cabeça afirmando "sim". Fogueira. Miliquito corre até a fogueira, pega um tição aceso e entrega-o para Dirceu. MILIQUITO Aqui tá o tição, nhozinho, faz igual fez com os outros... Tição nas mãos de Miliquito. Dirceu olha para Miliquito com um olhar sério. DIRCEU Não, não preciso do tição Miliquito, pode voltá-lo para a fogueira. 184 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Miliquito volta o tição para a fogueira. Dirceu coloca as mãos na cabeça de Caliandra. Todos olham para Dirceu e Caliandra. DIRCEU Deus escreverá no grande livro do céu o teu novo nome, Caliandra. Tu serás, a partir de hoje, conhecida por todos da terra e do céu com o nome de Eulina, a que a todos traz na lembrança, a ninfa, filha de Aucolo, qual, foi a grande paixão do deus Jove. Fogueira. Sanfona. Farias toca-se a sanfona. Todos cantam modinhas ao redor da fogueira. FOGUEIRA APAGADA. OUVE-SE O CANTAR DO GALO. SEQUÊNCIA 74 – EXT. /INT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Manhã. Curral. Vacas apartadas. Dirceu, Miliquito e Cirilo estão no curral Eles tiram leite das vacas. Galinheiro. Galinhas nos ninhos. Farias com a cesta nas mãos cata os ovos das galinhas. Sebastiana, conceição e Eulina preparam o café matinal. Pátio do quintal. Vassoura feita de ramos verdes. Inácia e Quitéria varrem o terreiro de frente da fazenda. Josias, Ambrósio e Hipólito tocam os bois no pasto. Muro de pedras. Chiqueiro das ovelhas. Ovelhas pastando. Os três pastores, ALCEU, ENDIMIÃO e TRÁCIO, sentados na porta da pequena choça ou cabana, vigiam as ovelhas. Casarão da fazenda. Cozinha. Leiteiras no chão, próximas à mesa. Mesa com o café e uma enorme assadeira na mesa contendo um bolo de puba. Dirceu, Miliquito, Ambrósio, Josias, Hipólito e Farias estão sentados à grande mesa. Conceição e Inácia servem café para eles. DIRCEU (VOICE OVER) Os dias seguintes foram de união, criatividade e solidariedade que se somavam ao trabalho como arte do homem em todas 185 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior as suas realizações. Eu aprendia com eles os ofícios e admirava o quanto eles preocupavam com a perfeição em tudo o quê eles faziam. SEQUÊNCIA 75 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Tarde. Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado na cama observando o leque, qual havia recebido de Tomázio, em Vila Rica. Dirceu observa as letras góticas gravadas no leque. Cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu encontra-se com Josias perto da cancela da fazenda Ribeirão do Meio. DIRCEU (VOICE OVER) Numa tarde, no meu quarto, ao sentir-me só, deitei-me no catre e pensei na gazela de Vila Rica. Peguei o leque da moça e fiquei a repará-lo. Nele havia as iniciais "AM" gravadas a fogo, em letras góticas. "M" eu sabia que era de "Marília" e "A”? Aí é que estava o mistério. Pensei um pouco e acabei inventando uma viagem a Vila Rica. Procurei por Josias e pedi a ele que arriasse o meu cavalo para eu fazer a viagem, na manhã seguinte. Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela da entrada da fazenda. Dirceu e Josias estão frente à cancela da entrada principal da fazenda Ribeirão do Meio. DIRCEU Josias, amanhã, madrugada, quero pegar a estrada para Vila Rica. Quero que vós mercê prepare os nossos cavalos... JOSIAS (tira o chapéu, coça a cabeça e responde num tom de angústia) Sinhozinho há de pensar que o amigo Josias não está querendo cumprir as suas ordens... 186 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não entendi... JOSIAS É que em Rio das Mortes, sinhozinho pediu para que Josias escolhesse uma mulher para servir-lhe de esposa, mas como o coração de Josias, já se sente ter uma dona, ele não obedeceu "nhozinho". Agora, "nhozinho" quer Josias como companheiro de viagem, pelas bandas de Vila Rica e... DIRCEU E o meu amigo teme a estrada e uma tocaia inesperada dos capangas de Dom Miguel? JOSIAS (bate a mão direita no peito) Presentimento ruim nhô que bate cá na alma do negro. DIRCEU Compreendo, Josias, eu compreendo. Mas o amigo não pode ficar feito um sapo, embirrado no poço, enquanto as coisas acontecem no mundo. É preciso fazer o que falei a vós mercê. Pegar o cavalo, seguir viagem e encontrar a Zenilda... O resto fica por minha conta... O amigo sugere um dos rapazes para seguir-me nesta viagem? JOSIAS (olha para a campina, avista o morro e coloca o chapéu na cabeça) Entre os rapazes, o mais experiente para viagem e capaz de defender sinhozinho das emboscadas é o Cirilo... DIRCEU Então eu mesmo farei o meu convite a ele... 187 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 76 – EXT./ DIA. ESTRADA DO ITA-CORUMI. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. CASA DE CARLOS. SALA DE VISITA. Madrugada. Cavalos de Dirceu e de Cirilo troteando. Cirilo frea o cavalo e olha para um lado e outro. Dirceu também frea o cavalo e olha para Cirilo. Serra do Ita-corumi. Olhar de Cirilo voltado à serra do Itacorumi. CIRILO Não se assuste não nhozinho, é que bateu, cá, na minha cabeça, a ideia de pegar a outra estrada... DIRCEU Outra estrada? Outra estrada para se chegar a Vila Rica? CIRILO É! Não sei se nhozinho sabe, existe outra estrada. Por ela, chega-se mais rápido em Vila Rica... Algumas pessoas dizem que nela pode haver perigos... DIRCEU E que estrada é essa, Cirilo? Se ela leva os homens destas bandas com mais rapidez para Vila Rica, não há como não segui-la... Perigos, Cirilo, existem em todos os lugares... CIRILO Nhozinho tá vendo o morro? Cirilo aponta para Dirceu a serra do Ita-corumi. Visão panorâmica da serra. Dirceu olha para a serra e faz "sim" com a cabeça DIRCEU A serra do Ita-corumi? 188 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CIRILO Basta subir, contornar o morro e, numa certa altura, descer e entrar em Vila Rica... Cirilo espora o cavalo e, seguindo-se na frente chega á uma estrada estreita, qual entrada se dá quase fechada pelo mato. Dirceu o acompanha. Dirceu e Cirilo fream os cavalos, observam a entrada da estrada e, em fila indiana, seguem viagem pela serra do Ita-corumi. DIRCEU (VOICE OVER) O morro, ou a serra, ficava entre os rios do Carmo e dos Prazeres conhecida como serra do “Ita-corumi”, significando na língua dos índios "pedra-menina". Desde criança eu escutava as pessoas falarem que essa serra ligava Minas Gerais à Bahia, agora eu estava a crer nisso, principalmente ao saber que ela tornava a minha fazenda mais próxima de Vila Rica e, se assim fosse, eu também estaria mais próximo da minha jovem e doce Marília. CIRILO Esta estrada nhô, só é pequeninha assim, no início, depois ela fica maior e dá para quatro ou até cinco cavalos ficarem rente uns aos outros... A estrada estreita, aos poucos, torna-se ampla. Cirilo, sem que Dirceu perceba, coloca novamente o seu cavalo páreo ao dele. Dirceu observa Cirilo ao seu lado e dá risadas. DIRCEU Uai, nem percebi que a estrada já estava crescendo. Então, a partir daqui qualquer tropeiro se sente seguro, Cirilo. CIRILO É o que falei pra nhozinho, acho que a estrada foi feita assim para enganar as pessoas... 189 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Como foi que vós mercê descobriu esta estrada, Cirilo? CIRILO O outro patrão andava por ela. Eu sempre seguia viagem com ele. Eu tenho costume com esta estrada, mas, agora, não sei por que, não quero espantar nhozinho, mas eu estou sofrendo de uns arrepios, daqueles de avisos ruins... DIRCEU (olha para Cirilo, naturalmente) Não deve ser nada, Cirilo, é a altura da serra. Quanto mais subimos a serra, mas sentiremos frio... CIRILO (assustado, tira o chapéu e se benze com o sinal da cruz) Não gosto disso, Deus é testemunha de que não gosto... DIRCEU Eu não sabia sobre este trajeto. Durante a viagem constatei que esse caminho íngreme era secreto e que, sem dúvida, vinha a fazer parte dos planos do mísero inconfidente, exproprietário da minha fazenda. Lembrei-me também do infeliz alferes, Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes. CIRILO (frea o cavalo e olha para Dirceu um pouco apavorado) Tô sentindo frio, nhozinho, tô cada vez mais arrepiado, deve ser alma penada me seguindo... DIRCEU (olha para Cirilo, ri dos modos dele e prossegue troteando pela estrada da serra do Ita-corumi) No início da viagem pensei em desistir, depois, não sei por que, a viagem tornou-me prazerosa. Ao contornar a serra, 190 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior percebi a natureza invadir-me a alma, causando-me uma sensação diferente, como se rejuvenescesse o meu espírito e o meu corpo. Calado, eu inventei que eu subia para o céu em busca da minha estrela. Sorri ao lembrar que ela não estava no céu, mas na terra, em Vila Rica... Cavalos. Dirceu e Cirilo contornam a serra do Ita-corumi, descendo-a. CIRILO Se nhozinho prestar atenção, na próxima curva, já dá para avistar a freguesia. Bastam duas ou três curvas e já estaremos entrando em Vila Rica. Final de uma curva. Visão panorâmica de Vila Rica Dirceu solta um grito e espora o cavalo. Vila Rica. Dirceu e Cirilo, a trotes lentos, entram em Vila Rica. Porta da casa de Carlos. Dirceu e Cirilo fream os cavalos na frente da casa de Carlos. DIRCEU (VOICE OVER) Entramos na vila a trotes lentos e nos conduzimos até a casa de Antonio Baeta, um grande amigo meu, magistrado em Direito, pela Universidade de Coimbra. Dirceu e Cirilo, acompanhados por Carlos, um jovem de aproximadamente 23 anos de idade, magro, alto e tem olhos claros. A fala de Carlos é carregada por um leve sotaque da língua portuguesa de Portugal. Carlos direciona Dirceu e Cirilo a uma grande sala. Carlos recolhe os chapéus de Dirceu e Cirilo, colocando-os num cabide da sala. Carlos, Dirceu e Cirilo sentam-se em confortáveis poltronas. Carlos e Dirceu estão sentados mais próximos um do outro. Carlos com o jeito de falador, entusiasmado, fala. CARLOS Creio, meu amigo Dirceu, que há muito tempo vós mercê não se tem notícias do Antônio Baeta, pois ele, desde quando retornou ao Brasil, assumiu o cargo de comendador na 191 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior capitânia de Pernambuco. Lá,segundo me disseram, ele está a assumir a difícil função de defender as terras reconquistadas pela coroa portuguesa, desde o fim das capitanias hereditárias. Não sei se sabe, mas as reformas do Marquês de Pombal, desde 1759, ainda causam polênicas pelo interior do Brasil. DIRCEU Isso lá é verdade, Carlos. Há tempo não tenho notícias nem mesmo de vossa mercê... Creio que a última vez que nos encontramos faz quatro ou cinco anos, quando acompanhei o senhor meu pai, até aqui, para tratar de negócios com o vosso pai... (pausa)Quanto às reformas do Marquês de Pombal, muita gente tem sofrido irreparáveis danos... CARLOS Segundo o primo, Antônio Baeta, as terras que pertenciam a Duarte Coelho, deveriam pertencer ao povo de Pernambuco, porém o rei dizima a todos cobrando impostos por todos e qualquer tipo de produto manufaturado... Os holandeses, a quem o povo dessa companhia soma os lucros, são constantementes vigiados pela coroa real... (pausa) Voltandose ao assunto que nos interessa, creio que, desde quando o senhor vosso pai esteve aqui, nunca mais nos encontramos. Não sei se vós mercê sabe, mas desde quando o senhor meu pai faleceu, não tenho ocupado de outras coisas, senão dos interesses da família. Há tempo, alguns da família tentam convencer-me a deixar a colônia e embacar para Portugal, porém, tanto a viagem, quanto o clima europeu, a mim, nunca fizeram bem. Prefiro viver aqui, a servir a todas as pessoas de bem. A esposa do meu pai, juntamente com a minha tia e meus irmãos, lá estão. Tenho recebido notícias de que todos já se aprimoraram por lá. A isso, eu dou graças a Deus, pois quando eles lá chegaram, por alguns tempos, ficaram feito o rei, sempre pedindo dinheiro e gastando toda a nossa pacata herancinha... 192 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Se o ouro esgotar e a vossa família desfazer-se das minas, a ti não será tão difícil. És um médico talentoso, meu amigo, Vila Rica inteira sabe disso e creio não querer perder-te. Pacientes nunca há de faltar para ti... CARLOS Ultimamente tenho me entregado às farras, às reuniões noturnas de caráter musical. Aqui o que um médico faz, as negras parturienses fazem muito bem. (cochichando para Dirceu e Cirilo) Ultimamente, nunca vi em outro ligar nascer tantas crianças como neste lugarejo... DIRCEU (dá risadas) Ora, pois, para se ter uma grande nação é preciso de contigentes. DIRCEU (levanta-se e ergue a voz de forma engraçada) As crianças de hoje, serão o futuro desta colônia... CARLOS Ou da nação portuguesa, porque a todos competem servir ou servir ao rei e ao povo luso... DIRCEU Creio que as coisas mudarão com o tempo. Crianças não nascem por acaso. Decerto, cada uma delas devem receber de Deus uma missão importante, quem sabe, entre essas missões, tornar-se o Brasil livre de Portugal. CARLOS Deixamos o entusiamo de lado... As coisas haverão de acontecer com o tempo. 193 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior (faz sinal de "psiu" e bate a mão na parede) Os adobes são grossos, senhor Dirceu, mas têm ouvidos... De médico a minerador, não sei se vós mercê tomou partido, tornei-me proprietário de um grande comércio. DIRCEU (demonstra-se surpreso) Então, está o meu amigo Carlos a tocar um comércio? CARLOS Comprei o armazém da família do Gurmecindo. O danado do português apaixonou-se por uma mulata, comprou-a de seu dono, largou esposa e filhos, amancebou-se com ela e ambos fugiram para o Rio de Janeiro. As dívidas foram muitas e a família para se ver livre dos cobradores, venderam a mim o comércio... Entra na sala uma CRIADA, mulata alta, magra e sisuda. Bandeja nas mãos com xícaras e bule com café. A Criada serve o café para Dirceu, Carlos e Cirilo. Mesinha em um dos cantos da sala. A criada coloca a bandeja com o bule na mesa e se retira da sala. Dirceu, Carlos e Cirilo tomam-se do café. DIRCEU (VOICE OVER) Quando Carlos interagiu-me em ter se convertido ao comércio de secos e molhados, logo percebi que, naquela manhã, ele deveria estar pronto para atender a sua freguesia. Entre uma xícara de café e outra, fi-lo contar para mim sobre a jovem Marília. Ele a conhecia. Em Vila Rica todo mundo conhecia todo mundo e sabia prestar informações sobre quase tudo a respeito dos moradores. CORTA PARA 194 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CARLOS O pai de dona Marília chama-se Dom Manuel e, desde criança, talvez por brincadeira, comentam-se que o senhor pai dele sempre o chamava de "dom". Alguns diziam que ele sonhava em fazer o filho rei do Brasil, inventando chamá-lo de "dom Manuel", impondo ao filho uma forma de tratamento qual exigisse o respeito de todos. Há poucos anos, dom Manuel ficou viúvo. A esposa dele morreu devido a uma doença incurável, qual custou muitas sangrias e noites incansáveis de dores e tormentos a ela e a família. Dom Manuel era um minerador, agora, segundo consta nos planos dele, ele se tornará um fazendeiro... DIRCEU (demonstra-se um pouco impaciente) E dona Marília? Conte-me o que vós mercê sabe sobre ela... (ajeita-se confortavelmente na poltrona). CARLOS (sorrindo, observa a impaciência de Dirceu) Calma, calma, prezado amigo... Bem, se queres saber sobre a dona Marília, tenho algumas informações. Conheço bem a família dela, fui médico durante toda a doença da esposa de Dom Manuel... (tosse secamente) Dona Marília, a adorável dona Marilia é uma cachopa de dezessete anos de idade e aguarda, conforme promessa do pai, a vinda de um jovem pretendente da Itália, para casar-se com ele... DIRCEU (coloca-se novamente de pé) Isso é verdade? A Marília é uma moça comprometida a um estrangeiro? 195 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Carlos levanta, aproxima-se de Dirceu e o faz sentar novamente na poltrona. Dirceu senta-se na poltrona. Carlos senta-se na poltrona ao lado dele. CARLOS Contei-lhe o que sei. Mas na vida, prezado amigo, nem tudo se perde. Se estas a gostar da dona Marília e ela a ti corresponder, nada impedirá que vós mercês possam ser felizes... DIRCEU Isso cá é verdade. A vida não nos dá nada de graça. É preciso arregaçar a manga e ir á luta. Quando se trata de algo ligado ao coração, creio que as próprias emoções dão jeito de resolver tudo... Carlos levanta-se da poltrona e vai até a janela. Ele expia o lado de fora da janela. Rua. Pessoas passando nas ruas. Alguns comércios abertos. Carlos olha para Dirceu um pouco tenso. CARLOS As portas do comércio estão a abrir e os concorrentes passarão-me a perna, senhor Dirceu... Dirceu levanta-se rápido da poltrona. Cirilo faz o mesmo. Dirceu e Cirilo se colocam em pé. Carlos, portanto, continua na janela. DIRCEU Ao bom entendedor meia palavra basta! Estou a roubar o seu precioso tempo, não é senhor Carlos? CARLOS Eu gostaria que isso não fosse um roubo, pois é sempre bom investir os nossos preciosos tempos para estar com os nossos melhores amigos... Pena que a responsabilidade nos chama e a vida nos enche de obrigações e deveres... 196 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu olha para o cabide e faz um sinal para que Cirilo pegue os chapéus. Cirilo dirige-se ao cabide e pega o chapéu de Dirceu e o dele. DIRCEU Agradeço pela modéstia. Mas ainda creio que o amigo tenha de gastar a maior parte do dia em seu comércio. Dessa forma, não só o amigo ganha, mas todos de Vila Rica. Afinal um concorrente a mais é sempre bom para quem compra... CARLOS Isso lá é verdade... Carlos dirige-se até o cabide e pega o chapéu. Porta. Dirceu dirige-se até a porta acompanhado por Cirilo. Carlos coloca o chapéu na cabeça e dirige-se até a porta, abrindo-a. Porta aberta. Dirceu, Cirilo e Carlos saem pela porta. CAPÍTULO 5 SEQUÊNCIAS 77-94 Personagens deste capítulo: Dirceu Rosa Cirilo Tropeiros (espanhóis) Farias Miliquito Josias Ambrósio Sebastiana Hipólito Conceição (morta) Caliandra Inácia 197 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Quitéria Homem negro de 31 anos Homens negros e mulheres negras Capataz Jesus Cristo Homem negro, forte e beiçudo (servo do Coronel) Duas moças negras e bonitas (servas do Coronel) Dois estrangeiros (gringos) deitados nas redes da casa do Coronel. Coronel Gringo Padre Rocha Vívila Dom Manuel Dono do Armarinho (em Mariana) Mulatinho Mulheres brancas e elegantes (em Mariana) Laura Marília FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 40. SEQUÊNCIA 77 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. Ruas de Vila Rica. Movimento de pessoas nas ruas de Vila Rica. Cavalos amarrados em postes de madeiras. HOMENS BRANCOS entrando e saindo dos comércios. Vila Rica, finalmente, ganha uma aparência de Paris, no auge do seu desenvolvimento. Dirceu e Cirilo observam todo o movimento de Vila Rica. Rosa está andando distraidamente em uma das ruas de Vila Rica. Dirceu vê Rosa. Olhos de Dirceu seguindo Rosa. Dirceu dá um sinal para Cirilo e os dois cavalgam em direção de Rosa. Rosa assusta-se ao ver Dirceu e Cirilo irem à direção dela. Rosa pula em um degrau de uma calçada. Dirceu aproxima-se dela apertando a rédea do cavalo. O cavalo dá um pinote. Rosa, com os braços abertos, 198 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior assustada, encosta-se na parede de um casarão. Dirceu olha para Rosa, todo satisfeito. DIRCEU A mocinha lembra-se da minha pessoa? ROSA (ainda assustada, arregala os olhos e respira aliviada) É o moço... O moço que dona Marília e eu vimos um dia no armazém do português... DIRCEU Isso, mesmo, vê que a mocinha tem uma excelente memória... ROSA (ainda encostada na parede do casarão ajeitando-se o corpo) Ué, o moço não veio mais aqui não? Por quê? DIRCEU (entusiamado) Então a sinhazinha ainda se lembra de mim? ROSA Claro! Eu e a dona Marília procuramos vossemecê por aí algumas vezes... DIRCEU (alegre e surpreso) É mesmo? E por que vós mercê e a sinhá Marília procuram por mim nesta cidade tão grande e cheia de gente? A sinhá Marília não tem ainda nenhum outro pretendente? ROSA (sorri, olha para os lados, coça os calcanhares e levanta a cabeça timidamente) 199 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Sei disso não. Só sei que a sinhazinha disse que o amor é coisa do coração, não é coisa arranjada não. O pai dela é que faz gosto do casamento, mas ela mesma... DIRCEU Eu preciso ver a sinhazinha, como faço? ROSA Num falei que o moço quer saber demais? Tá bom, vou falar... A sinhá Marília tá na casa da dindinha dela, a sinhá Berta. Num sei se sinhozinho conhece é uma velha costureira da vila... DIRCEU (impacientemente coloca o chapéu na cabeça e afrouxa a rédea do cavalo) A dona Marília está na casa da madrinha dela? A madrinha dela chama-se sinhá Berta? Eu a encontrarei, eu a encontrarei... Rosa diz "sim" com a cabeça. Dirceu dá um rápido sinal para Cirilo e ambos, sem se despedirem de Rosa, saem cavalgando apressados pelas ruas de Vila Rica. Logo Dirceu frea a rédea do cavalo, observa as ruas e se vê um pouco confuso e olha para Cirilo. DIRCEU A costureira? A madrinha ou dindinha de dona Marília? Quem seria ela, onde morava essa senhora naquela cidade? Dirceu e Cirilo cavalgam pelas ruas em trote lento. Dirceu aproxima-se de uma pessoa e outra para obter informações sobre a casa da costureira Berta. Ninguém sabe informá-lo. Dirceu e Cirilo troteiam entre uma rua e outra, perdidos. Casarões. Janelas. Olhar de Dirceu sobre as casas de Vila Rica. Dirceu frea o cavalo e olha para Cirilo. 200 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Ora, Cirilo, eu sou um tolo mesmo. Eu estava crente de que nesta cidade se encontrava tudo e todos com facilidade. Deixei a Rosa ir sem despedir-me dela e sem buscar mais informações sobre a bendita casa da costureira... SEQUÊNCIA 78 – EXT. DIA. ESTRADA DO ITA-CORUMI. Estrada da serra do Ita-corumi. Dirceu e Cirilo estão cavalgando pela estrada da serra do “ita-corumi”. Ao contornar a serra eles encontram alguns tropeiros descansando debaixo de uma árvore. UM DOS TROPEIROS, um senhor de aproximadamente 50 anos, ao ver Dirceu e Cirilo, troteando em direção deles, acena para eles e pede uma informação, misturando o espanhol com a língua portuguesa. Os DEMAIS TROPEIROS procedem-se tranquilos e calados, apenas olhando para Dirceu, Cirilo e os seus respectivos cavalos. ALGUNS TROPEIROS, com alforjes pendurados no pescoço, enfiam as mãos dentro dos alforjes e pescam pedaços de carne, comendo-os com avidez. O um dos tropeiros aproxima-se de Dirceu e Cirilo. UM DOS TROPEIROS Nosotros inventamos subir esta montaña para el futuro de la visión de algún pueblo quieres venir a la Villa Rica .. Creo que estamos perdidos, los pasajeros pueden los informar dónde se encuentra la Villa Rica o en otro pueblo cercano? DIRCEU Estão no caminho certo, senhor. Basta vossas senhorias contornarem a serra e logo avistarão a freguesia. A estrada daqui por diante não é tão íngreme, como a que vossas senhorias já devem ter enfrentados... UM DOS TROPEIROS (solta um grito de alegria) Gracias, señores y bueno viaje. 201 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu e Cirilo olham para o um dos tropeiros e dão risadas. Cavalo de Dirceu. Alforje pendurado na sela. Dirceu enfia a mão dentro do alforje e retira um pedaço de rapadura e uma pequena botija com água. Dirceu aperta a rédea do cavalo e entrega ao um dos tropeiros o pedaço de rapadura e a botija com água. O um dos tropeiros recebe o pedaço de rapadura e a botija. Ele entorna a botija na boca. UM DOS TROPEIROS Gracias, señor. Agua... Yo estaba muy necesitado de agua... O um dos tropeiros devolve a botija para Dirceu. Dirceu levanta a botija, oferecendo aos outros tropeiros. Os outros trpeiros fazem "não" com as cabeças. Alforje na sela, Dirceu nfia a botija no alforje e olha para Cirilo. Dirceu e Cirilo acenam as mãos aos tropeiros. Dirceu e Cirilo afrouxam as rédeas dos cavalos e saem galopando pela estrada. Nuvens de poeiras, ao virar a primeira curva da estrada. SEQUÊNCIA 79 - EXT./INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Noite. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela principal da fazenda. Dirceu e Cirilo aproximam-se da cancela montados em seus cavalos. Cirilo abre a cancela. Ao atravessarem a cancela, Dirceu e Cirilo avistam todos da fazenda quietos, cabisbaixos e tristes. Candeias acesas na varanda do casarão. Sebastiana está encostada em um canto da varanda, rodeada por Eulina, Inácia e Quitéria. Farias, Ambrósio. Miliquito e Josias sentados em círculo ao redor de uma fogueira crepitando no quintal de frente da fazenda. Dirceu, ainda montado no cavalo, aproxima-se da varanda e cumprimenta a todos. Todos respondem apenas balançando a cabeça. Farias levanta-se do tamborete. Cachimbo na boca de Farias. Baforadas de fumaça pelo ar. Farias sai de perto da fogueira indo ao encontro de Dirceu. Ao aproximar-se de Dirceu, Farias tira o chapéu, aperta-o no peito e olha para o céu escuro. Dirceu fita-o com certa preocupação. Cavalo. Dirceu salta do cavalo e o entrega a Cirilo. Cirilo também salta do cavalo, segura as rédeas dos dois cavalos e fica observando tudo em 202 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior um dos cantos do terreiro, próximo à varanda. Farias aproxima-se de Dirceu falando com uma voz trêmula. FARIAS Sinhozinho passou o dia fora e ninguém trabalhou hoje na fazenda. Dirceu estranha a voz triste de Farias. Josias aproxima-se de Dirceu, que se prepara para entrar na varanda. JOSIAS É que Conceição morreu... DIRCEU (olha para Farias e Josias, meio assustado, tira o chapéu da cabeça e reverencia ao céu) A Conceição? A minha velha preta morreu? Canto do terreiro da fazenda. Cirilo parado segurando os dois cavalos pelas rédeas. Assustado, Cirilo arregala os olhos, tira o chapéu e coça a cabeça. Cirilo anda em direção à fogueira crepitante, onde estão Hipólito, Ambrósio e Miliquito. CIRILO Senti arrepio o dia todo, desde a ida para Vila Rica, até a volta. Até reclamei para nhozinho. Ele dizia que o arrepio era por causa da altura da serra... Dirceu olha para Cirilo e faz "sim" com a cabeça. Cirilo e Hipólito se afastam da varanda e ficam confabulando em um dos cantos do quintal de frente da fazenda. Miliquito e Ambrósio recolhem os cavalos, saindo do quintal. Dirceu pendura o chapéu em um galho de uma pequena árvore e fica a reparar Sebastiana. Dirceu entra na varanda indo ao encontro de Sebastiana. 203 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Que desventura, Sebastiana! Então a Conceição passou desta para melhor? Sebastiana olha para Dirceu com certa melancolia, ajeita-se o corpo e narra os acontecimentos do triste dia. SEQUÊNCIA 80 – EXT./INT./DIA/FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Flash back – Relato de Sebastiana. Quarto de Conceição. Conceição está deitada na cama. Sebastiana entra no quarto de Conceição. Sebastiana acorda Conceição, tocando-lhe as mãos. Ela mexe com o corpo de Conceição, mas esta está morta. Porta do quarto de Conceição. Sebastiana aparece na porta do quarto de Conceição, gritando por todos da fazenda. Miliquito, Josias, Ambrósio, Hipólito, Eulina, Inácia, Quitéria e Farias correm até a porta do quarto de Conceição. Farias aproxima-se do corpo de Conceição e tira do pescoço dela um velho colar de sementes. Sebastiana está com o olhar fixo no corpo de Conceição. Farias aproxima-se de Sebastiana e coloca no pescoço dela o colar de sementes. FADE OUT / FADE IN. Capela da fazenda. Corpo de de Conceição estendido em um dos bancos da capela da fazenda. Tarde. Quintal da fazenda. Inácia, Quitéria e Sebastiana terminam de tecer uma rede de palha. Josias termina de confeccionar uma cruz. Pôr do sol. FADE OU/FADE IN Cemitério no pé do morro. Cova. Todos da fazenda, inclusive os três pastores, estão em volta da cova. Cordas trançadas na rede. Hipólito, Josias e Ambrósio seguram as cordas para descer a rede de palha com o corpo de Conceição. Terra caindo dentro da cova, sobre a rede de palha. 204 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cova fechada. Sepultura de Conceição. Josias coloca a cruz na sepultura de Conceição. Hipólito tira a cruz da sepultura e balança a cabeça com um sinal de "não". Ele devolve a cruz para Josias. Todos deixam o cemitério, saindo de cabeça baixa. Josias carrega a cruz entre os braços. SEBASTIANA (VOICE OVER) Logo que nhozinho saiu com Cirilo, eu fui lá no quarto acordar Conceição para ela cuidar das galinhas com o velho Faria, mas ela estava lá estorricada no catre... Mexi ela de cá, de lá e nada. Quando olhei direito estava ela sem respiração, morta, feito um bichinho, toda fria. Os rapazes juntaram todos e levaram ela para a capela, tecemos uma rede de palha e enterramos ela, ainda há pouco, lá no pé do morro. SEQUÊNCIA 79.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE/DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS, INCLUINDO MONTAGENS. DIRCEU Colocaram uma cruz na sepultura dela? Todos ali parados olham para Dirceu. MONTAGENS: Imagens de segregação racial impostas pelos homens brancos: cemitérios, igrejas, lugares públicos, comércios, etc. DIRCEU (OFF) Ao fazer esta pergunta, subitamente, todos olharam para mim com olhares incandescentes. Eu sabia que eles agiriam dessa forma. Era normal em nossa colônia e talvez na europa, que a sociedade separasse cemitérios e igrejas de brancos e negros. Uma raça vivia dependendo da outra, mas quando se tratava do social, a distinção se fazia de forma grotesca e impensada: branco era branco; negro era negro. A visão que se tinha era 205 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior como se Deus dividisse no céu todas as raças, privilegiando umas e desprivilegiando outras. Nessa separação, a raça negra era a que perdia para a branca. CORTA PARA JOSIAS (levanta-se a mão direita e ganha a atenção de todos) Eu fiz uma cruz para colocar na sepultura da Conceição, nhô Dirceu, mas, não sei porque, não deixaram colocar ela lá. Foi até Hipólito que tirou a cruz... Contei para eles que, nas bandas de onde eu venho, já vi cruzes em sepulturas de negros. "Nhô", sim, juro que vi... DIRCEU E por que não deixaram colocar a cruz na sepultura de Conceição? SEBASTIANA Onde nhozinho viu falar que negro recebe cruz, quando morre? SEQUÊNCIA 81 – EFEITOS – INT./DIA. VÁRIOS. EFEITO: Sol quente. Trono. HOMEM NEGRO amarrado no trono. O HOMEM NEGRO é jovem, magro, alto, de 31 anos. Circulo de homens negros e mulheres negras a alguns metros do trono. Trono. O homem negro amarrado no trono. Chicote batendo no lombo do homem negro. CAPATAZ surrando o homem negro no trono. Lombo do homem negro escorrendo sangue. Chicotadas. O homem negro olha para o céu e em seguida desmaia-se. Circulo de homens negros e mulheres negras. VÁRIAS MULHERES NEGRAS tapam os olhos, OUTRAS deixam escapar lágrimas dos olhos. Trono. O homem negro, no trono, apanhando do capataz. Chicote na mão do capataz. O capataz aproxima-se do homem negro e sorri. O capataz olha para o círculo de 206 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior homens negros e mulheres negras. Chão. Chicote sujo de sangue cai no chão. Botas do capataz, passos apressados pelo pátio. Frondosa árvore.O capataz some ao atravessar pela frondosa árvore. Trono. Homem negro morto no trono. O circulo de homens negros e mulheres negras fecha-se em torno do trono. HOMENS NEGROS desamarram o homem negro morto do trono. Homem negro morto estendido no chão. ALGUMAS MULHERES NEGRAS caem no chão de joelho. Pedaço de pano branco cai sobre o corpo do homem negro morto. As mulheres negras caídas de joelho cobrem o corpo do homem negro morto. Vereda estreita. Fila indiana formada por homens negros e mulheres negras. Corpo do homem negro morto sendo levado pelos homens negros. Cova. Os homens negros atiram o corpo do homem negro morto na cova. Mulheres negras aproximam-se da cova e cada uma pega três punhados de terra e atira dentro da cova. Ocaso. Cruz. JESUS CRISTO morto na cruz. A cruz, com Jesus pregado, sobe aos céus. Terra. Lugar descampado. Sepultura do homem negro morto. A cruz de Jesus cai sobre a sepultura do homem negro. Cruz. Luz forte. Jesus Cristo, vestido em uma túnica branca e em um bonito manto azul está próximo á sepultura do homem negro morto. Jesus Cristo ajoelhase á sepultura e entre um facho de luz surge da sepultura do homem negro morto. O homem negro morto está vestido em vestes iguais a de Jesus Cristo. No lugar descampado surge um algodoeiro. Jesus Cristo e o homen negro morto andam pelo campo. Na medida em que Jesus Cristo e o homem negro morto andam, homens brancos, mulheres brancas; homens negros e mulheres negras - todos vestidos iguais a Jesus Cristo - acenam as mãos para Jesus Cristo e o homem negro morto. Luz intensa. Jesus Cristo e o homen negro morto desaparecem entre os fachos de luz. DIRCEU (OFF) Sebastiana não estava errada, o negro levava a sua cruz durante toda a vida, desde o dia em que nascia até a morte. Talvez, após a morte, esta cruz não provia mais de significado. Jesus a levou para o calvário, morreu nela, mas depois foi sepultado sem ela. Se a cruz é comum nos cemitérios dos brancos, tudo não passava de um mero símbolo cristão e, ela, 207 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior enquanto dada em vida aos negros servia de penitências celestiais. Deus sabia como compensá-los. Ao deparar com a morbidez e com o silêncio fúnebre de todos os meus amigos da fazenda, instituí uma lei cristã em minhas terras: a partir daquele dia, qualquer um que morresse teria direito a uma cruz. Todos nós, perante Deus, éramos cristãos e, sendo assim, todos éramos também, perante a fé, irmãos uns dos outros. A cruz nos sinalizaria um pacto, que, mesmo depois da morte continuaríamos ligados uns aos outros, espiritualmente. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 79.2 - EXT./INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Varanda. Farias sentado no tamborete olha para Dirceu. Ele tira o chapéu e agarra-o no peito. FARIAS Sinhozinho Dirceu é homem bom. É homem agraciado por Deus. SEQUÊNCIA 82 - EXT./INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Noite. Quarto de Dirceu. Cama. Dirceu sentado na cama. Ele tira as botinas e deita na cama ajeitando-se a cabeça no travesseiro. DIRCEU Cansado e abatido com a notícia da morte de Conceição, deixei todos na varanda conversando e tranquei-me no quarto para dormir. 208 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Noite de lua clara. Cemitério do pé da serra. Sepulturas. Sepultura de Conceição. DIRCEU (OFF) Conceição estava morta, enterrada numa sepultura igual a tantas outras, marcada por um monte de terra. VOLTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA (Flash back sobreposto EM VOICE OVER POR DIRCEU) SEQUÊNCIA 40 – EXT/INT. DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PORTA DA VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. Dirceu parado próximo à porta do empório fica a observar Marília. Ele, com um sorriso nos lábios, contempla Marília. Marília e Rosa na calçada do empório. Marília olha para Dirceu e, delicadamente, sorri. Ela disfarça o sorriso, levando as mãos aos lábios. Dirceu, estagnado, olha para Marília. Rosa puxa Marília pelas mãos e protege-a com o guarda-chuva cor de rosa. DIRCEU (VOICE OVER) Enquanto isso, eu, aqui no meu quarto, vivo, deitado no catre, pensando um modo de como aproximar da minha jovem e bela Marília. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 82 - CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Noite. Quarto de Dirceu. Cama. Dirceu deitado na cama com a cabeça no travesseiro e olhos arregalados em direção ao teto. Ele fala por solilóquio. 209 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Seria ela a menina prometida pelo pai ao tal rapaz italiano? Alguma coisa dizia para mim que não. Marília seria a minha Marília... ESCURIDÃO TOTAL SEQUÊNCIA 83 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. UMA VELHA OFICINA DE TRABALHO DA FAZENDA. Vista panorâmica da fazenda Ribeirão do Meio. Telhado de uma oficina de trabalho. A oficina é um salão aberto. Chão de terra batido. Prateleiras. Formas de queijos nas prateleiras. Mesa velha deitada sobre o chão. Ferramentas de trabalho espalhadas pelo chão. Martelo. Pregos. Cirilo martela um prego na perna da mesa velha. Teias de aranhas. Vassoura de palha desliza sobre a parede. Aranhas fogem e são alcançadas pela vassoura. Mãos de Hipólito na vassoura. Hipólito vasculha as paredes. Jirau feito de paus. Ambrósio coloca um pote com água debaixo do jirau. Gamela cheia de água no jirau. Inácia lava as formas de queijo usando buchas vegetais. Dirceu observa todos ali trabalhando. DIRCEU (VOICE OVER) Os dias passaram-se rápidos, porquanto eu preocupava apenas com os trabalhos da fazenda. Estávamos ampliando as oficinas de queijo, de farinha e de rapadura, no intuito de começarmos a fabricar farturas. A lavoura precisava de seriedade, de gente simples, capaz de volver a terra e extrair dela o alimento do corpo e da alma. Alguns homens, aos poucos, abandonavam as atividades da extração de minérios para apostarem na pecuária. Minas Gerais mudava, paulatinamente, a sua paisagem. 210 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 84 - INT. /EXT./DIA. CAPELA DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Capela. Cavaletes altos na frente da capela. Miliquito, Ambrósio e Cirilo estão em cima dos cavaletes pintando o frontifício da capela. Brochas nas mãos de Cirilo e Miliquito. Tinta marrom escorre na parede e eles espalham com as brochas. Interior da capela. Altar. Pote com água sobre o assoalho de madeira. Dirceu, Hipólito e Josias, abaixados, esfregam com cuidado o limo acumulado em alguns cantos do altar da capela. DIRCEU Nós vamos deixar esta capela aprumada. Ela é um grande bem que temos em nossa fazenda. Creio que há muito tempo não entra nela nenhum padre ou sacristão para rezar uma missa. Estou pensando cá, numa ideia... HIPÓLITO Nhozinho tá pensando em trazer um padre para cá? Um padre para rezar missas? AMBRÓSIO O povo fala de padre e sabe que eu nunca vi nenhum... Dissem que eles não podem nem casar... DIRCEU Até que podem casar, Ambrósio, a questão é que eles têm de deixar de ser padre... HIPÓLITO Então tem que trocar uma coisa por outra... AMBRÓSIO Então deve ter poucos padres por aí, por que mulher querendo casar tem um tanto... 211 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior HIPÓLITO Então como nhô Dirceu vai fazer para arrumar um para rezar missa aqui? A bucha vegetal cai das mãos de Josias. Ele pega a bucha, olha para Hipólito e sorri frouxamente. Dirceu esfrega uma pequena sujeira de um detalhe de um desenho do altar. DIRCEU Não, não vou trazer um padre para morar aqui e rezar missa, mas um padre que venha cá para abençoar o casamento seu, o de Cirilo e o de Miliquito com as moças do Rio das Mortes... Pena que o nosso amigo Ambrósio não viajou conosco para o Rio das Mortes, senão estaria casando também... AMBRÓSIO Carece preocupar não nhozinho o tempo mesmo dá conta de arrumar isso... HIPÓLITO (para de esfregar um pequeno detalhe de sujeira do altar e arregala os olhos para Dirceu) Mas padre vem até cá, para fazer casamentos de negros? Negros não vão em igrejas? DIRCEU Ora, Hipólito, se Maomé não vai á montanha, a montanha vai até Maomé. Deixa comigo, vou providenciar tudo. Eu conheço um padre em Vila Rica que não vai deixar de fazer a mim esse grande favor... JOSIAS Então nós vamos ter festa também... DIRCEU (solta uma gargalhada) 212 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior E das boas, com brincadeiras e comilanças... Se vós mercê, Josias, for atrás da Zenilda e trazê-la, a coisa vai ser melhor ainda... JOSIAS Prometo para sinhozinho, não. Meu coração tá amarrado, dizendo que ainda não é tempo de ir atrás da Zenilda, não... DIRCEU Vós mercê é quem sabe, assim que a capela ficar pronta vai haver casamento da rapaziada... JANELA LATERAL DA CAPELA, UM CASAL DE ANDORINHAS ESFREGAM-SE OS BICOS UM NO OUTRO. SEQUÊNCIA 85 – EXT./DIA. CAPELA DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. PÁTIO DA FAZENDA. Legenda: "Alguns dias depois..." Visão panorâmica da fazenda Ribeirão do Meio. Capela. Frontifício da capela, cor marrom. Cavaletes armados próximo ao frontifício da capela. Porta da capela, cor azul claro. Lateral da capela. Barrado das paredes laterais, cor preta. Balde no chão. Dirceu e Josias, com brochas nas mãos, acabam de terminarem a pintura do barrado da parede lateral da capela. Dirceu pega o balde de tinta, joga a brocha dentro do balde, recolhe também a brocha das mãos de Josias e joga-a no balde. Josias pega o balde das mãos de Dirceu. Josias e Dirceu vão até a porta da capela. Dirceu olha para dentro da capela. Visão interna da capela. Altar, retábulo e púpito restaurados. Porta da capela. Dirceu sorri aliviado. DIRCEU Pronto, a capela ficou aprumada. Agora eu posso ir à Vila Rica e buscar um padre para celebrar o casamento de Cirilo, Hipólito e Miliquito... (olha para Josias e prossegue) 213 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior E depois, quem sabe, o do amigo Josias, com a Zenilda... JOSIAS (olha para o frontispício da capela) Ainda estou esperando os sinais, sinho Dirceu... DIRCEU Espera pelos sinais e não corre atrás não, Josias. Com o passar do tempo as coisas podem tornar-se difíceis... JOSIAS (bate as mãos no peito) Meu coração vai dizer onde a minha neguinha está e eu vou diretinho nos rastros dela... DIRCEU Enquanto vós mercê, Josias, espera sinal do coração, estarei casando os outros... Lateral da capela. Miliquito, Ambrósio, Cirilo e Hipólito aparecem de repente pela lateral da capela. Eles seguem até a frente da capela, olham para os cavaletes armados e começam a desmontá-los. Porta da capela. Dirceu e Josias entram na capela. Porta lateral da capela aberta. Josias olha para a porta lateral da capela aberta e sai correndo. Josias para no adro da capela. Morro. Josias olha para o morro, cai de joelhos e solta um grito. JOSIAS ZENILLLLLLLLLLLLLLLLDAAAAAAAA!!! O eco do grito de Josias repercute o som para longe. Pátio da fazenda Ribeirão do Meio. Sebastiana, Eulina, Inácia e Quitéria largam seus afazeres e correm para o pátio da fazenda. Pátio da fazenda. Farias também aparece no pátio assustado com o grito de Josias. Sebastiana, Eulina, Inácia, Quitéria e Farias se encontram no pátio da fazenda e ficam procurando com os olhos de onde veio o grito. 214 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FARIAS É grito de homem raivoso que perdeu a mulher por algum motivo... SEBASTIANA (limpa as mãos no avental e olha para Farias com uma cara feia) Quá, nhô tem cada ideia esquisita... EULINA Homem gritando assim, por mulher, é coisa bonita de demais... QUITÉRIA E não é que é bonito mesmo? Só não dá nem pra saber se o doido que gritou estava chamando por uma mulher ou se arremedando algum bicho... SEBASTIANA (sai para a direção da varanda da casa) Deus e Jesus que leve esse doido para bem longe... Eu vou é cuidar das minhas obrigações... CORTA PARA Dirceu, Cirilo, Hipólito e Miliquito estão próximos a Josias. Chão. Josias está caído de joelhos no chão com a cabeça baixa. Ele levanta do chão um pouco envergonhado. JOSIAS É o coração, o que fazer, se ele pede isso? Todos dão risadas. Frontifício da capela. Cavaletes armados. Dirceu, Cirilo, Hipólito, Miliquito e Josias desarmam os cavaletes. DIRCEU (VOICE OVER) 215 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Com o restante do dia, ao ajudar os rapazes a desarmar os cavaletes, eu inseri algumas brincadeiras em um jogo de conversas entre Cirilo, Hipólito e Miliquito e acabei obtendo um resultado surpreendente. Aos poucos, eles revelaram para mim que nenhum deles casaria com a moça escolhida no dia das compras; ou seja, Hipólito casaria com a moça escolhida por Cirilo; Cirilo, com a moça escolhida por Miliquito e Miliquito com a moça escolhida por Hipólito. Pensei na liberdade do coração de cada um deles. Conclui, pois, que ninguém mandava no coração de ninguém. SEQUÊNCIA 86 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FUNDO DO QUINTAL DO CASARÃO. Fundo do quintal do casarão da fazenda Ribeirão do Meio. Buraco com barro e capim. Dirceu e Josias estão dentro do buraco com barro e capim. Dirceu e Josias sapateiam no barro, massando-o para a fabricação de adobes. Formas de adobe. Miliquito, Ambrósio e Hipólito, com as formas de adobe, fabricando adobes. Mãos no barro; barro nas formas; adobes prontos. Cirilo carregando adobes e colocando-os em filas sob o sol. DIRCEU (VOICE OVER) Tempos depois resolvemos melhorar a velha senzala, transformando-a em pequenas casas para servirem de moradia aos novos casais da fazenda. Investimos em alguns dias na fabricação do adobe. SEQUÊNCIA 87 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FUNDO DO QUINTAL DA FAZENDA. Buraco com terra vermelha. Dirceu, Ambrósio e Josias, sujos de barro vermelho. Dirceu e Josias estão dentro do buraco, sapateando no barro. 216 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Miliquito e Hipólito fabricando telhas utilizando as coxas deles como formas. Cirilo carrega as telhas e coloca-as em filas, sob o sol DIRCEU (VOICE OVER) Depois fabricamos telhas, quais formas ficaram nas medidas das coxas de Hipólito e Miliquito... SEQUÊNCIA 88 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL LATERAL DA FAZENDA. Manhã. Quintal lateral da fazenda. Construção das três casas geminadas. Duas casas estão prontas, a terceira casa está recebendo as últimas telhas do beiral. Josias e Hipólito estão no esteio da casa recebendo as telhas e arrumando-as. Miliquito, em cima dos degraus de uma escada feita de varas amarradas recebe as telhas das mãos de Cirilo. Ambrósio e Dirceu carregam as telhas até onde está Cirilo. Visão panorâmica dos telhados das três pequenas casas. Beiral pronto. Tarde. Visão panorâmica da fazenda Ribeirão do Meio. As três casas prontas. As janelas frontais das três casas se abrem. Aparecem nas janelas das casas os casais Cirilo e Inácia; Hipólito e Quitéria; Miliquito e Eulina. Cirilo, Hipólito e Miliquito tiram os chapéus e cumprimentam uns aos outros. Tronco de árvore. Josias, Ambrósio, Dirceu e Farias, encostados em um velho tronco de uma árvore, tiram os chapéus e também cumprimentam Cirilo, Hipólito, Miliquito e suas respectivas mulheres. DIRCEU (VOICE OVER) A velha senzala, em poucas semanas transformou-se em três pequenas casas de futuras famílias. Casas pequenas, com quarto, sala e cozinha. Dessa forma, as famílias de Cirilo, Hipólito e Miliquito viveriam dignamente na fazenda trabalhando e criando os seus filhos livremente. SEQUÊNCIA 89 – INT./EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. CASA DO CORONEL. 217 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Vila Rica. Ruas de Vila Rica. Dirceu anda a pé pelas ruas de Vila Rica até alcançar um bonito casarão azul. Portão do casarão azul. Ele dirige-se até o enorme portão e espia a varanda do casarão azul. A varanda do casarão azul é grande, nela há plantas, viveiros com araras e pássaros coloridos. Na varanda do casarão azul há um HOMEM NEGRO FORTE E BEIÇUDO, muito bem vestido, sentado em um tamborete, três redes, onde há DOIS HOMENS BRANCOS, estrangeiros, deitados nelas. Enormes leques de penas coloridas conduzidos por DUAS MOÇAS NEGRAS, altas e esbeltas, rostos bem feitos, vestidas em roupas de seda. Porta do casarão. Dirceu bate na porta do casarão azul. O Homem negro forte e beiçudo levanta-se do tamborete e segue até o portão e abre-o. O Homem negro forte e beiçudo faz Dirceu entrar na varanda da casa. Dirceu atravessa a varanda seguindo o homem negro forte e beiçudo. Porta do casarão. O Homem negro forte e beiçudo abre a porta do casarão e dá sinal para que Dirceu entre. Sala do casarão. Dirceu tira o chapéu da cabeça e prende-o entre as mãos. Enorme sala, cheia de aparatos ricos. Os olhos de Dirceu passeiam sobre a sala. Relógio de parede, vários canapés e cadeiras de braços espalhados pela grande sala. Enorme espelho de cristal emoldurado e um cabide de chapéus. Porta lateral da sala do casarão azul. A porta lateral da sala do casarão se abre. Aparece o CORONEL, um senhor de sessenta anos; ele é claro, olhos pretos, gordo, baixo e barbudo, vestido com uma bombacha, embora não tenha a aparência de espanhol. Dirceu, ao vê-lo entrar na sala, dirige-se até o cabide emoldurado pelo espelho de cristal e deposita o seu chapéu. O Coronel fita Dirceu com os olhos, reparando o pequeno alforje, a que ele traz pendurado nas costas. CORONEL Bom dia, prezado senhor, espero que tenha trazido algo interessante neste pequeno alforje.. DIRCEU Trago sim, coronel, creio que o senhor há de saber avaliar e me dar um bom preço pela peça... 218 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORONEL Está ficando esperto igual ao pai... DIRCEU Tenho que ficar esperto coronel, não moro mais com o senhor meu pai e... CORONEL O senhor seu pai esteve cá antes de partir com a Maria Antônia. Eles dormiram duas noites cá, nós fizemos bons negócios e depois ele e a Maria Antônia partiram com uma caravana lá para São Sebastião do Rio de Janeiro... DIRCEU Fico aliviado em saber disso, coronel. CORONEL Como sabe, meu tempo é curto e tenho que fazer negócios rápidos para não chamar atenção dos amigos ocultos do rei e inimigos nossos. O que traz, é ouro ou prata... Poltronas. O Coronel aproxima-se de uma das poltronas e senta-se. O coronel acena as mãos para que Dirceu se sente ao lado dele. Poltrona. Dirceu senta-se na poltrona, ao lado do Coronel. DIRCEU Trago, cá, para negociar com vossa senhoria, coronel, alguns quilates de ouro e um rico diamante. Creio que o senhor há de dar a mim, por eles, um bom valor... Alforje aberto. Dirceu enfia uma das mãos no alforje e tira uma pedra de diamante, qual coloração é branca-azulada. O Coronel arregala os olhos para a pedra de diamante. 219 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORONEL Vossemecê ta com sorte, mocinho! Hoje estou valorizando tudo o que aparece em minha porta. Deixe-me ver esta pedra de pertinho, junto aos meus olhos. Dirceu entrega o diamante para o Coronel. O Coronel tira do bolso do casaco uma lupa e examina o diamante, levando-o para perto dos olhos. CORONEL Vou ficar com o diamante. Tenho cá um gringo que vai se interessar por ele. Sei que vossemecê confia em minha pessoa e sabe que não vai se dá mal. DIRCEU Tenho cá, também, algumas pepitas de ouro, se o senhor quiser avaliá-las... CORONEL Um instante, por favor, meu apressado jovem. Vamos resolver primeiro a compra do diamante, depois as pepitas de ouro. Cá, não misturo os negócios. O Coronel levanta-se da poltrona. Porta lateral da sala. O Coronel dá alguns passos até a porta e bate palmas. O homem negro e beiçudo aparece na porta lateral da sala do casarão. Poltrona. O Coronel volta a sentar-se na poltrona e olha para o homem negro forte e beiçudo. CORONEL Vá lá e chame o gringo, traga-o cá, fale pra ele que é urgente. Porta lateral da sala. O Homem negro forte e beiçudo desaparece para dentro da casa. O Coronel olha para Dirceu e fala baixinho, quase sussurrando. 220 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORONEL Vou apresentar esta pedra para um inglês, ele é lá da GrãBretanha e disse que não quer ir embora com as mãos vazias. Ele disse que anda por cá estudando a região, até mostrou para mim alguns mapas desenhados por ele. Eu lá entendo dessas histórias riscadas em papéis. Há alguns dias ele se apossou da minha casa, gostou das minhas criadas e foi ficando por cá... Porta lateral da sala. Entra um, GRINGO, de 28 anos, magro, barba ruiva,olhos e pele claros. O gringo aproxima-se rapidamente do Coronel. CORONEL Seu dia hoje está sendo de sorte. Olha só o que apareceu cá... O Coronel mostra a pedra de diamante ao gringo. O gringo aproxima-se do Coronel e sorri entusiasmado. CORONEL Coisa rara, essa pedra tem valor... Poltrona. O gringo senta-se na poltrona perto de Dirceu e do Coronel. O Coronel entrega o diamante ao gringo. O gringo pega o diamante e fica olhando para ele extasiado. GRINGO This stone is very beautiful! I want to take this valuable stone...It is a diamond's true! CORONEL (olha para Dirceu e sorri) Acho que o gringo se entusiasmou com a pedra... O gringo olha para Dirceu e para o coronel. O Coronel entrega a lupa para o gringo. O gringo observa o diamante através da lupa. 221 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior GRINGO How much is this diamond? I'm interested and want to buy it... CORONEL (olha para Dirceu e pisca um dos olhos) Ele fala também a nossa língua, isso é porque ele está muito entusiasmado. Isso é comum aos gringos, quando fazem negócio por cá. Diamante nas mãos do gringo. O gringo entrega o diamante ao Coronel e põe-se de pé. Bolso da calça do gringo. O gringo enfia a mão no bolso e retira um maço de dinheiros. O gringo conta algumas notas, separa-as e as entrega ao coronel. O Coronel recebe o maço de dinheiros e beijao. O Coronel põe-se de pé e enfia o maço de dinheiros no bolso. Ele senta-se novamente na poltrona. Porta lateral da sala. O gringo vai até a porta e desaparece para dentro do casarão. O Coronel coloca-se as mãos no queixo, sorri e olha para Dirceu. CORONEL Eu somente faço este tipo de comércio para evitar que o rei de Portugal leve toda a nossa riqueza para lá... Esta riqueza é extraída do nosso solo, do nosso amado solo. Essas pedrinhas preciosas, que encontramos, cá, servem também de lembrancinha aos aventureiros que por cá passam. Vamos agora aos nossos acertos... SEQUÊNCIA 90 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA Ruas de Vila Rica. Movimentos urbanos. Dirceu anda a pé pelas ruas de Vila Rica. Dirceu está um pouco distraído, como se procurando alguém. Comércios. Pessoas entrando e saindo das lojas. Casas. Portas das casas. Casas. Janelas das casas. Moças brancas, em uma janela e outra, mexendo-se com os rapazes brancos que passam nas ruas de Vila Rica 222 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior montados em seus cavalos. Dirceu observa atentamente as moças brancas em uma janela e outra. Ele fala por falando por solilóquio. DIRCEU Meu Deus, aonde dona Marília andaria naquele momento? Vejo pessoas trabalhando, comprando, passeando, acenando os compatrícios pelas janelas e até moças castas nas janelas a bulirem com os jovens que passam por elas em seus cavalos rabões. Qual, entre aquelas casas, seria a casa de dona Marília? PADRE ROCHA, de aproximadamente 70 anos de idade, vestido a uma batina preta, anda lentamente por uma das ruas estreitas do centro de Vila Rica. Dirceu vê o padre Rocha e se dirige ao encontro dele. Dirceu anda prosseguindo o seu solilóquio DIRCEU Ué, não é que aquele é o padre Rocha? Justamente o padre a quem eu gostaria de conversar sobre o casamento dos rapazes com as moças da fazenda na minha capela. Rua estreita. Dirceu para entre o cruzamento de uma rua e outra e espera o padre Rocha, qual está vindo casualmente em sua em sua direção. O padre Rocha aproxima-se de Dirceu. Dirceu cumprimenta o padre Rocha, pedindo-lhe a bênção. O padre Rocha abençoa Dirceu fazendo com as mãos o sinal da cruz. DIRCEU Foi muito bom encontrá-lo cá, padre Rocha. Vossa reverendíssima pode atender-me mais tarde em sua paróquia? PADRE ROCHA Ora, meu filho, se vós mercê não estiver pressa, siga-me. Vou visitar um amigo que está a partir de Vila Rica daqui a poucos dias com a família. 223 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Então deixaremos a conversa para mais tarde na paróquia, padre Rocha... PADRE ROCHA Não, não, vós mercê vem comigo. A visita é breve. Enquanto andamos, poderá falar-me sobre o assunto que tem a tratar comigo... Não deve ser de confessionário, é? DIRCEU Não, é que... Dirceu e o padre Rocha andam pelas ruas de Vila Rica, conversando. DIRCEU (VOICE OVER) Contei ao padre Rocha sobre a minha fazenda, o modo como eu vivia com a minha gente, o meu repúdio à escravidão e o modo como eu gostaria de agir com os meus ajudantes. Ele sorriu e achou interessante o meu modo de pensar. Dirceu e o padre Rocha conversando e andando pelas ruas de Vila Rica. Padre Rocha dá uma paradinha e responde. PADRE ROCHA O mundo novo está por vir e todos os homens haverão de prestar a Deus contas sobre todas as coisas más e boas que fizeram na terra. DIRCEU Padre, há alguma possibilidade de a Santa Igreja Católica aprovar o casamento entre casais negros? PADRE ROCHA (para, enverga o corpo e olha assustado para Dirceu) Vossa senhoria já foi em alguma igreja assistir a um casamento de crioulos? 224 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não, padre Rocha. É justamente por isso que estou a perguntá-lo... PADRE ROCHA A igreja não faz. Isso não se trata de nada de mais. Como sabemos, os africanos e seus descendentes não têm religião. Eles acreditam em crenças pagãs, fundamentadas em magias, o que contraria os princípios da Igreja e da Santa Escritura, conforme nos foram confiadas por Deus. DIRCEU E se eu disser ao santo padre que os crioulos da minha fazenda são cristãos e que eu quero dar a eles os direitos nunca negados por Deus. Ruas. Casas. Calçadas altas. O padre Rocha levanta a batina para subir um degrau de uma das calçadas altas. PADRE ROCHA Como assim? Calçada alta. Casas. Dirceu e o padre Rocha andam pela longa calçada, conversando. Dirceu e o padre Rocha vez em quando dão uma paradinha e um vira-se de frente ao outro, depois continuam andando. DIRCEU (VOICE OVER) Contei a ele da melhor forma possível como eu sonhava em construir um mundo melhor, capaz de não haver injustiça ou qualquer diferença entre raças, classes sociais, religiões ou credos. Um mundo feliz, capaz de cada um ter o direito à sua liberdade. Contei a ele sobre a compra das moças em Rio das Mortes, o meu procedimento perante a compra e, finalmente, a possibilidade de casá-las com os rapazes na capela da fazenda, demonstrando-lhe o meu repúdio ao concubinato. 225 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Casa de dom Manuel. Porta da casa de Dom Manuel. Padre Rocha para defronte a porta da casa de dom Manuel. O padre Rocha bate na porta da casa. Na porta aparece Vívila, uma negra jovem, alta, muito bem vestida e de olhar tranquilo. Ela tem aproximadamente 25 anos de idade. PADRE ROCHA Dom Manuel se encontra em casa? PADRE ROCHA (olha para Dirceu e comenta rapidamente, com a voz baixa) Prometi e cá estou para despedir-me de dom Manuel e de sua filha, a dona Marília. DIRCEU (cora as faces e sente o coração palpitar. Imóvel, olha para o padre Rocha e para Vívila surpreso. Fala por solilóquio) Dona Marília? Eu estava na porta da casa de dona Marília, a quem eu tanto desejava conhecer? Seria a dona Marília, a quem eu procurava há tempos? VÍVILA FAZ O PADRE ROCHA E DIRCEU ENTRAREM NA CASA. SEQUÊNCIA 91 – INT./DIA. VILA RICA. CASA DE DOM MANUEL. SALA DE VISITA. Enorme sala de visitas. Mobílias bem variadas, ao gosto do final do século XVIII. Dirceu e o padre Rocha tiram os chapéus e os entregam à Vívila. Cabide de chapéus ao canto da sala. Vívila dirige-se até o cabide, coloca os chapéus do padre Rocha e de Dirceu, nele. Vívila retira-se da sala. Poltronas. Em das poltronas está DOM MANUEL, um senhor branco, olhos castanhos, gordo, forte e cabeça um pouco calva, de 52 anos, sentado dom Manuel está lendo um folheto sobre notícias de Portugal e ao ver o padre Rocha e Dirceu, a quem ele não conhece, ele 226 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior larga o folheto na poltrona, levanta-se e os cumprimenta. Poltronas. Padre Rocha e Dirceu, acompanhados por dom Manuel, sentam-se nas poltronas. DIRCEU (VOICE OVER) O destino, por intermédio daquele santo padre, levava-me em carne, osso e espírito, à casa da jovem e doce Marília. O meu coração bateu forte. Mantive firme para que nada ali desse errado.O padre Rocha apresentou-me ao pai de Marília, dizendo a ele que eu não passava de um jovem louco, de ideias loucas a incomodá-lo. O padre, por não ter tatos na língua contou para Dom Manuel a minha ventura de querer casar pretos sob o teto da Santa Igreja Católica. Dom Manuel riu e, como se não quisesse levar o assunto adiante, respondeu secamente. CORTA PARA DOM MANUEL Vimos pessoas grandes a perder a vida e outros a serem degredados da colônia por pensar em libertar o Brasil de Portugal... Agora estou prestes a ver um jovem a ser excomungado pelo Santíssimo Papa, entregando a pele ao Santo Ofício para ser queimada na grande fogueira apocalíptica. Tudo isso porque está inventando cerimônia de casamento entre casais negros perante a Santa Igreja Católica e Apostólica. Deixa isso de lado, meu caro jovem, invista o seu tempo em fazer fortuna à custa desses pobres desgraçados. Na semana passada eu fui até Rio das Mortes, comprei gados zebu e holandês e ovelhas, além de negros, dos bons. Mandei tudo para as minhas terras e, se Deus quiser, não demorarei a morar nela com a minha família. O meu paço está por terminar, apenas espero por alguns pequenos reparos num canto e outro. As minhas terras, por enquanto, estão sob o comando de dois bons vaqueiros, do Zé da Viúva e do Raimundo Sobreiro. Eles verificaram as terras, afirmaram para 227 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior mim que elas são férteis, boas para a criação de gado leiteiro e de corte e também de farta plantação. Quanto aos negros, espero deles trabalho, muito trabalho. Caso contrário, eles sentirão as chicotadas DIRCEU (dá uma risadinha e fala por solilóquio) Não é que a madrinha de Marília morava em Mariana? E eu, naquela tarde ensolarada, juntamente com Cirilo, fiquei galopando feito um bobo por todas as vielas de Vila Rica! Mariana, era nessa vila em que morava a madrinha de Marília, a costureira chamada Berta. PADRE ROCHA E a casa? Irá vender esta casa? DOM MANUEL Esta casa, padre Rocha, não pertence a mim. É de um irmão da minha falecida esposa que abandonou Portugal e morou aqui por alguns anos. Ele não suportou a vida da colônia e, tempos depois, após fazer bons negócios por cá, resolveu se aventurar na Itália. Lá, ele se fez sócio de um velho italiano e passou a trabalhar no cultivo da videira. Ele pretende vir ao Brasil até o próximo ano. É com ele que o gajo, prometido à Marília, virá. Hei de casá-la com o italiano e isso não há de demorar muito. Dirceu arregala os olhos para dom Manuel e abaixa a cabeça tristemente. PADRE ROCHA Deus permita que não, assim com a Amarílis casou com o moço de São Sebastião do Rio de Janeiro, Marília também há de casar-se com o italiano. Deus é quem toma as providências. 228 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DOM MANUEL Numa das últimas cartas que ele enviou a mim, padre Rocha, ainda este ano, dizia que o gajo gostaria de apostar em videira no Brasil. Pedi a ele que respondesse ao gajo, futuro esposo de Marília, que estamos bebendo e nos embriagando de vinho bom, do Porto. Deixei-o decidir se vem para cá apostar nesse ramo ou não. Se for para produzir bons vinhos, que venha, senão, que fique por lá. Sala da casa de Dom Manuel. Poltronas. Dom Manuel, padre Rocha e Dirceu conversando, sentados nas poltronas. DIRCEU (VOICE OVER) O padre Rocha riu do desfecho de Dom Manuel. Eu, portanto, fiquei imensamente chocado e arrasado por dentro, quando ouvi dom Manuel falando da sentença reservada à Marília. Ela casaria com um gajo italiano e moraria na Itália. Isso não era justo, Marília pertencia a mim, filho de um camponês, oriundo daquela santa e abençoada região. As minhas mãos gelaram e os meus olhos não sabiam para onde olhar. As minhas pernas adormeceram, não sei se por nervosismo ou pela minha má posição na poltrona. Padre Rocha dá um sinal com os olhos para Dirceu e em seguida levanta-se da poltrona. Dirceu faz o mesmo. PADRE ROCHA Creio ter tomado o tempo de vós mercê. Tenho assuntos a tratar na paróquia e, como o amigo não tão já, deixará Vila Rica, volto em outra ocasião para prosearmos... DOM MANUEL É sempre esperada a vinda de vossa reverendíssima nesta casa, padre Rocha. Quando eu mudar definitivamente para as minhas terras, comunicá-lo-ei. 229 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PADRE ROCHA (afirma "sim" com a cabeça e olha para a porta) E quando a dona Marília estiver pronta para casar com o gajo italiano quem sabe eu não serei o felizardo, realizador da cerimônia. DOM MANUEL Coisa que ainda não se resolve padre Rocha. Mas um dia a minha filha subirá no santo altar da madre igreja para casar-se com o prometido! Dirceu olha para o padre Rocha e morde os lábios. Vívila aparece na sala com os chapéus do padre Rocha e de Dirceu e entrega-os aos respectivos donos. Padre Rocha e Dirceu saem da casa de dom Manuel. SEQUÊNCIA 92 – INT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. Padre Rocha e Dirceu andam pelas ruas de Vila Rica. DIRCEU (OFF) Saímos daquela casa a respirar o ar puro da manhã pelas ruas de Vila Rica. Após andar alguns metros em silêncio, o padre olhou para mim, sorriu e, observando algo, apertou-me o ombro direito com as mãos perguntando-me onde ficava a minha fazenda. PADRE ROCHA Vós mercê aparece-me com a ideia maluca de casamento entre escravos, na igreja católica, apostólica e romana e, por mal que eu lhe pergunte, onde fica mesmo a sua fazenda? DIRCEU A minha fazenda, padre Rocha, antigamente era conhecida como Ribeirão do Meio, mas, após pertencer a vários proprietários, acabou ganhando outros nomes e perdendo 230 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior com o tempo a sua verdadeira identidade. A fazenda, inicialmente, pertenceu à família do senhor meu pai e, foi justamente por isso, que ele, comprou-a novamente para mim. PADRE ROCHA Eu creio que conheço essa fazenda, algo me faz lembrar dela, mas não sei o quê... DIRCEU Ora, padre Rocha, creio que vossa reverendíssima deva recordar-se de alguma capela construída pelas missões catequéticas dos jesuítas. Eles construíram uma nas terras da fazenda Ribeirão do Meio. PADRE ROCHA A capela? Por acaso esta capela não foi uma vez invadida pelos índios botocudos? DIRCEU Sim, padre Rocha, ouvi contar essa história, mas depois disso, a capela continuou firme... PADRE ROCHA Então a capela ainda existe? DIRCEU Sim, padre Rocha, por que? A capela não haveria de existir mais? PADRE ROCHA A capela parecia frágil, incapaz de suportar as ações dos tempos. Eu a conheci, desde 1752, quando eu fazia parte das missões catequéticas, iniciadas pelos jesuítas em 1549. Essas missões tinham como objetivo em catequizar os índios, introduzindo a eles o ensino das artes e ofícios necessários à vida cotidiana. O surgimento da capela na fazenda Ribeirão do 231 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Meio, apesar de ter sido construída pelos padres da ordem de emergência, conhecida como "ordem de Loyola”, que se estendia pelo interior do Brasil, algo nela tornou-se misterioso com o passar dos tempos, a ponto de ser abandonada pelos dogmas da Santa Igreja católica, apostólica e romana. DIRCEU (arregala os olhos para o padre Rocha) Algo na capela tornou-se um mistério? Qual mistério, Padre Rocha? PADRE ROCHA Ninguém nunca soube desse mistério e, como apenas era uma hipótese, acabou que todo mundo esqueceu dele. Um dos donos da fazenda, conhecido como Zé Antônio, tentou reanimar a capela, fazendo festas santas de devoções, reunindo os fiéis da região. Eu, por exemplo, fui convidado a celebrar algumas missas lá, naquela época. Eu era mais jovem e bem mais disposto do que hoje. DIRCEU O Zé Antônio, qual o senhor mencionou, é o senhor meu pai, padre Rocha. PADRE ROCHA Eu já havia percebido isso, pois vós mercê é igual ao senhor vosso pai, quando coloca uma ideia na cabeça, não há cristão que tire... DIRCEU Desculpe-me, Padre Rocha, é que... PADRE ROCHA Vamos deixar de muita conversa e marcar logo a cerimônia de casamento de seus escra... quer dizer, dos seus empregados. Se na sua fazenda há uma capela, nada impede de eu ir até lá. 232 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Prometa-me uma coisa, fará dos criou... quer dizer, dos seus empregados, bons cristãos. Saiba, portanto, que não posso constar dos livros da igreja nenhum registro dessas cerimônias. DIRCEU Isso não tem problema, padre Rocha. O importante é o livro de Deus, que nele esteja constado no céu, tendo todos os anjos como testemunhas... PADRE ROCHA É, isso é verdade, pois a santa escritura nos diz que tudo o que o homem liga na terra, será também ligado no céu. Está escrito em Gêneses que "o que Deus uniu o homem não separa”. DIRCEU Isso mesmo, padre Rocha. Então se vossa reverendíssima concordou em realizar as cerimônias de casamento, providenciarei a data, a viagem e a estadia do vosso reverendo em minha fazenda... O padre Rocha diz "sim" com a cabeça. UM GRUPO DE PESSOAS BRANCAS vem ao encontro do padre Rocha. Dirceu despede-se do Padre Rocha próximo à igreja de São Francisco de Assis. SEQUÊNCIA 93 - EXT./DIA. VILA RICA. ESTRADA Praça "amarra cavalos". Cirilo está sentado em uma pedra na praça amarra cavalos. Dirceu encontra-se com Cirilo na praça e comenta todo feliz sobre o acerto que fez com o padre Rocha. DIRCEU O padre Rocha vai à fazenda rezar o casamento de vós mercê e dos outros, Cirilo. 233 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Serra do Ita-corumi. Dirceu e Cirilo sobem a serra do Ita-corumi. Os dois cavalgam lado a lado. DIRCEU A madrinha de dona Marília não mora em Vila Rica, não Cirilo. Fiquei sabendo que ela mora em outra vila, lá em Mariana. Dona Marília, a quem tanto quero vê-la, está ainda lá, na casa da "dindinha" dela... .CIRILO (mede a serra com os olhos) Ué, se é em Mariana, basta dar outra volta pela serra e nhozinho chega lá... DIRCEU Eu conheço Mariana, mas eu não sabia que esta serra também dá acesso até ela... (olha para Cirilo meio apreensivo e frea a rédea do cavalo) A viagem é muito demorada até lá, Cirilo? CIRILO Não. Se chicotar o cavalo chega lá mais rápido que o vento... DIRCEU (solta uma gostosa gargalhada e espora o cavalo) Não tenho nenhum compromisso hoje com a fazenda. Vós mercê toca a viagem, vamos estar em Mariana. CIRILO (também espora o cavalo) Se é assim, nhozinho, segure firme a rédea do cavalo e vamos para lá... CIRILO E DIRCEU CAVALGAM A SERRA ITA-CORUMI EM DIREÇÃO À MARIANA. 234 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 94 – EXT./DIA. VILA MARIANA. Dirceu e Cirilo chegam em Mariana galopando em seus cavalos. Movimento urbano. Dirceu e Cirilo chamam a atenção de algumas pessoas que estão pelas ruas. Comércio. Dirceu aproxima-se de um armarinho em busca de informações. O DONO DO ARMARINHO chama por um mulatinho. O mulatinho monta em um burro e leva Dirceu e Cirilo até a casa da costureira Berta. Porta da casa da costureira Berta. Dirceu tira um patacão do bolso e entrega ao mulatinho. O mulatinho sai dali, montado no burro. Porta da casa da costureira Berta. Dirceu pula-se do cavalo, entrega as rédeas para Cirilo e aproxima-se da porta da casa da costureira Berta. Armarinho em frente a casa da costureira Berta. LAURA, uma moça branca, loira e bonita, de 17 anos se encontra na porta do armarinho, tocando em algumas toalhas e colchas de renda. Laura observa Dirceu tentando chamar por alguém na porta da casa da costureira Berta. Dirceu mostra-se desajeitado. Dirceu coça as pernas, tenta novamente chamar por alguém, mas acaba desistindo. Laura olha apara Dirceu, dá um passo para frente para tentar ajudá-lo, mas Dirceu aproxima-se de Cirilo e monta em seu cavalo.Cavalos de Cirilo e Dirceu. Pequena mercearia, em frente a casa da costureira Berta. Dirceu e Cirilo pulam-se de seus cavalos. Poste. Cirilo amarra o cavalo dele e o de Dirceu no poste. Mercearia. Dirceu e Cirilo entram na mercearia. Balcão. HOMEM MORENO atende Dirceu e Cirilo, no balcão. Petiscos em cima do balcão. Dirceu e Cirilo servem-se dos petiscos. Olhos de Dirceu vigiando a casa da costureira Berta. ALGUMAS MULHERES BRANCAS, elegantes, entram e saem da casa da costureira Berta. DIRCEU (VOICE OVER) O meu coração palpitou forte. Mal entramos em Mariana e logo procurei informações sobre a casa da costureira Berta. Obtive as informações desejadas por intermédio de um bondoso senhor que, não só nos prestou as informações, como também ordenou a um mulatinho que montasse num burrico e nos levasse à casa da madrinha de Marília. Ao chegarmos à porta da casa da costureira, tirei um patacão do 235 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior bolso e lancei-o ao mulatinho. Alegre, aproximei-me da porta da casa e, não sei por que, senti uma sensação estranha a correr pelo meu corpo. Creio que a sensação partia de um simples pressuposto: eu não conhecia Marília, a irmã dela e nem tampouco a madrinha. Cocei as pernas, nervoso, ameacei uma, duas ou três vezes gritar por alguém na porta e não tive coragem. Montei e convidei Cirilo a ir comigo para uma pequena mercearia em frente da casa. Lá, pedimos a um moço que nos servisse deliciosos petiscos. Enquanto eu comia, os meus olhos, esperançosos, vigiavam a porta da casa para ver se Marília saía dali para ver a rua ou ir a algum lugar. Num entrementes, mulheres chegavam à porta da casa de dona Berta, chamavam-na e, ao serem atendidas, enfiavam para dentro da casa. CORTA PARA Rua da casa de dona Berta. Cavalos. Dirceu e Cirilo cavalgando na rua da casa de dona Berta. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Se Marília saísse à porta para atendê-las, isso bastaria para deixar-me contente, mas ela, infelizmente, não saía de lá. Armarinho. Laura ainda se encontra na porta do armarinho, tocando nas toalhas e colchas de renda. Cirilo vê Laura e, entusiasmado, aproxima-se de Dirceu e comenta. CIRILO Nhozinho, por acaso, não tá procurando aquela moça bonita, lá na porta da mercearia? Não é ela a dona Marília? Reparei bem e vi que a moça de vez em quando olha para o nhozinho... Laura está de costas. Dirceu olha para Laura. 236 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Será aquela moça, a minha Marília? Dirceu sorri e, de mansinho, aproxima-se de Laura. Porta do armarinho. Laura continua de costas, distraída, observando as peças de renda. Dirceu frea o cavalo em frente ao armarinho. Laura assusta-se e olha para Dirceu. Dirceu olha surpreso para Laura e abaixa a cabeça, sem graça. Ele tenta sair de perto de Laura. DIRCEU Desculpe, é que eu pensei que a sinhazinha fosse... LAURA (olha para Dirceu e responde imobilizada) O moço está necessitando de informações? DIRCEU (diz "sim" com a cabeça) Não sei se devo... LAURA Então é só falar. Quem sabe eu ou outro por cá, possamos ajudá-lo... DIRCEU Meu nome é Dirceu, venho lá das bandas de Vila Rica. A sinhazinha, por acaso, conhece a afilhada da senhora Berta, a dona Marília? LAURA Meu nome é Laura, sou filha da senhora Berta, a costureira, madrinha de Marília. Vós mercê está querendo ver a dona Marília? 237 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Sim, dona Laura, venho de longe, porque criei coragem e preciso de falar com a dona Marília... LAURA Se vós mercê pretende namorá-la, saiba, por conseguinte, que ela já tem nos olhos e sente no coração o verdadeiro amor do rapaz com quem irá se casar... DIRCEU Acho que disso todo mundo sabe. O italiano, não é? O comprometido que nem o pai de dona Marília conhece. LAURA Creio que de quem estou falando não é do tal rapaz italiano, estou falando de outro, qual dona Marília o conheceu na venda de um português em Vila Rica. Ela nem o nome dele sabe, apenas apaixonou-se e pronto!. DIRCEU Tem como chamá-la, por favor, cá fora, para que eu possa pelo menos vê-la. Diga para ela que é o rapaz que ela viu na venda do Zé Tomázio, do português, em Vila Rica. LAURA Então, vós mercê mora em Vila Rica? DIRCEU Precisamente em uma fazenda pra lá de Vila Rica... Dirceu tira o chapéu, coça a testa e pula-se do cavalo. Dirceu chama por Cirilo através de um sinal. Cirilo aproxima-se de Dirceu e pega o cavalo. Cirilo afasta-se carregando o cavalo de Dirceu. 238 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior LAURA Vens então de longe, em gajo? O que o coração não faz com a gente. Se veio para vê-la, posso ajudar vós mercê. Chamarei por ela na casa da senhora minha mãe... Dirceu sinaliza um "sim", com a cabeça, um pouco acanhado. Laura ajeita as colchas e as toalhas de renda na enorme mesa. Calçada. Laura pula da calçada, atravessa a rua e alcança a porta da casa da costureira Berta. Cirilo segura os dois cavalos pelas rédeas. Dirceu dá um sinal para que Cirilo amarre os cavalos em um poste próximo a uma pequena praça. Marília aparece na porta da casa com Laura. Marília e Laura olham para Dirceu e cochicham. Calçada do pequeno armarinho. Dirceu fica imóvel, do outro lado, na calçada do pequeno armarinho. Ele observa Laura cochichando para Marília. LAURA É aquele rapaz, o nome dele é Dirceu e disse ter vindo de longe para vê-la. Ele diz ser o mesmo gajo, qual me contaste ter visto na venda do português. MARÍLIA Que atrevimento! Eu não o conheço. Eu apenas o vi uma vez... LAURA Não o conhece? E daí? Agora chegou a vez de conhecê-lo. Esse está bem próximo do que o italianinho arranjado por seu tio e pelo seu pai. MARILIA Deve ser algum louco de Vila Rica ou de alguma terra desta região... LAURA Que é louco, isso sim, mas pela sinhazinha... 239 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Isso lá são modos, Laura... LAURA Ora, Marília, vamos até o gajo. Vamos satisfazer as nossas curiosidades... MARÍLIA Se há alguém curioso aqui, este alguém... LAURA Este alguém sou eu, não é? Sou e estou mesma curiosa, venha, venha! Laura pega a mão de Marília e a arrasta para o outro lado da rua. Laura e Marília aproximam-se de Dirceu. Dirceu fica feito um bobo olhando para Marília. DIRCEU (VOICE OVER) Quando Marília aproximou-se de mim, quase não pude respirar. O meu coração bateu forte, os meus lábios tremeram e as minhas pernas bambearam de emoção. Eu estava vendo e sentindo exalar o perfume da minha linda e bela estrela aproximando-se de mim... CORTA PARA LAURA (olha para Marília e para Dirceu) Não sei se tu o conheces, Marília. Este rapaz disse que veio de uma fazenda pra lá de Vila Rica somente para ver-te. DIRCEU (olha para Marília) 240 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Sim, cá estou para ver a senhorinha, novamente. Há tempo desejo matar esta vontade. Não sei se a sinhazinha lembra-se de mim. Eu a vi uma vez no armazém de Zé Tomázio. MARÍLIA (sorri compassadamente, ajeita o cabelo na testa e responde em tom baixo) Sim, claro! Lembro-me do senhor, apenas de vista. Eu o vi na venda do Zé Tomázio. Eu sempre encomendo algumas coisas por lá, ainda mais quando o senhor meu pai resolve fazer alguma festa em casa... DIRCEU (aproxima-se um pouco mais de Marília e se sente mais a vontade) Então gostas de festas? MARÍLIA Pequenos serões, coisas inventadas pelo senhor meu pai, nada de muito exagero... DIRCEU Que bom vê-la. Desculpe-me, eu precisava fazer isso. MARÍLIA Eu também. Confesso ter gostado de vê-lo aqui. Espero que tu vás um dia em minha casa conhecer o meu pai. DIRCEU Dom Manuel? Conheci-o hoje. Estive na tua casa com o padre Rocha... Marília morde os lábios. Dirceu resolve fazer uma brincadeira com palavras. 241 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Fui lá para conhecê-lo e pedir a tua mão em casamento... LAURA (olha para Marília e depois para Dirceu) Marília sempre jurou que quando lhe aparecesse um pretendente, ambos, primeiramente, se conheceriam e depois partiriam para as formalidades. DIRCEU (bate a mão na testa) Meu Deus, fiz bobeiras, acho que coloquei os carros diante dos bois e... Marília olha assustada para Dirceu. Laura tagarelando, acaba atrapalhando o desfecho de Dirceu. LAURA E perdeste a confiança da minha amiga, senhor Dirceu... MARÍLIA (resmunga com a cara fechada) Perdeste mesmo, o que nem começou, graças a Deus... DIRCEU (tom sério) Olha aí, está resmungando, senhora dona Marília, sei muito bem que a senhora está de casamento marcado com um italiano. Um gajo arranjado para vós mercê pelo teu tio e pai... MARÍLIA (arregala os olhos para Dirceu e morde os lábios com raiva) Como sabes disso? Quem contou isso à vossa senhoria? 242 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (tom irônico) O senhor, seu pai, ele disse que a sinhazinha irá casar com um italiano rico e dar a ele netos europeus, italianos. MARÍLIA Meu pai disse isso para vós mercê? Então é verdade que foi lá pedir a minha mão em... DIRCEU Não, não fui lá para pedir a sua mão em namoro. Nunca, jamais faria isso sem a permissão de vossa senhoria. Fui até a sua casa por acaso, acompanhado pelo padre Rocha... LAURA Foi lá acompanhado por um padre? Então na certa seria para casar com a dona Marília. DIRCEU Ora, Laura, com essas tuas conclusões, vós mercê estraga tudo... MARÍLIA Tudo de nada que ainda começou... LAURA (vira-se de costas para Marília e Dirceu) Tá bom, ta bom, não está aqui mais a Laura, amiga de Marília. DIRCEU Posso esclarecer, Laura. Encontrei o padre Rocha na rua e ele convidou-me para ir até a casa de um amigo que está por mudar de Vila Rica para uma fazenda. Acompanhei-o devido a um assunto pessoal. Fiquei surpreso quando descobri que este moço de quem se despedia era dom Manuel, pai da jovem que eu um dia avistei em Vila Rica e nunca mais a esqueci. . 243 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior LAURA (vira-se de novo para Marília e Dirceu, batendo palmas e sorrindo) Que homem romântico!!! Meu Deus, está difícil ver outro cá na terra... MARÍLIA (demonstra-se um pouco irritada e com vergonha) E o que estamos fazendo na porta deste armarinho em pleno sol quente, dona Laura? Acho melhor voltarmos para casa. A dindinha pode estar a nos procurar. Vós mercê há um bom tempo está por cá, vendo peças de enxoval e sonhando casarse com o Paulo Henrique, aquele mancebo desajeitado... LAURA Já falei para a amiga, que do meu destino cuido eu... MARÍLIA (tom irônico) E está aí, noiva, prestes a casar e a mudar-se para uma fazenda, onde se tornará uma sinhá a tosquiar ovelhinhas brancas. LAURA (faz gestos engraçados com o corpo) E de muitos gados, senhorinha. Quem sabe não serei igual à Joaquina do Pompeu , que cada dia que passa fica mais rica. MARÍLIA Vos mercê poderá até tornar-te rica, nos moldes da dona Joaquina mas, para isso, precisarás que os teus pais tragam-te dois pretendentes para a festa de noivado. Quem sabe não faria uma escolha melhor... 244 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior LAURA Ora, senhora Marília, estás falando assim porque não gostas do meu noivo. Além do mais, tu tens ciúmes, só porque casarei primeiro. Laura e Marília frente a frente, discutindo-se. Dirceu apenas observa a discussão das duas amigas. DIRCEU (VOICE OVER) Fiquei reparando as duas raparigas trocando palavras em vão. As duas, mesmo brigando, não deixavam de ser amigas. Elas mantinham o assíduo cuidado de escolher palavras ao dirigirse uma à outra. Foi aí que aproveitei para perquirir Marília sobre a questão de ela gostar ou não de morar em fazenda, campo ou local semelhante ao locus amoenus. CORTA PARA Laura e Marília terminam a discussão. Dirceu olha para Marília e tenta tocá nas mãos. Marília recua o corpo. DIRCEU Dona Marília, por ventura, não aceitaria casar-se comigo e morar no campo? MARÍLIA (fecha a cara e faz-se sisuda) Nunca! Eu prefiro viver presa em um convento a casar-me com um homem de roça. LAURA E a amiga não haverás de morar com o pai na nova fazenda? 245 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Claro que morarei, Laura. Essa é a condição oferecida pelo meu pai, no momento. Quanto a um marido, esse será citadino, educado, servil, quem sabe, até um poeta... LAURA Então o homem da Itália não é um provinciano? Agricultor, dono de uma vinha, sócio do teu tio... Isso tudo é o que a sinhazinha sabe sobre ele... MARÍLIA E quem disse que casarei com um italiano? Ainda mais que nem o conheço. Essa é uma ideia maluca do meu pai, Laura. A sinhazinha bem me conhece, hei de desfazer esse desejo do meu pai no tempo certo. Laura olha para Dirceu, sorri e agarra Marília pelos braços para levá-la para casa. Dirceu aproxima-se de Marília e segura-a pelo outro braço um pouco nervoso. DIRCEU Quer saber de uma coisa, dona Marília? Eu sou do campo e não troco a vida da fazenda por nada deste mundo. Espero que a sinhazinha namore, case ou concubine com um rapazote da cidade e viva com ele todas as aventuras possíveis. Quem sabe, em minhas andanças pelo campo não encontrarei a minha verdadeira Marília? Deus haverá de mostrar-me outra, capaz de aceitar o meu amor e as minhas condições para nutri-lo. Silêncio. Laura e Marília seguem em direção à casa da costureira Berta. Marília, duas ou três vezes olha para trás, como se querendo dizer alguma coisa para Dirceu. Dirceu vai em direção a Cirilo, que lhe entrega o cavalo. Cavalo. Dirceu monta no cavalo. Dirceu e Cirilo vão para fugir em galope, mas Dirceu coloca a mão em um alforje, pendurado na cela. Dirceu dá um sinal para Cirilo. Cirilo frea o cavalo. 246 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Porta da casa da costureira Berta. Laura e Marília andam em direção a porta da casa da costureira Berta. Dirceu vê Marília e Laura andando em direção à casa da costureira Berta. Dirceu sai galopando em direção a Laura e Marília. Laura e Marília assustam-se, mas aguardam por Dirceu. Dirceu aproxima-se de Laura e Marília. Alforje. Dirceu tira um leque do alforje e entrega-o à Marília. DIRCEU Este objeto pertence à sinhazinha, eu o achei um dia... Marília, surpresa, recebe o leque. Ela, confusa, agarra as mãos de Laura. Marília e Laura entram na casa. Dirceu grita por Cirilo. Cavalos. Dirceu e Cirilo saem galopando pelas ruas de Mariana. Dirceu e Cirilo saem de Mariana a galope. CAPÍTULO 6 SEQUÊNCIAS 95-114 Personagens deste capítulo: Dirceu Casais vestidos elegantemente (Casa da Ópera) Orquestra (Casa da Ópera) Padre Rocha Senhoras brancas Moças negras Sebastiana Eulina Quitéria Inácia Hipólito Ambrósio Cirilo Hipólito Josias Raimundo Sobreiro 247 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Zé da Viúva Dois fazendeiros Dupla de sitiantes Sitiantes, fazendeiros, esposas e filhos Dois seminaristas Cavaleiros de dom Miguel Zenilda Dom Miguel Vinte homens brancos e negros de Dom Miguel Arigó Safira Escravos(as)da fazenda Paraíso Jera Mulheres negras da fazenda Paraíso Raimundo Jucá Alceu Endimião Trácio Marília Laura FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 36.8 (para continuidade de ação em 36.9) SEQUÊNCIA 95 - INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Dirceu está na mesa de canto do quarto dele. Ele escreve em um pergaminho, usando pena e tinteiro. DIRCEU (fala por solilóquio) 248 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Nem tudo na vida são flores. A Marília sonhada por mim e traçada no feitio dos meus amores, era uma moça tênue e frágil, incapaz de enfrentar a vida do campo. Eu devia reconhecer isso. Visão panorâmica de Vila Rica. Igrejas. Casario. Casa da ópera de Vila Rica. Casais elegantemente vestidos entrando na Casa da Ópera de Vila Rica. Palco da Casa da Ópera. Atores no palco apresentando uma cena de "O Parnaso Obsequioso", drama de Cláudio Manuel da Costa. DIRCEU (OFF) Em Vila Rica, assim como outras cidades da colônia, além de possuir as mais belas igrejas de Minas Gerais, contava também com um centro cultural e civilizador muito significante, capaz de acolher as liras musicais, os poetas, escultores, pintores, artesãos e arquitetos. VOLTA PARA Quarto de Dirceu. Mesa de canto. Pena sendo molhada no tinteiro. Mãos de Dirceu escrevendo no pergaminho. Rosto de Dirceu fixado no pergaminho. Imagens de Vila Rica, fazendas, campos com animais pastando, cascatas, etc., conforme a narração de Dirceu em voice over. DIRCEU (VOICE OVER) Se essa cidade oferecia uma vida intensa às famílias de classe média e alta, por que uma moça de lá haveria de aceitar a casar-se comigo, um homem campesino, a ter tão pouco para oferecer. Tudo o que eu podia oferecer a Marília era o dia, o sol, a noite, a lua e as estrelas. Se Marília exigisse um pouco mais, quem sabe eu não daria a ela também os rios, as cascatas murmurantes, as relvas verdes e refrescantes, as ovelhas e os gados a se confundirem nos campos pastoris e selvagens. E se isso não bastasse, consultá-la-ia e, sem dúvida, ofereceria as minhas parcas pedrinhas de ouro e os meus dois ricos diamantes para que ela mandasse o mais caro artesão 249 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior transformá-los em uma joia rica e rara. E se ela ainda julgasse tudo isso pouco, entregaria a ela minha alma sertaneja, carregada de amor e de felicidade intensa, capaz de preencher o vazio de seu coração e de sua alma. Se Marília soubesse o meu tormento. Tinteiro. Dirceu para um pouco de escrever e bate o braço no tinteiro. O tinteiro cai sobre o pergaminho, borrando-o. Dirceu levanta-se rápido da mesa de canto. Janela do quarto. Ele vai té a janela, abre-a. Céu. Estrelas no céu. Ele contempla as estrelas no céu, rindo à-toa. A Lua prateada ilumina todo o terreiro da fazenda. DIRCEU (fala por solilóquio) Creio que as estrelas estão a pregar-me algumas peças. Não mais as verei, dali por diante. Nesta noite, despeço-me de todas e a partir de amanhã dormirei cedo e acordarei madrugada disposto a ajudar os rapazes em todas as tarefas da fazenda... Dessa forma esquecerei Marília e livrarei de viver esse tormento... DIRCEU FECHA A JANELA. ESCURIDÃO TOTAL. SEQUÊNCIA 96 – INT./ DIA. VILA RICA. IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. INTERIOR DA IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. Vila Rica. Fachada da Igreja de São Francisco de Assis. Dirceu tira o chapéu e entra na igreja de São Francisco de Assis. DIRCEU (VOICE OVER) Certa vez, tendo de ir à Vila Rica duas ou três vezes a negócios, aproveitei uma dessas viagens para marcar com o padre Rocha o dia da celebração do casamento dos rapazes com a moças da fazenda. 250 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Interior da igreja de São Francisco de Assis. Nossa Senhora cercada de anjos músicos, de Mestre Ataíde, no teto da igreja. O padre Rocha está sentado em uma confortável poltrona, próximo ao altar principal da igreja. Pano úmido nas mãos do padre Rocha. Ele limpa um enorme castiçal de prata. Há na igreja algumas SENHORAS BRANCAS e MOÇAS NEGRAS auxiando o padre Rocha na limpeza da igreja. MOÇAS NEGRAS varrem o piso da igreja e limpam os altares. As SENHIORAS BRANCAS trocam os forros dos altares e arrumam flores nos vasos. Dirceu está em pé, ao lado do padre Rocha. O padre Rocha olha para Dirceu. PADRE ROCHA Então vós mercê é mesmo como o vosso pai! Não desiste mesmo da ideia do casamento! DIRCEU Não, não desisto, padre Rocha. É justamente por isso que estou cá. Venho para marcar o dia da celebração. É algo simples, uma bênção aos noivos e só... PADRE ROCHA Como vê, meu filho, estou velho e cansado, mas creio que poderei atendê-lo... Há tempo não saio por esta região, inclusive para a fazenda do senhor seu pai, onde, conforme já lhe disse, celebrei algumas festas santas... DIRCEU A viagem fará bem ao senhor, padre. A paisagem do lugar é bonita e a estrada, embora um pouco íngreme, tem melhorado bastante... PADRE ROCHA (tosse secamente) Desde que aumentou a vinda de tropeiros por cá, as estradas têm se tornado boas, embora algumas perigosas... 251 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não estão tão perigosas como antes, padre Rocha. Com a escassez do ouro, muita gente gananciosa tem se afastado para outras capitãnias. PADRE ROCHA Isso é verdade, meu filho. Se vós mercê já providenciou todos os acontecimentos da celebração, conforme prometi, lá estarei eu. Possuo um espírito curioso e creio gostar de ver novamente a fazenda e a capela, com toda a sua firmeza. DIRCEU (demonstra-se entusiasmado) Embora os donos da fazenda, depois do meu pai, não tenham conservado a capela, como bem merecia, estou com o propósito de erguê-la, não somente conservando paredes, torre e altar, mas também a fé cristão, padre Rocha. Castiçal de prata. O padre Rocha tenta erguer o castiçal de prata. O castiçal balança. Dirceu pega o castiçal das mãos do padre Rocha. Padre Rocha aponta com o dedo para um dos altares da igreja, dando sinal para que Dirceu coloque o castiçal. Dirceu carrega o castiçal de prata e coloca-o no altar apontado pelo padre Rocha. Castiçal no altar. O padre Rocha observa o castiçal no altar e olha para Dirceu. PADRE ROCHA É interessante que vós mercê pense assim. O senhor seu pai, Zé Antônio, tem tentado aproximar os fazendeiros, garimpeiros, mineradores e sitiantes da região, através de festas religiosas, realizadas na capela. Eu, por exemplo, participei de algumas delas, com gosto. (faz uma pausa para respirar e prossegue) Os demais donos deixaram a capela à mercê, creio que muita gente dali esqueceu-se dela. Também, não é por menos, nem eu mesmo sei a utilidade daquela capela construída ali... 252 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (arregala os olhos para o padre Rocha) Como assim, padre Rocha, estaria aí o mistério? PADRE ROCHA É que para a igreja, essa capela de suas fazenda, não tem sido muito útil. Não posso nem dar certeza se ela é ou não confirmada pelo órgão de controle superior da Santa Sé. Talvez esteja aí o mistério... DIRCEU Mas todas as igrejas são úteis, não são padre Rocha? E as capelas também não são? PADRE ROCHA Sim, perante o olhar dos leigos, todas as igrejas e capelas, são úteis. A capela da sua fazenda, por exemplo, tornará, a partir de agora útil. DIRCEU Por que? PADRE ROCHA Porque a partir de agora possa servir para realizar casamentos de escravos... DIRCEU Ora, vosso reverendo, expliquei ao senhor que os rapazes da fazenda não são escravos... PADRE ROCHA Meu filho, como não,se até nós somos... DIRCEU Mas Deus não quis e não quer que o mundo insista nesta imperfeição, padre. 253 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PADRE ROCHA Deus é tão complacente e tão misterioso. Se vivemos os propósitos d'ELE, não podemos jamais questioná-LO... DIRCEU Mas podemos questionar os homens... PADRE ROCHA Sim, claro, mas questionar os homens para se chegar a que ponto... DIRCEU (um pouco sem graça) Se o que eu estou pedindo ao vosso reverendo, custar caro, para com Deus e, principalmente, para com os homens, por favor, padre Rocha, não mais precisarei da sua bênção aos rapazes e suas respectivas noivas... PADRE ROCHA Não, não vamos nos inflamar. Vamos resolver o que está predito. Falei que iria e irei. Não é á-toa que vós mercê deseja executar essa tarefa cristã. Deus haverá de estar triunfante com tudo isso. Os sinais dados por ELE não devem jamais ser ignorados. Deus trabalha em silêncio e usa um e outro como sua ferramenta... Altar principal da igreja de São Francisco de Assis. Imagem do Cristo crucicado. Padre Rocha olha para a imagem do Cristo crucificado. PADRE ROCHA Quem sou eu para ignorar os propósitos de Deus... DIRCEU Então falaremos sobre a data e... REPICAR DE SINOS DE UMA IGREJA PRÓXIMA 254 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 97 - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VARANDA DO CASARÃO. Tarde. Varanda do casarão. Dirceu está sentado em um tamborete, na varanda do casarão. Sebastiana, Eulina, Quitéria, Inácia e Hipólito estão sentados em um enorme banco. DIRCEU Acertei tudo com o padre Rocha e ele disse que fará gosto de vir fazer o casamento dos rapazes com as moças. Vou precisar da ajuda de todos, porque, tanto a capela, quanto este quintal da fazenda ferverá de gente. A festa há de ser bonita, coisa que há muito tempo não se vê por essas bandas. Vós mercê lembra-se de todas as iguarias que eram feitas para o povo comer, Sebastiana? SEBASTIANA Eu lembro claro. A velha aqui caduca apenas ao esquecer-se dela, mas das coisas que faz e que já foram feitas para agradar os nhozinhos dela, jamais... Nhozinho pode ficar despreocupado que eu e as moças da casa resolvemos tudo... Ainda mais estas três mocinhas, noivinhas, casando em igreja com padre e tudo... Eulina, Quitéria, Inácia balançam a cabeça afirmando um "sim". DIRCEU Estamos fazendo o que é certo. Se casais brancos unem-se nas igrejas em nome de Deus, Criador e Dono de todas as criaturas, qualquer raça, por certo, deverá unir-se suas carnes perante a igreja. SEBASTIANA Basta nhozinho dar ordem do que fazer para o povo comer na festa, que estamos na cozinha prontas para as tarefas. 255 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Sebastiana levanta-se do banco e dá um sinal para que Eulina, Quitéria e Inácia sigam-na. As quatro mulheres entram no casarão. Hipólito olha para Dirceu todo entusiasmado. HIPÓLITO Tô vendo nhô muito entusiasmado com a festa. Eu tava até pensando por que nhozinho não faz no dia uma brincadeira que todo mudo desta região gosta. DIRCEU E qual é esta brincadeira que todo mundo gosta, Hipólito? HIPÓLITO O pega-boi é uma brincadeira muito conhecida pelos moradores destas bandas, nhozinho. DIRCEU Uai, por que não fazemos o pega-boi, ora?! SEQUÊNCIA 98 - EXT. /DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAMPO DO PEGA-BOI. Tarde. Campo com matos rasteiros. Enxadas. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito com enxadas carpinando o campo. FADE OUT / FADE IN Tarde. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito terminando de carpinar o campo. FADE OUT /FADE IN Tarde. Postes de madeiras. Cirilo, Ambrósio e Hipólito carregam postes de madeiras. Miliquito, Josias e Dirceu armam cercas paralelas no campo com os postes de madeiras. 256 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FADE OUT /FADE IN Manhã. Pista cercada. Cirilo, Ambrósio e Hipólito terminam de construir um brete para a contenção dos animais. Dirceu e Josias vistoriam o mourão, reforçando os esteios. FADE OUT/FADE IN Tarde. O campo do pega-boi está pronto.Pista cercada. Curral. Brete (para a contenção dos animais). Mourão. Cavalos. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito vestidos de vaqueiros montam em seus cavalos para treinarem o pega-boi. Boi saindo do brete e correndo para a pista cercada. Dirceu e Josias correm atrás do boi. Josias derruba o boi pelo rabo. Todos dão risadas. DIRCEU (VOICE OVER) Hipólito lembrou-me de uma brincadeira interessante. O pega-boi dava aos vaqueiros da região a oportunidade de demonstrarem todas as suas perícias no trato com o gado. Nos dias seguintes, Hipólito, Cirilo, Miliquito, Josias e eu reuníamos para os preparos da brincadeira. Nós dividimos o campo com cercas e escolhemos os bois a serem derrubados pelos vaqueiros. Todas as tardes nós treinávamos no campo a brincadeira. Josias, o mais rápido entre todos, ensinava-nos a cavalgar e a nos tornar ágeis para o jogo, ora usando o laço, ora segurando o gado pelo rabo e até mesmo pelos chifres. Os nossos treinos tornavam-se divertidos. CORTA PARA SEQUÊNCIA 99 - EXT. /DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAMPO DO PEGA-BOI. Outras tardes. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito, vestidos de vaqueiros, montados em seus cavalos. Boi saindo do brete e 257 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior correndo para a pista cercada. Hipólito e Cirilo correm atrás do boi. Hipólito tenta laçar o boi, mas não consegue. Cirilo tenta aproximar-se do boi, mas o boi corre dando coices. Todos dão risadas. Ambrósio corre atrás do boi, derruba-o pelo rabo, mas cai do cavalo. (Vários FADE OUT E FADE IN para alternar algumas tardes). Tarde. Boi na pista cercada. Miliquito e Josias derrubam o boi. Cerca. AlGUNS SITIANTES e FAZENDEIROS do lugarejo estão presentes, observando a pega de boi, próximos à cerca. Cavalo. Dirceu pula-se do cavalo e cumprimenta ZÉ DA VIÚVA, vaqueiro, baixo, magro, pele clara e queimada pelo sol, de 32 anos de idade e RAIMUNDO SOBREIRO, também vaqueiro, pele branca, queimada de sol, magro e alto, de aproximadamente 28 anos. DIRCEU (VOICE OVER) Todos os dias, à tarde, apareciam sitiantes e fazendeiros da região para SE divertirem conosco. Eu os convidava para os treinos, deixando-os inteirados sobre a grande festa de cerimônia de casamento dos rapazes. Numa dessas tardes, recebemos a visita de dois vaqueiros, quais, depois, trouxeram outros amigos para participar da nossa brincadeira. Pôr-do-sol. Boi correndo na pista cercada. DOIS FAZENDEIROS do lugarejo tentam derrubar o boi na pista cercada. O boi escapa dos dois fazendeiros. Cerca. Zé da Viúva grita. ZÉ DA VIÚVA Assim, não há de ser... Assim, não... não há de derrubar boi, nunca... Cerca. Zé da Viúva, encostado na cerca, dá risadas. ALGUNS ali, também, dão risadas. Dirceu solta uma gargalhada, tira o chapéu e olha para Zé da viúva. DIRCEU És também amansador de cavalo bravo e derrubar de boi corredor? 258 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZÉ DA VIÚVA Meu nome é Zé, de onde venho, todos me chamam de Zé da Viúva. ZÉ DA VIÚVA (dando risadas) É porque fiquei viúvo três vezes, casando-me com mulheres víúvas, em poucos meses. O meu último casamento, todos comentam com audácia, pois eu nem cheguei a dormir com a viúva. Não é que ela morreu antes do anoitecer? (respira fundo e prossegue) Sabe, inhô, já fui bom amansador de cavalo bravo e grande derrubador de boi corredor e remetedor... Hoje vivo de campinar boi manso e creio ter perdido os trejeitos... Pista cercada. Cirilo e Ambrósio derrubam um boi pelo rabo. Risadas e gritos. Dirceu olha para Raimundo Sobreiro. DIRCEU O companheiro de vós mercê também é bom no pega-boi? Quem sabe, vós mercês não formam uma dupla e... RAIMUNDO SOBREIRO (tira o chapéu da cabeça e se apresenta) Meu nome é Raimundo Sobreiro, vosso criado. Sabe "nhô", gôsto não falta, qual vaqueiro dessa região não gosta de brincar de pega-boi, vaquejada ou coisas assim? (coloca novamente o chapéu na cabeça) Pena que meu companheiro e eu temos tantos serviços na fazenda, que não teremos tempo para treinar... DIRCEU Faz mal não. Vós mercês aparecem aqui numa tarde e n´outra e juntem-se a nós para os treinos. Não estamos fazendo nada oficial, só uma brincadeirinha para animar o casamento de uns rapazes, qual acontecerá daqui a alguns dias... 259 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZÉ DA VIÚVA Se é assim não vamos dispensar, não é Raimundo Sobreiro? RAIMUNDO SOBREIRO É, nós nem vamos pensar para responder ao "nhô". A resposta é sim... DIRCEU Dirceu, o meu nome é Dirceu. Todos nós, nesta fazenda, formamos uma só família... RAIMUNDO SOBREIRO Da pra vê, inhô, o povo aqui é feliz... O amigo e eu vamos fazer o possível para comparecer nos treinos. No dia da festa, quem sabe, podemos estar bom de tinir... Boi na pista cercada. DUPLA DE SITIANTES do lugarejo, correndo atrás do boi. UM DA DUPLA DE SITIANTES derruba o boi pelo rabo. Boi caído na pista cercada. Todos gritam e bate palmas. DIRCEU Não é por mal que eu pergunto, vossas mercês trabalham em qual fazenda nesta região? ZÉ DA VIÚVA Nós viemos de Rio das Mortes, tocamos o rebanho até a fazenda em que estamos e fomos contratados pelo dono... A fazenda é próxima a de "nhô". Ela fica acima do Rio dos Cascalhos. O dono é desta região, lá de Vila Rica e, segundo ele, logo mudará com a família para a fazenda. Tudo lá é novinho, desde as terras, a casa, a senzala, os currais, as cancelas... coisa de que ainda está sendo construída para ser inaugurada... 260 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (coça o nariz e ri disfaçadamente, falando por solilóquio) CHIIIII!!!! Só falta a fazenda vir a pertencer ao tal dom Manuel... O destino, por acaso, faria isso comigo? O que fiz aos deuses para eu ser perseguido? Abre a cancela, Um vaqueiro sai correndo pelo campo e agarra um boi pelo rabo e o derruba. TODOS GRITAM. SEQUÊNCIA 100 - INT./EXT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. Amanhecendo. Canto do galo. Sol surgindo no horizonte. Fazenda Ribeirão do Meio. Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito colocam mesas e cadeiras debaixo das árvores. Eulina e Inácia acabam de varrem o quintal. Cozinha. Fogo no fogão a lenha. Sebastiana mexe colher de pau nas enormes panelas no fogão a lenha. Quitéria coloca compotas de doces, bolos, biscoitos, pães de queijo, café, leite e vinho, na mesa da cozinha. Forno à lenha com assados e petiscos. Mesa com assadeiras contendo pernis de carneiros e de porcos temperados. Ambrósio e Cirilo colocam enormes assadeiras de pernis no forno à lenha. Buraco com braseiro. Novilha sendo assada espetada em grandes e grossos espetos de ferro. Forquilhas á beira do buraco com braseiro para virar a novilha. Cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Cavalos. Padre Rocha. Dois jovens seminaristas e um velho zelador da igreja de São Francisco de Assis chegam à cancela da fazenda, montados em seus respectivos cavalos. Dirceu recebe o padre Rocha, os dois seminaristas e o zelador da igreja de São Francisco de Assis, no terreiro da fazenda. Cozinha. Compotas de doces, bolos, assados, café, leite e vinho na mesa da cozinha. Café e cesta cheia de pães de queijo na mesa da cozinha da fazenda. Dirceu, I padre Rocha, os dois seminaristas e o zelador da igreja de São Francisco de Assis estão sentados à mesa da cozinha da 261 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior fazenda. Sebastiana e Quitéria servem para eles o café com os pães de queijo e outras iguarias mineiras. SEQUÊNCIA 101 – INT./DIA. MEIO. VÁRIOS. FAZENDA RIBEIRÃO DO Relâmpagos riscando o céu. Cancela da fazenda, aberta. Movimento de pessoas chegando à fazenda, uns a cavalo, outros em carros de boi e outros a pé. São SITIANTES E FAZENDEIROS COM ESPOSAS, FILHOS E CRIADOS. No campo construído para o pega-boi há alguns vaqueiros desfilando com os seus cavalos. Ao redor da cerca do campo de pega-boi Há algumas CRIANÇAS penduradas na cerca, reparando os bois. Dirceu e padre Rocha cavalgam pelas campinas da fazenda. Ao chegarem à entrada da fazenda, eles cumprimentam os convidados. Ouve-se o fraco repicar de sinos da capela da fazenda. ALGUMAS PESSOAS marcham-se para a capela. Interior da capela. FIÉIS sentados nos bancos da capela. Altar da capela. Padre Rocha está no altar da capela. Porta principal da capela. Os três casais, Cirilo e Inácia; Hipólito e Quitéria; Miliquito e Eulina entram na capela. Altar. Noivos aproximando-se do altar. Padre rocha defronte aos noivos, quais ajoelham-se perto dele. DIRCEU (VOICE OVER) Não demorou muito e a vizinhança se achegou para a festa de casamento dos rapazes e das moças da nossa fazenda. Sitiantes, filhos e filhas de fazendeiros, acompanhados ou não de seus criados, fizeram encher minhas terras de conversas e barulhos. O padre, após cavalgar pelas campinas verdes da fazenda, em minha companhia, marchou para a capela, vestiu a sua batina festiva e aguardou pelos noivos para oficializar a cerimônia de casamento. Os três casais Cirilo e Inácia; Hipólito e Quitéria; Miliquito e Eulina entraram dignamente na capela e ajoelharam-se no pequeno altar para receberam a bênção de casamento do pároco. 262 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA Altar da capela da fazenda. Padre Rocha celebra dos rapazes e das moças da fazenda. PADRE ROCHA Se não há nada que impeça a felicidade destes três casais, para unir cada um deles em uma só carne, peço ao senhor Dirceu, encarregado destas uniões, que dirija-se até cá, neste altar para entregar as respectivas noivas aos seus futuros maridos. Padre Rocha faz um sinal chamando por Dirceu. Dirceu aproxima-se do altar. O padre Rocha pede a Dirceu que una as mãos de cada uma das três moças aos seus respectivos noivos. Dirceu une as mãos dos casais Inácia e Cirilo; Quitéria e Hipólito; Eulina e Miliquito. Dirceu dá dois passos para o lado esquerdo. O padre Rocha continua a cerimônia. PADRE ROCHA A quem Deus une, homens e mulheres, para tornarem-se uma só carne, jamais pode, perante a lei dos homens, se separarem. A igreja se faz forte, quando os casais contraem matrimônios e constituem famílias dentro dos preceitos cristãos. Um dos jovens seminaristas traz a caldeira de água benta e coloca sobre o altar. Padre Rocha desce do altar, pega a caldeira de água benta e aproxima-se dos noivos e os abençoa com a água benta trazida por um dos jovens seminaristas. PADRE ROCHA In nonime Patris et Fílii et spitiui Sancto. FIÉIS Amém! Padre Rocha sobe novamente no altar e reza "O Pai Nosso", em Latim, sendo acompanhado em seguida por todos os fiéis. 263 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PADRE ROCHA Pater noster, qui es in caelis Sanctificétur nomen tuum: Advéniat regnum tuum: Fiat voluntas tua, sicut in caelo, et in terra. FIÉIS Panem nostrum quotidiánum da nobis hódie : Et dimítte nobis débita nostra, sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris.Et ne nos indúcas in tentatiónem. PADRE ROCHA Sed líbera nos a malo. FIÉIS Amen! Sequência 102 – Ext./Int./Dia. Fazenda Ribeirão do Meio. Vários. Capela da fazenda cheia de gente. Chuva grossa. Logo abre-se o sol e todos saem da capela. Cancela da fazenda. Noivos recebidos na entrada da cancela da fazenda. Adultos comem e bebem, fartamente, conversando em círculos. Crianças brincam de correr entre as árvores e entre os adultos. Vaqueiros no campo do pega-boi. Vaqueiros em seus cavalos correm no campo do pega-boi. Duplas de vaqueiros correm atrás dos bois no campo de pega-boi. Pegadas de boi. Bois derrubados pelos rabos, por vaqueiros. Cerca do campo do pega-boi. Padre Rocha pendurado na cerca observando as pegadas de boi. Hipólito e Cirilo correm atrás do boi. Hipólito laça o boi e derruba-o. Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva correm atrás de um boi. Raimundo Sobreiro derruba o boi. Varanda do casarão da fazenda. Farias toca sanfona e pessoas alegres estão em volta dele cantando modinha, na varanda da fazenda. Mesas fartas com farofas e grandes gamelas com pernis assados de carneiro e de porcos. Pessoas servindo-se à vontade. Sequência 103 – Ext./Dia. Fazenda Ribeirão do Meio. Adro da capela da fazenda. 264 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Tarde. Adro da capela da fazenda com pessoas em volta dele esperando a apresentação de uma cavalhada. CAVALEIROS DA CAVALHADA devidamente paramentados saem da estrada que liga a fazenda Ribeirão do Meio à capela, marchando em fila dupla até o adro da capela. Adro da capela da fazenda com os espectadores. Cavaleiros da cavalhada iniciam o ritual de saudação, tirando os gorros e as facas das bainhas e benzendo-se. Eles realizam no adro da capela, o torneio de corridas de argolinhas e em seguida retiram-se desfilando. Eles beijam e agitam as facas na direção aos espectadores. Os espectadores aplaudem os cavaleiros da cavalhada. DIRCEU (VOICE OVER) Um dos proprietários de uma fazenda próxima, conhecido como Antenor, católico assíduo, pediu autorização a mim para exibir uma tradicional cavalhada , ensaiada por uns homens de uma associação religiosa da nossa região. Permiti a exibição. Eles apresentaram a cavalhada, finalizando-a com um bonito desfile de cavaleiros. Após a apresentação, Antenor agradeceu a oportunidade e aproveitou para fazer-me um convite de ingresso na associação religiosa de que ele fazia parte. Quintal de frente da fazenda. ANTENOR, senhor de aproximadamente 50 anos, alto, magro, pele clara, bigode e barba bem aparados, vestido de cavaleiro da cavalhada, encontra-se com Dirceu no pátio da fazenda. ANTENOR Festa muito bonita, senhor Dirceu. Há tempo não vemos cá, tanta gente alegre a se unir e a se divertir tanto, uns com os outros... DIRCEU Alegre, sou eu quem estou, Antenor. Isso se dá devido ao fato de eu saber que os meus compatrícios não medem esforços para compor a felicidade de todos. 265 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ANTENOR Há tempo, fundamos cá uma associação religiosa, precingindo vários fazendeiros e sitiantes. Aos domingos, reunimos numa casa e outra para fazer as nossas celebrações eucarísticas. Inventamos a cavalhada como uma harmonia capaz de lembrar aos homens que para Deus é válido qualquer proeza ou ação arriscada para eternizar o seu nome. Gostaria, se vós mercês aceitar o convite, vir a fazer parte de nossa irmandade. DIRCEU Faço gosto, senhor Antenor, depois desta belíssima apresentação e com uma capela esperando por acontecimentos desta ordem, não tenho como não aceitar o convite... Dirceu e Antenor conversam no pátio da fazenda. PESSOAS andando de um lado para o outro. CRIANÇAS brincando umas com as outras. MULHERES ajudando a servir as pessoas. PESSOAS comendo petiscos. NOIVOS e NOIVAS felizes, recebendo uma vez e outra cumprimentos de alguém. CORTA PARA Estrada da fazenda Ribeirão do Meio. Carro-de-boi. Os últimos convidados se retiram da fazenda em um carro-de-boi. Farias recolhe-se na varanda, juntamente com Josias. Os recém casados respectivamente com as suas noivas estão sentados em círculo, debaixo de uma árvore, próximos á entrada da fazenda. Dirceu dirige-se aos recém-casados. Três cartuchos nas mãos de Dirceu. Ele entrega os cartuchos a cada um dos casais. Os casais abrem os cartuchos, retiram deles um pergaminho com escritas góticas e letras douradas. DIRCEU (VOICE OVER) No final da tarde entreguei aos noivos o meu presente. Cada um recebeu uma carta de alforria, tornando-se livres para ficar ou partir da fazenda. Nessa época não era comum a prática de 266 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior presentear escravos com cartas de alforria, mas, como esse foi o meu desejo de proprietário, bastou eu consultar um especialista em Vila Rica e receber dele as devidas orientações na preparação dos documentos. Eles resumiam-se numa simples declaração de liberdade concedida por mim aos meus cativos. CORTA PARA HIPÓLITO (devolve o cartucho para Dirceu) Carecemos disso não, "nhozinho". A nossa liberdade não "tá" nesse papel escrito com letras douradas, mas "tá" na consciência de vossemecê, que sempre nos trata como gente branca... DIRCEU Liberdade alguma deveria estar escrita em papéis com letras douradas, mas sim, na conciência dos homens, mas se inventaram este capricho, nada melhor do que se prevenir. É bom que vós mercês guardem estes papéis, porque nunca sabemos o que pode acontecer amanhã. Logo, vós mercês constituirão famílias e devem garantir a liberdade de seus filhos. Saibam, vós mercês, que ninguém, nem vós mercês, nem eu mesmo, mandam em nada da colônia. Em tudo, quem manda, é Portugal, através de um rei, qual fica lá a escutar relatos do que fazemos ou deixamos de fazer por cá... FRONDOSA ÁRVORE. PÁSSAROS POUSANDO NA FRONDOSA ÁRVORE. SEQUÊNCIA 104 - EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. Legenda: “Algumas semanas depois...” 267 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu procura por Josias pela fazenda e ao ver o cavalo dele amarrado em uma árvore, próxima à capela, dirige-se para lá. Porta de frente da capela aberta. Dirceu tira o chapéu e entra na capela. Bancos da capela. Josias está sentado em um dos bancos da capela. Dirceu, com o chapéu na mão, aproxima-se de Josias e senta-se no banco ao lado dele. DIRCEU Meu amigo, tenho procurado-o por toda a fazenda, desde cedo. O que fazes, aqui. Parece-me triste... DIRCEU Estou tendo alguns sonhos confusos, nhozinho... DIRCEU Sonhando com a Zenilda? JOSIAS Sim, acho que é algum sinal... DIRCEU Então está na hora de agir. Aconselho o amigo a atrelar o seu orgulho, pegar o cavalo e rodar por aí, pelas fazendas para localizar a Zenilda. Como já lhe falei, ao encontrá-la, volte e o resto cuido eu... JOSIAS Sei não, nhozinho, o coração aqui, apertado, não me diz coisas boas... DIRCEU Às vezes o coração nos engana, Josias. Creio que os sentimentos se confundem e faz surgir no nosso âmago coisas ruins. É bom que o amigo aja, prepare uma viagem e vá atrás do seu destino. Quando encontrar Zenilda, dependendo da situação em que ela se encontra, volte cá, ao seio dos amigos, para que possamos estudar e ver como ajudá-lo... Creio que a 268 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior criança está por nascer e vós mercê terá como ampará-lo, aqui, em nossas terras. JOSIAS Estou pegando fé com a santinha, qual deixei enterrada lá no morro, com pepitas de ouro e tudo. Quem sabe ela não me fará um milagre. O mundão é tão grande, são tantas fazendas aqui e acolá para serem vasculhadas por mim. E no mundo há tanta gente má, basta ver de longe um negro e já quer escravizá-lo, tratá-lo feito animal selvagem. DIRCEU Então, para que vós mercê não sofra nenhum tipo de ameaça ou risco, perante a essa gente má, aguarde por alguns dias. Logo irei a Vila Rica e providenciarei um documento de alforria para vós mercê... JOSIAS Carece não, nhô Dirceu. Sei como lutar pela minha liberdade. Deus fez o homem livre, com direito de ir e vir, como bem entender, pelo mundo afora... DIRCEU A lei dos homens são sempre contrárias as de Deus, Josias... JOSIAS Mas creio obedecer à lei de Deus. Se Deus estiver também ao lado dos negros, hei de obedecer "nhozinho". Só vou esperar por algumas luas e conforme for, pegarei o cavalo de "nhozinho" emprestado e vou tourear toda a campina até chegar nos rastros da minha nega. DIRCEU É assim que se fala e que se faz, Josias. Tudo o que vós mercê há de se servir, primeiramente, é de cautela. Nada de tomar medidas precipitadas. Estude a situação de Zenilda e, 269 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior conforme a situação em que ela se encontra, volte e nós pensaremos como agir. JOSIAS Nhô, sim; nhô, sim. CORTA PARA Serras da região ouropretana. Josias, a cavalo, vestido com um matolão de couro, desce e sobe as serras da região ouropretana. DIRCEU (OFF) Josias permaneceu calado por alguns dias e, numa bela noite surpreendeu-nos quando se declarou apto a procurar pela mulher amada. Dois dias depois, após preparar uma pequena provisão, ele sumiu numa madrugada cinzenta. Nós, cá na fazenda, cuidando dos nossos afazeres, ficávamos curiosos pela chegada dele e quem sabe, também de sua amada, Zenilda, com o filho no ventre, perto de nascer. SEQUÊNCIA 105 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. MANGA DO PASTO. CURRAL. Manga do pasto. Cirilo cavalgando na manga do pasto. Cavalo arreado, magro e faminto, solto na manga do pasto. Cirilo, de longe, vê o cavalo arreado, magro e faminto, solto no pasto. Ele galopa apressado em direção ao cavalo arreado, magro e faminto, solto no pasto. Ele observa o cavalo arreado, magro e faminto, solto no pasto e pega-o pelo arreio sem dificuldade alguma. Ele fala por solilóquio. CIRILO Uai, sô. Este cavalo é o do Josias... Será se aconteceu alguma coisa com o moço? Pode ter acontecido e o cavalo, como conhece a fazenda, debandou por esses rumos... 270 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cirilo cavalga, arrastando o cavalo arreado, magro e faminto. Ele troteia até a cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Hipólito, Ambrósio e Miliquito estão no curral. Cirilo grita por Hipólito. CIRILO Hiiiipoooooolitooooo!!! Curral. Hipólito escuta o grito de Cirilo. Ele larga uns arreios no chão, para um momento, ergue a cabeça e olha para Miliquito e Ambrósio. HIPÓLITO Cês escutaram? É o Cirilo gritando por mim... MILIQUITO Então é melhor vossemecê tratar de ir ao encontro dele que ele deve de estar avexado com alguma coisa, Hipólito... AMBRÓSIO Não é de se ver Cirilo gritar por ninguém da fazenda... CIRILO (OFF) Miliiiiquiiiiitoooooooooo!!! MILIQUITO Virgem Santa mãe de Deus, não é que o Cirilo "tá" gritando por mim também... Vamos lá, vamos socorrer o homem... AMBRÓSIO Vós mercês vão lá, que eu dou conta do serviço cá. Se precisar de mim, vós mercês podem gritar... Miliquito e Hipólito saltam duas ou três cercas do curral e correm para o pátio da fazenda. Cancela da fazenda. Cirilo está do lado de fora da cancela da fazenda segurando o cavalo arreado, magro e faminto, que ele encontrou no pasto. Miliquito e Hipólito correm em direção à cancela da fazenda. Cancela da fazenda. Miliquito e Hipólito abrem a 271 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior cancela da fazenda e correm em direção de Cirilo. Cavalo arreado, magro e faminto, nas mãos de Cirilo. Miliquito e Hipólito olham espantados para o cavalo arreado, magro e faminto. Cirilo pula-se do cavalo, amarra-o num tronco de uma árvore e fica apenas segurando o cavalo arreado, magro e faminto, que ele encontrou no pasto. CIRILO Encontrei o cavalo de Josias, está aqui no pasto, magro e com fome... Venham, todos, deve ter acontecido coisa ruim com o nosso amigo... Estrada. Dirceu vem a cavalo em direção à cancela da fazenda. Dirceu vê Miliquito, Hipólito, Ambrósio e Cirilo do lado de fora da cancela. Dirceu apressa o galope em direção à cancela da fazenda. MILIQUITO É o cavalo do Josias, meu Deus, como "tá" magro, parece que vem de viagem longa... HIPÓLITO Se o cavalo chegou sem o dono, decerto aconteceu alguma coisa perigosa, nhô Dirceu... DIRCEU (sem apear do seu cavalo, observa o cavalo de Josias nas mãos de Cirilo) Deus permita que não! CIRILO Olha só, nhô Dirceu, encontrei este cavalo judiado, no pasto. Ele é de Josias. Estamos cá pensando, será se não aconteceu nada de mal com Josias? Esse negócio de aparecer só o cavalo, ainda mais assim, magro, faminto... 272 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (observa o cavalo de Josias) Foi nada de grave, não. Josias apenas judiou do pobre do cavalo, viajando noite e dia... DIRCEU (olha para Cirilo) Cirilo, leve o pobre do cavalo para a fazenda, desarreia-o e solte nos pastos do fundo. DIRCEU (olha para Hipólito e Miliquito) Vós outros vasculhem toda o pasto, procurem pelo Josias, quem sabe ele pode estar caído por aí... Quanto a mim, vou verificar se ele está na capela... HIPÓLITO A capela deve está fechada, nhozinho... Dirceu não dá atenção para Hipólito. Ele sai dali cavalgando em direção à capela. Capela. Porta da capela. Josias, magro e abatido, está desmaiado na porta da capela. Dirceu toca em Josias, aproxima os seus ouvidos no peito de Josias, verificando se ele está vivo. DIRCEU (fala por solilóquio) Desgraceira, sô. Mais uma desventura deste meu amigo... O que o amor é capaz de fazer a um homem. Isto não está apenas nos livros, mas também, na vida real. UMA CORUJA PIA NO ALTO DE UMA ÁRVORE. SEQUÊNCIA 106 - INT. /EXT./ NOITES/DIAS. CASARÃO DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE JOSIAS. CAPELA DA FAZENDA. 273 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Quarto de Josias. Josias está deitado na cama, com febre, delirando ao repetir várias vezes o nome de Zenilda. Sebastiana entra no quarto e serve para Josias um caldo. Josias não consegue beber o caldo. Quitéria molha um pano numa bacia, aplicando compressas na testa de Josias. Josias, delirando-se de febre, move a cabeça de um lado para o outro. JOSIAS Não devia ter feito isso, Zenilda... Oh, minha Zenilda... Onde está o meu filho? Escondeu ou matou ele no ventre? Dias depois Josias está deitado na cama, um pouco estabelecido. Dirceu está ao lado de Josias, sentado em um tamborete. Compressas de pano molhado no rosto de Josias. Inácia aplica compressas de pano molhado no rosto de Josias. Josias abre os olhos e olha para Dirceu. DIRCEU Conte-nos, Josias, o que aconteceu? Por que voltaste da viagem, tão abatido? JOSIAS Zenilda, nhozinho, Zenilda... DIRCEU Que sucedeu, com a Zenilda? JOSIAS Desgraceira, sinhozinho, só desgraceira... FADE OUT / FADE IN Quarto de Josias. Josias está sentado na cama. Sebastiana servindo um caldo para Josias. Josias bebendo o caldo. Vários fade out e fade in para marcação de tempo: dia e semanas. Josias andando sozinho no quintal da fazenda. Josias sozinho no seu quarto. Josias distante das pessoas da fazenda. Josias sentado em um dos bancos da capela. 274 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Josias, aos poucos foi se estabelecendo a saúde. Quando ele pôde ficar de pé, nos dando a esperança de que a sua vida haveria de se prosseguir, ele começou a agir de forma esquisita. Ele se isolava, não falava com ninguém, ora fugindo para o quintal da fazenda, para o seus aposentos e até mesmo para a capela, gastando todo o dia sentado num canto, feito boi raivoso, amuado. Aconselhei aos rapazes a deixá-lo agir daquela forma, quem sabe, ele mesmo, agindo daquela forma, não encontraria respostas para resolver seus próprios problemas? CORTA PARA Josias está amoado a um canto, no chão da capela. Dirceu observa Josias de uma das portas laterais da capela. Ele tira o chapéu da cabeça, faz o sinal da cruz e entra na capela aproximando-se de Josias. DIRCEU Creio que o amigo não há de ter vergonha de mim. Quando um homem enfrenta problemas e tem amigos, a quem possa confiar, qualquer parte do problema pode ser resolvido, senão todo... JOSIAS ENCARA FIRMEMENTE PARA DIRCEU. JOSIAS Meus problemas não há de serem resolvidos nunca, sinhô Dirceu. Dirceu senta-se no chão, acomoda-se e coloca o chapéu no colo. Josias também se ajeita o corpo. DIRCEU Como pode ter tanta certeza disso? 275 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS A Zenilda aprontou desgraceira... DIRCEU Aprontou desgraceira? Como assim? JOSIAS Vou confessar a vossemecê a história e quero que sinhô ouça como a um padre... DIRCEU Como bem quiser Josias. A sua história começa aqui e termina aqui, também... Se for algo que posso fazer alongaremos a sua história para que tenha um final feliz... Josias coloca as mãos na cabeça. Algumas lágrimas saltam das faces queimadas de sol, de Josias. Ele respira fundo, ajeita-se o corpo no canto da parede e olha para Dirceu. JOSIAS Feliz, não. Quem age feito demônio, pode lá, ser feliz? Dirceu abana a cabeça, dando um sinal de "não". Josias prossegue. JOSIAS Depois de cavalgar muito pelas capoeiras afora, beirando as fazendas e pedindo informações ao povo alheio, acabei sendo informado por um sitiante que Zenilda estava na fazenda Paraíso, qual fizera-se dona... Disse que ela parecia mulher branca, rica a mandar em tudo e em todos. DIRCEU Vós mercê acreditou nisso, Josias? 276 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Não só acreditei como aproximei da fazenda e vi com os meus próprios olhos sinhozinho, que a terra há de comer um dia... Escute só, não é que a danada entregou o mineiro e a esposa dele para o dom Miguel? DIRCEU Aconteceu isso? JOSIAS Sim, não é invenção e nem sombra de minha cabeça. É pura verdade, sinhô, verdade, sim. Quando contei para o sinhozinho, sobre o escorijo na caverna em que ela desapareceu no amanhecer do dia, não é que a danada me deixou ali dormindo e foi estar com o bando de dom Miguel, ainda naquela madrugada... DIRCEU Meu Deus, quem podia contar com uma desventura dessa... JOSIAS Foi o que aconteceu. Escute só, sinhô Dirceu. Quando eu abandonei o cavalo e corri com Zenilda serra acima, escondendo aqui e acolá, em grotas e valas, tarde da noite, quando o barulho era só de corujas e cobras, encontramos uma enorme gruta e escondemos dentro dela. Ela e eu deitamos ali, agarrados, trocando carícias, até que eu dormi. Não é que a danada, aproveitou do meu sono pesado e fugiu dali, indo atrás do bando de Dom Miguel... DIRCEU Não foi assim que havia terminado a sua história, Josias? 277 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Antes terminasse ali, sinhozinho, na manhã em que a cobra picou a minha perna... Mas a Zenilda, a Zenilda é treiteira e acabou fazendo desgraceira... JOSIAS Fiquei sabendo do restante da minha história com Zenilda, depois do dia lá na gruta. Como vossemecê já conhece parte dela, vai entender o resto. A Zenilda, inhozinho, abandonoume na gruta de madrugada e juntou-se aos homens de dom Miguel. Não é que ela levou adiante a minha mentira e se deu bem com dom Miguel... VOLTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 36.8 (para continuidade de ação em 36.9) SEQUÊNCIA 36.8 – INT./EXT./NOITE/DIA. VÁRIOS. Flash back – Relato de Josias. Gruta. Josias segue à frente e aproxima-se da entrada da gruta. A luz da Lua ilumina-se o interior da gruta. Entrada da gruta. Josias observa da entrada da gruta, todo o interior dela. Zenilda aproxima-se de Josias, dá alguns passos à frente dele e entra na gruta. ZENILDA (entrando na gruta) Parece uma gruta tranquila, nem morcego tem... JOSIAS (entrando na gruta) Até parece casa de branco, toda limpinha, asseada e clarinha... 278 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZENILDA (solta uma risadinha afiada e dengosa) Vem cá, vem Josias. Vem para os braços de sua nega. Josias aproxima-se de Zenilda. Zenilda está sentada em um canto da gruta. Josias senta-se ao lado de Zenilda. Eles beijam-se na boca, trocam carícias e deitam-se agarradinhos. Josias e Zenilda dormem agarrados. UM MORCEGO SAI VOANDO PARA FORA DA GRUTA. ATENÇÃO: HÁ CONTINUIDADE DE AÇÃO EM 36.9 SEQUÊNCIA 36.9 – EXT./NOITE.GRUTA. MATO. TRILHA. Lua cheia. Josias e Zenilda estão dentro da gruta. Josias dorme. Zenilda levanta-se de mansinho, sai da grupa e anda por entre o mato. Trilha. Claridade da lua cheia. Zenilda segue uma trilha. Na trilha há três cavaleiros em circulo, conversando. Zenilda sai da trilha e esconde-se no mato. Zenilda joelha-se no mato e escuta o diálogo dos três cavaleiros. UM DOS CAVALEIROS O negro é mesmo um idiota, o patrão ofereceu pra ele um mundo de vantagens pra ele entregar o fazendeiro que inventou a tocaia e ele não quis. Preferiu virar bicho e sair por aí correndo pelo mato. O pior de tudo é que ele ainda levou a pobre da crioulinha que nada tem a ver com isso tudo... Mato. Zenilda à parte, ajoelhada no mato, sorri ao ouvir a conversa de um dos cavaleiros. Ela fala por solilóquio. ZENILDA Então é verdade a história que Josias contou. Vou tirar proveito nisso. Aquele fazendeiro desgraçou a minha vida e 279 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ninguém ali foi capaz de me defender, só bater com a língua, a ponto de eu ser vendida e tocada por essas bandas... Ora, vou lá viver vida de escrava, comendo sobra de comida de branco? Vou dar meus jeitos, dizem que negro não tem o que perder mesmo? Se vive, é só desgraceira; se morre, por ninguém será lembrado. Zenilda respira fundo e sai pé ante pé do esconderijo e se embrenha um pouco mais no mato denso. Ela rasga a roupa do corpo e deixando os bonitos seios desnudos. Zenilda cai de qualquer jeito no mato e grita por socorro. Os três cavaleiros escutam o grito de socorro de Zenilda. Eles saem circulando pelo mato. UM DOS CAVALEIROS O barulho vem daquele lado, é um grito de uma mulher... OUTRO UM DOS CAVALEIROS Ichi, só falta ser a negrinha que o danado roubou da fazenda... Zenilda sai correndo do mato e vai em direção aos três cavaleiros. Trilha. Os tr~es cavaleiros estão parados na trilha, olhando para um lado e outro. Zenilda aparece de repente entre os três cavaleiros. Zenilda chora, tapando os seios com as mãos. ZENILDA Socorram-me senhores, socorram-me. Fui roubada da fazenda de Dom Miguel, por um negro maldito, perigoso. Ele deixoume desmaiada e só agora acordei espantada com o breu da noite e os pios das corujas. Graças a Deus que vossemecês estão por cá para me socorrem. Vejam senhores, o que o maldito fez comigo. Danou-me toda... Os três cavaleiros colocam Zenilda na garupa de um dos cavaleiros. 280 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior UM DOS CAVALEIROS Vá urgente para a fazenda de dom Miguel e entregue a rapariga lá. Ela precisa de alguns cuidados. Avise para dom Miguel que já estamos nos rastros do negro... O Cavaleiro sai a galope levando Zenilda na garupa do cavalo dele. Os outros cavaleiros embrenham-se na mata densa iluminada pela lua cheia. CORTA PARA Fazenda de Dom Miguel. Dia. Sala da casa da fazenda. Poltronas. Zenilda, bonita e muito bem vestida, está sentada ao lado de dom Miguel. DOM MIGUEL Então a moça vai nos ajudar a chegar até aos culpados da tocaia armada, qual matou o meu pai, meus irmãos e alguns de meus servos? ZENILDA Ajudarei, claro, mas desde já aviso que aquele povo é muito perigoso, sinhozinho... DOM MIGUEL Não mais do que os meus homens. Tenho um exército, se precisar. Vou acabar com todos eles e depois, se vós mercê ajudar-me mesmo, dar-lhe-ei como prêmio a fazenda e todos os escravos que sobreviveram no massacre. ZENILDA (arregala os olhos para dom Miguel com alegria) Trato é trato! Qual será a minha garantia? DOM MIGUEL Toda. Não sou homem de jogar palavras ao vento. Falo e cumpro o que falo. Terá a fazenda e tudo lavrada em teu 281 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior nome. Vós mercê será a crioula rica, talvez a primeira em toda a colônia. ZENILDA (fala por solilóquio) Chegou a minha vez, senão por Deus, pelo diabo, entrego a minha vingança. Nhô Arigó e sinhá Safira irão beber da minha amarga vingança... CORTA PARA SEQUÊNCIA 36.10 – EXT./INT. NOITE. FAZENDA PARAÍSO. VÁRIOS. Fazenda Paraíso. Madrugada. Dom Miguel e sua tropa, de aproximadamente vinte homens, invadem a fazenda Paraíso. Eles ateam fogos nas senzalas. Escravos saem correndo de um lado para o outro. O Casarão é cercado, tiros de bacamartes estouram pelos ares. Arigó está no palheiro, nu, deitado com uma mulata e ao ver o fogo espalhando-se pelo palheiro, ele sai correndo, tentando vestir as roupas. Uma tocha de fogo cai nos pés de Arigó. Arigó tenta vestir a roupa. A roupa de Arigó cai no fogo. Arigó sai correndo, apenas vestido com as roupas de baixo. Safira, a esposa de Arigó, acorda com o barulho infernal e, vestida com roupas de dormi, corre para a varanda, gritando por socorro. Ela recebe um tiro no peito e cai morta no chão. Jera e algumas mulheres negras sobem os degraus da escada do lado de fora para refugiarem-se na varanda do casarão, mas os tiros acertam algumas delas. Jera morre, cambaleando-se nos degraus. Homens negros fogem pelos bananais, outros pegam a estrada e são cercados por homens brancos de om Miguel, quais acabam de chegar na fazenda Paraíso trazendo mais munições. Varanda da fazenda. Bacamartes. TRÊS HOMENS BRANCOS, da fazenda Paraíso, com bacamartes nas mãos, atiram-se contra os homens de dom Miguel, mas logo cessam-se os tiros, porque acaba a munição. TRÊS HOMENS BRANCOS, da fazenda Paraíso, saem correndo e são atingidos pelas costas ao entrarem na casa. Cavalos, burros, éguas, ovelhas e porcos se espalham no terreiro da 282 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior fazenda, correndo, espantados. Um cachorro ataca um homem de dom Miguel, que sai correndo e sobe na cerca de um curral. Amanhece o dia, Jucá e Raimundo encontram Arigó no bananal da fazenda. Arigó está ridiculamente vestido em trajes de roupa de baixo. Bacamarte apontado na cabeça de Arigó. Jucá e Raimundo miram para Arigó a enorme bacamarte. Arigó treme confuso e com medo. ARIGÓ Eu sou o dono da fazenda. O que estão fazendo, por que estão destruindo tudo. Vossemecês atendem ordem de quem? JUCÁ Cale a boca, sô. As explicações devem ser dadas ao nosso patrãozinho... ARIGÓ Patrãozinho? Quem é esse patrãozinho que está a desgraçarme? Raimundo corre até um dos cavalos. Cavalo. Alforje amarrado na sela do cavalo. Raimundo pega o alforje, abre e tira de dentro dele uma corda. Raimundo corre até onde está Arigó e amarra-lhe as mãos com a corda. RAIMUNDO Hoje é dia de prestação de contas. Como sabe, tem o dia da caça e o dia do caçador... Fazenda Paraíso. Dia. Porão do casarão da fazenda Paraíso. Chão do porão. Arigó está caído no chão do porão. Mãos e pés de Arigó, atados. Dom Miguel e Raimundo chutam Arigó violentamente. Arigó está com a boca e nariz sangrando. DOM MIGUEL Então vós fostes o responsável por toda desgraça acometida à minha família... 283 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ARIGÓ Não sei do que vossemecê está falando... DOM MIGUEL Sabes, claro que sabes. Não fostes vós que armastes a tocaia, para sacar a nossa riqueza e vitimar vários dos nossos homens? ARIGÓ Não sei mesmo do que vossemecê está falando, homem. Sou gente de paz, vivo aqui do meu trabalho, nunca roubei, matei ou preparei tocaia alguma... DOM MIGUEL Pensas que irás me convencer de tua honestidade? Não sei por que ainda estou a dialogar contigo. (coloca a mão na cabeça para repor a consciência) Eu já deveria ter feito, contigo, o que já fiz com todos, mandar-te para o inferno... (dá um chute em Arigó) Desgraçado, a mocinha estava certa, não deves valer uma roupa gasta... Porta do Porão. Jucá entra pela porta do porão e dirige-se a dom Miguel JUCÁ A maioria dos escravos que sobreviveram foram capturados, dom Miguel. Eles estão todos amarrados e estamos aguardando ordens de nhozinho... DOM MIGUEL Diga aos homens que levem todos para a minha mineradora. Deixá-los-ei lá para pensar depois o que farei. Eles agora pertencerão a Zenilda... 284 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Arigó abaixa a cabeça. Jucá sai para fazer cumprir a ordem de dom Miguel. Arigó fraco e cansado arregala os olhos assustados para dom Miguel. ARIGÓ Zenilda, o que essa negra tem a ver com esta desgraceira toda? DOM MIGUEL (ri surpreso) Então conhece a Zenilda, não conhece? ARIGÓ Esta crioula pertenceu a mim, eu a vendi depois que... Dom Miguel dá um chute em Arigó. Arigó cai do tamborete gemendo. Raimundo aponta a bacamarte em direção a Arigó. Dom Miguel olha para Raimundo. Raimundo prepara a bacamarte para atirar em Arigó. Dom Miguel grita. DOM MIGUEL Não atire, não atire. Creio que a minha vingança está no fim. Sairei daqui, agora, vós mercê não se arreda o pé deste recinto. Olhos abertos dia e noite, até quando eu retornar-me, cá. Dom Miguel sorri. Par de luvas marrom em cima de um velho tamborete. Dom Miguel pega o par de luvas marrom. Ele veste as mãos com o par de luvas marrom. Porta do porão. Dom Miguel alcança a porta e sai a passos rápidos. Raimundo senta-se no velho tamborete. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 106.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. 285 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Capela da fazenda. Josias e Dirceu estão sentados em um canto, no chão da capela. JOSIAS Como a Zenilda, infelizmente, aproveitou-se de todo o aparato para vingar-se do fazendeiro causando desgraça à vida daquelas pessoas inocentes, Dom Miguel deu jeito de arrumar uma papelada, fazendo o fazendeiro assinar. A fazenda Paraíso passaria dali por diante a pertencer a Zenilda... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 36.11 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. FAZENDA PARAÍSO. PORÃO DO CASARÃO DA FAZENDA. Flash back – Relato de Josias. Porão do casarão. Mãos vestidas com um par de luvas marrom segurando um bacamarte. Tamborete. Arigó sentado em um tamborete com as mãos e os pés amarrados. Bacamarte apontado em sua direção. Dedos. Aperto do gatilho da bacamarte. Tiro certeiro no peito de Arigó. Arigó cai morto no chão. Dom Miguel com a bacamarte na mão. Dom Miguel coloca a bacamarte no chão e sorri satisfeito. DOM MIGUEL Pronto! Está tudo resolvido. Se agi certo ou errado, a questão do meu orgulho está na vingança. Vinguei o mal feito por ele à minha família. DOM MIGUEL (cai de joelhos perto do cadáver de Arigó) Agora é só entregar o corpo desse traste aos vermes. VOLTA PARA 286 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 106.2 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. Capela da fazenda. Josias e Dirceu estão sentados em um canto, no chão da capela. JOSIAS E aconteceu toda a desgraceira, sô!!! Não é que dom Miguel, o príncipe do diabo, matou o dono da fazenda Paraíso e entregou tudo aquilo nas mãos da Zenilda... A negra está lá, vivendo o direito que Deus deu aos brancos... DIRCEU Meu Deus, que história mais dramática Josias? Então Zenilda aproveitou-se de toda a esperteza para vingar dos donos da fazenda Paraíso, matando a todos e tornando-se dona da fazenda... SEQUÊNCIA 107 – INT./EXT./NOITE/DIA. RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE JOSIAS. FAZENDA Quarto de Josias. Josias está deitado na cama, com febre. Inácia molha um pano numa bacia, aplicando compressas na testa de Josias. Josias sofre uma terrível convulsão. Sebastiana que estava encostada na porta, sai do quarto gritando por socorro. Dirceu, Miliquito e Josias entram correndo no quarto de Josias. Dirceu e Miliquito erguem a cabeça de Josias. Josias para de sofrer a convulsão e entra em estado de coma. Farias olha para Josias e balança a cabeça negativamente. FARIAS Escapa não. Depois desse tremelico todo é morte certa. Porta do quarto. Sebastiana está na porta do quarto. Sebastiana faz o sinal da cruz na testa. Cirilo e Ambrósio, próximos a cama de Josias. 287 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cirilo entra no quarto apertando o chapéu no peito. Josias. Olhos arregalados de Josias. Ele tenta respirar com dificuldades. Ambrósio aparece na porta com uma vela acesa. Ele aproxima-se de Josias e com a vela acesa na mão e segura-a entre as mãos de Josias. Reflexo da luz da vela no rosto de Josias. Dirceu olha para Josias e fica em um fechar e abrir de olhos. Lágrimas rolam do rosto de Dirceu. DIRCEU A vida Deus dá e Deus tira. Quem somos nós para ir contra a vontade dele. Todo o mistério da vida se resume em alfa e ômega, o princípio e o fim. Se é chegada a tua hora, amigo Josias, sejas corajoso, não tenhas medo, porque é somente através da morte que completamos em Deus a nossa plenitude. Josias abre os olhos e olha para Dirceu. Ele balança a cabeça levemente, respira três vezes com dificuldade e morre. Dirceu balança a cabeça negativamente. Ambrósio coloca a vela acesa em uma pequena mesa que há no canto do quarto e volta até Josias para fechar-lhe os olhos. DIRCEU Ad infinitum, Josias. A Deus compete dar-lhe a vida eterna. Dirceu afasta-se da cama de Josias e olha para Farias e Cirilo. Farias e Cirilo estão assustados. Chapéus amassados sobre os peitos de Cirilo e de Farias. Ambrósio e Sebastiana saem do quarto. DIRCEU Agora meus amigos, levaremos o corpo de Josias para a capela e providenciaremos o enterro dele amanhã bem cedo. Encomendaremos o corpo dele ao pó de onde viemos. SEQUÊNCIA 108 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CEMITÉRIO DO PÉ DA SERRA. 288 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Manhã. Cemitério do pé da serra. Enterro de Josias. Rede com o corpo de Josias. Miliquito e Cirilo carregam a rede com o corpo de Josias. TODOS da fazenda Ribeirão do Meio acompanham o enterro. Cova aberta. Rede com o corpo de Josias descendo à cova aberta. Terra deslizando sobre a cova. Sepultura de Josias. Hipólito finca uma cruz na cabeceira da sepultura de Josias. Todos fazem o sinal da cruz. DIRCEU (VOICE OVER) A morte de Josias causou lamentos a todos nós. Enterramos o corpo dele na manhã do dia seguinte no cemitério do pé da serra. Hipólito não se esqueceu de colocar a cruz na sepultura dele. A cruz foi confeccionada pelo próprio Josias, enquanto ele ficava amuado na capela. A fazenda, por algumas semanas, tornara-se triste. SEQUÊNCIA 109 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAMPINAS. CHIQUEIRO DAS OVELHAS. Tarde. Campinas. Dirceu montado no cavalo galopa pelas campinas. Chiqueiro das ovelhas. Alceu, Endimião e Trácio cuidam das ovelhas. Dirceu aproxima-se dos três pastores e fica na cerca observando o rebanho. Cavalo de Dirceu amarrado numa árvore. Enorme pedra. Dirceu, Alceu, Endimião e Trácio conversando sentados na enorme pedra. ALCEU Nhozinho já deve de sabê que na fazenda acima, perto do rio Ribeirão do Meio, já mora um pessoá. E quase todas as tardes, três mocinhas vêm até o riacho pra tomá banho... TRÁCIO E elas fazem um barulhão, parecendo um bando de piriquito quando se encontra num galho de uma mangueira... DIRCEU 289 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior (surpreso) E quem são as moças? São bonitas? São filhas do proprietário da nova fazenda acima da nossa? ALCEU Eram duas mocinhas brancas e uma da minha cor... DIRCEU (fala por solilóquio) Seria a dona Marília, com as suas amigas, desfrutando nestas terras o meu pedacinho do céu? SEQUÊNCIA 110 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VARANDA DO CASARÃO. VÁRIOS. Tarde. Dirceu está deitado na rede da varanda do casarão. Ele fecha os olhos e começa a sorrir. CORTA PARA Fantasia ou pensamento de Dirceu. Campo florido. Marília está com uma cesta de flores correndo pelo campo florido. Árvore. Dirceu escondido atrás da árvore, observando Marília correndo pelo campo florido. Marília encontra-se com Dirceu próximo a árvore. Marília e Dirceu caem no relvado e beijam-se. Árvore, casal de pombos e de aves, na árvore. Rio, casais de peixes nadando no rio. Mato denso, casal de serpente, de onça, de tigre e de leão, no mato denso. Relvado. Marília e Dirceu estão sentados no relvado. DIRCEU (VOICE OVER) Quem sabe Marília não entregaria a alma à Natureza, quando souber buscar lições de vida nela? A natureza é sábia e sempre nos ensina lições maravilhosas, principalmente as lições de amor. Se Marília observar a natureza com a percepção do verdadeiro amor verá que todos ali também se amam: as 290 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior castas pombas, as aves, os peixes, a serpente venenosa, a onça, o tigre e o leão... Somente Marília, na lei da natureza, teria isenção? Lembrei-me das grandes deusas do Olímpio, principalmente de Diana a suspirar de amor por Endimião. Não, Marília, tu não queixarás deveras pelo amor que há de abrasar em teu corpo, cuja inspiração virá do céu, da terra ou do palácio dos sábios e generosos deuses. VOLTA PARA Varanda do casarão. Rede balançando. Dirceu levanta-se rapidamente da rede, senta, coloca as mãos na cabeça e pensa. DIRCEU (VOICE OVER) Marília que esperasse por mim, pois, eu estava disposto a cercá-la por todos os lados. O meu coração pedia isso e jamais eu o negaria. SEQUÊNCIA 111 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO. Tarde. Dirceu montado em seu cavalo marcha até a fonte do ribeirão. Fonte do ribeirão. Dirceu pula-se do cavalo e amarra-o no tronco de uma árvore. Margens da fonte do ribeirão. Folhagens nas margens da fonte do ribeirão. Dirceu entre as folhagens das margens da fonte do ribeirão. Dirceu espia a fonte do ribeirão com atenção. Marília, Laura e Rosa aparecem na fonte do ribeirão. Rosa a aia de Marília, senta-se sobre a relva, ajeitando uma cesta de piquenique. Laura, ao avistar a fonte, livra-se dos sapatinhos de couro e senta-se numa enorme pedra à beira do regato. Pés delicados, de Laura, dentro da água da fonte. Marília, toda barulhenta e marota, livra-se das roupas de cima e mergulha na água da fonte, com a combinação. LAURA Marília, tu pareces uma tresloucada, onde se viu uma moça elegante cometer tal ação? 291 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Pensas que venho aqui, para olhar a fonte? Ora, Laura, quero refrescar-me por inteira... Folhagens nas margens da fonte do ribeirão. Dirceu entre as folhagens, observam Marília, Laura e Rosa. Dirceu entre as folhagens da fonte do ribeirão escuta Laura pronunciar o seu nome. Dirceu tira o chapéu e beija-o. LAURA Depois dizias ao tal Dirceu que jamais moraria numa roça ou fazenda... MARÍLIA (bate as mãos na água cristalina da fonte) Eu lá sabia destas delícias, Laura. Marília nada na fonte. Ela atira água em Laura e dá risadas. Rosa estende um pano branco na relva, abre a cesta de piquenique e retira dela alguns talheres, guloseimas e potes de sucos. Rosa levanta-se e vai até a margem da fonte chamar por Marília e Laura. Marília atira água em Rosa. Rosa sai correndo da margem da fonte. Relvado. Marília, Laura e Rosa lancham sobre o relvado. DIRCEU (VOICE OVER) Marília mergulhava na fonte, jogava água nas companheiras e nadava feito uma sereia no pequeno lago azul e cintilante. Eu, verve, como um desertor dos conselhos de Ulisses ouvia o canto fatal da sereia. Marília não cantava, mas os seus gritos causavam-me uma sensação sinestésica de uma cantiga suave e melódica. SEQUÊNCIA 112 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO. 292 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Tarde. Fonte do ribeirão. Dirceu pula-se do cavalo e amarra-o no tronco de uma árvore. Margens da fonte do ribeirão. Folhagens nas margens da fonte do ribeirão. Dirceu entre as folhagens das margens da fonte do ribeirão. Dirceu espia a fonte do ribeirão com atenção. Marília, Laura e Rosa estão na fonte do ribeirão. Laura está sentada na relva lanchando. Árvore na beira da fonte. Galho da árvore. Marília e Rosa escalam um galho da árvore. Cobra no galho da árvore. Marília vê a cobra e solta um grito. MARÍLIA Meu Deus, uma serpente... Uma serpente Rosa... ROSA (segura firme em um dos galhos da árvore) Tô vendo não, dona Marília, deve ser coisa da cabeça da sinhazinha... Galho da árvore. Marília fica imóvel. Cobra. Rosa também vê a cobra. ROSA Meu Deus, uma anaconda enorme... Dona Marília, a sinhazinha tem razão. Vamos ficar quietinhas para ela não atacar a gente... Rosa e Marília gritam de pavor. MARÍLIA Socorro, Laura. Socorro, uma cobra no galho da árvore onde estamos... Relvado. Laura põe-se em pé, no relvado e corre para a direção da árvore. LAURA Pulam, meninas, pulam! Pulam na água da fonte. 293 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cobra. Marília e Rosa estão imobilizadas no galho da árvore. Marília olha para a água da fonte e para Laura. A cobra põe a língua para fora. MARÍLIA (gritando) Socorro, Lauraaaaa!!! A cobra vai nos picar... Folhagens nas margens da fonte do ribeirão. Dirceu entre as folhagens das margens da fonte do ribeirão escuta o grito de Marília. Dirceu larga o esconderijo, monta no cavalo, dá meia-volta e chega na fonte do ribeirão. Árvore. Marília e Rosa em um dos galhos da árvore, gritando desesperadas. Cobra enrolada em uma ponta do galho, abaixo do galho em que está Marília e Rosa. Laura aflita, correndo de um lado e de outro da fonte. Cavalo. Dirceu chega na fonte montado em seu cavalo. Laura vê Dirceu e solta um grito grave e tênue. DIRCEU Eu estava andando pelas trilhas ao lado e escutei algum pedido de socorro. Foi alguém daqui, foi... LAURA Sim, foi daqui... Laura aponta para a árvore em que está Marília e Rosa. LAURA Uma cobra, uma cobra naquela árvore, querendo picar as minhas amigas... Árvore. Dirceu olha para a árvore. Marília e Rosa estão imobilizadas devido ao choque. A cobra continua pendurada no mesmo galho. Dirceu vai até a árvore. Dirceu sobe na árvore e tira da cintura uma faca. Cobra. Dirceu dirige-se até a cobra e num só golpe, corta a cobra ao meio. Marília faz cara de nojo, fitando Dirceu. Rosa alcança uma galha abaixo e pula-se dela. Rosa cai no chão. Laura corre para socorrer Rosa. Galho da árvore. Dirceu ajuda Marília a descer da árvore. Dirceu escuta 294 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior barulho de passos de cavalos. Dirceu monta em seu cavalo e saí galopando pelo mato adentro. Pôr- do-sol. SEQUÊNCIA 113 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CURRAL DA FAZENDA. Curral. Dirceu e Hipólito estão no curral arrumando umas cercas. Ambrósio chega no curral com um envelope na mão. Ambrósio entrega o envelope para Dirceu. AMBRÓSIO Quem mandou disse que é urgente... DIRCEU (olha para o envelope) Uma carta? Dificilmente eu recebo uma carta. Envelope nas mãos de Dirceu. Ele abre o envelope e retira de dentro dele um pequeno bilhete. Ele abre o bilhete, afasta-se um pouco de Ambrósio e lê . Olhos de Dirceu correndo sobre as linhas escritas do pergaminho. MARÍLIA (LEITURA DA CARTA EM OFF) Dirceu, perdoai-me se o magoei quando critiquei a minha amiga sobre a vida do campo. Deus é testemunha do quanto estou gostando da vida cá. Não tenho como compará-la com a da cidade. Quando naquela tarde você apareceu na fonte do ribeirão para salvar a mim e a minha criada Rosa, daquela terrível serpente, nem imagina o quanto fiquei feliz. Quero vêlo, urgente, na fonte.Sua confusa e admiradora, Marília. SEQUÊNCIA 114 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO. 295 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Tarde. Fonte do ribeirão. Relvado. Dirceu e Marília estão na fonte do ribeirão, sentados no relvado, frente a frente, conversando. DIRCEU (VOICE OVER) Marília estava ali, na fonte, só, sem as suas companheiras vesperais. Lá, sentados no relvado, conversamos bastante. Nós falamos da vida da cidade, do campo e até mesmo da possibilidade de nos conhecermos melhor. Percebi que conversávamos com cuidado para não tocarmos na maldita promessa do pai dela, em casá-la com o italiano que, nem sequer, conhecia a nossa colônia. Dirceu e Marília sentados no relvado, frente a frente. MARÍLIA Dirceu. Como e onde vós mercê achou aquele leque, qual entregaste a mim, em Mariana? DIRCEU Marília, minha doce Marília, se isto lhe afugenta o espírito, porque não contá-la a verdade. O leque encontrava-se com o comerciante de Vila Rica, Zé Tomázio. Segundo ele, a sinhazinha o esqueceu lá, quando foi com a Rosa comprar alguma coisa. Daí, como ele me descobriu impressionado e enfeitiçado pela sua beleza, ele entregou-me o leque para que eu inventasse alguma história afim de aproximar-me de vós mercê.Zé Tomázio agiu a mando do nosso cupido, ferindonos com o seu arco e carcás com setas para despertar amor e paixão em nossas almas. MARÍLIA Eu havia procurado muito aquele leque. Eu jamais poderia perdê-lo. O leque pertenceu á minha senhora avó materna, depois à senhora minha mãe. As duas morreram e, porém, o leque, acabou ficando comigo... 296 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Então as letras gravadas no leque são da senhora sua avozinha? MARÍLIA Sim, as letras góticas "AM", gravadas a fogo, eram as iniciais do nome composto da senhora minha avó, "Ana Maria”. Foi ela quem sugeriu ao meu pai o meu nome de batismo: Marília! DIRCEU Não haveria de existir outro nome mais bonito. Marília. O seu nome, ao mesmo tempo em que lembra o mar, lembra-se também de uma ilha. Desta forma tu és Marília cercada de amigos por todos os lados. Dentre esses amigos, queira a mim, Marília, como o seu namorado. Relvado. Dirceu põe-se pé no relvado. Dirceu pega as mãos de Marília e a levanta. Dirceu passa as mãos na cintura de Marília e beija-a. DIRCEU Há ali uma frondosa árvore de carvalho. Vamos, pois, gravar os nossos nomes no tronco dela. (tira uma faca da cintura) MARÍLIA (tira a faca das mãos de Dirceu) Dê-me cá este cinzel de prata, Dirceu. Creio que serei bem mais romântica que vossa senhoria... Frondosa árvore de carvalho. Marília corre até a árvore. Dirceu corre atrás de Marília. Tronco da frondosa árvore de carvalho. Marília risca o tronco com a faca, tatuando nele um enorme coração. Dirceu toma a faca de Marília e risca no centro do coração as letras iniciais do nome de Marília e dele. Marília e Dirceu dão risadas. Dirceu guarda a faca na bainha da cintura e abraça Marília. Dirceu e Marília beijam-se. 297 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Dirceu, o nosso romance será um segredo a ser compartilhado apenas com a natureza. Marília abraça Dirceu fortemente. Marília foge dos braços de Dirceu. Relvado. Marília corre e senta-se no relvado. Dirceu anda a passos rápidos e senta-se no relvado, ao lado dela. Eles deitam-se lado a lado e beijam-se romanticamente. ÁRVORE. CASAL DE PASSARINHOS BATEM OS BIQUINHOS UM NO OUTRO EM CIMA DE UM DOS GALHOS DA ÁRVORE. CAPÍTULO 7 SEQUÊNCIAS 115-136 Personagens deste capítulo: Dirceu Marília Alceu Endimião Trácio Rosa Alguns homens negros (fazenda de dom Manuel) Vívila Raimundo Sobreiro Ianaiá Dom Manuel (morto) Zé da Viúva Pessoas (velório) Dona Berta Dona Inácia (tia de Marília) Farias Padre Rocha Colotino Durães Sebastiana Miliquito Hipólito 298 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cirilo Quitéria Inácia Eulina Estela Antenor As duas filhas e o filho de Antenor e Estela Sales Amarílis Escrivão (relato de Marília) Farias Ambrósio SEQUÊNCIA 115 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO. Tarde. Fonte do ribeirão. Marília está com os pés tocados na água da fonte do ribeirão. Dirceu está perto do cavalo. Dirceu abre um alforje que está na sela do cavalo, enfia a mão no alforje e pega um pequeno objeto. Dirceu aproxima de Marília e senta-se ao lado dela, na fonte do ribeirão. DIRCEU Marília, por favor, fecha os teus olhos e abra as tuas as mãos. Eu quero fazer-te um presente... Marília fecha os olhos e abre as mãos. Dirceu coloca nas mãos de Marília uma pequena pepita de ouro. DIRCEU Abra-te os olhos e veja! Este é o meu presente do nosso primeiro encontro... MARÍLIA (abre os olhos e vê em suas mãos a pequena pepita de ouro) Uma pepita de ouro! 299 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Tenho tantas outras pepitas iguais a essa em casa, presentes do senhor meu pai. MARÍLIA Dirceu, fecha-te os olhos e abra-te as mãos. Eu quero fazer-te um presente... Dirceu fecha os olhos e abre as mãos. Marília coloca nas mãos de Dirceu a pequena pepita de ouro, ganhada por ele. MARÍLIA Abra-te os olhos e veja! Estou devolvendo-lhe o tal presente. Dirceu abre os olhos e vê em suas mãos a pequena pepita de ouro. DIRCEU (um pouco sem graça) Tu não gostaste do presente, Marília? MARÍLIA Não é questão de gostar ou não gostar, Dirceu. É que eu não ligo com joias, ouro ou quaisquer dessas coisas que geram a cobiça humana... Tudo o que eu quero é ser feliz, independentemente de qualquer riqueza. MARÍLIA (aproxima-se um pouco mais de Dirceu) Venha, pegue-me nos teus braços e me beija, cá, seremos presentes um do outro. Pepita de ouro na mão de Dirceu. Dirceu abre a mão e olha a pepita. Margem da fonte do ribeirão. Água mansamente a correr próxima à margem da fonte do ribeirão. Dirceu atira a pepita de ouro na margem da fonte do ribeirão. Dirceu abraça Marília e ambos beijam-se. 300 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Pareces um louco. Por que jogaste a pepita de ouro na margem da fonte, Dirceu? DIRCEU Eu não necessitava daquela pedra de ouro e nem das outras que eu possuo na fazenda, Marília. Saiba, pois, que a maior preciosidade em toda a minha vida eu havia conquistado nesta tarde, cá, na fonte. Esta preciosidade é vós mercê, dona Marília. Água da fonte do ribeirão corre mansamente. Marília e Dirceu beijam-se loucamente. TARDE CAINDO. UMA PASSARADA DE AVES RECOLHE EM SEUS NINHOS. SEQUÊNCIA 116 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Colinas verdejantes. Dirceu e Marília andando a cavalo pelas colinas verdejantes. Cachoeiras. Dirceu e Marília banhando nas cachoeiras. Chiqueiro das ovelhas. Dirceu, Marília, Alceu, Endimião e Trácio correndo atrás das cabras. Dirceu sentado na grande pedra rindo de Marília. Marília acariciando um filhotinho de uma ovelha. Pequena choça ou cabana. Interior da pequena choça ou cabana. Rede. Dirceu e Marília estão dentro da pequena choça ou cabana, deitados na rede. MARÍLIA Podemos casar e morar nesta casa, Dirceu... DIRCEU Nesta casa? Chama-te esta choça de casa? Aqui, nada mais é que um lugar de descanso dos meus três pastores... Agora, se 301 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior quiseres torná-la o lugar dos nossos encontros, posso melhorá-la de zero a mil... MARÍLIA Não, não quero que faças nada nela. Esta casa ou choça, conforme disse vós mercê é bonita por ser assim mesma. Nada nela impede de nos torná-la um dos nossos locais de encontro. O nosso romance será um segredo a ser compartilhado apenas com a natureza... DIRCEU Não temas sermos descobertos pelo senhor vosso pai? Dom Manuel parece um homem bem arredio, ainda mais que ele está a encomendar-lhe ao tal italiano... MARÍLIA Tenho tomado minhas providências, Dirceu. Se eu precisar de alguma emergência, a Rosa estará pronta para ajudar-me a compor algumas mentirinhas... DIRCEU E queres mentir ao senhor vosso pai, por longo tempo? MARÍLIA O tempo que for necessário para a efetivação do nosso namoro. REDE BALANÇA. DIRCEU E MARÍLIA BEIJAM-SE NA REDE. SEQUÊNCIA 117 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Legenda: "Dias depois, outras tarde..." 302 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Ovelhas. Chiqueiro das ovelhas. Enorme pedra. Alceu e Rosa sentados na enorme pedra. Cavalo. Dirceu coloca Marília na garupa do seu cavalo. Campos. Dirceu e Marília cavalgam pelo campo. DIRCEU (VOICE OVER) De vez em quando Rosa vinha em companhia de Marília e nos deixava admirados ao mostrar-se interessada por Alceu. Os dois sentavam-se na enorme pedra e namoravam fingindo vigiar as ovelhas, enquanto Marília e eu corríamos pelos campos em busca de aventuras. Tarde Fonte do ribeirão. Relvado. Dirceu e Marília estão sentados sobre o relvado. Água da fonte do ribeirão. Corça selvagem bebendo água na fonte do ribeirão. Marília vê a corça selvagem bebendo água na fonte do ribeirão e põe-se de pé. Dirceu assusta-se. DIRCEU O que aconteceu, Marília! Por que puseste de pé, tão rápido? Dirceu põe-se de pé e olha por todos os lados da fonte do ribeirão. Olhos de Marília na corça selvagem bebendo água na fonte do ribeirão. MARÍLIA Uma corça, Dirceu, vede, cá na fonte, bebendo água. Vamos fazer como os bons caçadores? Pegaremo-la. Marília corre para a fonte atrás da corça. Dirceu também corre atrás de Marília. A corça foge soltando pinotes. Dirceu cai deitado no relvado, dando risadas. Marília fica parada olhando para o local em que a corça fugiu dando pinotes. Marília, parada no relvado, olha para o local em que a corça fugiu. Marília olha para Dirceu tristemente. MARÍLIA Lá se foi a minha corça, dando pinotes pela mata densa... 303 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não se entristeça, minha Marília. Prometo que em pouco tempo terás em tuas mãos essa corça, como sua cativeira... PÔR-DO-SOL NA FONTE DO RIBEIRÃO. SEQUÊNCIA 118 – EXT./DIA. FAZENDA DE DOM MANUEL. Fazenda de Dom Manuel. ALGUNS HOMENS NEGROS trabalhando no pátio da fazenda de Dom Manuel. Alceu, no pátio da fazenda de dom Manuel, entrega para Marília a corça. ALCEU Nhô Dirceu disse que a corça é um presente dos deuses... MARÍLIA (segura a corça pela corda) Como é linda e amável! O Dirceu é mesmo um louco! Ele falou que daria a mim esta corça de presente e não é que ele cumpriu a promessa?! ALCEU A bichinha tá mansinha sinhá Marília. Ela também tá prenha... MARÍLIA A danadinha vai ser mamãe? Assim não somente cuidarei dela, como também dos filhotinhos dela... Que fofinha! Vós mercê pode ajudar-me a levar a corça até a varanda da casa? Vou pedir a Rosa para fazer-lhe companhia até que eu escreva para Dirceu um pequeno bilhete para agradecê-lo o presente. Vós mercê levará o bilhete e o entregará nas mãos do senhor Dirceu. 304 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 119 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Casa da fazenda Ribeirão do Meio. Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama lendo um bilhete. Dirceu olha para o bilhete, sorri e fala por solilóquio. DIRCEU A felicidade de Marília foi tamanha ao receber a corça, que ela pediu que eu fosse pessoalmente até a fazenda do pai dela, para que ela possa agradecer-me o presente. SEQUÊNCIA 120 – EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DOM MANUEL. VARANDA DA CASA. Fazenda de dom Manuel. Varanda da casa. Poltronas confortáveis na varanda da casa. Vívila e Rosa estão sentadas em das poltronas confortáveis na varanda da casa. Vívila está cosendo uma peça de roupa. Rosa, apenas observando a costura de Vívila. Dirceu e Marília estão sentados lado a lado, também, em uma das poltronas confortáveis na varanda. Marília atira-se nos braços de Dirceu. Vívila, de vez em quando, arregala os olhos para Marília. DIRCEU Ora, dona Marília, quem ganhou o melhor presente fui eu, onde eu poderia imaginar que a captura de uma simples corça brindar-me-ia a este encontro. Pena que o pai de vossa senhoria, o senhor dom Manuel, não esteja cá, para que possamos resolver tudo... MARÍLIA Insiste mesmo em falar com o senhor meu pai? Não deveria ainda está tão seguro. Meu pai, se conheceres o meu pai, como eu conheço, não ousaria levar em frente tal plano... 305 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Viveremos este grande amor às escondidas, na clandestinidade? Isto não fará jus a uma moça de família, a que tem um nome para se zelar... MARÍLIA Ora, meu amado Dirceu, devo primeiro pensar em mim, depois nos outros. Nunca gostei de ser uma menina mimada, a ponto de deixar nas mãos dos outros o meu destino. As leis do meu destino, caro Dirceu, estão escritas desde o princípio da minha criação e somente compete a mim, consultá-lo. O senhor meu pai, por mais que queira bancar-se o Júpiter, jamais poderá aplacar o meu destino, nem a favor dele, nem a favor do tal italiano ou de qualquer outro homem. Faço do meu coração o meu oráculo, portanto é a ele quem consulto e peço as minhas orientações. Marília atira-se nos braços de Dirceu. Vívila e Rosa arregalam os olhos para Marília. Dirceu espanta-se. DIRCEU Adverto à senhora dona Marília que se proceda, evitando aos exageros... MARÍLIA Não gostas dos meus beijos e nem das minhas carícias, Dirceu? DIRCEU Claro que sim, mas temos que respeitar a Rosa, a Vívila, a todos os serviçais da fazenda do senhor seu pai e até a nós mesmos. Além disso, a ausência também do senhor seu pai... MARÍLIA (olha para Vívila e Rosa) Vívila, Rosa, vós mercês estão vendo alguma coisa de mais? 306 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VÍVILA Não, não estou vendo nada de mais, dona Marília. Eu não sei de nada e não estou vendo nada, dona Marília. (olha para Rosa) Vossemecê está vendo alguma coisa, Rosa? Rosa fecha os olhos e balança a cabeça sinalizando um "não". Marília agarra Dirceu e dá-lhe um beijo. Rosa e Vívila dão risadas. Dirceu põese de pé. DIRCEU Creio que esteja tarde e eu preciso pegar a estrada de volta à minha fazenda... MARÍLIA Teria o senhor Dirceu coragem de nos deixar cá, sozinhas, neste fim de mundo inventado pelo senhor meu pai? DIRCEU Creio que dom Manuel logo estará por cá. Ele não pegará estrada escura... MARÍLIA Isso lá é verdade, o senhor meu pai deve chegar logo. Porque não fique conosco até que ele chegue. A sua fazenda não é tão distante e qualquer coisa, se ficar muito tarde eu peço para que Raimundo Sobreiro ou Zé da Viúva te acompanhe até a sua fazenda. Poltrona. Dirceu senta-se novamente na poltrona, ao lado de Marília. Vívila e Rosa olham para Dirceu e Marília, dando risadas. DIRCEU Tudo bem, esperamos por cá, o senhor seu pai, quem sabe hoje mesmo nós não resolvemos o nosso assunto de amor, 307 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior noivado e casamento. Façamos o senhor seu pai saber de tudo... VÍVILA A dona Marília é uma tresloucada e sem juízo, senhor Dirceu. O namoro de vossemecês não é um assunto ignorado em família, pois, tanto os criados, quanto o pai de dona Marília sabem dos seus encontros nos arredores da fazenda. DIRCEU (demonstra-se surpreso) Isso que a Vívila falou é verdade, Marília? MARÍLIA Sim, é verdade! Só que o senhor meu pai está sempre dizendo que eu não escaparei da promessa de ele fazer-me casar com o italiano. Ora essa, como pode o senhor meu pai se atrever a fazer isso? Do meu destino, cuido eu. Casarei, portanto, com quem amarei e confiarei a minha vida... Pensa que as mulheres há de ser sempre submissa aos maridos? Isto cá está mudando Dirceu. O grande exemplo do momento, para nós mulheres, é a dona Joaquina do Pompeu, que aos 11 anos era prometida de um comerciante, mas se recusa a casar-se com o noivo, declarando-se interessada por um capitão-mor, o senhor Inácio de Oliveira Campos. A vontade dela foi respeitada e ela realmente casou com o capitão-mor, em 1764. Olha só, em, ela somente tinha 12 anos de idade e o capitão 30 anos... DIRCEU Será se essa mulher seria um bom exemplo, Marília? Esta longe dos costumes da colônia que as mulheres escolham os seus maridos... MARÍLIA Então não devo casar contigo... 308 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Por que? MARÍLIA Também não escolho vós mercê? DIRCEU Ora, Marília, não vamos colocar os carros diante dos bois... Vamos respeitar as coisas do destino... Se vós mercê permitir, Marília, eu oficializarei o nosso namoro ao falar-me com dom Manuel. Quem sabe não consigo fazer com que o senhor seu pai não desista da ideia de casá-la com o italiano? Marília olha para Dirceu e dá um sorriso meio sem graça. Uma coruja pousa numa árvore próxima ao quintal da fazenda. CORTA PARA Tarde. Céu cor de rosa. Numa árvore, próximo ao quintal da varanda da fazenda de dom Manuel, está uma coruja. A coruja solta alguns piados. Marília e Dirceu cochilam-se na poltrona. Rosa levanta-se, vai até o quintal da fazenda e procura pela coruja.Vívila põe-se de pé e acompanha Rosa com os olhos. VÍVILA O que foi Rosa? Escutou algum barulho de chegada de alguém? ROSA Não, Vívila! Estou procurando pela coruja que há tempo está a me atormentar com os seus pios agourentos... VÍVILA E se encontrar a coruja, vossemecê irá matar a coitadinha? 309 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ROSA Não, mas não é nada bom quando essa ave começa a piar perto de casa. Varanda. Vívila sai da varanda e vai ao encontro de Rosa. Rosa estende os braços para Vívila. ROSA Olha cá, o meu braço. Ele está todo arrepiado. Não estou gostando dos piados dessa coruja, parece agouro, sinal de notícia ruim... VÍVILA Ora Rosa, isso é porque vossemecê sente gastura do pio da coruja, só isso. ÁRVORE. A CORUJA, NA ÁRVORE, SOLTA ALGUNS PIADOS. Varanda. Poltrona com Dirceu e Marília. Marília abre os olhos. Marília depara-se com o ocaso. Marília cutuca Dirceu. Dirceu acorda. Marília e Dirceu põem-se de pé. Cancela da fazenda de Dom Manuel. Um cavaleiro aparece na entrada da fazenda, galopando apressadamente. Vívila aponta o cavaleiro para dona Marília. Marília dá três ou quatro passos para frente, observa o cavaleiro e reconhece-o. O cavalheiro é Raimundo Sobreiro. MARÍLIA É o Raimundo Sobreiro... VÍVILA Sozinho! E dom Manuel? DIRCEU (Dirceu dá alguns passos para frente e aproxima-se de Marília) Decerto dom Manuel resolveu pernoitar em Vila Rica... 310 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA (fala tranquilamente) Ora, o Raimundo Sobreiro veio à frente e o papai e Zé da Viúva, decerto, estão por chegar. ROSA Ai meu Jesus, espero que isso não tenha a ver com os piados da coruja... Marília abraça Dirceu pela cintura. Cancela da fazenda. Raimundo Sobreiro abre a cancela da fazenda e olha para o quintal da fazenda. Ele vê Marília, Vívila, Rosa e Dirceu. RAIMUNDO SOBREIRO Nhô Dirceu! É o nhô Dirceu, que bom que vossemecê está aqui... DIRCEU Sim, sou eu Raimundo Sobreiro... Por que vens com tanta pressa? E Dom Manuel? Estamos aguardando por Dom Manuel. RAIMUNDO SOBREIRO Dom Manuel, ah, sim... Então, venha cá... Raimundo Sobreiro olha para Marília, tira o chapéu da cabeça e dá um sinal para que Dirceu se aproxime dele. Raimundo Sobreiro salta do cavalo. Dirceu sai da varanda da casa e aproxima-se de Raimundo Sobreiro no quintal de frente da fazenda. Raimundo Sobreiro fala em voz baixa, quase sussurrando. RAIMUNDO SOBREIRO O pai da sinhá Marília morreu agora a tarde, depois do almoço, em Vila Rica. É verdade verdadeira, sinhô Dirceu. O 311 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior povo comenta que foi fraqueza no coração. Vim buscar a sinhá e algumas criadas a pedido do padre Rocha. DIRCEU (assusta e arregala os olhos para Raimundo Sobreiro) Dom Manuel morreu? Levaremos a sinhá Marília para Vila Rica, daqui a pouco. Por enquanto, não conte nada a ela nem a ninguém. Quando chegarmos à cidade, daremos a ela e a todos que acompanhá-la, a triste notícia. Raimundo Sobreiro faz um sinal de "sim" como a cabeça. Raimundo Sobreiro passa cabisbaixo por Marília, Rosa e Vívila. Marília atalha Raimundo Sobreiro. MARÍLIA Raimundo, por favor, não me esconda nada. Aconteceu alguma coisa com o senhor meu pai, ou com o Zé da Viúva? Por que eles não vieram com vós mercê? Raimundo Sobreiro faz um sinal de "não" com a cabeça. Raimundo Sobreiro vai até a varanda e entra na casa. Marília corre para os braços de Dirceu. MARÍLIA Conte-me Dirceu, o que foi que o Raimundo disse a respeito do senhor meu pai. Conte-me, por favor, não me esconda nada... Dirceu coça a cabeça sem saber o que falar. Marília olha apreensiva para Dirceu. Varanda. Ouvem-se gritos na varanda, vindo do interior da casa. Os gritos são de Ianaiá. Ela sai da casa para a varanda. Vívila corre para socorrer Ianaiá. Ianaiá corre até onde está Marília. Ela chora e abraça Marília. 312 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior IANAIÁ Sinhazinha há de ter nossos cuidados, há, sim... Pode ficar tranquila, Deus do céu sabe o que faz... Ianaiá abraça Marília. Dirceu tenta tirar Marília dos braços de Ianaiá. MARÍLIA Conte-me Ianaiá, o que aconteceu? Raimundo Sobreiro contou-lhe alguma coisa sobre o senhor meu pai... ROSA Eu tava certa de que aquele pio de coruja era agoureto. Eu estava certa, sim, até senti gastura... mas ninguém queria acreditar em mim... IANAIÁ (chorando) Dom Manuel, o pai da sinhazinha, morreu... MARÍLIA (tira Ianaiá dos seus braços e atira-se nos braços de Dirceu) O senhor meu pai, morreu? Foi esta a notícia que o Raimundo Sobreiro veio nos trazer? DIRCEU Eu estava procurando um meio para contá-la, sem que fosse dessa forma... MARÍLIA Agradeço-lhe a preocupação. Se o meu pai morreu é porque Deus viu que foi chegada-lhe a hora. Não lastimarei, guardarei a minha dor em silêncio... DIRCEU Posso fazer alguma coisa por vós mercê? 313 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Sim, quero que me acompanhe até Vila Rica. Quero estar lá ainda esta noite. Quero velar o corpo do meu pai, até o instante de ele ser sepultado. CORUJA VOA DA ÁRVORE. SEQUÊNCIA 121 – INT./EXT./NOITE/DIA. VILA RICA. IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. CEMITÉRIO NO ADRO DA IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. Noite. Igreja de São Francisco de Assis. Caixão com o corpo de dom Manuel. Marília vestida de luto, mãos trêmulas, ao lado do caixão de dom Manuel. Pessoas aproximam-se de Marília para as manifestações de pesar ou condolências pela morte de dom Manuel. Dirceu está em um circulo, juntamente com Raimundo Sobreiro, Zé da Viúva e outros homens. Madrugada. DONA BERTA, senhora de 50 anos, baixa, gorda, pele clara e olhos claros, e a sua filha Laura entram na igreja de São Francisco de Assis. Dona Berta e Laura aproximam-se do caixão de Dom Manuel e abraçam Marília. Lágrimas nos olhos de Marília. Dona Berta e Laura ficam ao lado de Marília. Minutos depois DONA INÁCIA, tia de Marília, uma senhora de aproximadamente 47 anos, olhos castanhos e pele clara, vestida de luto, entra na igreja de São Francisco de Assis, com outras pessoas. Dona Inácia vai ao encontro de Marília. Caixão com o corpo de Dom Manuel. Dona Inácia e Marília choram, silenciosamente, a morte de dom Manuel. Bancos da Igreja de São Francisco de Assis. Várias pessoas sentadas no banco da Igreja de São Francisco de Assis. Rosa cochila em dos bancos. Raios de sol batem na entrada da igreja de São Francisco de Assis. Manhã. Enterro de dom Manuel. Homens carregam o caixão de dom Manuel. Laura acompanha Marília segurando-a pela cintura. 314 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) O corpo de dom Manuel encontrava-se na igreja de São Francisco de Assis. Marília, ao ver o pai estendido no caixão silenciou-se mais ainda. Ela não chorava e nem lamentava. A madrinha de Marília, dona Berta, a amiga Laura e a tia, dona Inácia chegaram durante a madrugada com alguns dos familiares. Eles consolavam Marília. Eu, portanto, colei-me ao silêncio dela durante toda a madrugada e manhã seguinte, até o momento de o corpo ser encomendado no cemitério do adro da igreja, pelo Padre Rocha. Cemitério do adro da igreja de São Francisco de Assis. Caixão de dom Manuel ao lado do local do sepulcro, de uma a carneira. Pessoas em volta da carneira, onde dom Manuel será sepultado. Padre Rocha encomenda a alma de dom Manuel. Marília está entre os ombros de Dirceu e de Laura. Sepultamento de dom Manuel. Padre Rocha encomenda a alma de Dom Manuel. PADRE ROCHA Senhor Deus, cá estamos nesta manhã para encomendar a alma do nosso irmão Manuel, qual, em nome do teu filho, Jesus Cristo, foi chamado para a vida espiritual. Confortai-nos senhor, porque a matéria nos trai e não nos deixa compreender os teus mistérios da vida e da morte. Ó Senhor Deus, receba em tuas mãos o espírito do nosso irmão e teu filho, Manuel, qual corpo santo será entregue à terra para reduzir-se ao pó, conforme nos criaste. Um jovem seminarista traz uma caldeira de água benta e estende-a ao padre Rocha. Padre Rocha faz a aspersão com a água benta da caldeira, no caixão de dom Manuel. PADRE ROCHA Irmãos vamos recitar agora a oração que o Senhor Deus nos ensinou através do seu filho e nosso salvador, Jesus Cristo. Pater noster, qui es in caelis, 315 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Sanctificétur nomen tuum, Advéniat regnum tuum, Fiat volúntas tua, Sicut in caelo, et in terra. PESSOAS QUE ESTÃO NO ENTERRO Panem nostrum quotidiánum da nobis hódie. Et dimítte nobis débita nostra, Sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris. Et ne nos indúcas in tentatiónem. Sed líbera nos a malo. Amem. Carneira aberta. Caixão de Dom Manuel descendo na carneira. MARÍLIA abraça a madrinha dona Berta e a tia Inácia. DIRCEU, um pouco afastado do movimento do enterro, observa o sofrimento de Marília. SEQUÊNCIA 122 – INT./EXT./DIA. VILA RICA. CASA DE DOM MANUEL. LOTE VAGO EM VILA RICA. Tarde. Casa de dom Manuel. Sala de Visitas. Dirceu, Raimundo e Raimundo Sobreiro sentados nas poltronas da sala de visitas da casa de dom Manuel. Tarde. Lote vago. Tropeiros preparando viagem para São Sebastião do Rio de Janeiro no lote vago. Dirceu e Marília entregam uma carta para um HOMEM MAGRO E ALTO, de aproximadamente 25 anos, comandante dos tropeiros. O nome dele é COLOTINO DURÃES... DIRCEU (OFF) Após o sepultamento de dom Manuel, Marília preferiu ficar em Vila Rica, juntamente com Rosa e Vívila. Ela pediu para que Raimundo, Zé da Viúva e eu tomássemos conta da fazenda até que ela se recuperasse do triste passamento. A tarde, ao sabermos que Colatino Durães levaria mercadorias 316 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior para serem embarcadas para além-mar, pelo porto da baía de Guanabara, Marília e eu pedimos a ele que portasse a triste notícia para Amarílis, a irmã de Marília, sobre a morte do senhor seu pai, Dom Manuel. CORTA PARA SEQUÊNCIA 122.1 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FAZENDA DE DOM MANUEL. Manhã. Fazenda Ribeirão do Meio. Cozinha. Dirceu sentado à mesa tomando café meio apressado. Sebastiana serve para Dirceu um beiju de tapioca. SEBASTIANA Nhô Dirceu anda tão avexado esses dias que parece que não sente nem a comida descer no bucho. Ora tá aqui, ora tá pegando estrada para a fazenda da tal de sinhá Marília. DIRCEU Isto é por pouco tempo, Sebastiana. Estou cuidando da fazenda do pai de Marília. Agora que ele morreu, ela tendo de ficar em Vila Rica, confiou em mim, nos meus préstimos. FADE OUT/FADE IN Manhã. Fazenda de dom Manuel. Fundo do quintal da fazenda de dom Manuel. Uns HOMENS NEGROS trabalham na construção de um chiqueiro de ovelhas. Buraco. Pés sujos, amassando o barro. HOMENS NEGROS fazendo adobes em formas e telhas, utilizando as coxas das pernas. Relvado. Tijolos e telhas espalhados sobre o relvado. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva medem uma área do quintal do fundo da fazenda, onde há uma carreirinha de casas feitas de madeiras, cobertas de palhas. Dirceu olha para Raimundo Sobreiro. 317 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Depois que derrubarmos essas casas provisórias, feitas de paus e de palhas, o quintal da fazenda ganhará uma visão mais descente... RAIMUNDO SOBREIRO Creio que o finado Dom Manuel não tinha plano disso não, nhô Dirceu. Ele pensava em aumentar a senzala e trazer mais negros para os trabalhos da fazenda... DIRCEU Não sei por que, mas a fazenda dele não é tão grande assim. Se não é tão grande, também não tem ocupação para tanta gente. Não consigo entender, Raimundo Sobreiro, as besteiras que os donos de terras fazem. Eles compram escravos colocam em suas terras para trabalhar e nunca calculam o quanto gastam com eles... RAIMUNDO SOBREIRO Parece que não gastam nada, pois negros por cá morrem à mingua. Os animais dos patrões têm melhores tratos do que eles... CASA DE JOÃO DE BARRO NO GALHO DE UMA ÁRVORE. SEQUÊNCIA 123 – EXT./INT./NOITE/DIA. ESTRADA DA SERRA DO ITA-CORUMI. VILA RICA. CASA DE DOM MANUEL. Madrugada. Estrada da serra do Ita-corumi. Dirceu cavalgando sozinho pela estrada da serra Ita-corumi. Vila Rica. Dirceu troteando pelas ruas de Vila Rica. Casa de dom Manuel. Dirceu para no portão da casa de dom Manuel. Janela da casa de dom Manuel. Rosa está na janela e vê Dirceu no portão da casa. Rosa desaparece da janela. Pouco tempo depois Marília aparece no portão da casa de dom Manuel. Marília abre o 318 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior portão e abraça Dirceu. Os dois entram na casa. Sala de visita. Marília e Dirceu sentam em uma das poltronas da sala de visita. Sala de Jantar. Mesa. Dirceu e Marília sentados à mesa sendo servidos por Rosa e Vívila. DIRCEU (VOICE OVER) Assim que completou sete dias da morte de dom Manuel arrisquei ir sozinho à Vila Rica, aonde fui estar com as moças. Marília, ao ver-me aproximar do portão da casa, veio correndo a abraçar-me. Eu percebi que tanto ela, quanto as criadas, estavam chorosas e caladas. Marília relatou-me que as lágrimas desabaram naquela manhã ao vivenciar as primeiras sensações da saudade paterna. Conversei bastante com ela, contei-lhe sobre a fazenda de dom Manuel, as pequenas reformas que começamos a fazer por lá e dei-lhe notícias da corça, qual estava prenha. Tentei algumas fórmulas para animá-la. Eu queria fazê-la voltar à fazenda, pois lá o ambiente seria propício para que ela se distraísse um pouco. MARÍLIA Não, Dirceu. Não voltarei para a fazenda, porquanto a minha irmã, Amarílis, vier de São Sebastião do Rio de Janeiro... DIRCEU Mas a viagem de São Sebastião do Rio de Janeiro até cá, em Vila Rica, demora dias, Marília. Digamos que até a senhora vossa irmã receber o comunicado da morte do senhor pai de vós mercês, e, que ela venha a Vila Rica, isso demorará cerca de quarenta ou mais dias. Estamos vivendo o mês de dezembro de 1792, a senhora vossa irmã, Amarílis, portanto, chegará cá, em Vila Rica, somente no segundo meado do mês de janeiro do ano seguinte, ou seja, de 1793. MARÍLIA Neste prazo, coloco a minha cabeça em ordem. Não quero, até o devido momento, voltar à fazenda do meu falecido pai. 319 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Se a minha irmã demora a chegar, tanto só, quanto com o marido dela, eu ficarei alguns dias na casa da minha madrinha, em Mariana e na casa da minha tia Inácia, em Sabarabussu. DIRCEU Ó, Marília, como vai ser difícil ficar longe de vós mercê. Tomara que a sua irmã e seu cunhado venham logo para que possamos resolver a nossa a vida a dois. SEQUÊNCIA 124 – INT./EXT./DIA/NOITE (MARCADOS POR FADE OUT E FADE IN) – VÁRIOS Manhã. Curral da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu, Hipólito e Cirilo ordenham as vacas. Dirceu tira o leite de uma vaca. Leiteira com o leite. Miliquito carrega uma leiteira de leite para fora do curral. Colina. Dirceu e Cirilo cavalgam pela colina. Pasto. Gados pastando nas campinas. Dirceu a cavalo junta o gado. Chiqueiro das ovelhas. Dirceu, Trácio e Endimião estão sentados na pedra olhando o rebanho de ovelhas. FADE OUT / FADE IN Tarde. Fazenda de dom Manuel. Dirceu está na fazenda de Dom Manuel. Construção da senzala. HOMENS NEGROS colocando telhas nas novas casas construídas com adobes. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva reparam o serviço da construção da senzala. FADE OUT / FADE IN Fazenda Ribeirão do Meio. Oficina de trabalho. Prateleira com queijos frescos. Formas de queijo. Quitéria, Inácia e Eulina na oficina de trabalho fabricando queijos. Dirceu tira o chapéu e entra na oficina de trabalho. FADE OUT / FADE IN 320 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Noite. Casarão da fazenda Ribeirão do Meio. Quarto de Dirceu. Dirceu deitado na cama dele. DIRCEU (VOICE OVER) Desde quando Marília ausentara-se de sua fazenda, os meus dias pareciam intermináveis. Eu acordava cedo, aliava-me aos rapazes para ordenhar as vacas, cavalgava pela colina, ajudava a levar e a recolher o gado, a rebanhar as ovelhas e a inspecionar os trabalhos na fazenda de Marília. O dia não passava. Quando, a muito custo, vinha a noite, essa ainda era mais aterrorizante. O silêncio dela envolvia-me em suores e calafrios inexplicáveis. Eu deitava, enrolava e sentava no catre, ora pensando na morte de dom Manuel, nas decepções de Josias com a mulher amada e em sua morte. Esses pensamentos deixavam-me pessimista, inseguro e com medo de perder o maior bem da minha vida, a minha Marília. De outro lado eu pensava na vitória do meu pai, sempre quieto e silencioso planejando, às escondidas, o seu futuro ao lado da mulher amada, a ponto de abandonar tudo para ser feliz ao lado dela. Isso servia para mim de exemplo: eu também faria o mesmo para eternizar-me ao lado da minha Marília. SEQUÊNCIA 125 – INT./EXT./ DIA/NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. ESTRADA. SÍTIO DE ANTENOR. Capela da fazenda. Manhã. Altar da capela. Quitéria, Inácia e Eulina estão terminando de limpar o altar da capela da fazenda. ESTELA, a esposa de Antenor, uma senhora alta, magra, de olhos claros, está sentada em um dos bancos da capela, vasculhando o interior de uma pequena caixa de madeira, posta em cima do banco. Ela tira da caixa de madeira, com delicadeza, algumas peças de presépio (Nossa Senhora, São José, anjos e pastores, o recém-nascido, Jesus Cristo, os três Reis Magos, camelos e outros animais. As imagens retiradas da caixa de madeira são feitos de argila e/ou de madeira). Altar da capela. Próximo 321 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ao altar da capela, Estela, juntamente com Quitéria, Inácia e Eulina, montam o presépio representando o nascimento e adoração do Menino Jesus na manjedoura de Belém, conforme os relatos dos Evangelhos e fontes apócrifas. Porta de frente da capela. Antenor entra pela porta de frente da capela, indo direto ao altar. Ele observa as mulheres terminando de montar o presépio. ANTENOR Que maravilha, Estela! O presépio ficou perfeito. Amanhã receberemos os fiéis da região para a comemoração do Natal, a maior festa cristã da nossa Santa Igreja Católica Apostólica Romana. ESTELA Eu vou pedir algum homem para que amanhã, antes da comemoração do natal, toque os sinos da capela. ANTENOR Os toques dos sinos devem ser animados, como aqueles que em Belém, avisaram o nascimento do Menino Jesus... FADE OUT/ FADE IN Sol esconde-se por trás dos montes. Frontifício da capela da fazenda Ribeirão do Meio. Alto da torre da capela da fazenda. UM HOMEM MORENO toca os sinos da capela da fazenda. Sinos da capela da fazenda repicam em tom festivo. Fazenda Ribeirão do Meio e toda a região escutam em off o repicar dos sinos da capela. FADE OUT/ FADE IN Estrada em direção à capela da fazenda. Cavalos e cavaleiros troteando na estrada em direção à capela da fazenda. Arredores da capela da fazenda. Cavalos amarrados em postes no adro da capela da fazenda. Noite. Interior da capela. Velas acesas no interior da capela. FIÉIS sentados nos bancos. Altar da capela. CRIANÇAS e MULHERES 322 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior olhando o presépio do Menino Jesus. Púlpito. Antenor sobe-se no púlpito. FIÉIS colocam-se de pés. ANTENOR Comemoramos, irmãos, com alegria a maior festa cristã da igreja católica, apostólica romana, o natal. Nesta data em que se comemora o nascimento de Jesus Cristo, o nosso salvador. Segundo o evangelista Lucas, quando Jesus nasceu havia pastores vivendo ao ar livre e mantendo vigias sobre os rebanhos perto do local onde ELE nasceu. Estes pastores foram avisados no evento chamado de Anunciação aos pastores. Somos, pois, alguns pastores, outros rebanhos de Jesus. Aos pastores, competem levar as palavras de Jesus, conforme foram testemunhadas no Novo Testamento. Aos rebanhos, competem ouvir as palavras de seus pastores, quais são alimentos à alma. Agora, todos, numa só voz, recitamos a ladainha de Nossa Senhora, mater Dei. Fiéis ajoelham-se para rezar a Ladainha de Nossa Senhora. NOTA: a Ladainha de Nossa Senhora será recitada até o nono verso. As vozes dos fiéis vão aos poucos caindo, até entrar em off. ANTENOR E OS FIÉIS Senhor, tende piedade de nós Cristo, tende piedade de nós Senhor, tende piedade de nós Cristo, ouvi-nos Cristo, atendei-nos Deus Pai dos Céus, tende piedade de nós Deus Filho, Redentor do Mundo, tende piedade de nós Deus Espírito Santo, Santíssima Trindade que sois um só Deus Santa Maria, rogai por nós... Ouve-se a música "El Dia del Corpus" em espanhol - Villancico (canção de Natal) Anônimo, Bolívia, século XVIII, qual vai 323 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior aumentando-se aos poucos. Esta música também servirá de fundo para a procissão. Os fiéis saem da capela em procissão. Estrada. Fiéis munidos de tochas e velas acesas, em procissão, pela estrada até o sítio de Antenor. Dirceu, Cirilo, e Inácia; Hipólito e Quitéria; Eulina e Miliquito, Ambrósio, Trácio, Endimião, Alceu e Farias acompanham a procissão. Sítio de Antenor. Cancela do sítio de Antenor. Quintal do sítio de Antenor iluminado com tochas de fogo e lampiões de azeite. Fiéis entram em procissão no terreiro de frente do sítio de Antenor. Estela e os TRÊS FILHOS DE ANTENOR, um jovem de 14 anos, pele clara e olhos escuros e duas jovens, uma de 16 anos e outra de 18 anos, de olhos claros, peles claras e cabelos loiros encaracolados, recebem os fiéis. Antenor mostra-se feliz. Festa. Toque de sanfona. HOMENS NEGROS e HOMENS BRANCOS tocando sanfonas. Os fiéis se espalham para dançar, conversar, comer e beber vinho. O pessoal da fazenda Ribeirão do Meio estão sentados em tamboretes, debaixo de uma árvore, bebendo vinho, comendo petiscos e conversando. SEQUÊNCIA 126 – INT./EXT./ DIA/NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Flash back – Sonho de Dirceu Madrugada. Quarto de Dirceu. Janela do quarto de Dirceu. Dirceu abre a janela do quarto. Barulho de ovelhas berrando. DIRCEU Ovelhas berrando no quintal de frente à fazenda? Ali não há pasto, o que está acontecendo? Janela do quarto de Dirceu. Ele instiga o quintal da fazenda com os olhos. Quintal da fazenda. Rebanho de ovelhas no quintal da fazenda. Ovelhas berrando no quintal da fazenda. 324 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Quem ousaria trazer aquele rebanho para o quintal de frente da fazenda? Vou sair daqui já e punir o responsável. Janela do quarto de Dirceu. Ele instiga novamente o quintal da fazenda com os olhos. Quintal da fazenda. Rebanho de ovelhas no quintal da fazenda. Marília, vestida de pastora, conduz o rebanho de ovelhas, juntamente com Trácio, Alceu e Endimião. Marília toca o rebanho até a janela do quarto de Dirceu, juntamente com os três pastores. Imagem pausada de Trácio, Alceu, Endimião e o rebanho numa grande tela, feito uma pintura arcádica. Apenas Marília move. Ela vê Dirceu na janela do quarto e olha para ele sorrindo. MARÍLIA Cheguei, Dirceu! Se pensas que vim a passeio, enganas. Vim para morar contigo, na tua fazenda... DIRCEU Marília? Vieste morar, eternamente, comigo? Janela. Dirceu pula a janela e corre para receber Marília de braços abertos. DIRCEU Marília, tu serás, deveras, a minha pastora? MARÍLIA Não estás a ver? Trago comigo todo o meu rebanho e os meus três pastores. Tu serás o meu vaqueiro e eu serei a pastora dos teus sonhos Dirceu... DIRCEU Pastora dos meus sonhos, sonhos, sonhos... Grande quadro arcádico. Marília, Dirceu, os três pastores e o rebanho são personagens do quadro arcádico. 325 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA Quarto de Dirceu. Dirceu acorda assustado na cama. Ele senta-se na cama e fala por solilóquio. DIRCEU Meu Deus, se eu pudesse eu arriaria o meu cavalo agora e iria até Vila Rica. Será se está acontecendo alguma coisa de ruim com Marília? Será se a irmã e o cunhado dela chegaram do Rio de Janeiro? SEQUÊNCIA 127 – INT./EXT./ DIA/NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. COZINHA. SALA DE VISITA. Cozinha da fazenda Ribeirão do Meio. Mesa da cozinha. Dirceu está terminando de almoçar. Sebastiana coloca um bule de café na mesa. Inácia coloca algumas xícaras na mesa. Prato de comida vazio. Dirceu empurra o prato e pega uma xícara. Bule. Dirceu pega o bule e despeja o café do bule na xícara. Hipólito entra na cozinha e aproxima-se de Dirceu. HIPÓLITO Nhozinho me desculpa por eu tá entrando cá, assim, na hora do seu almoço. É que não sei se nhozinho lembra, o nome dele é Zé da Viúva. Ele ta lá na varanda querendo prosear com nhozinho . DIRCEU Zé da Viúva? Meu Deus será se os sonhos vêm, no sono, para nos avisar sobre coisas? Alguma coisa deve ter acontecido por lá na fazenda do finado dom Manuel... Vá lá Hipólito, peça para ele aguardar por mim na sala. Quero falar com ele em particular. 326 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Hipólito anda até a porta da cozinha para o interior do casarão. Dirceu levanta-se da mesa e faz o mesmo. Porta do corredor com a sala de visita. Dirceu entra pela porta na sala de visita. Zé da Viúva está sentado em uma das poltronas da sala. Os dois cumprimentam-se. Dirceu sentase ao lado de Zé da Viúva. ZÉ DA VIÚVA Não sei se nhô sabe, a irmã de dona Marília chegou com o marido de São Sebastião do Rio de Janeiro. O nome dela é dona Amarílis e do senhor, marido dela, é Sales, um extenente e coronel. Eles estão na fazenda e dizem que vieram de mudança pra essas terras... DIRCEU A irmã de Marília já chegou a Vila Rica com o marido dela? ZÉ DA VIÚVA Chegou, nhô Dirceu. O coronel Sales disse que a mulher dele está perto de ter filho. Ela não tá na fazenda, não, ela tá lá em Vila Rica com a irmã, a dona Marília... DIRCEU E as coisas lá da fazenda, me conte como andam. ZÉ DA VIÚVA O coronel Sales, assim que ele quer ser chamado, tomou posse da fazenda. O clima lá tá pesado. O motivo que tô aqui é para pedir abrigo ao nhô, pois o coronel mandou o Raimundo Sobreiro e eu desocupar a fazenda ainda hoje... DIRCEU Qual foi o motivo que levou ele a fazer isso, Zé da Viúva? ZÉ DA VIÚVA O tal do coronel parece que tem sangue ruim, nhô Dirceu. O coronel Sales disse que tanto a dona Marília, quanto os criados 327 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior da casa e de toda a fazenda, têm de prestar obediência a ele. Ele disse querer fazer da propriedade um grande meio de se obter lucros e não um lugar para passeio ou festas. DIRCEU Meu Deus, Zé, nunca vi tanta tolice em um homem só! Quanto a vós mercê e o Raimundo Sobreiro, se quiserem continuar nesta região, não hesitarei em aceitá-los. Depois conversamos e acertamos os detalhes. Por enquanto a casa está às ordens de vós mercês. Hoje mesmo, podem mudar para cá. Não ficaram sem abrigo... Quitéria entra na sala com uma bandeja nas mãos e serve café para Dirceu e Zé da Viúva. Dirceu olha para Quitéria. DIRCEU Quitéria, por favor, arrume um quarto cá dentro da casa para dois amigos. Eles irão trazer as coisas deles ainda hoje. Eles unirão forças com a nossa gente para cuidar do nosso gado. SEQUÊNCIA 128 – EXT./INT./ DIA/ VILA RICA. FRENTE À CASA DOS CONTOS. Legenda: "Fevereiro de 1793". Manhã. Vila Rica. Dirceu galopa pelas ruas de Vila Rica até chegar à Casa dos contos. Lá, ele apeia-se do cavalo e o amarra em um poste. Marília aparece de repente vindo ao encontro dele. DIRCEU Recebi o recado para encontrar com vós mercê aqui. Está acontecendo alguma coisa de grave com vossa senhoria? Não me esconda nada Marília, creio que eu já posso imaginar o que esteja acontecendo. Dirceu abraça Marília. Ambos beijam-se. 328 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Quase todos os dias eu peço a Rosa para procurá-lo cá em Vila Rica. Como ela o encontro hoje na venda do português, ela mesma marcou este local para que pudéssemos nos encontrar... Eu não queria que as coisas acontecessem assim, Dirceu. Mas depois da morte do senhor meu pai e da chegada da minha irmã e cunhado as coisas engrossaram para o meu lado. DIRCEU Nada há de nos abalar, Marília. Se sentirmos adultos e responsáveis pelos nossos atos, teremos motivos suficientes para medir as nossas forças e ir contra tudo o que der e vier. MARÍLIA Assim, vós mercê me enche de coragem, Dirceu. DIRCEU Conte-me o que aconteceu ou o que está acontecendo, sou todo ouvidos teu, Marília. CORTA PARA SEQUÊNCIA 129 – EXT./ INT. /DIA. VILA RICA. PORTÃO DA CASA DE DOM MANUEL. Flash back – Relato de Marilia. Tarde. Carruagem estacionada no portão da casa de Dom Manuel. Cocheiro chama no portão da casa de Dom Manuel. Vívila atende o portão da casa de dom Manuel. Carruagem. Vívila olha assustada para a carruagem. Marília e Rosa saem de dentro da casa e correm até o portão. Marília vê a carruagem e fica surpresa. Ela sai do portão e vai até a carruagem. Carruagem. SALES e AMARÍLIS estão dentro da carruagem. O cocheiro abre as portas da carruagem. SALES, 35 anos, alto, magro, olhos azuis e pele clara e AMARÍLIS, 25 anos, alta, olhos 329 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior escuros e pele clara, grávida de seis meses, saem da carruagem. Amarílis dá um forte abraço em Marília. Barriga de Amarílis de uma grávida de seis meses. Marília passa as mãos, carinhosamente, na barriga de Amarílis. Marília e Amarílis dão risadas abraçando-se. Sales cumprimenta Marília com um aperto de mão. Rosa e Vívila saem do portão e cumprimentam Amarílis e Sales. MARÍLIA (VOICE OVER) Como vós mercê pôde ter observado, Dirceu, eu criei uma grande espectativa para receber a minha irmã, Amarílis e o senhor meu cunhado, Sales. Sempre eu estava atenta no portão, aguardando pela chegada deles. O dia em que eles chegaram eu fiquei tão feliz. Procurei arranjar a eles tudo o que fosse melhor da casa. Deixei Rosa e Vívila à disposição de minha irmã, a ponto de não deixá-la fazer nada, senão cuidar da gravidez dela. Mal eu sabia, que quando eles chegassem a Vila Rica a minha vida se tornaria em um inferno... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 128.1 – EXT./DIA/ VILA RICA. FRENTE À CASA DOS CONTOS. Rua da casa dos contos. Marília e Dirceu de pé, frente a frente conversando. DIRCEU Como assim, num verdadeiro inferno, Marília? MARÍLIA Como sabe Dirceu, o senhor meu pai morreu de repente e não deixou nenhum testamento. Devido a esse fato, logo que a minha irmã e o marido chegaram a Vila Rica, eles trataram rapidamente de mexer com o inventário dos bens procurando 330 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior um escrivão e dizendo a mim que estavam legalizando tudo, conforme a lei... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 130 – INT./DIA. VILA RICA. SALA AMPLA E AREJADA DE UM ESCRIVÃO. Flash back – Relato de Marilia. Sala ampla e arejada. Sales, Amarílis e Marília estão sentados à mesa, juntamente com um escrivão. O ESCRIVÃO tem aproximadamente 27 anos. Ele é baixo, gordo, loiro e meio desajeitado. Caderno de registro sobre a mesa. O escrivão abre o enorme caderno de registro, pega a lupa e confere-lhe algumas folhas. Ele consulta o enorme caderno, usando uma lupa. ESCRIVÃO Ora, ora, vejamos cá, senhor Sales. Bem, se Dom Manuel não deixou nenhum testamento, podemos passar a tutela dos bens para a irmã mais velha de Dona Marília, dsta forma ela irá representar a Dona Marília, assistindo-lha nos atos da vida civil, quanto a defesa, o amparo, a proteção; a tutoria; a dependência ou a sujeição vexatória. Sales coça a cabeça. SALES E quanto a mim, escrivão? Como fico nesta história? ESCRIVÃO O senhor poderá administrar os bens da família, zelando pela proteção material. ESCRIVÃO (faz um sinal com os dedos, insinuando dinheiro) 331 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Tudo é possível, senhor Sales. Se quiser, lavrarei um documento, agora... SALES Que o faça, senhor escrivão, que o faça... Marília olha para Amarílis, para Sales e põe-se de pé. Marília olha para a porta da sala do escrivão, dirige-se até ela, abre-a e sai. Amarílis faz o mesmo, indo ao encontro de Marília. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 128.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./ DIA/ VILA RICA. FRENTE À CASA DOS CONTOS. Rua da casa dos contos. Marília e Dirceu de pé, abraçados. MARÍLIA Amarílis, por ser a minha irmã mais velha e, casada, teve direito à tutela dos bens. Eu sei que isso não passa de um conluio do cunhado com o advogado arranjado por ele. Eu fiquei à mercê da minha herança e, o pior de tudo, tendo de agir conforme a vontade do casal. Eu não me conformo com as atitudes ameaçadoras da minha irmã que, a cada dia, deixava-se envenenar pelas ideias do marido. Por determinação do cunhado Sales, eu continuarei morando em Vila Rica e a fazenda ficaria por conta de dele. DIRCEU Por enquanto, tudo o que posso pedir a vossa senhoria, é que tenha paciência. Não dê muita importância ao que eles estão fazendo, pois, se eles pegarem um de seus pontos fracos, pronto, as coisas tornarão intoleráveis. Quanto á herança, lembre-se, que jamais vós mercê ficará desamparada, pois eu, 332 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior como viste com teus próprios olhos, até pepita de ouro atirei na água da fonte... MARÍLIA Uma pessoa normal não faria o que vós mercê fez... DIRCEU Fiz o que fiz, porque sou mais do que normal, Marília. Um louco por ouro, dinheiro e riquezas, jamais faria isso. Se vós mercê não ligou com a pepita como um presente meu, eu também muito menos ligaria com ela. MARÍLIA Meu Deus, Dirceu. Então ficaste aborrecido comigo aquele dia, na fonte? DIRCEU Não, Marília, eu não fiquei. Por favor, conte-me seus augúrios. MARÍLIA O meu sofrimento maior é ter que morar cá em Vila Rica. A minha irmã e o meu cunhado, Sales, quer obrigar-me isso. Logo agora, que eu tinha tantos planos de morar na fazenda do finado senhor meu pai, ao lado de vós mercê a quem tanto amo... DIRCEU Calma Marília, vamos resolver isso com o tempo. Não sei se vós mercê sabe, o teu cunhado dispensou o Zé da Viúva e o Raimundo Sobreiro dos trabalhos da fazenda. Os dois pediram-me abrigo e trabalho. Eles estão trabalhando para mim, na minha fazenda. 333 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Agradeço pela sua generosidade em acolhê-los em sua fazenda, Dirceu. O senhor meu pai gostava tanto deles. Eu sabia que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde, porque o plano de Sales é ter na fazenda apenas escravos. Segundo ouvi o dizer, ele trará de São Sebastião do Rio de Janeiro um benfeitor e um capataz para cuidarem da fazenda. DIRCEU Meu Deus, isso dá a mim a certeza de que não demorará muito em eu estar morando perto de uma fazenda cheia de negros cativos a quebrar o nosso silêncio com os seus gemidos de dores e suplícios. FACHADA DA CASA DOS CONTOS. DIRCEU ABRAÇA E BEIJA MARÍLIA, DEFRONTE À FACHADA DA CASA DOS CONTOS. SEQUÊNCIA 131 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Capela da Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Altar da capela. Antenor está no altar da capela fazendo uma celebração eucarística. Poucos fiéis sentados nos bancos da capela da fazenda. Estela com os três filhos, Dirceu, Inácia e Cirilo, quitéria e Hipólito, Eulina e Miliquito, Farias e alguns sitiantes e fazendeiros da região. ANTENOR In nómine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti. FIÉIS Amen ANTENOR Grátia Dómini nostri Iesu Christi, et cáritas Dei, et communicátio Sancti Spíritus sit cum ómnibus vobis. 334 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FIÉIS Et cum spíritu tuo. ANTENOR Fratres, agnoscámus peccáta nostra, ut apti simus ad sacra mystéria celebránda. FIÉIS Confíteor Deo omnipoténti et vobis, fratres, quia peccávi nimis cogitatióne, verbo, ópere et omissióne: Todos prosseguem batendo com as mãos nos peitos ao confessarem a culpa. FIÉIS Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa. Ideo precor beátam Maríam semper Vírginem, omnes Angelos et Sanctos, et vos, fratres, oráre pro me ad Dóminum Deum nostrum. VOZES CAEM AOS POUCOS, ENTRANDO EM OFF. CORTA PARA Antenor está no altar da capela. Poucos fiéis na capela, em pé, batendo as mãos no peito. FADE OUT/FADE IN. Quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Grande mesa improvisada debaixo de uma árvore. Recepção dos poucos fiéis que estavam assistindo à missa na capela da fazenda. Sebastiana, Quitéria, Inácia e Eulina colocam vasilhas com quitutes na grande mesa improvisada debaixo de uma árvore. Copos de vinhos nas mãos de alguns homens. CRIANÇAS brincam de correr no quintal da fazenda. Tarde. Varanda da fazenda. Cirilo, Hipólito e Miliquito estão sentados nos tamboretes, dentro da varanda da fazenda. Rede da varanda. Dirceu está sentado na rede da varanda. 335 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) A cada segundo domingo do mês, Antenor e sua pequena família reuniam-se conosco na capela da fazenda para uma celebração eucarística. De vez em quando aparecia gente diferente a nos auxiliar nos cultos. Após a celebração, Sebastiana oferecia para todos nós seus fartos e deliciosos quitutes. O nosso banquete era uma festa rápida, improvisada, cheia de conversas e risos. Após findar a festa, os rapazes da fazenda e eu gastávamos o resto do dia proseando na varanda da casa. FOTOGRAFIAS DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. SEQUÊNCIA 132 – EXT./INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. VARANDA DO CASARÃO. Cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Sales, montado em um bonito cavalo, aproxima-se da cancela da fazenda. Dirceu está conversando com Farias e Miliquito no quintal da fazenda. Miliquito avista Sales na cancela da fazenda e olha para Dirceu. MILIQUITO Parece que nhô Dirceu vai receber visita... Miliquito olha para Dirceu e aponta com o queixo em direção à cancela. Sales bate palmas na cancela da fazenda, chamando pelo dono. Dirceu olha para a cancela. Miliquito levanta-se para ir até a cancela. Dirceu adverte-o com um sinal para não ir. Dirceu levanta-se e vai até a cancela encontrar-se com Sales. Cancela. Dirceu aproxima-se da cancela e abrea. Sales olha para Dirceu. SALES Eu quero falar com o dono da fazenda, o senhor Dirceu. Não o conheço de vista, mas de fama... 336 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Está aqui, quem o senhor procura. Sou o próprio Dirceu e dono desta humilde propriedade. Sales e Dirceu se cumprimentam tirando os chapéus e colocando-os novamente nas cabeças SALES Não sei se o senhor me conhece ou já viu falar sobre mim, o meu nome é Sales. Coronel Sales. Há menos de poucos dias estou morando cá, nesta região, na fazenda do finado meu sogro, dom Manuel. Sales pula do cavalo e segura o cavalo pela rédea. Dirceu olha admirado para Sales. DIRCEU Então tu és o cunhado da dona Marília, o moço que veio de São Sebastião do Rio de Janeiro para se juntar ao povo desta região. Miliquito aparece na cancela de repente, cumprimenta Sales com um balançar de cabeça e toma-lhe a rédea do cavalo. Sales olha para Miliquito carregando o seu cavalo para frente do quintal da fazenda e em seguida olha para Dirceu. SALES Eu gostaria de saber qual o ramo de atividade agrícola é mais comum nesta região e quantos escravos vós mercê têm em sua fazenda... Varanda do casarão. Dirceu e Sales seguem-se para a varanda do casarão. Tamboretes na varanda. Dirceu e Sales sentam-se em uns dos tamboretes da varanda. 337 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Escravos? Tenho nenhum, senhor Sales. Com o tempo, vós mercê há de perceber, que, cá, nesta fazenda, formamos todos uma só família. Uns ajudando aos outros. Assim, conforme deveria ser a lei da sobrevivência. Quintal de frente da fazenda. Cirilo, Hipólito, Miliquito e Ambrósio estão sentados em um velho tronco estendido debaixo de uma frondosa árvore. Eles conversam animadamente. Sales olha para eles e em seguida para Dirceu. SALES Aqueles negros, não são seus escravos, senhor Dirceu? Ou são apenas os que muitos chamam de escravos de ganho... DIRCEU Conforme eu disse ao coronel Sales, escravos, não tenho nenhum. Formamos aqui uma família, todos ajudando uns aos outros. Eles também não são escravos de ganhos, como as pessoas preferem chamar aos que trabalham livres em uma ou outra profissão. SALES (ri, coça o bigode, encara os rapazes e pergunta bruscamente) Aqueles negros não são mesmo seus escravos, senhor Dirceu? DIRCEU Não, não, senhor Sales. Conforme afirmei cá não tenho escravos. Cá, tenho amigos e vivemos na labuta da lavoura e da fazenda para os nossos sustentos. Todos precisamos de comer, vestir e de se divertir. SALES Não entendi. Se vós mercê não tem escravos, como pode administrar esta fazenda? Como pode estar em dias todas às atividades da fazenda, se vós mercê não prega nenhum 338 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior convívio social regido conforme os princípios dos grandes fazendeiros da colônia, o senhor está sendo contra a escravidão... DIRCEU Sei o que fazer aqui. O regime de escravidão está longe do meu convívio. Está certo que vós mercê vê que a maioria das pessoas nesta fazenda é negra, mas isso não nos impede que sejamos amigos e que compartilhe entre nós a paz e a felicidade... Dirceu olha para Cirilo, Hipólito, Miliquito e Ambrósio, quais proseiam alegremente debaixo da frondosa árvore. DIRCEU Olha lá, senhor Sales, como eles são felizes por cá. Hoje, por exemplo, é domingo e tanto eles, quanto todos os outros e eu estamos em dia de descanso. Para quem prega e defende a escravidão, eu apenas digo o seguinte, cada um que bula a sua consciência e faça o que achar melhor. Tudo o que queremos nesta fazenda é plantar e colher fartura para o nosso sustento, senhor Sales. SALES (olha para Dirceu entediado) Ora, ora, senhor Dirceu. Que ideologia! Negro é negro e veio ao mundo para nos servir de escravos. Comprarei alguns nesta semana. Apenas aguardo a chegada de um benfeitor para administrar a minha propriedade. Terei também um carrasco e, se possível, agirá no lombo dos negros desobedientes. DIRCEU No ano passado visitei por acaso um senhor chamado dom Manuel. Ele dizia a mesma coisa que vós mercê está dizendo agora. Ele comprara gados zebus e holandeses, ovelhas e uns negros em Rio das Mortes e mandado para a fazenda que 339 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior estava construindo. Contando que ficaria rico com o investimento, dizia que esperava dos negros muito trabalho, caso contrário, eles sentiriam na pele as chicotadas. Portanto, onde está dom Manuel? Como sabes, está morto, entregue aos vermes. Enquanto isso, outras pessoas pensam em fazer o mesmo que ele, sem pensar na vida de seus empregados, que além de serem tratados como meras mercadorias, trabalham em troca de suas míseras sobrevivências, sem nunca terem direito à liberdade de seus próprios pensamentos. A maior mesquinhez do ser humano é julgar ser superior aos demais. SALES Tu estás falando do dom Manuel, meu finado sogro? DIRCEU Sim, ex-proprietário da fazenda, a qual vós mercê ocupa agora. SALES Então vós mercê conheceu dom Manuel, o senhor meu finado sogro? DIRCEU Sim, vi-o uma vez, no dia em que ele discursou o que acabei de relatar á vossa senhoria. SALES Isso a mim não importa... DIRCEU Deveria importar porque os negros são humanos, senhor Sales. Perante Deus somos todos irmãos. SALES Disso não sei, porque não sou muito adepto às coisas da igreja. Entrei em uma igreja apenas 5ara casar com Amarílis e 340 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior pronto. Se eu não fizesse isso, eu não a conheceria e não a teria como esposa. Dirceu olha para Sales um instante. Sales observa o quintal do pátio da fazenda. DIRCEU (VOICE OVER) Ciente de que não converteria Sales a agir conscientemente com os negros da fazenda herdada por ele, tratei de mudar o assunto. Dirceu olha para Sales que parece distraído e prossegue o diálogo DIRCEU Então vós mercê é o cunhado de dona Marília? SALES (senta-se novamente na poltrona ao lado de Dirceu) Sim! dona Marília contou-me que vós mercê namorava-a... DIRCEU Não, eu não namorava a dona Marília, eu namoro-a... SALES (morde os lábios) A minha senhora esposa e eu conversamos bastante com a dona Marília. Ela é uma rapariga nova, sem juízo. Todos nós sabemos que ela é compromissada com um jovem italiano e que não deveria namorar rapaz algum da colônia. O meu falecido sogro fazia gosto de vê-la casada com o rapaz prometido. É uma pena que ele morreu sem cumprir duas coisas. DIRCEU Como? 341 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES Sim, o meu finado sogro morreu sem chicotear os seus escravos e sem realizar o casamento de sua jovem filha, com o italiano. Se esses eram os seus desejos, trataremos de realizálos. Chicotearei os escravos, caso venham a desobedecer-me e casarei a jovem Marília com o mancebo da Itália. DIRCEU E sabes por acaso se é esse o desejo de dona Marília? SALES E precisamos consultá-la? Se a família rege dentro desses moldes, temos de cumprir. Não seria lícito casar as nossas filhas, irmãs ou parentas com vis aventureiros que batam às nossas portas. Queremos dar a elas homens fluentes, com poder, dinheiro e fartura. DIRCEU (põe-se de pé e ergue-se a voz) Tenho recursos suficientes para oferecer a Marília sem que ela nunca dependa de nada da herança de dom Manuel, senhor Sales. Quanto ao estrangeiro a quem dom Manuel prometeu a mão de Marília, verá que tudo não passou de uma informalidade. A moça não o conhece e para ser feliz... SALES E pensas por acaso que eu conhecia a minha esposa antes do casamento? Conheci-a no altar, no momento da cerimônia. Abri mão de tantas outras raparigas para cumprir a vontade do meu pai. Nem por isso, somos infelizes. DIRCEU (senta-se novamente no tamborete) Cada caso, um caso, senhor Sales... 342 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES (põe-se de pé) Se vós mercê e dona Marília conhecem e pretendem lutar para ficarem juntos, creio causarem problemas a mim e a minha senhora esposa. Veremos o que fazer para cumprir a promessa do memorável pai da moça. Farei cumprir o que foi determinado por ele e desde já peço a vós mercê que não volte a vê-la. A menina é sem juízo, não se atina muito ao destino. DIRCEU (se põe de pé, de frente ao Sales) Não sei se o destino vai querer que as coisas andem desta forma senhor Sales, mas prometo não aborrecer vós mercê e nem a sua dignifica esposa... SALES Vós mercê acaba de deixar-me tranquilo, senhor Dirceu. Desta forma encaminharemos Marília ao destino dela, ao lado daquele que a espera na Europa, na terra dos deuses pagãos e católicos... DIRCEU (fala por solilóquio) Que mal fiz aos deuses, para que este moço apareça de repente e quer mudar todos os meus planos?! Eu conhecia Marília e tinha a convicta certeza de que podia contar com ela naquele desafio. Ora, ora, senhor Sales, ninguém jamais conseguirá separar-me de Marília, exceto Deus. SEQUÊNCIA 133 – INT./ DIA/. CAPELA DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Capela da fazenda. Porta lateral do lado esquerdo da capela aberta. Farias, com o chapéu na mão, faz o sinal da cruz e entra na capela pela 343 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior porta lateral do lado esquerdo. Ele vasculha com os olhos toda a capela. Ele vê Dirceu ajoelhado próximo ao altar da capela. Farias anda devagar em direção ao altar onde Dirceu está ajoelhado. Farias aproxima-se de Dirceu. Ele olha para Dirceu com um olhar enigmático. Dirceu põe-se de pé. FARIAS Sinhozinho está procurando alguma coisa aqui... Sinhozinho parece preocupado eu senão curioso... DIRCEU Não, Farias, não procuro por nada, apenas sustento cá, a minha paz espiritual... FARIAS Paz é o que nhozinho mais tem no coração. Nhozinho é homem bom, não gosta de desavenças... Farias e Dirceu sentam-se em um dos bancos da capela. DIRCEU Não gosto mesmo, Farias, mas de vez em quando aparece alguém não sei de onde para tirar a minha paz. FARIAS Inhozinho tá falando da visita que recebeu, não foi? DIRCEU Foi, Farias. O tal do coronel ou sei lá, o Sales, deixou-me verve, confuso... FARIAS Carece sinhozinho preocupar com isso não. A dona Marília faz parte do destino de nhozinho... 344 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Dona Marília? Como sabe disso Farias? Conte-me o que sabe, alivia-me esta dor, cá no peito... FARIAS Tudo o que eu tenho para dizer a vós mercê é que sinhá Marília guarda um grande segredo para o sinhozinho. DIRCEU (demonstra-se surpreso) Segredo? Ela guarda para mim um segredo? segredo, Farias? Qual é este FARIAS (sorri) Se é segredo, somente a dona Marília sabe. Na hora certa, ela há de contar ao sinhozinho... Dirceu tenta fazer outra pergunta para Farias. Farias não dá importância. Ele sai andando devagar até a porta lateral esquerda da capela. Dirceu fica imóvel, sentado no banco vendo Farias sair da capela pela porta lateral aberta. Dirceu aproxima-se do altar da capela e fica reparando os detalhes dele. Uma pequena lagartixa corre pelo altar. Dirceu olha atentamente para a lagartixa. A lagartixa tenta entrar num pequeno orifício que há no altar, mas ela engancha-se no pequeno orifício. Dirceu acorre para desenganchar a lagartixa, tentando pegá-la pelo rabo. A lagartixa solta o rabo e sai correndo assustada. Orifício. Dirceu observa o orifício. Ele passa as mãos no orifício, sopra a poeira e constata haver ali uma portinhola. Dedos de Dirceu tocando o orifício da portinhola do altar. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Há um pequeno orifício cá e ele trata-se de um pequeno ferrolho. Para abrir este pequeno orifício bastava uma pequena chave. O que estaria escondido dentro daquele altar da capela? Onde estaria a pequena chave daquele altar? Se a 345 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior capela pertencia à fazenda, decerto a chave haveria de está em lugar da casa da fazenda. Vou procurar nos móveis da sala e se eu não encontrar, saberei sobre a chave com a Sebastiana. SEQUÊNCIA 134 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. SALA DE VISITA. Sala de visita do casarão da fazenda. Mobílias antigas e exageradas. Dirceu abre gavetas procurando a chave. Gavetas abertas. Dirceu vasculha as gavetas. Dirceu fecha a última gaveta e fala por solilóquio. DIRCEU Vou encontrar não. Procurar o que não sabe onde pode está é muito complicado. Vou acabar revirando a casa toda e nada. Acho melhor perguntar para a Sebastiana, ela deve saber até quem zelava pela capela nos outros tempos. SEQUÊNCIA 135 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA. SALA DE VISITA DO CASARÃO. Cozinha. Sebastiana está sentada à mesa da cozinha cochilando. Dirceu entra na cozinha de supetão. Sebastiana acorda assustada e olha para Dirceu. SEBASTIANA Nhozinho? Nhô Dirceu, nem vi quando entrou... A velha anda cansada, dormindo à toa, nhozinho... DIRCEU Eu não queria perturbar vós mercê, Sebastiana. Perdoe-me é que... 346 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEBASTIANA (coloca-se de pé) Nada nhozinho... Vossemecê precisa de quê, quer um café quentinho, vou coar para nhô... DIRCEU Não, não Sebastiana. Pode sentar e descansar. Eu só quero saber... Porta do fundo da cozinha, dando para o quintal. Farias entra pela porta do fundo da cozinha. Farias para e olha para Dirceu e Sebastiana. FARIAS Sinhô Dirceu quer saber alguma coisa que Sebastiana também não sabe... DIRCEU (olha assustado para Farias) Como ela não sabe se eu nem... FARIAS Vamos lá pra sala, sinhô Dirceu. Lá falaremos sobre o que vossemecê quer saber... FADE OUT/FADE IN Sala de visita do casarão. Dirceu e Farias estão sentados lado a lado em umas das poltronas. Farias olha enigmático para Dirceu. FARIAS Sinhozinho descobriu o buraco da chave no altar da capela, não descobriu? Dirceu balança a cabeça sinalizando um "sim". Farias olha para Dirceu com um olhar de censura ou de medo. 347 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FARIAS Sinhozinho deve ter cautela. Sinhozinho tem de saber que o mistério não pertence a vossemecê e a ninguém. Ele é um perigo para a colônia e quando tiver no poder de sinhozinho, escute a voz do Espírito Santo e aja conforme a vontade DELE. DIRCEU Não entendi... FARIAS Sinhozinho vai entender a partir do dia que os anjos aparecerem. Um anjo é grande, outro maior, um ajuda, outro engana. Os caminhos de sinhozinho vão ser iguais a uma encruzilhada. DIRCEU Um desses anjos descerá do céu para entregar-me uma chave? FARIAS (olha fixamente para os olhos de Dirceu) Sinhozinho não pode arrombar a porta, sinhozinho age com prudência. Se o santo anjo julgar que sinhozinho merece a chave do mistério, ele saberá como agir para ajudar sinhozinho a tê-la. Sinhozinho fique sabendo o que o santo padre Fernandez disse que mistério é um desafio capaz de colocar em perigo a colônia e todo o povo do mundo. DIRCEU Sobre o quê o amigo Farias está falando? Qual mistério é um desafio capaz de colocar em perigo a colônia e todo o povo do mundo? FARIAS (faz o sinal da cruz) 348 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Do mistério, sim do mistério do padre Fernandez. Sinhozinho não sabe o que é, mas teve gente que pediu para o santo padre na época abrir um buraco bem fundo e enterrar ou atear fogo na coisa ruim, mas ele disse que não podia fazer isso não. A missão dele era aquela, salvar a terra dele dos males que estavam por acontecer. DIRCEU Qual terra dele e quais os males, Farias? FARIAS Quá, o resto vós mercê saberá com o tempo, creio que falei o que haveria de falar... O resto depende de como se desatará o mistério... Farias levanta-se e sai da sala da casa da fazenda. Dirceu continua sentado na poltrona, paralisado, pálido e assustado. DIRCEU (fala por solilóquio) Mistério! Esta palavra parece ter um sabor de aventura, de desafio e de curiosidade, acima de tudo... SEQUÊNCIA 136 - INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DE MEIO. CAPELA DA FAZENDA. CEMITÉRIO DO PÉ DA SERRA. Porta da lateral esquerda da capela aberta. Dirceu entra apressado na capela e dirige-se até o altar da capela. Ele confere o orifício no altar. Dirceu sente um arrepio correr pelo corpo dele. Dirceu olha para os bancos da capela. CORPO DE UM HOMEM caído em um dos cantos do chão da capela. Dirceu corre em direção ao corpo do homem caído em um dos cantos do chão da capela. Dirceu aproxima-se do corpo. 349 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu vê que se trata do corpo de Farias. Farias está morto. Dirceu assusta ao ver Farias morto, caído em um dos cantos do chão da capela. Dirceu cai de joelhos e toca no corpo de Farias, pegando e apertando o punho dele. DIRCEU Farias? Meu Deus, o que aconteceu com o velho Farias? Meu Deus, o Farias morreu! FADE OUT/FADE IN Porta da lateral esquerda da capela aberta Dirceu corre até a porta da capela e grita por todos da fazenda Ribeirão do Meio. Logo aparecem na capela Cirilo, Ambrósio, Miliquito e Hipólito. Eles correm ao encontro de Dirceu, próximo ao corpo de Farias. Pôr-do-sol. Cemitério. Sepultura de Farias. Cirilo finca uma cruz na sepultura de Farias. Todos da fazenda Ribeirão do Meio estão em volta da sepultura de Farias. Varanda da fazenda. Em um dos cantos da varanda da fazenda está a sanfona de Farias. Hipólito pega a sanfona de Farias. DIRCEU (VOICE OVER) Quando eu encontrei Farias caído em um dos cantos do chão da capela e constatei que ele estava morto, eu corri até a porta da capela e gritei pelo pessoal da fazenda. Ninguém creu na morte súbita e serena de Farias. Como um dos rapazes havia encontrado uma rede e algumas recomendações escritas sobre como Farias quisesse o seu enterro, nós fomos obrigados a não velá-lo e, portanto, ainda naquela tarde, enterramo-lo no cemitério do pé da serra. Na sepultura dele fincamos também uma cruz como o nosso último presente de despedida. 350 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CAPÍTULO 8 SEQUÊNCIAS 137-156 Personagens deste capítulo: Zé Tomázio Dirceu Fregueses de Zé Tomázio Menino moreno de 13 anos Marília Trácio Endimião Alceu Eulina Quitéria Raimundo Sobreiro Zé da Viúva Cirilo Inácia Ambrósio Sebastiana Antônio Francisco Lisboa Antônio Francisco Lisboa (aos 13 anos) Meninos entre 12 e 14 anos Vinte homens negros e fortes (Coronel Tonico) Hipólito Miliquito Ambrósio Dois negros jovens (fazenda Paraíso) Zenilda Homens negros (fazenda Paraíso, guiadores dos carros de bois) Homens negros (fazenda de Dom Manuel) Paulo (benfeitor da fazenda de Dom Manuel) Dois homens brancos, altos e magros FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 135 2. Sequência 149 351 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior 3. Sequência 36.6(para adaptação, conforme critério do Diretor) 4. Sequência 150 SEQUÊNCIA 137 - INT./EXT./DIA. VILA RICA. EMPÓRIO DE ZÉ TOMÁZIO. Dirceu está dentro do empório Zé Tomázio. Ele está próximo ao balcão. Zé Tomázio termina de atender dois fregueses e depois se dirige para Dirceu. ZÉ TOMÁZIO Então, o gajo conseguiu conquistar a dona Marília? E a história do leque? Conta-me gajo como foi que entregaste o leque para a dona Marília? DIRCEU Se dependesse de dona Marília e deste pobre homem, tudo daria certo, Zé Tomázio, mas, como a vida é cheia de altos e baixos, as coisas acabam dando erradas... ZÉ TOMÁZIO Virgem mãe do céu! O que pode estar atrapalhando um romance que mal começou? Estavas namorando com a dona Marília, não estavas? DIRCEU Creio que ainda estou, Zé Tomázio, mas depois da morte do senhor pai de dona Marília, o Dom Manuel, as coisas começaram a se complicar. A irmã e o marido da dona Marília, recém chegados de São Sebastião do Rio de Janeiro, resolveram meter o bedelho onde não deviam. Não é que o 352 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior cunhado de dona Marília, um sujeitinho chamado Sales, proibiu a Marília e eu de nos encontrarmos? Balcão. Zé Tomázio atende um freguês no balcão. O freguês sai do empório. Zé Tomázio aproxima-se de Dirceu. ZÉ TOMÁZIO Mas que mal fizeste o senhor e a dona Marília, aos deuses? DIRCEU Creio que nenhum mal, Zé Tomázio! Os deuses humanos, de carne e osso, são quem estão a nos cercar dia e noite, estragando os nossos planos... ZÉ TOMÁZIO Outro dia a dona Marília esteve por cá com a criada para comprar alguns mantimentos. Eu achei a dona Marília tão tristezinha... DIRCEU A morte do pai abateu-a muito... ZÉ TOMÁZIO E conforme estou a ver, agora, a coitada sofre de amor também. De um amor corrompido... Mas, se o amigo precisar de uma ajuda, cá estou a servir-lhe de cupido... DIRCEU Tudo o que eu quero nesta manhã, meu amigo Zé Tomázio é ver e conversar com a dona Marília... ZÉ TOMÁZIO E para isso precisam de um lugar seguro. Ora, ora, cá tenho uma ideia excelente, senhor Dirceu... 353 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Zé Tomázio sai de dentro do balcão e vai até a uma das portas aberta do empório. Há um MENINO MORENO, de 13 anos de idade, vigiando os cavalos amarrados nos postes, frente à venda de Zé Tomázio. Zé Tomázio grita pelo menino moreno, de 13 anos. O menino moreno de 13 anos corre rápido em direção a Zé Tomázio. ZÉ TOMÁZIO Vá garoto até a casa da dona Marília, levar um recado para mim. Ninguém pode receber o recado, senão dona Marília. Diga a ela para ir até a igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Morro de Santa Quitéria. Diga que tem alguém lá querendo conversar com ela... Vá, vá... Vá rápido garoto e não descuide do recado, heim! O menino moreno de 13 anos de idade sai correndo pela rua. Portas abertas do empório. Zé Tomázio volta para trás do balcão e chama por Dirceu. ZÉ TOMÁZIO Irás encontrar a dona Marília lá na igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Morro de Santa Quitéria. Pedi a um garoto para avisar a dona Marília. Pegue o cavalo e vá para lá. Enquanto dona Marília não chega, aproveite também para rezar uma ladainha, faz sempre bem para afastar os desassossegos. DIRCEU Na igreja Nossa Senhora do Carmo, no Morro de Santa Quitéria? ZÉ TOMÁZIO Há outro lugar mais seguro do que nessa ou noutra igreja? DIRCEU Não, não outro lugar mais seguro do que as igrejas... FOTOGRAFIAS DE ALGUMAS IGREJAS DE VILA RICA. 354 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 138 – INT./EXT./DIA. RUAS DE VILA RICA. MORRO DE SANTA QUITÉRIA. IGREJAS DE VILA RICA. IGREJA NOSSA SENHORA DO CARMO. Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Morro de Santa Quitéria. Dirceu cavalga para o Morro de Santa Quitéria. DIRCEU (VOICE OVER) Eu aderi ao plano de Zé Tomázio, porque sabia ser a igreja o lugar mais tranquilo de Vila Rica ou de qualquer outra cidade. Enquanto eu marchava para o Morro de Santa Quitéria, tecia solilóquios a respeito do profano e do sagrado. Vila Rica. Frontifício de uma igreja. Fiéis rezando em uma igreja. PADRE pregando no púlpito de uma igreja. HOMENS e MULHERES flertando-se disfarçadamente, durante a pregação do padre no púlpito de uma igreja. Uma igreja vazia. UM CASAL JOVEM namorando-se em um dos bancos da igreja. Altar da igreja. Atrás do altar da igreja. UM HOMEM e UMA MULHER praticando beijando-se e abaçando-se escandalosamente atrás do altar de uma igreja. Casas de Vila Rica. Janelas abertas das casas de Vila Rica. Pessoas espiando umas às outras pelas janelas aberta das casas de Vila Rica. DIRCEU (VOICE OVER) Nessa época a igreja era um lugar puramente social e um dos meios mais apropriados para a população se encontrar, flertar, paquerar e namorar. Não havia outro esconderijo melhor, quando, em plena luz do Sol, homens e mulheres quisessem se encontrar para namorar ou até cometer adultérios. Isso se dava devido à falta de privacidade. As casas rodeadas por janelas, varandas e sacadas por todos os lados, faziam com que todos perdessem espaço para suas intimidades. Qualquer passo falso, infelizmente, era motivo de fofocas pela cidade de forma rigorosamente maldosa. Todo mundo conhecia todo mundo e, além disso, uns esperavam o momento propício para acabar com os outros, senão materialmente, moralmente. 355 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Ou eu encontraria Marília naquela igreja, ou inventaria um esconderijo no mato, o que não era de todo seguro. SEQUÊNCIA 139 - EXT./INT. DIA. VILA RICA. MORRO DE SANTA QUITÉRIA. IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO. Morro de Santa Quitéria. Frontifício da igreja de Nossa senhora do Carmo. Interior da igreja. Dirceu está sentado em um dos bancos da igreja. Porta da igreja. Marília aparece na porta da igreja. Ela observa todo o interior da igreja e vê um homem sentado em um dos bancos da igreja. Marília observa o homem com atenção. Ela anda pelo corredor central da igreja e observa o homem e sorri quando descobre que o homem é Dirceu. MARÍLIA Dirceu! Que loucura! Como não pensei que poderia ter sido o Dirceu? Eu cá pensando que fosse alguma reunião em prol da Irmandade de Santa Quitéria... Marília olha atentamente para Dirceu. Dirceu está sentado, inerte, cochilando no banco da igreja. Marília observa Dirceu cochilando e, ajeitosamente, se aproxima dele. Ela cochicha em um dos ouvidos de Dirceu. MARÍLIA Saíste de casa tão cedo a ponto de ficares com sono? Ou fui eu quem demorou a chegar? DIRCEU (abre os olhos e olha para Marília de forma radiante) Marília! Vieste ao meu encontro Marília? Que bom, isto vale para mim todos os presságios... Dirceu ajeita-se no banco da igreja. Marília senta-se ao lado dele. Marília e Dirceu olham por toda a igreja. A igreja Nossa Senhora do Carmo está 356 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior vazia. Dirceu e Marília beijam-se. Marília coloca-se os dedos entre os lábios, abre uma pequena carteira e retira de dentro dela um lenço branco transparente. Marília coloca-se o lenço na cabeça. Marília ajoelha-se, faz o sinal da cruz, balbucia alguma prece e em seguida sentase ao lado de Dirceu. MARÍLIA Quero contar para vós mercê algumas novidades sobre a loucura do senhor meu cunhado, Sales. DIRCEU Ele continua aprontando, é? MARÍLIA Sales está metendo na cabeça da minha irmã que eu deva casar-me urgentemente com o rapaz da Itália. Segundo ele é para fazer cumprir a promessa do finado senhor meu pai. Por eu não aceitar a ideia do casamento, estou vivendo uma terrível luta em casa, ora brigando com o Sales, ora com a Amarílis. DIRCEU Ora, Marília, creio que tudo isso é muito desgastante, não é bom que vós mercê deixe que as coisas se inflame. Finja que aceite tudo, até que possamos bolar um plano e colocar em ação... MARÍLIA Se eu não aceitar o casamento, a minha irmã e o meu cunhado prometem meter-me em um convento de freiras. Segundo eles, ou caso com o italiano, ou viro freira. Dirceu olha por toda a igreja. A igreja Nossa Senhora do Carmo está vazia. Dirceu beija Marília. DIRCEU Antes preferia ser freira a casar com um homem da roça, não? 357 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Falei isso aquele dia, lá em Mariana, porque eu ainda não conhecia as coisas do coração, Dirceu. Eu ainda não havia namorado, nem sabia o quanto era bom ficar ao teu lado. DIRCEU Pois agora que conheces as coisas do coração, peço à senhora, dona Marília que não discuta com ninguém. Será muito interessante deixá-los agirem da forma como eles quiserem. Qualquer ameaça contra vós mercê, Marília, não passará de uma tolice deles. O interesse de Sales está em reinar sobre a herança de dom Manuel. Bastais vós mercê pacientar-se para as coisas darem certo. Lembre-se que eu jamais me separarei de vós mercê. Se algum dia eu perder-te de vista e ninguém souber dizer para mim o seu paradeiro, eu moverei o céu e a terra para encontrar-te. Se tu, por ventura, estiveres metida em um convento, eu encontrarei, raptarei e esposar-te-ei. MARÍLIA (sorri confiante) Eu confio em vós mercê Dirceu, talvez isso me tranquiliza um pouco. O Sales enviou uma carta ao meu tio marcando o prazo para o italiano vir ao Brasil e casar-se comigo. DIRCEU Mas que italiano ou romano é esse que até agora ninguém disse o nome? Esse noivo secreto é coisa arrumada pelo senhor seu tio, que mora na Itália, ou foi pelo finado senhor vosso pai? MARÍLIA Sei lá, Dirceu. Creio que tudo isso não passa de uma armação. Onde que eu, dona Marília, vou aceitar conhecer o meu noivo no dia do casamento, no altar? Até parece que não me conhecem? Eu sou de um novo tempo e não daquele tempo onde o livre arbítrio reinava-se nas mãos de outrem... Eu cá 358 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior serei uma pessoa manipulável, um joguete nas mãos de Sales e de Amarílis? Jamais, Dirceu, jamais! DIRCEU Jamais, Marília, jamais, a partir de hoje nós dois estaremos a medir forças para desfazer os caprichos dos outros sobre os nossos destinos. Deus, presente nesta santa igreja, há de nos fazer alcançar a nossa vitória. Sorriso largo nos lábios de Marília. Dirceu e Marília beijam-se. Frontifício da igreja Nossa Senhora do Carmo. Dirceu e Marília andam pelo adro da igreja Nossa Senhora do Carmo. DIRCEU Lembro-me de conhecer uma velha mina abandonada, aonde ninguém vai até ela. Podemos nos encontrar lá. Se vós mercê concordar eu pegarei vós mercê perto da Casa dos Contos e a levarei até lá, comigo. Ficaremos em paz, Marília, em paz! SEQUÊNCIA 140 – INT./EXT. VILA RICA. IGREJA NOSSA SENHORA DO CARMO. TRILHA. VELHA MINA ABANDONADA. Legenda: “Quinze dias depois...” Marília na garupa do cavalo de Dirceu. Dirceu e Marília cavalgam numa pequena trilha pelo mato. Velha mina abandonada. Dirceu freia o cavalo de frente à mina abandonada. Dirceu pula do cavalo e ajuda Marília a descer do cavalo. Cavalo de Dirceu amarrado em um canto da entrada da mina. Dirceu e Marília encostam-se em um canto da velha mina abandonada. Dirceu e Marília beijam-se ardentemente. DIRCEU (VOICE OVER) A partir deste dia, Marília e eu combinamos a cada quinzena nos encontrar nesta velha mina. Falei a Marília que em cada encontro teríamos uma surpresa, pois o cupido, decerto, 359 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior atirar-nos-ia aljavas de setas de seu arco. Marília pedia que eu descrevesse como era o cupido. Eu corria às descrições dos poetas latinos, dizendo que ele era um menino de olhos vendados, de corpo despido e de ligeiras asas nos ombros a lançar flechas douradas nos corações dos apaixonados. Ele não era moço, nem cego e só poderia conhecê-la muito bem, quem por ele fosse ferido no peito. Eu conhecia-o devido a essa ferida que somente cicatrizaria se houvesse simultaneidade de sentimento íntimo, constante e responsável por parte dela, a quem eu amava. SEQUÊNCIA 141 - INT./EXT./DIA. TRILHA. VELHA MINA ABANDONADA. Outra tarde. Cavalo de Dirceu amarrado na entrada da velha mina abandonada. Um bonito facho de luz do sol invadindo a entrada da velha mina abandonada. Dirceu e Marília em um dos cantos da entrada da velha mina abandonada. MARÍLIA Juro por tudo que for sagrado no mundo, Dirceu, que eu jamais deixarei de amá-lo. Não é à-toa que eu corro todos os riscos para a cada duas vezes por mês vir até cá, para ver-te. O meu coração pulsa como o velho relógio de minha casa, marcando as semanas, os dias, as horas e os minutos para encontrar-te, meu amado Dirceu... DIRCEU Isso tudo que tu sentes Marília, é pura arte do suposto deus pagão, chamado Cupido. O amor, além de uma aventura, é antes de tudo uma grande responsabilidade de quem ama... Facho de luz do sol invadindo um dos cantos da entrada da velha mina abandonada. Dirceu e Marília em um dos cantos da entrada da velha mina abandonada. Os dois beijam-se. 360 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Haveremos, Marília, de ter o nosso lugar no Olímpio, onde o poeta grego, Homero, em sua Odisseia, diz tratar-se de um monte onde se encontra o palácio de Zeus, construído por Hefesto. Dizem que nesse lugar não há nuvens e nem tempestades; no enorme e bonito castelo mora apenas o supremo Zeus, de onde vive vigiando o destino dos homens. Se em outras cristas, ficam os palácios dos outros deuses, haveremos de construir também o nosso, quem sabe não participaremos das assembleias e não nos tornaremos divindades superiores formando também a corte. Eu, quem sabe, serei como o grande Jove, a tomar várias formas. Ora serei namorado, amante, esposo, vaqueiro e seu fiel pastor e você, minha deusa, será namorada, amante, esposa, criada e minha fiel pastora. E não haveremos de fazer mais nada, a não ser ouvir as cantigas dos deuses ao som da lira e servirmos um ao outro os encantos do amor. Juro, por tudo que me é sagrado, Marília, que não haverá no mundo um Dirceu tão feliz quanto eu. Se o fado tirano obrigá-la a deixar-me, por Deus e por todos os deuses, sem dúvida, gritaria para o universo inteiro ouvir: Marília, Marília, sou o teu cativo, por favor, escute a voz desse triste pastor. MARÍLIA (sorri, olha para Dirceu e segura-o pelas mãos) E creio que não precisarás gritar tão alto, bastarás pensar em meu nome e eu, por mais longe que eu estiver, ouvirei ou teu grito e lançarei para ti, também, o meu. Pedirei que vós mercê, meu senhor, vá até a fonte e lá encontrarás comigo. Creio existir no reino dos deuses, com maior perfeição, todo o espaço que procuramos na terra para ficarmos a sós, tranquilos. DIRCEU Sem dúvida alguma, minha amada, Marília, o reino de Zeus não é como a terra perversa. Creio que lá a paz reina 361 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior constante e há melhor compreensão quanto aos ciclos da vida no que tange ao amor e à paixão eterna. MARÍLIA E DIRCEU BEIJAM-SE ARDENTEMENTE. SEQUÊNCIA 142 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CHIQUEIRO DAS OVELHAS. Tarde. Chiqueiro das ovelhas. Dirceu, Trácio e Alceu observam algumas ovelhas recém nascidas. TRÁCIO Tá aumentando o rebanho, nhô Dirceu. Ainda tem mais algumas cabras para parirem. Até o final do ano isso aqui vai multiplicar... DIRCEU E vai ter que aumentar o chiqueiro, Trácio. Bem que Josias falou isso para mim. Ele queria fazer um chiqueiro grande, mas eu não pensava que esses bichinhos rendessem tanto... ALCEU Quando são bem tratadas, "nhô" Dirceu, num instante elas rendem igual as estrelas do céu... DIRCEU E Endimião, onde está o Endimião... DIRCEU (olha para Trácio e coça a cabeça. Demonstra-se assustado) Aconteceu alguma coisa com o Endimião? Trácio olha para a pequena choça ou cabana. Alceu coça as pernas meio desajeitado. 362 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ALCEU Aconteceu nada não nhô, Endimião tá lá na choça... Choça. Dirceu olha para a Choça. Trácio dá um ou dois passos distanciando-se de Dirceu. ALCEU É que uma cobra mordeu ele desde o final da semana passada... DIRCEU (leva um susto) Uma cobra? Endimião contraiu veneno de cobra? Vamos até lá, tenho de ver como ele está. Choça ou cabana. Dirceu e Alceu entram na choça. Rede. Endimião está deitado na rede. Um dos pés de Endimião está com uma atadura de pano. Alceu aproxima-se da rede. ALCEU Nhô Dirceu veio ver vossemecê, Endimião... ENDIMIÃO (voz fraca, gemendo-se de dores) Ele sabe é? Vossemecês contaram pra inhozinho? DIRCEU E haveria de contar, ora. Quero ver como está a perna e se possível vou mandar levar vós mercê lá para a casa da fazenda. Lá, todos nós cuidaremos de vós mercê, Endimião. ENDIMIÃO Carece preocupar não, nhozinho eu tô quase bom, a perna teve pior, agora não dói muito não... CORTA PARA 363 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Casarão da fazenda Ribeirão do Meio. Quarto. Endimião está deitado em uma cama do quarto. Eulina e Quitéria aplicam compressas de pano na perna de Endimião. Dirceu está sentado em um tamborete, perto da porta do quarto. EULINA Esses meninos parecem que não tem juízo. Onde se viu alguém ser picado por uma anaconda e ficar assim, assim, gemendo de dor feito bicho no mato... QUITÉRIA Tamos aqui um pra ajudar o outro e parecem que tem medo de contar o mal feito... DIRCEU Mal feito nada, as cobras são traiçoeiras, elas picam a gente bestamente, basta não ter cuidado... EULINA Ainda bem que ele já está bem melhor... DIRCEU Viu só, como vós mercê está melhor, Endimião? Não sei porque vós mercê inventou de5 esconder a doença. Quando alguém cá, adoece, a responsabilidade é de todos para a busca da cura... SEQUÊNCIA 143 – INT./EXT./DIA. VÁRIOS. Manhã. Chiqueiro das ovelhas. Trácio, Alceu e Endimião estão sentados na grande pedra observando as ovelhas no curral. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva estão na cerca do curral observando o gado. Cirilo tira o leite de uma vaca. Inácia e Quitéria estão na oficina 364 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior fabricando queijos. Prateleira com queijos frescos e curados. Casa-deengenho ou moita. Ambrósio está tirando os bagaços de cana para fora da casa-do-engenho. Cozinha da fazenda. Meio dia. Sebastiana e Eulina servem o almoço para Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva. Miliquito arreia o cavalo de Dirceu no quintal de frente da fazenda. Tarde. Dirceu monta no cavalo. CORTA PARA Estrada da serra do Ita-corumi. Dirceu cavalga pela estrada da serra do Ita-corumi. Vila Rica. Dirceu trotea pelas ruas de Vila Rica. Ele encontra-se com Marília na entrada da velha mina abandonada. Dirceu e Marília abraçam-se e beijam-se. O tempo fica nublado. Chuva forte. Dirceu e Marília entram para dentro da velha mina abandonada. O interior da mina é escuro, Dirceu e Marília seguram-se as mãos. Relâmpagos e raios clareiam o interior da velha mina abandonada. DIRCEU (VOICE OVER) Passaram-se alguns dias e logo Endimião estava curado e unido a Trácio e Alceu para cuidar das ovelhas. Isso deixavame menos preocupado, a ponto de não faltar ao encontro quinzenal, marcado com Marília. Como sempre, acordei cedo, perquiri rapidamente os olhos na fazenda e, depois do almoço, pedi ao Miliquito que arreasse o meu cavalo. Antes que o sol esquentasse peguei a estrada para Vila Rica e fui encontrar com Marília naquela tarde.E foi nessa bela tarde, quando uma chuva grossa e fria obrigou-nos a recolher no interior da mina deserta e escura, que tivemos uma surpresa... SEQUÊNCIA 144 – INT./ DIA. VELHA MINA ABANDONADA. Tarde. Um dos cantos da entrada da velha mina abandonada. Marília e Dirceu estão em um dos cantos da entrada da velha mina abandonada. Marília e Dirceu abraçam e beijam unindo os seus corpos sedentos de amor. Cai uma chuva grossa. Dirceu pega a mão de Marília e arrasta-a 365 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior para o interior da mina. Eles abraçam e beijam-se no interior da mina. Relâmpagos clareiam o interior da mina. Marília demonstra-se medrosa. MARÍLIA Abraça-me Dirceu! Sinto arrepios devido aos trovões, relâmpagos e até do efeito do eco que potencializa as nossas vozes... DIRCEU (abraça Marília e ri, procurando tranquilizá-la entre os braços) Calma, Marília. Fique tranquila, cá, estamos seguros. Vamos ficar em silêncio, para evitar o eco. Aconchega-te, em mim. Deixamos, pois, as palavras de lado e vamos sentir os nossos corpos e as nossas almas se unirem... Dirceu e Marília unem-se os corpos beijam-se e murmuram palavras de amor. Sem que eles soubessem há um homem sentado em uma pequena sala da caverna, onde há um pequeno orifício para o sol entrar. Este homem é ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA, conhecido historicamente como “O ALEIJADINHO”. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Se outros namorados descobrirem este local para ficarem a sós, perderei o meu sossego. Dirceu e Marília assustam-se. Marília agarra Dirceu, quase lhe cravando as unhas. Dirceu esfrega os olhos, olha de um lado para o outro e tenta identificar quem estava ali dentro da velha mina abandonada. DIRCEU Quem é? Quem é que está a nos falar, cá dentro desta mina... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Um pobre desgraçado que arrasta a vida cheia de dores... MARÍLIA 366 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior (cochicha assustada nos ouvidos de Dirceu) Deve ser alguma alma penada... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Não mocinha, não sou nenhuma alma penada... Ora, vós mercês já ouviram falar do homem feio? MARÍLIA (cochicha novamente nos ouvidos de Dirceu) É o fazedor de santo, o senhor António Francisco Lisboa, a que todos chamam de homem feio ou aleijadinho... DIRCEU Sim, já ouvi falar... O senhor meu pai já me falou dele... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Eu sei quem é o rapaz e a moça. O rapaz é o senhor Dirceu, filho do dono da fazenda Ribeirão do Meio e a moça é a filha do finado e ambicioso dom Manuel. É a dona Marília, rapariga bonita e muito simpática. Marília arregala os olhos para Dirceu. Dirceu mexe todo o corpo, tentando ver onde Antônio Francisco Lisboa está. Entre um relâmpago e outro se vê rapidamente Antônio Francisco Lisboa sentado em um canto da velha mina. MARÍLIA O que fazes aqui, senhor Antônio? ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Sou eu que pergunto à menina: o que estás a fazer aqui, com esse homem? Por acaso já não estás comprometida a casares com um italiano? Dom Manuel morreu, mas eu ouvi dizer que a promessa continua... MARÍLIA 367 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Não devo entregar o meu coração a quem não conheço... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Concordo com a moça, se todos os pais pensassem assim. Eu mesmo não fui homem que tivesse sorte com casamento. MARÍLIA E por que vens a este lugar? Cá é tão sombrio e perigoso... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Porque nesta velha mina há um pouco do meu passado... DIRCEU Enquanto chove lá fora, porque não nos conta um pouco do seu passado ou alguma história que tenha relação a esta velha mina abandonada... CORTA PARA SEQUÊNCIA 145 – EXT./INT./ DIA./ ANO DE 1744. VELHA MINA ABANDONADA E SEUS ARREDORES. Flash back – Relato de Antônio Francisco Lisboa. Legenda: "Vila Rica, 1744". Meninos correndo e escondendo no mato. Pequena trilha no mato. O menino Antônio Francisco Lisboa, cor pardo-escuro, baixinho, gordo, rosto e cabeça redondos, cabelo preto e anelado, testa larga, beiços grossos e orelhas grandes, com treze anos de idade, corre pela pequena trilha para procurar os meninos escondidos no mato. Meninos correm, Antônio Francisco Lisboa corre atrás deles. Velha mina abandonada. DOIS HOMENS BRANCOS a cavalo, estacionam-se na entrada da velha mina abandonada. UM DOS HOMENS BRANCOS aproxima-se com o cavalo até a entrada da velha mina abandonada e grita aos que estão lá dentro. 368 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior UM DOS HOMENS BRANCOS Coronel Tonico manda ordem de sair desta mina! Nela há mais ouro e vossemecês que estão aí dentro nos acompanharão para outra mina próxima à Mariana... Antônio Francisco Lisboa esconde em uma pequena moita do mato e observa o movimento na velha mina abandonada. Entrada da velha mina abandonada. VINTE HOMENS NEGROS E FORTES saem da velha mina abandonada. Os DOIS HOMENS BRANCOS a cavalo conferem o número dos homens negros e fortes. Os dois homens brancos apeiam-se de seus cavalos. Saco amarrado na garupa de um dos cavalos dos dois homens brancos. Um dos homens brancos abre o saco amarrado na garupa de um dos seus cavalos e tira uma corda. Os dois homens brancos lançam a corda ao chão. Os vinte homens negros e fortes seguram pela corda. Os dois homens brancos montam-se em seus cavalos e cada um segura a ponta da corda. Os vinte homens negros e fortes seguram a corda e formam uma fila indiana entre os dois homens brancos que estão em seus respectivos cavalos. Os dois homens brancos cavalgam pela trilha carregando entre eles os vinte homens negros e fortes. Ao observar que os dois homens brancos e os vinte homens negros fortes sumem pela trilha, Antônio Francisco Lisboa levanta-se da pequena moita todo alegre. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Agora sim, meus amigos e eu podemos brincar nesta gruta... Vamos fazer dela os nossos esconderijos... Entrada da velha mina abandonada. Antônio Francisco Lisboa e alguns meninos entram na velha mina abandonada. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 144.1 – CONTINUAÇÃO - INT./ DIA. VELHA MINA ABANDONADA. 369 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Antônio Francisco Lisboa volta à tona na velha mina abandonada (em off). Dirceu e Marília estão quietos, agarrados um ao outro. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Quando menino eu brincava por estas bandas e gostava de ver os negros entrando e saindo desta mina em busca de ouro. Eu contava com treze ou catorze anos, quando aconteceu a escassez de ouro nela. Os homens negros que trabalhavam nela foram transferidos para outra mina e até o ambicioso coronel Tonico, que dizia ser o dono da mina, também desapareceu... CORTA PARA SEQUÊNCIA 145.1 - CONTINUAÇÃO - RELATO DE ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA. INT./EXT. /DIA. VILA RICA. VÁRIOS. Legenda: "Quatro anos depois..." Vila Rica. HOMENS BRANCOS bebem vinho em um balcão de uma pequena mercearia em uma das esquinas das ruas de Vila Rila. Entre os homens brancos está um MULATINHO de aproximadamente 18 a 19 anos. Ele é falador e engraçado. O mulatinho toma um trago de vinho e dá risadas. UM DOS HOMENS BRANCOS aproxima-se do mulatinho, tira-lhe o copo de vinho das mãos e o agarra pelos ombros, dando risadas. UM DOS HOMENS BRANCOS Ouvi dizer que o mulatinho está dizendo para todo mundo de Vila Rica que ainda há ouro na velha mina do coronel Tonico? O mulatinho solta-se das mãos do homem branco e pega novamente o seu copo de vinho. Ele traga o restante do vinho e coloca o copo no balcão. MULATINHO 370 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Ora, não falei pra todo mundo, se espalharam em Vila Rica é porque não sabem fazer segredo... Eu estou cá, a serviço de um padre, mas depois que me falaram dessa tal mina eu fiquei curioso, de forma que até sonhei encontrado nela uma grande pedra de ouro... Todos os homens brancos que se encontram próximo ao balcão da pequena mercearia dão risadas. OUTRO DOS HOMENS BRANCOS E era tão grande, tão grande que o mulatinho não pôde carregar e acabou acordando... MULATINHO (olha para todos com uma cara feia) Vós mercês podem fazer mofa, ri do coitado aqui, mas quando pensar que não, vou embora de Vila Rica levando uma pedrona de ouro... Os homens brancos continuam rindo e debochando do mulatinho. O mulatinho sai da mercearia um pouco furioso. CORTA PARA Vários fade out/fade in. Velha mina abandonada. O mulatinho está dentro da velha mina abandonada. Ele cava a lateral da parede da velha mina abandonada. CORTA PARA Manhã. Velha mina abandonada. Buraco oco em uma das paredes laterais da velha mina abandonada. O mulatinho enfia a mão no buraco oco e dá um sorriso. Ele enfia também a outra mão no buraco, cutuca-o e traz nas mãos uma enorme pepita de ouro. Ele olha a pepita e beija-a. Porta da velha mina abandonada. Um dos homens brancos, qual bebia vinho no balcão da pequena mercearia em uma das esquinas das ruas de Vila Rila, aparece na porta da velha mina abandonada. O mulatinho sai 371 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior correndo da velha mina abandonada e ao ver o homem branco assustase. UM DOS HOMENS BRANCOS Vi aqui pedir-lhe desculpas sobre aquele dia na pequena mercearia. Vós mercê não precisa de provar para ninguém se cá há ouro ou não... Desista, meu amigo, cá nestes cascalhos não gera mais ouro e nem qualquer preciosidade... Os homens já exploraram tudo o que tinham de explorar... MULATINHO Posso confiar-lhe um segredo? UM DOS HOMENS BRANCOS Sim, por que não? MULATINHO Promete que não irás prejudicar-me? UM DOS HOMENS BRANCOS Por Deus e por todos os anjos que voam no céu. Jamais quero prejudicá-lo... O mulatinho abre as mãos e mostra-lhe a grande pepita de ouro. O um dos homens brancos arregala os olhos para ver melhor a pepita de ouro. UM DOS HOMENS BRANCOS Meu Deus, então encontraste o que tanto almejavas? MULATINHO Sim, agora posso ir embora tranquilo... tenho grandes sonhos para realizar até o fim da minha vida. 372 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior UM DOS HOMENS BRANCOS Sonhos, todos nós temos... Agora vá cuidar ligeiro de sua vida, porque a ambição pelo ouro, cá em Vila Rica, não respeita brancos, mulatos e nem tampouco negros... SEQUÊNCIA 144.2 - CONTINUAÇÃO - INT./ DIA. VELHA MINA ABANDONADA. Antônio Francisco Lisboa volta à tona na velha mina abandonada (em off). Dirceu e Marília estão quietinhos, agarrados um ao outro. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Lembro-me como hoje, a descoberta do ouro pelo mulatinho causou um rebuliço danado em Vila Rica. Todo mundo queria ver o ouro encontrado por ele. O mulatinho foi chamado para prestar conta ao coronel Tonico, dono desta velha mina. O coronel Tonico, na verdade, queria tomar do mulatinho a grande pepita, mas o mulatinho foi esperto e dizem que com a ajuda de um homem branco, ele sumiu numa certa madrugada pelo capoeirão e nunca mais foi visto por ninguém de Vila Rica. O coronel Tonico ficou homem raivoso. CORTA PARA SEQUÊNCIA 145.2 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA. – INT. VILA RICA. CASA DO CORONEL TONICO. VELHA MINA ABANDONADA. Casa do coronel Tonico. Grande sala. QUATRO HOMENS BRANCOS sentados nas poltronas ao lado do coronel Tonico, na grande sala. 373 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORONEL TONICO Diacho, sô, falaram para mim que o ouro daquela velha mina havia esgotado... Que nada, viram só, apareceu um mulatinho dizendo que lá tinha ouro, todos riram dele e o danado provou... UM DOS HOMENS BRANCOS Isto não passa de um casuísmo coronel... Não é bom que vós mercê invista esforço algum nela. Ninguém na verdade viu a tal da pepita de ouro... CORONEL TONICO Vou comprar mais escravos, burros, bruacas, vou arranchar na porta da mina e todo negro que entrar nela não sairá sem ser revistado... UM DOS HOMENS BRANCOS Carece não coronel, não faça essa besteira. A ambição é capaz de fazer o homem perder a razão... CORONEL TONICO Que perder a razão que nada. Vou colocar a negrada para cavar e procurar ouro noite e dia. Ai de um negro se reclamar... CORTA PARA Antônio Francisco Lisboa volta à tona, na velha mina abandonada (em off). Dirceu e Marília prosseguem quietinhos e agarrados um ao outro. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA OFF) O coronel Tonico convencido de que aqui ainda havia muito ouro, comprou escravos, burros, bruacas e, conforme prometeu, arranchou na porta da mina sonhando em ficar 374 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior mais rico. Ele colocou a negrada para cavar e procurar ouro noite e dia, sem cessar, mas algo misterioso aconteceu aqui. Todos os escravos do coronel foram sumindo aos poucos dentro desta mina. Uns diziam que os pobres negros afundavam numa lama podre, lá embaixo, morrendo sufocados; outros diziam que eles transformavam-se em ouro e se alguém os achasse ficaria muito rico. MARÍLIA Meu Deus, esta história é muito interessante... E o coronel, o que aconteceu com o coronel Tonico? ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) O coronel Tonico, coitado, investiu o quanto pôde. Como ele era muito ganancioso, acabou ficando pobre, vivendo de esmolas em Vila Rica. Sabe dona Marília, estou doente, padecendo de zamperina ou doença desconhecida, mas não é por ganância não. As minhas feridas são para dizer aos homens que o orgulho não vale nada. Uns, após a morte viram pó, sem sentir; outros veem e sentem o seu próprio corpo derreter e cair aos pedaços como se fosse um corpo morto, teimoso, que não aceita ser enterrado. Não demorará muito e os abutres logo estarão a perseguir-me em busca da minha carniça. Eu cá nesta mina fico pensando, a vida nada é que uma simples ilusão. Marília agarra-se entre os peitos de Dirceu. Dirceu aconchega Marília entre os braços. DIRCEU É verdade seu Antônio, a vida nada é que uma simples ilusão... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Vós mercê, senhor Dirceu, deva saber que há um grande mistério na capelinha da fazenda de seu pai. Um dos meus 375 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior mestres, o senhor Noronha, grande entalhador português foi quem fez a decoração esquisita daquele altar e do pequeno púlpito. Segundo ele, um padre espanhol, que acompanhava todo o serviço, guardou um mistério no altar. Só quem sabe de toda a história é um velho amigo do seu pai, o Farias. Nem o padre Rocha, celebrante da primeira missa rezada naquela capela, sabe nada... DIRCEU O velho Farias morreu faz pouco tempo... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (EM OFF) Então lá se foi o mistério... Marília tenta empurrar Dirceu para fora da velha mina. Dirceu inventa qualquer coisa para falar com Antônio Francisco Lisboa. DIRCEU O mistério já foi revelado, dentro do altar nada havia, apenas uma caixa de maribondo, daqueles de fogo. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Então creio que quando os jesuítas abandonaram a nossa região levaram o tesouro com eles. A dúvida maior girava em torno da morte do padre espanhol, dias depois, após a inauguração da capela. Ouvi falar que ele morreu devido ao mistério. DIRCEU Conversa frouxa do povo, não há e nunca houve mistério algum naquela capela. Da mesma forma que disseram sumir todos os escravos do coronel, nesta mina. Por acaso, não estamos dentro dela? Sinhô Antônio não está aí, bem abaixo? Da mesma forma que entramos aqui, sairemos sãos e salvos. 376 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF) Vós mercê pode estar certo, senhor Dirceu, mas saiba de uma coisa, cada época tem o seu mistério. MARÍLIA (mostra-se impaciente puxando Dirceu pelo braço) Vamos Dirceu, tenho pressa de chegar em casa... DIRCEU (olha para a direção em que vem a voz de Antônio Francisco Lisboa) Desejo melhoras, Senhor Antônio. A tarde está caindo, o tempo estiou e tenho de levar a donzela para casa. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (EM OFF) A donzela? Dona Marília?! O italiano reclamará isso. Vós mercê terá de prestar contas a ele, senhor Dirceu. (solta uma gargalhada sarcástica) Mexer com mulher alheia é igual mexer com caixa de marimbondo de fogo... Entrada da velha mina abandonada. Dirceu e Marília saem de mãos dadas da velha mina abandonada. DIRCEU (VOICE OVER) Tornar a ver Marília custaria um pouco mais de tempo, pois combinamos nos encontrar apenas no final daquele mês na igreja do morro de Santa Quitéria. Enquanto isso eu me concentraria nas atividades da fazenda. SEQUÊNCIA 146 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VARANDA DA CASA DA FAZENDA. 377 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Domingo. Varanda da casa da fazenda. Dirceu, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Raimundo Sobreiro, Ambrósio e Zé da Viúva sentados nos tamboretes da varanda da casa da fazenda. DIRCEU Eu pedi para que vós mercês se reunissem hoje, cá, na varanda, para que possamos pensar em uma forma de nos ajudar e ajudar também alguns sitiantes e fazendeiros da região. Todos nós sabemos que a nossa fazenda é uma das únicas que contém oficina de queijo, engenho de cana de açucar e oficina de farinha. Portanto, alguns fazendeiros e sitiantes procuraram por mim para beneficiar os produtos deles. Segundo eles, nós ficaríamos com a metade... HIPÓLITO Preguiça, cá ninguém tem, "Nhozinho", pode pegar o que eles oferecerem... AMBRÓSIO E vamos espalhar fama pela região afora com grandes trabalhadores... CIRILO Nhozinho, sim. Nhô Dirceu pode agraciar com a nossa vontade de trabalho... RAIMUNDO SOBREIRO Como todos nós sabemos, o homem para sobreviver depende de sua produção... ZÉ DA VIÚVA Isso não é só bonito, Raimundo, como também é verdade. Se temos a matéria prima, porque não unirmos ao trabalho? A terra dá, a gente transforma o que ela dá em comida, roupas e assim por diante... 378 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Então se é assim iremos a partir de amanhã, segunda-feira, medir todos os nossos esforços para obter bons lucros e garantir fartura na nossa subsistência doméstica... MILIQUITO Nhô Dirceu pode mandar avisar os fazendeiros e sitiantes dos arredores, que estamos prontos para ajudá-los a beneficiar os produtos deles. Cá, mandioca vai virar farinha, tapioca, puba e beiju; cana de açucar vai virar melaço, rapadura e aguardente. AMBRÓSIO Igual nos tempos dos outros donos que tinham até mais gente para ajudar... DIRCEU Creio que vamos dar conta de todo o serviço. Não vamos pegar a matéria prima de todos os sitiantes e fazendeiros. Apenas alguns, aqueles que nos oferecer vantagens... RAIMUNDO SOBREIRO Inhô Dirceu tá certinho... SEQUÊNCIA 147 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Vários Fade in/fade out para a marcação de tempo: dias e semanas, manhãs e tardes. Fazenda Ribeirão do Meio. Porta da casa da oficina de farinha de mandioca. Carro de boi na porta da casa de oficina de mandioca. O carro de boi está cheio de mandioca. Cirilo e Miliquito tiram as mandiocas do carro de boi e levam para dentro da casa da oficina de farinha de mandioca. Mandiocas amontoadas a um canto da casa da oficina. Gamelas com mandiocas descascadas. Grandes ralos. Eulina e Inácia ralam mandiocas. Assadeira de barro ou trempe de pedra. Quitéria torra a farinha de mandioca na assadeira de barro ou 379 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior trempe de pedra. Grande masseira (ou gamela grande) cheia de farinha de mandioca. Casa-de-engenho ou moita. Miliquito está na moagem da cana. Caldo de cana caindo no parol ou tanque. Enormes barris abertos. Alceu e Dirceu coam o caldo de cana e despeja-o em enormes barris para a fermentação. Grande fogão com tacho de cobre. Endimião está sentado no grande fogão. Ele enfia uma escumadeira no tacho de cobre e mexe o melado de cana. Enorme balcão de madeira com formas de rapadura. Sebastiana está arrumando as rapaduras em um canto do enorme balcão de madeira. Carro de boi estacionado perto da casa-deengenho ou moita com dois homens brancos e dois homens negros, de outra fazenda. Ambrósio ajuda os dois homens brancos e os dois homens negros pegar as rapaduras e colocar no carro de boi. Campina da fazenda. Bois pastando. Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva estão tocando os bois na campina da fazenda. DIRCEU (VOICE OVER) Os rapazes e suas respectivas esposas tomavam a frente dos trabalhos da fazenda. Todos os dias nós acordávamos com os rumores dos primeiros pássaros e só descansávamos quando o sol se escondia no ocaso. Alguns proprietários antigos da região ao saber que eu estava tocando a velha fazenda, vinham nos oferecer seus produtos à meia para serem beneficiados por nós. No primeiro instante aceitamos beneficiar a mandioca e a cana de açucar. Como a cachaça, desde 1789 havia se transformado em símbolo da resistência ao domínio português, por que não fabricá-la? SEQUÊNCIA 148 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FUNDO DO QUINTAL DA FAZENDA. Manhã. Dirceu está andando no fundo do quintal e encontra-se com Raimundo Sobreiro saindo da casa de oficina de farinha. Raimundo Sobreiro, ao ver Dirceu, tira o chapéu e o cumprimenta. 380 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior RAIMUNDO SOBREIRO Ouvi dizer que o senhor está querendo fabricar cachaça... DIRCEU Estou Raimundo, mas o problema é a escassez da cana de açúcar. Os agricultores estão começando a apostar no plantio do café e, portanto, estão se desfazendo do plantio da cana. RAIMUNDO SOBREIRO Uai, sô, então daqui uns tempos nós vamos tomar café amargo porque não terá o melaço e nem a rapadura para adoçar... DIRCEU Então quem continuar a plantar a cana irá, futuramente, fazer bons negócios... RAIMUNDO SOBREIRO Eu ouvi dizer que não muito distante de cá, tem uma fazenda oferecendo três hectares cortados de cana de açúcar. Dizem que a dona da fazenda quer negociar em pepitas de ouro... DIRCEU (tira o chapéu e limpa o suor da testa) Uai, sô, não é que eu vou atrás dessa dona. Eu cá estou precisando de cana para aumentar as nossas reservas... Raimundo descubra onde fica essa fazenda e me conte. Se der certo, dentro de poucos dias vou até lá com o Miliquito e o Cirilo para fechar negócio. RAIMUNDO SOBREIRO Nhô, sim, vou saber onde fica essa fazenda... 381 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 149 - INT./EXT./DIA. REGIÃO OUROPRETANA. FAZENDA PARAÍSO. VARANDA DO CASARÃO DA FAZENDA PARAÍSO. Madrugada. Estrada estreita margeada de vergeis. Dirceu, Cirilo e Miliquito cavalgam em seus cavalos pela estrada estreita margeada de vergeis. Tarde. Imagens de pequenas mudas de café plantadas nos sítios e nas fazendas, próximos às estradas onde Dirceu, Cirilo e Miliquito troteam com seus cavalos. Pôr do sol. Dirceu, Cirilo e Miliquito chegam à cancela da Fazenda Paraíso. DOIS NEGROS, de mais ou menos 20 anos de idade, correm para abrir a cancela da fazenda. Casarão da Fazenda Paraíso. Varanda do casarão. Na varanda do casarão está Zenilda, muito bem vestida e bonita. Zenilda vê Dirceu, Cirilo e Miliquito entrando na cancela. Zenilda aproxima-se do muro da varanda do casarão para observar a chegada de Dirceu, Cirilo e Miliquito. Zenilda aproxima-se do casarão da Fazenda Paraíso, frea o cavalo e fica para o lado de cima da varanda. Zenilda vê Zenilda. Um dos dois negros pede para que Dirceu, Cirilo e Miliquito desçam de seus cavalos. O um dos dois negros dá um sinal para Cirilo e Miliquito acompanhá-lo com os cavalos. Cirilo pega a rédea do cavalo de Dirceu. Escada da varanda do casarão. Dirceu sobe pela escada da varanda do casarão. Dirceu e Zenilda se encontram na varanda do casarão e se cumprimentam. DIRCEU VOICE OVER) Depois que Raimundo Sobreiro buscou informações sobre onde ficava a fazenda da dona que estava negociando, por pepitas de ouro, os três hectares cortados de cana. Cirilo, Miliquito e eu numa certa madrugada, pegamos estrada para a tal fazenda. Segundo Raimundo, a fazenda pertencia a uma senhora, qual estava decidida a acabar com o cultivo da canade-açúcar para apostar no cultivo do café. A viagem foi longa e, ao chegar lá, mal acreditei quando soube que a proprietária era uma jovem crioula chamada Zenilda. Ela, pensei, seria a personagem da história de Josias? Se fosse, estava lá, ela, carne 382 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior e osso, naquela varanda para receber-me e negociar comigo os hectares cortados de cana de açúcar. CORTA PARA Varanda do casarão da fazenda Paraíso. Poltronas em um dos cantos da varanda do casarão. Zenilda aponta para Dirceu as poltronas. Dirceu e Zenilda caminham até as poltronas. Dirceu puxa uma das poltronas para Zenilda sentar. Dirceu senta-se em uma das poltronas, frente à Zenilda. ZENILDA Creio que veio devido a notícia que fiz espalhar por aí, sobre a venda de três hectares de cana... DIRCEU Sim, foi devido à notícia. Eu tenho cá algumas pepitas de ouro e creio que podemos fazer um bom negócio... ZENILDA E o senhor está a crer que sou a dona desta fazenda? DIRCEU Por que não? És tão jovem e bonita! Creio também que sejas casada... ZENILDA Não, ainda não... Por enquanto eu não me arrisco a essa loucura... DIRCEU Tem, cá na fazenda, um lugar para que meus dois amigos e eu possamos pernoitar? ZENILDA Há, sim senhor... 383 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Dirceu, desculpe-me eu acabei esquecendo de dizer o meu nome... ZENILDA Dirceu? Nome muito interessante... O meu é Zenilda. Vossemecê pode ficar sossegado que eu vou mandar providenciar os quartos para o senhor e os seus, os seus... DIRCEU Amigos e grandes companheiros. São eles que me ajudam e me fazem companhia durante as minhas viagens... ZENILDA E quanto aos hectares de cana, o senhor vai comprar toda a safra? DIRCEU Quero. O problema no momento é o transporte. A fazenda da senhora é um pouco distante da minha fazenda... Mas como avaliei as estradas de lá, até cá, vi que o transporte pode ser feito de carros de boi... ZENILDA Quanto ao transporte das canas, não se preocupe, eu providenciarei a entrega. Claro que aumentará um pouco em pepitas de ouro, mas creio que não tão caro, a ponto de que o senhor não possa pagar... DIRCEU Isso me tranquiliza muito... Zenilda levanta-se da poltrona e vai até a beira do muro da varanda observar o pátio da fazenda. Dirceu olha para Zenilda um pouco confuso. Zenilda volta a sentar na poltrona ao lado de Dirceu. 384 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Logo percebi que se tratava da mulher, cuja história Josias havia relatado a mim, sobre o seu amor e suas decepções amorosas. Fitei-a com afinco e somente tive certeza de que era a Zenilda do Josias quando, entre uma conversa e outra, ela relatou-me estar à procura de um negro que havia roubado a imagem de uma santa na propriedade dela. DIRCEU (sentado ao lado de Zenilda, na poltrona) Como assim, a senhora foi roubada, cá na fazenda... ZENILDA Sim, eu tinha cá um negro chamado Josias. Eu confiava muito nele, a ponto de deixá-lo entrar e sair da minha casa. Quase que entre nós, coisas de homens e de mulheres, aconteceu um namoro, mas, infelizmente, não sei porque, numa certa madrugada ele fugiu da fazenda roubando-me objetos de valores, inclusive uma imagem de uma santinha de estimação... No início, ouvi dizer que ele andou foragido pelas serras da região, mas depois ninguém nunca mais me deu notícias dele. Eu avisei para alguns sitiantes e fazendeiros da região que se alguém encontrasse o Josias e falasse para mim onde ele estava, ganharia um prêmio. Eu só queria de volta a imagem da santinha... DIRCEU E ninguém nunca se manifestou? ZENILDA Ninguém... Zenilda levanta-se da poltrona e vai até o muro da varanda do casarão. Zenilda olha para o pátio da fazenda. Dirceu continua sentado na poltrona e olha para Zenilda, 385 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (fala por solilóquio) A senhora, dona Zenilda, jamais poderia imaginar que o Josias descansa em paz em minhas terras, lá no cemitério do pé do morro... CORTA PARA Manhã. Estrada. Carros de bois cheios de cana andando pela estrada. HOMENS NEGROS guiam os carros de boi na estrada. Dirceu, Cirilo e Miliquito cavalgam em seus cavalos pelas laterais da estrada. DIRCEU (VOICE OVER) Fechamos o negócio, fiz o pagamento em ouro à Zenilda e, assim que os três hectares de cana foram cortados, com alguns carros de boi carregados de cana seguimos viagem para a nossa fazenda... SEQUÊNCIA 150 – INT./DIA. ESTRADA DE VOLTA À FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FRONDOSA ÁRVORE À BEIRA DA ESTRADA. Meio-dia. Frondosa árvore à beira da estrada. Dirceu, Miliquito e mais alguns HOMENS NEGROS DA FAZENDA PARAÍSO, quais guiam os carros de boi, descansam debaixo da frondosa árvore. Todos comem paçocas tiradas de alguns alforjes e bebem águas de suas devidas cabaças. Dirceu aproxima-se de um dos homens negros da fazenda Paraíso. DIRCEU Por acaso, vós mercê ouviu falar que a dona Zenilda está em busca de uma santa roubada lá na fazenda dela, por um tal de Josias? UM DOS HOMENS NEGROS DA FAZENDA PARAÍSO 386 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Ah, sim, a patroa tá atrás dessa tal santinha faz muito tempo. Ouvimos falar lá na fazenda que a santinha pertence a um homem muito rico... Dizem que esse tal homem rico foi o que deu para a dona Zenilda a fazenda Paraíso... DIRCEU (fala por solilóquio) Ah, sim. Então o tal homem rico é o dom Miguel... Então se ele está procurando pela imagem da santa é porque nela deve contr algum mistério... Quem sabe ouro... Isso mesmo, ouro? Então a santinha deveria ser igual tantas outras chamadas de santa-do-pau-oco... CORTA PARA Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela aberta por Hipólito. Carros de boi carregados de cana, entrando pela cancela. Dirceu, Cirilo e Miliquito em seus cavalos tiram os chapéus e cumprimentam Hipólito. SEQUÊNCIA 151– EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Manhã. Moenda. Casa-de-engenho ou moita. Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva na moagem da cana. Caldo de cana caindo no parol ou tanque. Monte de cana amotoados no canto da casa-de-engenho ou moita. Cachaça pingando do alambique. Grande fogão com tacho de cobre. Enorme balcão de madeira com formas de rapadura. Fogo do grande fogão. Alceu, sentado no grande fogão, enfia uma escumadeira no tacho de cobre e mexe o melado de cana. Oficina de farinha. Grande masseira (ou gamela grande) cheia de farinha de mandioca. Inácia e Eulina torram a farinha de mandioca na assadeira de barro ou trempe de pedra. DIRCEU (VOICE OVER) Quando chegamos à fazenda, percebemos o novo aspecto criado naquele espaço roceiro: canas, barulho da moenda 387 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior tocada por burros, bagaço, garapa, fogo, mel, rapadura, garapa azeda, alambique, cachaça; mandiocas, prensas, massas, beijus e farinha de mandioca. O dia, desde que amanhecia naquela fazenda, transformava-se numa grande festa. SEQUÊNCIA 152 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAMPINAS. CHIQUEIRO DAS OVELHAS. Manhã. Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu cavalgando em seu cavalo pelas campinas da fazenda. Cavalo de Dirceu amarrado em uma árvore. Chiqueiro das ovelhas. Cerca do chiqueiro das ovelhas. Dirceu, Alceu e Endimião na cerca do chiqueiro das ovelhas. ENDIMIÃO Nhô Dirceu sabia que o dono da fazenda lá de cima tá procurando ouro cá na fonte do ribeirão. DIRCEU Ouro? Dono da fazenda de cima procurando ouro, cá na fonte do ribeirão? ENDIMIÃO Uai, desde ontem "tá" um tanto de homem lá cavando as beiradas da fonte pra encontrar ouro... DIRCEU Mas quem disse que lá tem ouro, Endimião? ALCEU Vi falar nhô Dirceu que o novo dono da fazenda tava dando uma volta na beirada do rio que sinhô ia ver sinhá Marília e encontrou uma pedrica d'ouro lá. Ele ficou doido com a pedrica d’ouro e está mandando a negrada dele cavar lá a beirada toda do regato para ver se encontra mais. 388 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Meu Deus, então o coronel Sales era mesmo um homem avarento, a ponto de destruir a natureza em busca de uma riqueza que ali não existe. Josias estava certo ao dizer que "ouro era coisa do demônio e se o homem não tivesse cuidado, virava tolo". ENDIMIÃO Um dos homens brancos que estava comandando os negros, na fonte, pegou dois para castigo, de fazer dó... DIRCEU Como assim? CORTA PARA SEQUÊNCIA 153 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO. Flash back – Relato de Alceu e Endimião. Fonte do ribeirão. HOMENS NEGROS cavando as margens da fonte do ribeirão. DOIS NEGROS largam as ferramentas no chão e correm ao encontro de PAULO, loiro, cabelos grisalhos, alto, magro, de aproximadamente 30 anos, benfeitor da fazenda, qual está sentado no relvado. UM DOS NEGROS Tem ouro cá não nhô Paulo... PAULO (põe-se de pé) Quem dá as ordens cá, sou eu negro preguiçoso... OUTRO UM DOS NEGROS Tem ouro mesmo cá não nhô Paulo, tamo acabando com o riacho... 389 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PAULO Já falei que quem dá as ordens cá, sou eu... Voltem, voltem com os outros e cavem as beiras do riacho... UM DOS NEGROS Carece não, tá estragando a natureza de Deus... OUTRO UM DOS NEGROS Tá sujando a água toda que desce para dar vida a outras pessoas lá embaixo... Relvado. Paulo fica nervoso. Ele pega uma corda, dobra e chicoteia os dois negros. Ele amarra os dois negros numa corda, monta-se no cavalo e arrasta-os por uma pequena trilha do mato. Folhagens próximas à fonte. Alceu e Endimião, entre as folhagens, observam tudo o que está acontecendo na fonte. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 152.1 - CONTINUAÇÃO CHIQUEIRO DAS OVELHAS. - EXT./DIA/ Chiqueiro das ovelhas. Alceu e Endimião voltam à tona, ao lado de Dirceu. ALCEU O homem branco é mal, nhô Dirceu. Ele pegou depois os dois negros, amarrou a corda nos braços deles e saiu arrastando pela pequena trilha do mato... ENDIMIÃO Acho que ele arrastou os dois homens até a fazenda que era do pai da dona Marília... Parece que o povo de lá é povo mal, judiam dos pobres negros... 390 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Como vós mercês viram tudo isso? ALCEU Quando as ovelhas bebiam água da fontinha do lado de cá, a água estava vindo muito suja. Daí, eu e Endimião acompanhamos pela beira do riacho para ver o que estava acontecendo... ENDIMIÃO Foi aí que vimos um tanto de negros cavando a beira do riacho, dizem que procurando ouro e os dois negros apanhando e sendo depois arrastado pelo homem branco é mal feito cão... SEQUÊNCIA 154 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO. Fonte do Ribeirão. HOMENS NEGROS cavando as margens da fonte do ribeirão. Folhagens. Dirceu entre as folhagens observa os homens negros cavando as margens da fonte do ribeirão. DOIS HOMENS BRANCOS vigiam os homens negros cavando as margens do ribeirão. Água do ribeirão escura, devido à lama. DIRCEU (VOICE OVER) Ouro ou qualquer tipo de riqueza transformava-se os homens em tolos. Eu, agora, sabia que próximo à minha fazenda havia um homem chamado Sales, tolamente possuído pela ganância. O ouro encontrado por ele não passava de uma pequena pepita que lancei ali, quando Marília recusou aceitá-la. Se a joguei na margem daquele regato, decerto, foi a mando dos deuses. Talvez eles quisessem fazer-me conhecer até onde ia a ambição do homem, justamente daquele homem, que queria,também por motivos tolos, separar-me de Marília. Eu não atreveria contar a verdade a ele e nem a ninguém sobre a pepita de ouro. Quem sabe ele não aprenderia uma grande 391 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior lição, agindo daquela forma. Se Marília soubesse a peripécia do cunhado, jamais o perdoaria por fazer aquilo com a nossa murmurante fonte. Sales, coitado, jamais encontraria ouro naquela fonte. SEQUÊNCIA 155 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Tarde. Terreiro do fundo da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva estão sentados numa grande mesa debaixo de uma árvore. Bules de café, botija com caldo de cana e gamela com beijus quentinhos, servidos a eles por Inácia e Quitéria. Todos comem, conversam alegremente e dão risada. CORTA RÁPIDO PARA Capela da fazenda. Cavalos soltos no adro da capela da fazenda. DOIS HOMENS BRANCOS, altos e magros contra golpea uma das portas laterais da capela. CORTA RÁPIDO PARA Terreiro do fundo do quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Grande mesa. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva estão sentados na grande mesa debaixo da árvore. Barulho em off do contra golpe da capela da fazenda, qual é dado pelos dois homens brancos é ouvido por Ambrósio na grande mesa debaixo da árvore. Ambrósio para um instante e pede silêncio para todos que estão na grande mesa. Todos se silenciam e olham confusos para Ambrósio. DIRCEU O que foi Ambrósio? Está sentindo alguma coisa? 392 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Ambrósio levanta-se da mesa, dá alguns passos, abaixa e deita-se, colocando o ouvido no chão. Todos olham para ele assustados. Ambrósio põe se pé e grita por Miliquito. AMBRÓSIO Vamos montar rápidos em nossos cavalos, porque estou ouvindo barulhos estranhos vindo não sei de onde, Miliquito... Ambrósio sai correndo para pegar um cavalo. Miliquito também sai em seguida correndo em direção a Ambrósio. Ambrósio e Miliquito pegam dois burricos que estão soltos próximos a casa-de-engenho ou moita e saem galopando de qualquer jeito em direção à cancela da fazenda. CORTA RÁPIDO PARA Capela da fazenda. Os dois homens brancos, altos, magros estão contra golpeando uma das portas laterais da capela CORTA RÁPIDO PARA Terreiro do fundo do quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Grande mesa. Dirceu, Cirilo, Miliquito, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva estão sentados na grande mesa debaixo da árvore olhando uns para os outros sem entender o que estava acontecendo com Hipólito e Miliquito. Cirilo escuta o barulho em off do contra golpe dado na porta da capela da fazenda. Cirilo põe-se de pé. Dirceu olha para ele assustado. DIRCEU Que foi Cirilo, viu alma penada é? CIRILO É barulho de quebradeira, inhozinho... Parece alguém querendo quebrar uma porta... 393 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior RAIMUNDO SOBREIRO A capela, alguém deve está querendo invadir a capela... DIRCEU Meu Deus, estaria de volta, aqui, os botucudos? ZÉ DA VIÚVA Botu o quê? São bichos? DIRCEU Índios, Zé, índios daqueles que comem gente... Zé da Viúva se benze com o sinal da cruz.Cirilo levanta-se da mesa, vê um cavalo arreado amarrado no tronco de uma árvore e corre em direção a ele. Cirilo monta-se no cavalo e sai em direção à capela da fazenda. Cirilo alcança a cancela que está aberta e continuará aberta e some pela estrada. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva levantamse rápidos da mesa e se espalham pelo terreiro. Cavalos, uns com sela, outros não. Montados em cavalos com selas ou não. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva saem dali a galope em direção à cancela da fazenda. Dirceu cavalga na frente, dando sinal com as mãos para que Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva o seguissem. Quitéria e Inácia chegam até a grande mesa debaixo da árvore e vêem a mesa vazia. Quitéria e Inácia olham uma para a outra sem entender o que estava acontecendo. SEQUÊNCIA 156 – EXT./INT./DIA/ CAPELA DA FAZENDA. Capela da fazenda. Em uma das laterais da capela da fazenda estão Miliquito e Ambrósio, cada um com um pau na mão. Na frente deles estão os dois homens brancos acoados na da parede da lateral da capela. Cirilo chega na capela da fazenda montado em um cavalo e vê Miliquito e Ambrósio com paus nas mãos e os dois homens brancos acoados na parede lateral. 394 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CIRILO O barulho veio foi daqui mesmo, Hipólito e Ambrósio já cercaram os culpados... Vou avisar nhô Dirceu e os outros. Cirilo afrouxa a rédea do cavalo, dá meia volta e galopa de volta à estrada para chamar pelos outros da fazenda. Cirilo encontra-se na estrada com Dirceu, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro calvagando rápidos em direção á capela da fazenda. Cirilo, Dirceu e Zé da Viúva chegam a uma das portas laterais da capela da fazenda. Dirceu pula do cavalo e entrega a rédea para Cirilo. Dirceu olha para os dois homens brancos acoados no canto da parede lateral da capela. Ambrósio e Hipólito continuam armados com os paus nas mãos. Dirceu olha para Ambrósio e Hipólito. DIRCEU Hipólito, Ambrósio, podem abaixar os porretes. Nada de violência por cá. Vamos perquirir os moços para saber o que eles estão querendo, cá, em propriedade alheia... AMBRÓSIO Eles dois estavam querendo quebrar a porta da capela, nhô, olha só o sinal das botas deles na porta... HIPÓLITO E se nós não escuscutássemos o barulho, de certo coisa boa eles não iam fazer por cá... Os dois homens brancos arregalam os olhos para Dirceu, para Ambrósio e Miliquito. Ambrósio e Miliquito abaixam os paus que estão nas mãos. Cirilo, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro também dão coberturas para Ambrósio e Miliquito. Os homens brancos, acoados à parede lateral da capela da fazenda, se entreolham confusos. 395 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Creio que vós mercês tenham alguma explicação para tudo isso. Vejo que os senhores vieram de longe e não foram por motivos alheios. UM DOS HOMENS BRANCOS Não queremos fazer mal a ninguém, apenas queremos verificar o interior da capela... DIRCEU Em busca de quê? UM DOS HOMENS BRANCOS Creio que não é de interesse de vós mercê... DIRCEU Mas esta capela pertence à nossa fazenda. UM DOS HOMENS BRANCOS Não, não pertence à fazenda. Esta capela pertence à igreja e é em nome de um sacerdote que estamos cá. DIRCEU Vós mercê poderia nos dizer quem é o sacerdote? UM DOS HOMENS BRANCOS Também não conhecemos o sacerdote, estamos cumprindo uma ordem secreta, uma missão a pedido dele. DIRCEU Qual é a ordem secreta? UM DOS HOMENS BRANCOS Nada grave. Não carece vós mercê e seus empregados e escravos preocuparem-se... Desculpe-nos, senhor o absurdo de querer abrir a porta da capela, forçosamente. Tudo não 396 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior passou de uma grande curiosidade. Pensávamos que a capela, embora esteja bem conservada, estivesse bandonada. DIRCEU Se quiserem entrar na capela eu tenho cá, comigo, a chave da porta de frente... OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS Se for possível, agradaria muito a nós dois... Desta forma, aceitaremos este encômodo como perdão de vossa senhoria, perante a nossa falha. DIRCEU Vamos então até o frontifício da capela. Dirceu e os dois homens vão até o frontifício da capela da fazenda. Dirceu entrega a chave da capela da fazenda para Miliquito. Miliquito entrega o pau para Cirilo e se apressa para abrir a porta da frente da capela da fazenda. Ambrósio segue Miliquito. Outro dos dois homens brancos olha para o frontifício da capela da fazenda e sorri. OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS É aqui mesmo, descobri o principal indício, amigo... UM DOS HOMENS BRANCOS Eu também já havia percebido... Os dois homens brancos olham para Dirceu. OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS Não precisamos entrar na capela, senhor... DIRCEU (meio desajeitado e confuso) Logo que estamos cá. O rapaz abriu a capela... 397 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS Então não custa nada entrar... UM DOS HOMENS BRANCOS Então vamos vistoriar a capela. Bastamos olhar o santo altar... Porta da capela da fazenda. Miliquito entrega a chave da capela da fazenda para Ambrósio. Ambrósio abre a porta da capela da fazenda. Miliquito se põe de pé na porta da capela, feito um dragão do rei. Porta da capela da fazenda aberta. Dirceu e os dois homens brancos entram na capela da fazenda. Hipólito, Cirilo, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro ficam de prontidão na porta da frente da capela da fazenda. DIRCEU (VOICE OVER) Indício de quê? Será se existia mesmo algum mistério a ser desvendado naquela capela? Os dois homens brancos entram na capela da fazenda como se fossem dois furacões. Os dois homens brancos revistam todo o interior da capela, com os olhos. Os dois homens brancos conversam entre eles, apontam alguns cantos do altar da capela. Os dois homens brancos vão circulando a capela. Dirceu para em dos cantos da capela e fica observando os dois homens brancos. DIRCEU (fala por solilóquio) Seriam aqueles homens os anjos, conforme o velho Farias dissera para mim? CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir: 398 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 135 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA. Dirceu balança a cabeça sinalizando um "sim". Farias olha para Dirceu com um olhar de censura ou de medo. FARIAS Sinhozinho deve ter cautela. Sinhozinho tem de saber que o mistério não pertence a vossemecê e a ninguém. Ele é um perigo para a colônia e quando tiver no poder de sinhozinho, escute a voz do Espírito Santo e aja conforme a vontade DELE. DIRCEU Não entendi... FARIAS Sinhozinho vai entender a partir do dia que os anjos aparecerem. Um anjo é grande, outro maior, um ajuda, outro engana. Os caminhos de sinhozinho vão ser iguais a uma encruzilhada. DIRCEU Um desses anjos descerá do céu para entregar-me uma chave? VOLTA PARA SEQUÊNCIA 156.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA/ CAPELA DA FAZENDA. O dois homens brancos continuam circulando pelo interior da capela da fazenda observando tudo com os olhos e comentando um com o outro alguma coisa, ora apontando com os queixos ou com as mãos. Dirceu 399 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior continua parado em dos cantos da capela da fazenda observando os dois homens brancos vasculharem com os olhos todo o interior da capela. DIRCEU (VOICE OVER) Não, não seriam. Talvez aqueles homens estivessem procurando pela imagem de Santa lfigênia, qual Josias escondera juntamente com o tesouro. Onde o falecido Josias escondeu a imagem? Será se a imagem estaria enterrada mesmo em algum lugar da serra, por onde Josias passou antes de chegar em minha casa? O que teria de mistério com a tal da imagem? Seria uma relíquia preciosa, a ponto de dom Miguel investir naquela empreitada? Será se aqueles dois homens não estariam cá a serviço de Dom Miguel? Será se Dom Miguel descobriu que o Josias morou nesta fazenda e cá, ele está morto e enterrado? Os dois homens brancos circulam pela capela da fazenda e chegam até a porta de frente. Os dois homens brancos saem da capela. Eles cumprimentam Miliquito, Cirilo, Ambrósio, Hipólito, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro. Dirceu vê os dois homens brancos sairem pela porta da capela e apressa para alcançar a porta. Cavalos dos dois homens brancos. Os dois homens brancos montam em seus cavalos e saem cavalgando rapidamente. Hipólito e Ambrósio saem correndo para montar nos cavalos e perseguir os dois homens brancos. Dirceu sai pela porta da capela e ao ver Hipólito e Ambrósio correndo para montar nos cavalos, impedi-os dessa ação. DIRCEU Não, não, deixem os homens partirem! Coitados, eles cometeram um lêdo engano... Nesta capela não há nada capaz de interessar a eles... AMBRÓSIO 400 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Será se não tem mesmo nada mesmo pra eles aqui, nhozinho? Tem gente besta no mundo que procura confusão atoa. Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva dão risadas. Dirceu coloca o chapéu na cabeça e dirige-se para pegar o cavalo. CORTA PARA Tarde. Terreiro do fundo da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva estão novamente sentados na grande mesa debaixo da árvore. Bules de café e gamela com beijus quentinhos, servidos por Inácia e Quitéria. Todos conversam animadamente, dando risadas do recente episódio. SEQUÊNCIA 157 – INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Quarto de Dirceu. Luzes de candeeiros iluminam o quarto de Dirceu. Dirceu está sentado confortavelmente na cama. Ele fala por solilóquio. DIRCEU Coisa mais estranha, primeiro Zenilda dizia estar à procura de uma imagem, mentindo ter sido roubada por um negro em sua fazenda. Agora aparecem aqui dois homens estranhos cumprindo ordens secretas a fim de vistoriar algo na capela da fazenda? Quem sabe, dom Miguel não estava por trás daquilo? Segundo Josias, ele não havia vingado a morte dos seus entes, com as pessoas erradas? CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir. 401 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 149 INT./EXT./DIA. REGIÃO OUROPRETANA. FAZENDA PARAÍSO. VARANDA DO CASARÃO DA FAZENDA PARAÍSO. Dirceu sentado ao lado de Zenilda, na poltrona. DIRCEU Como assim, a senhora foi roubada, cá na fazenda... ZENILDA Sim, eu tinha cá um negro chamado Josias. Eu confiava muito nele, a ponto de deixá-lo entrar e sair da minha casa. Quase que entre nós, coisas de homens e de mulheres, aconteceu um namoro, mas, infelizmente, não sei porque, numa certa madrugada ele fugiu da fazenda roubando-me objetos de valores, inclusive uma imagem de uma santinha de estimação... No início, ouvi dizer que ele andou foragido pelas serras da região, mas depois ninguém nunca mais me deu notícias dele. Eu avisei para alguns sitiantes e fazendeiros da região que se alguém encontrasse o Josias e falasse para mim onde ele estava, ganharia um prêmio. Eu só queria de volta a imagem da santinha... DIRCEU E ninguém nunca se manifestou? ZENILDA Ninguém... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 157.1 - CONTINUAÇÃO - INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. 402 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama prossegue com o seu solilóquio. DIRCEU (fala por solilóquio) A Zenilda queria de volta a imagem da santinha... Mas uns dos homens que trabalha para ela disse que a imagem que ela procurava era para um homem muito rico. Decerto, seria esse homem rico o dom Miguel... Ah, isso mesmo, isso constava-se no relato de Josias... CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir. SEQUÊNCIA 150 – INT./DIA. ESTRADA DE VOLTA À FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FRONDOSA ÁRVORE À BEIRA DA ESTRADA. DIRCEU Por acaso, vós mercê ouviu falar que a dona Zenilda está em busca de uma santa roubada lá na fazenda dela, por um tal de Josias? UM DOS HOMENS NEGROS DA FAZENDA PARAÍSO Ah, sim, a patroa tá atrás dessa tal santinha faz muito tempo. Ouvimos falar lá na fazenda que a santinha pertence a um homem muito rico... Dizem que esse tal homem rico foi o que deu para a dona Zenilda a fazenda Paraíso... VOLTA PARA 403 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 157.2 – CONTINUAÇÃO - INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama prossegue com o seu solilóquio. DIRCEU (fala por solilóquio) Segundo o relato de Josias, a família de dom Miguel tinha grande estima pela imagem da santinha, dizendo que ela era uma relíquia de família. Seria mesmo? Se Josias estava certo do que relatou a mim... VOLTA PARA Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no relato de Josias, conforme corte a seguir. Este flash back pode ser apresentado em off (fica a critério do Diretor). SEQUÊNCIA 36.6 – (CONTINUAÇÃO) - EXT./DIA. FAZENDA DE DOM MIGUEL. PÁTIO, FRENTE AO CASARÃO DA FAZENDA. DOM MIGUEL (fica alegre, confuso e encabulado. Solta com força o seu sotaque português) É a imagem de Santa Ifigênia, veio de Portugal, era uma relíquia de família. A santa pertencia à minha adorável mãezinha... Leve-nos até essa maldita fazenda. Queremos acabar com o dono e com toda a sua família. Quero entregar a eles o troco, da mesma forma que eles fizeram com o meu pai, com os meus dois irmãos e todo o nosso povo... 404 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VOLTA PARA CAPÍTULO 9 SEQUÊNCIAS 157.3-168 Personagens deste capítulo: Dirceu Marília Zé Tomázio Rosa Vívila Cirilo Miliquito Garoto branco (14 anos) Vívila Cirilo Miliquito Garoto branco (14 anos) Padre Rocha Índios (homens, mulheres e crianças) Padres Jesuítas Padre Rocha (25 anos) Padre Fernandez Fiéis (pessoas brancas) Pessoas de Vila Rica (procissão) Mulheres, homens e crianças Homens e mulheres negros (Vila Rica) Homens brancos (liteiras) Feirantes e compradores Informantes Joana Antônio Francisco Lisboa Vários escultores (relato de Antônio Francisco Lisboa) Ambrósio FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 36.3 2. Sequência 166 405 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior 3. Sequência 166 SEQUÊNCIA 157.3 – CONTINUAÇÃO - INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama prossegue com o seu solilóquio. DIRCEU (fala por solilóquio) Lembrando detalhadamente da história contada a mim, por Josias, eu entendo, agora, que o interesse de dom Miguel ligava-se puramente ao ouro. A imagem julgada por ele como a uma velha relíquia de família, na verdade não se passava de um instrumento de transporte ilegal de ouro ou pedras preciosas. É isso mesmo, Josias decerto havia descoberto isso... VOLTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no relato de Josias, conforme corte a seguir. SEQUÊNCIA 36.3 - INT. NOITE. FAZENDA PARAÍSO. CELEIRO. QUARTO DE JOSIAS. (...) Caixa de couro aberta. Josias tira de dentro da pequena caixa de couro uma pequena imagem de uma santa esculpida em cedro. A imagem é de Santa Ifigênia. Josias coloca a imagem de cedro em cima da cama. Josias enfia a mão na caixa de couro. Rosto de Josias. Josias sorri. Mãos de Josias fechadas. Josias abre as mãos tendo nelas algumas pepitas de ouro. Imagem de Santa Ifigênia em cima da cama. Josias pega a imagem de Santa Ifigênia e olha406 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior a atentamente, sorrindo. Josias beija a imagem de Santa Ifigênia e faz o sinal da cruz. NOTA: esta ação praticada por Josias é sobreposta na narração em off, por Dirceu. DIRCEU (OFF) A imagem de Santa lfigênia, coitada, não passava de uma "santinha do pau-oco", utilizada para o tráfico do ouro. Isso mesmo, essa prática era muito utilizada entre mineradores e atravessadores de pedras preciosas... Então Josias, sem dúvida, havia escondido as pequenas pepitas de ouro e a imagem da Santa lfigênia no altar da capela... Será? Como não, se antes de morrer, ele fez da capela o seu lugar de refúgio? Está aí, o achado! O velho Farias devia ter presenciado tudo e, devido ao medo, queria alertar-me sobre os perigos de portar algo que não pertencia a mim ou a ninguém da fazenda. Mas o discurso do velho Farias foi tão confuso... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 135 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA. Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir: FARIAS Quá, o resto vós mercê saberá com o tempo, creio que falei o que haveria de falar... O resto depende de como se desatará o mistério... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 157.4 – CONTINUAÇÃO - INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. 407 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama prossegue com o seu solilóquio. DIRCEU (Fala por solilóquio) Desatar um mistério. De onde o velho Farias tirou esse argumento? Ele referia o mistério ligado ao pequeno altar da capela... (sorri e prossegue o solilóquio) Antônio Francisco Lisboa disse também algo sobre aquele pequeno altar da capela. Mistério, a palavra chave se definia em mistério. Caberia a mim, secretamente, solucioná-lo. SEQUÊNCIA 158 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAMPINAS. Flash Back – Ilusão de Dirceu. Manhã. Campinas da fazenda. Dirceu cavalga pelas campinas da fazenda. Dirceu frea o cavalo, observa os bois pastando, os pássaros voando e toda a colina verdejante. Ele imagina Marília cavalgando com ele. Marília cavalga em um cavalo branco, mas quando Dirceu pareia-se com o cavalo dela, ela desaparece. Dirceu sorri e continua cavalgando. Penhasco. Água despencando-se do penhasco. Lagoa. Pássaros voando. Animais silvestres correndo no mato. DIRCEU (VOICE OVER) Fechei os meus olhos e fiquei imaginando se Marília estivesse ali em minha companhia. Como seria bom e rico o meu passeio. Na medida em que eu cavalgava colocava-me observador de toda a natureza. O barulho do vento e o sussurro da água, despencando-se do penhasco, faziam a minha alma, antes livre e liberta, a sentir-se presa ao amor e a saudade de alguém que gritava por meu nome por intermédio dos cantos dos pássaros, em algum lugar. 408 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Marília, ilusoriamente, aparece galopando em um cavalo branco. Dirceu cavalga ao encontro dela. Marília desaparece. Dirceu circula com o cavalo, procurando por Marília. Ele grita. DIRCEU Marília, tu chamas por mim? Marília, ilusoriamente, aparece galopando em um cavalo branco. Dirceu cavalga ao encontro dela. Marília desaparece. Dirceu circula com o cavalo, procurando por Marília. Ele grita novamente. DIRCEU Espera, minha amada, que eu vou. Marília, ilusoriamente, aparece galopando em um cavalo branco. Dirceu cavalga ao encontro dela. Marília desaparece novamente. Dirceu circula com o cavalo, procurando por Marília. DIRCEU Longe de ti Marília, o mesmo não sou. Relvado. Cavalo de Dirceu e cavalo branco de Marília soltos no relvado, lado a lado. Marília e Dirceu deitados no relvado, beijando-se. Dirceu evapora-se de repente dos braços de Dirceu. Dirceu fica sozinho, sentado no relvado. Cavalo de Dirceu também sozinho, solto no relvado. DIRCEU Antes de ficar louco, vendo Marília por toda parte, tenho de ir urgente à Vila Rica. Em Vila Rica eu sei que a minha Marília está com os lábios e o coração, sedentos de amor... SEQUÊNCIA 159 – INT. /EXT. VILA RICA. EMPÓRIO DE ZÉ TOMÁZIO. MATRIZ N. SRA. DA CONCEIÇÃO. 409 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Vila Rica. Ruas de Vila Rica. Dirceu troteia-se devagar pelas ruas de Vila Rica. Placa do empório de Zé Tomázio. Dirceu amarra o cavalo em um poste de frente ao empório do Zé Tomázio. Ele entra no empório de Zé Tomázio. Zé Tomázio termina de atender alguns fregueses e dá um sinal para que Dirceu encoste-se no balcão. ZÉ TOMÁZIO Vieste ver a dona Marília? DIRCEU Sim, o amigo tem visto-a, por esses dias? ZÉ TOMÁZIO Sabe que a dona Marília não mais apareceu por cá? Creio que ela arrumou outra freguesia... DIRCEU Ultimamente a dona Marília está sendo controlada pelo senhor cunhado dela e pela irmã... ZÉ TOMÁZIO E dificultando tudo, não senhor Dirceu? DIRCEU Como se eu estivesse feito mal a todos os deuses, Zé Tomázio... ZÉ TOMÁZIO (ri) Podes brigar com todos os deuses, senhor Dirceu, menos com o cupido... Queres ver a dona Marília, não queres? Pois vá já até a Matriz N. Sra. da Conceição que eu mandarei um recado para que dona Marília vá até lá... 410 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Irei sim, amigo Zé Tomázio e mais tarde volto cá para comprar alguns mantimentos. ZÉ TOMÁZIO E contar-me também, como foi o encontro com a bonita donzela, não é mesmo senhor Dirceu? Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Visão panorâmica da Matriz N. Sra. da Conceição. Dirceu amarra o cavalo em um poste próximo à Matriz N. Sra. da Conceição. Ele anda devagar até a Matriz N. Sra. da Conceição. Ele entra na Matriz Nossa Senhora da Conceição, senta-se em um dos bancos e fica a contemplar a beleza dela, com os olhos. Marília chega sozinha na Matriz N. Sra. da Conceição, entra e vê Dirceu sentado em um dos bancos. Marília aproxima-se de Dirceu e senta-se do lado dele. ALGUMAS MULHERES entram na Matriz N. Sra. da Conceição e se ajoelham próximo aos altares. Dirceu e Marília conversam através de cochichos. DIRCEU Estou morrendo de saudade de vós mercê... MARÍLIA Eu também... DIRCEU Vamos sair daqui e procurar outro lugar... MARÍLIA Vamos lá para fora da matriz, quem sabe há algum lugar reservado para conversarmos... DIRCEU E quem disse que eu quero só conversar? 411 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Vós mercê e os seus caprichos... Marília levanta-se do banco e sai pelo corredor da Matriz N. Sra. da Conceição. Dirceu levanta-se em seguida e também sai. Porta da Matriz N. Sra. da Conceição. Dirceu e Marília olham para todas as ruas de Vila Rica. Rosa, a aia de Marília, surge em uma das pequenas ruas perto da Matriz N. Sra. da Conceição. Marília vê Rosa e afasta-se um pouco de Dirceu. MARÍLIA É a Rosa, olha lá, ela vem ao meu encontro... DIRCEU Vós mercê contou a ela sobre o nosso encontro, cá? MARÍLIA Sim! Marília olha para a direção de Rosa. Rosa vê Marília e Dirceu e apressa os passos. DIRCEU Vou entrar na igreja e desapareço pelas portas laterais... MARÍLIA Não, não carece nada disso. Não assiustadora... teremos notícia ROSA (aproxima-se de Marília e de Dirceu com um ar de cansada) Sinhazinha pode ir, está tudo resolvido. Dona Amarilis já foi para a fazenda... MARÍLIA (sorri para Rosa) 412 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior E a Vívila? Ela está fazendo o que eu a pedi? ROSA Tudo conforme sinhazinha pediu... DIRCEU (confuso, com os olhos arregalados para Marília e Rosa) O que está acontecendo, que eu não sei? Não atrapalhar vós mercê, dona Marília... Marília e Rosa dão risadas. Dirceu continua com os olhos arregalados e confuso. MARÍLIA Vós mercê está convidado para almoçar comigo, em casa... DIRCEU Está louca, dona Marília? Quer arranjar mais confusão? MARÍLIA Prometemos lutar por nós dois, ou não? DIRCEU Se for assim, aceito o convite. MARÍLIA Vou para a casa com a Rosa, ajeitar alguma coisa que falta e depois vós mercê pode ir... DIRCEU Farei uma compra na venda de Zé Tomázio e, depois do almoço, pegarei a estrada para a minha fazenda... MARÍLIA Faça o que tenha de fazer, contando que não falte ao nosso compromisso... 413 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ROSA (olha para Dirceu) Fizemos também a combinação de que vós mercê não precisa chamar no portão da casa. Basta chegar e entrar, nós vamos deixar as portas frouxas... UM BANDO DE ANDORINHAS POUSA NA TORRE DE UMA IGREJA DE VILA RICA. SEQUÊNCIA 160 – INT. /EXT. VILA RICA. CASA DE DOM MANUEL. Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Venda de Zé Tomázio. Dirceu no balcão comprando alguns mantimentos na venda de Zé Tomázio. Grande relógio de parede na sala de visitas da casa de dom Manuel. Sala de jantar da casa de dom Manuel. Grande mesa da sala de jantar da casa de dom Manuel. Dirceu e Marília estão sentados na grande mesa da sala de jantar da casa de dom Manuel. Vívila e Rosa servem o almoço para Marília e Dirceu. Marília e Dirceu servem-se da comida, cautelosamente. MARÍLIA Se souberes o que estou prestes a descobrir, Dirceu, jamais acreditarias... DIRCEU Estás atrás de desvendar mistérios, é? MARÍLIA Quase, mas ainda não posso contar-te. Deixe-me ter certeza e tu serás a peça principal para o meu plano... 414 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Vais então deixar-me cheio de suspenses? MARÍLIA Quem sabe isso não ajudará vós mercê a preparar-te o espírito? VÍVILA COLOCA NA MESA UMA BONITA VASILHA COM UMA SOBREMESA MINEIRA. SEQUÊNCIA 161 – EXT./ INT./DIA. CAPELA DA FAZENDA. Tarde. Capela da fazenda. Dirceu desce do cavalo e o solta no adro da capela. Frontifício da capela. Dirceu observa todo o frontifício da capela. Porta da capela da fazenda. Dirceu abre a porta da capela da fazenda e entra. Interior da capela, os olhos de Dirceu passeam entre as paredes, os bancos, o piso, o pequeno púlpito e o altar. DIRCEU O que haveria de tal misterioso, cá, nesta capela... Interior da capela da fazenda, os olhos de Dirceu passeam entre as paredes, os bancos, o piso, o pequeno púlpito e o altar. DIRCEU (VOICE OVER) Se é que existe algum mistério nesta capela, eu jamais poderei ignorá-la. Por enquanto devo servir-me de informações sobre a história de sua criação. Não é em qualquer fazenda que há uma capela tão complexa quanto esta... Dirceu olha para o teto da capela da fazenda. Ele fica observando o pequeno afresco dos anjos, tendo ao centro São Rafael e São Miguel Arcanjo. 415 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) O anjos! Seriam aqueles anjos do afresco, responsáveis pelo mistério? Farias disse que eu ia entender tudo a partir do dia que os anjos aparecerem. Segundo ele, um anjo é grande, outro mais grande, um ajuda, outro engana e que os meus caminhos serão igual a uma encruzilhada. CORTA PARA Imagens de anjos do afresco da capela da fazenda. DIRCEU (olha fixamente para o afresco da capela) Um desses anjos descerá do céu para entregar-me uma chave? SEQUÊNCIA 162 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. Quintal de frente da Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu apeia-se do cavalo ao encontrar com Cirilo e Miliquito. DIRCEU Cirilo, Miliquito, quero que vós mercês preparem para mim uma pequena encomenda para eu levar para o padre Rocha em Vila Rica... CIRILO Nhô vai ainda hoje para Vila Rica? DIRCEU Não, Cirilo, irei amanhã bem cedo... MILIQUITO Nhô vai sozinho de novo? 416 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Sim, mas quem está com Deus, nunca está sozinho... Preparem para eu levar ao padre Rocha quatro rapaduras, dois potes de melado, cinco queijos frescos e curados, alguns beijus e duas ou três medidas de farinha de mandioca... CIRILO Nhô Dirceu vai levar também um jumento com a carga? DIRCEU Não, como vou sozinho, creio ser um pouco incômodo. Temos alguns sacos feitos de juta e algodão, pegue um deles. Creio que caberá a encomenda e como eu tenho feito outras vezes, amanhã cedo, amarrarei o saco na garupa do cavalo... CIRILO Nhô sim... Eu e Miliquito vamos fazer tudo direitinho... DIRCEU Deixem o saco no canto da varanda, que amanhã cedo é só colocá-lo na garupa do meu cavalo... SEQUÊNCIA 163 – INT./EXT./ VILA RICA. CASA DO PADRE ROCHA. Manhã. Vila Rica. Casa do padre Rocha. Porta da casa do padre Rocha. Dirceu está na porta da casa de Padre Rocha sendo atendido por um garoto branco, de mais ou menos 14 anos de idade. DIRCEU Padre Rocha se encontra em casa? GAROTO BRANCO Sim, mas se5 for alguma coisa a respeito de igreja ele só atende na... 417 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não, é pessoal. Eu trouxe algumas encomendas para ele... Cavalo de Dirceu. O garoto branco olha para o saco amarrado na garupa do cavalo. GAROTO BRANCO Quer que eu receba a encomenda? DIRCEU (demonstra-se um pouco impaciente) Não, não posso entregar-lhe a encomenda, porque eu preciso também conversar um pouco com o padre Rocha... Ele está bem, não está? O garoto branco faz "sim" com a cabeça e entra rápido para dentro da casa do padre Rocha. Dirceu pula do cavalo e lhe segura o arreio, aguardando pelo padre Rocha. Padre Rocha aparece na porta da casa. DIRCEU Bom dia, padre Rocha! Não quero incomôdá-lo. Apenas passei por cá para deixar-lhe uma encomenda e receber-lhe as bênçãos... PADRE ROCHA Deixar uma encomenda? Uma encomenda a mando de quem? DIRCEU A mando de ninguém, padre Rocha, eu mesmo fiz o capricho de trazer-lhe uma encomenda minha e de todo o pessoal lá da fazenda Ribeirão do Meio... PADRE ROCHA (olha para Dirceu atentamente) Ah, vejo cá, então, o filho do Zé Antônio... 418 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Eu mesmo, padre, o Dirceu... PADRE ROCHA O mesmo, teimoso igual ao pai, quando coloca uma coisa na cabeça... DIRCEU Eu trouxe cá, padre Rocha, algumas especiarias da minha fazenda para vossa reverendíssima provar... PADRE ROCHA Isso deixa-me surpreso, pois ultimamente ninguém tem lembrado deste velho pároco... Cavalo. Dirceu solta o arreio do cavalo e tira o saco de juta e algodão. Ele coloca o saco no chão. O garoto branco aparece novamente na porta da casa do padre Rocha, vindo do lado de dentro. Padre Rocha pede ao garoto para amarrar o cavalo de Dirceu em um poste próximo à casa. Dirceu entrega o arreio do cavalo para o garoto branco. Padre Rocha convida Dirceu para entrar. Dirceu levanta o saco de juta e algodão cheio de mantimento. CORTA PARA Grande sala da casa de padre Rocha com poltronas e uma grande mesa. Dirceu e padre Rocha estão sentados à mesa. Saco de juta e algodão aberto entre as pernas de Dirceu. Dirceu vai tirando do saco de juta e algodão os mantimentos e colocando-os em cima da mesa: cinco queijos frescos e curados; um alforje com as três medidas de farinha de mandioca; uma trouxa de pano com beijus; dois portes de melado e quatro rapaduras. O padre Rocha aprecia com os olhos os mantimentos. PADRE ROCHA Só mesmo o grande e bondoso Deus, meu filho, para abençoar e fazer prosperar toda a riqueza em sua fazenda... 419 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Vós mercê tem uma alma boa, foi capaz de lembrar do pobre pároco, cá, já cansado e quase preparado para entregar a alma ao criador... DIRCEU Que nada, padre Rocha, vossa reverendíssima ainda vai viver muitos anos. Ainda há de salvar muitas almas para Deus... PADRE ROCHA É o nosso dever de cristão, meu filho... DIRCEU É verdade padre Rocha, pensando na qualidade de bom cristão, tenho preocupado em estar pelo menos uma ou duas vezes por mês, reunindo os fiéis da minha região na nossa santa capelinha... PADRE ROCHA (ajeita-se na poltrona) A capela, eu sei parte da história daquela capela... DIRCEU Um dia virei cá e roubarei o seu tempo para ouvir a história daquela capela, padre... PADRE ROCHA Não precisa de ser um longo tempo, meu filho, tudo o que eu sei se resumo em muito pouco... mas é a história da capela em toda a sua essência... Dirceu olha para as confortáveis poltronas da sala. O padre Rocha também olha para as poltronas. O padre Rocha põe-se de pé. PADRE ROCHA Vamos nos acomodar naquelas poltronas. Elas são macias e não cansam os nossos traseiros... 420 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Padre Rocha e Dirceu riem enquanto dirigem-se para as poltronas. Os dois sentam-se lado a lado. DIRCEU E não cansando os nossos traseiros padre Rocha, eu poderei gastar mais tempo ouvindo a história da capela da minha fazenda... Padre Rocha e Dirceu conversam animadamente. DIRCEU (VOICE OVER) Embora eu soubesse a história da fundação da capela da minha fazenda, não custava, naquele momento, pedir ao padre Rocha que a me contasse segundo a versão dele. Tudo o que eu faria era prestar atenção aos detalhes fornecidos por ele, ligando os pontos mais importantes para o início daquela intrigante investigação. Entre uma conversa e outra, aproveitei um momento oportuno para pedir a ele que falasse sobre a construção da capela na fazenda. CORTA PARA Padre Rocha coça a cabeça, levanta-se da poltrona e dirige-se à enorme janela da sala, onde respira tranquilamente. Dirceu acompanha o movimento do padre Rocha apenas com os olhos. Padre Rocha volta novamente para a poltrona e ajeita-se o corpo. Padre Rocha tosse duas ou três vezes, limpa a garganta e inicia a narrativa. PADRE ROCHA Não sei se vós mercê sabe, os jesuítas, nome dado aos membros da Companhia de Jesus, desde o descobrimento do Brasil, cujos ideais perseveravam na defesa da fé, era uma ordem religiosa de caráter masculina, fundada em 1540, pelo sacerdote espanhol, Inácio de Loiola. Sua atividade era puramente intelectual, pedagógica, missionária e assistencial, tendo como lema "Ad Majorem Dei Gloriam”. Nove anos 421 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior depois, em 1549, um grupo dessa companhia, liderado pelo padre Manuel da Nóbrega, instalou-se no Brasil. Dessa forma, em 1553, data em que o padre Anchieta chegou ao Brasil, foi criada aqui a "Província Jesuítica do Brasil". A partir do século XVI, os jesuítas introduziram o ensino das artes e dos ofícios necessários à vida cotidiana da colônia, principalmente à do sertão. Eles não somente se preocupavam com as missões catequéticas, como também procuravam preservar as línguas indígenas registrando os fatos importantes de seu tempo, e foi justamente devido a essa importância que alguns desses religiosos chegaram a essa região. SEQUÊNCIA 164 – EXT./DIA – FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. ALDEIA DOS ÍNDIOS. CAPELA DA FAZENDA. Flash Back – Relato do Padre Rocha Legenda: "Fazenda Ribeirão do Meio, 1741". Aldeia dos índios. MULHERES ADULTAS INDÍGENAS, umas cuidando dos filhos, outras da agricultura, plantando e/ou colhendo mandioca, feijão e milho, outras fabricando objetos de cerâmica, vasos e potes e outras preparando os alimentos para o consumo, colhendo frutos, fabricando a farinha de mandioca e o beiju e tecendo redes. Grande aldeia com um tanto de crianças indígenas sentados em grupos. Os PADRES JESUÍTAS estão no meio das crianças indígenas, ensinando-as algumas tarefas. HOMENS ADULTOS INDÍGENAS, uns caçando animais selvagens; outros pescando; outros fabricando instrumentos de caça e pesca. ÍNDIOS de várias aldeias guerreando-se. Setas de flechas voando por todo o lado. Algumas setas acertam índios e índias, ora pelas costas, ora no peito. Índios e índias mortos, caídos no terreiro. Aldeias sendo incendiadas. Ocas pegando fogo. MULHERES, HOMENS e CRIANÇAS INDÍGENAS correndo pelo mato. Trilhas no mato. Os padres jesuítas correm salvando algumas crianças e mulheres indígenas. 422 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PADRE ROCHA (OFF) Nessa época, algumas tribos indígenas habitavam esta região nos entrementes de um tempo e outro. As terras de Vila Rica, por não serem produtivas, não os interessavam, fazendo com que eles procurassem a região, onde se localiza a fazenda Ribeirão do Meio. Desde 1741, os jesuítas trabalhavam em prol de fixá-los na região. Porém, como os índios viviam migrando de uma região à outra, a tarefa dos padres tornavase difícil. Os índios mais comuns dessa época eram os goitacás, tupiniquins, guaianás e carajás, entre outros que vinham das margens do rio, que segundo os índios, chamavase Opará, batizado, posteriormente, pela civilização como o Rio São Francisco. A missão dos jesuítas resumia-se em ajudálos a se aldeiarem e a torná-los cristãos. SEQUÊNCIA 164.1 – CONTINUAÇÃO - RELATO DO PADRE ROCHA. EXT./DIA – FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. ALDEIA DOS ÍNDIOS. CAPELA DA FAZENDA. Legenda "Fazenda Ribeirão do Meio, 1750-1753”. Fazenda Ribeirão do Meio. Lugar descampado. Bandeira da ordem dos Jesuítas, suspensa em um mastro, balançando com o vento. Na bandeira há a seguinte descrição "Ad Majorem Dei Gloriam” e a sigla abreviada "A.M.D.G." A bandeira é branca, contendo ao centro o coração de Jesus Cristo, na cor vermelha (Sagrado Coração de Jesus). PADRE FERNANDEZ, espanhol, alto, magro, cabelos lisos e ruivos, pele clara, debaixo do mastro em que está a bandeira da Ordem dos Jesuítas. Depois se vê que, juntamente com ele, há outros padres da companhia de Jesus, um pouco afastados dele. PADRE FERNANDEZ Cá, onde está fincada esta bandeira da Ordem dos Jesuítas será construída uma capela. Se nós conseguirmos, com o tempo, fixar os índios por cá, nesta região, o nosso trabalho será uma grande bênção... 423 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Construção da capela da fazenda: taipeiros, pedreiros, carpinteiros e cortadores de pedras, trabalhando. Capela da fazenda construída. (ação conforme a sequência 53). Ou pode surtir um efeito substituindo a bandeira da Ordem dos Jesuítas na torre da capela da fazenda e em seguida mostrando todo o frontifício dela. CORTA PARA Interior da capela da fazenda, destacando-se o altar. Padre Rocha, jovem, 25 anos, ao lado do padre Fernandez. PADRE FERNANDEZ Rocha, entre todos os padres de nossa companhia, vós mercê foi o escolhido para celebrar a primeira missa desta capela... PADRE ROCHA (assusta-se) Eu? Mas por que eu, padre Fernandes? Uma missa tão importante, de inauguração de uma capela? PADRE FERNANDEZ Porque vivemos de acordo com os desígnios de Deus, não é padre Rocha? Mas não se preocupe, porque eu prepararei a missa, quanto aos textos da vulgata. O tema da missa será em torno da última ceia de Cristo, dando valor enfático à traição de Judas Iscariotes, o único apóstolo de Jesus que não era galileu. PADRE ROCHA A missa será celebrada mesmo no dia oito de maio, padre Rocha? Esse dia dará numa terça-feira... Não seria melhor em um final de semana? PADRE FERNANDEZ Tudo está conforme tem de estar para acontecer padre Rocha... 424 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FADE OUT/FADE IN Capela da fazenda. Detalhes do altar e do púlpito da capela. O altar da capela parece um túmulo, cujos riscos foram copiados da tumba de Artaxerxes II, da Pérsia. Um pequeno púlpito simples, contornado e cheio de cores complexas, um pequeno afresco com anjos, tendo ao centro São Rafael e São Miguel Arcanjo. As pinturas são barrocas. FIÉIS na capela (os fiéis são pessoas brancas). ALGUNS ÍNDIOS (homens, mulheres e crianças), acompanhados pelos padres anchietanos, nos cantos laterais da capela. Padre Rocha no altar da capela da fazenda celebra a missa. Púlpito. O padre Fernandez falando ao povo através do púlpito. PADRE ROCHA (OFF) A missa foi celebrada no dia 08 de maio, numa terça-feira, uma manhã ensolarada, do ano de 1753. A capela estava cheia de fiéis. Eu celebrei a Santa Missa como se fosse a primeira missa celebrada em toda a minha vida. Preguei a leitura da vulgata, ilustrando todo o significado da traição do Judas Iscariotes... No final da celebração, o padre Fernandez subiu no pequeno púlpito da capela e confessou para todos sobre a importância daquela capela ali, naquela região. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 163.1 – INT./ DIA. CASA DO PADRE ROCHA. Sala da casa do padre Rocha. Dirceu e padre Rocha estão sentados na poltrona. DIRCEU É verdade, padre Rocha, que o padre Fernandez argumentava, naquela época, que o segredo mais importante do mundo existia naquela capela. 425 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PADRE ROCHA Ora, meu filho é porque, depois da primeira missa celebrada naquela capela, o padre Fernandez veio a falecer. DIRCEU Como assim, de repente? VOLTA PARA SEQUÊNCIA 164.2 – CONTINUAÇÃO - RELATO DO PADRE ROCHA. EXT./INT./DIA – FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. ALDEIA DOS ÍNDIOS. CAPELA DA FAZENDA. Ano de 1753. Capela da fazenda. Padre Fernandez de joelhos, orando, dentro da capela da fazenda. Adro da capela. Aldeia de índios. Grande oca indígena. PADRES DA COMPANHIA DE JESUS dentro da grande oca indígena, sentados em uma mesa fazendo as suas refeições. Capela da fazenda. Padre Fernandez de joelhos, orando, dentro da capela da fazenda. Portas da capela da fazenda fechadas. UM DOS PADRES DA COMPANHIA DE JESUS aproxima-se das portas da capela da fazenda, empurrando-as. Grande escada. O um dos padres da Companhia de Jesus arrasta a grande escada. Uma das janelas laterais da capela da fazenda. Ele ergue a escada em uma das janelas laterais da capela da fazenda, sobe e observa o interior da capela. Altar da capela da fazenda. Padre Fernandez está deitado nos pés do altar da capela da fazenda. O um dos padres da Companhia de Jesus vai até a grande oca indígena e comunica aos outros padres sobre o que viu no interior da capela. TODOS OS PADRES DA COMPANHIA DE JESUS correm para as portas da capela da fazenda. ALGUNS PADRES DA COMPANHIA DE JESUS arrombam uma das portas laterais da capela da fazenda. Todos os padres da Companhia de Jesus entram na capela da fazenda. Padre Fernandez continua deitado no pé do altar. Os padres da Companhia de Jesus dirigem-se até o padre Fernandez. Padre Fernandez está morto. Os padres da Companhia de Jesus caem-se de joelhos em torno do padre Fernandez. Adro direito da capela da 426 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior fazenda. Túmulo de madeira no adro da capela ao lado de fora da capela da fazenda. Padre Fernandez sendo sepultado pelos padres da companhia de Jesus. Índios participam-se do enterro do padre Fernandez. PADRE ROCHA (OFF) Todos os dias o padre Fernandes trancava-se na capela para orar. Nunca o incomodávamos, a ponto de um dia, somente à tarde, ao sentirmos a falta dele, um dos irmãos da Companhia foi procurá-lo na capela. Como o padre Fernandez não respondia aos seus chamados, ele, caladinho, resolveu pegar uma escada e espiar pela janela para ver se o padre estava lá, se passava bem ou mal. Foi aí então que ele nos comunicou que o padre Fernandez estava caído sobre os pés do altar da capela. Invadimos o interior da capela e constatamos que Deus o havia levado para sempre. Preparamos um túmulo de madeira ao lado de fora da igreja e o sepultamos. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 163.2 - CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA DO PADRE ROCHA. Sala da casa do padre Rocha. Dirceu e o padre Rocha estão sentados na poltrona. Padre Rocha prossegue a sua fala saindo de off. PADRE ROCHA Se não me falha a memória, dois ou três anos depois apareceram alguns padres espanhóis por lá para apanhar a ossada do padre Fernandez e levá-la para a Espanha. DIRCEU E o que se sabe sobre o padre Fernandez, padre Rocha? Se a ossada dele foi levada de volta para a Espanha deve ser 427 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior porque ele era muito importante para a comunidade católica de lá, não? PADRE ROCHA Ora, meu filho, tudo o que eu sei é que o padre Fernandez viera de uma antiga colônia romana, conhecida como Valência, situada ao leste de Espanha. Ele fazia parte da Companhia de Jesus desde os 1709, quando tinha apenas 17 anos. Ele chegou ao Brasil, em 1740, contava com 48 anos, se estabeleceu no Rio Grande do Sul, vindo três anos depois para esta região. Eu o conheci aqui, em 1743, quando ele tornou-se um chefe do subgrupo formado pela Companhia. Em 1745 ele viajou para a Espanha e depois de quatro anos ele voltou para cá. Em 1750 ele iniciou a construção da capela que está em sua fazenda. DIRCEU Poucos dias antes de morrer, padre, o que o padre Fernandez fazia? PADRE ROCHA Ah, sim, meu filho. O padre Fernandez, duas semanas antes de morrer, inventou fazer uma via-sacra por algumas igrejas e capelas de Vila Rica, juntamente com alguns religiosos escolhidos por ele. Não sei porque, eu também fui escolhido. Eu era o padre mais jovem dentre todos os escolhidos para a via-sacra. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 164.3 – CONTINUAÇÃO - RELATO DO PADRE ROCHA. EXT./INT./DIA – VILA RICA. VÁRIOS. Vila Rica. Ruas de Vila Rica. Bandeira da ordem dos Jesuítas sendo levada por um padre da Companhia de Jesus. Procissão. Padre 428 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Fernandez lidera a procissão com mais ou menos vinte padres da Companhia de Jesus. Janelas abrem-se nas casas de Vila Rica, surgindo pessoas nelas para apreciarem a procissão. Fade out e fade in para denotar vários dias de procissão. Igrejas de Vila Rica. Procissão passando nas portas das igrejas de Vila Rica. Pessoas de Vila Rica acompanhando a procissão. Capela de Sant´Ana. A procissão para em frente à capela de Sant´Ana. O padre Fernandes entra sozinho na capela. Altar da capela. Padre Fernandez ajoelha-se no altar da capela de Sant´Ana. FADE OUT/FADE IN Manhã ensolarada. Capela da fazenda Ribeirão do Meio. Altar da capela da fazenda. No altar da capela da fazenda está um andor da imagem de São Miguel Arcanjo, enfeitado e pronto para ser carregado em procissão. UM PADRE DA COMPANHIA DE JESUS termina de celebrar uma missa. ALGUNS HOMENS BRANCOS vão até o altar da capela da fazenda e pegam a imagem de São Miguel Arcanjo. Imagem de São Miguel Arcanjo no ombro dos homens brancos. Adro da capela da fazenda. Procissão saindo do adro da capela da fazenda. Estrada. Procissão pela estrada. FADE OUT/FADE IN Vila Rica. Procissão chegando à Vila Rica com a imagem de São Miguel Arcanjo. Porta da capela de Sant´Ana. Padre Fernandez e os padres da Companhia de Jesus recebem a procissão que traz para a capela de Sant´Ana a imagem de São Miguel Arcanjo. Todos entram na capela de Sant´Ana. A imagem de São Miguel Arcanjo é colocada no altar principal (ou nicho) da capela de Sant´Ana. PADRE ROCHA (OFF) O padre Fernandez, duas semanas antes de morrer, inventou fazer uma via-sacra por algumas igrejas e capelas de Vila Rica, juntamente com alguns religiosos escolhidos por ele. Quando entramos em Vila Rica em marcha, o povo alvoroçado 429 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior pensando tratar-se de uma procissão nos acompanhava. No último dia da via-sacra, num domingo à tarde, ele presenteou a capela de Sant’Ana com a imagem de São Miguel Arcanjo, pedindo que as irmandades de Sant’Ana fossem buscá-la na capela da fazenda. Após celebrarmos uma missa na capela, os fiéis saíram em procissão trazendo o Santo Anjo para esta cidade. A imagem de São Miguel Arcanjo era grande, bonita, e, segundo o padre Fernandes, foi herança de um tio dele, também padre, falecido em Valência, em 1714. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 163.3 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA DO PADRE ROCHA. Sala da casa do padre Rocha. Dirceu e o padre Rocha sentados na poltrona. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU O padre Rocha falou de uma imagem de anjo, qual pertencia à capela da minha fazenda. Será se essa imagem não seria a mesma que o Farias havia silogicamente mencionado? DIRCEU (olha para o padre Rocha) E a imagem de São Miguel Arcanjo, encontra-se na capela de Sant' Ana, padre Rocha? PADRE ROCHA (ajeita-se na poltrona) Não, ela não está mais lá não. Desde o final do ano de 1759, quando o marquês de Pombal aderiu ao espírito anticlerical, expulsando a Companhia de Jesus de Portugal e proibindo-a nos domínios ultramarinos, os nossos trabalhos aqui na colônia foram totalmente interrompidos. Todos nós, jesuítas, 430 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior sofremos graves perseguições, vendo-nos obrigados a fechar os nossos colégios e a abandonar as aldeias indígenas. No ano de 1761, todos os bens da nossa Companhia foram confiscados e incorporados à coroa por meio de cartas régias. Lembro-me que ficamos alvoroçados com tantas perseguições dos governos europeus. Mesmo assim, graças misericordioso Deus, a Companhia persistiu na Prússia até o ano de 1780, sem falar que desde 1777, quando D. Maria I assumiu o trono devido à morte do pai D. José I, o marquês de Pombal renunciou ao cargo, favorecendo o retorno dos jesuítas a Portugal, prosseguindo, então, os trabalhos de ensino e evangelização missionária. O certo foi que eu, assim como outros padres, fiquei aqui pregando a palavra de Cristo, o que era conveniente aos fiéis. DIRCEU Onde se encontra a imagem do anjo, padre Rocha? PADRE ROCHA Sei não, meu filho. Ela desapareceu do nicho da capela de Sant’Ana há muitos anos. Se vós mercê quiser saber sobre a imagem de São Miguel Arcanjo, não custa procurar o Antônio Francisco Lisboa, ele, mais que ninguém, está sempre nos informando sobre os paradeiros das imagens. Outro dia mesmo ele mandou um menino avisar-me sobre uma imagem há muito tempo perdida pela igreja. DIRCEU O senhor esta falando sobre o "homem feio", o mísero aleijado que trabalha taciturno talhando madeiras e esculpindo imagens? 431 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PADRE ROCHA Sim, estou falando sobre o mísero, mas cheio de talentos. Estou falando do Antônio Francisco, qual o mundo ainda há de se abalar com as suas artes. SEQUÊNCIA 165 – INT./EXT. DIA. VILA RICA. EMPÓRIO DE ZÉ TOMÁZIO. IGREJA NOSSA SENHORA DO CARMO. CASA DE DOM MANUEL. Tarde. Vila Rica. Empório de Zé Tomázio. Dirceu está no balcão do empório de Zé Tomázio. Zé Tomázio atende alguns fregueses, depois se aproxima de Dirceu. ZÉ TOMÁZIO Daqui a pouco vossemecê pode ir à igreja, a dona Marília espera o senhor, lá... DIRCEU (sorri esfregando as mãos) É verdade? Fizeste isso por mim, Zé Tomázio?! Isto é que eu chamo de amigo... ZÉ TOMÁZIO Ora, patrício, não percebe que o português é inteligente? Vi-o, nesta manhã entrando na casa do pároco e apressei a marcar o encontro entre vossa senhoria e a dona Marília. Pedi a um molequinho para avisá-la que vossemecê a esperaria na igreja Nossa Senhora do Carmo. DIRCEU Deixei o meu cavalo amarrado na praça amarra cavalos, agora vou ter de ir a pé... 432 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZÉ TOMÁZIO (sorri) Ah, mais é um sacrifício que vale a pena. A dona Marília também não bate as perninhas, atrás do gajo? Então agora é a vez do gajo também bater as suas pernas atrás da bela rapariga... Então vá à igreja, vá, a cachopa está a esperá-lo. Porta do empório de Zé Tomázio. Dirceu sai na porta do empório de Zé Tomázio. Ele coloca o chapéu na cabeça e anda pela rua apressado. Algumas ruas de Vila Rica. Passos rápidos de Dirceu. Morro de Santa Quitéria. Igreja Nossa Senhora do Carmo. Passos de Dirceu entrando na igreja Nossa Senhora do Carmo. Dirceu no interior da igreja Nossa Senhora do Carmo. Ele vasculha com os olhos todo o interior da igreja e vê Rosa vindo na direção dele. Rosa sorri, balança o corpo desengonçadamente e, com o seu jeito apressado, olha para Dirceu. ROSA Eu cá etava impaciente, pensei que o sinhozinho não viria... DIRCEU (olha para Rosa e fica confuso) Rosa, o que fazes aqui? E a dona Marília? Meu encontro não seria com a dona Marília? ROSA (dá risadas e faz gestos engraçados) Comigo que não é né, nhô Dirceu? DIRCEU E a dona Maria, me conte? O que aconteceu com a dona Maria? ROSA Sinhá Marília espera nhozinho lá na casa dela. 433 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Como? ROSA Ela pediu para nhozinho ir até lá ... DIRCEU E a irmã dela, o cunhado Sales... ROSA A fazenda está sendo o lugar deles... Vou para casa porque a dona Marília deve está preocupada... DIRCEU Vou somente pegar o meu cavalo, cá embaixo na praça Amarra cavalos e já vou... Fale para a dona Marília que quero tomar um cafezinho coado por ela... com bolo, biscoito e tudo... ROSA Inhozinho, sim. Pensa que a dona Marília não sabe fazer café e quitutes gostosos, é? SEQUÊNCIA 166 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PORTA DA CASA DE DOM MANUEL. Tarde. Ruas de Vila Rica. Cavalos cavalgam lentamente pelas ruas de Vila Rica. MULHERES NEGRAS carregam cestas e tabuleiros de doces. Mulheres brancas passeando pelas praças em companhias de suas aias. Centro de Vila Rica. Liteiras. HOMENS BRANCOS dentro das liteiras. HOMENS NEGROS E FORTES carregam liteiras. Dirceu calvaga pelas ruas de Vila Rica. Portão da casa de Dom Manuel. Marília está no portão da casa de Dom Manuel esperando anciosa por Dirceu. 434 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Ele chega a cavalo no portão da casa de Dom Manuel. Ele pula do cavalo e Marília agarra-o e dá-lhe um beijo. Dirceu afasta-se olhando para todos os arredores. MARÍLIA Finalmente apareceste... DIRCEU Eu, por ventura, deveria vir mais vezes? MARÍLIA Todos os dias, por que não? DIRCEU Estás feliz, o que aconteceste de bom? MARÍLIA Vamos entrar, sentar e conversar. Tenho excelentes planos... DIRCEU Planos? MARÍLIA Sim, planos! Não via o momento de ver-te. Cavalo de Dirceu amarrado em um poste. Marília pega Dirceu pelas mãos e coduz para dentro da casa. Dirceu e Marília entram na sala da casa de dom Manuel e sentam-se, a sós, em uma das confortáveis poltronas. DIRCEU Por que não preferes ir à igreja? 435 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Não tenho porque namorar às escondidas... Descobri o complô que papai armou para mim ... DIRCEU Como? Não entendi... MARÍLIA (olha para Dirceu, sorri e fala apressadamente) Irás entender, apenas escute o que tenho para dizer-te, com atenção. DIRCEU Então... MARÍLIA O italiano, a quem papai dizia eu ser prometida, não passa de uma farsa. O meu tio respondeu a carta e, por sorte, ela veio parar em minhas mãos. DIRCEU A tal promessa de casamento não passa de uma farsa? Como assim? Como vós mercê descobriu isso? Que carta veio parar em vossas mãos? MARÍLIA (sorri satisfeita e beija Dirceu) Colatino Durães chegou com a tropa dele na semana passada de São Sebastião do Rio de Janeiro. Quando eu soube disso, procurei-o para saber se ele trazia encomenda para mim ou para alguém da família. Então ele entregou-me esta encomenda. Seios de Marília. Marília enfia uma das mãos entre os seios e tira um pergaminho dobrado. Ela entrega o pergaminho para Dirceu. O 436 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior pergaminho é uma carta. Dirceu abre ligeiramente o pergaminho, consultando-o com os olhos. MARÍLIA É uma carta do meu tio que mora na Itália. Embora ela tenha sido endereçada ao meu cunhado, não contive, fechei-me no meu quarto e abri. A carta deixou-me confusa, pois o meu tio conta nela que o meu pai nunca fez compromisso algum a respeito de casar-me com qualquer rapaz daquela província. Se o rapaz prometido a mim fosse o sócio dele - como o papai costumava dizer a mim e a todos da cidade - tudo não passava de um equívoco, pois o rapaz, segundo meu tio, é um senhor idoso, viúvo, doente, esperando pela morte. Ele disse ter sentido muito pela morte do papai e aconselha ao meu cunhado a casar-me com um rapaz daqui de Vila Rica, onde, decerto, eu viveria tranquilamente. Sala da casa de Dom Manuel. Marília para de falar e olha para Dirceu. Pergaminho nas mãos de Dirceu. Dirceu passa os olhos pelo pergaminho, lendo a carta atentamente. DIRCEU (VOICE OVER) Corri os olhos sobre a carta, li-a com cautela e constatei que Marília não blefava. Tudo o que ela contava para mim estava escrito na carta. Percebi claramente a intenção de dom Manuel. Ele arranjara esse meio para proteger a filha a não se aventurar tão cedo com os rapazes da cidade. Agradeci-o no meu pensamento. CORTA PARA Sala da casa de Dom Manuel. Dirceu termina de ler a carta e olha alegremente para Marília. DIRCEU E Sales, falou com ele sobre a carta? 437 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Não, eu estava esperando por ti. DIRCEU (cochicha para Marília mostrando a ela a carta) Este assunto não pode ser tratado aqui. MARÍLIA Fique tranquilo, o cunhado Sales está na fazenda e a minha irmã também, fazendo repouso, cercada de parteiras, esperando o nascimento da criança a qualquer um desses dias... DIRCEU O que a sinhazinha pretende fazer? MARÍLIA Armar um plano contra o meu cunhado e a minha irmã. Desde ontem estou arquitetando um. DIRCEU E qual é o plano? MARÍLIA Um plano simples, somente vós mercê poderá ajudar-me. Marília e Dirceu beijam-se. DIRCEU Conte-me o plano, explique como poderei ajudá-la... MARÍLIA Vós mercê escreverá uma carta talentosa ao meu cunhado... DIRCEU Uma carta? 438 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Sim, uma carta que dê resposta a esta que está sobre o nosso poder. Ora, conforme vimos, o tal rapaz italiano não existe. Tudo não passou de uma fantasia do senhor meu pai, para que os garjos, cá, de Vila Rica não me cortejassem... DIRCEU Isso feito pelo falecido senhoror seu pai foi muito bom... MARÍLIA Melhor ainda será se vós mercê aderir ao meu plano. Então?! DIRCEU Desconheço o meu talento, quanto a isso, mas, como se trata de lutar por um grande bem, tentarei compor a mentira para impressionar o Sales e a senhora sua irmã, Amarílis. MARÍLIA O plano, conforme eu expliquei é muito simples, Dirceu. Basta vós mercê escrever uma carta dizendo que o tal pretendente está passando por dificuldade e pede recursos para passagem de Marsalha para cá, além de estadia e alguns dotes para recomeçar a vida. Diga também que para ele casarse comigo e morar cá em Vila Rica, ele vai querer um bom investimento em terras para a plantação de uma grande videira... DIRCEU Será se eu consigo, Marília? MARÍLIA Confio no teu talento, Dirceu. Escreva a carta, entregue a mim e o resto do plano ficará por minha conta... 439 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Porque vós mercê não pensa em outro plano, Marília. Esse parece tão complicado... MARÍLIA Como inventar outro plano? Isso não, Dirceu. A única coisa que temos de concreto para contra argumentar com o Sales e com a Amarílis é essa bendita carta que recebi das mãos de Colatino Durães... Quer arma melhor do que essa! O Sales está aguardando uma resposta e, portanto, aproveitaremos para dar-lhe outra que não seja igual a da carta. Quero assustar a ele e a minha irmã, somente isso! Dirceu olha para Marília meio encabulado. Ele tenta fazer alguma pergunta, mas Rosa entra na sala de visitas neste instante. Dirceu e Marília olham para Rosa. Dirceu enfia o pergmaminho dobrado iem um dos bolsos da calça e pisca para Marília. ROSA A mesa está pronta, dona Marília... MARÍLIA Ué, então vamos comer alguma coisa... Marília levanta-se da poltrona e vai para a sala de jantar acompanhada por Rosa. Dirceu prossegue um pouco mais na sala de visita. Sentado na poltrona, ele fecha os olhos e respira meio apreensivo. DIRCEU (VOICE OVER) Meu coração bateu forte. Lembrei-me do velho Farias. Ele dissera a mim que Marília haveria de revelar-me um segredo. Então, se o segredo era esse, não haveria de existir outro melhor. Marília, a cada dia, fazia crer ainda mais que a Estrela do céu era realmente ela. Cada dia ela se aproximava mais de mim, a ponto de não demorar muito a viver eternamente ao meu lado. Eu, Dirceu, não podia fazer outra coisa senão 440 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior agradecer a Deus por aquele maravilhoso presente. Ela, agora, me propõe um plano. Eu teria que escrever uma carta. Como eu a escreveria? Custasse o que fosse, ajudá-la-ia. Nós, finalmente, tínhamos um plano a armar contra o casal Sales e Amarílis. CORTA RÁPIDO PARA Sala de jantar. Marília observa a mesa de jantar. Mesa com xícaras, bules com chá, café e vasilhas com alguns quitutes da culinária mineira. CORTA RÁPIDO PARA Dirceu levanta-se da poltrona e vai até a sala de jantar. Rosa puxa uma das cadeiras da mesa e o convida para sentar ao lado de Marília. Marília e Dirceu, sentados lado a lado à mesa de jantar são servidos por Vívila e Rosa. SEQUÊNCIA 167 – EXT./INT./DIA. PRAÇA AMARRA CAVALOS. ARRAIAL DE ANTÔNIO DIAS. CASA DE ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA. Tarde. Praça amarra-cavalos. Pequena feira próxima à praça amarracavalos. Mesas improvisadas. PESSOAS BRANCAS e MORENAS vendendo frangos vivos, bandas de porcos em mesas forradas por folhas verdes de bananeiras, frutas, artesanatos (como arreios, sacolas, bordados de rendas, etc), doces (rapaduras, açúcar mascável, melados em potes, etc.). Dirceu pega o cavalo dele na praça amarra-cavalos e sai galopando devagar. Ele, às vezes, freia o cavalo para pedir informações a uma pessoa e outra. UMA PESSOA E OUTRA olham para a rua e aponta uma direção e outra. UM DOS INFORMANTES aproxima-se mais de Dirceu. 441 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior UM DOS INFORMANTES O senhor está procurando a casa do senhor Antônio, a que todos chamam de aleijadinho ou homem feio? DIRCEU Sim, procuro a casa do senhor Antônio Francisco... UM DOS INFORMANTES O caminho para chegar até lá é um pouco difícil, o cavalo tem que cavalgar devagar, caso contrário, tanto o senhor, quanto o bicho podem sofrer danos... A casa do "homem feio" pertence à nora dele, pois desde que o pobre ficara gravemente doente, ele somente contava com a nora e com dois escravos que o ajudavam nos trabalhos. A casa fica próxima ao arraial de Antonio Dias, no fundo de uma mangueira, onde se enxerga uma fileirinha de casas sem eiras ou beiras. Vila simples, de pessoas pobres... DIRCEU Muito agradecido, senhor, pelas informações... O um dos informantes aponta para Dirceu a direção. Cavalo de Dirceu segue a direção apontada pelo um dos informantes. Dirceu vai se desertando, entrando numa viela acidentária, íngreme e tortuosa. A viela é cheia de barrocas com espessas lamas e limos mal cheirosos. O cavalo cavalga com um pouco de dificuldade. Arraial de Antônio Dias, fileirinha de casas sem eira e nem beira. Casa simples, cercada com paus e garranchos secos de ávores, dando-se com uma pequena chácara ao fundo. Dirceu, montado no cavalo, aproxima-se da cerca da casa simples e fica observando-a, todo o espaço. Quintal de frente à casa simples. JOANA, uma jovem mulher negra, bonita, boca e dentes bem feitos, cabelos encaracolados, caídos aos ombros, alta e magra, de aproximadamente 28 anos de idade, recolhe roupas em um jirau de varas. Dirceu observa Joana. Manqueira, grota ao lado da mangueira. QUATRO MOLEQUES MORENOS, em idades diferentes, entre 12, 13, 14 anos, tocam um burro bravo na grota ao lado da mangueira, 442 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior cercando-o, perigosamente. O burro bravo dá alguns pinotes, fazendo a poeira subir, os meninos gritam cercando-o. Joana olha para a poeira, vai até a cerca, observa os quatro garotos mexendo com o burro bravo e grita. JOANA Tem educação, não, moleques. Isso cá é hora de mexer com burro alheio? Tomara que levem coices bravos para aprenderem a lição de não serem tão malinos... Não estão vendo que o bicho faz a poeira levantar e estragar-me a roupa que acabo de lavar? O burro bravo sai correndo pela mangueira. Os quatro moleques morenos saem correndo atrás do burro. Joana volta ao jirau para dobrar as roupas. Portãozinho de entrada da casa. Dirceu aproxima-se do portãozinho de entrada da casa. Joana vê Dirceu, larga as roupas dobradas no varal e corre para atendê-lo. JOANA O moço carece de alguma informação? DIRCEU Estou procurando a casa do senhor Antônio Francisco, o fazedor de santo... JOANA Vós mercê até parece que já sabia da casa de quem procura? Pois esta é a casa de Antônio Francisco, é cá, mesmo... Portãozinho da casa. Joana abre o portãozinho da casa e sai. Dirceu tira o chapéu da cabeça e limpa o suor da testa. Joana olha para Dirceu atentamente e prossegue. JOANA O moço veio para encomendar serviço? Ouvi dizer que o meu sogro está lotado de encomendas, e, como já está um pouco 443 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior doente, só pegará outras depois de cumprir as que têm cá, compromissadas... DIRCEU Não, não se trata de uma encomenda, não. Eu preciso falar com ele, creio que ele até sabe que eu haveria de procurá-lo. Ele não está em casa? JOANA Está repousando. Seu Antônio trabalhou a noite toda talhando algumas imagens numa igreja de Vila Rica. Como ele está trocando o dia pela noite, devo a ele o respeito do descanso... DIRCEU Venho de uma longa viagem, lá do Ribeirão do Meio, será se vós mercê não poderia verificar se o senhor Antônio não está acordado e se ele pode ou não atender-me? A prosa não será muito longa. Diga a ele que é o filho do Zé Antônio, lá da fazenda Ribeirão do Meio. Portãozinho da casa. Joana fecha o portãozinho da casa e sem dizer nada, sai correndo, pega algumas roupas dobradas no jirau de varas e entra na casa. CORTA PARA Portãozinho da casa fechado. Dirceu está montado no cavalo ao lado do portãozinho. Dirceu olha para um lado e para o outro, sem saber se fica ali parado, esperando por Joana, ou se vai embora. Joana aparece na porta da casa. Dirceu olha para Joana meio entusiamado. Joana corre até o portãozinho e abre-o. 444 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOANA Seu Antônio está acordado e pediu para vossemecê entrar. Cavalo. Dirceu pula do cavalo, amarra-o na cerca e entra no portãozinho acompanhado por Joana. Dirceu e Joana entram na pequena casa escura e sombria. Joana conduz Dirceu até os aposentos de Antônio Francisco Lisboa. O quarto de Antônio Francisco Lisboa é pequeno, ele está deitado em uma cama encostado a uma frágil parede de taipa. Dirceu entra no quarto. Antônio Francisco Lisboa, ao ver Dirceu, ergue se a cabeça. Joana desaparece na porta do quarto. Dirceu fica a sós com Antônio Francisco Lisboa. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Dirceu! O filho do grande e bondoso fazendeiro Zé Antônio... Até parece que eu sei porque vossemecê veio procurar-me... Sabia que o seu velho pai encomendou-me uma imagem de santo, pagou-me em uma boa dosagem de ouro e nunca veio buscá-la? ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (tosse dibilmente e cospe numa velha escarradeira que está ao lado da cama) Creio que vieste buscá-la. Que pena, a imagem se encontra na minha casa, lá do outro lado da cidade e é tão grande que... Joana aparece na porta do quarto com um tamborete nas mãos. Antônio Francisco Lisboa se interrompe ao ver Joana aparecer na porta do quarto com o tamborete. Joana entrega o tamborete para Dirceu sentarse. Dirceu ajeita-se o tamborete, sentando-se próximo à cabeceira da cama de Antônio Francisco Lisboa. Antônio Francisco Lisboa olha para Joana e sorri. 445 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Ela é a minha nora, Joana. Ela é uma mulher de alma muito boa e generosa. Foi ela quem inspirou-me a imagem de Santa Helena, que hoje ocupa um dos nichos da igreja de Nossa Senhora do Rosário. Quem vê a imagem de perto, reconhecerá que o rostinho dela é o da Joana esculpida... Dirceu e Antônio Francisco Lisboa olham para Joana. Ela, envergonhada, tapa o rosto com as mãos e sai do quarto de fininho. CORTA RÁPIDO PARA Joana, à parte, na pequena sala da casa, resmungando. JOANA Ora, seu Antônio, como ousa dizer tal besteira. Todos, cá em Vila Rica sabem que a imagem de Santa Helena, nada mais era que a Helena, sua ex-amante, que ao vê-lo deformado pela doença fugiu de casa procurando amor nos braços de um moço da guarda conhecido como João Romão. CORTA PARA Antônio Francisco Lisboa sofre outro ataque de tosse. Dirceu fica olhando para ele um pouco assustado. DIRCEU (VOICE OVER) Enquanto Antônio Francisco tossia e se retorcia no desajeitado estrado de madeira, pausei pensando na imagem encomendada a ele pelo meu pai. Na capela da fazenda não havia imagens e o pequeno nicho do beatífico carecia de uma. Quem sabe a imagem encomendada pelo meu pai, a ele, não seria a de uma padroeira da capela e de toda a região? Creio não me lembrar de padroeiro algum escolhido pelo povo para representar a devoção da capela da fazenda. Assim que a tosse de Antônio Franciso cessou, perguntei-o sobre a imagem. 446 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA DIRCEU Vós mercê poderia dizer-me qual foi a imagem encomendada pelo senhor meu pai, a vós mercê? ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Ah, sim, claro. Vossemecê não somente verá como terá a imagem em suas mãos... DIRCEU E qual é a imagem? Trata-se de qual santo ou padroeiro... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Vossemecê saberá qual é a imagem, no dia que vê-la. Pode confiar em mim. Fiz um trato com o senhor seu pai e não vou faltar... DIRCEU Vós mercê pode informar-me sobre o paradeiro da imagem de São Miguel Arcanjo? ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (fecha os olhos, mexe o corpo, solta dois ou três gemidos, senta-se na cama e responde secamente) Não sei de paradeiro de anjo algum... São Miguel Arcanjo, decerto deve está no céu... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (sorri ironicamente) Não é lá o paradeiro dos anjos e santos? DIRCEU Mas, nós estamos falando em imagens, criação do homem, como arte, Antônio Francisco... 447 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Taí, gostei do que o rapaz me disse a arte como criação do mundo... Sabe que o seu Claúdio sempre me disse isso? Quanto a estátua do anjo, o São Miguel Arcanjo, deve está enfiada em um porão de alguma igreja. Isso deve ter acontecido desde a expulsão dos jesuítas da colônia, em 1759. Creio que essa imagem sumiu da igreja em 1762, quando desde o ano anterior o rei de Portugal confiscava os bens dos padres. Talvez, alguém devoto ao anjo, com medo de que a estátua fosse levada para Portugal, tirou-a do nicho da capela e escondeu-a em algum lugar seguro... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (sorri ironicamente) Será se essa imagem não estaria escondida na capela da sua fazenda? DIRCEU Não, lá não há nenhuma imagem no altar. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Pois agora haverá uma lá, senhor Dirceu. Espero que faça um nicho bonito para colocá-la. DIRCEU Há um nicho nela, se não me falha a memória, pertencia a São Miguel Arcanjo. Ele foi tirado de lá, quando o padre Fernandez presenteou-o à capela de Sant'Ana. Pretendo encontrá-la. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (olha para Dirceu com certa curiosidade) Está em busca do segredo que há em sua capela, não é? 448 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Sim, busco indícios, conforme algumas coisas começaram a acontecer por lá... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA E essas coisas que começaram a acontecer por lá, tem a ver com a imagem que vossemecê está procurando? DIRCEU Sim, ela pertenceu ao padre espanhol que construiu a capela e morreu dias depois. ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Eu conheci a imagem. Ela ficava no principal nicho da Capela de Sant'Ana, em Vila Rica. O povo a venerava, mas... ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (faz uma pausa, encosta a cabeça em um travesseiro alto, estica as pernas e geme de dor) A imagem sumiu... DIRCEU Como era essa imagem, Antônio Francisco? ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Fiz uma imagem, igualzinha à do anjo para a igreja de Nosso Senhor Bom Jesus de Matosinhos. O meu falecido pai dizia para mim que uma arte bem trabalhada ninguém nunca esquece. A imagem de São Miguel Arcanjo trazida pelo padre espanhol foi esculpida por um artista de Andaluzia, contendo todas as perfeições atribuídas ao anjo. CORTA PARA Antônio Francisco Lisboa esculpindo uma imagem de São Miguel Arcanjo, em pedra sabão. Várias imagens de São Miguel Arcanjo, 449 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior conforme a concepção de vários artistas, desde o renascimento, até os nossos dias atuais. DIRCEU (OFF) Antônio Francisco descreveu-me a imagem de forma absoluta, como se estivesse tocando nela. Eu imaginava que em algum lugar dessa imagem estava escondida uma pequenina chave, capaz de desvendar o grande mistério possivelmente contido dentro do altar da capela. Lá, decerto, não havia maribondos, como eu dissera a ele, haveria algo mais impressionante, talvez um mistério capaz de pertencer somente à Santa e Madre Igreja Católica. Isso me deixava intrigado. Se o mestre aleijadinho não oferecia pistas sobre como encontrar a imagem a minha missão em questioná-lo encerraria ali mesmo, naquele quarto escuro e mal ventilado. CORTA PARA ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA Quanto à imagem encomendada pelo senhor seu pai, Zé Antônio, espere na fazenda. Prometo mandar os meus escravos levá-la até lá, para vossemecê. A entrega apenas custará a vossemecê alguns patacões. DIRCEU Não importo, Antônio Francisco, mande-me a imagem encomendada pelo senhor meu pai, para a fazenda, que eu pagarei todas as despesas da viagem... Dirceu põe-se de pé, enfia a mão na algibeira da calça e tira alguns patacões. Patações nas mãos de Dirceu. Ele entrega os patacões a Antônio Francisco Lisboa. Antônio Francisco Lisboa recebe as moedas com um pouco de dificuldade. Porta do pequeno quarto. Dirceu, ainda de pé, olha para a porta do pequeno quarto e olha para Antônio Francisco Lisboa. 450 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Está tarde e preciso voltar á fazenda. Portanto, despeço-me cá, Antônio Francisco, contando em receber por lá, a encomenda do senhor meu pai... SEQUÊNCIA 168 – INT./DIA/NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Curral. Dirceu, Miliquito, Ambrósio e Cirilo apartam as vacas para tirarem o leite. Campina verde com bois pastando. Dirceu, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro tocam os bois na campina verde. DIRCEU (VOICE OVER) Minha vida em poucos dias resumia-se em acordar cedo, ajudar os rapazes nas tarefas matinais da fazenda... FADE OUT / FADE IN Tarde. Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado na mesa de canto. Pergaminho e tinteiro na mesa de canto, do quarto. Pena em uma das mãos de Dirceu. DIRCEU (VOICE OVER) E a se trancar o resto do dia no meu quarto, pois Marília incumbiu a mim a tarefa principal de seu plano. Eu teria de elaborar uma carta, capaz de impressionar o cunhado dela, a ponto de fazê-lo aprovar o nosso namoro. CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir. 451 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 166 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PORTA DA CASA DE DOM MANUEL. MARÍLIA O plano, conforme eu expliquei é muito simples, Dirceu. Basta vós mercê escrever uma carta dizendo que o tal pretendente está passando por dificuldade e pede recursos para passagem de Marsalha para cá, além de estadia e alguns dotes para recomeçar a vida. Diga também que para ele casar-se comigo e morar cá em Vila Rica, ele vai querer um bom investimento em terras para a plantação de uma grande videira... DIRCEU Será se eu consigo, Marília? MARÍLIA Confio no teu talento, Dirceu. Escreva a carta, entregue a mim e o resto do plano ficará por minha conta... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 168.1 - EXT./DIA/ QUARTO DE DIRCEU. Manhã. Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado na mesa de canto. Pergaminho e tinteiro na mesa. Pergaminho nas mãos de Dirceu. Dirceu lê algumas linhas escritas no pergaminho e reprova. Ele faz uma cara ruim, embola o pergaminho e joga-o em um dos cantos da mesa. Gaveta superior da pequena mesa. Dirceu abre a gaveta e pega outro pergaminho, entendendo-o na mesa. Pena em uma das mãos de Dirceu. Ele molha a pena no tinteiro e volta a escrever algumas linhas na folha do pergaminho. Ele para de escrever e coça a cabeça. 452 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER Meu Deus, há tempo estou tentando escrever esta carta e não consigo. Custe o que custasse, eu passaria o resto das minhas manhãs a escrever até conseguir. O meu feitio teria de surtir um forte efeito, tal qual um feitiço, capaz de tornar a vingança de Marília contra a irmã e o cunhado, deliciosa. Há dias, eu pensava, pegava a pena, escrevia no papel, lia, revisava e nada. Eu pensava em desistir e fazer Marília inventar outro plano. POLTRONA DA MESA. DIRCEU COÇA A CABEÇA E FECHA OS OLHOS. CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir. SEQUÊNCIA 166 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PORTA DA CASA DE DOM MANUEL. DIRCEU Porque vós mercê não pensa em outro plano, Marília. Esse parece tão complicado... MARÍLIA Como inventar outro plano? Isso não, Dirceu. A única coisa que temos de concreto para contra argumentar com o Sales e com a Amarílis é essa bendita carta que recebi das mãos de Colatino Durães... Quer arma melhor do que essa! O Sales está aguardando uma resposta e, portanto, aproveitaremos para dar-lhe outra que não seja igual a da carta. Quero assustar a ele e a minha irmã, somente isso! VOLTA PARA 453 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 168.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA/ QUARTO DE DIRCEU. Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na mesa de canto abre os olhos, sorri e olha para o pergaminho em branco em cima da mesa. Ele fala por solilóquio, enquanto olha para o pergaminho em branco. DIRCEU. Eu, infelizmente, tive de aceitar esse desafio... E o talento, falta-me o talento, Marília. FADE OU/FADE IN Madrugada. Dirceu está dormindo e acorda de repente. Ele põe-se de pé, acende o candeeiro e corre para a mesa de canto. Pergaminho estendido na mesa. Pena em uma das mãos de Dirceu. Ele molha a pena no tinteiro e começa a escrever linhas e mais linhas na folha do pergaminho. Ele para de escrever, lê rapidamente as linhas escritas, sorri, balança a cabeça afirmamente e continua escrevendo. Pergaminho cheio de linhas escritas. Gaveta superior. Dirceu pega outro pergaminho e continua escrevendo sem parar. DIRCEU (VOICE OVER) Certa noite, como se a feiticeira Circe estivesse presente em meu quarto oferecendo-me o seu feitiço, levantei-me de súbito do catre, acendi o candeeiro, muni de pena, tinteiro e papel e lancei-me na mesa para escrever. Finalmente as ideias concatenaram-se com o meu pensamento, concretizando no papel uma carta contendo na medida certa o conteúdo que Marília e eu precisávamos. Li, reli, revisei e, pacientemente, passei a carta a limpo. 454 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CAPÍTULO 10 SEQUÊNCIAS 169-184 Personagens deste capítulo: Dirceu Marília Rosa Moradores de algumas casas dos arredores das igrejas Senhora branca (60 anos) Senhor branco (70 anos) Zé Tomázio Sales Dois rapazes negros (fazenda de dom Manuel) Paulo Miguelim Bauduim Hipólito Inácia Quitéria Eulina Cirilo Miliquito Zé da Viúva Raimundo Sobreiro Ambrósio Josias (corpo de Hipólito) Pai de dom Miguel(corpo de Hipólito) Sebastiana Alceu Endimião Trácio Antenor Estela Fiéis (sitiantes e fazendeiros) Homens e mulheres (espectadores da Casa da Ópera) Amarílis Orquestra (Casa da Ópera) 455 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 169 – EXT. VILA RICA. CHAFARIZ PRINCIPAL DE VILA RICA. Manhã. Vila Rica. Chafariz. Marília e Dirceu se encontram no chafariz principal de Vila Rica. Marília e Dirceu olham para todos os lados e beijam-se rapidamente. Alforje entre os peitos de Dirceu. Ele tira os pergaminhos dobrados do alforje e mostra-os para Marília. DIRCEU (entrega os pergaminhos dobrados para Marília) Cá está dona Marília, o resultado executado da primeira parte do nosso plano. MARÍLIA (abre os pergaminhos e os lêem rapidamente) Que talento, Senhor Dirceu! (sorri sutilmente) Meu cunhado nunca mais meterá a besta de querer casar-me com quem ele não conhece... Dirceu e Marília riem juntos olhando para os pergaminhos. DIRCEU E o pior que o tal noivo nem sequer existe... MARÍLIA A segunda parte do plano caberá a mim, Dirceu. Espero ter o mesmo talento que o de vossa senhoria... Chafariz derramando água. Marília e Dirceu beijam-se e bebem da água do chafariz. DIRCEU Se por ventura, essa fonte for a fonte dos amantes, que a água dela purifique as nossas almas e os nossos corações para que o nosso amor seja finito... 456 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Fonte dos amores, lindo, não? Esta fonte, quem sabe, não será dado a todos como a fonte de Dirceu e de Marília... DIRCEU E todos que vierem de qualquer parte dessa colônia e do mundo, ao beber da água dessa fonte há de vivenciar na alma todas as experiências lindas e surpreendentes do amor... Rua próxima ao chafariz. Rosa vem correndo pela rua em direção à Marília e Dirceu. Marília vê Rosa, foge dos braços de Dirceu e vai ao encontro dela. Dirceu vai também atrás de Marília. Rosa puxa o fôlego, respira fundo e olha para Marília confusa. ROSA A irmã de sinhazinha, a senhora dona Amarílis entrou em trabalho de parto. As parteiras estão todas lá em casa para aparar a criança. Vívila pediu para eu chamar a sinhazinha... MARÍLIA Fez bem Rosa, fez bem... MARÍLIA (olha para Dirceu) Tenho de ir, Dirceu, a minha irmã entrou em trabalho de parto... DIRCEU Vai sim, Marília, mais tarde passarei rapidamente na sua casa para ter notícias da senhora sua irmã. Se permitirem a mim, portarei a notícia ao Sales, lá na fazenda dele... MARÍLIA Se fizeres isso, será de grande utilidade, Dirceu. Desde já agradeço em nome dessa família, qual também vós mercê virá a fazer parte... 457 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Creio que os deuses estão torcendo para que isso aconteça. Vá, Marília, vá! Logo a criança estará apontando-se para o mundo e precisa de estar perto de uma tia bonita e carinhosa... MARÍLIA Creio que eu serei a titia mais feliz do mundo! CANTO DE UMA CASA COM EIRA E BEIRA. UM PASSARINHO NO NINHO DÁ COMIDA AOS FILHOTES PELO BICO. SEQUÊNCIA 170 – EXT./INT./DIA. VILA RICA. IGREJAS DE VILA RICA. CAPELA DE SANT´ANA. Igrejas de Vila Rica. Dirceu entra em algumas igrejas de Vila Rica e sonda ligeiramente os altares delas. CORTA RÁPIDO PARA Portas de algumas casas dos arredores das igrejas visitadas por Dirceu. Dirceu bate nas portas de algumas casas dos moradores. Ele conversa um pouco com cada pessoa que o atende, mas ninguém sabe falar sobre a imagem de São Miguel Arcanjo. CORTA RÁPIDO PARA Capela de Sant´Ana. Dirceu entra na capela de Sant´Ana, aproxima-se do altar fixa os olhos no nicho principal da capela, onde tem a imagem de Nossa Senhora Sant'Ana. CORTA RÁPIDO PARA Dirceu bate nas portas de algumas casas de moradores próximos à capela de Sant`Ana. Entre as pessoas que o atende, somente em uma 458 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior das casas uma senhora branca, de aproximadamente 60 anos é quem lhe dá a devida atenção. DIRCEU (VOICE OVER) Aproveitei o resto do dia para visitar algumas igrejas da cidade e sondar os altares delas em busca da imagem de São Miguel Arcanjo. Não a encontrava em igreja alguma. Localizei pessoas das ordens terceiras para instigá-las sobre o paradeiro da imagem e, somente uma senhora, moradora próxima à capela de Sant´Ana, foi capaz de relatar-me dando-me toda a certeza de que a imagem encontrava-se em Vila Rica. CORTA PARA SENHORA BRANCA Vós mercê está procurando pela imagem do santo anjo, o Arcanjo de Deus? DIRCEU Precisamente, da imagem de São Miguel Arcanjo, que, segundo consta na história ela deveria estar no nicho principal da capela de Sant’Ana, qual presente foi de um padre espanhol... SENHORA BRANCA Dessa história, sei não, senhor. Tudo o que eu sei e se é que posso ajudá-lo, tem haver com o homem feio... DIRCEU O senhor Antônio Francisco? SENHORA BRANCA Sim, o fazedor de santo, o seu Antônio... 459 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Então eu farei gosto de ouvir a história que a senhora tem para me contar... SENHORA BRANCA Então vá até a capela e aguarde por mim. Lá contarei a vossemecê tudo o que sei. CORTA PARA Capela de Sant`Ana. Bancos da capela de Sant´Ana. Dirceu e a senhora branca estão sentados em um dos bancos da capela de Sant´Ana. DIRCEU A imagem de São Miguel Arcanjo teria de estar naquele altar principal da capela. SENHORA BRANCA Sim, mas não de tudo errado, pois no altar está a imagem de Nossa Senhora de Sant´Ana, a quem a capela homenageia... DIRCEU Se a imagem de São Miguel Arcanjo foi tirada do altar para colocar essa outra imagem, alguém terá de saber onde ela está... SENHORA BRANCA Não sei se vossemecê sabe, mas tudo aconteceu quando a capela de Sant’Ana carecia de uma pequena reforma. DIRCEU Então... SENHORA BRANCA Então, a irmandade contratou o senhor Antônio para executar os serviços. 460 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU O senhor Antônio Francisco? SENHORA BRANCA O próprio. Ele fez os reparos necessários na capela e, quanto ao pagamento, que seria em ouro, o chefe da irmandade lesou-o. Daí, dizem que ele, muito nervoso, pediu aos escravos que subissem no nicho do altar e pegassem para ele a imagem do Santo Anjo. DIRCEU Então a imagem está com o senhor Antônio Francisco? SENHORA BRANCA Sim, ele a levou para casa, dizendo devolvê-la quando a irmandade se preocupasse em pagá-lo. Ninguém registrou queixa alguma na cadeia e nem os padres ligaram com o fato. DIRCEU Então simplesmente colocaram no altar a imagem de Nossa Senhora Sant´Ana e pronto! SENHORA BRANCA Não, não foi bem assim. Foi meses depois, quando uma família recém-chegada de Portugal doou a imagem de Nossa Senhora Sant'Ana à capela. Colocaram-na no nicho principal da igreja, onde ficava a imagem do Santo Anjo e ninguém mais comentou essa história... Frontifício e arredores da capela de Sant´Ana. Dirceu anda devagar observando os arredores. Ele conversa com algumas pessoas brancas, idosas. Um SENHOR BRANCO, de aproximadamente 70 anos, passa por Dirceu. Dirceu para diante do senhor branco para pedir-lhe informações. 461 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) A história da mulher deixou-me intrigado. Por que o aleijado escondeu de mim essa informação? Pensei em procurá-lo, mas deixei para outro instante. Quem sabe eu não a encontraria em alguma igreja da região? Se ele trabalhava na confecção de imagens, não era de duvidar que ele vendesse a imagem do anjo para alguma igreja. CORTA PARA SENHOR BRANCO Tudo o que sei, meu rapaz, é o que se propaga por aí. Dizem as boas ou más línguas que o seu Antônio vendeu a imagem de São Miguel Arcanjo para os fiéis da igreja de Matosinho... DIRCEU (fala por solilóquio) Antônio Francisco Lisboa disse a mim que havia esculpido uma imagem semelhante a do anjo, para essa igreja. Não custava a mim conferi-la... SEQUÊNCIA 171 – INT./DIA. VILA RICA. RUA DE VILA RICA. PORTÃO DA CASA DE DOM MANUEL. Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Venda de Zé Tomázio. Dirceu compra alguns mantimentos na venda de Zé Tomázio. Cavalo de Dirceu com um saco cheio de mantimentos amarrado na garupa. Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga em uma das ruas de Vila Rica até chegar ao portão da casa de dom Manuel. Marília é quem atende Dirceu no portão. DIRCEU Após sondar algumas igrejas e perguntar a algumas pessoas sobre a imagem do santo Anjo, fiz algumas compras na venda do Zé Tomázio e, como eu havia prometido à Marília, passei 462 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior rapidamente na casa dela para obter notícias sobre a irmã. A criança estreava o mundo. Era um menino. Marília, radiando felicidade pediu para eu portar a notícia ao pai da criança, na fazenda dele. Eu daria naquela tarde mesmo a notícia para Sales. SEQUÊNCIA 172 - INT./EXT. DIA. FAZENDA DE DOM MANUEL. Pôr-do-sol. Fazenda de dom Manuel. Dirceu está na varanda da casa aguardando por Sales. Sales chega pelas laterais do quintal da fazenda e vê Dirceu na varanda da casa aguardando por ele. Sales e Dirceu cumprimentam-se simultaneamente. SALES Senhor Dirceu? O que o faz está por cá a estas horas? DIRCEU Desculpe-me Sales, mas é que hoje estive em Vila Rica e fizeram-me portador de uma notícia boa a vós mercê... SALES Notícia boa? DIRCEU A TUA ESPOSA DEU A LUZ A UM MENINO, HOJE, EM VILA RICA... SALES (senta-se em uma das poltronas espalhadas na varanda) Meu filho nasceu? É um menino! Dê-me detalhes, como está a minha esposa e o meu filho, senhor Dirceu... 463 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não, não tenho outras notícias, eu estava em Vila Rica e alguém pediu para que eu comunicasse a vós mercê que o seu filho havia nascido e estava tudo bem, tanto a mãe quanto a criança. Sales levanta-se da poltrona, sai da varanda e anda pelo quintal de frente da fazenda gritando pelos escravos deles. Dirceu continua na varanda, de pé, apenas observando-o SALES Miguelim, Arouxe, Bauduim, alguém prepara-me um cavalo... (volta para junto de Dirceu, na varanda) Veja só, são uns desgraçados, aparece ninguém, quando preciso. Sales volta para a varanda da casa. DOIS RAPAZES NEGROS, de aproximadamente 20 anos de idade, chegam correndo no quintal de frente da fazenda e vão até a varanda da casa. Eles aproximam-se de Sales. Sales olha furioso para os dois rapazes negros. SALES Chamei por Miguelim, Arouxe e Bauduim e nada. Onde esses negros se meteram? Quero já um cavalo pronto para uma viagem. Paulo, onde está o benfeitor Paulo? UM DOS DOIS RAPAZES NEGROS Paolo tá na fazenda não nhô. Paolo saiu a cavalo faz tempão. SALES Diabo, o desgraçado deve estar enrabichado com alguma negra no mato. O desgraçado desde quando veio morar nesta fazenda, se engraçou com uma mulatinha a ponto de deixar os serviços desta fazenda de lado. Tanto serviço cá, tanto serviço cá e ele enrabichado com a mulata. 464 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Os dois rapazes negros saem correndo pelas laterais do quintal da fazenda. Sales anda de um lado para o outro na varanda da casa. SALES Meu filho nasce e eu não posso ir à cidade para vê-lo... DIRCEU Por que não? SALES E se este bando de negros cretinos fugirem da fazenda? DIRCEU Está a tratá-los a ponto de eles fazerem isso? SALES Não sei. São negros, parecem bichos. Em bicho a gente não confia. DIRCEU Nos meus, eu confio. São pessoas iguais a mim. Vou a Vila Rica ou a qualquer parte do mundo se eu quiser e eles tomam conta de tudo na fazenda. SALES (nervoso) Isto cá é momento de dar-me lição, senhor Dirceu? AROUXE, MIGUELIM e BAUDUIM, negros, altos e magros, de aproximadamente 23 a 25 anos de idade, aparecem no quintal de frente da fazenda trazendo o cavalo de Sales, pronto para a viagem. Sales vê o cavalo pronto e olha para Dirceu. 465 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES O meu cavalo, o meu cavalo está pronto, agora falta chegar o desgraçado do Paulo... Cancela da fazenda de dom Manuel. PAULO, um rapaz loiro, cabelos cacheados e olhos escuros, de 25 anos de idade, está na estrada, aproximando-se na cancela da fazenda. Ele cavalga em um burro manso em direção à cancela da fazenda de dom Manuel. Miguelim vê Paulo aproximando-se da cancela da fazenda e corre para abri-la. Bauduim corre para a varanda da casa da fazenda, gritando. BAUDUIM Nhô Paolo, nhô Paolo! Nhô Paolo vem lá na estrada, nhô Sales. SALES (olha para a direção da cancela da fazenda e vê Paulo troteando no burro manso) Diabo de idiotice, o desgraçado do Paulo vem lá troteando num burro manso. Os dois bichos parecem que não tem pressa de nada... DIRCEU Calma Sales, calma! Sales olha para o quintal de frente da fazenda e coloca o chapéu na cabeça. Arouxo segura o cavalo de Sales pela rédea. Sales olha para o cavalo dele e sai da varanda da casa para o quintal. Sales monta no cavalo dele e sai cavalgando rápido até a cancela da fazenda. Cancela da fazenda aberta. Sales encontra-se com Paulo na cancela da fazenda. SALES Vou até Vila Rica, acabo de receber notícias de que a minha esposa deu a luz a uma criança. 466 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PAULO Vou já preparar o meu cavalo para ir com vossemecê, senhor Sales. SALES Não, vós mercê tem de ficar para vigiar os negros. Vai que alguns deles fogem e pronto! Está armado o prejuízo... Vê senão fica no mato enrabichado com a crioula... Paulo abaixa a cabeça e sai troteando no burro para dentro do quintal da fazenda. Sales espora o cavalo e sai da cancela cavalgando em direção à estrada da capoeira. Dirceu corre, monta no cavalo dele e também sai em direção a Sales. Cancela da fazenda ainda aberta. Dirceu atravessa a cancela da fazenda e num instante atalha Sales, na capoeira. Dirceu frea o cavalo frente a Sales. Sales também frea o cavalo dele. SALES O que estás fazendo, senhor Dirceu? DIRCEU Não deves pegar a estrada, sozinho. Está anoitecendo e... SALES Está preocupando-se com um ex-coronel e combatente da milícia? É perda de tempo, senhor Dirceu. Sei como defenderme. Já enfrentei muitas empreitadas sozinho em São Sebastião do Rio de Janeiro. DIRCEU Cá, por estas terras, a ambição é filho do cão. Se caíres numa emboscada, sozinho, não há como defender-te, Sales. SALES Isso é maçada! 467 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não, não é maçada! Queres que eu peça um dos meus rapazes para acompanhar-te? Farei levar-te por uma estrada mais próxima à Vila Rica. SALES E qual é a estrada? DIRCEU Não tenho porque ensinar-te. Caso queiras chegar rápido a vila, tomarei as devidas providências. SALES (faz um "sim" com a cabeça) É por meu filho, apresso-me em conhecê-lo. É também por minha mulher, apresso-me em saber se ela passa bem... DIRCEU Entendo, somente peço para que tenhas cautela. Então, se queres mesmo chegar logo em Vila Rica, siga-me até a minha fazenda. SALES Mas... DIRCEU É através da minha fazenda que se entra na estrada secreta que vai até Vila Rica... SALES Se é assim... Dirceu e Sales afrouxam as rédeas dos seus respectivos cavalos. Dirceu vai um pouco a frente. Sales segue Dirceu. O sol se esconde por trás do horizonte. 468 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 173 – INT./EXT./DIA/ NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VARANDA DO CASARÃO. Anoitecendo. Fazenda Ribeirão do Meio. Varanda. Sanfona de Farias nas mãos de Hipólito. Hipólito toca a sanfona de Farias. Inácia, Quitéria e Eulina cantam algumas modinhas. Cirilo, Miliquito, Zé da Viúva, Raimundo Sobreiro e Ambrósio estão na varanda ouvindo Hipólito tocar a sanfona e as mulheres cantarem modinhas. Cancela da fazenda. Dirceu entra pela cancela da fazenda em seu cavalo. Sales olha para a varanda e vê o pessoal da fazenda alegre, cantando e tocando sanfona. SALES O pessoal desta fazenda parece feliz. Onde já se viu negros tocando, cantando e conversando felizes assim. Dirceu não é lá um senhor muito normal. Eu, por minha vez, jamais aceitarei isso em minha fazenda. Lugar de negro é no trabalho ou na senzala. Comigo negro canta e dança é no chicote. Dirceu chega perto da varanda e pula do cavalo. Miliquito, Cirilo, Ambrósio e Raimundo Sobreiro correm ao encontro de Dirceu. DIRCEU Não se preocupem meus amigos, está tudo bem. Apenas estou indo novamente a Vila Rica... CIRILO Nhozinho tá doido, tá? Acabou de chegar, deixou cá as compras, foi até a fazenda de nhô Sales e agora vai de novo para Vila Rica? Nhô Dirceu deve está cansado. DIRCEU Quem está cansado é o meu cavalo, Cirilo. Todos dão risadas. Dirceu olha para Ambrósio e Miliquito. 469 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Ambrósio, Miliquito, dessarreiam o meu cavalo e solte-o no pasto. (olha para Cirilo) Cirilo prepare o seu cavalo para a viagem... CIRILO Nhô sim é prá já! Cirilo corre em direção ao curral. Raimundo Sobreiro olha para a cancela e vê Sales. Dirceu olha para Raimundo Sobreiro e bate as mãos nas costas dele. DIRCEU Vós mercê, Raimundo, pode se divertir com os outros. Não carece preocupação alguma... RAIMUNDO SOBREIRO Tem alguém lá na cancela esperando vós mercê, senhor Dirceu? Quem é? DIRCEU É o coronel Sales. Ele não quis entrar... RAIMUNDO SOBREIRO Que mal faz ele, cá? DIRCEU Esperando que eu lhe faça um grande bem, Raimundo. A esposa dele pariu hoje, lá em Vila Rica. Vou acompanhá-lo para que ele não vá só a Vila Rica para ver a esposa e conhecer o filho. RAIMUNDO SOBREIRO Nhô Dirceu é homem muito bom, porque para prestar favor para um sujeito daquele... 470 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu não dá resposta para Raimundo Sobreiro. Dirceu simplesmente atravessa a varanda e entra no casarão. Quarto de Dirceu. Dirceu abre uma enorme gaveta do armário e pega uma pedra de diamante, enrolando-a em um pedaço de pano. Dirceu sai novamente do casarão para a varanda. Dirceu vê Cirilo na porta da varanda montado no cavalo dele. Dirceu cochicha para Cirilo. DIRCEU Dê-me o teu cavalo, Cirilo, sou eu quem vou acompanhar o coronel Sales até Vila Rica, Cirilo. Cirilo pula-se do cavalo e o entrega a Dirceu. Dirceu monta no cavalo, tira o chapéu acena para os rapazes da fazenda e vai ao encontro de Sales, na cancela. DIRCEU Vamos! SALES Vós mercê fará a mim companhia? DIRCEU E para que serve os amigos? SALES E os negros, vós mercê não tem medo de que eles fujam? DIRCEU Fugir para onde, se cá eles tem tudo que nós precisamos. Temos o dia para o trabalho e a noite para o descanso. Um dia e outro a gente inventa rezar e festejar com muitas iguarias gostosas e bebidas iguais a dos deuses... SEQUÊNCIA 174 – EXT./NOITE. ESTRADA DA SERRA DO ITA-CORUMI. 471 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Noite caindo. Serra do Ita-corumi. Dirceu e Sales cavalgando pela estrada da serra do Ita-corumi. DIRCEU (VOICE OVER) Sales e eu pegamos a estrada da serra do Ita-corumi. Durante a viagem Sales contava-me sobre as suas aventuras de milico. O pai sonhava mandá-lo para a França, onde ele estudaria para doutor, mas como vieram os tempos difíceis, acabaram perdendo as principais economias, impossibilitando a realização do sonho. Ele confessava a mim que não pensava em estudar, sempre sonhava tornar-se um grande fazendeiro, dono de escravos, bois, vacas, cavalos. Finalmente ele estava sentindo-se realizado com a vida que levava na fazenda, apesar da fraca experiência em lidar com a propriedade. Aproveitei a espontaneidade dele ao contar-me uma coisa e outra e atinei a perguntá-lo sobre a mudança ou o estrago da pequena fonte do ribeirão feito através do comando dele. Alto da serra do Ita-corumi. Clarão da lua. Dirceu e Sales cavalgando pela estrada do alto da serra do Ita-corumi. SALES Ora, ora, estavas procurando ouro... DIRCEU Mas naquela fonte do ribeirão não tem ouro... SALES Eu estava passeando numa bela tarde pela fazenda e resolvi mergulhar na fonte. Quando sentei numa pedra das margens do rio, encontrei uma pequena pepita de ouro... DIRCEU E encontraste mais ouro? 472 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES Não. Eu pedi aos negros que cavassem para eu fazer uma pesquisa, mas até o momento não encontrei mais nada. Estou pensando em mandar os negros cavar mais fundo, há lugares em que o ouro se esconde no interior da terra, feito minhocas no inverno. DIRCEU Não convém fazeres isso. SALES Por quê? DIRCEU Até o momento, sabemos que não há ouro nessa parte da região. A terra é de cultura, própria para o plantio. SALES Mas eu encontrei uma pepita. DIRCEU Encontrar uma pepita não significa que exista ali uma mina... SALES Creio que... DIRCEU Posso revelar-te um segredo? SALES (aperta a rédea do cavalo e volta o corpo para o lado de Dirceu, mostrando-se curioso) Qual é o segredo? 473 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (dá risadas) A pepita de ouro que encontraste na margem da fonte, pertencia a mim. SALES Mas a fonte pertence à minha propriedade... DIRCEU Disso eu sei, mas fui eu quem atirou a pepita de ouro ali. SALES Como? DIRCEU Encontrei certa tarde com Marília, lá na fonte e como eu estava com a pepita de ouro em um dos bolsos da minha calça, eu dei-a de presente... SALES A dona Marília perdeu a pepita de ouro na fonte? DIRCEU Não, ela não aceitou o presente, então não sei porque, atirei a pepita de ouro longe. SALES Vós mercê fez isso? DIRCEU Fiz e a Marília chamou-me de louco. Eu não liguei, naquele momento ela era mais valiosa para mim do que qualquer pepita de ouro ou pedra de diamante. Ela era a minha joia e estava ali, na fonte sorrindo e contando-me suas histórias... 474 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Noite. Estrada da serra do Ita-corumi. Sales alinha-se o cavalo rente ao cavalo de Dirceu. SALES Por que não constaste a mim isso antes? DIRCEU Eu lá sabia que estavas procurando ouro. Eu pensei que estavas transformando a fonte em um grande rio... Dirceu e Sales soltam uma enorme gargalhada. SALES Rio, nada, eu não estava a transformar a fonte em nenhum rio, eu estava era sonhando com o diabo do ouro... DIRCEU Sabia que ouro é um metal perigoso, a ponto de causar uma febre incurável no homem? Quanto mais o homem encontra ouro, mais ele quer. Se não encontra, fica sonhando dormindo e acordado até se tornar obsessivo, doente. Já ouviste a história do bandeirante, Fernão Dias? É um bom exemplo disso. Ele, audacioso e desbravador, explorou o sertão de Minas Gerais sonhando em encontrar esmeraldas. Dizem que ele encontrou umas pedras verdes, mas não passavam de meras turmalinas. O coitado morreu enganado. O meu pai contou para mim que ele morreu no arraial de Sumidouro, próximo a Sabarabussu, atacado por uma terrível febre, delirando com essas pedras. SALES (arregala os olhos para Dirceu) Existe esta história é? Já ouvi falar dos bandeirantes, mas sobre a ganância deles, não... 475 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Para nós, donos de fazenda, o ouro não está no fundo da terra, está sobre o solo, emerso. O ouro é o que plantamos e colhemos para garantir o nosso sustento e o do próximo. Ele é bem mais precioso do que o ouro encontrado nas areias de aluvião ou nas perigosas minas, causadoras de intrigas e mortes. Estrada da serra do Ita-corumi. Sales faz um "sim" com a cabeça. Sales e Dirceu galopam por alguns instantes em silêncio. Após virar duas curvas da estrada, Sales olha para Dirceu. SALES Ainda gosta de Marília? DIRCEU Sim, mas nada sério... Fiquei sabendo que ela vai casar com um italiano, não é verdade? SALES Sim, é verdade, cumprirá o gosto do falecido pai. Tu Namoraste a dona Marília, não? DIRCEU Foi coisa passageira, nada tão séria a ponto de abalar nossas estruturas... SALES Estás namorando alguma moça? DIRCEU Aos solteiros, os nossos olhos estão sempre perquirindo uma e outra. Namoro muitas moças e não fico seriamente com nenhuma... 476 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES E a dona Marília? DIRCEU Dona Marília há de cumprir o destino dela, conforme o pai desenhou. Achei interessante quando ela me disse que teria de cumprir a vontade do pai. Isso é bom, pois une-se o útil ao agradável... SALES Como assim? DIRCEU Ouvi falar que muitos jovens italianos pretendem apostar na agricultura em nossa colônia. O problema maior é que eles não têm o apoio dos pais. Alguns estão procurando moças da nossa colônia para casar-se e contar com o apoio do sogro para afeiçoar-se aqui. Dizem que eles são trabalhadores, mas também avaros ao extremo. SALES Não é o caso do rapaz encomendado a casar-se com a minha cunhada. Segundo informações dadas a dom Manuel ele é sócio do tio de Marília. Homem muito rico, dono de videiras em Marsala, no oeste da Sicília. DIRCEU Marsala, Marsala. Marsala é a terra das videiras, não é? Ouvi dizer que é de lá os jovens que estão abandonando as suas famílias e vindo para o Brasil aventurar-se. Sales não responde nada para Dirceu. Sales e Dirceu olham para a frente da estreita estrada e prosseguem calados até chegarem em Vila Rica. 477 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Estás na cidade, senhor Sales... Daqui volto novamente à minha fazenda... SALES Não irás pernoitar por cá? Dizem que há duas ou três estalagens em Vila Rica muito boas... DIRCEU Não. A lua está clara e logo estarei de regresso á minha fazenda... Dirceu abre um alforje que está na sela do cavalo e tira de dentro o diamante enrolado ao pano. Dirceu entrega o diamante enrolado ao pano para Sales. Sales pega o pano meio desconfiado. SALES O que é? Um pedaço de pano? DIRCEU Um presente ao teu filho, Sales. Não é muito, apenas uma lembrança a uma criatura que acaba de despertar-se no mundo. Que ele seja feliz no mundo dos homens. Guarde-o com cuidado e somente abra quando estiver em casa... Sales guarda o diamante enrolado ao pano dentro de um alforje. Dirceu tira o chapéu e cumprimenta Sales. Sales faz o mesmo e sai galopando em direção á entrada de Vila rica. Dirceu volta galopando em direção a estrada da serra do Ita-corumi. Ele freia o cavalo, olha para a lua, volta cavalgando novamente até a entrada de Vila Rica falando por solilóquio. DIRCEU E Marília, seria possível vê-la? Creio que passarei a noite por cá. Mas Marília, não poderei vê-la, senão os nossos planos vão todos água a baixo. 478 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Entrada de Vila Rica. Dirceu galopa em direção à entrada de Vila Rica. Dirceu frea o cavalo e fica contemplando a cidade meio clara escura. OLHOS BRILHANTES DE AVES NOTURNAS. SEQUÊNCIA 175 – EXT./NOITE. SERRA DE ITA-CORUMI. CAMPOS DE CRISTAIS NO ALTO DA SERRA. Estrada de entrada à Vila Rica. Dirceu galopa devagar em direção à entrada de Vila Rica. Ele vez em quando frea o cavalo e contempla a cidade meio clara escura. Estrada da serra de Ita-corumi. Cirilo e Hipólito aparecem cavalgam lentamente na estrada da serra do Itacorumi. Eles seguem Dirceu, sem que ele os veja. Dirceu trotea devagar sem saber se entra em Vila Rica ou volta para a fazenda. Dirceu olha para trás e vê Cirilo e Hipólito em seus respectivos cavalos. Dirceu frea o cavalo bruscamente, olhando surpreso para Cirilo e Hipólito. Cirilo e Hipólito aproximam-se de Dirceu. CIRILO Inhozinho tem de desculpar nós dois. É que ficamos preocupados com vossemecê e com o coronel Sales. Resolvemos vir atrás para assegurar de algum perigo da noite... HIPÓLITO Sinhozinho vai passar a noite na vila. Se for, nós vamos embora agora mesmo... Dirceu olha para Cirilo e Hipólito. Ele olha para a estrada da serra e sorri. DIRCEU Fico feliz ao ter certeza de que vós mercês têm verdadeira estima por mim. Eu também os estimo muito, meus amigos. Eu não irei pernoitar em Vila Rica, voltarei com vós mercês 479 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior para a fazenda. Sozinho, talvez, eu estaria perdendo a coragem, mas acompanhado por vós mercês, eu vou até o inferno... Estrada da serra de Ita-corumi. Dirceu, Cirilo e Hipólito cavalgam-se tranquilamente pela estrada da serra de Ita-corumi, conversando. DIRCEU (VOICE OVER) Por falar que em companhia dos rapazes eu iria até o inferno, naquela viagem de volta à fazenda aconteceu-nos algo de arrepiar os cabelos. Hipólito guiava-nos à frente, Cirilo e eu cavalgávamos atrás, descontraídos dando boas risadas sobre um comentário feito por mim a respeito da empreitada de Sales, no pequeno riacho. Ninguém imaginava a possibilidade de nossas terras brotarem ouro ou quaisquer pedras preciosas. Se lá houvesse, não estaríamos vivendo tranquilos esquecidos pelo resto do mundo e, principalmente, das pessoas ambiciosas de nossa colônia. Cirilo contava algumas histórias de terror persuadindo-nos a crer serem verdadeiras. As histórias giravam em torno de fazendas, senhores, escravos, minas assombradas e pactos entre homem e diabo. CIRILO (acabando de contar uma história de assombração) E o fazendeiro muito esperto conseguiu enganar o diabo ficando com toda a fortuna dele. Dizem que era tanto ouro, tanta prata, que o homem até hoje não deu conta de gastar. HIPÓLITO Jesus, filho de Maria, essa história é de tirar o sono, Cirilo... Estrada da serra de Ita-corumi. Dirceu, Cirilo e Hipólito descem a estrada da serra, calados. O vento bate forte entre as árvores causando um assobio de se arrepiar. Hipólito para um instante e fica imóvel. Dirceu e Cirilo cavalgam na frente e olham para trás espantados ao ver Hipólito parado no mesmo lugar da estrada. 480 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Creio que a sua história deixou o Hipólito impressionado, Cirilo. Dirceu e Cirilo voltam galopando rápidos até Hipólito. Dirceu aproxima-se de Hipólito e toca em seu cavalo. Tanto o cavalo, quanto Hipólito, os dois estão congelados, feito estátuas de pedra sabão. Cirilo grita por Hipólito, tentando animá-lo. Hipólito continua do mesmo modo com o olhar fixo sobre a serra. Dirceu balança as mãos em frente ao rosto de Hipólito. Hipólito não pisca e não mexe o corpo. O cavalo também se procede da mesma forma. DIRCEU Está vendo alma penada, Hipólito? HIPÓLITO (montado no cavalo e imobilizado) Não, sinhozinho, tô vendo não... DIRCEU Então desempaca, homem de Deus. HIPÓLITO O cavalo não quer andar e eu também não consigo mexer o meu corpo, somente abrir a boca e conversar... CIRILO (pula-se do cavalo e observa as patas do cavalo de Hipólito) Ó, diabo! Só falta ser uma cobra enroscada na pata do bicho... Cobra é bicho enfezado, impede cavalo ou qualquer bicho grande de andar... O cavalo de Hipólito relincha-se e dá um pinote. Cirilo cai de costas no capoeirão. Hipólito segura firmemente a rédea do cavalo. Dirceu pula do cavalo dele para socorrer Cirilo. Cirilo põe-se de pé e monta no cavalo, enquanto o cavalo de Hipólito vira-se para um lado e outro, bate 481 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior com as patas dianteiras no chão e, sem que Hipólito consiga controlá-lo, cavalga entre pastos e capoeiras próximos. Dirceu e Cirilo montam em seus cavalos e saem cavalgando atrás de Hipólito. DIRCEU Segure firme, Hipólito, nós iremos socorrê-lo... Hipólito solta risadas estranhas, gritando para Dirceu e Cirilo acompanhá-lo. Dirceu e Cirilo acompanham o cavalo de Hipólito. O cavalo de Hipólito cavalga rápido por uma estrada desconhecida da serra. Os cavalos de Dirceu e Cirilo troteam atrás do cavalo de Hipólito, sem nunca alcançá-lo. Subida da serra. Hipólito cavalga na frente, Dirceu e Cirilo, atrás, subindo a serra. Alto da serra. Campo de cristais rochosos. O cavalo de Hipólito para no campo de cristais rochosos e relincha mansamente. Tanto o cavalo, quanto Hipólito, ficam novamente feito estátuas. Dirceu e Cirilo aproximam-se de Hipólito. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Estaríamos vivendo naquela madrugada uma passagem apocalíptica? Seria aquele acontecimento uma força sobrenatural capaz de revelar o mistério da minha capela? Campo de cristais rochosos. O cavalo de Hipólito circula o pequeno campo e relincha. Uma forte luz de cristal surge do chão e ilumina-se todo o corpo de Hipólito. Dirceu e Cirilo assustam-se com o brilho da luz. Eles tentam fugir a galope, mas os cavalos deles se paralisam. HIPÓLITO Venham, é aqui! DIRCEU Aí, o quê? HIPÓLITO Aproxime-se senhor Dirceu... 482 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cirilo é quem se aproxima de Hipólito. O cavalo de Cirilo dá um pinote e sai troteando pelo mato adentro, levando-o para longe. Dirceu fica só para atender o chamado de Hipólito. Dirceu salta do cavalo e aproximase de Hipólito. Hipólito deixa Dirceu perturbado, pois, uma ora ele se converte na imagem dele, outra ora na imagem de Josias. NOTA: Josias é uma imagem de ilusão sobre o corpo de Hipólito. DIRCEU Com quem devo falar, com Hipólito, ou com Josias? Se eu não estiver perdendo o meu juízo, estou vendo duas imagens de dois amigos que se apagam e que se acendem. O que vós mercês querem comigo? JOSIAS Sinhozinho sabe quem sou eu? Eu sou o velho amigo, o vaqueiro Josias. Não quero assustar inhozinho não. DIRCEU (afrouxa a rédea do cavalo e cavalga dois passos de ré) Josias? Tu estás penando, meu irmão? JOSIAS Sou alma penada, não inhozinho. Ganhei permissão para poder livrar de uma coisa que aflige a minha alma. DIRCEU (afrouxa a rédea do cavalo e cavalga dois passos à frente) Qual coisa aflige a sua alma? JOSIAS Inhozinho lembra-se do causo da santinha? DIRCEU Sim, lembro. 483 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOSIAS Enterrei a coitadinha juntamente com o ouro por essas bandas. Só sinhozinho pode me ajudar. Vossemecê pode me acompanhar para buscá-la? DIRCEU Sim. Campo de cristais rochosos. Todos os cristais brilham intensamente. Hipólito, com o corpo emprestado a Josias, pula-se do cavalo e anda até o centro do campo de cristais. Hipólito, com o corpo emprestado a Josias, levanta as mãos para o céu, se ajoelha e com a voz trêmula (de JOSIAS), murmura. Há uma grande pedra. Hipólito, com o corpo emprestado a Josias, toca-se os pés na pedra. A grande pedra dilui-se, tornando um pó de areia branquinho. JOSIAS Vossemecê, sinhozinho, cava a terra aqui. Dirceu pula-se do cavalo e aproxima-se de Hipólito, com o corpo emprestado a Josias. Ele olha firme para o chão e abaixa para tocar a terra, abrindo as mãos. DIRCEU Estou desprovido de qualquer instrumento capaz de cavar a terra... JOSIAS Cave com as mãos, sinhozinho consegue... Hipólito, com o corpo emprestado a Josias, abaixa-se e com um dedo radiando uma forte luz e, com os olhos fechados, risca o chão, fazendo um pequeno círculo. Dirceu senta-se no chão e cava a terra entre o pequeno círculo. A terra, embora pareça rochosa transforma-se em uma areia fina, brilhante e macia a ponto de se tornar uma fina poeira e a se escapar das mãos de Dirceu. Dirceu toca-se em uma pequena caixa de 484 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior couro e sopra a areia fina que resta no buraco. Aparece a pequena caixa de couro. Hipólito, agora empresta o corpo ao pai de dom Miguel. Hipólito com o corpo emprestado ao pai de dom Miguel, abaixa-se, enfia as mãos na cova, tira dela a pequena caixa de couro e entrega-a para Dirceu. Dirceu olha para Hipólito e vê a imagem do pai de dom Miguel. Dirceu, assustado, afasta-se do local arrastando-se de joelhos. DIRCEU Quem é? Se não mais é o Josias? PAI DE DOM MIGUEL (aproxima-se de Dirceu) Está aqui, senhor Dirceu... DIRCEU Quem é? Se não mais é o Josias? PAI DE DOM MIGUEL Sou o pai de dom Miguel. Assim como o irmão Josias, eu também preciso de vós mercê. Todo o ouro, contido cá, pertence a vós mercê, porém a imagem deverá ser doada a uma igreja de Vila Rica. DIRCEU Qual igreja? PAI DE DOM MIGUEL A igreja de Santa Ifigênia, construída por Chico Rei e sua tribo, em Vila Rica... DIRCEU E Josias, onde está o irmão Josias? PAI DE DOM MIGUEL Josias já se vê livre disso tudo. Graças a vós mercê, a missão dele terminou no mundo material. Lembre-se irmão Dirceu, 485 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior tanto nós espíritos, quanto vós, matéria, somos todos desertores de Deus. DIRCEU Desertores de Deus? Mas os desertores de Deus, não são os que fogem Dele? Não são os traidores? PAI DE DOM MIGUEL Não, Dirceu. Somos todos desertores de Deus, porque abandonamos a matéria e tornamos espíritos, segundo a vontade dele. Cá estou, assim como Josias também esteve, numa espécie de deserção para cumprir forçosamente algo que não cumprimos quando éramos matérias. Tornar-se um desertor também implica ir contra as leis dos homens e tornar-se a favor das leis de Deus. DIRCEU Tudo isso é muito confuso. Não queres que eu entregue ao seu filho a imagem e o ouro? Não conheço o seu filho, mas posso procurá-lo pelas regiões de Vila Rica... PAI DE DOM MIGUEL Não. Em breve o meu filho venderá tudo o que adquiriu na colônia e embarcará para Portugal. DIRCEU Como a um desertor? PAI DE DOM MIGUEL Não falei que somos todos desertores de Deus? Nada é nada para o homem, apenas tudo é tudo para Deus. O meu filho não mais poderá ficar no Brasil. Ele também jamais poderá tomar posse dessa imagem que agora está com vós mercê. Não se preocupe com esta missão. Nada irá afetar vós mercê. Portanto, quando souberes da partida do meu filho, para além-mar, leve a imagem de Santa Ifigênia à igreja construída 486 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior por Chico Rei e sua tribo e coloque-a na entrada da igreja. Não deixe que ninguém veja vós mercê fazendo isso. Ninguém também jamais saberá o que se sucedeu cá. Quero que vós mercê fique tranquilo, em nome de Deus. DIRCEU Amém! O campo de cristal enche-se de luz. O corpo de Hipólito livra-se dos espíritos de Josias e do pai de dom Miguel. As luzes do campo de cristal se desfazem. Hipólito anda em círculo e, como se acordasse de um sonho estranho, cai no chão sentado, olhando para Dirceu. HIPÓLITO Inhozinho, onde estamos? DIRCEU Um pouco longe de casa, Hipólito. Apenas me ajude a colocar esta caixa no meu cavalo e pronto, partiremos agora. Cavalo de Dirceu. Dirceu monta no cavalo. Hipólito entrega para Dirceu a pequena caixa. O cavalo de Hipólito vem em direção a Hipólito. Hipólito monta no cavalo dele. Dirceu e Hipólito descem a serra. SOL DESPONTA-SE NO HORIZONTE. SEQUÊNCIA 176 – INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado à mesa do canto olhando para a pequena caixa de couro. 487 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Está aqui a pequena caixa de couro do meu amigo e finado Josias. Aos poucos a história dele vai se tornando uma verdade verdadeira. Porta do quarto de Dirceu. Alguém bate na porta do quarto. Dirceu levanta rápido da mesa de canto e vai atender a porta. Dirceu abre a porta. Surge Hipólito na porta. HIPÓLITO Inhozinho, tá todo mundo preocupado com o Cirilo, desde ontem, depois da viagem, ele ainda não apareceu na fazenda. A Inácia, mulher do Cirilo tá chorando desesperada. Vossemecê não acha bom que nós vamos atrás dele, na serra... DIRCEU Não, Hipólito. Fala para todo mundo se acalmar que o Cirilo logo vai está aqui na fazenda. Eu confio em Deus e creio que nada de ruim aconteceu com ele. HIPÓLITO Inhozinho deve de tá certo. Vamos esperar Cirilo. Deus vai trazer Cirilo são e salvo... Hipólito afasta-se da porta do quarto. Dirceu fecha a porta e vai até a cama. Dirceu deita-se na cama de barriga para cima. DIRCEU Que aconteceu, meu Deus, por que o Cirilo ainda não apareceu até agora? Já é bem tarde, mas se eu mostrar estar preocupado, será pior. Vou aguardar mais um pouco, qualquer coisa eu chamo pelos rapazes e vamos todos atrás do Cirilo pela serra. Como disse o pai de dom Miguel, somos todos desertores de Deus. O homem é nada de nada e somente Deus é tudo é de tudo. 488 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Noite. Candeeiro acesso. Quarto de Dirceu. Mesa de canto. Pequena caixa de couro em cima da mesa de canto. Dirceu sentado na mesa pega a pequena caixa de couro. Gaveta superior da mesa de canto. Dirceu abre a gaveta superior da mesa de canto e pega um pequeno cinzel. Cinzel na mão de Dirceu. Ele fecha a gaveta da mesa de canto, ajeita-se a pequena caixa de couro em cima da mesa e abre-a com o cinzel. Pequena caixa de couro aberta. Dirceu olha para dentro da pequena caixa de couro aberta, extasiado. Ele enfia as mãos dentro da pequena caixa de couro e pega algumas pepitas de ouro. Pepitas de ouro pequenas e grandes nas mãos de Dirceu. Dirceu enfia novamente as mãos dentro da pequena caixa de couro e tira dela a imagem de Santa Ifigênia. Ele pega a imagem de Santa Ifigênia com zelo e coloca-a em cima da mesa de canto. Ele fica a reparar a imagem de Santa Ifigênia, tocando-a pacientemente. Ele verifica as costas da imagem de Santa Ifigênia, levanta-a e olha o fundilho dela. No fundilho da imagem de Santa Ifigênia há uma pequena tampa feita de pedra sabão. Dirceu pega o cinzel e cutuca a tampa do fundilho da imagem de Santa Ifigênia. Algumas pepitas de ouro derramam sobre a mesa de canto. Dirceu olha para as pepitas de ouro espalhadas na mesa do canto, com os olhos bem estalados. Detalhes da imagem de Santa Ifigênia. DIRCEU (VOICE OVER) Enquanto todos nós aguardávamos tensos a misteriosa chegada de Cirilo, tranquei-me no quarto, peguei a pequena caixa de couro e abri-a com a ajuda de um cinzel. Ao enxergar os objetos contidos no fundo, fiquei boquiaberto. Josias estava certo sobre a riqueza contida nela. Pepitas de ouro pequenas e grandes. Peguei a santa com certo zelo. Ela pesava alguns quilos. Toquei-a, pacientemente. Ela trazia a aparência de uma escultura moderna, daquelas criadas por Antônio Francisco Lisboa ou por algum artista da nossa colônia. Seria difícil identificar o seu autor, pois, infelizmente, a coitada foi esculpida intencionalmente para enganar a coroa real. Era uma imagem modesta, bem retratada, a ponto de não parecer o que realmente era: uma santa do pau-oco. Verifiquei as costas da santa e, somente após consultar-lhe o fundilho, encontrei uma 489 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior pequena tampa feita de pedra sabão. Cutuquei-a com a ponta afiada do cinzel. SEQUÊNCIA 177 – INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VARANDA DO CASARÃO. Noite. Candeeiros acessos na varanda do casarão. Inácia está sentada em uma das poltronas, juntamente com Eulina, Quitéria e Sebastiana na varanda do casarão. Sebastiana cochila. Cancela da fazenda. Cirilo chega à cancela da fazenda. Miliquito e Ambrósio estão no quintal de frente à fazenda e vêem Cirilo chegar à cancela da fazenda. Ambrósio tira o chapéu da cabeça, dá um passo para frente, olha para a cancela da fazenda e olha para Miliquito. MILIQUITO Viu lá, Ambrósio, viu lá quem tá chegando... AMBRÓSIO Tô vendo alma penada ou é mesmo o Cirilo, Miliquito? Chapéu de Ambrósio cai no chão. Miliquito pega o chapéu de Ambrósio do chão e entrega para ele. Ambrósio corre para a cancela da fazenda. Miliquito corre para a varanda do casarão para avisar o pessoal sobre a chegada de Cirilo na cancela da fazenda. FADE OUT/FADE IN Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado na cama arrumando as pepitas e a imagem de Santa Ifigênia dentro da pequena caixa de couro. Dirceu escuta gritos vindos do terreiro. Inácia ( em off) comemora alegre a chegada de Cirilo. Dirceu levanta da cama, vai até o velho armário do quarto, abre-o e guarda a pequena caixa de couro. FADE OUT/FADE IN 490 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Porta do casarão com a varanda. Dirceu aparece na porta do casarão que se dá com a varanda. Ele, sem ser notado por ninguém, fica observando Cirilo rodeado por Miliquito, Ambrósio, Hipólito, Zé da Viúva, Raimundo Sobreiro, Inácia, Eulina e Quitéria. Sebastiana continua sentada em uma das poltronas cochilando. Cirilo, ainda montado em seu cavalo, no quintal de frente da fazenda, próximo à varanda, exibe alegremente uma seriema, duas emas, quatro perdizes e três codornas peadas em embiras de cipós. CIRILO Não sei o que aconteceu, mas de uma hora para outra eu desviei da estrada, deixei o nhô Dirceu e o meu amigo Hipólito de lado e sai correndo atrás de umas caças. Enquanto eu não peguei, não sosseguei. O poleiro, que eu fiz lá no fundo do quintal está pronto, faltavam esses bichinhos para botar nele... Miliquito, Ambrósio, Hipólito, Zé da Viúva, Raimundo Sobreiro, Inácia, Eulina e Quitéria dão risadas. Dirceu, ainda parado na porta do casarão que se dá para a varanda, observa a todos. DIRCEU (VOICE OVER) Todos riram de Cirilo. Eu, portanto, fiquei ali, quieto, agradecendo ao deus Fauno, que, embora fosse protetor das lavouras e dos rebanhos, desviara Cirilo da missão, que só a mim pertencia, enviando-lhe caças raras e dando-lhe condições de pegá-las vivas para criá-las em seu cativeiro. Adianto, aqui, portanto, que tanto Cirilo, quanto Hipólito, eles nunca comentaram a mim e nem a ninguém sobre a noite sinistra que enfrentamos em prol do mistério revelado pelas almas de Josias e do pai de dom Miguel. SEQUÊNCIA 178 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Legenda: "Alguns dias depois..." 491 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Manhã. Oficina de queijo. Eulina, Inácia e Quitéria arrumam queijos curados em uma velha prateleira, na oficina de queijo. Miliquito e Cirilo consertam uma velha mesa que está capenga, também na oficina de queijo. Curral da fazenda. Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão sentados na cerca do curral arrumando alguns arreios. Ambrósio e Dirceu cavalgam sobre a campina verde. FADE OUT/FADE IN Tarde. Chiqueiro das ovelhas. Grande pedra. Dirceu sentado na grande pedra. Vento toca os cabelos de Dirceu. Ovelhas pastando. Alceu olha para a grande pedra e vê Dirceu. Alceu deixa as ovelhas sob o comando de Endimião e Trácio e vai ao encontro de Dirceu. Dirceu recita um poema por solilóquio. DIRCEU Marília, de que te queixas? / De que te roubou Dirceu / O sincero coração? / Não te deu também o seu? / E tu, Marília, primeiro/ Não lhe lançaste o grilhão? Dirceu está sentado na grande pedra. Alceu aproxima-se de dele. Dirceu, distraído demora um pouco perceber a presença de Alceu. ALCEU Nhô Dirceu? Perturbo o meu estimado nhô Dirceu? DIRCEU (olha para Alceu assustado) Perdão, Alceu. Eu estava cá, tão distraído pensando na dona Marília que eu não vi vós mercê chegar... ALCEU (Alceu senta-se na grande pedra ao lado de Dirceu) Tenho um recado para nhozinho. Ainda há pouco um moço lá da fazenda de cima, da fazenda que era do pai de dona Marília, veio cá e pediu pra eu levar um recado para nhozinho. 492 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (arregala os olhos para Alceu.) Recado? Que recado, Alceu? ALCEU (tira o chapéu e coça a cabeça) Ele falou para mode dizer pra nhozinho que um tal de Sales quer falar com nhozinho. DIRCEU (coloca o chapéu na cabeça) O Sales? O ex coronel Sales quer falar comigo? ALCEU É pra vossemecê ir lá à fazenda dele, nhô. É a mesma fazenda da dona Marília... SEQUÊNCIA 179 – EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DOM MANUEL. Manhã. Fazenda de dom Manuel. Dirceu chega a cavalo na cancela da fazenda de dom Manuel. Miguelim e Arouxe correm para atender a cancela da fazenda. Dirceu tira o chapéu e cumprimenta-os. Estrada próxima do lado de fora da cancela da fazenda de dom Manuel. Sales e Paulo vêm cavalgando pela estrada em direção à cancela da fazenda. Dirceu vê Sales e Paulo vindo em direção à cancela da fazenda. Dirceu frea o cavalo próximo à cancela da fazenda e espera Sales e Paulo aproximarem-se. Sales e Paulo apressam o galope para chegar logo à cancela da fazenda. Sales e Paulo recebem Dirceu na cancela da fazenda. Sales, Dirceu e Paulo entram no quintal de frente da fazenda. Sales e Dirceu saltam-se dos cavalos. Paulo recolhe o cavalo de Sales e o de Dirceu indo para uma alameda de frente do quintal da fazenda para amarrá-los. Sales e Dirceu vão até a varanda da casa e sentam-se nas poltronas. Dirceu e Sales conversam animadamente. 493 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Sales recebeu-me logo que cheguei à cancela da frente da casa. Percebi que a sua aparência de homem carrancudo havia se transformado em outra, pendendo a um homem mais aberto, alegre e espontâneo. Ao cumprimentar-me, ele logo quis saber, novamente a forma de como eu tratava os negros da minha fazenda. Contei a ele os meus hábitos e completei com os antigos modos do meu pai. Ele admirou e disse que queria sossego na fazenda. Sugeri-o a agir de forma mais amigável com o pessoal dele. Ele contou-me algo que aconteceu na fazenda dele, que o deixou assustado. SALES Quando cheguei de Vila Rica fiquei sabendo que morreram dois escravos desta fazenda. DIRCEU Eram novos? Geralmente os recém-chegados de África sofrem do chamado mal de banzo. SALES Não, não eram novos na fazenda. Eles nasceram na colônia e pertenciam à leva de escravos comprados pelo meu finado sogro. Eles morreram nas mãos do benfeitor, devido a um castigo tolo e severo. O benfeitor exigiu que eles continuassem a cavar a margem da fonte em busca de ouro, como eles ousaram a lhe desobedecer, fez o que fez. DIRCEU Meu Deus, mas isso é desumano. Por isso é que eu sempre falo meu caro Sales, a escravidão não passa de um lava-cara inventado pelos brancos no auge de toda a covardia humana. Imagina vós mercê o quanto é triste saber que esses coitados foram roubados de suas terras, separados de suas famílias, em África, para atender aos ideais dos brancos de forma forçosa, no Brasil e em toda a Europa. 494 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES Os dois negros que morreram eram bons escravos e isso me causou prejuízos. Também Acertarei as contas com o benfeitor e o expulsarei da fazenda o mais rápido possível, senão daqui a pouco ele estará matando outros escravos e... DIRCEU E o prejuízo aumenta não é senhor Sales? Ainda está procurando ouro lá na fonte do ribeirão? Vós mercê sabe que lá não existe... SALES Fiquei sabendo disso com vós mercê, durante a viagem. Eu, assim que cheguei de Vila Rica e abati-me com os prejuízos de perder dois escravos bons, eu mandei cessar a busca pelo ouro, lá na fonte... Mas eu o chamei aqui para negócios. DIRCEU Negócios? Que tipo de negócios, senhor Sales. SALES Quero vender esta fazenda para vós mercê. DIRCEU Vender-me esta fazenda? SALES Sim, agora que o meu filho nasceu, acho por bem tocar um negócio em Vila Rica. Creio que farei um bom negócio se eu abrir em Vila Rica um grande armazém para comercializar grãos alimentícios, farináceos, azeites, chapéus, bengalas, utensílios domésticos e demais iguarias. Esses ramos de negócio são menos complicados do que tocar uma fazenda... 495 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Aconselho o amigo a fazer aquilo que acha que deva fazer. Dizem que a nossa cabeça é o nosso guia. Agora, tens, todavia, uma família a zelar e negociando na cidade, sem dúvida, correrá menos riscos. Mas a fazenda, vender a fazenda? SALES Vós mercê compra-me a fazenda, não compra? DIRCEU Não, não posso, senhor Sales. Como vós mercê sabe, senhor Sales, administrar uma fazenda dá trabalho. Duas então são mais trabalhosas ainda. Minha ambição não chega a tanto a ponto de querer possuir duas ou mais fazendas... SALES Mas vós mercê pode comprá-la, não pode? DIRCEU Estas insinuando... SALES Que vós mercê tenha dinheiro ou valores capazes de comprarme esta fazenda... Dirceu olha para Sales e balança a cabeça insinuando um "não". Sales solta uma risada. SALES Creio que vós mercê tenha diamantes e muitas pepitas de ouro guardados em sua fazenda, senhor Dirceu... DIRCEU Se eu fosse o senhor eu não acreditaria nisso, senhor Sales... Se alguém lhe contou... 496 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES Ninguém contou a mim, estou supondo. Aquela noite, quando fez-me companhia até Vila Rica, entregou-me um simples pedaço de pano como presente ao meu filho. Nele continha um bonito e raro diamante. DIRCEU (olha para Sales meio desconfiado) Ah, sim. Eu ganhei aquele diamante ainda criança. Eu apenas quis repassá-lo ao seu filho. SALES (Sales fica um pouco sem graça, mas desfarça com um sorriso cínico no rosto) Sabe qual o valor da pedra? Ela vale uma fortuna... DIRCEU Não, não sei. Nunca pedi especialista algum para avaliá-la. Talvez por julgar o quanto ela vale, resolvi dá-la ao teu filho... SALES Isso que fizeste foi por Marília, não foi? DIRCEU Digamos que sim... SALES Se Marília não fosse comprometida com o italiano, eu a casaria com o senhor... DIRCEU Neste caso, venderia a rapariga para mim, não é senhor Sales? 497 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES Não vamos pensar nesses termos, senhor Dirceu, embora para nós homens tudo gira em torno de negócios... DIRCEU Nem tudo gera em torno de negócios, senhor Sales. Não sei se o senhor considera o que tenho a dizer, mas o coração não se compra ou se vende. SALES Vós mercê é homem e sabe que agimos dessa forma. Ainda deseja casar com a dona Marília, senhor Dirceu? DIRCEU Não, Marília foi uma aventura. No auge dos acontecimentos, o senhor e a vossa senhora proibiram nos ver, portanto, esfriamos. Creio que nem ela pensa mais em mim. SALES E a fazenda, por que não comprá-la? Dirceu põe se de pé e coloca o chapéu na cabeça. Sales, sentado, dá um sinal para que Dirceu torne a sentar-se na poltrona. Dirceu cumprimenta Sales e sai da varanda da casa, colocando o chapéu na cabeça. Cavalo de Dirceu amarrado debaixo da alameda da fazenda. Dirceu desamarra o cavalo, monta nele e sai galopando pelo terreiro da fazenda. Estrada. Dirceu sai cavalgando lentamente pela estrada. Encruzilhada. Dirceu faz o sinal da cruz perto de uma encruzilhada. DIRCEU (VOICE OVER) Despedi-me rapidamente de Sales, na varanda da casa, montei rápido no cavalo e galopei de volta à minha fazenda. Não perderia tempo com aquele assunto de Sales, cheio de rodeios, como se ele estivesse a perquirir-me riquezas. Assim como o corpo de Hipólito foi possuído por dois espíritos amigos, para ajudar-me, Sales, decerto, poderia ser possuído por um 498 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior espírito ruim, capaz de destruir-me. Benzi-me com o sinal da cruz e afastei-me dos pensamentos malignos. Ao chegar à fazenda, pensei no velho Farias que, no meu pensamento, dizia. EFEITOS: Encruzilhada. Quando Dirceu passa pela encruzilhada e faz o sinal da cruz, Farias aparece montado em um cavalo branco ao lado do cavalo dele. Dirceu olha assustado para Farias. Farias está com barba e bigodes bem aparados, vestindo um Rhinegrave verde, sapatos de couro e meias brancas, com um manto azul bordado de estrelas da cor do ouro, jogados pelas costas. Farias pareia o cavalo dele com o de Dirceu. FARIAS Sinhozinho não é besta, pega tudo de valor e esconde noutro lugar, fora da casa. O diabo anda solto, beirando o patrãozinho... Nuvem de poeira. Farias desaparece na nuvem de poeira. Dirceu galopa rápido pela estrada da capoeira. SEQUÊNCIA 180 – INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. Madrugada. Candeeiro aceso. Quarto de Dirceu. Mesa de canto. Pequena caixa de couro no chão e alforje com pepitas de ouro e diamantes em cima da mesa de canto. Dirceu anda pelo quarto e olha para todas as velhas mobílias. Velho armário. Ele abre o velho armário e sorri. Mão de Dirceu pegando a caixa de couro e o alforje com pepitas de ouro e diamantes em cima da mesa. Luz do candeeiro apaga-se. DIRCEU (VOICE OVER) Abri os olhos e, crendo na verdade do pensamento, inventei outro esconderijo para depositar o que havia de valor em meu 499 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior quarto. Criei uma frase e anotei no meu bloquinho de contas: "a cobiça é a pior desgraça da humanidade". GALO CANTA NO POLEIRO DO QUINTAL DA FAZENDA. SEQUÊNCIA 181 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. QUINTAL DA FAZENDA. Legenda: "Segundo domingo de maio de 1793". Manhã. Capela da fazenda. Poucos fiéis sentados nos bancos da capela da igreja. Altar da capela. Antenor, no altar da capela, termina de fazer uma celebração eucarística. A voz de Estela, esposa de Antenor, sempre sobressai no responsório dos fiéis. ANTENOR Dóminus vobíscum. FIÉIS Et cum spíritu tuo. ANTENOR Benedícat vos omnípotens Deus, Pater, et Fílius, + et Spíritus Sanctus. FIÉIS Amen. ANTENOR Ite, missa est. FIÉIS Deo grátias. FADE OUT/FADE IN 500 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Manhã. Cancela da fazenda Ribeirão do Meio, aberta. Cirilo e Hipólito recebem os poucos fiéis que estavam assistindo à missa na capela da fazenda, na cancela. Quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Grande mesa improvisada debaixo de uma árvore. Os poucos fiéis (adultos) sentam-se na grande mesa improvisada. Na grande mesa improvisada há vasilhas cheias de quitutes. CRIANÇAS correm pelo pátio da fazenda brincando umas com as outras. Zé da Viúva, Raimundo Sobreiro e Ambrósio conversam sentados em círculo, debaixo de uma árvore. Quitéria, Eulina e Eulina estão na varanda juntamente com Cirilo e Hipólito. Hipólito toca a sanfona de Farias. Hipólito puxa interessantes foles. Mesa grande improvisada. Copos de vinho nas mãos de Dirceu e de Antenor. Dirceu, Antenor e Estela conversam-se alegremente. Dirceu coloca o copo de vinho na mesa e comenta para Antenor. DIRCEU Suas celebrações são ótimas, senhor Antenor. Fico feliz porque a missa é rezada na língua dos santos anjos de Deus, igual as rezadas em Vila Rica... ANTENOR (termina de engolir um trago de vinho e olha para Dirceu) O latim, senhor Dirceu, a língua mais bela e prosaíca que existe na face da terra... DIRCEU Para falar essa língua, senhor Antenor é preciso de ser um bom entendedor de arte... ANTENOR Sem dúvida, senhor Dirceu. E por falar em arte não sei se vós mercês ficou sabendo haverá a reabertura da Casa da Ópera de Vila Rica para uma célebre apresentação de um grupo de atores franceses e italianos... DIRCEU É mesmo? Grupo de atores franceses e Italianos? 501 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ANTENOR Sim, trata-se de uma peça operística, baseada no conserto musical do grande compositor e maestro, Vivaldi , "Le quattro stagioni"... ESTELA Até hoje não sei o que é ópera ou peça operística, mas que eu vou também eu vou... ANTENOR Vamos sim Estela, claro. Espero que o senhor Dirceu nos faça companhia também à nossa caravana. Então, senhor Dirceu, estou preparando uma pequena caravana para irmos até a Casa da Ópera, de Vila Rica para assistirmos ao grande espetáculo. Dirceu demonstra-se pensativo. Antenor levanta o copo de vinho para despertá-lo. ANTENOR Vá ou não conosco? DIRCEU Irei, irei com a caravana de vós mercê assistir a um teatro pela primeira vez... ANTENOR Arrumei até uma estalagem descente para a nossa caravana se hospedar após o espetáculo... Grande mesa improvisada. Visão panrâmica do quintal com as pessoas nas mesas, em círculos e crianças brincando entre as árvores. Dirceu, Antenor e estela conversam animadamente. Nota: ouve-se a música "A Primavera: Adargio-largo-Allegro", DE VIVALDI, para a narração de Dirceu em off, qual dará prosseguimento com a sequência 194. 502 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Segundo os informantes, a população de Vila Rica, desde a classe mais alta e intelectualizada, às mais abastadas comentavam a estréia do espetáculo. Desde 1788, quando o fundador, diretor e responsável da casa, Sousa Lisboa falecera nada de cultura extraordinária acontecia na Casa da Ópera. SEQUÊNCIA 182 – INT./EXT./NOITE. VILA RICA. CASA DA ÓPERA. Legenda: "Três semanas depois..." Vila Rica. Noite. Porta da Casa da Ópera de Vila Rica. Fila de mulheres e homens, todos muito bem vestidos, na porta da Casa da Ópera. A porta da Casa da Ópera abre-se e todos se entram educadamente. Sala da Casa da Ópera. Luzes de lampiões acesos. Espectadores sentados nas cadeiras ansiosos para o início do espetáculo. Dirceu, sentado na cadeira, entre os espectadores. Orquestra pronta. Palco. Atores entramse no palco encenando as músicas de Vivaldi, tocadas pela maravilhosa orquestra: Adargio-largo-Allegroe; Allegro non molto-presto; Allegro Adágio Molto; Allegro non molto-larggo-allegro. Fim da apresentação. Público de pé, aplaude o grande espetáculo. Porta da Casa da Ópera. Homens e mulheres saem pela porta da Casa da Ópera. Dirceu olha para as mulheres, como se quisesse encontrar Marília no meio delas. Ele fala por solilóquio. DIRCEU Meu Deus, cada uma das quatro estações apresentadas pela ópera foram maravilhosas. Qual dessas quatro estações estaria a mágica capaz de fazer-me unir eternamente a Marília? Homens e mulheres saindo pela porta da Casa da Ópera. Dirceu reparando as mulheres. Dirceu aparece no meio das mulheres e de propósito esbarra-se em Dirceu. Ele assusta-se, mas logo reconhece Rosa. 503 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Rosa?!!! ROSA Eu mesma, senhor Dirceu e trago notícias da dona Marília... DIRCEU (alegra-se) Ela está aqui na Casa da Ópera, Rosa? ROSA Não, ela não quis vir, mas soube que viria uma caravana de sua fazenda para cá, então imaginou que vós mercê poderia também vir... DIRCEU (olha para um lado e outro) E a dona Marília, onde está a dona Marília, Rosa? ROSA Sinhá Marília aguarda por vossemecê perto da Igreja Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias... DIRCEU Mas é um lugar longe, escuro... Dona Marília é mesmo louca... ROSA Dona Marília tem uma amiga por lá e o pai da tal amiga não há de desampará-la, caso precisar... DIRCEU Então o recado está dado, Rosa, eu vou ao encontro de dona Marília perto da igreja Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. 504 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 183 – EXT./NOITE. VILA RICA. VÁRIOS. Calçada alta de uma casa, perto da Igreja Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. Cavalo de Dirceu amarrado em um poste. Dirceu e Marília beijando-se próximos à calçada alta. MARÍLIA Agora, Dirceu, posso te abraçar, te abraçar, te abraçar e te beijar, te beijar e te beijar até o fim da minha vida... DIRCEU Conte-me onde está toda essa segurança tão convicta, Marília... MARÍLIA O nosso plano. Fiz a carta que vós mercê forjou cair nas mãos do senhor meu cunhado... DIRCEU O Sales? Ele leu a carta? MARÍLIA (faz uma cara engraçada) Leu e leu, depois releu e releu e até acho que também, se é que existe essa palavra, desleu. O coitado do Sales ficou possesso com o suposto italiano a casar-se comigo... CORTA PARA SEQUÊNCIA 184 – INT./DIA. CASA DE DOM MANUEL. SALA DE VISITA DA CASA DE DOM MANUEL. Flash back – Relato de Marília. Dia. Casa de dom Manuel. Sala de visita da casa de dom Manuel. Sales sentado fogosamente na poltrona com a carta na mão. Amarílis e Marília 505 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior estão também na sala de visitas, sentadas, juntas, em outra poltrona frente à poltrona de Sales. SALES Coisa mais idiota. O italiano concorda casar-se com Marília, desde que a família dela arque com todas as despesas, inclusive com a da viagem dele da Itália para a colônia. Olha só, Amarílis, ele exige dinheiro, conforto e promete fazer grandes empreendimentos, cá, na colônia, caso apostarmos nele. Até parece que vamos aceitar... até parece... MARÍLIA Promessa do senhor finado pai, Sales. Se for promessa tem de ser cumprida. Venderemos a fazenda e se possível também esta casa para que o moço venha ileso da Itália... AMARÍLIS (olha para Marília meio desajeitada) Queres mesmo casar com o mancebo da Itália, Marília? Queres que invistamos nesse casamento cheio de exigência... MARÍLIA Como não? Há outro jeito para dar sossego à finada alma do nosso pai? Até parece e Deus me perdoe, se estou blefando, mas até parece que a alma do papai está tiçando vós mercês para tudo isso... AMARÍLIS Estas louca, Marília, rezes o credo e peças perdão a Deus pela bobeira que estás a falar... MARÍLIA Peço ao cunhado Sales que escreva urgente ao estrangeiro e peça alternativa plausível, fácil de nos arranjar ao trato... 506 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES Não vou me atrever a mandar carta nenhuma para esse "talzinho". A minha resposta é não, não e não! Que buscar alternativa que nada... MARÍLIA Mas as coisas Não podem ficar assim, assim, Sales... AMARILIS Assim, assim como, Marília? Ouvi histórias de um romance proibido entre vós mercê e um tal de Dirceu... É verdade? Gostas dele? Por que vós mercê não o aceita como namorado? MARÍLIA Como o quê? AMARÍLIS Como um namorado, Marília. Sei que ele andou-lhe fazendo a corte... MARÍLIA Pensas que vou casar-me com um louco, minha i5rmã... AMARÍLIS Com um louco? MARÍLIA Sim, com um louco, capaz de atirar ouro nas margens de uma fonte... AMARÍLIS (arregala os olhos para Marília) Ele fez isso? Atirou fora... 507 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA (imita o arregalo dos olhos de Amarílis) Sim, atirou fora uma pepita de ouro nas margens da fonte do ribeirão... Sales ajeita-se todo na poltrona e olha assustado para Marília. AMARÍLIS (Amarílis olha para Sales e para Marília) Então ele é muito rico ou deveras um louco... MARÍLIA Louco, dou-lhe a certeza disso. O senhor Dirceu é um louco! Prefiro ao italiano do que um louco... AMARILIS Meu Deus! Conte-me irmã, como foi que ele atirou a pepita de ouro nas margens da fonte do ribeirão... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 183.1 – CONTINUAÇÃO - EXT. NOITE. VILA RICA. CALÇADA ALTA DE UMA CASA, PERTO DA IGREJA NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DE ANTÔNIO DIAS. Calçada alta. Dirceu e Marília sentados na calçada alta. Marília e Dirceu abraçam-se e beijam-se. Os dois conversam animadamente. Uma vez e outra passa uma liteira carregada por homens negros e fortes. Dirceu e Marília olham rápidos para um ou outro acontecimento em volta e continuam firme, sentados na calçada. DIRCEU (VOICE OVER) Marília contou para Amarílis como e porque eu joguei a pepita de ouro nas margens da fonte do ribeirão. Sales, obviamente, ficou sabendo pela esposa e teve certeza de que o ouro 508 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior encontrado por ele, na fonte, realmente pertencia a mim, conforme eu havia revelado a ele. Contei a Marília sobre os novos planos do cunhado em vender a fazenda e apostar no comércio. Ela não se surpreendeu, contando-me que o cunhado mostrou para a esposa uma valiosa pedra de diamante... CORTA PARA SEQUÊNCIA 184.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA DE DOM MANUEL. SALA DE JANTAR. Flash back – Relato de Marília. Casa de dom Manuel. Sala de jantar com mesa posta com algumas guloseimas e variados tipos de sucos. Sales, Amarílis e Marília estão sentados à mesa. Vívila serve Sales, Amarílis e Marília. A um dos cantos da sala está Rosa, sentada em uma cadeira com o bebê de Amarílis no colo. Sales olha para Amarílis e para Marília e tira de uma das algibeiras da roupa uma grande pedra de diamante. Os olhos de Amarílis brilham ao olhar para a pedra. SALES Vejam senhoras, que beleza! Esta é uma raríssima pedra de diamante, muito valiosa... AMARÍLIS (quase que se deixando hipnotizar pelo diamante) Onde conseguiste isso Sales! Que pedra bonita... Creio nunca ter visto um diamante antes... SALES Ora, ora, esta pedra foi herança de um tio-avô. Herdei-a faz muito tempo. Desfar-me-ei dela para apostar em um negócio em Vila Rica... 509 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA É devido a essas porcarias de pedras que o homem destrói tudo o que existe na natureza. Há pouco tempo, antes de os portugueses a portassem cá, esta terra era outra... SALES Era sim, outra terra, sem civilização alguma. (olha bem para o diamante) E pedrinhas iguais a esta, preciosas, ficavam bem escondidinhas da gente, parecendo não querer valer nada... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 183.2 – CONTINUAÇÃO – EXT./NOITE. VILA RICA. VÁRIOS. Calçada alta. Marília e Dirceu beijam-se. Cavalo de Dirceu. Dirceu pega a mão de Marília e leva-a até o cavalo. Dirceu coloca Marília na garupa do cavalo. Cavalo andando pelas ruas de Vila Rica até o portão da casa de Marília. Marília despede-se de Dirceu com um beijo. Dirceu chega à porta de grande casarão. Na porta do grande casarão há uma placa escrita "Estalagem Anjo da Guarda". DIRCEU (VOICE OVER) Mordi os lábios ao constatar que Sales, além de ambicioso, também não passava de um mentiroso. Algo parecia querer alertar-me sobre a segurança da fazenda e dos que nela moravam. Despedi-me de Marília e marchei rapidamente para a estalagem "Anjo da Guarda", onde estava hospedada também a minha caravana. 510 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CAPÍTULO 11 SEQUÊNCIAS 185-202.1 Personagens deste capítulo: Sales Bando de cavaleiros(homens brancos e negros) Miliquito Cirilo Inácia Eulina Ambrósio Zé da Viúva Raimundo Sobreiro Sebastiana Dirceu Joaquim Alonso Irmão de Joaquim Alonso Irmã de Joaquim Alonso Pai de Joaquim Alonso Mãe de Joaquim Alonso Homens encapuzados Guardas das naus Marujos Cozinheiros da nau Homens que pulam da nau Marília Filha de Antenor de 16 anos Filha de Antenor de 18 anos Rosa Antenor Trácio Endimião Alceu Alguns fazendeiros da região Alguns sitiantes da região Terêncio Tibúrcio 511 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Velho índio Garimpeiros Homens do campo de cristal Menina de 9 anos (filha de Vivêncio) Menino de 11 anos (filho de Vivêncio) Menino de 13 anos (filho de Vivêncio) Velho Tonhim Moça loira descabelada Dois moços morenos e fortes Dois filhos do velho Tonhim Índia tupiniquim Moço espanhol Bebê recém-nascido Senhora branca Dois padres espanhóis Criança indígena com 7 anos de idade Poucos fiéis Farias FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 135 2. Sequência 60 3. Sequência 185 SEQUÊNCIA 185 – INT./EXT. NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. ESTRADA PRÓXIMA À FAZENDA. CANCELA DA FAZENDA. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. VARANDA DO CASARÃO. Flash back – Sonho de Dirceu Fazenda Ribeirão do Meio. Estrada próxima à fazenda. UM BANDO DE CAVALEIROS (homens brancos e negros) cavalga pela estrada próxima á fazenda, ao comando de Sales. Cancela da fazenda aberta. Sales dá ordem para que o bando de cavaleiros entre pela cancela da fazenda. Bando de cavaleiros entra no quintal de frente da fazenda. 512 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Miliquito e Cirilo estão no quintal de frente da fazenda e vêem o bando de cavaleiros entrarem pela cancela da fazenda. Cirilo e Miliquito correm em direção ao bando de cavaleiros. Sales dá ordens para alguns cavaleiros saquearem seus bacamartes e atirarem em Cirilo e Miliquito. ALGUNS CAVALEIROS atiram em Cirilo e Miliquito. Cirilo e Miliquito caem enrolando no chão e morrem. Inácia e Eulina aparecem gritando em direção aos corpos dos maridos Cirilo e Miliquito. DOIS HOMENS DO BANDO DE CAVALEIROS atiram em Inácia e Eulina. Inácia recebe um tiro nas costas e cambaleia-se caindo próxima ao corpo de Cirilo. Eulina grita e recebe um tiro no peito, cambaleia e cai no chão ao lado do corpo de Miliquito. Varanda do casarão. Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão na varanda do casarão. Sales invade a varanda do casarão e aponta o bacamarte para eles. Sales atira em Ambrósio, Zé da Viúva e em Raimundo Sobreiro. Sebastiana aparece na varanda trazendo uma cesta de quitutes. Um tiro de bacamarte atinge o peito de Sebastiana. Ela cai morta no chão. Rede. Dirceu está deitado na rede. Sales aproxima-se da rede e cutuca-a com o seu bacamarte. Dirceu olha para Sales assustado. Sales atira em Dirceu. CORTA PARA Madrugada. Quarto de Dirceu. Dirceu acorda assustado e senta-se rapidamente na cama fazendo o sinal da cruz. DIRCEU (fala por solilóquio) Meu Deus, meu Deus, ainda bem que só foi um sonho. SEQUÊNCIA 186 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CURRAL. Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu está no curral junto com Hipólito, Cirilo, Miliquito e Ambrósio. Eles estão reparando as vacas e 513 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior algumas novilhas. Zé da Viúva chega montado em seu cavalo. Ele encosta-se o cavalo na cerca do curral e observa Dirceu. DIRCEU (VOICE OVER) A partir dos dias seguintes, apenas restou-me alertar ao pessoal da fazenda para que tomassem cuidado com pessoas estranhas, caso aparecessem por cá. E de tanto alertá-los sobre isso, que, certo dia Zé da Viúva apareceu esbaforido no curral da fazenda gritando por mim. ZÉ DA VIÚVA Nhô Dirceu, nhô Dirceu!!! CIRILO É o Zé da Viúva, nhô Dirceu, parece que ele tá avexado, gritando por inhô... ZÉ DA VIÚVA Nhô Dirceu, nhô Dirceu!!! Dirceu observa pela fresta da cerca da cancela e vê Zé da Viúva gritando por ele. Dirceu vai rápido ao encontro de Zé da Viúva. Dirceu encostase na cerca do curral, frente ao Zé da Viúva que está do lado de fora, encostado na cerca do curral. DIRCEU Que foi Zé, que se sucedeu? ZÉ DA VIÚVA Inhô pediu para que todos da fazenda tomassem cuidado com pessoas estranhas, caso aparecessem por cá, não foi? DIRCEU Sim. E daí? 514 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZÉ DA VIÚVA E daí é que tem um homem estranho, sinhô, um homem sentado lá na porta da frente da capela... DIRCEU Um homem estranho sentado na porta de frente da capela? CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir. SEQUÊNCIA 135 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA. SALA DE VISITA DO CASARÃO. FARIAS Sinhozinho vai entender a partir do dia que os anjos aparecerem. Um anjo é grande, outro maior, um ajuda, outro engana. Os caminhos de sinhozinho vão ser iguais a uma encruzilhada. DIRCEU Um desses anjos descerá do céu para entregar-me uma chave? VOLTA PARA SEQUÊNCIA 186.1 – CONTINUAÇÃO - INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CURRAL. Dirceu larga tudo o que está fazendo, olha para Zé da Viúva e demonstra-se surpreso e confuso. 515 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Há um homem estranho na porta da capela da fazenda? Estranho como? ZÉ DA VIÚVA Sei lá um homem nunca visto por cá. Um mendigo talvez. Como vossemecê pediu para que tenhamos cuidados com as pessoas estranhas que por cá aparecerem, achei melhor avisar o sinhozinho... DIRCEU Fez bem, Zé, fez bem em avisar-me. Vamos lá até a porta da capela para ver do que ou de quem se trata... (olha para Hipólito, Cirilo, Miliquito e Ambrósio) Vós mercês continuam aí com o serviço que eu vou verificar um negócio cá com o amigo Zé... SEQUÊNCIA 187 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FRENTE DA CAPELA DA FAZENDA. VÁRIOS. Porta de frente da capela da fazenda. HOMEM MALTRAPILHO sentado na porta de frente da capela da fazenda. O homem maltrapilho chama-se JOAQUIM ALONSO, um padre português, alto, magro, olhos claros e de aproximadamente 33 anos de idade. Joaquim Alonso está sentado em cima de um saco com roupas. A roupa que ele está vestido está suja e um pouco deplorável. Dirceu e Zé da Viúva chegam á capela da fazenda em seus respectivos cavalos. Dirceu pula do cavalo e dirige-se até Joaquim Alonso sentado na porta de frente da capela da fazenda. DIRCEU Que fazes por cá, precisas de ajuda, senhor? JOAQUIM ALONSO (voz fraca e cansada) 516 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Há muito ando por estas bandas, sinto sede e fome, senhor... DIRCEU Zé,vai até a fazenda e traga comida e água para este mísero homem... ZÉ DA VIÚVA Nhô vai ficar por cá, sozinho com esse homem? JOAQUIM ALONSO (olha para Zé da Viúva e para Dirceu com um olhar piedoso) Carece preocupar não, senhor. Deus não desampara os pobres, logo terei comida e água de sobra em minha mesa... DIRCEU (torna a olhar para Zé da Viúva que ainda continua montado no cavalo) Vai Zé, faça o que estou pedindo. É para um grande bem... E não conte aos outros nada do que está se sucedendo por cá... ZÉ DA VIÚVA Inhozinho, sim, inhozinho vou e volto já. Zé da Viúva chicoteia o cavalo e sai a galopes pegando a estradinha da capela até a fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu pega o cavalo e amarra-o no tronco de uma árvore próxima ao adro da capela da fazenda. Dirceu, de longe, observa com os olhos o homem maltrapilho. Joaquim Alonso cochila tranquilamente com cabeça encostada na porta de frente da capela da fazenda. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Seria esse homem um anjo disfarçado em humano? Farias havia me alertado sobre os anjos. Segundo ele, um anjo é grande, outro mais grande, um ajuda, outro engana... 517 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior EFEITOS: Dirceu olha para a porta de frente da capela da fazenda e vê apenas Farias, barba e bigodes bem aparados, vestindo o Rhinegrave verde, sapatos de couro e meias brancas, com o manto azul bordado de estrelas da cor do ouro, jogados pelas costas. Farias está de pé e olha para Dirceu, sorrindo. FARIAS Os caminhos de sinhozinho vão ser igual a uma encruzilhada... Sinhozinho vai entender tudo. Trate-se deste homem, como se tratasse de mim ou de Jesus de Nazaré... Dirceu fica imóvel olhando para a figura de Farias. A figura de Farias desaparece. Dirceu esfrega os olhos e olha para a porta de frente da capela onde está Joaquim Alonso. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Meu Deus, quem será aquele homem? Zé da Viúva chega à frente da capela da fazenda em seu cavalo. Dirceu apressa os passos e vai ao encontro de Zé da Viúva Zé da Viúva entrega para Dirceu um prato de comida amarrado em um pano branco, um copo e uma pequena botija de água. Dirceu caminha até Joaquim Alonso, desamarra o pano branco envolto ao prato e o entrega para Joaquim Alonso. Joaquim Alonso recebe o prato de comida, olha para Dirceu agradecido e come-o cautelosamente. Dirceu coloca a botija de água e o copo no chão ao lado de Joaquim Alonso. DIRCEU (VOICE OVER) Enquanto o homem maltrapilho comia, perquiri-o com conversas. Descobri, finalmente, que não se tratava de um anjo, mas sim de um homem comum chamado Joaquim Alonso, dizendo ser um ex-minerador desempregado vagando pelo mundo em busca de trabalho para matar a fome. Eu sugeri que ele procurasse Vila Rica, onde, decerto, encontraria trabalho em uma mina. Ele, infelizmente, dizia vir de lá. Segundo ele os mineradores estavam dispensando os 518 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior trabalhadores, devido à escassez do ouro. Acreditei nele, pois os tempos de fartura se escorriam das mãos dos mineradores, atravessadores e compradores de ouro ou pedras preciosas. Percebi que ele não era da região de Vila Rica e nem sequer de nenhuma região ou capitania brasileira... CORTA PARA SEQUÊNCIA 188 - INT./EXT./DIA/NOITE. VÁRIOS. Flash back – Relato de Joaquim Alonso Legenda: "Portugal, 1785..." Alentejo. Noite. Grande casa de madeira.Candeeiros acessos em um dos cantos da sala da casa grande de madeira. Mesa na sala grande com uma família sentada nela. Joaquim Alonso, com 25 anos de idade ao lado de uma irmã loira, cabelos lisos, caídos na testa e olhos claros, de 14 anos; um irmão de cabelos loiros encacheados, de 20 anos; o pai, gordo, cabelos e olhos claros e a mãe, magra, de cabelos loiros cacheados e olhos castanhos. TODOS se põem de pé. A MÃE faz uma oração. Terminada a oração, a mãe senta-se primeira e depois os outros. Vasilhas com comida, na mesa. Todos começam a se servir. HOMENS ENCAPUZADOS, com tochas de fogo invadem a grande casa de madeira, ateando fogo. Sala grande de jantar. HOMENS ENCAPUZADOS entram na sala grande de jantar, sacam punhais das cinturas e matam a família de Joaquim Alonso. Candeeiros acessos caem da parede de um dos cantos da sala da grande casa. Grande casa incendiada. Joaquim Alonso consegue escapar dos homens encapuzados. Joaquim Alonso foge para um campo de pés de oliva. Joaquim Alonso esconde-se atrás de um pé de oliveira. Lisboa. Mar. Cais de Lisboa. Naus atracadas no cais de Lisboa. Joaquim Alonso no cais de Lisboa mirando as naus atracadas no porto. Naus chegando e naus partindo. Joaquim Alonso desce o cais. Naus. Guardas vigiando as naus. Joaquim Alonso tenta entrar em uma das naus. Após várias tentativas, Joaquim Alonso consegue entrar numa velha nau. Porão da velha nau. Joaquim Alonso escondido no porão da velha nau. Velha 519 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Nau parte do cais de Lisboa. Porão. UM MARUJO entra no porão e descobre Joaquim Alonso escondido em um canto sujo do porão da nau. O marujo leva Joaquim Alonso para o capitão da nau. O capitão olha para Joaquim Alonso e dá risadas. JOAQUIM ALONSO (VOICE OVER) A minha família descende do Alentejo, uma das maiores e mais seca região de Portugal. Desde que eu perdi os meus pais, no ano de 1785, devido a uma saga entre famílias rivais, fugi para os Açores e em seguida para Lisboa, onde todos os dias eu ficava no cais a mirar as grandes naus atracadas no porto. Umas chegavam e outras partiam para além-mar, a causar-me o desejo de aventuras. Certo dia, desci ao cais e após várias tentativas consegui entrar numa velha caravela . Não saí mais de dentro dela. Fiquei a aguardar noite e dia que ela partisse para algum lugar, a fim de embarcar-me também em uma grande aventura. Ouvi uns marujos dizerem que a caravela iria às Índias, então, eu aguentei firme ali, até o início da grande viagem. Depois da longa e sofrível viagem, fui descoberto no porão da naus, por um dos marujos. Ele entregou-me ao capitão da nau, que, invés de deportar-me para Lisboa, em uma das paradas, fizeram-me escravo deles. Eu pensei em chegar à Índia e acabei por desembarcar numa pequena vila desta colônia, qual eles diziam chamar-se Brasil. CORTA PARA SEQUÊNCIA 187.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA./PORTA DE FRENTE DA CAPELA DA FAZENDA. Dirceu e Zé da Viúva estão sentados no chão próximo a porta de frente da capela da fazenda ouvindo o relato de Joaquim Alonso. Prato vazio nas mãos de Joaquim Alonso. Joaquim Alonso entrega o prato vazio para Zé da Viúva. Joaquim Alonso pega a botija e despeja um pouco de água no copo. Ele bebe a água, respira fundo e continua o seu relato. 520 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA SEQUÊNCIA 188.1 - INT./EXT./DIA/NOITE. VÁRIOS. Flash back – Relato de Joaquim Alonso Brasil. Baia de Guanabara. Velha nau se atracando no porto da Baia de Guanabara. Joaquim Alonso desembarca-se ao lado dos marujos. Visão panorâmica da Baía de Guanabara, como paraíso terrestre, do tempo medieval. Naus atracada á beira do porto na Baia de Guanabara. Cozinha da nau. Joaquim Alonso servindo de ajudante na cozinha ao lado de alguns cozinheiros. Joaquim Alonso limpando alguns cômodos da nau. Madrugada. Porto da Baía de Guanabara. Joaquim Alonso e outros homens pulam da nau no mar, nadando rapidamente. JOAQUIM ALONSO (VOICE OVER) Fiquei durante alguns meses na Baía de Guanabara. Lá passei a fazer algumas tarefas como auxiliar de cozinha e a limpar as naus, conforme os marujos exigiam. Tempos depois fugi de lá, juntamente com outros homens que vinham para Vila Rica. Estou nesta região desde o ano de 1789 e, agora, infelizmente, encontro-me neste estado deplorável, a confundir-me com os mendigos. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 187.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA./PORTA DE FRENTE DA CAPELA DA FAZENDA. Joaquim Alonso está sentado na porta da capela da fazenda ao lado de Dirceu e de Zé da Viúva. JOAQUIM ALONSO Preciso de abrigo, por acaso vós mercês não necessitam de alguém para qualquer tipo de trabalho? 521 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Sim, quem sabe não poderemos ajudá-lo a se desfazer desse estado deplorável... JOAQUIM ALONSO Não somente ficarei agradecido, como Deus também há de ajudá-lo por ter socorrido esta pobre e deplorável alma, senhor, senhor... ZÉ DA VIÚVA Dirceu, o nome do inhozinho é Dirceu. E será se o moço já consegue ficar de pé? JOAQUIM ALONSO Creio que sim, meu filho. Andei bem umas léguas até chegar por cá. Antes de vós mercês ter-me descoberto cá eu já havia dormido um pouco e descansado não só o meu espírito, como também o meu corpo. Um é a luz do outro. Dirceu e Zé da Viúva levantam-se do chão. Joaquim Alonso faz o mesmo, levantando-se e pegando o saco com algumas peças de roupas, no qual ele estava sentado. Zé da Viúva pega o seu cavalo pela rédea e pede para que Joaquim Alonso o seguisse. Dirceu também pega o cavalo dele pela rédea. Estrada da capela que vai até a fazenda. Dirceu e Zé da Viúva puxam os seus cavalos pelas rédeas. Joaquim Alonso, com o saco nas costas, segue Dirceu e Zé da Viúva puxando os cavalos deles. SEQUÊNCIA 188.2 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. CLIPS FOTOGRÁFICOS DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO: capela da fazenda, cancela, casarão, casas de Cirilo, Hipólito e Miliquito, oficina de farinha de mandioca, oficina de queijo, engenho de cana, curral, chiqueiro das cabras, ovelhas pastando, campinas, bois pastando nas campinas, lagoa, riachos, etc. 522 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA Varanda do casarão. Dirceu está na varanda do casarão, sentado em um dos tamboretes observando Joaquim Alonso, todo bem vestido, com uma varinha de marmelo riscando no chão as letras do alfabeto da língua portuguesa. Miliquito, Cirilo e Ambrósio mostravam-se encantados, observando as letras riscadas no chão. Joaquim Alonso aponta as letras com a varinha de marmelo, ensinando Miliquito, Cirilo e Ambrósio a decifrá-las. Inácia, Eulina e Quitéria também observam Joaquim Alonso riscar letras no chão. Joaquim Alonso ensina também para Inácia, Eulina e Quitéria a decifrar as letras. Capela da fazenda. Grande mesa improvisada dentro da capela, pelo lado esquerdo. OS ALUNOS, Miliquito, Cirilo, Ambrósio, Hipólito, Inácia, Quitéria e Eulina sentados em dois grandes bancos expostos à direita e à esquerda da grande mesa. Tinteiros, penas e papéis próximos aos alunos. Joaquim Alonso todo entusiasmado ensina os alunos a escreverem os seus nomes. Papéis. Mãos dos alunos nos papéis escrevendo os seus respectivos nomes. DIRCEU (VOICE OVER) Joaquim Alonso logo se tornou o mais novo membro da nossa família. Não demorou muitos dias e ele conquistou a simpatia e a confiança de todos nós. Ele revelava-se um homem letrado, disposto a ensinar a todos da fazenda a ler e a escrever, durante os tempos de ociosidade. Não tínhamos uma lousa na fazenda, ele, todavia, arrumara um meio pedagógico para ensinar aos seus alunos, com uma varinha de marmelo riscando o chão liso, preparado por ele, durante cada lição. Eu chamava-o de Anchieta, principalmente ao vê-lo recitar em latim, alguns poemas clássicos de Virgílio e de Horácio. Não demorei a ceder-lhe a capela, transformando ali, no final de semana em um ambiente escolar com tinteiros, penas e papéis, pronto a atender quem quisesse aprender a ler e a escrever... 523 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 189 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Campos e colinas dos arredores da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu cavalga pelos campos. Pássaros de várias espécies voam de uma árvore para a outra. Dirceu sai do campo e entra na estrada do capoeirão. Ele segura firme a rédea do cavalo e fecha os olhos, sentindo o vento fresco bater em seu rosto. CORTA PARA EFEITO: Marília aparece vestida de camponesa, com uma bonita coroa de flores na cabeça. Ela cavalga em um cavalo branco pelo alto da colina. Dirceu, vestido de vaqueiro, cavalga rápido pela campina. O alto da colina se ilumina com raios dourados. Dirceu frea o cavalo, olha para o alto da colina e vê Marília radiantemente linda. Dirceu cavalga em direção à Marília, indo para o alto da colina. Campina verde, cheia de flores do campo. Marília e Dirceu se encontram na campina verde, cheia de flores do campo. Riachos, quedas-d'água, borboletas voando em círculos, abelhas, colibris dourados beijando as flores e os pássaros voando pelo céu avermelhado. Marília e Dirceu deitam no relvado e beijam-se. CORTA PARA Fazenda de dom Manuel. Estrada do capoeirão próxima a fazenda de dom Manuel. Dirceu cavalga na estrada do capoeirão próxima a fazenda de dom Manuel. Ele segura firme a rédea do cavalo, abre os olhos e leva um susto. Ele fala por solilóquio. DIRCEU Marília, minha amada Marília, se soubesses o quanto eu gostaria de tê-la, cá, comigo... Não somente galoparíamos pela campina, mas também pelas colinas verdejantes. Seríamos como os deuses no Olimpo. Ah, dona Maria, cá no meu peito diz que não demorarei a tê-la para sempre em minha vida... 524 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA Dirceu cavalga pela estrada do capoeirão, próxima a fazenda de dom Manuel. Ele casualmente encontra-se com as duas filhas de Antenor, uma de 16 e outra de 18 anos. Elas estão tendo dificuldades com um cavalo. O cavalo delas empaca-se na estrada do capoeirão. Saco cheio de mantimentos caído na estrada. As duas filhas de Antenor batem no cavalo com um cipó. Dirceu frea o cavalo, tira o chapéu e cumprimenta as duas filhas de Antenor. As duas filhas de Antenor alegram-se ao ver Dirceu. DIRCEU O cavalo empacou no capoeirão, foi? FILHA DE ANTENOR DE 18 ANOS Ora, senhor Dirceu, Deus o enviou por cá, para nos socorrer... FILHA DE ANTENOR DE 16 ANOS Fomos a um sítio logo ali, a pedido de mamãe para buscar alguns mantimentos e não sabemos porque, cá na volta, o cavalo está a teimar os trotes e, finalmente, empacar-se vez nesta estrada... DIRCEU (pula do cavalo e observa as patas do cavalo) Cobra não é... (levanta o saco que está no chão e coloca-o na garupa do cavalo) Pesado não está... Uai, meninas, não há nada de errado com o bicho... FILHA DE ANTENOR DE 18 ANOS Meu Deus, a tarde está caindo e logo a nossa mãe estará preocupada com a nossa demora... 525 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não se preocupem, cá estou para explicar a ela e ao Antenor o que se sucedeu na viagem de vós mercês... Dirceu coça a cabeça e olha para o cavalo empacado e depois para as meninas. Ele aproxima-se do cavalo empacado e monta-lhe na sela. Dirceu afrouxa a rédea e o cavalo se desempaca. Dirceu cavalga meia volta com o cavalo, ajeita o saco na garupa e monta nela. O cavalo empaca novamente na estrada do capoeirão. Dirceu dá risadas. DIRCEU O bichinho é tinhoso, ele não gosta de oferecer garupa. Ele se permite andar apenas com uma pessoa montada na sela... As duas filhas de Antenor dão risadas. FILHA DE ANTENOR DE 16 ANOS Não é que o danado empacou um monte de vez na vinda... Nós duas estávamos pensando que fosse a areia do capoeirão... DIRCEU Areia do capoeirão nada, o bicho pegou mania e foi só isso... Vamos fazer o seguinte. A garota mais nova monta-se na sela do cavalo, ajeitando-se com o saco de mantimentos. Quanto à garota mais velha, esta venha comigo, na garupa do meu cavalo... As duas filhas de Antenor se assustam com a ideia de Dirceu. FILHA DE ANTENOR DE 18 ANOS Esta quase anoitecendo e esse cavalo dando trabalho a nós e ao senhor... 526 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não se preocupem, confiem em mim. É melhor que eu acompanhe vós mercês duas com segurança até o sítio do Antenor. Darei um jeito... Dirceu coloca a filha mais nova de Antenor montada na sela do cavalo empacado e ajeita o saco de mantimentos na garupa do mesmo. Em seguida ele coloca a filha mais velha de Antenor na garupa do cavalo dele e monta na sela. Os cavalos saem troteando pelo capoeirão. DIRCEU Pronto! Creio que agora os nossos cavalos pegam a estrada do capoeirão antes que anoiteça e preocupem os pais de vossas senhororias... Estrada da capoeira. Cavalos cavalgando pela estrada da capoeira. Fazenda de dom Manuel. Cancela da fazenda de dom Manuel. Sales está juntamente com alguns de seus homens negros na cancela da fazenda de dom Manuel. Sales vê Dirceu carregando a filha mais velha de Antenor. Sales fica um pouco sem graça. Dirceu cumprimenta Sales, tirando o chapéu. O cavalo de Dirceu tropeça. A filha mais velha de Antenor agarra a cintura de Dirceu. Sales vê quando a filha mais velha de Antenor agarra na cintura de Dirceu. CURVA. OS DOIS CAVALOS SE DESAPARECEM NA CURVA. ANOITECE. SEQUÊNCIA 190 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PORTÃO DA CASA DE DOM MANUEL. CHAFARIZ Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Portão da casa de dom Manuel. Dirceu pula-se do cavalo, ajeita a rédea do cavalo entre um dos braços e chama-se no portão da casa de dom Manuel, batendo palmas. Portão. Rosa aparece no portão e ver Dirceu demonstra-se assustada. 527 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ROSA Sinhô Dirceu parece que perde o juízo de uma hora pra outra... DIRCEU O que foi Rosa? Parece que está um pouco apreensiva. A dona Marília andou ralhando com vós mercê, foi? ROSA Sei disso não. Vai até o chafariz que a dona Marília encontra com vossemecê por lá... Dirceu balança a cabeça sinalizando "sim". Rosa sai correndo e alcança a porta para entrar na casa. Ela entra na casa. CORTA PARA Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Igrejas. Casario. Dirceu chega até o chafariz principal de Vila Rica. Ele olha para todos os lugares procurando um local para amarrar o cavalo dele. Dirceu arruma um poste de madeira um pouco distante do chafariz. Ele amarra o cavalo no poste de madeira e volta para o chafariz. Chafariz escorrendo água. Dirceu lava o rosto na água do chafariz. Rua. Marília aparece em uma das ruas próxima ao chafariz. Dirceu vê Marília e sorri. Marília e Dirceu se aproximam. Dirceu tenta dar um abraço em Marília, mas ela foge apressadamente dos abraços de Dirceu. Dirceu olha para Marília assustado e confuso. Marília discute com Dirceu virando-lhe uma vez e outra as costas. Jogo de pantomima entre Dirceu e Marília. DIRCEU (VOICE OVER) Quando Marília chegou ao chafariz de Vila Rica, onde eu a esperava, encontrei-a fria e ambígua. Ela não se atirou ao meu pescoço e nem sequer beijou-me de saudade. Encontrei uma Marília carrancuda, briguenta, a dizer-me que eu não mais ligava para ela, inventando uma história suposta de que eu namorava outra moça na fazenda, ou em outra freguesia. 528 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Tentei convencê-la de todas as formas de que eu enfrentava problemas sérios na fazenda, e ninguém capaz de resolvê-las para mim. Ela atinou a dizer que soubera eu estar namorando uma moça, filha de um sitiante, próximo da minha fazenda. Ela referia-se à filha de Antenor. Fi-la contar-me quem inventara aquela história. CORTA PARA Maria olha para Dirceu com um olhar rancoroso e ao mesmo tempo triste. Ela abaixa a cabeça e fala compassadamente desviado o olhar dos olhos de Dirceu. MARÍLIA O Sales, o senhor meu cunhado contou-me que viu vossa senhoria de galanteios com uma bonita rapariga, filha de um sitiante próximo à sua fazenda... DIRCEU E ele contou para vós mercê que eu já estou quase noivo da rapariga? Chafariz. Marília empurra Dirceu para um dos cantos do chafariz e fecha a cara. Enquanto Dirceu se ajeita do empurrão, Marília sai correndo pela praça e senta-se em um dos banquinhos de madeira da praça. Dirceu corre ao encontro de Marília. Ele ajoelha-se aos pés de Marília. DIRCEU Tudo não passa de mentiras e brincadeiras, Marília. Sabes muito bem que eu jamais a trocarei por outra mulher. Vós mercê é a minha vida, minha fonte de inspiração, meu maior presente dado por Deus... MARÍLIA (olha tristemente para Dirceu) 529 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Sente-se Dirceu, não fique ajoelhado perante mim, feito homem arrependido. Sei muito bem que vós mercê não é nenhum santinho... Todo homem é cópia de outro homem, dentro do ser e do parecer, todos são sempre os mesmos... DIRCEU (senta-se no banco ao lado de Marília) Preferes crer em teu cunhado, Marília? MARÍLIA (os olhos cheios de lágrimas) Ultimamente eu tenho sofrido muitos aborrecimentos, Dirceu. Quero livrar-me destes encargos. Não suporto mais o peso de viver assim, nas mãos dos outros. Quando uma coisa parece que vai dá certo, aparece outra que dá tudo errado... DIRCEU Marília, deixe-me explicar o mal desentendimento que houve na suposta história contado a vós mercê por Sales... MARÍLIA (levanta-se do banco) Deixaremos as histórias de lado, Dirceu. Quero a chance de viver outras, outras histórias novas... DIRCEU (põe-se de pé ao lado de Marília) E se eu disser a vós mercê que eu estava a socorrer duas moças devido a um problema com o cavalo delas, acreditaria em mim? MARÍLIA (senta-se novamente no banco) Então vossemecê mesmo confirma que estava passeando com a moça agarrada em sua sela? 530 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (senta-se também no banco ao lado de Marília) É que... MARÍLIA Não quero explicações, Dirceu... DIRCEU Vós mercê conhece bem o seu cunhado, Sales, Marília? Sabia que ele é cheio de intrigas? E se eu contar a vós mercê que o diamante que Sales possui não pertence a ele e sim, pertence ao filho dele, vós mercê acreditaria? MARÍLIA Diamante? O que tem a ver diamante com essa história, Dirceu? DIRCEU O filho dele nasceu há poucos meses e eu o presenteei com um diamante... MARÍLIA E vós mercê está falando que presenteou o garoto com um diamante? Não entendi... DIRCEU Pois irás entender, Marília. Aquele diamante que o Sales possui, nada mais é que um presente dado por mim, ao filho dele. No dia em que a criança nasceu, eu não permiti que ele viesse sozinho para Vila Rica, então ofereci vir com ele. Trouxe-o pela mesma estrada que passamos quando o seu finado pai faleceu. Ao chegar aqui, pedi a ele para levar um presente ao recém-nascido. Tempos depois, quando estive com ele na fazenda, ele sondou-me de várias formas para saber onde eu havia encontrado o diamante, se eu possuía ouros ou riquezas. Desde aquele dia, após o espetáculo na 531 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Casa da Ópera, quando vós mercê contou-me que ele possuía um diamante, pela história inventada por ele, tornei-me inseguro. MARÍLIA Inseguro, por quê? DIRCEU Eu tinha a certeza da ambição dele, porém, depois do que vós mercê contou-me sobre o que ele dissera do diamante, percebi que ele não era somente um homem ambicioso, como também mentiroso. A ambição e a mentira estampadas nele fizeram com que eu cuidasse mais da fazenda. Não me estou referindo aos cuidados sobre os bens materiais, mas do pessoal que vive lá, da segurança deles. Fiquei o tempo todo a alertá-los de pessoas estranhas, sem poder contá-los sobre a minha aflição. Além do mais, pediria que vós mercê fosse até a sua fazenda e visse com os seus próprios olhos o que Sales fez com a fonte de que vós mercê tanto apreciava. MARÍLIA (leva a mão direita ao peito) A fonte? DIRCEU Sim, ele estragou a fonte, cavando-a em busca de ouro. MARÍLIA Mas lá não há ouro, há? DIRCEU O dia que vós mercê recusou a receber aquela pepita de ouro, joguei-a na margem da fonte, acreditando ser vós mercê minha pedra mais preciosa do mundo, quando Sales então... 532 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Sales então, o quê? DIRCEU Ora, o Sales encontrou a pepita de ouro na margem da fonte do ribeirão e, movido pela ganância, ordenou que os escravos da fazenda cavassem tudo ali para encontrar mais ouro. Além de estragar a fonte, ainda perdeu dois escravos na empreita, qual carrasco matou ao castigá-los... MARÍLIA Não creio que ele tenha feito isso, Dirceu! Creio que vós mercê está querendo desviar assunto... DIRCEU Que assunto, Marília? MARÍLIA Da moça, por que Sales haveria de contar-me sobre a moça? Praça. Pessoas passam pela praça. Marília morde os lábios e pensativa, vira-se para Dirceu um pouco insegura. DIRCEU Porque ele de saber dos nossos encontros às escondidas... MARÍLIA Não dos nossos encontros, mas dos encontros entre vós mercê e a tal rapariga, filha do sitiante... DIRCEU Então preferes crer na história contada pelo Sales? Não queres ouvir a minha versão sobre... 533 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA (tapa os ouvidos com as mãos) Não, não quero! DIRCEU (ficando tenso) Tudo bem, se vossa senhoria prefere acreditar nele, quanto à história de uma suposta namorada arranjada para mim, por ele, passe bem, dona Marília. Dirceu levanta-se do banco da praça e sai a passos largos indo em direção onde está o cavalo dele. Marília põe-se de pé e fica reparando Dirceu. Dirceu monta no cavalo e sai galopando até sumir em uma esquina. Marília fica sozinha na praça, anda, vai até o chafariz e refresca delicadamente o rosto. Um bando de andorinhas passa voando pela praça. SEQUÊNCIA 191 – EXT./INT./DIA./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Domingo. Capela da fazenda. Poucos fiéis sentados no banco da capela. Antenor celebrando a missa na capela da fazenda. Dirceu destaca-se na capela, sentado em um dos bancos, comportando-se tristemente. Joaquim Alonso fica a reparar Dirceu. CORTA RÁPIDO PARA Tarde. Campinas. Dirceu cavalgando pelas campinas, tristemente. Joaquim Alonso, montado em um cavalo vai ao encontro de Dirceu pelas campinas. Os dois cavalgam lado a lado, calados, apenas observando as paisagens. CORTA RÁPIDO PARA 534 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Pôr-do-sol. Chiqueiro das ovelhas. Grande pedra. Dirceu senta-se na grande pedra e fica observando Trácio, Endimião e Alceu cuidando das ovelhas. Joaquim Alonso, montado em um cavalo, ao longe, observa Dirceu sentado na pedra. CORTA RÁPIDO PARA Manhã. Curral. Dirceu ajudando Cirilo, Miliquito, Ambrósio e Hipólito a apartar as vacas para tirar o leite. Joaquim Alonso aproxima-se do curral e fic olhando para Dirceu. CORTA RÁPIDO PARA Capela da fazenda. Dirceu na capela da fazenda observando o altar principal. Olhar triste e perdido. Joaquim Alonso aparece na porta da capela da fazenda e observa Dirceu. CORTA RÁPIDO PARA Madrugada. Candeeiro aceso no quarto de Dirceu. Dirceu deitado na cama com os olhos arregalados para o telhado do casa2rão. CORTA RÁPIDO PARA Tarde. Grande cercado. Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro chamam a atenção de todos da fazenda ao tentar amansar alguns cavalos e burros bravos. Todos dão risadas com os pinotes dos cavalos, Dirceu, portanto fica pensativo e triste. Joaquim Alonso, em um dos cantos do cercado, observa Dirceu. CORTA RÁPIDO PARA Quarto de Dirceu. Dirceu no quarto, sentado na cama, encostado a cabeça em alguns travesseiros. DIRCEU (VOICE OVER) 535 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Passei a enfrentar os meus dias e meses sem Marília. Vila Rica perdeu para mim o sentido, restando-me apenas a fazenda para distrair e acostumar a viver os restos dos meus dias, sozinho. Pensei em continuar a investigar o sumiço do anjo da capela de Sant'Ana, porém desisti. Eu não tinha mais cabeça para pensar em nada. Por mais que eu acordasse cedo, trabalhasse o dia inteiro, à noite quase não conseguia dormir. Eu pensava em Marília e entristecia ao imaginar ela ter dado crédito à história contada pelo cunhado. A minha vontade era ir até Sales, dizer-lhe umas verdades e resolver a minha vida amorosa com Marília. Fiz-me truão. Alimentava em meu espírito uma falsa ideia de que Marília não seria a minha pastora. Eu, portanto, não seria o vaqueiro, pastor, senhor ou vassalo dela. Eu pagaria qualquer preço para esquecê-la, arrancá-la dos meus pensamentos. SEQUÊNCIA 192 - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VARANDA DO CASARÃO. Fazenda Ribeirão do Meio. Varanda do casarão. Dirceu está sentado na rede com um ar de tristeza. Joaquim Alonso aparece na varanda do casarão, indo ao encontro de Dirceu. Joaquim Alonso puxa um tamborete e senta-se ao lado da rede. Dirceu ajeita-se na rede e olha para Joaquim Alonso meio surpreso. JOAQUIM ALONSO Ultimamente eu ando preocupado com o amigo, Dirceu... DIRCEU Preocupado comigo? Por que, Joaquim Alonso? JOAQUIM ALONSO Porque estou a ver o amigo com os olhares e os pensamentos distantes, como se alguma coisa lhe abatecesse o espírito... 536 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não é nada, Joaquim Alonso, isso passa... JOAQUIM ALONSO Às vezes não passa, senhor Dirceu. Há coisas que nos acontecem e se torne um fardo. Às vezes é preciso que nós nos desabafemos com alguém. Quando dividimos os nossos problemas com alguém, as experiências de um ajuda o outro... DIRCEU (olha atentamente para Joaquim Alonso) Já amou alguém, capaz de se entregar de corpo e alma e depois esse alguém, por motivo algum, não querer mais saber de vós mercê... JOAQUIM ALONSO Não, nunca amei alguém particularmente e nunca passei por essa experiência... DIRCEU Então como podes me ajudar? JOAQUIM ALONSO Posso ajudá-lo a encontrar a paz espiritual... DIRCEU Acho que este antídoto, nem os namorados mais experientes poderiam dar a mim... JOAQUIM ALONSO Mas eu posso ajudá-lo a encontrar a paz espiritual... DIRCEU E creio também que nem os padres mais experientes poderão me dar a paz que eu necessito, Joaquim Alonso... 537 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO Da forma de como falas, até parece que perdeu a fé em tudo... DIRCEU (para, fica um pouco pensativo e responde) Talvez tenha acontecido isso... JOAQUIM ALONSO Se precisares de ajuda, Dirceu, por favor, conte comigo. Sei que estou há pouco tempo cá, mas creio ser digno de receber de vós mercê toda a confiança... DIRCEU Eu fico muito agradecido, Joaquim Alonso. Muito agradecido mesmo... JOAQUIM ALONSO É para isso que serve os amigos... SEQUÊNCIA 193 – EXT./DIA./ FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Fazenda Ribeirão do Meio. Campinas verdes. Dirceu cavalga pelas campinas. Cenário bucólico: ovelhas pastando; fontes de águas cristalinas; cascatas; aves cortando os ares, animais selvagens correndo entre um canto e outro das matas. Sítios. Dirceu conversa com alguns sitiantes em seus devidos sítios. Fazendas. Dirceu visita algumas fazendas da região e conversa com os fazendeiros. DIRCEU (VOICE OVER) Para recolher-me das preocupações de Joaquim Alonso, passei a cavalgar todas as tardes pelos sítios e fazendas vizinhas efetivando e fazendo novas amizades. Meus passeios deram certo, logo eu sentia um outro homem, apto a uma nova vida, com o coração vazio, mas rodeado de bons amigos. 538 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA Quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Grande mesa com banquete farto, no quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu com alguns fazendeiros, alguns sitiantes e todo o pessoal da fazenda Ribeirão do Meio sentados à grande mesa com o farto banquete. Antenor levanta-se da mesa e aproxima-se de Dirceu. Dirceu, ao ver Antenor em pé, próximo a ele, também se põe de pé. Galinhas, galos, patos e marrecos andando pelo quintal. Antenor e Dirceu saem andando pelo quintal da fazenda. ANTENOR Na semana que vem meus amigos e eu iremos fazer uma viagem a um pequeno povoado próximo a Rio das Mortes, conhecido como São José do Rio das Mortes, no sudeste de Minas Gerais. Lá, próximo a um velho garimpo, vivem alguns de nossos familiares. Eu visitarei um cunhado, recém-viúvo, pobre e pai de três crianças; o meu amigo, Terêncio visitará o pai, um velho índio solitário, cujo vive numa cabana contando prosas interessantes sobre a região e a vida dele. Irá também conosco o amigo Tibúrcio, para nos fazer companhia. Se vós mercê aceitar o meu convite, iremos em quatro pessoas, cavalgando estrada afora... DIRCEU (tira o chapéu da cabeça, coça a nuca e sem pensar muito olha sorrindo para Antenor) Sabe amigo Antenor, eu cá estou com alguns probleminhas particulares e, até que uma viagem dessa pode me fazer bem? Antenor e Dirceu saem andando pelo quintal do fundo da fazenda. Ovelhas pastando na manga. Trácio, Alceu e endimiãi são vistos ao fundo tocando as ovelhas. 539 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 194 – EXT./INT./DIA./NOITE. ESTRADA. POVOADO DE SÃO JOSÉ DO RIO DAS MORTES. GARIMPO. CASA DE ENCHIMENTO DO VELHO ÍNDIO. Legenda: "Uma semana depois". Madrugada. Estrada. Cavalos de Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio na estrada. Eles cavalgam pareados, conversando alegremente. ANTENOR Eu prometi para a minha esposa que farei o possível para trazer o irmão dela com as crianças para morar por cá, conosco, no sítio. O irmão dela é um pouco truão, vive tocado em São José do Rio das Mortes sonhando em ficar rico de uma hora para outra, caso venha a encontrar diamantes. Enquanto isso, só tem acontecido a ele desgraceiras. Um filho de 14 anos morreu de malária e a esposa de doença desconhecida, que ninguém soube explicar até hoje... TERÊNCIO (cavalga e parea o cavalo dele entre Dirceu e Tibúrcio) Eu também vou enfrentar o problema de tentar convencer o meu velho pai a vir para morar com a minha família. O velho é um índio meio tinhoso e vive de um pequeno plantio de milho, banana e mandioca numas terras que ficam nas margens dos rios destinados aos garimpos. Lá, ouvi falar que é um problema, o velho senhor meu pai está sempre brigando com os garimpeiros, a ponto de levar tiro de bacamarte a qualquer hora... Meio-dia. Relvado. Cavalos de Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio amarrados em troncos de árvores, no relvado. Eles estão sentados no relvado comendo paçocas tiradas de um grande alforje e bebendo água de suas botijas. FADE OUT/FADE IN. 540 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Tarde. Estrada. Cavalos de Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio na estrada. Eles cavalgam pareados, conversando alegremente. FADE OUT/FADE IN. Noite. Relvado. Cavalos de Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio desarreados, pastando no canto de uma mangueira. Redes armadas nos troncos das árvores. Eles estão deitados em suas respectivas redes. DIRCEU Vida de tropeiros é assim. Viaja durante o decorrer do dia, para uma ou duas vezes para descansar, mesmo sem saber quem está mais cansado se são os seus burros com as indumentárias nos lombos ou se são eles escanchados nos lombos dos bichos. O certo é que chega a noite e aí sim. Os burros descansam de suas indumentárias, ganhando os pastos de uma mangueira e os tropeiros estendem as suas redes entre as árvores e dormem tranquilos, aliviando o corpo do cansaço... CORTA PARA Madrugada. Antenor, Dirceu, Tibúrcio e Terêncio desarmam as suas redes, comem paçoca e tomam um café coado, feito em num fogão de três pedras, improvisado por Terêncio. Antenor, Dirceu e Tibúrcio arream os cavalos e, em seguida, todos cavalgam pela estrada. TIBÚRCIO E quando pensa que não os tropeiros acordam, desarmam suas redes, toma um cafezinho com paçoca de carne seca e pé na estrada, uns sabem que naquele dia chegam ao seu destino; outros calculam dizendo que faltam alguns dias... ANTENOR Mas o amigo pode ter certeza que São José dos Rios da Morte está logo ali, chegaremos antes do meio-dia... 541 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior UMA REVOADA DE ARARAS AZUÍS CORTA O CÉU SAUDANDO A CHEGADA DO SOL. SEQUÊNCIA 195 – EXT./INT./DIA. SÃO JOSÉ DO RIO DAS MORTES. PEQUENA TRILHA. CASA DE ENCHIMENTO DO VELHO ÍNDIO MESTIÇO. São José do Rio das Mortes, pequeno lugarejo com algumas casinhas em fileiras e algumas ruas planas e outras acidentadas. Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio cavalgam pelas ruelas de São José do Rio das Mortes. Terêncio avista uma pequena trilha e cavalgando, assume a frente. Antenor, Dirceu e Tibúrcio seguem Terêncio. Pequena trilha. Eles cavalgam pela pequena trilha. Ouvem-se barulhos de pássaros; aves coloridas voando por todos os lados, micos ou saguis e guaribas pulando de galhos em galhos. Lobos guarás correndo pelo mato. Árvores. Pés de buritis. Veredas. Rios. Riachos. Água caindo dos penhascos. Cachoeiras. Trilha. Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio cavalgando pela trilha. Lugar descampado com uma casa de enchimento, coberta de palhas secas de palmeiras e sem portas. Terêncio dá um sinal para os amigos frearem os seus cavalos. Ele vai até a frente da casa de enchimento, pula-se do cavalo e entra rapidamente nela. Grande sala da casa de enchimento. Rede feita de folhas de palmeiras, estendida entre dois paus dentro do interior da casa de enchimento. UM VELHO ÍNDIO MESTIÇO, filho de índia da raça tupiniquim, com homem da raça branca, de aproximadamente sessenta anos de idade, está dormindo na rede. Terêncio aproxima-se da rede e vê o velho índio dormindo. Ele estende as mãos para balançar a rede e acordar o velho índio, mas afasta-se rapidamente e sai a passos lentos da casa de enchimento. Terêncio aproxima-se de Antenor, Dirceu e Tibúrcio, quais continuam montados em seus cavalos. TERÊNCIO O senhor meu pai não se encontra em casa. Vou, enquanto isso, descer a carga do meu cavalo, desarreá-lo e, depois de 542 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior um descanso, ir ao encontro dele lá na roça, próxima a serra do garimpo. ANTENOR Então vamos direto para a serra do garimpo, até a casa do meu cunhado. Lá descansaremos e amanhã, daremos um jeito de nos encontrar... TERÊNCIO Podem ficar tranquilos que assim que eu ver o senhor meu pai e convencê-lo ou não a ir comigo para as bandas do ribeirão, eu os procurarei lá na serra do garimpo... ANTENOR, DIRCEU E TIBÚRCIO TIRAM OS CHAPÉUS E CUMPRIMENTAM TERÊNCIO. TERÊNCIO FAZ A MESMA COISA. SEQUÊNCIA 196 – EXT./DIA. TRILHA. CAMPO DE ROCHA DE CRISTAIS (UM ANTIGO GARIMPO). Trilha. Antenor toma a frente cavalgando com Dirceu e Tibúrcio pela trilha. Árvores. Pés de buritis. Veredas. Barulho de pássaros voando entre as árvores. Água caindo de um grande penhasco e rolando entre as pedras. A trilha dá-se com um largo rio raso, formado por cascalhos. Antenor, Dirceu e Tibúrcio atravessam um largo rio raso, formado por cascalho. Água caindo de um bicame de madeira. GARIMPEIROS de várias idades, peles queimadas, com grandes chapéus de palhas nas cabeças e com batéias e peneiras nas mãos. Antenor, Dirceu e Tibúrcio tiram os chapéus e cumprimentam os garimpeiros que estão no largo rio raso. Trilha. Antenor toma a frente novamente, cavalgando com Dirceu e Tibúrcio pela trilha. Rio lajeado de pedras e cascalhos. Homens de várias idades, queimados pelo sol, com bateias nas mãos garimpando dentro do rio lajeado. Final da trilha. Grande lugar descampado. Rochas de cristal. HOMENS, também queimados pelo sol, cavando as rochas 543 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior de cristais. Dirceu e Antenor comentam entre eles o que vêem no grande lugar descampado. DIRCEU Meu Deus do céu, que tanta avareza. Estes homens, de certo, vivem dia e noite sonhando em encontrar por cá, riquezas... ANTENOR E virão bichos ferozes, uns desconfiando dos outros. Já ouvi dizer que ocorre até mortes, devido a ganância... DIRCEU Creio que isto tudo já foi abandonado por quem entende de diamantes. Não vejo estrangeiros por cá, tudo não passa de um abandono... ANTENOR E o meu cunhado vive bestamente por cá, sacrificando os filhos em prol de um sonho mesquinho, de um diamante, que, nem falso, brota do chão. Enquanto isso os filhos vivem sofrendo às mínguas, pois cá, por estas bandas ninguém planta nada e quem planta alguma coisa troca ou vende por coisas caras... DIRCEU (frea o cavalo um pouco pensativo e olha para Antenor e Tibúrcio) Quando criança, no ano da graça de 1771, eu tinha dez anos de idade e passei por isso no Arraial do Tijuco. CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir com narração em voice over por Dirceu. 544 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 60 – EXT./DIA. ARRAIAL DO TIJUCO, 1771. PEQUENA CASA DE ENCHIMENTO À BEIRA DE UMA ESTRADA. Legenda: "Arraial do Tijuco, 1771". Tarde chuvosa. Barulho de trovões. Relâmpagos cortam o espaço. Casa de enchimento. Interior da casa de enchimento. Chão batido. Colchões amontoados em um canto, bruaca e caixa de couro aberta com peças de roupa. Fogão de lenha. Fogo crepitando no fogão de lenha. Caldeirão fechado cozinhando feijão com carne. DIRCEU, menino, com aproximadamente dez anos de idade, todo encolhido, com as mãos tapando os ouvidos, sentado em um banquinho encostado na parede da casa de enchimento. Dirceu está trêmulo, ao lado dele, sentado em um velho tamborete de couro, TIZIU, menino negro, magro e alto, com aproximadamente doze anos de idade. Raios, relâmpagos e barulhos de trovões. Dirceu se encolhe a cada barulho. Dirceu chora, devido ao mal tempo. DIRCEU (VOICE OVER) O senhor meu pai somente pensava em ficar rico. Todos os dias, quando eu acordava, não o via, pois ele estava sempre garimpando ou mergulhado nas grunas de uma gruta procurando diamantes e pepitas de ouro. Até hoje eu assusto, quando me lembro dos dias chuvosos e tempestuosos do Arraial de Tijuco. Em casa, uma casa de enchimento, pronta a desabar a qualquer momento, ficava um garoto chamado Tsiu para cuidar de mim... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 196.1 – EXT./DIA. TRILHA. CAMPO DE ROCHA DE CRISTAIS (ANTIGO GARIMPO). CASA DE VIVÊNCIO. Antenor, Dirceu e Tibúrio continuam parados olhando para o campo de rocha de cristais, onde há alguns homens procurando por diamantes. 545 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ANTENOR Como sabes, Dirceu, sou lá do Arraial de Tejuco e, no tempo em que o senhor seu pai garimpava por lá, havia ainda diamantes. Creio que o senhor seu pai, assim como o senhor meu pai, deram-se bem nas buscas... DIRCEU Sem dúvida e o diamante e o ouro estavam entrando-se em extinção... TIBÚRCIO Nada dura para sempre! ANTENOR Nada, senão as palavras de Deus... Antenor, Dirceu e Tibúrcio estão parados no campo de rocha de cristais. Os homens que por lá estão garimpando deixam de cavar a rocha do campo de cristal e olham para Antenor, Dirceu e Tibúrcio. UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL, assim como os outros, pele queimada pelo sol, ao ver Antenor, Dirceu e Tibúrcio em seus cavalos parados no campo de rocha de cristais, grita. UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL Ei, onde pensam que podem ir? Se estão chegando com o sonho de ficar ricos por cá, é lêdo engano... Há nada mais por cá, não... Homens que deixaram de cavar a rocha do campo de cristal e um dos homens do campo de cristal aproximam e fecham um círculo em torno de Antenor, Dirceu e Tibúrcio. ANTENOR Temos interesse em diamantes, não. Somos sitiantes e fazendeiros. Estou cá para buscar um cunhado com os filhos 546 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior dele... Tivemos notícias de que ele e os filhos passam fome por cá... UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL Como é sabido, senhores, primeiro vem a tempestade e depois a bonança. A lei de cá nos ensina que é preciso sofrer, pagar todos os pecados para depois merecer toda a graça que vem do fundo da terra... ANTENOR Creio nisso não. Toda graça vem é de Deus! Os tempos hoje são outros, o ouro e toda a riqueza deste sertão afora está na lavoura. Nem cana-de-açúcar estão plantando mais. Agora é o café trazido por Francisco de Melo Palheta, lá da Etiópia é que está visando lucros na colônia... UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL Sabemos disso não... Aqui vivemos nossos sonhos e esperanças que todos dias se renovam na fé de cada um... ANTENOR Os senhores podem ficar tranquilos, não estamos cá para procurar nem ouro, nem prata ou diamante. Conforme falei, estou cá para buscar o meu cunhado... UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL Está entre nós, quem vossemecê procura? ANTENOR Deveria estar, mas não o vejo cá... UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL E o nome do cunhado de vossemecê, qual é? ANTENOR Vivêncio, o nome dele é Vivêncio... 547 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Os homens que deixaram de cavar a rocha do campo de cristal e um dos homens do campo de cristal desfazem-se o círculo dando risadas. Antenor, Dirceu e Tibúrcio olham para eles assustados. ANTENOR Falei alguma coisa engraçada? Aconteceu alguma coisa ao meu cunhado que vós mercês possam me contar? UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL Não aconteceu nada ao Vivêncio. É que o seu cunhado, ultimamente tem tido alguns ataques de febre delirando diamantes. Ele cismou que todas as montanhas dos arredores de São José do Rio das Mortes são diamantes... Homens que deixaram de cavar a rocha do campo de cristal e um dos homens do campo de cristal tornam a dar risadas. Antenor olha para Dirceu e Tibúrcio, afrouxa a rédea e sai galopando devagar. ANTENOR Coitado do Vivêncio, já começou a delirar os delírios dos loucos... DIRCEU É preciso salvá-lo, antes que os filhos também fiquem loucos, Antenor... Dirceu e Tibúrcio afrouxam as rédeas dos seus cavalos e seguem Antenor. Antenor, Dirceu e Tibúrcio passam cavalgando entre o campo de cristal, seguem uma curta trilha e chegam na casa de Vivêncio. A casa é feita de enchimento, coberta com palhas secas de palmeiras. Terreiro da casa de Vivência. Três crianças brincando no terreiro da casa de Vivêncio. UMA MENINA DE NOVE ANOS, UM MENINO DE ONZE ANOS e UM OUTRO MENINO DE TREZE ANOS brincam de correr no terreiro da casa de Vivêncio. Antenor, Dirceu e Tibúrcio fream os cavalos e ficam observando a casa de Vivêncio e as crianças brincando no terreiro da casa. Dirceu olha para Antenor. 548 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU São os filhos do senhor seu cunhado? ANTENOR Sim, são eles. Graças a Deus que eles parecem saudáveis... As crianças correm pelo terreiro da casa de Vivêncio. A menina de nove anos vê Antenor, Dirceu e Tibúrcio parados em seus respectivos cavalos. Ela assusta-se e corre para dentro da casa de Vivêncio. Antenor, Dirceu e Tibúrcio pulam-se dos cavalos. Dirceu vai até a porta da casa de Vivêncio para chamar por alguém. Antes de Antenor se preparar para chamar por alguém, VIVÊNCIO, 30 anos, baixo, magro, pele clara e queimada pelo sol, cabelos encacheados e olhos azuis, vestindo roupas remendadas, encardidas e sem cor, aparece na porta. Ao ver Antenor com os comapnheiros de viagem, ele demonstra-se surpreso. ANTENOR Venho de longe com alguns companheiros para levar vós mercê e filhos para junto aos nossos... VIVÊNCIO Cunhado Antenor, mas que surpresa. Não esperava jamais ser lembrado por vossemecê e por minha irmã, senhora sua esposa... ANTENOR Vivemos preocupados com vós mercê e seus filhos Vivêncio. Desta vez não aceito que diga não à minha ajuda. Senão por vós mercê, pelo menos pelos seus filhos... VIVÊNCIO (coça a cabeça, olha para Dirceu e olha para Tibúrcio, ainda montados em seus cavalos) São os seus companheiros? ANTENOR 549 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Sim, meus companheiros e também companheiros de vós mercê e de seus filhos se aceitarem a fazer a viagem... Antenor dá um sinal para Dirceu e Tibúrcio. Os dois pulam dos cavalos e vão ao encontro de Antenor e de Vivêncio, na porta da casa. Vivêncio, timidamente, estende as mãos para Dirceu e Tibúrcio. O menino de onze anos e o outro de treze anos passam correndo na frente do terreiro da casa e vê o pai, Vivêncio, conversando com Antenor, Dirceu e Tibúrcio. O menino de onze anos e o outro de treze anos fogem pela lateral esquerda da casa. DIRCEU Convém ficar por cá não, Vivêncio. O povo ainda está buscando nas entranhas da terra, o que já acabou há muito tempo... Agora se inaugura uma nova era, qual está alicerçada na agricultura. O ouro, o diamante, as pedras preciosas, estão na colheita do café, da cana-de-açúcar e até de pequenos plantios ensinados pelos padres, a horticultura... ANTENOR Vivo em pequeno sítio e tenho lá as minhas recompensas. Crio dois ou três boizinhos, algumas vacas para o leite, queijos e requeijões frescos, ovelhas para o tosquio da lã, um pequeno plantio de mandioca, de cará e uma horta com legumes e verduras... A gente vive com o que se produz, o que a gente não tem e precisa, outro vizinho tendo, nos socorre e assim vamos levando a vida... VIVÊNCIO Ultimamente eu tenho sonhado com uma grande pedra de diamante, mas tão grande que parec5 uma montanha. Disse que eu havia achado e ela não era só minha, mas de todo mundo... 550 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU E vós mercê acredita no sonho? VIVÊNCIO Os mais antigos dizem que os sonhos servem para nos avisar o que pode ou não acontecer... ANTENOR E vós mercê vai ficar sonhando com essa pedra de diamante gigante, do tamanho de uma montanha? VIVÊNCIO Andei cavando por aí, encontrei não. Eu estava cá, pensando em mudar para o povoado de São José do Rio das Mortes... acho que é lá que o sonho está indicando ter a tal pedra... DIRCEU Que nada, Vivêncio, essa pedra significa a sua família. Todos juntos para uma vida melhor. Não existe um ditado que até as pedras se encontram? Está aí a razão do seu sonho... A sua família está tentando encontrar soluções melhores para vós mercê e seus filhos... Vivêncio abaixa-se a cabeça. Antenor toca-lhe pelo ombro. ANTENOR Creio que estamos todos com fome, vamos procurar comer alguma coisa... TIBÚRCIO Se precisar de mim, faço comida de tropeiro e das boas. DIRCEU Eu trouxe carne seca, inhames, mandioca, feijão verde, arroz e toucinho, farinha de mandioca para todo mundo passar bem 551 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior por muitos dias. Agora temos de arranjar um panelão para cozinhar tudo... VIVÊNCIO Cá pode não ter muito o quê comer mais temos panela grande, sim senhor... Poente. Visão panorâmica da serra, garimpos. Garimpeiros trabalhando a céu aberto nas aluviões e nas rochas mineralizadas. Trilhas. Garimpeiros andando pelas trilhas para as suas devidas casas. Casas feitas de enchimento e telhados de folhas de palmeiras afastadas umas das outras. Pessoas pobres parados frente às portas de suas casas. FADE OUT/FADE IN SEQUÊNCIA 197 – INT./DIA. CASA DE VIVÊNCIO. COZINHA DA CASA DE VIVÊNCIO. Manhã. Cozinha da casa de Vivêncio. Fogão de lenha. Grande bule de café no fogão de lenha. Antenor, Dirceu, Tibúrcio e Vivêncio estão de cócoras na pequena cozinha da casa de Vivêncio tomando café em pequenas xícaras feitas de barro. No canto de uma das paredes tem um pequeno banco. As três crianças estão sentadas no pequeno banco. Antenor levanta-se e coloca a xícara em um dos cantos do fogão de lenha. ANTENOR Agora vamos pensar na mudança. Estamos todos de cavalo. Vivêncio não tem animal nenhum para a viagem e, além disso, temos as crianças... TIBÚRCIO Não creio que seja difícil alugar por cá um carro-de-boi. Será o suficiente para que as crianças viajem tranquilas... 552 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ANTENOR A viagem vai ser demorada, em vez de levar dois dias, vão levar de quatro a cinco dias... DIRCEU Chegando bem em nossas terras, isso é que nos importa... VIVÊNCIO Fazendeiros por cá, há alguns. Já ouvi falar em pessoas desta região que alugam carros-de-boi para viagens. Não sei se fazem viagens longas... TIBÚRCIO Vamos até o povoado, quem sabe lá não conseguimos informações de onde alugar um carro-de-boi, principalmente para uma viagem longa igual a nossa... DIRCEU Isso mesmo! Tibúrcio está certo. Vamos arrear os nossos cavalos e cavalgar até São José do Rio das Mortes... Se o amigo Antenor quiser vou até lá com o Tibúrcio... ANTENOR Eu ficaria muito agradecido se os amigos fizerem isso por mim e pela minha família. Enquanto isso eu resolvo por cá algumas pequenas coisas com o cunhado Vivêncio... TIBÚRCIO Pois o amigo Antenor pode ficar tranquilo. Dirceu e eu iremos até o povoado para ver se conseguimos alugar o carrode-boi... SEQUÊNCIA 198 – EXT./INT./DIA. SÃO JOSÉ DO RIO DAS MORTES. RUAS. CASAS. 553 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Povoado de São José do Rio das Mortes. Dirceu e Tibúrcio cavalgam pelas pequenas e estreitas ruas do povoado de São José do Rio das Mortes. PASSANTES, homens de várias idades, ora morenos ou brancos. Dirceu e Tibúrcio freiam os seus cavalos e pedem informações aos passantes. Eles entram em uma casa e outra, conversam nas salas de visitas com um homem e outro e saem em seguida cavalgando pelas ruas do pequeno povoado. Tarde. Grande casa. Na porta da grande casa há uma placa escrita "ESTALAGEM SÃO JOSÉ". Dirceu e Tibúrcio estão na sala de recepção da estalagem conversando com um moço moreno, de aproximadamente 40 anos de idade. DIRCEU (VOICE OVER) Em São José do Rio das Mortes, Tibúrcio e eu procuramos alguns proprietários de carros-de-boi para que propuséssemos o aluguel para a viagem. Todavia, nenhum deles seria capaz de cumprir a tarefa de uma longa viagem. No final da tarde, do segundo dia, quando pensávamos em desistir da busca, fomos informados, na "Estalagem São José" sobre um velho senhor, chamado Tonhim, morador de uma pequena e modesta chácara, ali por perto, que estava vendendo um antigo e conservado carro-de-boi. Interessei-me pelo negócio e procurei o velho Tonhim. SEQUÊNCIA 199 – EXT./INT./DIA. CHÁCARA DO VELHO TONHIM. VARANDA DA CA9A. Chácara do vSlho Tonhim. Casa do velho Tonhim, com varanda e quintal do fundo com algumas árvores frutíferas. No lado lateral esquerdo da casa do velho Tonhim há um carro-de-boi estacionado. Portão da chácara do velho Tonhim. Dirceu e Tibúrcio chegam no portão da chácara do velho Tonhim. Varanda da casa do velho Tonhim. Dois cachorros saem latindo da varanda da casa do velho Tonhim indo de encontro ao portão. Porta da casa do velho Tonhim abre-se. O 554 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VELHO TONHIM, magro, alto, moreno, cabelos brancos, olhos escuros, de aproximadamente 70 anos, sai de dentro da casa. Varanda. Ele acalma os dois cachorros e vai até o portão receber Dirceu e Tibúrcio. O velho Tonhim tira o chapéu e cumprimenta Dirceu e Tibúrcio. Varanda da casa do velho Tonhim. Dirceu, Tibúrcio e o Velho Tonhim estão sentados em um banco, encostado em uma das paredes da varanda, conversando. Carro-de-boi no lado lateral esquerdo da casa do velho Tonhim. Tibúrcio e Dirceu avaliam o carro-de-boi estacionado no lado lateral esquerdo da casa do velho Tonhim. TIBÚRCIO O carro-de-boi se encontra em bom estado, amigo Dirceu. Ele foi feito com o pau d`arco, uma das melhores madeiras para a confecção de um carro duradouro... DIRCEU Está condizente ao valor da oferta, Tibúrcio? TIBÚRCIO Sim, está. O velho Tonhim não errou no valor do carro-deboi. Varanda da casa do velho Tonhim. O Velho Tonhim está na varanda da pequena casa sentado no banco. Dirceu e Tibúrcio vêm andando pelo quintal e entram na varanda da pequena casa. Dirceu senta-se ao lado do velho Tonhim. DIRCEU Vou ficar com o carro-de-boi... VELHO TONHIM Vai ficar com os bois também? Tenho três parelhas prontas. Cada parelha é para dois bois, que como vossemecê sabe trabalham um ao lado do outro, unidos pela canga. Mais tarde meus filhos estarão por cá e eu os pedirei para cangar os bois 555 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior no carro. Meus filhos são bons carreiros e podem levar para vós mercê o carro até o arraial de São José... DIRCEU Então se vós mercê, senhor Tonhim, tem três parelhas prontas para o carro ser tocado com seis bois, vou querer as parelhas e os bois. Quanto a ajuda dos seus filhos, não vou dispensar, pois creio que eu e o meu amigo não temos experiência nenhuma em tocar carro-de-boi... VELHO TONHIM Então para que o negócio seja bem feito, vou mostrar para vossemecês as parelhas e os seis bois que estão pastando logo ali, numa mangueira de um velho amigo meu... GALINHAS, GALOS, PATOS E LEITÕES ANDANDO PELO TERREIRO DA CHÁCARA DO VELHO TONHIM. Quintal lateral do lado direito da casa do velho Tonhim. O velho Tonhim segue à frente. Dirceu e Tibúrcio seguem o velho Tonhim. Parede de um dos cantos da casa do velho Tonhim. Há três parelhas de bois encostadas na parede de um dos cantos da casa do velho Tonhim. Dirceu e Tibúrcio avaliam as parelhas de bois Tibúrcio balança a cabeça afirmando "sim" para Dirceu. Galinhas, galos e patos ciscando no terreiro. Mangueira com seis bois pastando. Velho Tonhim, Dirceu e Tibúrcio, na cerca, olhando os seis bois pastando na mangueira. Dirceu olha encantado para os seis bois. FADE OU/FADE IN SEQUÊNCIA 199 – EXT./DIA. ESTRADA. POVOADO DE SÃO JOSÉ DO RIO DAS MORTES. CACHOEIRA OU CORREDEIRA. Estrada. Os dois filhos do velho Tonhim, dois rapazes morenos, altos e olhos escuros, um de vinte três e outro de vinte cinco anos, tocam o 556 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior carro-de-boi. Dirceu e Tibúrcio seguem cavalgando pela lateral da pequena estrada. CORTA PARA Povoado de São José do Rio das Mortes. Carro-de-boi guarnecido com uma cobertura de esteira, sendo tocado por Vivêncio. Os três filhos de Vivêncio e o velho índio, pai de Terêncio, estão sentados em um acocheado macio, estendido no carro-de-boi. Dirceu, Tiburcio, Antenor e Terêncio cavalgam pelas laterais esquerdas e direitas da estrada. O velho índio pula do carro-de-boi e dá um sinal para que todos parem e olhem para ele. VELHO ÍNDIO No quiero interrumpir el viaje de vós mercês. Yo sólo quiero e tenho de despedir da corredeira de São José... TERÊNCIO (vendo o pai parado no meio da estrada empoeirada sorri e tira o chapéu) Vai sim, senhor meu pai. Vai e despeça da corredeira de São José do Rio das Mortes. Lembre-se que temos de seguir viagem logo, porque temos crianças também nesta empreitada... VELHO ÍNDIO Índio no tomará mucho tiempo de vós mercês... Hijo de indio bravo quer despedir da corredeira de San José. Lá, a alma do viejo indio paira sobre os cuidados de deus Tupã. VELHO ÍNDIO (anda pela estrada, vai até o cavalo de Dirceu e olha para ele) Hijo del Hombre Blanco viene con el hijo de Tupiniquim... Dirceu olha assustado para o Velho ìndio. Terêncio olha para Dirceu, tira o chapéu e coça a cabeça. 557 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior TERÊNCIO O meu pai está misturando a nossa língua com a língua espanhola. Ele disse o seguinte: "Filho de branco vem com filho de tupiniquim..." Ele está pedindo para vós mercê seguilo... CORTA PARA Dirceu vai ao encontro do velho índio cavalgando em seu cavalo. O velho índio bate as mãos no rosto do cavalo e dá um sinal para que Dirceu pule do cavalo. Dirceu pula do cavalo e entrega a rédea do cavalo para Terêncio. Pequena trilha. O velho índio olha para a pequena trilha, dá um sinal para que Dirceu o seguisse e entra na pequena trilha. O velho índio e Dirceu andam pela pequena trilha até chegarem numa fonte. A água cai de um penhasco na fonte. O velho índio aproxima-se da fonte, põe-se de cócoras na margem dela e, olhando para a água, fala uma língua estranha. Dirceu. fica atentamente observando o velho índio. Lágrimas escorrem dos olhos do velho índio e cai na água da fonte. O velho índio olha para Dirceu. VELHO ÍNDIO Moço novo guarda segredo de homem velho, na fazenda. O segredo é perigoso. Se homem ambicioso descobrir o segredo de homem velho, a colônia se infestará de maldades. DIRCEU Vós mercê está a se referir a qual segredo? VELHO ÍNDIO Anjo mostrará ao moço branco um segredo guardado pela negra velha. Mas é só o começo, porque o segredo haverá de estar com aquela a quem moço branco casará. DIRCEU (coloca-se de cócoras ao lado do velho índio) Marília? 558 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VELHO ÍNDIO Os anjos do céu se incumbirão dessa tarefa. Água da fonte. O velho índio toca as mãos na água da fonte. A imagem de Marília aparece na água da fonte. Dirceu fica parado olhando para a imagem de Marília, até que ela se desapareça da água da fonte. VELHO ÍNDIO Moça branca está com o coração ferido. Ela gosta muito de vossemecê e tudo só depende de ela conhecer a verdade para as suas almas tornarem em uma só. Não demorará muito. Agora velho índio vai purificar moço branco. É preciso que moço branco entre na água... Água da fonte. Dirceu se despiu rapidamente, ficando apenas com a roupa de baixo. O velho índio coloca as mãos na cabeça dele e balbucia algumas palavras estranhas. Dirceu entrou na água da fonte. VELHO ÍNDIO Moço branco pode sair da água. Moço branco está purificado contra qualquer mal... Vamos encontrar aos nossos... Trilhas. O velho índio olha para outra trilha. Dirceu aponta a trilha em que eles vieram para a fonte. O velho índio sorri e entra na outra trilha. Dirceu segue o velho índio. VELHO ÍNDIO Índio velho é sábio. Índio não segue os mesmos caminhos. Ida é diferente de volta. Em cada lugar que vou os caminhos são diferentes. Vossemecê, jovem branco, um dia haverá de escolher um, entre sete caminhos. Terá de agir com toda a presteza do seu equilíbrio, raciocínio e emoção. Trilha. O velho índio e Dirceu seguem pela trilha até chegar onde estão os outros. As três crianças brincam em um relvado, enquanto Tibúrcio, 559 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Antenor, terêncio e Vivêncio assam uma grande caça em um braseiro improvisado. TODOS COMEM DA CAÇA ASSADA. SEQUÊNCIA 200 – ESTRADA. VÁRIOS. Estrada. Cavalos de Dirceu, Tibúrcio, Antenor e Terêncio. Carro-de-boi tocado por Vivêncio, levando as crianças e o velho índio deitados no acocheado macio, estendido no carro-de-boi. Vários fade in e fade out denotando dias, tardes e noites, com diversas transições de imagens. CORTA PARA Estrada. Cavalo de Dirceu pareado com o cavalo de Terêncio. Terêncio relata para Dirceu sobre o velho índio. TERÊNCIO O meu pai foi criado por um padre espanhol, desde quando nasceu... DIRCEU E porque dizem que é um velho índio... TERÊNCIO Porque ele é um mestiço, ous seja, ele filho de um homem branco, um europeu, com uma índia da tribo tupiniquim. Acontece que... CORTA PARA SEQUÊNCIA 201. EXT./INT. DIA. VÁRIOS. Flash back – Relato de Terêncio. 560 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Aldeia de índios tupiniquins. Rio próximo à aldeia dos tupiniquins. Índia tupiniquim, de aproximadamente dezoito anos e um moço espanhol, de vinte e cinco anos, nadando, nus, no rio próximo à aldeia dos tupiniquins. A ÍNDIA TUPINIQUIM e O MOÇO espanhol beijam-se, ora dentro do rio, ora na areia da margem do rio e de um bonito relvado. Pequena vila. Casa do moço espanhol. Cama. Índia tupiniquim e o moço espanhol estão deitados na cama transando. Índia tupiniquim aparece grávida. O moço espanhol passa as mãos no ventre da índia tupiniquim, dando risadas de alegria. Aldeia de índios tupiniquins. Índia tupiniquim entra em trabalho de parto. A índia tupiniquim dá a luz ao filho, estando de cócoras. A CRIANÇA chora ao nascer. A índia tupiniquim acolhe-o, nu, nos braços. Pequena vila. Casa do moço espanhol. A casa do moço espanhol está fechada. A índia tupiniquim, com a criança no colo vai até a casa do moço espanhol, na pequena vila. A índia tupiniquim, com a criança no colo, bate na porta da casa do moço espanhol e não aparece ninguém. UMA SENHORA de uma casa vizinha estranha ao ver a índia tupiniquim bater na porta e vai ao encontro dela. SENHORA Sinto muito dizer para vossemecê que o moço espanhol foi embora para a terra dele... ÍNDIA TUPINIQUIM Moço branco deixou índia e filho. Moço branco não queria viver com índia tupiniquim e filho de índia e de branco... A senhora apenas fica olhando para a índia tupiniquim e sai devagarinho para a casa dela. A índia abraça o filho e olha para a casa vazia. A índia tupiniquim mete o pé na porta da casa fechada. A porta da casa abre. A índia tupiniquim entra na casa e corre até o quarto. A casa está vazia. O quarto está sem a cama, vazio. A índia tupiniquim cai no canto do chão chorando, agarrando o filho. Pôr-do-sol. Alto de um penhasco, a índia tupiniquim tenta jogar a criança do alto do penhasco. DOIS PADRES ESPANHÓIS aparecem por acaso e salva a criança, tirando-a dos braços da índia. A índia tupiniquim se atira do alto do penhasco. 561 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Pequena Vila. Casa de um velho padre espanhol. A criança indígena, com sete anos, vestido igual aos meninos brancos, sentado á mesa almoçando com o velho padre espanhol. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 200.1 – ESTRADA. VÁRIOS. Estrada. Cavalo de Dirceu pareado com o cavalo de Terêncio. Terêncio continua relatando a história do velho índio. TERÊNCIO O meu velho pai, desde quando soubera que era índio, da tribo tupiniquim, ele sentia-se infeliz de não viver a cultura dele. Daí então, ele juntou-se com uma índia guarani, no intuito de viver a cultura indígena, mas, infeelizmente, acabou não sendo aceito na tribo dela. Ele, portanto, levou a índia para morar com ele na vila de São José dos Rios das Mortes. Lá, eles viveram felizes, até quando a índia morreu, meses depois do meu nascimento. DIRCEU Então o amigo Terêncio é um índio legítimo... TERÊNCIO Nosso povo está sendo construído dessa forma, Dirceu, numa mistura de índios, europeus e africanos... Sabe que nós vamos ser uma colônia de povos felizes, diferentes de todo o povo do mundo... Estrada. Noite. Redes amarradas em troncos de árvores. Crianças, Vivêncio e o velho índio dormem no carro-de-boi. Madrugada. Estrada. Viagem. Carro-de-boi e cavalos de Dirceu, Terêncio, Antenor e Tibúrcio na estrada. 562 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VISÃO GERAL DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FOTOGRAFIAS DE ALGUNS LUGARES DA FAZENDA. SEQUÊNCIA 202 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Véspera do pôr-do-sol. Cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu calvaga rápido para chegar até a cancela da fazenda. Ele abre a cancela e entra cavalgando rápido pelo quintal de frente da fazenda. Dirceu frea o cavalo e olha para todos os lados do quintal da fazenda. Varanda do casarão. lado lateral esquerdo do casarão. Casas de Cirilo, Hipólito e Miliquito. Antigo aposento de Farias. NINGUÉM ali presente. Dirceu fica preocupado. DIRCEU Meu Deus, será se aconteceu alguma coisa de mal com o pessoal da minha fazenda? Onde estão todos? Dirceu pula do cavalo, tira o chapéu da cabeça e entra na varanda, empurra a porta e entra no casarão. Ele olha para a grande sala. NINGUÉM na grande sala. Dirceu para e pensa no sonho que tivera. CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Sonho de Dirceu SEQUÊNCIA 185 – INT./EXT. NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. ESTRADA PRÓXIMA À FAZENDA. CANCELA DA FAZENDA. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. VARANDA DO CASARÃO. Fazenda Ribeirão do Meio. Estrada próxima à fazenda. UM BANDO DE CAVALEIROS (homens brancos e negros) cavalga pela estrada próxima á fazenda, ao comando de Sales. Cancela da 563 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior fazenda aberta. Sales dá ordem para que o bando de cavaleiros entre pela cancela da fazenda. Bando de cavaleiros entra no quintal de frente da fazenda. Miliquito e Cirilo estão no quintal de frente da fazenda e vêem o bando de cavaleiros entrarem pela cancela da fazenda. Cirilo e Miliquito correm em direção ao bando de cavaleiros. Sales dá ordens para alguns cavaleiros saquearem seus bacamartes e atirarem em Cirilo e Miliquito. ALGUNS CAVALEIROS atiram em Cirilo e Miliquito. Cirilo e Miliquito caem enrolando no chão e morrem. Inácia e Eulina aparecem gritando em direção aos corpos dos maridos Cirilo e Miliquito. DOIS HOMENS DO BANDO DE CAVALEIROS atiram em Inácia e Eulina. Inácia recebe um tiro nas costas e cambaleia-se caindo próxima ao corpo de Cirilo. Eulina grita e recebe um tiro no peito, cambaleia e cai no chão ao lado do corpo de Miliquito. Varanda do casarão. Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão na varanda do casarão. Sales invade a varanda do casarão e aponta o bacamarte para eles. Sales atira em Ambrósio, Zé da Viúva e em Raimundo Sobreiro. Sebastiana aparece na varanda trazendo uma cesta de quitutes. Um tiro de bacamarte atinge o peito de Sebastiana. Ela cai morta no chão. Rede. Dirceu está deitado na rede. Sales aproxima-se da rede e cutuca-a com o seu bacamarte. Dirceu olha para Sales assustado. Sales atira em Dirceu. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 202.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. DIRCEU Meu Deus, meu Deus, ainda bem que tudo isso que passou pelo meu pensamento agora, não passou de um sonho. Os sonhos não podem ser verdadeiros... que os sonhos ruins nunca sejam... 564 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FADE OUT/FADE IN Dirceu vai até a cozinha. Panelas na beira do fogão. Mesa com chaleiras, bules e algumas iguarias numa gamela coberta por pano branco de rendas. NINGUÉM na cozinha, nem Sebastiana. Dirceu coça a cabeça e volta ligeiramente para o quintal de frente da fazenda. Cavalo. Dirceu coloca o chapéu na cabeça, desamarra o cavalo, monta e sai galopando em direção ao chiqueiro das ovelhas. No chiqueiro das ovelhas Dirceu procura por Alceu, Trácio e Endimião, mas também não vê ninguém. Apenas as ovelhas pastando tranquilamente. Dirceu corre até a pequena choça, mas os três pastores também não estão dentro dela. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Meu Deus, por que todos desapareceram? Até os meus pastores que nunca arredam os pés deste lugar... Cavalo. Dirceu monta novamente no cavalo e cavalga pelo terreiro da fazenda. Terreiro de frente da fazenda. Ninguém. Dirceu frea o cavalo e olha para todos os cantos um tanto confuso. Varanda do casarão. Dirceu olha para a varanda do casarão e vê Farias, barba e bigodes bem aparados, vestindo um Rhinegrave verde, sapatos de couro e meias brancas, com um manto azul bordado de estrelas da cor do ouro, jogados pelas costas. FARIAS O mistério está pedindo para ser revelado, senhor Dirceu... Dirija-se para a capela. Vá depressa até lá... Farias desaparece numa nuvem de luzes. Dirceu fica bobamente olhando para a varanda do casarão. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Meu Deus, eu estaria ficando louco? O Farias morreu e eu estou a vê-lo constantemente... Ele pediu para que eu fosse 565 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior até a capela. Quem sabe eu não encontraria na capela a resposta para esse mistério? CAPÍTULO 12 SEQUÊNCIAS 203-215 Personagens deste capítulo: Dirceu Joaquim Alonso Zé da Viúva Raimundo Sobreiro Sebastiana Cirilo Miliquito Hipólito Raimundo Sobreiro Sebastiana Vários sitiantes, fazendeiros e pessoas simples da região Conceição (aos 20 anos) Ambrósio Alceu Endimião Trácio Rosa Marília Joaquim Alonso (25 anos) Pai de Joaquim Alonso Homens, mulheres e crianças portuguesas Famílias espanholas Famílias portuguesas Tios e dois irmãos de Joaquim Alonso Homens encapuzados Irmã de Joaquim Alonso e o marido dela Jovens espanhóis (convento) Padre espanhol, idoso (convento) Jesus Cristo 566 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Multidão de Jerusalém Discípulos de Jesus Sacerdotes e escribas Judas Iscariotes Homem do cântaro de água Guardas de Jerusalém Dono do oleiro Esposa e filhos do dono do oleiro Sábia anciã Homens judeus Padre Fernandez FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 80 2. Sequência 156 SEQUÊNCIA 203 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. ESTRADA. Dirceu olha para a cancela aberta e cavalga em direção à capela da fazenda. Estrada da capela da fazenda. Dirceu cavalgando rápido pela estrada da capela da fazenda. Capela da fazenda. Dirceu apeou do cavalo e correu para a porta de frente da capela da fazenda. Porta de frente da capela aberta. Dirceu entra na capela da fazenda, dá alguns passos e fica parado observando todos da fazenda ali, calados, prostrados diante de uma bonita imagem do anjo São Miguel Arcanjo, qual está no principal altar da capela da fazenda. Dirceu sorri ao ver todos da fazenda ali. Dirceu anda devagar para não quebrar o silêncio. Joaquim Alonso levanta-se de um dos bancos que está sentado e vai ao encontro de Dirceu. Joaquim Alonso cumprimenta Dirceu tocando-lhe nos ombros. Dirceu faz o mesmo. JOAQUIM ALONSO Finalmente, chegaste, senhor Dirceu. 567 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Finalmente, depois de uma viagem tão exaustiva... Dirceu aproxima-se do altar principal da capela e fica a contemplar a imagem do anjo São Miguel Arcanjo. Joaquim Alonso também contempla a imagem do anjo e olha para Dirceu. JOAQUIM ALONSO Essa imagem chegou há pouco, senhor Dirceu. Dois rapazes de Vila Rica trouxeram-na, dizendo tratar-se de uma encomenda ao senhor... DIRCEU (sorri, olha para a imagem do santo anjo e fala por solilóquio) Então a imagem do santo anjo estava em poder do senhor Antônio Francisco Lisboa... (olha para Joaquim Alonso) Eu aguardava por essa imagem há muito tempo. Meu pai comprara de um fazedor de imagens. JOAQUIM ALONSO O homem a que todos chamam de feio? DIRCEU Sim, o mestre Francisco Antônio Lisboa, conhece-o? JOAQUIM ALONSO Já ouvi falar dele. Mas não foi ele quem esculpiu essa imagem de São Miguel Arcanjo, não, foi? DIRCEU (fala por solilóquio) Será se o Joaquim Alonso entende alguma coisa de arte? Por que ele acha que não foi o mestre Francisco Antônio quem esculpiu essa imagem? 568 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (olha para Joaquim Alonso sem denotar surpresa) Não, simplesmente a imagem estava com ele e o meu pai havia comprado nele para decorar a capela... Joaquim Alonso sorri satisfeito, olha para a imagem de forma estranha e sai da capela silenciosamente. Cirilo, Miliquito, Hipólito e suas respectivas esposas levantam-se dos bancos, vão até Dirceu e cumprimenta-o. Eles saem em seguida da capela da fazenda. Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro benzem-se com o sinal da cruz, vão até Dirceu e cumprimenta-o. ZÉ DA VIÚVA Sinhozinho fez viagem boa? DIRCEU Sim, a viagem foi boa, vi homens garimpando nos rios e cavando o solo duro em busca de riquezas que não existem mais... RAIMUNDO SOBREIRO Depois de inhozinho descansar, inhozinho conta pra gente sobre a viagem... DIRCEU Conto sim. Assim que nós tivermos juntos lá na fazenda... Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro saem da capela da fazenda. Dirceu aproxima-se mais do anjo e ajoelha-se. Sebastiana, ajoelhada, cochilavase. Dirceu põe-se de pé, faz o sinal da cruz e toca na imagem procurando a pequena chave. Um bando de andorinhas invade o interior da capela da fazenda. Dirceu assusta. Sebastiana também acorda assustada. Sebastiana percebe a presença de Dirceu e levanta-se de súbito. 569 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEBASTIANA Sinhozinho chegou de viagem. Inhozinho deve está com fome... DIRCEU (olha para Sebastiana e diz "sim" com a cabeça) A viagem tem sido um pouco longa... SEBASTIANA Desculpe inhozinho é que o anjo chegou e é tão bonito que a velha até cochilou agradecendo a Deus pela volta dele... DIRCEU Vós mercê lembra dessa imagem, não lembra, Sebastiana? SEBASTIANA Sim! Esse anjo foi embora daqui há muitos anos, ele num chegou a esquentar o nicho feito pra ele. Num sei por que o padre, antes de morrer, deu ele pra aquele povo de Vila Rica. Foi um alvoroço danado no dia que ele foi embora. Todas as pessoas desta região ficaram sentidas. Quando Conceição morreu, o velho Farias fez eu lembrar desse anjo. DIRCEU Por quê? SEBASTIANA Por causa disso aqui. Pescoço de Sebastiana. Ela mostra um velho colocar de sementes preso em seu pescoço. DIRCEU E o que é isso? 570 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEBASTIANA É um colar que o Farias tirou do pescoço da Conceição e entregou para eu usar, até o dia que o anjo aparecesse aqui. Ele disse que era para eu devolver para o anjo. Sebastiana mostra para Dirceu um colar velho, feito de sementes grotescas, pendurado no pescoço. Pescoço de Sebastiana. Sebastiana tira o colar do pescoço e entrega-o para Dirceu. Dirceu examina o colar. No meio do colar há algo luminoso. Dirceu percebe que é uma pequena chave. Ele aperta a pequena chave com as mãos e fica a repará-la fixamente. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Seria a chave que eu procurava para abrir a portinhola do altar? (olha para Sebastiana de ímpeto) Como foi mesmo que o Farias disse ao entregar para a senhora este colar? SEBASTIANA Ele contou para mim que esse colar foi um presente que Conceição ganhou do anjo... CORTA PARA SEQUÊNCIA 204 - INT./DIA. CAPELA DA FAZENDA. Flash back - Relato de Sebastiana. Capela da fazenda Ribeirão do Meio. Altar da capela da fazenda. No altar da capela da fazenda está um andor da imagem de São Miguel Arcanjo, enfeitado e pronto para ser carregado em procissão. VÁRIOS SITIANTES, FAZENDEIROS e PESSOAS SIMPLES DA REGIÃO fazem uma fila para despedirem-se do andor da imagem de São Miguel Arcanjo. CONCEIÇÃO, com apenas 21 anos de idade é a última que está na fila para despedir-se do andor da imagem de São Miguel 571 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Arcanjo. UM PADRE DA COMPANHIA DE JESUS prepara-se para celebrar uma missa. Conceição aproxima-se do andor da imagem de São Miguel Arcanjo, mas UMA MULHER BRANCA, de aproximadamente 20 anos, traz um ramalhete de flores nos braços e passa na frente de Sebastiana para colocar o ramalhete nos pés do anjo. A mulher branca coloca o ramalhete de flores nos pés do andor da imagem de São Miguel Arcanjo. Conceição aproxima-se dos pés do andor da imagem de São Miguel Arcanjo para beijá-lo. Uma pequena chave cai nos pés de Conceição. Conceição abaixa-se e pega a pequena chave. Conceição beija os pés do andor da imagem de São Miguel Arcanjo e sai feliz, olhando para a pequena chave... SEBASTIANA Farias contou para mim que esse colar foi um presente que Conceição ganhou do anjo. Ele disse que a Conceição contou para ele que no dia do andor sair daqui pra Vila Rica, enquanto uma mulher arrumava o anjinho com flores para a procissão de partida, ela veio despedir-se dele e essa chavinha caiu nos pés dela. O velho Farias disse que Conceição jurava de pé junto que essa chavinha brilhenta do colar dela caiu do céu, a mando do anjo. Ela beijou os pezinhos do anjo e saiu agradecida com o presentinho, dizendo que se ele algum dia voltasse, devolveria para ele. CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Relato de Sebastiana conforme corte a seguir, sobreposto em off. SEQUÊNCIA 80 – EXT./INT./DIA/FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Quarto de Conceição. Conceição está deitada na cama. Sebastiana entra no quarto de Conceição. Sebastiana tenta acordar 572 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Conceição, tocando-lhe as mãos. Ela mexe com o corpo de Conceição, mas Conceição está morta. Porta do quarto de Conceição. Sebastiana aparece na porta do quarto de Conceição, gritando por todos da fazenda. Miliquito, Josias, Ambrósio, Hipólito, Eulina, Inácia, Quitéria e Farias correm até a porta do quarto de Conceição. Farias aproxima-se do corpo de Conceição e tira do pescoço dela um velho colar de sementes. Sebastiana está com o olhar fixo no corpo de Conceição. Farias aproxima-se de Sebastiana e coloca no pescoço dela o colar de sementes. SEBASTIANA (OFF) Inhozinho sabe que a pobre da Conceição morreu, então o velho Farias tirou o colar do pescoço dela e colocou no meu para eu cumprir a promessa da Conceição... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 203.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. CAPELA DA FAZENDA. Sebastiana e Dirceu estão sentados em um dos bancos frente ao altar da capela da fazenda. Colar nas mãos de Dirceu. Sebastiana está com os olhos cheios de lágrimas. Ela tira o colar das mãos de Dirceu e olha para a imagem de São Miguel Arcanjo, no altar. Ela quebra o colar ao meio, tira a pequena chave e vai até o altar onde está a imagem de São Miguel Arcanjo. Sebastiana deposita a pequena chave nos pés da imagem de São Miguel Arcanjo. SEBASTIANA Está aqui anjinho, a promessa da Conceição, que no céu tá com vossemecê, juntamente com o Josias e o Farias... (faz o sinal da cruz e olha para Dirceu) Tem comida na cozinha para inhozinho, preta velha vai pra casa esquentar... 573 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Sebastiana anda devagar pelo corredor da capela até desaparecer na porta de frente. Dirceu olha para a porta de frente da capela e vê ninguém. Ele dirige-se até o altar onde está a imagem de São Miguel Arcanjo. Pés da imagem de São Miguel Arcanjo. Pequena chave brilhando nos pés da imagem de São Miguel Arcanjo. Dirceu pega a pequena chave. Bolsos da calça de Dirceu. Ele enfia a chave em um dos bolsos. Do lado de fora da capela começa uma forte ventania. O tempo começa a ficar nublado. As portas e as janelas da capela abrem-se devido a rajada de vento. Um imenso clarão invade todo o interior da capela. Dirceu assusta-se. Ele sai correndo para fora da capela. Cavalo de Dirceu. Ele monta no cavalo e pega a estrada para a fazenda. SEQUÊNCIA 205 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VARANDA DO CASARÃO. QUARTO DE DIRCEU. Trovões, relâmpagos e chuva grossa. Fazenda Ribeirão do Meio. Varanda do casarão. Dirceu, Ambrósio, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva estão na varanda do casarão apreciando a chuva. Quarto de Dirceu. Janela aberta do quarto de Dirceu. Dirceu espia o lado de fora da janela. Chuva grossa. Ele fica na janela observando a chuva. DIRCEU (VOICE OVER) Uma forte trovoada caiu durante sete dias, sem cessar. No quarto, enquanto eu reparava a forte trovoada pela janela, eu pensava na possibilidade de toda aquela chuva grossa estar caindo devido ao mistério contido na capela. Coincidência ou não, a trovoada começou quando peguei a pequena chave aos pés do anjo. Algo dizia para mim, ora na voz do velho índio, ora na voz do falecido Farias. "Sinhozinho, cuidado! O mistério será capaz de mover todo o universo, principalmente a nossa colônia". FADE OUT/FADE IN 574 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Cozinha. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva sentados à mesa da cozinha. Inácia serve para eles o café com bolos e pães de queijo. Sebastiana está na janela da cozinha reparando a chuva fina. SEBASTINA O céu chora de alegria porque o anjo voltou para o lugar dele, na capela. Conceição e o velho Farias, decerto, estão alegres, porque eu cumpri a promessa... DIRCEU (olha para Sebastiana e fala por solilóquio) Eu confesso que não vejo o momento de entrar na capela e abrir a portinhola do altar para desvendar todo o mistério. Se Marília estivesse comigo na fazenda, ela seria a única pessoa a quem eu confiaria aquele segredo... FOTOGRAFIAS DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO APÓS A ESTIAGEM. SEQUÊNCIA 206 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS Fazenda Ribeirão do Meio. Dia. Terra molhada. Amanhecer do oitavo dia, após sete dias de chuva. Dirceu, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro cavalgam em seus respectivos cavalos vistoriando toda a fazenda. Árvores, aves, animais, plantações, cercas, tudo se encontra em seus devidos lugares, sem sofrer quaisquer tipos de agressão da natureza. Ovelhas pastam aos cuidados dos três pastores, Alceu, Endimião e Trácio. Pequena choça em pé. Dirceu olha para a pequena choça e sorri. Curral. Cirilo, Miliquito e Ambrósio estão no curral apartando as vacas e tirando o leite. Vasilhas com leite. Cavalo de Dirceu. Dirceu afrouxa a rédea do cavalo e sai sozinho cavalgando. Ele vai até a capela da fazenda. Porta de frente da capela da fazenda. Ele abre a porta de frente 575 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior da capela da fazenda. Porta de frente da capela da fazenda aberta. Dirceu entra na capela da fazenda dando alguns passos. Ele para de repente e olha todo o interior da capela da fazenda. Ele sente-se um leve arrepio. Altar da capela da fazenda com a imagem do anjo São Miguel Arcanjo. Dirceu olha para a imagem do anjo São Miguel Arcanjo e rapidamente dirige-se até o altar onde ele está. Ele aproxima-se da imagem e repara-a tranquilamente. EFEITOS PARA AÇÃO DA NARRAÇÃO DE DIRCEU SOBREPOSTA EM OFF: Detalhes da imagem de São Miguel Arcanjo: armadura e espada em combate contra o dragão. Dirceu olha fixamente para a imagem de São Gabriel Arcanjo. Antônio Francisco Lisboa esculpindo uma imagem de São Miguel Arcanjo em pedra sabão. Várias imagens de São Miguel Arcanjo, conforme a concepção de vários artistas, desde o renascimento, até os nossos dias atuais. DIRCEU (OFF) Antônio Francisco descreveu-me a imagem de forma absoluta, como se estivesse tocando nela. Eu imaginava que em algum lugar dessa imagem estava escondida uma pequenina chave, capaz de desvendar o grande mistério possivelmente contido dentro do altar da capela. Agora eu tenho a chave em minhas mãos e tudo o que tenho de fazer é ter paciência e servir-me cautelosamente, a cada passo, até que eu possa desvendar todo o mistério... Altar. Imagem de São Miguel Arcanjo no altar. Dirceu ajoelha-se no altar e faz o sinal da cruz. Bolsos da calça de Dirceu. Ele enfia a mão em um dos bolsos da calça e tira a pequena chave. Ele põe-se de pé e vai até a porta misteriosa do pequeno altar. Chave na mão de Dirceu. Ele ajoelha-se, olha para a fechadura e sopra-a. Chave. Dirceu enfia a pequena chave na fechadura. O vento toca forte. Uma das pequenas janelas abre-se deixando que um raio de sol intenso invada todo o interior da capela da fazenda. Dirceu fecha os olhos contra a claridade. Ele tenta rodar a pequena chave na fechadura da pequena porta, mas a 576 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior forte luz o impede. Ele tira a chave da fechadura e aperta-a em uma das mãos. Ele olha para todo o interior da capela e meio trêmulo, sai a passos rápidos da capela da fazenda. Cavalo de Dirceu. Dirceu vai até o cavalo para desamarrá-lo do tronco de uma árvore. Adro da capela da fazenda. Joaquim Alonso está no adro da capela. Dirceu vê Joaquim Alonso no adro da capela da fazenda. Joaquim Alonso vai ao encontro de Dirceu. Dirceu desiste de desamarrar o cavalo e fica observando Joaquim Alonso vindo ao seu encontro. JOAQUIM ALONSO O que foi que o senhor viu lá dentro da capela, senhor Dirceu? O senhor está amarelo, pálido... parece assustado... DIRCEU Nada a não ser o que todos viram, a imagem do santo anjo, no altar. Se estou amarelo, pálido, com a aparência de assustado, creio que é porque o meu corpo ainda não se restabeleceu da longa viagem, Joaquim Alonso... JOAQUIM ALONSO (sorri um pouco sem graça) É verdade, senhor Dirceu. Dizem que a viagem até São José do Rio das Mortes é um pouco difícil e muito longa para quem vai de cá até lá... Dirceu aperta as mãos e sente a pequena chave em uma delas. Ele enfia uma das mãos no bolso e guarda a pequena chave. Joaquim Alonso fica reparando Dirceu dos pés à cabeça. JOAQUIM ALONSO Eu vim até cá para avisá-lo que o Antenor mandou entregar, cá na fazenda um carro cantador, dizem que foi o senhor quem comprou em... DIRCEU (demonstra-se surpreso) 577 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Ah, sim, fui eu quem comprei o carro-de-boi lá em São José do Rio das Mortes... Deixei-o com Antenor. Então ele já mandou para cá? Quero ver o carro-de-boi... Vamos até a fazenda. Cavalo de Dirceu. Dirceu desamarra rapidamente o seu cavalo e monta nele. Dirceu afrouxa a rédea e grita para Joaquim Alonso. Dirceu tentase animar. DIRCEU Como é, vamos ou não vamos para a fazenda? Joaquim Alonso ainda fica parado olhando para Dirceu. Cavalo de Joaquim Alonso em das laterais da capela da fazenda. Joaquim Alonso anda rápido como se fosse até uma das laterais da capela da fazenda, onde está o cavalo dele. Joaquim Alonso olha para o cavalo e para a porta de frente da capela. Porta de frente da capela da fazenda aberta. Ele caminha rápido até a porta de frente da capela da fazenda. Joaquim Alonso entra na porta de frente da capela da fazenda. Dirceu olha Joaquim Alonso entrando na capela da fazenda e franze a testa. Dirceu sai cavalgando devagar pela estrada da capela até a fazenda Ribeirão do Meio. Um bando de pássaros voa para a torre da capela da fazenda. SEQUÊNCIA 207 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu chega troteando devagar na fazenda Ribeirão do Meio. Quintal de frente da fazenda. Hipólito, Cirilo, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro no quintal de frente da fazenda contemplando o grande carro-de-boi ainda com os seis bois amarrados nas cangas. Dirceu aproxima-se montado no cavalo dele. Todos olham para Dirceu demonstrando-se alegres com o veículo. 578 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CIRILO Nhô Dirceu fez bem comprar o carro. A fazenda bem que carecia de um... HIPÓLITO Agora podemos carrear boi pelas estradas afora para trazer mandiocas e canas para trabalhar na meia... Dirceu pula-se do cavalo. Ambrósio dá alguns passos e pega a rédea do cavalo de Dirceu. DIRCEU Desarreia não, Hipólito. Vou viajar agora para Vila Rica... CIRILO Nhozinho vai sozinho de novo? DIRCEU Sim, Cirilo. Voltarei logo, antes do anoitecer... Vós mercês desatrelam os bois carreiros das cangas do carro e os solta nas campinas para pastarem. Os boizinhos estão um pouco magros devido à longa viagem... AMBRÓSIO Nhozinho pode viajar sossegado que nós fazemos tudo que é preciso... Nhozinho pode ficar sossegado... Carro-de-boi. Hipólito, Cirilo, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro olham para o carro-de-boi. Dirceu anda até a varanda do casarão. Porta de dentro do casarão. Dirceu entra pela porta e enfia dentro do casarão. SEQUÊNCIA 208 –INT./DIA. CASA DO PADRE ROCHA. SALA DA CASA DO PADRE ROCHA. 579 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Casa do padre Rocha. Grande sala da casa do padre Rocha. Padre Rocha e Dirceu estão sentados em confortáveis poltronas. DIRCEU Mas uma vez, padre Rocha, venho incomodá-lo com a mesma história sobre a capela da minha fazenda. Eu somente quero saber um pouco sobre a imagem do anjo São Miguel Arcanjo, padre... PADRE ROCHA (sorri e pergunta para Dirceu em voz baixa) Encontraste a imagem do santo anjo? DIRCEU Sim, encontrei-a Ela está no principal altar da capela da fazenda e, como a capela não tem padroeiro, quero informações sobre o anjo para homenageá-lo. PADRE ROCHA Encontraste-a por intermédio do fazedor de santo? DIRCEU Sim, padre Rocha, a imagem estava com ele. PADRE ROCHA Eu desconfiava de que a imagem estava com o Antônio Francisco... DIRCEU Ele pegou a imagem do santo anjo na capela de Sant Ana, devido a uma dívida. PADRE ROCHA Contaram-me essa história, embora eu não acreditasse... Como conseguiu que ele lhe devolvesse a imagem do santo anjo? 580 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Meu pai havia comprado dele uma imagem. Eu, portanto, não sabia que era a do santo anjo. PADRE ROCHA (dá risadas) Então o danado do fazedor de santo levou a imagem a leilão. Contaram-me que ele saiu oferecendo a imagem a um e outro e, decerto, o seu pai foi quem deu o melhor lance. DIRCEU Disso eu não sei... PADRE ROCHA (levanta-se da poltrona, caminha até a janela e volta novamente a sentar-se na poltrona ao lado de Dirceu) São Miguel Arcanjo! Sabias que esse anjo é o comandante das hostes celestes? DIRCEU (faz "não" com a cabeça) Das hostes celestiais? PADRE ROCHA (faz uma pausa, respira fundo e prossegue) Sim, das hostes celestiais. Na Bíblia, ele é um dos poucos anjos mencionados pelo nome. Isso se dá ao fato de o nome dele em hebraico significar "quem é como Deus?" Ele é um dos arcanjos mais importantes. Ele vive no céu ao lado de São Gabriel e São Rafael, condecorado por Deus, como o "grande príncipe". Ele é o anjo guerreiro, defensor dos filhos de Israel. Foi ele quem falou a Moisés no monte Sinai, levou as sete pragas ao Egito, dividiu as águas do mar Vermelho e guiou os judeus através do deserto até a Terra Prometida... 581 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU É ele quem guarda a chave do céu, padre Rocha? PADRE ROCHA Não, não temos relato nas escrituras sagradas que falem sobre isso. Segundo os judeus, São Miguel é um dos anjos que estão diante do trono de Deus, enquanto a tradição cristã acredita ser ele quem recolhe as almas dos santos e as leva ao céu. É através da voz dele que os mortos ressuscitarão no dia do juízo final. DIRCEU E qual é a concepção da Igreja Católica perante esse anjo, padre? PADRE ROCHA A nossa igreja comemora a aparição de São Miguel que se deu no dia 8 de maio, por volta do ano de 492, no monte Gargano. Até hoje, dizem que muitos peregrinos ainda vão nesse monte comemorar essa data. Engraçado, não sei se foi coincidência ou não, mas foi na manhã do dia 8 de maio, que celebramos a missa de inauguração da capela da fazenda de vossa senhoria. (tosse secamente e prossegue) Isso mesmo, no dia 8 de maio de 1753, foi o dia e o ano da inauguração da capela de sua fazenda. Padre Rocha e Dirceu continuam conversando. O padre Rocha, entusiasmado, às vezes faz alguns gestos com as mãos. Dirceu ouve o atentamente. DIRCEU (VOICE OVER) Quem sabe aquele fenômeno não seria algo criado pela minha cabeça? Eu ouvia o meu pai dizer que o medo não passava de um sentimento tolo, capaz de fazer as pessoas criarem fantasias e verem coisas que não existiam no mundo real. 582 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Todavia, quando o padre Rocha relatou-me sobre o anjo, algo estranho passou pela minha cabeça. A minha vontade foi sair dali correndo, ir para um lugar tranquilo e colocar as minhas ideias em ordem. Se São Miguel Arcanjo era um anjo comandante das hostes celestes, não foi à-toa que o padre Fernandez fez questão de ele portar a chave. As informações trazidas pelo padre bastavam para que eu tirasse todas as conclusões. A missa foi rezada no dia 8 de maio, dia em que se comemora a aparição do anjo no monte Gargano, na Itália; a pregação da primeira missa rezada na capela pelo Padre Rocha foi acerca da última ceia de Cristo, dando ênfase à traição do Judas. Não restava eu fazer mais nada, senão voltar para a fazenda e sanar a minha dúvida. DIRCEU Realmente havia algo misterioso por trás da pequena portinhola do altar da capela. A mim cabia o dever e a obrigação de investigá-lo... SEQUÊNCIA 209 – INT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. Ruas de Vila Rica. Dirceu trotea em seu cavalo pelas ruas de Vila Rica. Uma esquina de uma pequena rua. Aparece Rosa virando a esquina da pequena rua. Dirceu vê Rosa virando pela esquina e galopa rápido ao encontro dela. Dirceu frea o cavalo bruscamente ao aproximar-se de Rosa. Ela assusta-se. ROSA Qualquer dia desses o senhor mata-me de susto... DIRCEU Desculpe-me, Rosa. É que eu preciso saber como está à dona Marília... 583 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ROSA (abaixa a cabeça tristemente) Sinhá Marília não está bem não, senhor Dirceu. DIRCEU (olha desajeitosamente para Rosa) Ah, é? ROSA (estala os dedos e se desabafa para Dirceu) Sinhá Marília não come e nem bebe direito, só pensa no sinhozinho dia e noite. DIRCEU Que pena! Diga a ela que continue acreditando nas façanhas do cunhado Sales. ROSA Sinhazinha ouviu falar que o sinhozinho vai casar com outra moça e ela está sofrendo muito com isso... DIRCEU (nervoso) Invenção, pura invenção, Rosa. Não há outra moça mais digna no mundo de casar-se comigo, senão a dona Marília. O diabo é que o cunhado meteu-lhe ideias frouxas na cabeça e tudo o que nos restou foi isso. Ela acreditou no cunhado e acabou brigando comigo... ROSA (arregala os olhos para Dirceu e fala baixinho) Sinhozinho não quer ver a dona Marília, hoje? DIRCEU (olha para um lado e outro, tira o chapéu e coça a cabeça) 584 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Não! Só quero ver a sua sinhazinha se ela largar a irmã, o cunhado e ir morar comigo na minha fazenda. Caso contrário, nada feito, Rosa. Dirceu espora o cavalo e sai galopando rápido pelas ruas de Vila Rica. Igrejas e casarios vão ficando para trás. Estrada da serra do Ita-corumi. Dirceu cavalga pela estrada da serra do Ita-corumi. DIRCEU (VOICE OVER) Quanto à Marília, o meu coração, infelizmente, dizia que nós dois éramos como Trácia e Abido, a quem esses dois amantes, Cupido não deu o maior valor. Marília, a bela, necessitaria, a partir de então, de todos os seus esforços para reconquistarme. Haveria ela de romper os mares, ir ao inferno e até subir ao céu, porquanto os destinos impiedosos voltaram contra nós a face irada. Eu, portanto, não faria outra coisa senão dizer-lhe isso, no meu silêncio. CORTA RÁPIDO PARA SEQUÊNCIA 210 - Flash back – Imaginação de Dirceu. Dirceu cavalga pela estrada da serra Ita-corumi. Ele fecha os olhos e começa a sorrir. Relvado. Grande cesta de piquinique no relvado. Dirceu e Marília estão sentados no relvado. Dirceu olha tristemente para Marília. DIRCEU Ora, Marília, se o teu coração pende mais para a razão do que para a emoção, saiba, desde agora, que a si mesma está a roubar e a si própria a ferir-se à-toa. UM SOL RADIANTE NO MONTE DO ITA-CORUMI COBRE A IMAGEM DEDIRCEU E MARÍLIA SOB O RELVALDO. DIRCEU SAI GALOPANDO PELAS COLINAS. IMAGEM NEGRA. 585 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 211 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. CAPELA DA FAZENDA. Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela. Cirilo abre a cancela para Dirceu passar com o cavalo dele. Dirceu entra no quintal de frente da fazenda. Cirilo fecha a cancela da fazenda e vai ao encontro de Dirceu. Dirceu pula-se do cavalo. Cirilo aproxima-se de Dirceu. CIRILO Tenho um recado para nhozinho. Um dos rapazes da fazenda lá de cima, do nhô Sales veio cá e pediu para avisar para nhozinho ir até lá. DIRCEU Não tenho nada para conversar com o Sales. Se ele tiver alguma coisa importante para falar comigo, que ele venha cá. Pegue o meu cavalo, Cirilo, desarreia e solte na campina, juntamente com os outros. Vou passear a pé, por aí, para despistar um pouco os meus pensamentos. Se alguém perguntar por mim, ainda não cheguei de Vila Rica... CIRILO Nhô sim, nhô sim... Rédea do cavalo de Dirceu. Dirceu entrega a rédea do cavalo dele para Cirilo. Cirilo sai levando o cavalo pela rédea. Dirceu fica observando Cirilo carregar o cavalo. Cirilo desaparece do quintal. Dirceu sai andando em direção a cancela da fazenda. Dirceu abre a cancela e sai pela estrada que conduz até a capela da fazenda. Estrada. Dirceu anda na estrada um pouco apressado. Capela da fazenda. Porta de frente da capela da fazenda. Dirceu empurra a porta de frente da capela da fazenda e entra. Ele dirige-se a passos rápidos até o altar da capela da fazenda. Bolsos da calça de Dirceu. Ele tira a chave de um dos bolsos da calça, aproxima-se do altar e ajoelha-se. Chave na mão de Dirceu. Pequena porta do altar da capela da fazenda. Fechadura. Dirceu enfia a 586 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior chave na fechadura e abre a pequena porta. Pequena porta aberta. Olhar de Dirceu observando o interior da porta aberta. Uma sombra aparece por trás de Dirceu. Dirceu levanta-se assustado e olha para trás. Joaquim Alonso parado, atrás de Dirceu. Dirceu assusta ao vê-lo. Joaquim Alonso olha para Dirceu e para a pequena porta do altar da capela da fazenda aberta. JOAQUIM ALONSO Então, chegaste de Vila Rica? DIRCEU Sim, e como sabes, Vila Rica não é tão longe daqui... Dirceu aproxima-se do altar da capela da fazenda, fecha a pequena porta, tira a pequena chave e coloca-a em um dos bolsos da calça. JOAQUIM ALONSO Foste mesmo à Vila Rica? DIRCEU Fui, por quê? JOAQUIM ALONSO Visitaste o padre Rocha? DIRCEU (olha para Joaquim Alonso assustado) Por que o padre Rocha? Como sabes se eu o visitei ou não... JOAQUIM ALONSO Isso não interessa. Foste lá para que ele contasse para vós mercê sobre o anjo... DIRCEU O que sabes? 587 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO (abaixa a cabeça) Não muito. O padre pôde revelar-te alguma coisa? DIRCEU Não estou entendendo. Revelar-me o quê? JOAQUIM ALONSO Sobre o mistério denominado entre os padres como "Monetae sicarii"... DIRCEU Monetae sicarii! O que é isso? Joaquim Alonso aproximou-se do altar da capela da fazenda, agacha, sopra a portinhola, bate-a com as pontas dos dedos e prossegue. JOAQUIM ALONSO Ora, senhor Dirceu, eu estou falando sobre "Monetae sicarii", guardadas neste altar desde 1753. DIRCEU (franze a testa) Então, vós mercê chegou à minha fazenda para verificar esse mistério? JOAQUIM ALONSO Faz oito anos que estou a investigá-lo... DIRCEU E por que? JOAQUIM ALONSO Sou padre, conheci um que fazia parte da Companhia de Jesus. 588 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Alguns minutos de silêncio. Dirceu olha para Joaquim Alonso e sorri um pouco sem graça. Dirceu olha seriamente para Joaquim Alonso. DIRCEU (fala por solilóquio) Onde eu podia imaginar que aquele homem infiltraria na minha fazenda para uma investigação, sem que eu desconfiasse de nada? Quem diria, aquele homem há pouco era mendigo, dizia ter sido minerador e agora era um padre, investigador de mistérios em capelas alheias... JOAQUIM ALONSO (toca-se as mãos no ombro de Dirceu, amigavelmente) Vamos conversar lá fora, tenho informações preciosas sobre o que contém aí dentro desse pequeno altar, antes de vós mercê abrir a portinhola. Dirceu e Joaquim Alonso afastam-se do altar da capela da fazenda a passos rápidos. Porta de frente da capela. Dirceu e Joaquim Alonso saem pela porta de frente da capela da fazenda. Adro da capela da fazenda. Dirceu e Joaquim Alonso conversam no adro da capela da fazenda. DIRCEU Vós mercê deve a mim outra história de sua vida. Creio que a história contada, quando cá chegou, não foi a verdadeira... JOAQUIM ALONSO Sou padre e eu sei que a mentira é uma das maiores injúrias, senhor Dirceu. Peço-te perdão. Eu precisava chegar aqui de forma confiável, há muito procuro por esse miserável tesouro. DIRCEU Miserável tesouro? Como assim? 589 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO Vou colocá-lo a par de tudo, senhor Dirceu. Desde já não pense que o que há dentro do altar seja um tesouro fantástico, maravilhoso. Ele é, portanto, uma maldição... DIRCEU Uma maldição? Mas um padre iria... JOAQUIM ALONSO Ele somente cumpriu uma missão, assim como você está cumprindo e eu também, ao querermos desvendar todo o mistério... DIRCEU E a sua história, Joaquim Alonso? JOAQUIM ALONSO Contar-lhe-ei tudo, inclusive corrigindo algumas passagens da primeira versão da minha história. Eu realmente sou do Alentejo e perdi os meus pais em 1785, devido a uma família rival... CORTA PARA SEQUÊNCIA 212 - INT./EXT./DIA. ALENTEJO, PORTUGAL. GRANDE FAZENDA EM ALENTEJO. ESPANHA. Flash back – Relato de Joaquim Alonso. Alentejo. Grande fazenda em Alentejo. Terras da grande fazenda de Alentejo com a plantação de Olivas. Joaquim Alonso, com 25 anos de idade andando entre as plantações de olivas, juntamente com o pai, gordo, cabelos e olhos claros. Cestas com olivas. HOMENS, MULHERES e CRIANÇAS PORTUGUESAS colhendo olivas. Mangueira. Gados pastando na mangueira. Campina. Joaquim Alonso e o pai andando a cavalo pelas campinas. 590 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FADE OUT/FADE IN Noite. Fazendas e campos sendo incendiados. FAMILIAS ESPANHOLAS ocupam territórios portugueses. FAMÍLIAS DO ALENTEJO são massacradas pelas famílias espanholas. Bacamartes. Janelas e portas das casas de Alentejo são fechadas. Casas incendiadas. AS FAMÍLIAS ESPANHOLAS tomam as propriedades dos povos de Alentejo. FAMÍLIAS PORTUGUESAS fogem de Alentejo. Cavalos com adultos, homens e mulheres fugindo aos galopes. Carroças carregando crianças. Grande fazenda em Alentejo. FADE OUT/FADE IN A FAMÍLIA DE JOAQUIM ALONSO é atacada por uma família espanhola. Sacada do casarão da grande fazenda. UM TIO e DOIS IRMÃOS DE JOAQUIM ALONSO estão na sacada do casarão da grande fazenda e recebem tiros de bacamarte no peito. A FAMÍLIA DE JOAQUIM ALONSO chora a morte dos parentes. HOMENS ENCAPUZADOS, com tochas de fogo, invadem a casa grande ateando fogo. Sala grande de jantar. Homens encapuzados entram na sala grande de jantar, sacam punhais das cinturas e matam a família de Joaquim Alonso, uma irmã com o marido e depois os pais. Varanda do casarão. Casa pegando fogo. Joaquim Alonso desce as escadas da varanda do casarão, corre para os campos e esconde-se entre os pés de oliveira. FADE OUT/FADE IN Legenda: “Alguns meses depois...” Espanha. Convento. Joaquim Alonso na varanda do convento. Enorme banco de madeira. Joaquim Alonso lê a bíblia, sentado no enorme banco de madeira. CORTA PARA Convento. Sala de aula. Vários jovens espanhóis sentados nas carteiras, entre eles, Joaquim Alonso. UM PADRE ESPANHOL, IDOSO, dá 591 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior aula de retórica aos vários jovens. Mesa de refeição. Joaquim Alonso está sentado na mesa de refeição, almoçando. O padre espanhol, idoso, senta-se a mesa ao lado de Joaquim Alonso com um prato nas mãos. Joaquim Alonso e o padre espanhol, idoso conversam enquanto almoçam. JOAQUIM ALONSO (VOICE OVER) A minha família era muito rica, possuía mais de 800 hectares de terra a leste quase com a fronteira da Espanha onde produzíamos e criavámos gados caprinos. Portanto, quando se deu a morte de D. José I, em 1777, várias mudanças ocorreram na região. Quando D. Maria I assumiu o trono, ocorreu a renúncia do marquês de Pombal ao cargo, possibilitando o retorno dos jesuítas a Portugal e a paz entre a Espanha selada pelo Tratado de Santo Ildefonso. Devido a esse tratado, várias famílias espanholas ocuparam os territórios lusos, entre eles o Alentejo e o Algarve. Devido às famílias lusas possuírem inúmeros hectares de terras, as famílias espanholas começaram a invadi-las, iniciando guerrilhas particulares entre invasores e proprietários. Numa dessas confusões, a minha família viu-se metida numa rixa com uma dessas famílias e se deu mal. Todos morreram, restando apenas a mim. Perdi tio, irmãos e meus pais, quais foram massacrados covardemente. Ao perder tudo, um padre acolheu-me levando-me para um convento, na Espanha. Lá, no convento conheci um velho padre, professor de retórica, que me fez conhecer a história sobre "Monetae sicarii", uma versão contrária ao Santo Graal, trazido para o Brasil, pelo padre Fernandez. VOLTA PARA 592 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 211.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. ADRO DA CAPELA. ESTRADA ENTRE A CAPELA E A FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Dirceu e Joaquim Alonso estão sentados em um tronco debaixo de uma árvore, próximo ao adro da capela da fazenda. JOAQUIM ALONSO Ao ordenar-me padre, a minha missão seria na Catalunha, porém, ao embarcar para essa região eu fugiu no porto espanhol, indo para os Açores e em seguida para Lisboa, onde, tempos depois, no cais, consegui entrar numa velha naus e se desembarcar no Brasil. Vós mercê, Dirceu, pode não acreditar, mas o padre espanhol, idoso, que nos dava aula de retórica, conhecia esta fazenda. Ele fizera parte da comissão do padre Fernandez, o que facilitou para mim todos os indícios para chegar ao Brasil. Dessa forma, Dirceu, não fico envergonhado em confessar-te de que tenho uma grande vontade de me vingar da Espanha... DIRCEU Vontade de vingar da Espanha? o que isso tem a ver com o mistério, Joaquim Alonso? JOAQUIM ALONSO Prometi encontrar as moedas do assassino e devolvê-las à Espanha. Dessa forma eu vingarei a morte de toda a minha família. Eu descobri, Dirceu, que os objetos escondidos no altar da tua capela não passam de um lixo da humanidade, e que a Igreja Católica procura lavar as mãos. Esse lixo, no romper dos séculos estivera em alguns países. Em cada lugar que ele permaneceu, aconteceram várias tragédias. Se tu queres saber o que é, contar-te-ei, mas antes, porém, tenho de relatar a ti uma longa história. 593 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (olha para o adro da capela da fazenda) Estás a pé, não está? JOAQUIM ALONSO Sim! Também estás sem o teu cavalo, não é? DIRCEU Sim. Então podemos ir caminhando pela estrada da capela até a fazenda, enquanto narras para mim a longa história... Dirceu e Joaquim Alonso saem andando pela estrada entre a capela e a fazenda Ribeirão do Meio. Enquanto andam, Joaquim Alonso narra para Dirceu uma longa história. JOAQUIM ALONSO A história parece incrível, senhor Dirceu, pois o início dela se dá com a última ceia de Jesus Cristo... DIRCEU Meu Deus, o que Jesus tem a ver com tudo isso... JOAQUIM ALONSO Faltavam dois dias para a páscoa e a festa dos pães ázimos e os principais sacerdotes e escribas andavam buscando como prender Jesus à traição, para matá-lo. Eles não queriam que fosse durante a festa para que não houvesse tumulto entre o povo. CORTA PARA SEQUÊNCIA 212.1 – CONTINUAÇÃO EXT./INT./DIA/NOITE. JERUSALÉM. 594 - Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FLASH BACK – RELATO DE JOAQUIM ALONSO, CONFORME OS LIVROS APÓCRIFOS SOBRE A MORTE DE JESUS CRISTO. LEGENDA: “Jerusalém, Ano 34 DC” Jerusalém. Jesus Cristo entra em Jerusalém montado no lombo de um jumento. Jesus Cristo é recebido por uma multidão, que o aclama como "filho de Davi". A MULTIDÃO balança nas mãos folhas verdes de palmeiras. Os discípulos seguem Jesus, uns pelo lado da direita, outros pelo lado da esquerda. Judas Iscaríotes é puxado pelo braço, no meio da multidão, pelos sacerdotes e escribas. Judas Iscariotes sai do meio da multidão acompanhando os sacerdotes e os escribas. UM DOS SACERDOTES Então, Iscariotes, vai ou não nos entregar o homem? JUDAS ISCARIOTES Claro. Daqui há dois dias, na noite em que Jesus celebrar a páscoa conosco... UM DOS ESCRIBAS E como vós mercê o entregará, Iscariotes? Onde os guardas pegarão o tal Jesus de Nazaré? JUDAS ISCARIOTES Após a comemoração da páscoa, Jesus estará em algum lugar da sinagoga com os seus discípulos. Quando os guardas se aproximarem, avise-os que aquele que eu beijar, é o condenado... UM DOS SACERDOTES Fechado pelas trinta moedas de prata? JUDAS ISCARIOTES Pelas trinta moedas de prata... UM DOS ESCRIBAS 595 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Entregamos as moedas depois que vós mercê nos entregar o homem... Praça ou ágora de Jerusalém. Jesus Cristo se encontra rodeado pelos seus discípulos, sentados debaixo de uma das árvores da praça ou ágora. Judas Iscariotes está entre os discípulos. Um dos discípulos de Jesus Cristo levanta a mão e aproxima-se de Jesus Cristo. UM DOS DISCÍPULOS DE JESUS CRISTO Senhor, faltam dois dias para comemorar a páscoa e até agora não sabemos em qual local iremos comemorá-la. Iremos, pois, entrar em Jerusalém? JESUS CRISTO Juntem-se todos a mim... Todos os discípulos de Jesus Cristo juntam-se para perto dele. Jesus Cristo fecha os olhos e pega pelas mãos dois de seus discípulos. Jesus Cristo dá um sinal e os restantes dos discípulos afastam-se. Jesus Cristo mantém-se segurando as mãos dos seus dois discípulos escolhidos. JESUS CRISTO Vós mercês foram escolhidos para essa missão. Vós mercês irão entrar em Jerusalém e lá encontrarão um homem carregando um cântaro de água. Sigam-no e onde ele entrar, digam ao dono da casa: "Onde está o meu aposento em que hei de comer a páscoa com os meus discípulos? E ele vos mostrará um grande cenáculo mobiliado e pronto; aí fazei-nos os preparativos”. Os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo saem andando pela colina e pega uma pequena estrada de areia. Os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo entram em Jerusalém. HOMEM carregando um cântaro de água. Os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo seguem o homem carregando o cântaro de água. Casa. Porta da casa. O homem carregando o cântaro de água entra pela porta para dentro da casa. Os 596 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo chamam na porta da casa. O mesmo homem que carregava o cântaro de água aparece na porta da casa. UM DOS DOIS DISCÍPULOS ESCOLHIDOS POR JESUS CRISTO Onde está o meu aposento em que hei de comer a páscoa com os meus discípulos? O mesmo homem que carregava o cântaro olha alegre para os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo. Ele sai calado da porta da casa e dá um sinal para que os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo o seguissem. Rua pedregosa. O mesmo homem que carregava o cântaro e os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo atravessam a rua pedregosa. Casa com grande porta. O mesmo homem que carregava o cântaro abre a grande porta da casa. Ele e os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo entram na sala da casa com grande cenáculo mobiliado e pronto. Rápido fade out. Noite. Luz iluminando a mesa da Santa Ceia. Jesus Cristo sentado á mesa do grande cenáculo mobiliado e pronto. Os discípulos de Jesus estão sentados ao redor da mesa. Jesus Cristo abençoa o pão e o vinho e reparte-os entre os seus discípulos. Jesus Cristo olha para Judas Iscariotes. Os discípulos de Jesus Cristo comem do pão e bebem do vinho. Jesus Cristo põe-se de pé e conversa com os discípulos. Judas Iscariotes levanta-se da mesa e sai apressado do grande cenáculo mobiliado e pronto. Monte das Oliveiras. Jesus Cristo está ajoelhado orando numa grande pedra. Os discípulos de Jesus Cristo estão dormindo no relvado. Tochas de fogo. Judas Iscariotes aparece no Monte das Oliveiras juntamente com alguns guardas segurando tochas de fogo nas mãos. Jesus Cristo põe-se de pé. Os discípulos de Jesus Cristo acordam assustado. Judas Iscariotes beija a face de Jesus Cristo. VOLTA RÁPIDO PARA SEQUÊNCIA 211.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. 597 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a fazenda. JOAQUIM ALONSO E assim fizeram os dois discípulos, encontrando tudo o que Jesus lhes dissera. Prepararam, pois, a páscoa e, ao anoitecer, Jesus ceou com os seus discípulos, abençoando o pão e o vinho e repartindo-os entre os seus discípulos como remissão dos pecados. No fim da ceia ele revelou que um entre os discípulos haveria de traí-lo com um beijo. E esse discípulo, possuído pelo demônio era o Iscariotes, que saiu do cenáculo, entregando Jesus à multidão. Jesus, como toda a humanidade sabe, foi julgado e crucificado indevidamente... CORTA PARA SEQUÊNCIA 212.2 – CONTINUAÇÃO – EXT./INT./NOITE. JERUSALÉM. TEMPLO DOS ESCRIBAS E SACERDOTES. Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros apócrifos sobre a morte de Jesus Cristo. Noite. Templo dos escribas e sacerdotes. Judas Iscariotes aparece no templo dos escribas e dos sacerdotes. UM DOS ESCRIBAS E UM DOS SACERDOTES vão ao encontro de Judas Iscariotes... JUDAS ISCARIOTES Não foi justo o que fiz. Entreguei a vida do filho de Deus para ser julgado pelos homens. Nunca na fase da terra houve homem tão justo quanto Jesus Cristo.... UM DOS ESCRIBAS É tarde para se arrepender Iscariotes. Quer o quê, que salvamos o tal Messias? 598 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JUDAS ISCARIOTES (abre as mãos trêmulas com o saco de trinta moedas de prata) As minhas mãos não param de tremer... Moedas malditas, de sangue inocente... O um dos escribas e o um dos sacerdotes olham para Judas Iscariotes e dão risadas. Judas Iscariotes joga o saco de moedas nos pés de um dos sacerdotes e sai correndo para fora do templo. Saco de moedas jogado no chão. O um dos escribas pega o saco de moedas jogado no chão. Árvore em algum lugar de Jerusalém. Judas Iscariotes enforcado em uma árvore em algum lugar de Jerusalém. VOLTA RÁPIDO PARA SEQUÊNCIA 211.3 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a fazenda. JOAQUIM ALONSO As moedas atiradas pelo assassino para dentro do santuário foram recolhidas pelos principais sacerdotes que não ousaram metê-las no cofre das ofertas devidas serem preço de sangue. CORTA PARA SEQUÊNCIA 212.3 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE. JERUSALÉM. TEMPLO DOS ESCRIBAS E SACERDOTES. Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros apócrifos sobre a morte de Jesus Cristo. 599 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Noite. Templo dos escribas e sacerdotes. Grande sala. Mesa na grande sala. Vários sacerdotes e escribas sentados à mesa na grande sala. Saco com as moedas de pratas em cima da mesa. Um dos escribas pega o saco de moedas nas mãos e olha para todos os escribas e sacerdotes que estão sentados à mesa da grande sala. UM DOS ESCRIBAS O Iscariotes apareceu por cá arrependido e nos devolveu as trinta moedas de pratas... UM DOS SACERDOTES Todos sabemos que essas moedas tornaram-se pactos de sangue, portanto, não devemos voltá-las aos cofres do templo e nem gastá-las com nada santo... UM OUTRO DOS ESCRIBAS Podemos comprar um campo de oleiro para servir de cemitério aos estrangeiros. Dessa forma as moedas não voltarão aos cofres do templo e acabará fazendo um grane bem aos estrangeiros que morrerem em Jerusalém... UM OUTRO DOS SACERDOTES Vamos colocar em votação. Levante as mãos quem estiver de acordo com a compra do campo de oleiro para que sirva de cemitério aos estrangeiros. MESA NA GRANDE SALA. TODOS OS ESCRIBAS E SACERDOTES ERGUEM AS MÃOS. SEQUÊNCIA 211.4 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a fazenda. Dirceu para de repente frente a Joaquim Alonso. 600 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Os escribas e sacerdotes compraram o campo de oleiro para fazerem o cemitério aos estrangeiros? JOAQUIM ALONSO Sim, compraram, mas as trinta moedas entregues ao proprietário do campo do oleiro ganharam outro rumo... DIRCEU Ganharam outro rumo, como assim? CORTA PARA SEQUÊNCIA 212.4 – CONTINUAÇÃO EXT./INT./DIA/NOITE. JERUSALÉM. VÁRIOS. Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros apócrifos sobre a morte de Jesus Cristo acrescentando-se à ficção do enredo deste roteiro. Grande campo de oleiro. DOIS ESCRIBAS E DOIS SACERDOTES negociam o campo de oleiro com o dono do oleiro. O dono do oleiro recebe o saco com as trinta moedas de prata. Saco com as trinta moedas de prata nas mãos do oleiro. Vários Fade out/Fade in denotando dias. Oleiro brigando com a esposa; oleiro na cama com febre rodeado pela esposa e três filhos. Oleiro tentando-se matar. Pequena sala. Poltronas. Nas poltronas da pequena sala há uma mulher conhecida como sábia anciã sentada ao lado da esposa do oleiro. Saco com as trinta moedas nas mãos da velha anciã. SÁBIA ANCIÃ Não deveriam ter vendido o oleiro para servir-se de cemitério aos estrangeiros. As moedas dos sacerdotes e dos escribas são amaldiçoadas. Foram com estas moedas que o Judas Iscariotes vendeu o Filho de Deus aos homens. Ele as devolveu aos escribas e sacerdotes e acabou se enforcando. Por favor, 601 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior devolvam-se estas moedas aos escribas e sacerdotes e todo o bem voltará à família de vós mercês... Dia. Templo dos escribas e sacerdotes. Grande sala. Mesa na grande sala. Vários sacerdotes e escribas sentados à mesa na grande sala. Saco com as moedas de pratas em cima da mesa. UM DOS SACERDOTES pega o saco de moedas nas mãos e olha para todos os escribas e sacerdotes que estão sentados à mesa da grande sala. UM DOS ESCRIBAS Assim como o Iscariotes apareceu por cá arrependido e nos devolveu as trinta moedas de pratas, o mesmo fez a esposa do oleiro, a quem compramos as terras do oleiro para servir de cemitério aos estrangeiros... UM DOS SACERDOTES Todos sabemos que essas moedas tornaram-se pactos de sangue, portanto, não devemos voltá-las aos cofres do templo e nem gastá-las com nada santo... UM OUTRO DOS ESCRIBAS Teremos que nos ver livres destas moedas. A minha sugestão é que devemos volvê-las em um saco de pano e colocarmos uma placa de bronze com os seguintes dizeres em latim "monetaesicariiIudas", e as esconderem numa velha tumba de uma família de judeus... UM OUTRO DOS SACERDOTES Vamos colocar em votação. Levante as mãos quem estiver de acordo com a sugestão dada pelo nosso irmão em esconder as moedas numa velha tumba... MESA NA GRANDE SALA. TODOS OS ESCRIBAS E SACERDOTES ERGUEM AS MÃOS. 602 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 211.5 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a fazenda. Dirceu tira o chapéu, coça a cabeça e toca uma das mãos nos ombros de Joaquim Alonso. DIRCEU Monetae sicarii Iudas? Isso em latim quer dizer o que Joaquim Alonso? JOAQUIM ALONSO Quer dizer em latim "as moedas do assassino Judas". DIRCEU (decepcionado) Pensei na possibilidade de o padre Fernandez ter escondido em minha igreja o Santo Graal, ou seja, o gradalis, o cálice da última ceia de Cristo, recolhido e guardado por José de Arimatéia, por ser santificado pelo sangue de Cristo. Mas não, trata-se das moedas do vil traidor... JOAQUIM ALONSO Sim, infelizmente, meu amigo. Trata-se das moedas do vil traidor. Mas elas são ainda uma ameaça para a humanidade... DIRCEU Por quê? JOAQUIM ALONSO Conforme vimos, todos os escribas e sacerdotes aprovaram a sugestão em enterrar as moedas do Iscariotes em uma velha tumba. Assim fizeram. CORTA PARA 603 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 212.5 - EXT./INT./DIA/NOITE. JERUSALÉM. VÁRIOS. Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros apócrifos sobre a morte de Jesus Cristo acrescentando-se à ficção do enredo deste roteiro. Jerusalém. Monte das Oliveiras visto das muralhas de Jerusalém. Cemitério. Antigas tumbas. HOMENS JUDEUS abrindo uma antiga tumba. UM DOS HOMENS JUDEUS encontra o saco com as moedas do Judas Iscariotes. Templo. Vários sacerdotes e escribas sentados à mesa na grande sala do templo. Saco com as moedas de pratas do Judas Iscariotes em cima da mesa. Vários sacerdotes e escribas sentados à mesa na grande sala do templo olhando para o saco com as moedas de pratas do Judas Iscariotes em cima da mesa. Imagens de grandes igrejas construídas entre os séculos XVI e XVIII, na Inglaterra, na França, na Itália, em Portugal, e finalmente na Espanha. Padre Fernandez coloca o saco de moedas dentro da mala dele e fecha-a. JOAQUIM ALONSO (OFF) Mas anos depois essas moedas foram encontradas e devolvidas aos sacerdotes e escribas, que sempre procuravam escondê-las e, fatalmente, a tê-las de volta. Não se sabe como, tempos depois essas moedas passaram a ser escondidas e encontradas em outras partes do mundo, inclusive, em alguns países da Europa: Inglaterra, França, Itália, Portugal e, finalmente, Espanha. Foi da Espanha que o padre Fernandez recebeu a missão de levá-las para um lugar onde ninguém ousaria cobiçá-las... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 211.6 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. 604 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a fazenda. Dirceu com o chapéu na cabeça ao lado de Joaquim Alonso. DIRCEU E esse lugar haveria de ser o Brasil, cá, na capela construída próxima à minha fazenda... JOAQUIM ALONSO (balança a cabeça dizendo “sim”) Como vós mercê bem sabe, o padre Fernandez fazia parte da Companhia de Jesus e, sob o apoio do rei Fernando VI , que assumiu o trono em 1746, trouxera "Monetaesicariiludas" para cá, juntamente com alguns recursos para a construção da capela. É de se saber também, Dirceu, que ao construírem essa capela, a intenção não foi de designá-la aos cultos, mas sim ao sepulcro das moedas... DIRCEU Então a capela da fazenda não é um templo para... JOAQUIM ALONSO Há de se ver que não. Toda a aparência dela é de uma pequena igreja, portanto, se tu reparares bem, desde o frontispício à torre, notarás que há diferenças entre as demais igrejas de todos os lugarejos da colônia. DIRCEU Qual é essa diferença? JOAQUIM ALONSO Se olhares bem para a pequena torre, tu verás que as faces laterais dela são triangulares, contendo um vértice comum, como as pirâmides do Egito, construídas para servirem de túmulos aos faraós. Nos riscos do frontispício há pequenas marcas na lateralidade esquerda, que servirão de leitura aos padres espanhóis que por aqui passarem. 605 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Então é no frontíficio da capela que está todo o mistério? JOAQUIM ALONSO Não, no frontifício não está o mistério, mas a leitura para todo o mistério. Se reparar bem, por exemplo, o altar da capela tem a forma de um túmulo, cujos riscos foram copiados da tumba de Artaxerxes II, da Pérsia. Nele há apenas marcas pagãs para dizer aos padres espanhóis que "MonetaesicariiIudas" se encontram nele. DIRCEU Certo dia apareceram na capela dois homens a cavalo para investigá-la desde o frontispício, a pequena torre ao interior dela... JOAQUIM ALONSO (mordendo os lábios) E como eram os dois homens? DIRCEU Eram dois homens altos, magros e brancos que vez em quando falavam uma língua estranha entre eles ao vistoriarem a capela. O que chamou a minha atenção foi justamente o que vós mercê acabou de confirmar, o frontifício e a pequena torre da capela. Parecia que lá havia um texto escrito num grande pergaminho capaz, de quem soubesse lê-lo, decifrar imediatamente... Um dos homens olhou para o frontifício da capela, sorriu e... CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back - Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir. 606 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 156 – EXT./INT./DIA/ CAPELA DA FAZENDA. Dirceu e os dois homens brancos vão até o frontifício da capela da fazenda. Dirceu entrega a chave da capela da fazenda para Miliquito. Miliquito entrega o pau para Cirilo e se apressa para abrir a porta da frente da capela da fazenda. Ambrósio segue Miliquito. Outro dos dois homens brancos olha para o frontifício da capela da fazenda e sorri. OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS É aqui mesmo, descobri o principal indício, amigo... UM DOS HOMENS BRANCOS Eu também já havia percebido... Os dois homens brancos olham para Dirceu. OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS Não precisamos entrar na capela, senhor... DIRCEU (meio desajeitado e confuso) Logo que estamos cá. O rapaz abriu a capela... OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS Então não custa nada entrar... UM DOS HOMENS BRANCOS Então vamos vistoriar a capela. Bastamos olhar o santo altar... VOLTA PARA 607 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 211.7 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a fazenda. JOAQUIM ALONSO (um pouco assustado) Sinal de que o perigo se espalha, pois Corre uma lenda em torno dessas moedas, que aquele que encontrá-las e depositálas num cofre de qualquer igreja ficará muito rico. Dessa forma, Judas, segundo a lenda, libertar-se-á do vale em que se encontra preso e dominará o universo por trinta séculos, conforme o número das moedas. Durante o reinado dele, de 3.000 anos, surgirão homens naturalmente ambiciosos, capazes de promoverem guerras e grandes catástrofes em prol de fortunas. Essas moedas, porém, jamais poderão cair em mãos de pessoas leigas, inconsequentes. Elas devem ser vigiadas, intocáveis, caso contrário, o mundo inteiro sofrerá terríveis consequências. DIRCEU As moedas do traidor! Então são elas que estão escondidas dentro do altar da capela fazenda?! JOAQUIM ALONSO Infelizmente são elas, senhor Dirceu. São as moedas do Iscariotes que estão escondidas no altar ou sarcófago de sua capela... DIRCEU Hoje eu não quero mais ouvir falar disso, Joaquim Alonso. Vou dar um tempo. A partir de hoje vou parar para refletir um pouco na história, até onde a tenho e depois, quem sabe voltarei a tocar no assunto com vós mercê... 608 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO Quando quiseres conversar comigo, sou todo ouvidos, senhor Dirceu... SEQUÊNCIA 213 - INT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. Campinas. Dirceu cavalga pelas campinas. Árvores. Pássaros voam entre as árvores. Rios. Penhascos. Água caindo pelo penhasco. Cachoeiras. Bois pastando nas mangueiras. Ovelhas pastando nas mangueiras. Colinas verdejantes. Dirceu cavalga lentamente pelas campinas. DIRCEU (VOICE OVER) Depois de ter ouvido a história de Joaquim Alonso, desperteime para os problemas da nossa colônia, principalmente da trágica inconfidência, cujos resultados resumiram-se em mortes e exílios. Eu fiz silêncio, retirei-me por alguns dias da presença de Joaquim Alonso e andei por alguns lugares da fazenda pensando o que fazer com aquele maldito tesouro. Dias depois procurei por Joaquim Alonso e o encontrei feito padre, sentado no carro-de-boi, no quintal da fazenda. CORTA PARA Fazenda Ribeirão do Meio. Árvore frondosa no quintal da fazenda. Carro-de-boi debaixo da frondosa árvore da fazenda. Joaquim Alonso está lendo a bíblia sentado no carro-de-boi. Dirceu aparece de repente no quintal da fazenda e vai ao encontro de Joaquim Alonso. Carro-deboi. Joaquim Alonso sentado no carro-de-boi. Dirceu aproxima-se de Joaquim Alonso. Joaquim Alonso percebe Dirceu se aproximar e fecha a bíblia, mantendo-a segura nas mãos. 609 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO Refletiu sobre toda a história que sabes a respeito do mistério, senhor Dirceu? Queres voltar a falar sobre o assunto? Se quiseres sou todo ouvido... DIRCEU Quero sim, padre Joaquim Alonso. Quero ouvir o que vossa senhoria aconselha-me a fazer com esse maldito tesouro... JOAQUIM ALONSO Quanto a mim, eu sei para onde devo levá-lo, pois tenho de quem e por que vingar. DIRCEU Em nome da família espanhola que massacrou a sua família, vossa reverência quer vingar de uma nação inteira? JOAQUIM ALONSO Sim, também pelos suplícios que eles impuseram a Portugal. DIRCEU Mas Portugal e Espanha, hoje, não são dois países amigos? JOAQUIM ALONSO Não! Portugal e Espanha apenas estão recuados devido às guerras armadas pela França desde o ano passado. Temos notícias de que desde o início deste ano a Áustria, Prússia, Espanha, os Países Baixos e a Grã-Bretanha formaram a primeira coalizão para enfrentar a França. Logo vejo que Portugal não demorará muito a fazer parte dessa coalizão, correndo o risco de tornar-se submisso ao reino de Napoleão Bonaparte. 610 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (entusiasmado) Então, agora que a história sobre as moedas do assassino foi contada e passada a limpo, por que não vamos à capela desvendar o mistério? JOAQUIM ALONSO (animado, aperta a bíblia entre os peitos) Vamos! A história mais cedo ou mais tarde tem e deve ser passada a limpo... UM BANDO DE PERIQUITOS CORTA O AZUL DO CÉU. SEQUÊNCIA 214 – INT./EXT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. Fazenda Ribeirão do Meio. Capela da fazenda. Frontifício da capela da fazenda. Joquim alonso mostra para Dirceu a torre modestamente piramidal e uns pequenos desenhos em alto relevo do lado esquerdo do frontispício da capela da fazenda. Dirceu se interessa por todos os detalhes do frontifício e da torre da capela da fazenda, apontados por Joaquim Alonso. Interior da capela da fazenda. Dirceu e Joaquim Alonso estão no altar da capela da fazenda. Imagem de São Miguel Arcanjo. Joaquim Alonso aproxima-se da imagem e em seguida, Dirceu. Detalhes da imagem de São Miguel Arcanjo. JOAQUIM ALONSO Vós mercê sabia que este arcanjo é o comandante das hostes celestes? É ele quem detém o segredo da palavra pela qual foram criados o céu e a terra. Ele é o grande príncipe, um dos arcanjos mais importantes ao lado de Gabriel e Rafael. DIRCEU E o que vós mercê sabe sobre a história dessa imagem, padre? 611 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO (olha para Dirceu com um ar diferente, superior, respira e enche o peito de ar) Ela foi comprada numa feira de mercadores andaluzes, em Oran, no ano de 1635, pelo avô paterno do padre Fernandez, que a deu de presente a um tio dele, quando se ordenou padre. Anos depois, esse tio deu a imagem ao padre Fernandes, pouco antes de morrer em Valência. Tudo o que eu sei, também, é que o padre Fernandez mandou abrir um pequeno orifício no peito da imagem e guardou ali uma minúscula chave, capaz de fazer alguém chegar ao segredo das moedas guardadas, cá, na capela. DIRCEU Mas o propósito não seria que essas moedas ficassem eternamente guardadas neste altar? JOAQUIM ALONSO Não! Infelizmente, não sei qual é o verdadeiro enigma, mas, segundo constam das histórias orais, essas malignas relíquias de Judas deverão cair em mãos de alguém dignamente escolhido pelos anjos e guardiões de Deus. Parece algo apocalíptico, embora nas Santas Escrituras não haja indício a respeito disso. JOAQUIM ALONSO (põe-se de joelhos no altar e sopra o pequeno orifício da fechadura) Dê a mim a chave, senhor Dirceu. Vamos abrir a portinhola do altar. Bolsos da calça de Dirceu. Dirceu enfia a mãos em um dos bolsos e tira a pequena chave. Joaquim Alonso olha para a chave e estende a mão. Dirceu aproxima-se mais um pouco do altar, põe-se de joelhos e coloca a chave no orifício da fechadura. Mão e dedos de Dirceu rodando a pequena chave. Pequena porta do altar aberta. Dirceu e Joaquim Alonso 612 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior disputam o espaço com as cabeças para ver o interior do altar. Dirceu enfia as mãos dentro do altar, apalpa o chão e não consegue tocar nada. Joaquim Alonso investiga também a superfície e não vê nada. Joaquim Alonso e Dirceu afastam-se do altar, olham e para o outro e dão risadas. DIRCEU Padre Rocha contou para mim que dois ou três anos após a morte do padre Fernandez, apareceram uns padres espanhóis, cá, na capela e levaram a ossada dele para a Espanha, será senão levaram também as moedas do traidor? JOAQUIM ALONSO Não, não levaram. O velho padre contara isso para mim, também. Segundo ele os padres espanhóis levaram somente a ossada do padre Fernandez, sem perquirir ou tocar sobre o assunto das moedas do traidor. DIRCEU Então o mistério encerra cá, neste exato momento... JOAQUIM ALONSO Eu bem desconfiava que o padre Fernandez, ao fazer a viasacra pelas igrejas de Vila Rica, depositou as relíquias em algum canto de uma das igrejas. Tentei mapeá-las, portanto, o meu velho professor de retórica não fez parte da comitiva. Segundo ele, o padre Fernandez escolheu por critério próprio os padres que o seguiriam. É sabido e confirmado de que todos os padres que o acompanharam na via-sacra morreram. Subentende-se que ele escolheu somente os padres mais velhos para segui-lo. Vós mercê está certo, Dirceu, o mistério encerra cá, neste exato momento... DIRCEU E a capela de Sant'Ana? Essa capela foi escolhida por ele para manter a guarda da imagem do anjo. Será se... 613 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO Verifiquei não somente essa igreja, como outras três suspeitas. Não há pista alguma. A minha esperança era encontrar "monetae sicarii" nesta capela, conforme a minha pesquisa apontava... DIRCEU Vós mercê vai continuar com a pesquisa, padre Joaquim Alonso? JOAQUIM ALONSO Não, vou tomar outro rumo. Prometi a Deus que se essa missão fracassasse, eu deixaria de lado a minha vingança com a Espanha e perdoaria a família espanhola destruidora de minha família. Portinhola do altar aberto. Olhos tristes de Joaquim Alonso encarando para a portinhola do altar aberto. Dirceu abaixa-se a cabeça e sai da capela da fazenda, andando lentamente. Joaquim Alonso ajoelha-se perto da portinhola do altar, procura ver se encontra dentro do altar alguma coisa. Dirceu sai da capela da fazenda, pega o seu cavalo e sai galopando pela estrada. DIRCEU (VOICE OVER) Respirei aliviado quando o padre Joaquim Alonso comentou sobre o fim de sua vingança. Eu não queria mais pensar naquelas relíquias ou no mistério que em tempos e outros alguém comentava. Encararia a partir daquele dia que tudo aquilo não passasse de um mito. Saí da capela e deixei Joaquim Alonso vasculhando toda a parte interna do altar para garantir a certeza de que a missão dele encerrava ali e que realmente não havia nada de concreto em todos os seus anos de pesquisa. Cavalguei, pois, direto para a fazenda. CORTA PARA 614 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Fazenda Ribeirão do Meio. Tarde. Varanda do casarão. Tamboretes. Dirceu e Joaquim Alonso estão sentados nos tamboretes conversando. Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro aparecem no quintal de frente da fazenda montados em seus cavalos. Cirilo, Hipólito Miliquito e Ambrósio saem da varanda, colocam os seus chapéus nas cabeças e vão para o quintal encontrarem com Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro. Joaquim Alonso olha para Dirceu com um olhar meio triste. JOAQUIM ALONSO Desde a semana passada, quando constatamos a não existência do tal mistério, deu-me na cabeça a loucura de fazer uma longa viagem... Como vós mercê sabe, senhor Dirceu, só tenho o dia e a noite que Deus me deu e mais nada. Eu estou precisando de um cavalo emprestado para a viagem. Se vós mercê puder emprestar-me, ficarei agradecido e prometo em nome do Senhor Jesus Cristo, voltar assim que resolver algumas coisas... DIRCEU Vossa senhoria é um homem livre, padre. Livre para cumprir com as suas missões e a agir conforme o seu livre-arbítrio. Ora padre Joaquim Alonso, não só emprestarei o cavalo, como também darei para vós mercê algumas moedas... JOAQUIM ALONSO As moedas do vil traidor? DIRCEU Se eu tivesse encontrado as moedas do traidor, padre, eu não deixaria vós mercê levá-las para a Espanha... JOAQUIM ALONSO Tenho orado muito. Deus dará a mim novas missões... Eu preciso viajar para certificar-me disso... Quanto às moedas, vós mercê pode ficar tranquilo que eu tenho, cá, algumas economias... 615 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU E quando quiseres voltar, padre Joaquim Alonso, a casa e a família estaremos todos de braços abertos para recebê-lo... JOAQUIM ALONSO Sei disso. Partirei amanhã e creio que jamais esquecerei dessa família... Deus a cada dia abençoará mais a vós mercê e toda essa gente de cá, não só da fazenda, mas de toda a região... Madrugada. Estrada. Joaquim Alonso cavalgando pela estrada com apetrechos de viagens na garupa do cavalo. DIRCEU (OFF) Somente eu sabia que Joaquim Alonso era um padre, porquanto, o pessoal da fazenda chamava-o de mestre ou “magister”, designação criada por ele mesmo aos seus discipuli agri. Madrugada, do dia seguinte o homem que acabava de virar padre, mediante as suas histórias deixou a fazenda Ribeirão do Meio... SEQUÊNCIA 215 - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CHIQUEIRO DAS OVELHAS. Tarde. Chiqueiro das ovelhas. Grande rebanho pastando na mangueira. Dirceu aproxima-se da cerca do chiqueiro das ovelhas e fica reparando as ovelhas com as suas crias. Trácio, Alceu e Endimião cuidam das ovelhas. Trácio, pendurado em uma cerca, toca algumas ovelhas com uma pequena haste de madeira. Trácio olha para o outro lado da cerca e vê Dirceu. Trácio pula-se da cerca e corre para a direção de Dirceu. Ele aproxima-se de Dirceu, soltando de uma vez a respiração. TRÁCIO Inhozinho não sabe o que tenho para contar... 616 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU O quê? TRÁCIO A sinhá Marília está na fazenda dela... DIRCEU Como? Vós mercês a viram na fonte? TRÁCIO Na fonte, não. A pretinha veio ver Alceu e disse que a sinhá Marília quer ver o sinhô, o recado ficou para Alceu dá para sinhozinho... Dirceu afasta-se de Trácio beirando a cerca do chiqueiro até encontrar com Alceu. Alceu, preocupado com as cabras, não percebe a presença de Dirceu. DIRCEU Olá, Alceu. Cá estou para receber um recado da boca de vós mercê... Eu soube que até a Rosa teve por cá... ALCEU Nnhô Dirceu num instante sabe de tudo... Rosa teve cá, mesmo e veio trazer um recado para nhozinho... ALCEU (dá um sinal para Endimião vigiar as cabras e olha para Dirceu) Rosa pediu para falar para sinhozinho que a sinhá Marília está na fazenda e quer falar com o sinhô. Ela disse que é sobre um plano. Sinhozinho sabe, diz ela. 617 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (ar de felicidade) Meu Deus, será se as coisas melhoraram? Ultimamente parecia que tudo estava contra mim... DIRCEU Eu creio que a dona Marília resolveu acreditar em mim, Alceu. A dona Marília me ama, Alceu... Eu vou ao encontro dela, mesmo que seja o fim de tudo... Cá, sinto o velho coração me dizer que entre Marília e mim haverá um novo começo... CAPÍTULO 13 SEQUÊNCIAS 216-230 Personagens deste capítulo: Escravos da fazenda de dom Manuel Dirceu Sales Amarílis Marília Zé da Viúva Raimundo Sobreiro Sebastiana Miliquito Eulina Antenor Vivêncio Terêncio Tibúrcio e vários homens da região Pessoas de Vila Rica Padre Rocha (morto) Homens com roupas brancas (enterro) Padres Jovem seminarista Carpindeiras Crianças (praça “amarra cavalos”) 618 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Pessoas curiosas de Vila Rica (transeuntes) Cocheiro (carruagem) Vizinhos de Marília Quitéria Inácia Amarílis Sales Hipólito Cirilo Ambrósio FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 189 2. Sequência 182 (adaptada à fantasia de Dirceu) 3. Sequência 94 4. Sequência 175. SEQUÊNCIA 216 – EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DOM MANUEL. VÁRIOS. Fazenda de dom Manuel. Escravos trabalhando no quintal da fazenda de dom Manuel. Varanda da casa. Dirceu aproxima-se da varanda da casa. Sales e Amarílis levantam-se das poltronas, saem da varanda e vão ao encontro de Dirceu. Sales e Amarílis recebem Dirceu no quintal da fazenda de dom Manuel, cumprimentando-o alegremente. Dirceu pulase do cavalo. UM DOS ESCRAVOS pega o cavalo de Dirceu pela rédea e leva-o para o fundo do quintal da fazenda. Alameda do quintal. Amarílis conduz Sales e Dirceu para debaixo da alameda do quintal. Poltronas da varanda. ALGUNS ESCRAVOS DA FAZENDA pegam as poltronas da varanda da casa e as levam para a alameda do quintal. OS ESCRAVOS DA FAZENDA afastam-se do quintal de frente da fazenda, indo para os fundos. Poltronas debaixo da alameda. Amarílis, Sales e Dirceu sentam-se nas poltronas, debaixo da alameda. 619 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Ao chegar à fazenda de Sales, logo fui atendido por Sales e a esposa dele, quais saíram da varanda e foram até o quintal. Eu pulei do meu cavalo e, juntamente com o casal, rumamos para uma enorme alameda. Os empregados da fazenda colocaram as poltronas da varanda debaixo da alameda. Sales, a esposa dele e eu sentamos nas poltronas e nos preparamos para conversar. Eu não conhecia pessoalmente a irmã de Marília, Amarílis. Ao conhecê-la, não sei porque, ela causara a mim uma excelente impressão. Sales apresentou Amarílis para mim e logo ela falou de forma despachada. CORTA PARA AMARILIS Vós mercê é o senhor Dirceu, a quem tanto Marília e a Rosa falam? Estou encantanda em conhecê-lo pessoalmente... DIRCEU Reconheça também, minha senhora, que eu estou também encantado em conhecê-la. Sales fez boa escolha ao casar-se com a senhora... SALES O destino, Dirceu, o destino que fez-me a escolha... Como já disse anteriormente, conhecemos no dia do nosso casamento, no altar da igreja... AMARÍLIS (Amarílis sorri, ajeita os longos cabelos a escorrer-lhe pelas costas) Está calor e foi uma escolha minha de ficarmos por cá, debaixo desta alameda. Se os senhores quiserem, podemos conversar na varanda ou dentro da casa... 620 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES Cá está um pouco fresco... DIRCEU A minha visita é breve. Eu passeava por estas bandas e resolvi chegar até cá... AMARILIS A tua visita muito nos alegra senhor Dirceu... Eu sempre quis conhecê-lo, pessoalmente... Alameda. Dirceu, Amarílis e Sales sentados nas poltronas conversando animadamente. DIRCEU (VOICE OVER) Entre um caso e outro, ao suscitarmos sobre fazendas, cidades, vilas e povoados da região, Amarílis, não sei com qual intenção, levantou-se da poltrona, ajeitou o decote do vestido e consultou-me. CORTA PARA Alameda. Amarílis levanta-se da poltrona e ao ajeita o decote do vestido, olha para Dirceu. AMARILIS Se o senhor não importa, gostaria de fazer-lhe uma pergunta. DIRCEU Pois não, dona Amarílis! Estou todo a respondê-la... AMARILIS É verdade que o senhor namora uma moça aqui da região? 621 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Se a senhora quer uma resposta sensata, afirmar-lhe-ei, desde já, que até o devido momento não penso em namorar ou casar com rapariga alguma desta região... AMARÍLIS (olha para Sales e solta um grito afinado) Sales! SALES (um pouco desajeitado, olha para Amarílis, ri sem graça e depois olha para Dirceu seriamente) Não estas a mentir, senhor Dirceu? DIRCEU Eu?! SALES Sim. Numa bela tarde presenciei vós mercê passar naquela estrada frente desta fazenda com uma moça. DIRCEU Com duas moças, duas irmãs, filhas do meu amigo Antenor, por quê, Sales? SALES (um pouco confuso) Por quê?! Ah, sim, isso mesmo e... DIRCEU (cortando Sales) Vós mercê pensou que uma das raparigas fosse minha amante, namorada ou noiva? Não, senhor Sales, creio equivocar-se. CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 622 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Flash back – pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir, sobreposto à narração em voice over por Dirceu. SEQUÊNCIA 189 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Estrada da capoeira. Cavalos cavalgando pela estrada da capoeira. Fazenda de dom Manuel. Cancela da fazenda de dom Manuel. Sales está juntamente com alguns de seus homens negros na cancela da fazenda de dom Manuel. Sales vê Dirceu carregando a filha mais velha de Antenor. Sales fica um pouco sem graça. Dirceu cumprimenta Sales, tirando o chapéu. O cavalo de Dirceu tropeça. A filha mais velha de Antenor agarra a cintura de Dirceu. Sales vê quando a filha mais velha de Antenor agarra na cintura de Dirceu. Curva. Os dois cavalos se desaparecem na curva. Anoitece. DIRCEU (VOICE OVER) As duas raparigas são filhas de um sitiante amigo, morador próximo à minha fazenda. Naquele dia elas prestavam favores à mãe, quando na volta o cavalo delas empacou na estrada. O bicho não é de garupa e as coitadas enfrentavam a areia pesada ao arrastá-lo pela estrada. Eu cavalgava pela capoeira quando as encontrei em apuros e resolvi ajudá-las. Certo de que o meu cavalo as entranharia, coloquei a rapariga mais velha na minha garupa e a mais jovem para tocar o cavalo delas. Creio que o senhor lembra, era tarde, bem tarde e a noite não demoraria a cair. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 217 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA. FAZENDA DE DOM MANUEL. ALAMEDA. 623 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior AMARÍLIS (horrorizada) O pai das moças, não o obrigou a casá-lo com a filha mais velha? DIRCEU Não, o pai delas, o senhor Antenor é um ex-padre e creio confiar em mim... Uma das janelas da lateral da casa. Marília aparece numa das janelas laterais da casa, como se quisesse ver Dirceu de longe. Dirceu vê Marília na janela da lateral da casa. Ele finge não vê-la. Marília faz um sinal de "psiu" com os dedos nos lábios, como se dissesse para Dirceu "me aguarde!" e um toque de mão suspensa no ar significando "fique calmo!". Ela desaparece da janela lateral da casa. Outra janela, frente da casa, na varanda. Marília aparece na outra janela, frente da casa, na varanda. Dirceu olha para Marília e levanta-se de ímpeto. Ele olha para a janela da casa DIRCEU Aquela que está na janela é a dona Marília? AMARILIS Sim, é a dona Marília. Há uma série de dias, ela está calada, quase sem querer conversar com ninguém... DIRCEU Por quê? SALES (abaixa a cabeça) Ela quer fazer cumprir a promessa do pai, pedindo a mim e a irmã, dia e noite, para providenciarmos o casamento dela com o italiano, a quem ela é prometida. DIRCEU 624 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Por que vós mercês não cumprem o desejo da rapariga? SALES O rapaz escreveu nos exigindo uma série de coisas para casarse com a dona Marília... DIRCEU Por que não fazem o gosto do mancebo? SALES Ele nos exige uma série de coisas... DIRCEU (olha para Amarílis e para Sales) Ué! É só cumprir essa série de coisas. Ora, vós mercês sabem que trato é trato, cada um deve cumprir conforme a combinação feita. AMARILIS Mas o trato não seria esse; o trato seria ele vir ao Brasil, casarse com Marília e levá-la para a Itália... DIRCEU (tom irônico) Vossemecês estão querendo se verem livre da moça, mandando-a para outro país? Se querem ficar livre da rapariga é só reverem se a promessa foi lavrada e assinada por testemunhas. Desta forma, cada um deva arcar com o seu trato. AMARÍLIS (olha para Sales e em seguida para Dirceu, impaciente) Claro que não é nada disso... 625 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Então se é assim, nem Marília nem a família dela é obrigada a cumprir promessa alguma... AMARÍLIS (ainda mais impaciente) A promessa foi feita pelo finado senhor, meu pai. E até onde sabemos, o finado senhor meu pai fazia gosto de ver Marília casada com o tal rapaz da Itália... DIRCEU Fazia, enquanto vivo, mas... SALES Mas, o quê? Se está morto, devemos preservar-lhe a memória... DIRCEU (tranquilo, passando as mãos na aba do chapéu) Nada que uma boa missa não resolva. Sim, é isto. Peçam a um padre que celebre uma missa de desagravo a uma promessa impossível de cumprir... AMARÍLIS (põe-se de pé) Mas isso é possível? DIRCEU Claro, caso contrário, façam o que tenham de fazer e case a rapariga o mais rápido possível com o italiano, romano, sei lá o que... Sales levanta o braço, pedindo a palavra. Dirceu e Amarílis olham para ele. Janela da frente da casa, na varanda. Marília se recolhe para dentro da casa. 626 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES Quando viajamos juntos, vós mercê, Dirceu, referiu a uma série de exigências que os rapazes italianos faziam para que eles casassem com as moças da nossa colônia... DIRCEU Sim, eles acreditam que as moças da colônia são muitas e que os pais temem de elas ficarem solteiras. Aproveitando-se disso, eles oferecem casar-se com elas ganhando o direito legal nas partilhas dos bens da família. AMARÍLIS Logo que é assim iremos mostrar aos jovens italianos que a situação não é bem essa. A minha irmã não está a ficar solteira e nem tampouco necessitando de homens estrangeiros para casar-se... Além disso, eles blefam quando rezam que na nossa colônia não há tantos homens. Há sim, muitos e bravos, capazes de pô-los a correr daqui se eles estiverem exigindo muito. Dirceu, Sales e a própria Amarílis dão risadas. Uma das janelas laterais da casa. Marília aparece em uma das janelas laterais da casa. Dirceu olha para Marília e dá um sinal com a mão. Marília se recolhe novamente para dentro da casa. Alameda. Minutos depois Marília aparece na alameda e cumprimenta Dirceu friamente. UM ESCRAVO DA FAZENDA traz uma poltrona para Marília e coloca-a perto de Amarílis. Marília senta-se na poltrona. Amarílis prossegue a conversa. AMARILIS E Dirceu, não é da colônia? Ele casa com a minha irmã, sem que ela tenha de pensar em estrangeiros... MARÍLIA Eu casar-me com esse mancebo? Nunca! Vocês mesmos disseram que eu haveria de cumprir a promessa do meu falecido pai. Quero, portanto, que o cunhado venda esta 627 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior fazenda e pague com a minha parte da herança a viagem do rapaz da Itália ao Brasil. Quero casar o mais rápido possível e fazer valer a promessa do meu finado pai. DIRCEU (fala por solilóquio) Marília é danada, ela quer jogar um pouco mais devido o plano preparado há tempos para o cunhado e a irmã. DIRCEU (olha para Sales e para Amarílis) Se por acaso o amigo Sales e a digníssima esposa quiserem vender a fazenda para o cumprimento do desejo da rapariga, posso comprá-la com moedas, diamantes ou pepitas de ouro... SALES (olha assustado para Amarílis) Mas a fazenda? Nós temos tantos planos, cá... MARÍLIA (olha para Sales e Amarílis e, em seguida, pisca para Dirceu) Então vós mercê, cunhado Sales, pode se desfazer daquele enorme diamante que herdara do seu tio-avô, pagar para mim a parte da herança e lucrar está fazenda. SALES (olha para Dirceu e para Amarílis, confuso. Põe-se de pé, olha para o quintal da fazenda e senta-se de novo na poltrona) Quem disse que tenho ou herdei diamante de tio-avô, Marília? MARÍLIA Vós mercê mesmo disse, Sales. A minha irmã é eu somos testemunhas de quando vós mercê não somente nos mostrou a pedra de diamante, como também nos falou sobre os seus planos em trabalhar no comércio... 628 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior AMARÍLIS (com as faces coradas de vergonha, olha para Sales e depois para Marília) Eu?! Eu, Marília, nunca ouvi o Sales falar sobre qualquer diamante. Vós mercê deve ter sonhado e está um pouco confusa.. Marília olha para Amarílis furiosamente. Dirceu ajeita-se na poltrona e olha para Sales. DIRCEU Ora, e por falar em diamante, por que vós mercê não vende aquele que dei de presente ao seu filho, Sales? AMARÍLIS (olha para Dirceu surpresa) Vós mercê deu um diamante de presente ao meu filho? DIRCEU Sim, creio que Sales não comentou devido ao valor da pedra. É sempre perigoso alguém da vila saber que... SALES (tosse e olha para Dirceu um pouco animado) Isso mesmo. Dirceu deu de presente ao pequeno um valioso diamante, só que não pude mostrar a vós mercês devido ao medo de que algum salteador soubesse e... MARÍLIA Então há dois diamantes... SALES O diamante é o próprio diamante, dona Marília... MARÍLIA O que vós mercê nos mostrou e que disse que iria negociá-lo? 629 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior AMARÍLIS (olha e pisca para Sales) Eu não vi nenhum diamante... DIRCEU (olha para Sales e Amarílis) Se quiseres vender o diamante, farei gosto em comprá-lo e têlo. Desta forma o casamento de dona Marília com o tal mancebo poderá ser realizado... Sales olha para Amarílis. Marília olha para Sales e Amarílis, toda feliz. MARÍLIA Está aí, com o dinheiro da venda do diamante traremos da Itália aquele a quem é prometido a mim... SALES Podemos pensar nesta possibilidade... AMARÍLIS (bate o pé firme no chão) Mas se o diamante pertence ao nosso filho, não acho justo desfazer-se dele. Trata-se de um valioso presente... DIRCEU (põe-se de pé) Perdoem a mim, senhora Amarílis e dona Marília. Perdoe a mim senhor Sales. Sei que intrometi em assuntos alheios, de família. Eu, acreditem em mim ou não, eu só quis ajudá-los. Marília deve agir conforme a sua consciência e quem somos nós para interferir em seus assuntos amorosos. Basta o que dom Manuel reservou a ela, qual, estamos vendo, algo gerador de grande conflito. (coloca o chapéu na cabeça) Se me permitem, tenho que ir para casa cuidar dos meus... 630 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu anda pelo quintal da fazenda. Cavalo de Dirceu no fundo do quintal da fazenda. UM DOS ESCRAVOS DA FAZENDA corre e pega o cavalo para Dirceu. Dirceu recebe o cavalo e monta. Marília põese de pé. DIRCEU (olha para Marília com olhos devoradores) Se a moça desistir de trazer o romano para casar-se, lembre que estou em minha fazenda a esperá-la. Não tenho lá muitas riquezas, mas pelo menos posso oferecer-lhe tranquilidade para a vida inteira. Amarílis e Sales põem-se de pé e olham para Dirceu e Marília. Marília, Amarílis e Sales de pé, olham para Dirceu. Cavalo de Dirceu. Dirceu afrouxa a rédea do cavalo e sai cavalgando pelo quintal de frente até a cancela da fazenda. UM DOS ESCRAVOS DA FAZENDA abre a cancela. ESTRADA. DIRCEU CAVALGA PELA SEQUÊNCIA 218 - INT./DIA CHUVOSO. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. COZINHA DA FAZENDA. Fazenda Ribeirão do Meio. Dia chuvoso. Janela aberta da cozinha do casarão da fazenda. Cozinha do casarão da fazenda. Mesa da cozinha do casarão da fazenda. Dirceu, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão sentados à mesa da cozinha do casarão da fazenda tomando café. Sebastiana vai até a janela e espia a chuva caindo lá fora. SEBASTIANA Que belezura é a primavera, logo os campos vão estar floridos de flores. Esta época é a da fartura... 631 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Sebastiana está certa, mal chega a primavera e o céu começa a desatar chuva. Esta chuva é mais inofensiva do ano, ela molha a terra e faz a semente que desde o outro ano estava adormecida, germinar... RAIMUNDO SOBREIRO É verdade, até dezembro os nossos campos estão cobertos de rosas, girassóis, lágrimas-de-cristo, boca-de-leão, orquídeas, damas-da-noite e tantas outras florzinhas que nos despertam de uma hora a outra para a vida. ZÉ DA VIÚVA Faz gosto ver o pasto, o capim verde, molhado e farto. O gado e as ovelhas gordas pastando pelas campinas. Rios derramando de cheios e pássaros voando feito anjos no céu, de um lado para o outro... Todos se silenciam na mesa de café da cozinha da fazenda. Dirceu leva o copo até a boca, toma um golinho do café, coloca o copo na mesa e sorri ao se lembrar da ópera a que ele assistiu na Casa da Ópera, em Vila Rica. CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA NOTA: as ações são adaptadas à fantasia de Dirceu. SEQUÊNCIA 182 – INT./EXT./NOITE. VILA RICA. CASA DA ÓPERA. Vila Rica. Noite. A porta da Casa da Ópera abre-se e todos os espectadores entram educamente. Sala da Casa da Ópera. Luzes de lampiões acesos. Espectadores sentados nas cadeiras ansiosos para o início do espetáculo. Dirceu está sentado na cadeira entre os espectadores. Orquestra pronta. Palco. Atores entram-se no palco 632 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior encenando a música de Vivaldi, tocada pela maravilhosa orquestra: Adargio-largo-Allegro. Corpo de baile dos atores. Marília aparece dançando no corpo de baile entre os atores. Público. Dirceu no meio do público põe-se de pé olhando bobamente para o palco. Atores saem do palco. Marília fica dançando sozinha no palco. Dirceu corre em direção ao palco. Marília dança no palco ao final da música. Dirceu sobe no palco e abraça Marília. Dirceu e Marília beijam-se, romanticamente. Fim da apresentação. Público de pé aplaude o grande espetáculo. Dirceu e Marília agradecem o público abrando e beijando-se. CORTA PARA SEQUÊNCIA 218.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA CHUVOSO. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. COZINHA DA FAZENDA. Todos estão silenciosos na cozinha, sentados à mesa, servindo-se do café. Dirceu corta o silêncio fazendo um comentário. DIRCEU Contemplo cada uma das quatro estações do ano e fico atônito ao imaginar em qual dessas estações da minha vida estaria a mágica capaz de fazer-me unir eternamente à mulher que eu amo... RAIMUNDO SOBREIRO A dona Marília? DIRCEU E não haverá outra, Raimundo Sobreiro... CHUVA FINA. CAMPOS COBERTOS DE FLORES SINGULARMENTE DA PRIMAVERA. 633 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 219 – INT. /EXT. NOITE CHUVOSA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. VARANDA DO CASARÃO. Fazenda Ribeirão do Meio. Madrugada chuvosa. Quarto de Dirceu. Dirceu está deitado na cama em seu quarto, dormindo. Porta do quarto de Dirceu do lado de fora. Miliquito e Eulina, com um pequeno candeeiro nas mãos, estão encostados na porta do quarto de Dirceu, do lado de fora. Miliquito bate na porta do quarto de Dirceu, do lado de fora. Dirceu, deitado na cama em seu quarto, acorda de súbito. Candeeiro nas mãos de Eulina ilumina o corredor do casarão. Miliquito bate na porta do quarto de Dirceu, do lado de fora. Cama de Dirceu. Dirceu pula da cama assustado e, enrolado com a coberta vai até a porta e abre-a. Miliquito e Eulina na porta do quarto do lado de fora. Eulina ergue o candeeiro. Dirceu franze as sombracelhas devido à luz do candeeiro. Dirceu, assustado, olha para Miliquito e Eulina. DIRCEU Aconteceu alguma coisa de urgente? A chuva causou algum dano a vós mercês ou a alguém da fazenda? MILIQUITO (olha para Eulina e depois para Dirceu) Inhô Antenor está na varanda querendo conversar com nhozinho... DIRCEU (assustado) O Antenor? Eta, será se aconteceu alguma coisa lá no sítio dele? Ele adiantou alguma coisa para vós mercês? Ele não é de aparecer por cá a essas horas da madrugada! Miliquito e Eulina dizem "não" com a cabeça. Porta do quarto. Miliquito e Eulina afastam-se da porta do quarto. Dirceu fecha a porta do quarto. Varanda do casarão. Poltronas. Antenor está sentado em uma das poltronas. Quarto de Dirceu. Dirceu olha para o espelho 634 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ajeitando a gola da camisa. Porta do quarto de Dirceu. Trocado de roupa, Dirceu abre a porta do quarto e sai andando pelo corredor semiescuro. Varanda do casarão. Antenor está sentado em das poltronas observando a chuva fina caindo no quintal da fazenda. Dirceu aparece na varanda do casarão. Antenor ao ver Dirceu põe-se de pé. Dirceu e Antenor cumprimentam-se com apertos de mãos. Dirceu senta-se em uma das poltronas. Antenor também se senta em seguida em uma das poltronas ao lado de Dirceu. ANTENOR Desculpe-me senhor Dirceu, sei que é bem cedo para incomodá-lo, mas nós viventes sabemos que as notícias ruins correm e, portanto, cá estou para repassar a vós mercê a notícia que recebemos nesta madrugada de Vila Rica... DIRCEU (esfrega os olhos e olha para Antenor demonstrando-se preocupado) Notícias ruins correm? Então qual é a notícia ruim vinda de Vila Rica que vós mercê tem para repassar a mim, Antenor? ANTENOR O padre Rocha, o padre Rocha que esteve cá e fez o casamento dos... DIRCEU O que aconteceu com o padre Rocha, Antenor? ANTENOR O padre Rocha morreu subitamente, ontem a noite em Vila Rica... DIRCEU O padre Rocha morreu? 635 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ANTENOR Ainda não preguei os olhos e, desde que eu soube da notícia estou preparando uma caravana de homens para sair depois do almoço. O enterro será a tarde, deste sábado, se vós mercê interessar ir conosco. DIRCEU Vou sim, Antenor. vou sim. Devo prestar as últimas homenagens ao bondoso pároco. Pegaremos a estrada da serra do Ita-corumi para chegarmos a tempo de assistir ao enterro do padre Rocha. SEQUÊNCIA 220 – INT./EXT./MANHÃ. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. PEQUENO CEMITÉRIO DA IGREJA SÃO FRANCISCO DE ASSIS. PRAÇA AMARRA-CAVALOS. Vila Rica. Ruas de Vila Rica. Movimento de pessoas nas ruas de Vila Rica. Antenor, Vivêncio, Dirceu, Terêncio, Tibúrcio e outros homens da região cavalgam devagar pelas ruas de Vila Rica. Igreja de São Francisco de Assis. PESSOAS na porta de frente da igreja de São Francisco de Assis. Pessoas entram e saem da igreja de São Francisco de Assis. Interior da igreja. Altar principal da igreja. Caixão aberto com o padre Rocha, próximo ao principal altar da igreja. Dirceu e Antenor aproximam-se do caixão do padre Rocha. Dirceu olha para o corpo do padre Rocha e faz o sinal da cruz. CORTA PARA Repicar de sinos de algumas igrejas de Vila Rica. ALGUNS HOMENS VESTIDOS COM ROUPAS BRANCAS aproximam-se do caixão do padre Rocha, fecham-no se preparam para pegá-lo. Caixão do padre Rocha sendo carregado pelos homens vestidos com roupas brancas. Pessoas acompanham os homens vestidos com roupas brancas carregando o caixão de padre Rocha. Porta da igreja de São Francisco de 636 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Assis. HOMENS VESTIDOS COM ROUPAS BRANCAS carregando o caixão do padre Rocha e com pessoas seguindo-os por trás, saem da porta da igreja de São Francisco de Assis. CORTA PARA Pequeno cemitério da Igreja de São Francisco de Assis. O enterro do padre Rocha chega ao cemitério da igreja de São Francisco de Assis. AS PESSOAS se espalham pelos cantos do pequeno cemitério da igreja. Túmulo de dom Manuel. Marília está encostada no túmulo de dom Manuel. Ela está triste e pensativa, reparando todo o movimento do enterro do padre Rocha. Os homens vestidos com roupas brancas colocam o caixão do padre Rocha no chão, ao lado do túmulo aberto, onde ele vai ser sepultado. APARECEM ALGUNS PADRES vestidos com batinas pretas e rodeiam o caixão do padre Rocha. UM DOS PADRES faz a celebração do enterro. UM DOS PADRES Creio em um só DEUS, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos céus. Ó, Senhor, Nosso Deus, receba Senhor a alma do nosso irmão Antônio Malveira Rocha, o padre Rocha, a quem o Senhor confiou os ofícios de sua santa igreja. Cá, Senhor, depositamos o corpo do nosso irmão para cumprir a Tua promessa na criação do mundo, em Gênesis 3:19 "porquanto és pó e em pó te tornarás". OUTRO UM DOS PADRES Irmãos vamos rezar a oração que o Senhor Deus nos ensinou através do seu Filho e Nosso Salvador, Jesus Cristo: Pater 637 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior noster, qui es in caelis, sanctificétur nomen tuum, Advéniat regnum tuum, Fiat volúntas tua, Sicut in caelo, et in terra. PESSOAS QUE ESTÃO NO ENTERRO Panem nostrum quotidiánum da nobis hódie. Et dimítte nobis débita nostra, Sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris. Et ne nos indúcas in tentatiónem.Sed líbera nos a malo. Amem. UM JOVEM SEMINARISTA traz uma caldeira de água benta e estende-a a um dos padres. O UM DOS PADRES faz a aspersão com a água benta da caldeira, no caixão do Padre Rocha. Os homens vestidos de brancos pegam o caixão do padre Rocha e leva-o para o sepultamento. CORTA PARA Túmulo de dom Manuel. Marília está encostada no túmulo de dom Manuel. Dirceu vê Marília encostada no túmulo de dom Manuel. Ele vai ao encontro de Marília. Marília olha para Dirceu um pouco surpresa. Marília e Dirceu olham para a direção do sepultamento do padre Rocha. Mãos de Dirceu deslizam-se e tocam nas mãos de Marília. Dirceu e Marília se entreolham, mas fogem os olhares em seguida. Fim do sepultamento do padre Rocha. Túmulo do padre Rocha fechado. ALGUMAS MULHERES vestidas de roupas pretas colocam flores e coroas de flores no túmulo do padre Rocha. DIRCEU (VOICE OVER) Avistei Marília próxima ao túmulo do pai sentindo-se triste e desamparada. Há tempos nós dois, a sós, não trocávamos palavras. Aproximei-me dela, medi palavras para iniciar um diálogo, mas optei pelo silêncio, deixando, aos poucos que as nossas mãos se tocassem, nossos olhos falassem e nossas bocas murmurassem à falta que um fazia ao outro. Ficamos ali, frente ao túmulo de dom Manuel assistindo ao sepultamento do amigo e santo padre. Após a cerimônia, atrevi dizer-lhe uma pequena e sóbria frase. 638 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ALGUMAS PESSOAS estão saindo do cemitério. Dirceu e Marília se entreolham fixamente. DIRCEU Jaz, aqui, hoje, neste sábado, o padre que eu esperava celebrar o nosso casamento... MARÍLIA (sorri sobriamente, tocando as mãos nas mãos de Dirceu) Ainda somos namorados? DIRCEU (Dirceu beija as mãos de Marília) Eternos namorados. CORTA RÁPIDO PARA Pequeno cemitério da igreja de São Francisco. Túmulo do padre Rocha. Carpindeiras em suas lamentações fúnebres e algumas irmandades entoando hinos para homenagear o padre Rocha. PESSOAS DE VILA RICA manifestavam de um jeito ou outro uma forma singela de despedir-se do padre Rocha. CORTA PARA MARÍLIA (olha para um lado e para o outro e depois olha para Dirceu) Fujamos deste lugar triste, onde o destino marca o final da vida e procuremos um lugar onde ele marca o início. DIRCEU (sorri esperançoso. Toca carinhosamente no queixo de Marília) Este lugar a que pretendes que fujamos é para sempre, Marília? 639 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Sim, para sempre! Não pensas, senhor Dirceu, que eu esteja brincando... DIRCEU Por que não procuremos um padre e marquemos o nosso casamento, Marília. MARÍLIA Se pareces louco, serei mais louca ainda, Dirceu. Subamos, pois, no alto de uma montanha e confessamos a Deus o nosso amor, pedindo a Ele a bênção de nossa união... DIRCEU Se quiseres, Marília, nós podemos fazer isso agora mesmo. MARÍLIA Vamos sair daqui. Ainda que não vamos hoje ao alto de uma montanha, pelo menos vamos para um lugar tranquilo onde podemos conversar e planejar as nossas vidas... CORTA PARA SEQUÊNCIA 221 – EXT./DIA. VILA RICA. PRAÇA AMARRACAVALOS. Praça "Amarra-cavalos”. Alguns cavalos amarrados nos postes ao redor da praça "Amarra-cavalos". Crianças correm brincando de um lado para o outro. ´Marília e Dirceu sentados em um banco observam as crianças brincando na praça. MARÍLIA Esses dias mesmo eu era uma menina danada e sapeca a brincar também neste pátio. 640 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Engraçado, desde menino, quando eu vinha cá, em Vila Rica com o meu pai, os meus olhos brilhavam ao ver a molecada brincando. Eles corriam de um lado para o outro e deixavamme verve, bobo imaginando porque eles tanto corriam ... Um dia contei isso a um amigo da fazenda, Ernestino, e ele respondeu-me com os olhos bem arregalados, "Eles corriam por que? Com medo do romãozinho da mão varada?” MARÍLIA Isso nos dá a certeza de que a vida passa tão rápida a ponto de mudar tudo de um tempo ao outro. Se não fossem as lembranças guardadas na memória... Marília abraça Dirceu e beija-o romanticamente. Dirceu olha para um lado e outro da praça "Amarra-cavalos" e, em seguida, ataca Marília aos beijos e abraços. PESSOAS que passam pela praça a pé ou a cavalo vêem Marília e Dirceu beijando-se. Marília pega firmemente na mão de Dirceu. MARÍLIA Venha comigo, estou sozinha em casa e não quero perder a chance de tê-lo comigo por todo o resto desta tarde... DIRCEU Não iremos escalar uma montanha, dona Marília? MARÍLIA O tempo promete brotar chuva. Depois escalaremos uma e confessaremos os nossos pecados a Deus. DIRCEU Mas vós mercê não disse que lá confessaríamos a Deus o nosso amor? 641 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Sim, mas se o amor for pecado, conforme demonstrou-nos a humanidade, pecaremos ainda hoje. Procure a chácara de Tônico Borba e deixe o seu cavalo no pasto de aluguel. Na chácara do Tônico Borba tem lugares para guardar todos os apetrechos dos animais, de quem os colocam lá. Vá, faça isso e volte e fique comigo e tenha tudo de mim durante esta tarde e durante toda a noite e madrugada... DIRCEU Farei tudo conforme a sinhazinha está pedindo... MARÍLIA Vou para casa e aguardo lá por vós mercê, ansiosa... DIRCEU Tudo bem, Marília. Vou avisar ao pessoal da caravana que não me retornarei hoje para a minha fazenda, com eles, deixarei o cavalo na chácara do Tônico e procurarei por ti em tua casa... SEQUÊNCIA 222– INT./DIA. VILA RICA. CASA DE DOM MANUEL. VÁRIOS. Casa de dom Manuel. Grande relógio na sala de visita da casa de dom Manuel. Sala de visitas da casa de dom Manuel. Marília divinamente bem vestida aparece na sala de visita da casa de dom Manuel. Janelas abertas da sala da casa de dom Manuel. Marília vai até uma das janelas da sala da casa de dom Manuel e espia o lado de fora. CORTA PARA Ruas próximas à casa de dom Manuel. Dirceu vem andando rápido pelas ruas próximas à casa de dom Manuel. Marília, em uma das janelas da sala da casa de dom Manuel sorri ao ver Dirceu. Portão da casa de dom Manuel. Dirceu encosta-se no portão da casa de dom Manuel. 642 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Marília aparece encantadora no portão da casa de dom Manuel e recebe Dirceu com abraços e beijos. Marília e Dirceu entram na casa de dom Manuel. Sala de jantar da casa de dom Manuel. Grande mesa com bules e vasilhas cheias de quitutes. Dirceu e Marília estão na grande mesa tomando café e comendo quitutes. CORTA PARA Noite. Ruas e praças de Vila Rica. Dirceu e Marília estão andando de mãos dadas pelas ruas e praças de Vila Rica. Janelas abertas de algumas casas. MULHERES nas janelas abertas de algumas casas observam Marília e Dirceu passeando pela cidade. Chafariz principal de Vila Rica. Marília e Dirceu aproximam-se do chafariz. Dirceu molha as mãos e passa no rosto de Marília. Marília passa a língua nas mãos molhadas de Dirceu. Marília e Dirceu dão risadas. SEQUÊNCIA 223 – INT./ NOITE/DIA. CASA DE DOM MANUEL. QUARTO DE CASAL. Casa de dom Manuel. Bonito quarto de casal. Candeeiro aceso ao lado de uma cama de casal. Dirceu está despido, deitado na cama. Marília se despe e deita ao lado dele. Eles amam-se intensamente. Candeeiro apaga-se. Amanhece. Janelas do quarto de casal. Pequenos raios do sol entram pelas frestas das janelas do quarto de casal. Dirceu acorda, olha para Marília despida, enrolada em um lençol branco de linho. Ele sorri satisfeito. DIRCEU (VOICE OVER) Finalmente a vida proporcionava a Marília e a mim aquele maravilhoso presente, a ponto de eu concluir de que a noite não deveria ter fim aos eternos e sábios namorados. Marília havia confessado a mim que desde o dia anterior estava cansada de viver rodeada pelas pessoas da casa e como a irmã estava na fazenda com o marido, ela também mandou Vívila e Rosa para lá, dizendo que iria para Mariana passar uns dias 643 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior com a madrinha dela. Com a morte do padre Rocha, acabamos nos encontrando e fazendo planos de um futuro promissor... Pequenos raios do sol entram pelas frestas das janelas do quarto de casal. Dirceu senta-se na cama, encosta-se aos travesseiros e fica admirando com os olhos o corpo de Marília. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Haveria em todo o universo, mulher mais bonita, quanto à minha Marília? Cama. Marília dormindo na cama. Dirceu viaja pelo corpo de Marília usando as pontas dos dedos. Detalhes do corpo de Marília: cabelos grandes loiros e finos; as faces graciosas; os olhos belos e os seus dentes alvos ao sorrir dormindo. Dirceu fala por solilóquios. DIRCEU Queria Marília maiores graças que aquelas, cuja natureza deu a ela? (sorri e toca nos lábios de Marília, beijando-os) Poderia eu, Dirceu, aventurar nas minas mais perigosas, nas profundas entranhas da terra e mergulhar em caudalosos rios, em busca de riqueza? (sorri e toca nos seios de Marília, beijando-os) Não, eu não haveria de fazer isso, pois a maior riqueza já estava em minhas mãos, era Marília. (sorri olhando para todo o corpo de Marília) Assim, da mesma sorte em que vivia o rico gozando de suas imensas fortunas, eu, Dirceu, um simples e pobre fazendeiro, haveria de viver também gozando da minha riqueza, que, embora mortal, contemplaria, enquanto durasse. Marília era toda a minha riqueza... Dirceu continua deitado na cama reparando Marília dormir. Lábios de Marília com um sorriso. Os olhos de Marília abrem-se. Dirceu e Marília 644 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior permanecem calados olhando um para o outro sorrindo bobamente. Dirceu e Marília abraçam e beijam-se. MARÍLIA Viajarei com vós mercê hoje mesmo para a tua fazenda. Lá há um lugar para mim? DIRCEU Como? Queres morar comigo, na minha fazenda? MARÍLIA Sonhei estando contigo num lugar maravilhoso, corríamos entre as colinas verdejantes a nos confundir com as ovelhas, os rios e os pastos... DIRCEU Existiam lobos, no sonho? MARÍLIA Não! Creio que os deuses nos veneravam, porque o nosso plano havia dado certo! DIRCEU E isso significa o quê? MARÍLIA Que ninguém mais me afastará de vós mercê, Dirceu. A praga que vós mercê jogou em mim, pegou, Dirceu. Dirceu e Marília beijam-se ardentemente. DIRCEU Aquela praga que eu joguei em vós mercê em Mariana? Eu falei por falar... MARÍLIA Se falou por falar, se foi praga ou não, saiba que ela pegou em mim... 645 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Ela pegou em nós dois, Marília, pelo nosso bem, pelo bem do nosso amor. Marília beija Dirceu. Dirceu encosta-se no travesseiro. Marília encosta-se nos braços de Dirceu apoiados no travesseiro. CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir. SEQUÊNCIA 94 – EXT./DIA. VILA MARIANA. Laura olha para Dirceu, sorri e agarra Marília pelos braços para levá-la para casa. Dirceu aproxima-se de Marília e segura-a pelo outro braço um pouco nervoso. DIRCEU Quer saber de uma coisa, dona Marília? Eu sou do campo e não troco a vida da fazenda por nada deste mundo. Espero que a sinhazinha namore, case ou concubine com um rapazote da cidade e viva com ele todas as aventuras possíveis. Quem sabe, em minhas andanças pelo campo não encontrarei a minha verdadeira Marília? Deus haverá de mostrar-me outra, capaz de aceitar o meu amor e as minhas condições para nutri-lo. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 223.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA DE D. MANUEL. QUARTO DE CASAL. Quarto de casal. Cama de casal. Dirceu encostado no travesseiro ao lado de Marília. Ambos abraçam e beijam-se. 646 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Irás mesmo comigo para a minha fazenda, Marília? MARÍLIA Não pensarei duas vezes, Dirceu. Agora penso na minha felicidade plena de realizar o que quero... DIRCEU E quanto a Sales e Amarílis? MARÍLIA Um tem ao outro para se apoiarem. Se amam ou não, se são felizes ou não, o problema é deles. Eu conversei bastante com eles e pedi que eles me deixassem livre, caso contrário... DIRCEU Ameaçou o cunhado e a irmã em fazer alguma bobeira? MARÍLIA Sim, prometi que se eu não for de vós mercê, eu serei de todos os homens da cidade... DIRCEU Meu Deus,seria uma cortesã? Jogou pesado com eles, Marília... MARÍLIA E a praga que vós mercê jogou em mim, lembra? DIRCEU Sobre o concubinato? MARÍLIA Sim. Segundo vós mercês eu namoraria, casaria ou teria um concubinato com um rapazote da cidade e viver com ele todas as aventuras possíveis... 647 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU E pensas viver assim, Marília? MARÍLIA Não. Nós nos casaremos no cume de uma montanha, conforme a sentença santa contida no livro de Gêneses, o que Deus une o homem não separa... DIRCEU Seremos eternos, Marília... Dirceu se joga em cima do corpo de Marília. Eles abraçam e beijam-se. DIRCEU E juntos, Marília, seremos uma só carne... Janelas fechadas do quarto de casal. Sol intenso invade todas as frestas das janelas. SEQUÊNCIA 224 - EXT./INT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PEQUENO E GRACIOSO EMPÓRIO. Ruas de Vila Rica. Dirceu andando a cavalo pelas ruas de Vila Rica. Igreja Nossa Senhora do Pilar. Dirceu atravessa uma rua próxima à igreja Nossa Senhora do Pilar. Bonita carruagem com seis cavalos, estacionada na porta de um pequeno e gracioso empório. PESSOAS curiosamente aproximavam-se da carruagem para ver e apreciar-lhe o luxo. Dirceu frea o cavalo e fica observando a carruagem. Dirceu tira o chapéu, coça a cabeça e fala por solilóquio. DIRCEU Hora boa que apareceu esse carro. É carro de luxo, daqueles que só rodam em capitais dos estrangeiros. Se eu conseguir alugar ou comprar aquele carro, posso conduzir Marília tranquilamente para a minha fazenda... 648 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Árvore próxima ao gracioso empório onde a carruagem está estacionada. Dirceu pula-se do cavalo, segura-o pela rédea e vai até a uma árvore próxima ao empório onde a carruagem está estacionada. Ele amarra o cavalo no tronco da árvore. PESSOAS curiosamente aproximavam-se da carruagem para ver e apreciar-lhe o luxo. Dirceu também se aproxima da carruagem e aprecia-lhe o luxo. Portas do empório abertas. Ele dirige-se até as portas do empório e espia para o lado de dentro. Balcão do empório. ALGUNS HOMENS bebem vinhos e comem petiscos no balcão do empório. Dirceu entra no empório e olha para todos que ali estão presentes. DIRCEU Alguém de vós mercês poderiam me informar a quem pertence o carro estacionado na porta deste comércio? TODOS OS HOMENS presentes no empório olham para Dirceu. UM DOS HOMENS, loiro, gordo e baixo, de aproximadamente 30 anos, ergue as mãos e se apresenta para Dirceu. Ele é o COCHEIRO da carruagem estacionada na porta do comércio. COCHEIRO O carro pertence a mim, senhor, algum problema? DIRCEU O carro está a venda, é de uso pessoal ou de aluguel? COCHEIRO O carro é de aluguel, sim. Veio de São Sebastião do Rio de Janeiro a serviço da família do conde El-Sado, recém-chegada de Portugal. DIRCEU Essa família veio a passeio? 649 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior COCHEIRO Nada, nada, senhor. Vieram de mudança. Compraram uma grande fazenda com mina de ouro e tudo. É meu o interesse em perguntar, o senhor deseja fazer alguma viagem? DIRCEU Se vós mercê alugar o veículo, combinaremos. COCHEIRO Não, não estou a alugá-lo. Estou a serviço do conde e volto daqui a três ou quatro dias para São Sebastião do Rio de Janeiro, transportando o ex-proprietário da grandiosa fazenda... DIRCEU Se pergunto muito, senhor, por acaso, quem será o feliz que fará a grandiosa e confortável viagem neste carro até São Sebastião do Rio de janeiro? COCHEIRO Chama-se dom Miguel. Ele vendeu a propriedade ao conde e, em breve, partirá para Portugal. É uns chegando à colônia e outros partindo... Balcão do empório. Garrafão de vinho e petisco numa bandeja. O Cocheiro aproxima-se do balcão do comércio e abastece o seu copo de vinho, além de se abastecer com alguns petiscos. Portas abertas do empório. Dirceu vai até uma das portas abertas do empório e olha para a carruagem. Ainda há algumas pessoas curiosas aproximando-se da carruagem para ver e apreciar-lhe o luxo. Dirceu olha fixamente para a carruagem. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Outra parte da história de Josias que se cumpre. Agora estou diante de um carro que levará o dom Miguel para São 650 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Sebastião do Rio de Janeiro, afim de ele embarcar para Portugal... CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir. SEQUÊNCIA 175 – EXT./NOITE. SERRA DE ITA-CORUMI. CAMPOS DE CRISTAIS NO ALTO DA SERRA. DIRCEU Tudo isso é muito confuso. Não queres que eu entregue ao seu filho a imagem e o ouro? Não conheço o seu filho, mas posso procurá-lo pelas regiões de Vila Rica... PAI DE DOM MIGUEL Não. Em breve o meu filho venderá tudo o que adquiriu na colônia e embarcará para Portugal. DIRCEU Como a um desertor? PAI DE DOM MIGUEL Não falei que somos todos desertores de Deus? Nada é nada para o homem, apenas tudo é tudo para Deus. O meu filho não mais poderá ficar no Brasil. Ele também jamais poderá tomar posse dessa imagem que agora está com vós mercê. Não se preocupe com esta missão. Nada irá afetar vós mercê. Portanto, quando souberes da partida do meu filho, para além-mar, leve a imagem de Santa Ifigênia à igreja construída por Chico Rei e sua tribo e coloque-a na entrada da igreja. Não deixe que ninguém veja vós mercê fazendo isso. Ninguém também jamais saberá o que se sucedeu cá. Quero que vós mercê fique tranquilo, em nome de Deus. 651 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Amém! VOLTA PARA SEQUÊNCIA 224 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PEQUENO E GRACIOSO EMPÓRIO. Carruagem estacionada em frente ao comércio. PESSOAS E OUTRAS passam pela rua e, curiosamente, aproximam-se da carruagem para vê-la, apreciando-lhe o luxo. Dirceu está em uma das portas abertas do comércio. O cocheiro vem ao encontro de Dirceu e toca-lhe as mãos nos ombros. Os dois conversam entusiasmados em forma de pantomima. DIRCEU (VOICE OVER) Finalmente recebi a mensagem esperada. Eu estava defronte a carruagem que levaria dom Miguel para o Rio de Janeiro, de onde embarcaria para Portugal. Como se não bastasse, o cocheiro inteirou-me sobre a venda da fazenda e da mina dele ao conde El-Sado. Esse conde vivia em Lisboa com a família e, segundo consta, gozava de uma extensa riqueza entre os rios do baixo Tejo e Sado. É de se saber que desde 1792, quando a França declarou guerra à Áustria, muitas famílias européias mudavam-se para a nossa colônia. Entre elas a família do conde El-Sado, que, felizmente, fazia-me apto a cumprir a promessa feita ao pai de dom Miguel a respeito da imagem de Santa lfigênia. Voltei a sondá-lo. CORTA PARA Dirceu está em uma das portas abertas do empório ao lado do cocheiro. 652 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Pretendo fazer ainda hoje uma viagem curta, até a minha fazenda, qual levarei a minha futura esposa. Se por acaso vós mercê puder nos levar pagarei a viagem... COCHEIRO O povo da nossa terra diz léguas em vez de quilômetros. Aprendi essas medidas durante as minhas viagens. Qual a distância de Vila Rica até a fazenda de vós mercê? DIRCEU A minha viagem é curta, a umas três léguas e pouco mais daqui. COCHEIRO Pensei que fosse para mais longe. Vós mercê quer fazer a viagem ainda hoje? DIRCEU Se o dia não for importuno. Aos cristãos, domingo é dia de descanso... COCHEIRO Mas e este cristão, cá, domingo é dia de socorrer também as pessoas. Para mim todo o tempo é tempo de ganhar dinheiro. O patrão é quem manda... DIRCEU Mandamos todos, senhor... Balcão do empório. HOMENS próximos ao balcão bebendo vinho e comendo petiscos. Dirceu e o cocheiro sentam-se cada um em um velho tamborete, frente a frente. Carruagem estacionada na porta do empório. Dirceu e o cocheiro apertam-se as mãos. 653 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Trato feito. Vou até a uma chácara, cá perto, negociar com o dono para que ele mande entregar na minha fazenda o meu cavalo. Voltarei daqui a pouco para que possamos buscar a minha princesa e levá-la para a fazenda nesse bonito carro... COCHEIRO Carro de grã-fino, senhor, digno de reis, rainhas, príncipes e princesas... SEQUÊNCIA 225 - EXT. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. PORTÃO DA CASA DE DOM MANUEL. Ruas próximas a casa de dom Manuel. A carruagem aparece de repente nas ruas próximas a casa de dom Manuel. Janelas abertas de algumas casas. PESSOAS nas janelas abertas de algumas casas se encantam ao ver a carruagem passar perto de suas portas. Dirceu dentro da carruagem. Cocheiro elegantemente tocando a carruagem. Casa de dom Manuel. A carruagem estaciona-se no portão da casa de dom Manuel. O cocheiro pula-se da carruagem. Dirceu olha para o portão da casa de dom Manuel. O Cocheiro abre a porta lateral da carruagem para Dirceu. Dirceu sai da carruagem e entra no portão da casa de dom Manuel. Sala de visita da casa de dom Manuel. Marília está sentada em uma poltrona. Porta de entrada da sala de visita da casa de dom Manuel. Dirceu aparece na sala de visita da casa de dom Manuel. Marília põe-se pé. Dirceu olha para Marília sorrindo. DIRCEU Estás pronta para a viagem, dona Marília? MARÍLIA Confesso que sim, senhor Dirceu, pois desde o dia em que eu decidi tomar conta da minha vida eu já havia arrumado as minhas coisas e postas todas em minhas malas. 654 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (passa as mãos na cintura de Marília) Isso me deixa muito feliz... MARÍLIA Não sei se vós mercê sabe, o Tônico Borba tem lá na chácara dele um velho coche, uma carruagem semelhante à calache, mas com duas rodas e puxadas por quatro cavalos. O meu senhor finado pai alugou várias vezes o coche de Tônico Borba para nos levar até a fazenda... A viagem é pouco demorada, mas torna-se segura, principalmente quando temos malas para transportar. DIRCEU Se estás preparada Marília a mudar para a minha fazenda, cá, na porta de sua casa está o carro preparado para nos levar... MARÍLIA E o teu cavalo, Dirceu... DIRCEU Pedi ao Tônico Borba que o mandasse entregá-lo na minha fazenda. Eu viajarei com vós mercê no carro a fim de protegêla de qualquer desventura... Quarto de casa da casa de dom Manuel. Duas pequenas malas encostadas em um dos cantos da parede. Dirceu pega uma das malas e sai do quarto de casal, levando-a. Marília aproxima-se de uma das janelas do quarto de casa l olha para o lado de fora. Porta da casa de dom Manuel. ALGUMAS PESSOAS observando de perto a carruagem. Dirceu entregando a mala ao cocheiro. Marília olha para a carruagem e sorri. Janelas do quarto de casal. Marília começa a fechar as janelas do quarto de casal. Dirceu aparece no quarto de casal para pegar a outra mala. 655 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA O que há de extraordinário na nossa rua? DIRCEU Nada, simplesmente um camponês apaixonado buscando a sua princesa. MARÍLIA (corre em direção de Dirceu, abraça e beija-o)) Nossa, um conto de fadas acontecendo em Vila Rica? DIRCEU Sim, Marília. A nossa vida há de ser um conto de fadas, mas verdadeiro... Como viste, há uma carruagem na porta da sua casa aguardando por nós dois. Marília torna abraçar Dirceu. Marília e Dirceu beijam-se, novamente. Dirceu sai dos braços de Marília e vai até a um dos cantos da parede onde está uma mala. Dirceu pega a mala e ao sair do quarto de casal, olha para Marília. DIRCEU Eu esperarei por vós mercê lá no carro. Assim que estiveres pronta, partiremos de Vila Rica. MARÍLIA Nada mais terei de fazer senão trancar a casa... Portão da casa de dom Manuel. Dirceu parece no portão com a mala e entrega-a ao cocheiro. Casas da vizinhança. Janelas abertas das casas da vizinhança. ALGUMAS MULHERES e/ou HOMENS observando, de suas janelas, a carruagem na porta da casa de dom Manuel. Marília aparece no portão da casa de dom Manuel. Marília olha para a carruagem, aproxima-se dela e fica maravilhada. 656 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Meu Deus, uma carruagem linda, como nos contos de fadas narrados pela minha avó. Onde a conseguiu, Dirceu? DIRCEU Os deuses providenciaram-na para nós dois, Marília... Carruagem. Marília e Dirceu próximos à carruagem. O cocheiro abre a porta lateral da carruagem. Marília e Dirceu entram e se acomodam na carruagem. VIZINHOS nas janelas aberta acenam as mãos para Marília. VIZINHA DE MARÍLIA É a filha do dom Manuel que embarca à Itália. Casará com um homem de posses por lá. Carruagem. Marília olha para Dirceu e disfarça o sorriso. MARÍLIA (fala por solilóquio) Se os meus vizinhos pudessem imaginar que eu, dona Marília, encontrava naquele momento ao lado do meu futuro marido, como a mulher mais feliz do mundo, decerto não comentariam nada... Ruas de Vila Rica. Cavalos da carruagem. O cocheiro comanda a carruagem. A carruagem roda lentamente pelas ruas de Vila Rica. Marília e Dirceu beijam-se felizes dentro da carruagem. UM DOS VIZINHOS DE MARÍLIA Dona Marília neste momento está se embarcando para a Itália... OUTRO UM DOS VIZINHOS DE MARÍLIA Até que enfim a promessa do finado pai será cumprida... 657 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior OUTRO DOS OUTROS VIZINHOS DE MARÍLIA Viram só? A dona Marília está sendo tratada como a uma princesa, com carruagem nobre e tudo... SEQUÊNCIA 226 - EXT./INT./DIA/ ESTRADA. INTERIOR DA CARRUAGEM. Estrada. Carruagem rodando pela estrada. Cocheiro tocando os seis cavalos pelas rédeas. Marília e Dirceu felizes dentro da carruagem. Retas e curvas da estrada. Lindas paisagens das margens da estrada a se confundirem o verde das plantas com o azul do céu e a névoa cinza do penhasco. DIRCEU (VOICE OVER) Durante a viagem Marília e eu fechávamos os olhos como se sonhássemos com aquele momento maravilhoso das nossas vidas. A carruagem macia e perfumada andava devagar mostrando-nos as lindas paisagens das margens da estrada a se confundirem o verde das plantas com o azul do céu e a névoa cinza do penhasco. Marília, por sua vez, contava-me em poucas palavras a sua tomada de decisão perante o cunhado e a irmã Amarílis. CORTA PARA Estrada. Marília e Dirceu no interior da carruagem. MARÍLIA Tudo o que o meu cunhado quer é se apossar dos bens deixados pelo meu finado pai. Se ele soubesse o quanto importo com isso. A mim sempre importou a liberdade de escolher o rumo a dar à minha vida. Por isso, aproveitei-me do plano para não dar a ele nenhuma outra saída senão vender a fazenda e fazer, mesmo que mentira, entregar a mim a minha parte da herança para que eu pudesse casar com o 658 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior suposto italiano. Vós mercê, Dirceu, não sabe da missa a metade. DIRCEU Então me conte a missa inteira sem rezar no latim, Marília... MARÍLIA Embora eu não conheça a missa rezada em outra língua, Dirceu, vou relatar a vós mercês o quanto Sales tem interesse de estragar o nosso namoro... DIRCEU (arregala os olhos para Marília) É mesmo? MARÍLIA É mesmo! Conto a vós mercê o que se sucedeu no dia que Sales contou-me sobre o suposto namoro seu com a filha do sitiante... CORTA PARA SEQUÊNCIA 227 - INT./DIA. CASA DE DOM MANUEL. SALA DE JANTAR. Flash back – Relato de Marília. Manhã. Casa de dom Manuel. Sala de jantar. Sales, Amarílis e Marília estão na sala de jantar, sentados à mesa, tomando café. Sales olha para Marília. SALES Eu tenho certeza de que a dona Marília ainda espera ser correspondida pelo tal de Dirceu. MARÍLIA 659 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior (assusta-se e quase derruba a xícara de café na mesa) Como? Por que isso agora, senhor Sales SALES Espera ou não espera ser correspondida pelo camponês? AMARÍLIS Isso lá é hora de falar disso, Sales... MARÍLIA (olha para Sales e Amarílis) Vós mercês sabem muito bem que eu já tenho um pretendente. Tudo o que tens a fazer, senhor meu cunhado, é vender a minha parte da fazenda e, quem sabe, até esta casa para que o meu pretendente venha da Itália e se case comigo... AMARÍLIS Ainda insiste nessa bobeira, Marília? Não vê que o sujeito pede o que não temos... MARÍLIA Papai daria um jeito, foi ele quem arrumou tudo isso. Todas as pessoas de Vila Rica sabem deste compromisso. Querem o quê? Que eu fique em maus lençóis? SALES É, em más lençóis mesmo. Se o tal italiano não der certo, Dirceu muito menos... MARÍLIA Por que? SALES Imagina vós mercê Marília, que há poucos dias vi o Dirceu passar na minha fazenda com uma bonita rapariga na garupa do cavalo dele... Acho que a rapariga é a noiva dele... 660 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA (engolindo a seco) Como? Vós mercês está insinuando que o Dirceu namora outra moça? SALES Outra, não. A moça... A rapariga é filha de um sitiante vizinho de nossas fazendas... Mesa de café. Marília levanta-se da mesa de café e sai correndo para o quarto dela. Quarto de Marília. Cama. Marília atira-se na cama chorando. CORTA PARA SEQUÊNCIA 226.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA/ ESTRADA. INTERIOR DA CARRUAGEM. Estrada. Interior da carruagem. Marília e Dirceu viajando na carruagem. MARÍLIA Quando Sales disse a mim que vistes vós mercê passeando de cavalo com a rapariga pelo capoeirão da fazenda, aproveitei-me disso para brigar com vós mercê, pois, dessa forma, eu o manteria distante de mim para que o nosso plano facilitasse. Daí por diante não dei sossego ao cunhado e nem à minha irmã. Depois daquele dia em que vós mercê foi à fazenda, eles não mais falaram em outra coisa senão em vossemecê, a fim de convencer-me a namorá-lo. DIRCEU Meu Deus, então o casal fazia de tudo para manipular vós mercê, Marília. Portanto, para que Sales se sentisse seguro de que não perderia a fazenda, ele passou a sondar os meus bens... 661 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA SEQUÊNCIA 227.1 – EXT./DIA. FAZENDA DE DOM MANUEL. ALAMEDA DO QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA DE DOM MANUEL. Flash back – Relato de Marília. Fazenda de dom Manuel. Alameda da fazenda de dom Manuel. Marília, sentada na poltrona ao lado de Amarílis. Sales também sentado na poltrona observa o quintal de frente da fazenda. Marília chama a atenção de Amarílis e Sales. MARÍLIA Eu preciso tomar alguma decisão a respeito da minha vida. Como todos sabem e eu nunca escondi do falecido senhor meu pai, sempre prometi casar-me com o homem a quem eu realmente apaixonasse e que fosse também correspondida. Eu respeito a promessa do senhor meu pai, principalmente agora que ele faleceu, mas como estou diante de algumas exigências do tal sujeito arranjado pelo meu falecido pai, o meu coração fica absorto, confuso... AMARÍLIS (aperta as mãos de Marília) Ó, Marília, Marília querida, saiba que tanto o Sales, quanto eu, queremos que vós mercê seja feliz... MARÍLIA Serei sim, desde que vós mercês me dêem uma chance de respirar e colocar em dias as minhas ideias. Me encontro confusa, a ponto de não saber mais nem quem eu sou... SALES A cunhada queres o que, afinal? 662 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Quero ir até Vila Rica e ficar um tempo a sós para pensar um pouco na minha vida... AMARÍLIS Vai pensar na proposta de Dirceu? MARÍLIA Talvez pensarei em todas as propostas. Quem sabe até na proposta de não ser uma mulher de um homem só... SALES (põe-se de pé) Estás blefando, Marília? Isto não podes está saindo do teu juízo... AMARILIS O que dizes é uma grande besteira, minha irmã. MARÍLIA Preciso viajar a Vila Rica, quero que providenciem a minha viagem para amanhã cedo... SALES Sim, vós mercê poderá ir, mas claro, mandarei Rosa e Vívila... MARÍLIA Que seja assim... CORTA PARA SEQUÊNCIA 226.2 - CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA/ ESTRADA. INTERIOR DA CARRUAGEM. Estrada. Interior da carruagem. Marília e Dirceu viajando na carruagem. 663 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Eles enviaram-me juntamente com Rosa e Vívila. Daí, pedi a elas que arrumassem as minhas coisas nas malas dizendo que eu partiria ou para a tua fazenda ou para a Itália a procura do tal prometido... Depois disso pedi a Rosa e a Vívila que voltassem para a fazenda pedindo-as para contar à minha irmã que eu viajaria naquela tarde para Mariana, onde eu ficaria alguns dias com a minha madrinha... Mas com a morte do padre Rocha... DIRCEU Nossas vidas resolveram querer unirem-se por toda a vida. Dirceu e Marília beijam-se ternamente. MARÍLIA Ninguém mais conseguirá nos separar, ninguém, exceto Deus... Estrada. A carruagem vira duas ou três curvas e logo se vê a cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu abre um pouco mais a cortina da janela da carruagem, espia para o lado de fora e sorri. DIRCEU Fazenda Ribeirão do Meio! Estamos chegando Marília na nossa fazenda... Sequência 228 – Int./Ext. /Dia. Fazenda Ribeirão do Meio. Visão geral do casarão da fazenda. Varanda do casarão. Cancela da fazenda. Fazenda Ribeirão do Meio. Varanda do casarão. Sebastiana, Inácia, Quitéria e Eulina estão na varanda do casarão sentadas nos tamboretes em círculo. Elas estão conversando animadamente. Cancela da fazenda. A carruagem estaciona frente à cancela da fazenda. Sebastiana olha para 664 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior a cancela da fazenda e vê a carruagem. Sebastiana põe-se de pé. Inácia, Quitéria e Eulina olham para Sebastiana. Inácia também olha para a cancela e põe-se de pé. Inácia cutuca os braços de Quitéria e Eulália, apontando para a cancela. Sebastiana, Inácia, Quitéria e Eulina em pé olham para a cancela e vêem a carruagem. Inácia, Quitéria e Eulina correm para as suas respectivas casas geminadas. Portas das três casas geminadas abertas. Inácia, Quitéria e Eulina entram cada uma na porta de sua casa. Portas abertas das três casas geminadas. Os casais Cirilo e Inácia; Hipólito e Quitéria; Miliquito e Eulina saem das três portas das casas geminadas para o quintal. Sebastiana está no quintal olhando para a cancela. SEBASTIANA A porteira da fazenda, qualquer coisa chegou à porteira da fazenda empurrada por uns cavalos... Cirilo, Hipólito e Miliquito correm para a cancela da fazenda. Cancela da fazenda. Cirilo, Hipólito e Miliquito param na cancela e ficam reparando a carruagem. Hipólito abre a cancela e se aproxima da carruagem. O cocheiro abre a porta lateral da carruagem. Dirceu sai da porta lateral da carruagem. Hipólito olha para a carruagem e olha para Dirceu assustado. Hipólito tira o chapéu e cumprimenta Dirceu por gestos. HIPÓLITO Nhô Dirceu?! Inhô Dirceu veio de onde dentro dessa maravilha... DIRCEU É um carro, Hipólito, um carro que eu aluguei em Vila Rica para trazer comigo a minha mulher adorável... Cancela da fazenda aberta. Sebastiana, Inácia, Quitéria, Eulina, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão na cancela da fazenda admirando a bonita carruagem. Porta da carruagem abre-se ao lateral. Dirceu aproxima-se da porta lateral da carruagem, estende-se a mão para Marília. Marília desce elegantemente 665 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior da carruagem. Sebastiana, Inácia, Quitéria, Eulina, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro ficam olhando atentamente para Marília. Marília olha para todos e sorri amavelmente. DIRCEU Esta é a dona Marília, minha eterna companheira e futura esposa... Sebastiana, Inácia, Quitéria, Eulina, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro ficam imóveis, olhando para Marília. CIRILO A moça é bonita, sinhô Dirceu. Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro olham para Marília. Ela aproxima-se de Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro. MARÍLIA Zé e Raimundo Sobreiro, o destino está a nos colocar de novo no mesmo caminho... ZÉ DA VIÚVA Não existe no céu nem na terra, sinhá Marília, criatura mais boa e formosa igual a vossemecê. MARÍLIA Bondade sua, Zé, bondade sua... SEBASTIANA (estagnada com a surpresa, aproxima-se de Dirceu) Sinhozinho há de ser feliz com a moça. Ela é bonita, educada e parece gente da gente. 666 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 229 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA DO CASARÃO. Fazenda Ribeirão do Meio. Cozinha da fazenda. Mesa da cozinha da fazenda. Compotas de doces, bolos, assados, café e leite na mesa da cozinha da fazenda. Café e cesta cheia de pães de queijo na mesa da cozinha da fazenda. Dirceu, Marília, o cocheiro, Sebastiana, Inácia, Quitéria, Eulina, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão sentados à mesa da cozinha da fazenda servindo-se do café com os pães de queijo e de outras iguarias. Todos conversam animadamente enquanto servem-se da mesa farta. DIRCEU Eu pedi a um senhor em Vila Rica para mandar entregar cá, na fazenda, o meu cavalo. Alguém pode me dar alguma notícia? AMBRÓSIO (pondo-se de pé) Carece nhozinho ficar tranquilo, porque o cavalo de vossemecê já está solto no pasto com os outros... DIRCEU Obrigado, Ambrósio, obrigado. Eu agora, por enquanto, quero preocupar-me apenas com a dona Marília... MARÍLIA E nós dois, Dirceu, nos preocuparemos com todos... DIRCEU (fala ao cocheiro) Vós mercê pede os rapazes para ajudá-lo a destrelar os cavalos do carro e soltá-los no pasto. Os bichinhos estão cansados... 667 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior COCHEIRO Estou cá pensando se volto ainda hoje para Vila Rica... DIRCEU Não carece arriscar, durma cá, amanhã cedo atrelaremos os seus cavalos novamente no carro e vós mercê pega a estrada de volta... COCHEIRO Se vós mercê achar melhor assim. Eu nada conheço desta região e, portanto não devo ser prudente... Cá ficarei e viajarei amanhã pela manhã para Vila Rica... DIRCEU Pedirei para providenciar para vós mercê um aposento para o seu repouso... CORTA PARA Noite. Candeeiro aceso na varanda do casarão. Dirceu e Marília sentados lado a lado na varanda do casarão conversam alegremente. FADE OUT/ FADE IN Quarto de casal do casarão. Candeeiro aceso numa pequena mesa de cabeceira da cama de casal. Marília está deitada na cama do quarto. Ela fecha os olhos e sorri. Ela sorri pensando em Dirceu. CORTA RÁPIDO PARA Quarto de Dirceu. Candeeiro aceso próximo à cama dele. Dirceu está deitado na cama. Ele sorri pensando em Marília. CORTA PARA 668 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Porta do quarto de casal do casarão. Dirceu aparece na porta do quarto e bate na porta.. Marília está deitada na cama. Ela olha para a porta e sorri. Dirceu bate na porta novamente. Marília levanta-se da cama e vai até a porta. Ela abre a porta do quarto. Dirceu aparece na porta. Dirceu e Marília abraçam e beijam. Dirceu empurra com os pés a porta do quarto, fechando-a. Os dois abraçam e beijam até cairem na cama de casal. Os dois amam-se loucamente na cama de casal. CORTA PARA OLHOS BRILHANTES DE UMA AVE NOTURNA NO BEIRAL DO TELHADO DA VARANDA DO CASARÃO DA FAZENDA. SEQUÊNCIA 230 – EXT. /DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CANCELA DA FAZENDA. ESTRADA EM DIREÇÃO À CAPELA DA FAZENDA. Manhã. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela da fazenda. Carruagem estacionada próxima a cancela da fazenda. O cocheiro, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro acabam de trelar os seis cavalos na carruagem. Dirceu e Marília saem da varanda do casarão e vão até a cancela da fazenda. Cancela da fazenda. Dirceu e Marília despedem-se do cocheiro. Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro afastam-se da carruagem, tiram os chapéus e despedem-se do cocheiro. O Cocheiro sobe na carruagem, senta-se no seu lugar e segura firme as rédeas dos cavalos. Pneus da carruagem. Carruagem parte devagar pegando a estrada. Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro dirigem-se para o quintal de frente da fazenda. Ambrósio olha para Dirceu e Marília, depois olha para a cancela da fazenda aberta. Dirceu olha para Ambrósio. Ambrósio fecha a cancela. DIRCEU Pode fechar a cancela, Ambrósio. Dona Marília e eu iremos andar um pouco para espairecer as nossas mentes... 669 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu pega pela mão de Marília e ambos saem andando pela estrada que liga a fazenda até a capela. Um bando de pássaros corta o azul do céu. Marília levanta-se a cabeça e olha para o bando de pássaros. MARÍLIA Espero que os homens não descubram meios de se enriquecerem às custas dessas aves, pois, ao descobrirem valores do ouro, da prata e de todas as pedras preciosas, veja só no que se deu, esgotou-se tudo... DIRCEU Temos cá notícias de que muitas dessas aves são transportadas para a europa. Se vivem lá, como cá, não sei... MARÍLIA Não sei porque Deus dá permissão ao homem de estar modificando tudo... DIRCEU Mutatis mutandis! Já ouviste esta frase Marília? MARÍLIA Não! Uma expressão latina, não é? DIRCEU Sim, Marília e significa mudando o que tem de ser mudado. Pode significar também com as mudanças necessárias... MARÍLIA Isso implica que... DIRCEU Que o homem vai mudando as coisas do jeito que ele achar que deve mudar. No solo de Vila Rica existia ouro, hoje não existe mais, assim também acontecerá um dia com os céus 670 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior desta fazenda e de outras mais, talvez, não existirá espécies algumas de aves, voando sobre eles... MARÍLIA E o homem há de aprender a conviver com a tristeza, sem a presença dessas aves que alegram a natureza... Não quero estar viva, Dirceu, para ver isso acontecer... BANDO DE AVES COLORIDAS CORTA O AZUL DO CÉU. MARÍLIA FICA ENCANTADA, OBSERVANDO AS AVES VOANDO PELO AZUL DO CÉU. CAPÍTULO 14 SEQUÊNCIAS 231-239 Personagens deste capítulo: Dirceu Marília Sebastiana Inácia Raimundo Sobreiro Zé da Viúva Eulina Quitéria Sales Amarílis Padre Joaquim Alonso Soldados da guarda dos reis católicos Padre Rocha Rei Fernando Aragão Rainha Isabela de Castela Dois homens serviçais Padre espanhol (60 anos) Padres espanhóis Estela Antenor Fiéis 671 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Mulheres do coral Miliquito Crianças (filhos dos sitiantes e fazendeiros da região) Ambrósio Trácio Alceu Endimião Dom Miguel Hipólito Cocheiro Martinha (escrava) FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 133 SEQUÊNCIA 231 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. Capela da fazenda. Adro da capela da fazenda. Dirceu e Marília passeiam pelo adro da capela da fazenda. MARÍLIA Quantas vezes eu desejei conhecer esta capela, Dirceu. Eu não sabia que ela era tão conservada... DIRCEU Os rapazes e eu demos um trato nela. Nós pintamos todo o frontifício e algumas partes do interior dela e as moças lavaram-na devolvendo todo o brilho. Esta capela Marília tem sido cobiça de muita gente estranha. Dizem que nela havia um mistério... 672 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA (entusiamada) Um mistério? DIRCEU Sim, havia... Não há mais... MARÍLIA Que pena! Alguém desvendou o mistério? DIRCEU Sim, mas não sabemos quem... Há pouco tempo um moço que estava conosco na fazenda e eu descobrimos isso... MARÍLIA Por acaso, vós mercês ficaram sabendo de que se trata o mistério? DIRCEU Segundo o moço que estava conosco na fazenda, qual era um padre disfarçado em mendigo, o mistério era as moedas do Iscariotes... MARÍLIA Moedas de que ou de quem? DIRCEU Do Judas Iscariotes! Ele me disse que as trinta moedas de prata, qual Judas traiu Jedus Cristo vieram parar cá, no altar desta capela... MARÍLIA (olha para a capela admirada) Meu Deus! Como algo daquele tempo poderia parar cá, nesta capela tão distante de tudo que é mundo... 673 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Isso nos dá a certeza de que todo lugar do mundo é o mundo, Marília... MARÍLIA Perdõe-me a besteira que eu falei, Dirceu... DIRCEU Não, é porque às vezes somos condicionados a pensar que o mundo é somente mundo onde há civilização. MARÍLIA E consoante ao nosso saber o conhecimento é um processo de aquisição de valores sociais e culturais capazes de auxiliar no desenvolvimento de uma sociedade. DIRCEU Isso lá é verdade, Marília. Creio que são os europeus que nos fazem imaginar que o mundo somente existe onde há civilização. Talvez isso se dê devido ao fato de esta colônia ter índios e um tanto de padres tentando civilizá-los através da doutrina cristã... Marília e Dirceu dão risadas. Eles aproximam-se da porta de frente da capela. Dirceu empurra a porta da capela e abre-a. Eles entram na capela e observam todo o interior da capela viajando com os olhos. Dirceu narra mimicamente para Marília a história da construção da capela e dos mistérios que há nela. Marília demonstra-se impressionada. Detalhes do altar e do púlpito da capela. Marília escorre as mãos em algumas partes do altar da capela. Púlpito. O pequeno púlpito simples, contornado e cheio de cores complexas. Afresco. O pequeno afresco com anjos, tendo ao centro São Rafael e São Miguel Arcanjo. Adro da capela da fazenda. Dirceu e Marília estão no adro da capela da fazenda. Frontifício da capela da fazenda. Dirceu mostra para Marília a torre modestamente piramidal e uns pequenos desenhos em alto relevo do lado esquerdo do frontispício da capela da fazenda. Marília presta-se a todos os detalhes 674 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior do frontifício e da torre da capela da fazenda. Um bando de andorinhas pousa na torre da capela. DIRCEU Ouviste, Marília, como a história desta capela é longa. Ainda que resumi quase toda para não consumir todo o nosso tempo. MARÍLIA Ainda que pareça mentira é uma história muito interessante, Dirceu. Algo ainda me diz que esse mistério ainda não foi concluído... DIRCEU Será? Sabia que eu já estava tranquilo só de pensar que toda a história não passasse de um engano de padres e de especuladores? MARÍLIA Todo mistério tem o seu tempo, Dirceu. Será se esse mistério já teve o seu tempo para ser desmitificado? Creio que ainda falta entrar algum personagem nesta história... DIRCEU E quem seria? MARÍLIA Talvez não somente um personagem, mas muitos... DIRCEU Por que afirmas isto, Marília? 675 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Porque trata-se de moedas e, até onde sei, Dirceu, as moedas têm duplas fases, uma do bem, outra do mal... DIRCEU Então isso implicaria que pessoas tanto do bem, quanto do mal ainda haveriam de aparecer na história... MARÍLIA Sim, Dirceu, assim como estou a partir de agora a fazer parte também da sua história... UM BANDO DE ANDORINHAS POUSA NA TORRE DA CAPELA. SEQUÊNCIA 232 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Meio dia. Fazenda Ribeirão do Meio. Casarão da fazenda. Cozinha do casarão. Marília ajuda Sebastiana e Inácia a colocar a mesa do almoço. Grande mesa. Marília arruma os talheres na grande mesa. Porta do lado de fora da cozinha. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva aparecem na porta da cozinha. Eles entram na cozinha e sentam à grande mesa. Marília senta-se na grande mesa ao lado de Dirceu. Dirceu, Marília, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva almoçam na grande mesa, conversando alegremente. CORTA PARA Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Casas geminadas dos três casais. Casa de Inácia. Pequena sala da casa de Inácia. Roda de tear e flocos de algodão espalhado em um canto da pequena sala de casa de Inácia. Inácia está sentada em um pequeno tamborete, na roda de tear, fiando algodão e transformando-o em linha ou cordão. Eulina, sentada no chão, ao lado de Inácia, tece um manta com a linha de algodão, usando 676 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior uma agulha. Marília entra na pequena sala da casa de Inácia, vestindo-se um vestido simples. CORTA PARA Tarde de outro dia. Inácia e Eulina cumprimentam Marília com gestos amáveis. Marília senta-se no chão ao lado de Eulina para vê-la tecendo a linha ou cordão. Varanda do casarão. Marília, Inácia, Eulina e Quitéria estão sentadas nos tamboretes da varanda da fazenda, conversando. Sebastiana aparece na varanda trazendo uma vasilha com pedaços de doce e serve para Marília, Eulina e Quitéria. Quintal de frente da fazenda. Dirceu no quintal de frente da fazenda observa Marília com Eulina, Inácia e Quitéria conversando na varanda. DIRCEU (VOICE OVER) Com o passar dos dias, Marília entregava-se à amizade das mulheres da fazenda, ora visitando Inácia, Eulina e Quitéria em suas casinholas, ora proseando com elas na varanda da casa. Eu ficava imensamente feliz ao ver Marília misturar-se à minha gente e a revelar naturalmente a sua simplicidade, a ponto de deixar as roupas bonitas de lado e a vestir-se das mais simples possíveis. Aos poucos eu assistia o despertar do espírito dela, a revestir-se em camponesa ou pastora, que eu tanto sonhava. Foi observando isso que eu resolvi tornar-me um mestre em montarias. CORTA PARA SEQUÊNCIA 233 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Pôr-do-sol. Cancela da fazenda. Cirilo abre a cancela da fazenda. Dirceu e Marília saem cavalgando devagar pela estrada. Marília testa a rédea observando o cavalo. Marília sorri satisfeita. Campinas. Marília e Dirceu cavalgam pelas campinas. Cabelos de Marília, livres, voam ao vento. 677 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu cavalga na frente de Marília. Marília apressa o galope do cavalo e passa na frente de Dirceu. Selvas. Rios. Fontes. Relvado. Dirceu e Marília deitados nos relvado. Relvado. Dirceu e Marília beijam-se no relvado. Pôr-do- sol. Dirceu e Marília chegam a cavalos em frente da capela da fazenda. DIRCEU (VOICE OVER) Não demorou muito e Marília passou a seguir-me aos passeios vesperais pelas verdes colinas. Todos os dias, durante os nossos passeios, os olhos dela imensos e arregalados não cansavam de mirar todos os feitios da natureza, buscando respostas para as suas imensuráveis perguntas. E os cabelos dela, sem flor e nem fitas, livres e soltos ao vento, não só deixavam-me admirado, como também preocupado com a inveja que causaria aos demais pastores de toda aquela humilde região. Os nossos passeios, aos poucos, ultrapassavam os limites postos por nós mesmos, durante as nossas tênues cavalgaduras. Isso se dava devido as nossas paragens na selva, quando defrontávamos com os rios, as fontes, os desejos de deitarmos nas brandas relvas e a unirmos mil coisas ternas, que só a nós dois pertenciam. A certeza da nossa chegada à fazenda, antes ou depois do pôr-do-sol davase sempre na frente da capela. Em uma das nossas tardes de passeio, voltamos à fonte do ribeirão. CORTA PARA SEQUÊNCIA 234 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. MARGENS DA FONTE DO RIBEIRÃO. Outra tarde. Cavalos de Dirceu e de Marília amarrados em um mesmo tronco de uma árvore. Margens da fonte do ribeirão toda destroçada, com barrigas e cheias de buracos feitos por picaretas. Relvado quase 678 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior todo comprometido com um monte de barro seco espalhado sobre ele. Marília fecha os olhos, respira fundo, abre os olhos, novamente, e olha para a margem da fonte do ribeirão. Ela fica indignada ao ver a margem da fonte toda destroçada. Marília coloca as mãos no peito e olha para Dirceu. MARÍLIA Ó, céus! Como o Sales foi capaz de mandar fazer isto? Será se não tem piedade alguma pela natureza... DIRCEU Viu só, Marília, como a ambição é a desgraça do homem? Por causa daquela pepita que joguei cá, na margem da fonte, olha só no que se deu... MARÍLIA Sentes culpado, Dirceu? DIRCEU Haveria eu, de sentir? MARÍLIA A tua loucura se estendeu a um mais louco ainda... DIRCEU Eu defendia naquele instante o valor do homem em tornar-se livre da matéria. Joguei a pepita de ouro para discursar a vós mercê, de que a riqueza nada valeria para mim, sem vós mercê... Vós mercê, Marília é o meu maior tesouro... MARÍLIA Enquanto isso, o discurso do Sales, ao encontrar cá nas margens da fonte a pepita de ouro, foi de mandar cavar tudo isso para encontrar mais ouro e ele ficar homem rico... 679 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (aponta para Marília a fonte do ribeirão) E olha só no que deu... MARÍLIA (olha para as árvores próximas à fonte do ribeirão) Parece que nem os pássaros cantam mais por estas bandas... DIRCEU E tudo isso por um pedacinho de ouro. Agora que vós mercê viu a fonte arrasada, acredita em mim? Viu o quanto Sales é inconsequente? MARÍLIA Eu sei de toda a história de como Sales encontrou a pepita de vós mercê na margem desta fonte. DIRCEU E como foi? MARÍLIA Vou contar para vós mercê, porque ele mesmo admitiu ser um homem ambicioso... CORTA PARA SEQUÊNCIA 235 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO. RELVADO. Flash back - Relato de Marília Fonte do ribeirão. Relvado. Botas de Sales andando e pisando pelo relvado. Sales. Aproxima-se das margens da fonte do ribeirão. Ele ajoelha-se nas margens da fonte do ribeirão. Água correndo tranquilamente pela fonte do ribeirão. Mãos de Sales tocam a água do ribeirão. Sales senta-se nas margens da fonte do ribeirão. Ele passa as 680 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior mãos sobre a areia das margens da fonte do ribeirão. Pepita de ouro nas margens do ribeirão. Sales vê a pepita de ouro nas margens da fonte do ribeirão. Ele pega a pepita de ouro e fica a repará-la. SALES Ouro, meu Deus é uma pepita de ouro. Nestas terras têm riquezas, vou tornar-me um homem rico. Vou mandar cavar isto tudo, nem que eu tenha de mudar o percurso desta fonte. Ouro, agora que achei esta pepita, cá, à-toa, nas margens desta fonte, quero encontrar mais pepitas. Quero ter muito ouro! Relvado próximo à fonte do ribeirão, Marília, Amarílis e Rosa estão sentadas no relvado. Rosa serve para Marília e Amarílis alguns lanches tirando-os de uma grande cesta. Elas veem Salaes alegre abrindo e fechando a mão direita. MARÍLIA O que está acontecendo com o Sales? Será se ele encontrou alguma coisa interessante, ali? AMARÍLIS Nada,creio que ele está feliz porque está cheio de planos para com a fazenda... VOLTA PARA SEQUÊNCIA 234.1 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. MARGENS DA FONTE DO RIBEIRÃO. Dirceu e Marília estão parados olhando osestragos feitos na fonte por sales. 681 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Era de se esperar por isso, onde o senhor meu pai ia permitir uma coisa dessas. O que ele trazia na mão a que ele tanto olhava Dirceu era nada mais que uma pepita de ouro insignificante, jamais capaz de valer pelo estrago que ele fez nesta fonte... Eu sempre briguei com ele, devido a ambição a que ele sustenta, por nada... CORTA PARA SEQUÊNCIA 235.1 - INT./DIA. VILA RICA. CASA DE DOM. MANUEL. SALA DE VISITA. Flash back - Relato de Marília Manhã. Vila Rica. Casa de dom Manuel. Sala de visita da casa de dom Manuel. Sales está sentado em uma poltrona ao lado de Marília. Ele sorri e dircursa bobamente. SALES Quis a vida pregar-me esta peça, Marília. Talvez quisesse provar que eu fosse um homem ambicioso. Eu fui e sou sim um homem ambicioso. E daí? Mesmo que eu morra e tudo fique aí, pelo menos enquanto eu viver terei coisas para dizer que são minhas. Tendo-as, também, depois de morrer, terei alguém para dizer que todas as coisas foram minhas... Ninguém haverá de dizer que fui um homem sem eira e sem beira. Quero que digam que eu tive riquezas, muitas riquezas... MARÍLIA Ora Sales, tudo isso não passa de uma vaidade! A maior doença do homem é a ambição! Ter e viver bem são a questão! Sala de visita da casa de dom Manuel. Sales sentado na poltrona assusta com a chegada repentina de Amarílis. 682 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VOLTA PARA SEQUÊNCIA 234.2 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. MARGENS DA FONTE DO RIBEIRÃO. Fonte do ribeirão. Marília olha para as árvores, segura nas mãos de Dirceu e sorri. DIRCEU Meu Deus, quase que o Sales poderia ter derrubado esta floresta inteira... MARÍLIA E desviado o percurso do riacho que, sem dúvida secaria de tristeza... DIRCEU Imagina se ele mandasse derrubar a nossa árvore... MARÍLIA A nossa árvore? Não ele não seria louco de fazer isso. E por falar na nossa árvore, vamos Dirceu rever a nossa árvore. Será se os nossos nomes ainda estão gravados nela... DIRCEU Haverá de estar, pois ela será eternamente vigiada por Júpiter... MARÍLIA Então ai de quem fazer mal à nossa árvore... Marília e Dirceu, de mãos dadas, vão até a frondosa árvore de carvalho. Frondosa árvore de carvalho. Nomes de Marília e de Dirceu gravados no centro de um coração, desenhado na frondosa árvore de carvalho. Marília larga a mãos de Dirceu e corre até a árvore frondosa de carvalho. Nomes gravados dentro do coração. Marília fica olhando os nomes 683 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior gravados dentro do coração, na frondosa árvore de carvalho. Dirceu aproxima-se da frondosa árvore de carvalho, agarra Marília pela cintura e também fica observando o coração com o nome dele e de Marília ao centro. Marília e Dirceu dão risadas. Dirceu beija o pescoço de Marília. Marília e Dirceu beijam-se apaixonadamente. DIRCEU Ainda bem que não derrubaram a nossa árvore... MARÍLIA Embora tenha a minha irmã e o meu cunhado tentados contra o nosso amor, nada foi capaz de nos abalar... Tronco da frondosa árvore de carvalho. Marília abraça o tronco da frondosa árvore de carvalho. MARÍLIA Também com esta força, quero ver quem será capaz de nos abalar... DIRCEU Que sejamos eternamente um para o outro Marília, seja qual for a aventura ou desventura na arte de viver... CORTA PARA Colinas verdejantes. Campinas. Marília e Dirceu cavalgando pelas campinas. Lagoa. Margem da lagoa. Marília e Dirceu sentados na margem da lagoa, com os pés dentro da água. PATOS SELVAGENS NADAM NA LAGOA AZUL. LEGENDA: "alguns meses depois". Tarde. Campinas. Dirceu e Marília cavalgam pelas campinas. Marília está vestida com uma roupa branca. Cavalos de Marília e de Dirceu se 684 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior emparelham. Relvado. Dirceu senta-se no relvado. Campo de flores silvestres. Marília, no relvado, de pé, admira o campo cheio de flores silvestres. Marília corre para o campo e colhe algumas flores silvestres. Ramalhete de flores silvestres nos braços de Marília. Marília com o ramalhete de flores silvestres nos braços corre para sentar-se no relvado. Dirceu está deitado no relvado com o chapéu dele sobre o rosto. Flores silvestres no colo de Marília. Mãos de Marília escolhendo as flores silvestres. Marília tece uma bonita coroa de flores silvestres. Flores silvestres ganhando a forma de coroa. Marília experimenta a coroa de flores silvestre na cabeça. Ela ajeita alguns detalhes da coroa de flores silvestres, tateando-a ligeiramente com as mãos. Ela coloca a coroa de flores na cabeça. Dirceu senta-se no relvado, coloca o chapéu na cabeça e olha para Marília com a coroa de flores silvestres na cabeça. Ele sorri. Ambos abraçam e beijam-se. DIRCEU Meu Deus, como os sonhos podem-se tornar uma realidade de uma hora para a outra... MARÍLIA (ajeita a coroa de flores na cabeça) Gostou da minha coroa de flores? DIRCEU Marília, tu és a princesa mais linda do mundo... MARÍLIA Creio que a minha alma seja a de uma camponesa... DIRCEU Ou de uma bela pastora, ninfa dos campos e deusa de toda a formosura... MARÍLIA Conte-me, Dirceu, como os sonhos podem-se tornar uma realidade de uma hora para a outra? 685 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU É que eu sonhei com vós mercê vestida de branca e com uma coroa de flores do campo na cabeça, como se fosse uma princesa... MARÍLIA Eu também sonhei muitas vezes com vós mercê sendo o meu príncipe, Dirceu. Vós mercê socorrendo-me dos augúrios ruins, tirando-me de uma torre de um castelo e me levando para uma colina verdejante onde havia montanhas, campos floridos e pássaros de todas as espécies, lagos, rios, cachoeiras, peixes e uma casa simples de varada, com curral de gados e ovelhas... Relvado. Dirceu senta-se no relvado e abraça e beija Marília. A coroa de flores cai da cabeça de Marília. Marília dá risadas. Dirceu pega a coroa e coloca-a na cabeça de Marília, beijando-a ternamente. Cavalos de Dirceu e de Marília. Marília montada no cavalo ajeita-se a coroa de flores na cabeça. Dirceu emparelha o cavalo dele com o de Marília. Eles saem cavalgando pelas campinas. Pássaros voando aos bandos. Rios. Água caindo dos Penhascos. Cachoeiras. Plantas altas e rasteiras. Pôr-do-sol. CORTA PARA Capela da fazenda vista ao longe. Joaquim Alonso, que a partir daqui será conhecido como PADRE JOAQUIM ALONSO está vestido com uma bonita batina, sentado na porta de frente da capela da fazenda. Dirceu vê um homem sentado na porta de frente da capela da fazenda. Dirceu olha para Marília. Dirceu e Marília afrouxam as rédeas dos cavalos e apressam a cavalgadura em direção à capela da fazenda. Dirceu toma a dianteira. Capela da fazenda. Padre Joaquim Alonso está sentado na porta de frente da capela da fazenda. Dirceu aproxima-se freando o cavalo na porta de frente da capela da fazenda. Dirceu olha para o padre Joaquim Alonso, tira o chapéu e dá risadas. Marília aproxima-se de Dirceu freando o cavalo. Marília também olha para o padre Joaquim Alonso. Ela fica um pouco confusa e cochicha para Dirceu. 686 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Vós mercê conhece o homem? DIRCEU Sim. Um velho amigo. É um padre luso, ordenado em Espanha... DIRCEU (olha admirado para o padre Joaquim Alonso) Amigo Joaquim Alonso, de volta ao seio de nossa fazenda... PADRE JOAQUIM ALONSO (pondo-se de pé) Estou de volta à terra onde mana o mel e o leite... Cavalo de Dirceu. Dirceu pula-se do cavalo e vai ao encontro de Joaquim Alonso. Dirceu e o padre Joaquim Alonso se abraçam. PADRE JOAQUIM ALONSO Vós mercê não contava com o meu retorno, pois não? DIRCEU Juro que não. Depois daquela decepção sobre o mistério... Dirceu olha para Marília. Marília tenta descer do cavalo. Dirceu corre para ajudá-la, pegando-a nos braços. A coroa de flores cai no chão. Dirceu pega a coroa de flores e entrega-a para Marília. O padre Joaquim Alonso repara Marília e Dirceu. PADRE JOAQUIM ALONSO Quem é a bonita rapariga? 687 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Dona Marília, padre Joaquim Alonso. Ela será a minha eterna esposa. PADRE JOAQUIM ALONSO Vejo que o senhor é um homem de muito bom gosto, senhor Dirceu. DIRCEU (dá uma piscadela para Marília) Obrigado, padre. Marília aproxima-se de Joaquim Alonso e reverencia-o. Mão de Marília estendida. Marília pede a bênção ao padre Joaquim Alonso. PADRE JOAQUIM ALONSO Posso dar crédito a Deus de que já sou digno de abençoá-la e também a abençoar a todos os fiéis de nossa Santa Madre Igreja Católica Apostólica e Romana. CORTA PARA Matagal próximo à capela da fazenda. Cirilo e Hipólito aparecem de repente cavalgando em seus respectivos cavalos em direção à estrada entre a capela até a fazenda. Marília vê Cirilo e Hipólito se aproximando da estrada entre a capela até a fazenda. Marília puxa a rédea do cavalo dela e vai ao encontro de Cirilo e Hipólito. Dirceu e o padre Joaquim Alonso olham para Marília. Marília encontra-se com Cirilo e Hipólito. Cavalo de Marília. Marília monta-se no cavalo dela e sai cavalgando em companhia de Cirilo e Hipólito. Porta de frente da capela da fazenda. Dirceu e padre Joaquim Alonso ficam a sós para conversarem na porta de frente da capela. DIRCEU Então, padre, fala-me de suas andanças. Resolveu permanecer na colônia? 688 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PADRE JOAQUIM ALONSO Sim, Dirceu, isso foi devido algumas peregrinações que fiz durante esse curto espaço de tempo. Fui ao encontro de alguns padres para conversar e converter-me novamente à Santa Igreja. Graças a um velho padre, em São Paulo de Piratininga, chamado Jacó, eu encontrei as minhas respostas. Ninguém deve vingar de ninguém. Deus é grande em misericórdia e, se eu estava cego, a ponto de não enxergar isso, os meus olhos agora estão bem abertos. DIRCEU E a pesquisa sobre "Monetae sicarii", continua ou continuará a fazê-la? PADRE JOAQUIM ALONSO Não. É bom deixar as coisas como estão. Não acredito que elas sejam amaldiçoadas. Segundo o padre Jacó a maldição está na cabeça do homem. Tudo o que o padre Fernandez fez foi cumprir a ordem do rei de Espanha ao querer ver-se livre das moedas. Segundo o padre Jacó, o padre Fernandez apenas aceitou a sugetão de uma vã superstição gerado em uma época de tempos difíceis. (respira tranquilamente, tosse duas os três vezes e prossegue) As moedas foram encontradas na Espanha na metade do século XV; quando ocorreu a unificação da península, graças aos planos dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que ao conquistarem Granada expulsaram os mouros e em seguida os judeus... CORTA PARA SEQUÊNCIA 236 – EXT./INT./DIA/NOITE. ESPANHA OU REINO DA ESPANHA. VÁRIOS. Flash back – Relato de Joaquim Alonso. Legenda: "Espanha, 1492" 689 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Espanha ou Reino da Espanha. Cidade de Granada, 1492. Decreto de Alhambra. A cidade de Granada é cercada pelos soldados da guarda dos reis católicos, Fernando Aragão e Isabela de Castela com tochas de fogo. OS SOLDADOS DA GUARDA DOS REIS CATÓLICOS ateiam fogo numa pequena aldeia de judeus, na cidade de Granada. HOMENS JUDEUS fogem de suas casas carregando esposas e filhos. Mar Mediterrâneo e Oceano Atlântico. Fuga dos judeus com esposa e filhos por esses dois mares. Barcos e navios carregando homens judeus, esposas e filhos. Bandeira dos reis de Espanha erguida na mais alta torre do Alhambra. Castelo. Trono. A RAINHA ISABEL DE CASTELA sentada no trono. UM DOS SÚDITOS DO CASTELO, um senhor baixo, gordo, pele clara e olhos escuros, de aproximadamente 50 anos de idade, traz nas mãos uma bonita caixa de couro e desfila-se até o trono da rainha Isabel de Castela. O um dos súditos do castelo aproxima-se do trono e faz reverências à rainha Isabel de Castela. O um dos súditos do castelo entrega a bonita caixa de couro à rainha Isabel de Castela. A rainha Isabel de Castela recebe a caixa e fica a fitá-la. O um dos súditos do castelo afasta-se do trono e sem olhar para o rosto da rainha, com a cabeça baixa, para. UM DOS SÚDITOS DO CASTELO Pediram que eu a entregasse este presente, majestade. Disseram vir da cidade de Granada. RAINHA ISABEL DE CASTELA Um presente? Mas Boabdil havia entregado a mim as chaves da cidade de Granada e já até içamos a bandeira do nosso reino lá... O um dos súditos do castelo afasta-se e sai andando devagar. A rainha Isabel de Castela abre a bonita caixa de couro e tira dela o saco contendo as trinta moedas de pratas do Judas Iscariotes. Ela segura nas mãos o saco de pratas do Judas Iscaríotes. RAINHA ISABEL DE CASTELA Coisa mais estranha, quem teria enviado a mim tal presente? Eu cá pensando que fosse algum feitio de Boabdil, mas não... Não 690 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior vou verificar isto sozinha, vou reunir-me depois com os meus conselheiros... VOLTA RÁPIDO PARA SEQUÊNCIA 234.3 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA. PORTA DE FRENTE DA CAPELA DA FAZENDA. Dirceu e o padre Joaquim Alonso conversam na porta de frente da capela da fazenda. PADRE JOAQUIM ALONSO Dizem que quando a rainha Isabel de Castela descobriu que as moedas pertenceram ao Judas Iscariotes, e eram pacto de sangue da morte do Redentor, ela, imediatamente, procurou por alguns padres moradores de uma pequena aldeia e os pediu para abençoá-las. Os padres negaram, fazendo-a compreender que a moedas eram amaldiçoadas. A jovem rainha deixou-as com os padres. CORTA PARA SEQUÊNCIA 236.1. EXT./DIA. ESPANHA, MADRID. INTERIOR DA IGREJA NOSSA SENHORA DE ALMUDENA. Flash back – Relato de Joaquim Alonso. Legenda: "Espanha, 1749". Espanha, Madrid, 1749. Igreja Nossa Senhora de Almudena. Interior da igreja Nossa Senhora de Almudena. Retábulo de Almudena. DOIS HOMENS SERVIÇAIS fazendo uma limpeza no retábulo de Almudena. Pequeno sarcófago em um dos cantos do retábulo de Almudena. UM DOS HOMENS SERVIÇAIS encontra-se em um dos cantos do retábulo de Almudena o pequeno sarcófago. Altar principal da igreja. UM PADRE ESPANHOL, de aproximadamente 60 anos, ora no 691 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior principal altar da igreja de Nossa Senhora de Almudena. O um dos homens, que achou o pequeno sarcófago, entrega-o ao padre espanhol que está orando no principal altar da igreja de Nossa Senhora de Almudena. O padre recebe o pequeno sarcófago com certa alegria. PADRE ESPANHOL Ora, ora, dai-me cá este presente. Deveras ser algum presente de nossos fiéis a esta santa igreja... Deus o abençoe meu filho e pode continuar com o seu trabalho. CORTA PARA Sacristia da igreja Nossa Senhora de Almudena. Pequeno sarcófago em cima de uma mesa na sacristia da igreja Nossa Senhora de Almudena. ALGUNS PADRES ESPANHÓIS estão reunidos em torno do pequeno sarcófago em cima de uma mesa na sacristia da igreja Nossa Senhora de Almudena.UM DOS PADRES ESPANHÓIS abre o sarcófago. Olhares dos padres dentro para dentro do sarcófago. O padre espanhol que abriu o sarcófago enfia a mãos dentro do pequeno sarcófago e pesca de dentro o saco com as trinta moedas de pratas do Judas Iscariotes. TODOS OS PADRES ESPANHÓIS olham para o saco com as trinta moedas de pratas do Judas Iscariotes. Há um bilhete um dos padres espanhóis lê o bilhete. UM DOS PADRES ESPANHÓIS Aqui jaz as trinta moedas de prata, do vil traidor do Filho de Deus, Judas Iscariotes. Estas moedas contém o pacto de sangue, quem as encontrá-las cuidado ao passá-las adiante. Estas moedas foram remetidas à Espanha para a gloriosa rainha católica Dona Isabel de Castela que as encaminhou para serem destruídas, mas como não existe bula para ensinar sobre a destruição das mesmas, elas deverão continuar intactas. Deus Nosso Senhor há de saber o que fazer com elas... 692 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior OUTRO UM DOS PADRES ESPANHÓIS As moedas do Judas? Meu Deus, como vieram parar na igreja Nossa Senhora de Almudena? Maria santíssima!!! Ainda que pareça superstição, não tocaremos nelas... QUALQUER DOS UNS DOS PADRES ESPANHÓIS Convém que entregamo-las ao rei Fernando VI, quem sabe ele não tem o poder de expurgar esse lixo para bem longe... CORTA PARA SEQUÊNCIA 235.4. EXT./DIA. PORTA DE FRENTE DA CAPELA DA FAZENDA. Fim do pôr-do-sol. Quase escurecendo. Dirceu e Joaquim Alonso sentados na porta da capela da fazenda. PADRE JOAQUIM ALONSO Daí as moedas foram enviadas ao rei Fernando VI, que, talvez por ser supersticioso, fez com que a reconhecida Companhia de Jesus desse cabo delas. Como as moedas não podiam e nem deveriam jamais ser destruídas, sugeriram levá-las para longe, de preferência para um lugar onde o povo jamais desconfiaria. Como uma das missões da Companhia de Jesus era a de enviar padres para diversos lugares, logo um dos principados do rei sugeriu que as moedas fossem trazidas para serem escondidas nesta colônia. DIRCEU E justamente para esta capela da minha fazenda... PADRE JOAQUIM ALONSO Mas o fato de a capela existir é devido às moedas do traidor. A missão do padre Fernandez, segundo o padre Jacó, não era na 693 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior verdade provinda de Deus, mas dos homens, como do rei ou da própria Companhia que o incumbiu da tarefa. DIRCEU E se investirmos nesta pesquisa e as encontrarmos, padre. PADRE JOAQUIM ALONSO Não faremos nada, senão transportá-las a um lugar seguro, onde ninguém poderá imaginar que elas existam. As moedas viraram uma espécie de passe adiante... DIRCEU Não as quer mais levá-las à Espanha? PADRE JOAQUIM ALONSO Não! Já pedi a Deus para livrar-me de todos os rancores. Creio que fazendo o bem vingarei saudavelmente a morte dos meus entes queridos. O padre Jacó fez-me entender que o mal se paga com o bem. Que culpa tem as novas gerações de um terrível mal cometido a uma geração passada? Não matamos Jesus Cristo e não reinamos no mundo criado pelo Pai Dele? Pensando bem, não nos aclamamos o Pai Dele, como nosso Pai Celestial, também? DIRCEU Pretendes voltar para Portugal ou para a Espanha, padre Joaquim Alonso? PADRE JOAQUIM ALONSO Não! Creio que posso ser útil nesta colônia. Se possível, gostaria de tornar-me padre, cá, nesta humilde capela. Creio e todos sabemos que ela não teve culpa de ser construída para tal fim. Deus, assim como tem piedade dos homens, haverá de ter piedade também, dela. Por isso estou cá, sentado nesta porta. É 694 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior justamente para redimir de todos os meus augúrios e pecados ruins... DIRCEU Fico feliz em saber disso e convido-o também a voltar a morar conosco na fazenda. Creio que vós mercê será o caminho para tornar o povo dessa região mais religioso... SEQUÊNCIA 237– INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Capela da Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Altar da capela. Marília e Estela reúnem se algumas mulheres num canto da capela para treinar alguns hinos de louvores. Altar da fazenda. Antenor arruma o altar da capela da fazenda. Há bastantes fiéis sentados nos bancos da capela da fazenda. Sitiantes com as suas famílias; fazendeiros com as suas famílias; Estela e os filhos; Dirceu, Marília e todo o pessoal da fazenda Ribeirão do Meio sentados nos bancos da capela da fazenda. Marília e Estela dão sinal para que o coral improvisado de mulheres comece a cantar. O coral improvisado de mulheres começa a cantar. Porta da frente da capela da fazenda. Padre Joaquim e Antenor entram cerimoniosamente pela porta da frente da capela, alcançando o pequeno corredor do centro até o altar. Padre Joaquim Alonso anda e abençoa a todos. Altar da capela da fazenda. Padre Joaquim Alonso está no altar da capela fazendo a celebração eucarística. Antenor ajuda o padre Joaquim Alonso na eucaristia. DIRCEU (VOICE OVER) Joaquim Alonso se adaptou novamente com a vida de antes, na fazenda. Havia agora uma importante diferença, todos sabiam que ele era um padre. A cada segundo domingo de cada mês, como sempre acontecia na capela da nossa fazenda, ao invés de Antenor rezar as missas, agora quem as rezava era ele. A presença do padre impôs respeito na capela, a modo de 695 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior atrair demais moradores da região, convertendo-os às tarefas cristãs. Marília entusiasmava-se com as missas, ora ajudando o padre na celebração, ora cantando com as mulheres as entoadas cantigas e hinos cristãos. CORTA PARA Domingo. Manhã. Altar da capela da fazenda. Fiéis na capela. Padre Joaquim Alonso termina de celebrar a eucaristia aos fiéis. PADRE JOAQUIM ALONSO Dóminus vobíscum. FIÉIS Et cum spíritu tuo. PADRE JOAQUIM ALONSO Benedícat vos omnípotens Deus, Pater, et Fílius, et Spíritus Sanctus. FIÉIS Amen. PADRE JOAQUIM ALONSO Ite, missa est. FIÉIS Deo grátias. Altar da capela da fazenda. Padre Joaquim Alonso beija o altar da capela da fazenda em sinal de veneração e ao fazer a devida reverência, retirase do altar. O coral improvisado de mulheres canta um hino de despedida. FADE OUT / FADE IN 696 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Fazenda Ribeirão do Meio. Quintal de frente da fazenda. Mesas improvisadas no quintal de frente da fazenda. Compotas de doces, bolos, assados, café, leite e vinho nas mesas improvisadas no quintal de frente da fazenda. Dirceu e Marília recebem os convidados, educadamente. Sebastiana, Inácia, Quitéria, Eulina, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro ajudam a acomodar as pessoas no quintal da fazenda. Alegria geral. Crianças comem e correm brincando pelo quintal. Algumas mulheres dos fazendeiros e dos sitiantes conversam em círculo, admirando a espontaneidade de Marília. Padre Joaquim Alonso e Antenor sentados um ao lado do outro, tomam vinho e conversam bastante. Hipólito toca a sanfona de Farias e algumas mulheres cantam modinhas animadamente. Pequena mesa improvisada. Marília está sentada sozinha na pequena mesa improvisada. Dirceu aproxima-se da pequena mesa improvisada e senta-se ao lado de Marília. DIRCEU A minha dona Marília está encantadora. MARÍLIA Obrigada, Dirceu, vós mercê é um eterno cavalheiro... DIRCEU Queres casar comigo, dona Marília? Esta festa poderia ter sido a do nosso casamento... MARÍLIA Não demorará muito, Dirceu. Vamos aguardar o sinal! DIRCEU Sinal?! Qual sinal? Marília faz um momento de silêncio observando o movimento no quintal. Dirceu fica parado com o olhar perdido. CORTA PARA 697 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir. SEQUÊNCIA 133 – INT./ DIA/. CAPELA DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Farias e Dirceu sentam-se em um dos bancos da capela. DIRCEU Não gosto mesmo, Farias, mas de vez em quando aparece alguém não sei de onde para tirar a minha paz. FARIAS Inhozinho tá falando da visita que recebeu, não foi? DIRCEU Foi, Farias. O tal do coronel ou sei lá, o Sales, deixou-me verve, confuso... FARIAS Carece sinhozinho preocupar com isso não. A dona Marília faz parte do destino de nhozinho... DIRCEU Dona Marília? Como sabe disso Farias? Conte-me o que sabe, alivia-me esta dor, cá no peito... FARIAS Tudo o que eu tenho para dizer a vós mercê é que sinhá Marília guarda um grande segredo para o sinhozinho. DIRCEU (demonstra-se surpreso) 698 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Segredo? Ela guarda para mim um segredo? Qual é este segredo, Farias? FARIAS (sorri) Se é segredo, somente a dona Marília sabe. Na hora certa, ela há de contar ao sinhozinho... SEQUÊNCIA 237.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu desperta-se com o movimento do quintal da fazenda. As mulheres cantam uma modinha e Marília levantase da mesa e sai dançando até chegar perto das mulheres. Algumas mulheres também dançam. DIRCEU (fala por solilóquio) Qual seria o mistério? Ainda há pouco a dona Marília falou em aguardar o sinal. Qual sinal? O que Marília tem a ver com tudo isso? Eu não ousarei fazê-la revelar-me, forçosamente, eu, assim como ela, aguardaria também pelo sinal. MARÍLIA E VÁRIAS MULHERES DANÇAM NO QUINTAL DO TERREIRO DA FAZENDA. SEQUÊNCIA 238 – EXT./INT. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Curral da fazenda Ribeirão do Meio. Hipólito e Cirilo ordenham as vacas, enquanto Ambrósio e Zé da Viúva tiram o leite delas. Leiteira com o leite. Miliquito carrega a leiteira com o leite para fora do curral. 699 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA Colinas. Dirceu e padre Joaquim alonso cavalgam pela colina. Campina verde. Gados pastando pela campina verde. CORTA PARA Chiqueiro das ovelhas. Ovelhas. Trácio, Alceu e Endimião estão sentados na grande pedra olhando o rebanho de ovelhas. CORTA PARA Casa de oficina do queijo. Marília, Eulina e Quitéria fabricam queijos na casa de oficina do queijo. CORTA PARA Cozinha do casarão. Fogão de lenha. Sebastiana mexe colher de pau numa grande panela no fogão de lenha. Inácia sentada à mesa corta uma abóbora. Vasilha com uma pequena manta de carne seca em cima da mesa. SEQUÊNCIA 239 – EXT./INT. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. VÁRIOS. Fazenda Ribeirão do Meio. Tarde. Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado na cama dele com a cabeça enconstada no travesseiro. Dirceu cochila. Flash back – Sonho de Dirceu Manhã. Dirceu está cavalgando pelas ruas de Vila Rica. Ele vê o padre Rocha andando pelas ruas de Vila Rica. Ele cavalga em direção ao padre Rocha. Ele aproxima-se do padre Rocha, mas o padre Rocha se desintegra na presença dele. Dirceu, todo confuso, procura pelo padre Rocha. 700 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Será se o padre Rocha aprendeu isso foi com os anjos? Ele desapareceu como uma nuvem branca quando se desfaz ao vento... Igreja de Santa lfigênia. Escadaria da igreja de Santa lfigênia. Dirceu desce a pé os degraus da escadaria da igreja de Santa lfigênia. Uma carruagem estacionada no final da escadaria da igreja de Santa lfigênia. A carruagem é a mesma que levou Dirceu e Marília para a fazenda Ribeirão do Meio. Ele vê a carruagem. DIRCEU A carruagem, o carro que levou Marília e eu para a fazenda... O que esta carruagem está fazenda cá, na porta da igreja de Santa lfigênia... Carruagem estacionada no final da escadaria da igreja de Santa lfigênia. O cocheiro sai da carruagem. O cocheiro abre a porta lateral da carruagem. Dom Miguel sai da carruagem com a imagem de Santa Ifigênia nas mãos e sobe três degraus da escadaria até encontrar-se com Dirceu. Dom Miguel encontra-se com Dirceu no terceiro degrau da escadaria. Ele entrega para Dirceu a imagem de Santa Ifigênia. Dirceu recebe a imagem com certo zelo. DOM MIGUEL Assim como o senhor meu pai o ordenou, cumpra o que tem de ser cumprido... Imagem de Santa Ifigênia nas mãos de Dirceu. Degraus da igreja de Santa lfigênia. Dirceu segura a imagem com cuidado e sobe os degraus da igreja de Santa lfigênia. Nos degraus surgem velas acesas iluminando todos os arredores. A carruagem estacionada no final da escadaria da igreja de Santa lfigênia sai puxada pelos seis belos cavalos. Porta de frente da igreja de Santa lfigênia aberta. Dirceu entra na porta de frente da igreja de Santa lfigênia. Um grande facho de luz toma conta de tudo. 701 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA Quarto de Dirceu. Dirceu acorda assustado. O travesseiro cai no chão. Ele senta-se de qualquer jeito na cama. DIRCEU (pensativo e confuso) Meu Deus, será se eu não vou ter paz nunca! São tantos fantasmas entrando em meus sonhos... Velho armário do quarto. Dirceu dirige-se até o velho armário do quarto. Ele abre as portas do velho armário do quarto. DIRCEU A imagem de Santa Ifigênia. Amanhã bem cedo levarei-a para a igreja dela em Vila Rica. Ninguém jamais saberá de nada, nem de Josias, nem de Dom Miguel e nem tampouco de mim... Portas abertas do velho armário. Dirceu pega a pequena caixa de couro e vai até a pequena mesa de canto. Ele senta-se à mesa, abre a pequena caixa de couro e tira dela a imagem de Santa Ifigênia. Ele coloca a imagem de Santa Ifigênia em cima da mesa. DIRCEU Chegou a hora, não chegou santa mãezinha? Dom Miguel deve estar em São Sebastião do Rio de Janeiro para se embarcar para Portugal. Amanhã antes de o dia amanhecer vós mercê será deixada por mim na porta de sua sagrada casa apostólica e romana. (beija os pés da santa) Obrigado pelo sonho, por mais estranho que pareça, os sonhos nos servem de alerta e de sinais quando precisamos de agir perante alguma coisa... 702 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Janela do quarto de Dirceu. O vento toca a janela. A janela abre e um imenso raio de sol invade o quarto. Dirceu fica olhando para o imenso raio de sol. DIRCEU Fenômeno algum me deixará impressionado... SEQUÊNCIA 240 – EXT./INT./NOITE. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. IGREJA DE SANTA IFIGÊNIA. Madrugada escura. Vila Rica. Entrada de Vila Rica. Dirceu cavalga devagar para chamar a atenção de ninguém. Ruas de Vila Rica. Igreja de Santa Ifigênia. Dirceu pula-se do cavalo e amarra-o no tronco de uma árvore. Sela do cavalo. Alforje na sela do cavalo. Dirceu tira do alforje a imagem de Santa Ifigênia. Escadaria da igreja de Santa Ifigênia. Dirceu sobe a escadaria da igreja de Santa Ifigênia. Porta de frente da igreja de Santa Ifigênia. Dirceu ajoelha-se e beija os pés da imagem de Santa Ifigênia. Ele coloca a imagem de Santa Ifigênia na porta da igreja de Santa Ifigênia. Degraus da escadaria. Dirceu desce rápido os degraus. Cavalo de Dirceu. Dirceu monta no cavalo e sai galopando pelas ruas de Vila Rica. SEQUÊNCIA 241 –EXT./INT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. COZINHA DO CASARÃO DA FAZENDA. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela da fazenda. Dirceu atravessa a cancela e fecha-a. Quintal de frente da fazenda. Hipólito está no quintal de frente da fazenda e vê Dirceu entrar no quintal montado em seu cavalo. Dirceu olha para Hipólito, tira o chapéu e o cumprimenta. HIPÓLITO Uai, onde nhô foi tão cedo hoje? Podia tá ainda dormindo... 703 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Eu lá sou homem de ficar até tarde na cama, Hipólito? HIPÓLITO Não! Mas parece que hoje vossemecê madrugou de verdade. Até parece que vem de viagem... DIRCEU Ah, somente atrelei o meu cavalo e dei umas voltas por aí, pelas campinas. De vez em quando é bom sentir o orvalho da madrugada... DIRCEU (Dirceu pula-se do cavalo, tira o alforje da sela e olha para Hipólito) Dessarrea o meu cavalo, Hipólito. Vou lá para a cozinha vê se a Sebastiana passou o café... Estou com uma fome danada, logo cedo... Galo canta no terreiro do quintal da fazenda. Porta do lado de dentro da cozinha do casarão. Dirceu entra na cozinha pela porta do lado de dentro. Mesa da cozinha. Marília está ajudando Sebastiana a arrumar a mesa da cozinha. Dirceu se surpreende ao ver Marília ajudando Sebastiana a arrumar a mesa da cozinha. DIRCEU Dona Marília, acordada, já tão cedo?! SEBASTIANA Parece que a dona Marília caiu da cama... MARÍLIA (arrumando os copos na mesa) E o senhor Dirceu, parece que acordou mais cedo ainda... 704 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (senta-se à mesa) Sim, já arriei o meu cavalo, cavalguei pelas colinas e senti todo o frescor do orvalho e da neblina a bater-me no rosto... MARÍLIA E não convidaste a mim, para esta aventura... DIRCEU Cedo demais, Marília. Vós mercê estava dormindo tão tanquilamente, feito um anjo... SEBASTIANA (enxuga o bule com um pano de prato e coloca-o na mesa) Dona Marília sempre está acordando cedo, não sei por que quer também cuidar das obrigações nossas... MARILIA (ajeitando algumas coisas na mesa) Estou aprendendo por cá, Sebastiana, a viver em coletividade, um ajudando o outro. Uma grande família para manter-se unida é preciso que viva dessa forma. O pouco que um faz é sempre muito para o outro que também faz um pouco... DIRCEU A coletividade é a soma de tudo! Janela. Sebastiana olha para fora da janela e vê um porco fuçando um grande canteiro de hortaliças. Sebastiana faz uma cara feia, deixa a janela e vai até a porta que sai da cozinha para o terreiro do quintal de fundo. Sebastiana sai para o quintal. Cozinha. Mesa da cozinha. Dirceu e Marília ficam a sós sentados à mesa da cozinha. Dirceu beija a testa de Marília. DIRCEU Cada dia que passa vós mercê está mais bonita, Marília... 705 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Enquanto os teus olhos puderem te enganar a respeito da minha beleza, Dirceu, estarei grata aos deuses... DIRCEU Queres dizer com isso que eu não passo de um mentiroso, Marília? MARÍLIA Quando amamos alguém, corremos o risco de nos contentar apenas com a superfície de quem amamos, Dirceu... DIRCEU Não, não quero enxergar apenas a superfície de quem eu amo, Marília. Quero sempre enxergar o que há de mais profundo no fundo da alma de quem amo... Da tua alma, Marília. MARÍLIA Eu também, Dirceu... E por falar em beleza, amor e alma, hoje, Dirceu, acordei-me de um sonho mágico... DIRCEU Acordaste de um sonho mágico? Como assim? MARÍLIA Deram-me o sinal! DIRCEU (CONFUSO) Sinal? Que sinal? Deram a vós mercê? Quem deu e qual sinal? 706 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA (sorrindo,cochicha Dirceu) no ouvido de Estou pronta para casar-me com vós mercê. DIRCEU (dá um beijo em Marília) Então podemos marcar a data do nosso casamento, Marília? MARÍLIA Sim. O nosso casamento será no último domingo deste mês de outubro... DIRCEU Daqui a duas semanas? E sobre o tal sinal que lhe foi dado, por que não explicá-lo a mim? MARÍLIA (levanta-se da mesa e sorri olhando para Dirceu) Não sei explicá-lo. É algo do coração, Dirceu... Dirceu se põe também de pé. Marília abraça Dirceu e beija-o. Dirceu fica um pouco zangado. DIRCEU Parece que tudo o que eu busco, não há explicações... MARÍLIA (dando risadas) Haverá sim, Dirceu. Dê tempo ao tempo. Quanto ao nosso casamento, se o último domingo deste mês fizer uma manhã de sol maravilhosa, casar-nos-emos, caso contrário, aguardaremos por outro domingo, cuja manhã for igual a que eu imagino. 707 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (anima-se) Vós mercê queres casar com a manhã de sol ou comigo? MARÍLIA Como vós mercê é bobo, Dirceu. Claro que eu quero casarme com o senhor. A manhã de sol é para nos dar sorte. DIRCEU A manhã de sol é capricho de vossa senhoria. Quer que eu mande reformar a capela? MARÍLIA Para que? DIRCEU Para o nosso casamento... MARÍLIA Não casaremos na capela da fazenda, Dirceu. Eu falei para vós mercê aquele dia, em Vila Rica, que o nosso casamento seria na montanha, ou se bem entender, no alto do penhasco da serra do ita-corumi. DIRCEU Isso mesmo. E como será a cerimônia? MARÍLIA Temos cá, na fazenda, um padre. Levá-lo-emos conosco e pedimos para que ele nos una em nome de Deus. DIRCEU E vós mercê, então, Marília, será "osso do meu osso, e carne da minha carne” e por mim será tomada como esposa. 708 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA E vós mercê e eu nos tornaremos numa só carne. DIRCEU E para celebrarmos tudo isso, Marília, precisamos de organizar uma grande festa, convidar os nossos amigos e... MARÍLIA Não haverá nada disso. Após o nosso casamento, voltaremos, contaremos a todos que estamos casados e pronto! DIRCEU Que tudo seja feito conforme a vossa vontade, dona Marília. MARÍLIA E DIRCEU BEIJAM-SE. SEQUÊNCIA 242 – EXT./INT./NOITE. SÍTIO DE ANTENOR. QUINTAL DO SÍTIO DE ANTENOR. Sítio de Antenor. Cancela do sítio de Antenor. Quintal do sítio de Antenor iluminado com tochas de fogo e lampiões de azeite. Bancos e mesas espalhados no quintal contendo guloseimas. Fumaça. Vivêncio e alguns homens assam duas ovelhas em buracos cheios de brasas. Cavalos amarrados nos troncos das árvores próximas ao sítio de Antenor. Os convidados de Antenor e Estela vão chegando na cancela do sítio, entre eles estão Marília, Dirceu e Joaquim Alonso, Cirilo, Inácia, Hipólito, Quitéria, Miliquito e Eulina. ALGUMAS MULHERES trazem terços nas mãos. Em um dos cantos do quintal do sítio de Antenor há um altar feito com lençóis brancos, com vasos de flores, castiçais com velas acesas em torno da imagem de Nossa Senhora do Rosário. ALGUMAS MULHERES, HOMENS, JOVENS E CRIANÇAS estão próximos do altar da imagem de Nossa Senhora do Rosário. Estela e um grupo de mulheres, munidas de terços nas mãos, finalizam uma ladainha cantada em latim a Nossa Senhora do Rosário. 709 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ESTELA E UM GRUPO DE MULHERES Regína Angelórum, Regína Patriarchárum, Regína Prophetárum, Regína Apostolórum, Regína Mártirum, Regína Confessórum, Regína Vírginum, Regína Sanctórum ómnium, Regína Sine labe origináli concépta, Regína in caelum assúmpta, Regína sacratíssimi Rosárii, Regína pacis, Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, parce nobis, Dómine. Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, exáudi nos, Dómine. Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, miserére nobis. A festa no sítio de Antenor torna-se animada com homens tocando e dançando o lundú e violeiros cantando récitas de bois. ADULTOS, JOVENS E CRIANÇAS servem-se com farturas. MULHERES cantam modinhas e outras dançam animadas sozinhas ou em pares. Marília mostra-se animada no meio das mulheres. Antenor senta-se em um tamborete ao lado de Dirceu. DIRCEU Festa mais animada e animada, Antenor... ANTENOR É comprimento de promessa, senhor Dirceu. Foi devida aquela viagem. A Estela fez promessa para Nossa Santa do Rosário para que o Vivêncio, irmão dela, aceitasse vir morar em nossa região... 710 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU E deu certo, não foi Antenor... ANTENOR Sim, graças a Deus e a Nossa Senhora do Rosário. O Vivêncio e as crianças deles estão dando bem nestas terras. Aos poucos Vivêncio está esquecendo o garimpo, curando aquela febre de ficar rico de uma hora para outra e pensando na enxada, no trato com as plantas, de onde vem comida para todo mundo. DIRCEU Isto é verdade, Antenor, lá se foi o tempo em que cavar terra em busca de ouro e pedras preciosas, fossem lucros. Lá em Vila Rica ainda tem gente sonhando com ouro, sabia? ANTENOR E por falar em Vila Rica, vós mercê tem ido lá ultimamente? DIRCEU Não, ultimamente não, por quê? ANTENOR Vós mercê ouviu falar do milagre que aconteceu na porta da igreja de Santa Ifigênia? DIRCEU (olha para surpreso para Antenor) Na porta da igreja de Santa Ifigênia, em Vila Rica? E que milagre? ANTENOR Sim, na igreja de Santa Ifigênia, construída pelo Chico Rei. Lá está a aumentar o número de fiéis que querem ver uma imagem de Santa Ifigênia que apareceu lá de repente, numa certa manhã dessas... 711 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Foi é? Me conte essa história, Antenor... ANTENOR Dizem que uma escrava com o nome de Martinha ganhou uma enorme surra a mando de sua senhora e foi jogada à noite numa barroca abaixo da igreja de Santa Ifigênia. Uns moradores, do Alto da Cruz do Padre Faria, dizem que escutaram os gritos da coitada, como se ela estivesse agonizando para a morte. Durante a agonia, dizem que a pobre escrava aclamava por Santa lfigênia... CORTA PARA SEQUÊNCIA 243 - EXT./INT. NOITE. VILA RICA. ESCADARIA E INTERIOR DA IGREJA DE SANTA IFIGÊNIA. Relato de Antenor. Madrugada. Vila Rica. Igreja de Santa Ifigênia. Escadaria da igreja de Santa Ifigênia. Luzes sobre a escadaria da igreja de Santa Ifigênia. MARTINHA, uma escrava de aproximadamente 45 anos sobe, com dificuldade, os degraus da escadaria da igreja de Santa Ifigênia, ora com os pés, ora de joelhos. Porta de frente da igreja de Santa Ifigênia iluminada com a imagem de Santa Ifigênia. Martinha cai de joelho perto da santa Ifigênia e grita chorando de felicidade. ALGUNS PASSANTES passam pela igreja de Nossa Senhora e escuta os gritos de Martinha. Alguns passantes sobem os degraus da escadaria da igreja de Santa Ifigênia e vê Martinha ajoelhada chorando ao lado da imagem da Santa Ifigênia. Enorme facho de luz sai da cabeça de Martinha. Os alguns passantes que estão próximos à Martinha ficam a fitá-la com olhares assustadores. Corpo de Martinha sem machucado algum ANTENOR (OFF) Durante a agonia, dizem que a pobre escrava aclamava por quando numa certa altura da madrugada ela enxergou um grande lume vindo do 712 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior céu a dar-lhe forças para subir todos os degraus da igreja, quase que só de joelhos. Ao chegar à porta da igreja, ela deparou-se com a imagem da Santa, ali, capaz de consolá-la das dores. Ela ficou tão feliz que soltou um grito forte, atraindo os passantes lá embaixo. Quando as pessoas, curiosamente, subiram os degraus para ver o que se sucedia, deram com a pobre negra ajoelhada perto da imagem da Santa. As pessoas disseram que viam, com os próprios olhos, um enorme facho de luz saindo da cabeça da escrava. Não se sabe por que, mas a escrava Martinha não tinha no corpo nenhum machucado da surra. Nem dor ela mais sentia. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 242.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE. SÍTIO DE ANTENOR. QUINTAL DO SÍTIO DE ANTENOR. Quintal do sítio de Antenor. Antenor e Dirceu sentados nos tamboretes lado a lado. DIRCEU Meu Deus, aconteceu isso em Vila Rica. E a imagem da Santa que apareceu na porta da igreja, o que fizeram com ela? ANTENOR Dizem que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário, formada pelos negros, acolheram a Santa no nicho principal da igreja. DIRCEU Isto é justo, muito justo... CORTA PARA SEQUÊNCIA 243.1 – CONTINUAÇÃO -INT. NOITE. VILA RICA. INTERIOR DA IGREJA DE SANTA IFIGÊNIA. 713 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Relato de Antenor. Nicho ou altar principal da Igreja de Santa Ifigênia. Imagem de Santa Ifigênia no altar. Velas acesas no altar, próximas à Santa Ifigênia. Martinha está aos pés do altar, sentada, venerando a imagem de Santa Ifigênia. Martinha está com um bonito terço nas mãos orando e balbuciando palavras com os lábios. ALGUMAS PESSOAS estão ao redor de Martinha. ANTENOR (OFF) A escrava, por sua vez, arranchara aos pés do nicho, rezando e pronunciando palavras bonitas e difíceis, incapazes de saírem da boca de uma escrava. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 242.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE. SÍTIO DE ANTENOR. QUINTAL DO SÍTIO DE ANTENOR. Sítio de Antenor. Antenor e Dirceu sentados nos tamboretes lado a lado. Quintal do sítio. Homens tocando sanfonas e violas. Estela aproxima-se de Antenor e o tira para dançar. Antenor acompanha Estela. Antenor e Estela dançando. Dirceu fica sozinho olhando o movimento da festa no quintal. DIRCEU (VOICE OVER) Achei a história muito interessante. Graças a essa coincidência, ninguém jamais desconfiará de que aquela imagem pertencia aos traficantes de ouro e que fora um espírito que pedira a mim para depositá-la naquela igreja. Quanto mais o povo contasse a história, aumentando os seus pontos, mais isento eu me tornaria de tudo aquilo... 714 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Homens tocando sanfonas e violas. Marília aproxima-se de Dirceu e o tira para dançar. Dirceu acompanha Marília e ambos saem dançando no meio de outros casais. SEQUÊNCIA 244 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. COZINHA DO CASARÃO. Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Casarão da fazenda. Cozinha do casarão. Mesa da cozinha. Dirceu e Marília acabando de tomar o café. Dirceu parece um pouco apressado. Marília fica a repará-lo. MARÍLIA Parece apressado, Dirceu? Há muita tarefas na fazenda para serem cumpridas ainda hoje? DIRCEU Não sei o que acontece Marília, estou tendo uma sensação muito estranha... MARÍLIA Estranha? Que sensação estranha, meu amor... DIRCEU Que eu tenha muitas coisas para fazer, mas que estas coisas não são por cá, na fazenda... MARÍLIA Logo entraremos em período de safras e como vós mercê me disse que beneficia mantimentos à meia com os fazendeiros e sitiantes deta região, pode ser que... DIRCEU Não é nada disso, Marília, nada disso. (olha para Marília um pouco impaciente, pôe-se de pé e prossegue) 715 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Creio que devo retirar-me para encontrar com os rapazes lá no curral... MARÍLIA Será se vós mercê não está apreensivo devido ao nosso casamento? Lembra, marquei-o para domingo próximo... DIRCEU Meu Deus, faltam quatro dias, Marília. Mas como não haverá cerimonia com testemunhas, nem festa e nem nada, acho que isso não me preocupa... MARÍLIA Ou talvez o preocupa, porque vós mercê queria que fosse igual a tantos outros casamentos, não? DIRCEU Não! Vamos aguardar até o fim do dia, quem sabe terei uma explicação para isso... MARÍLIA Vou está com Quitéria, Eulina e Inácia andando a cavalo no campo. Nós iremos lavar algumas roupas numa fonte que elas conhecem lá embaixo... DIRCEU Cuidado, Marília, não vai machucar essas graciosas e delicadas mãozinhas, esfregando roupas... MARÍLIA As meninas vão me ensinar... Eu nunca fiz isso e sempre quis aprender. Ainda mais numa fonte, carregando trouxas e tudo... 716 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu beija Marília e sai. Porta da cozinha para o fundo do quintal. Dirceu sai pela porta da cozinha para o fundo do quintal. Marília coloca mais um pouco de café na xícara e toma, comendo em seguida um pedaço de bolo. Sebastiana aparece na cozinha. Marília olha para Sebastiana. MARÍLIA Meu Deus, Sebastiana, os dias correm depressa. Por esses dias mesmos conheci Dirceu, agora vivo com ele, respirando o mesmo ar dele... SEBASTIANA A menina não me contou que não tem mãe e que não tem pai? Um bom marido faz bem para toda a vida... Nhô Dirceu é um bom homem e vai ser um bom companheiro para sinhazinha... CAPÍTULO 15 SEQUÊNCIAS 245-257 Personagens deste capítulo: Marília Quitéria Inácia Dirceu Trácio Endimião Alceu Homem alto e moreno Zé Antônio (off) Padre Joaquim Alonso Sebastiana Homem branco alto e magro Ambrósio Cirilo 717 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Miliquito Hipólito Sales Zé Tomázio Fregueses do empório de Zé Tomázio Três homens morenos (dois pedreiros e um carpinteiro) Homem magro e esquisito (anjo) Tomás Antônio Gonzaga (off) Voz estranha feito trovão(off) Demônio (off) Judas Iscariotes Demônio transfigurado em Jesus Cristo Demônio transfigurado em um terrível monstro Demônio transfigurado em um anjo de asas pretas Dirceu transfigurado em um menino (13 ou 14 anos) FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 212.2 SEQUÊNCIA 245 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FONTE ABAIXO DA FONTE DO RIBEIRÃO. Manhã. Fonte abaixo da fonte do ribeirão. Água cristalina da fonte. Margem da fonte. Há uma grande pedra na margem da fonte. Marília e Quitéria batem roupas com sabão na grande pedra. Fonte. Água cristalina da fonte. Eulina e Inácia esfregam e enxaguam as roupas na fonte. Grande relvado. Lençóis brancos estendidos para secar ao sol, no grande relvado. Cardume de pequenos peixes no fundo da água da fonte. FADE OUT/FADE IN Fazenda Ribeirão do Meio. Chiqueiro das ovelhas. Dirceu está sentado na grande perdra ao lado de Alceu. Ovelhas no chiqueiro. Trácio e 718 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Endião tocam as ovelhas no chiqueiro, apartando-as dos filhotes. Pequena trilha. Cirilo cavalga a pequena até chegar ao chiqueiro das ovelhas. Alceu vê Cirilo aproximar-se com o cavalo e põe-se de pé. ALCEU O Cirilo vem lá montado no cavalo. Ele nunca vem cá, deve ser algum assunto para nhozinho... DIRCEU (põe-se de pé e olha para a mesma direção em que Alceu está olhando) Uai, não é que é ele mesmo? Mas pelo galope não parece ser nada urgente... ALCEU Aquela trilhinha por onde ele veio, nhô Dirceu faz muito mal pro cavalo trotear... Grande pedra. Alceu senta-se novamente na grande pedra. Dirceu, portanto, desce da grande pedra e vai ao encontro de Cirilo. Cirilo aproxima-se de Dirceu e apeta a rédea do cavalo. CIRILO Nnhô Dirceu,tem um homem procurando por vossemecê lá na cancela da fazenda. Disse que é só com vossemecê mesmo que ele tem de conversar... SEQUÊNCIA 246 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CANCELA DA FAZENDA. Cancela da fazenda. UM HOMEM ALTO E MORENO na cancela da fazenda. Ele traz um burro puxado pela rédea, com duas bruacas amarradas ao lombo. Cirilo e Dirceu estão no quintal de frente da fazenda e vêem o homem alto e moreno estacionado na cancela da fazenda. Dirceu e Cirilo vão até a cancela da fazenda. Cirilo abre a cancela da fazenda. O homem alto e moreno montado no cavalo, 719 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior segurando um burro com duas bruacas amarradas ao lombo, olha para Cirilo e Dirceu. HOMEM ALTO E MORENO Procuro pelo senhor Dirceu, por acaso os senhores o conhecem? DIRCEU Sou eu, seu criado. Em que posso servi-lo? HOMEM ALTO E MORENO És, por acaso, o filho do senhor Zé Antonio? É esta a fazenda Ribeirão do Meio? DIRCEU Sim, sou filho do senhor Zé Antônio e esta é a fazenda ribeirão do Meio, por quê? Dirceu olha para Cirilo. Cirilo se retira da cancela indo para o quintal de frente da fazenda, onde se encontra com Hipólito. Dirceu fica a sós com o homem alto e moreno. HOMEM ALTO E MORENO Venho em nome de dona Maria Antônia para entregar a vossemecê uma encomenda do vosso falecido pai. DIRCEU (fica pálido e prende a respiração) O senhor meu pai, faleceu? HOMEM ALTO E MORENO Lamento dizer isso, senhor, mas o senhor vosso pai morreu há poucos meses. DIRCEU Vós mercê o conheceu? 720 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior HOMEM ALTO E MORENO Prestei alguns serviços a ele. Trabalho com uma tropa entregando encomendas por toda a colônia. Se vossemecê quer saber mais sobre o vosso pai, tudo o que tenho a dizer é que ele morreu de febre amarela, na fazenda que ele comprou numa pequena província de São Sebastião do Rio de Janeiro. Isso aconteceu há cinco ou seis meses. DIRCEU E como passa Maria Antônia? HOMEM ALTO E MORENO Ela passa bem, mora na fazenda que o pai de vossemecê deixou para ela. DIRCEU O meu pai deixou uma fazenda para Maria Antônia? Que bom, ela bem que merecia... HOMEM ALTO E MORENO Estou cá, a pedido dela, qual mandou ao senhor uma encomenda... DIRCEU Uma encomenda? Assim como o Farias, agora a Maria Antônia está também a cumprir as tarefas impostas pelo senhor meu pai? O homem alto e moreno montado no cavalo, segurando o burro com duas bruacas amarradas ao lombo, pula-se do cavalo, tira duas bolsas de couro de uma das bruacas do burro e coloca-as no chão. Ele fecha a bruaca de onde tirou as duas bolsas. Dirceu fica olhando para as duas bolsas de couro no chão. O homem alto e moreno pega as duas bolsas de couro no chão e entrega-as para Dirceu. Dirceu recebe as duas bolsas de couro. Quintal de frente da fazenda. Dirceu vê Cirilo e Hipólito no quintal de frente da fazenda. Ele faz um gesto com o 721 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior chapéu chamando Cirilo e Hipólito. Cirilo e Hipólito chegam à cancela. Dirceu pede para Cirilo e Hipólito levarem as duas bolsas de couro para dentro da casa. Cirilo e Hipólito saem levando as duas bolsas de couro para dentro da casa. O homem alto e moreno sai cavalgando no cavalo e puxando o burro com as duas bruacas. Estrada. O Homem alto e moreno troteia pela estrada. Dirceu fica na cancela parado, triste, olhando para o homem alto e moreno sumir no capoeirão. DIRCEU (VOICE OVER) O homem, que nem sequer apresentou-me o nome, pulou do cavalo e tirou duas bolsas de couro de uma das bruacas do burro e colocou-as no chão, entregando-me, em seguida. Chamei por Cirilo e Hipólito e os pedi que levassem as duas bolsas de couro para o meu quarto. O homem não quis entrar na casa, tomar café ou água. Simplesmente saiu galopando, empurrando o burrico pelo capoeirão afora. A notícia sobre a morte do meu pai abateu-me um pouco. Eu não quis compartilhar com ninguém a minha tristeza. Nem tampouco incomodar Marília, que trancada no quarto sonhava com o dia do nosso casamento. SEQUÊNCIA 247 –INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU Quarto de Dirceu. Porta do quarto de Dirceu vista do lado de fora, no corredor do casarão. Dirceu empurra a porta do quarto. Ele entra no quarto. As duas bolsas de couro estão em um dos cantos, encostadas na parede do quarto de Dirceu. Dirceu pega as bolsas de couro. Cama de Dirceu. Dirceu coloca as bolsas de couro em cima da cama. Ele senta-se na cama. Bolsas de couro. Dirceu pega uma das bolsas de couro, ajeitase entre as pernas e abre-a. Dirceu enfia a mão dentro da bolsa e encontra um pergaminho. Dirceu puxa a mão para fora trazendo o pedaço de pergaminho. Ele abre o pedaço de pergaminho e lê com os olhos. 722 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF) Filho, eu preciso de sua ajuda nessa importante tarefa. Por favor, siga os passos corretamente e tudo acabará bem. Bolsa de couro aberta. Dirceu vira a bolsa de cabeça para baixo e despeja todo o conteúdo dela na cama. Ele vê alguns pergaminhos dobrados, desdobra-o e lê um a um, com atenção. DIRCEU (VOICE OVER) Em seguida encontrei alguns papéis dobrados e percebi que era uma longa carta escrita pelo senhor meu pai em vários dias, semanas, meses ou anos. A carta falava sobre um mistério que ele guardara, e que pertencia à capela da fazenda. O senhor meu pai pedia que eu fosse à casa onde morávamos e cavasse o chão do meu quarto. Lá estaria uma caixa de couro e dentro dela o enigma, que ele descrevia da seguinte forma. CORTA PARA Cama do quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama lendo uma das cartas. ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF) Filho, não se atreva fazer outra coisa com as pratas, senão cumprir o que estou escrevendo nestas longas linhas. Quanto à capela da fazenda, por favor, filho reforme-a conforme um desenho gravado sobre um manto de couro, que está dentro da outra bolsa de couro. Outra bolsa de couro na cama. Dirceu pega a outra bolsa de couro na cama, abre-a e enfia a mão dentro dela. Ele olha para dentro da bolsa e vê a manta de couro dentro. Mãos de Dirceu com a manta de couro. Dirceu abre a manta de couro. Na manta de couro há uma planta arquitetônica da capela da fazenda, desde o frontifício até a parte interior dela. Ele fica a reparar a planta detalhadamente. 723 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (VOICE OVER) Peguei a bolsa maior e mais pesada e abri-a. Encontrei a manta de couro e vi impregnada nela o novo risco a ser dado à capela. Observei que ela sofreria algumas mudanças, desde a torre, o frontispício, o púlpito, até o altar. O desenho também sugeria a construção do novo altar, um retábulo de pedra com o desenho da última ceia de Cristo. Dirceu deixa a planta arquitetônica da capela da fazenda em cima da cama e pega novamente a carta. Ele lê um trecho da carta. ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF) Não deixe, filho, que a cobiça lhe corrompa. É devido a esse vil metal que o mundo chora até hoje pelo cordeiro que foi imolado... Carta nas mãos de Dirceu. Ele larga a carta e olha para a outra bolsa de couro. Dirceu fala por solióquio. DIRCEU Então estaria lá, na casa, sob o meu velho catre, as vis moedas do traidor?! Outra bolsa de couro aberta. Dirceu vira a bolsa de cabeça para baixo e despeja todo o conteúdo dela na cama. Ele olha para a cama. Na cama cai um saco cheio de pepitas de ouro. Mesa canto. Dirceu vai até a mesa do canto. Gavetas da mesa do canto. Dirceu abre a gaveta superior. Cinzel dentro da gaveta superior. Cinzel n mãos de Dirceu. Cama de Dirceu. Dirceu vai até a cama, pega o saco com pepitas e abre com o cinzel. Ele fica surpreso ao ver tantas pepitas de ouro e continua a falar por solilóquio. DIRCEU Meu Deus, onde o meu pai encontrou tanta riqueza? 724 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu coloca o saco de pepitas na cama e pega novamente a carta. Ele abre a carta e lê um trecho. ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF) Pode não querer acreditar, filho, mas todo esse ouro foi extraído aí na fazenda, quando ainda havia índios. Eles entregavam-no para mim dizendo que quem mandava era Tupã, através de aracati, que na linguagem deles seria "Deus, através dos bons ventos". Guardei essas pepitas comigo e somente a vossemecê as confio. Cama com duas caixas de couro, saco com pepitas nas mãos de Dirceu. Dirceu olha as pepitas de ouro dentro do saco. DIRCEU (Fala por solilóquio) Meu Deus esta riqueza toda deve ser para eu investir na reforma da capela... Cartas escritas em pergaminhos em cima da cama. Dirceu pega as cartas, escolhe uma delas e lê com os olhos. ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF) Meu filho, procure o mestre Antônio Francisco Lisboa e pegue com ele uma imagem de um anjo bíblico. É a imagem de São Miguel Arcanjo, qual arrematei-a do mestre. DIRCEU (para de ler a carta e sorri satisfeito, prosseguindo o solilóquio) A imagem de São Miguel Arcanjo, esta se encontra hoje na capela da fazenda. Graças a Deus que o bendito Antônio Francisco Lisboa havia mandado entregá-lo na capela da fazenda... Dirceu volta às cartas e continua a lê-las com os olhos. 725 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF) Meu filho, por favor, peça também ao Farias para contar-lhe sobre um velho segredo a respeito da capela da fazenda. Ele há de falar para ti de forma misteriosa, mas não se impressione muito com o relato dele... Dirceu para de ler a carta novamente e sorri satisfeito. DIRCEU (fala por solilóquio) Ó, meu pai, o Farias não mais existe, mas creio que o segredo, também, fora silogicamente revelado a mim por ele. Ele deixou-me impressionado sim, mas foi por pouco tempo... Outra bolsa de couro na cama. Dirceu pega a outra bolsa de couro na cama, novamente e olha para dentro dela. Couro de ovelha enrolado em forma de canudo. Dirceu tira da bolsa o couro de ovelha enrolado em forma de canudo. Ele ajeita-se na cama e abre o couro de ovelha enrolado em forma de canudo. No couro de ovelha há outros riscos gravados a fogo sugerindo uma planta de uma pequena cidade, gravado abaixo a seguinte inscrição latina: "Urbs populi beati" (A cidade do povo feliz). Os olhos de Dirceu viajam sobre a planta gravada no velho couro de ovelha. Cartas em cima da cama. Dirceu pega novamente as cartas, olha uma e outra e encontra alguma coisa escrita que o interessa. Olhos de Dirceu lendo a carta. ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF) Meu filho, conforme vós mercê deve ter percebido, esse mapa gravado em couro de ovelha é um risco para a construção de uma futura cidade, onde o povo possa viver feliz. Nesta terra não haverá diferença entre os povos, todos terão os mesmos direitos... Vós mercê pode até perder a sua fazenda, mas ganhará muitos amigos. Dirceu termina de ler as cartas. Cama. Bolsas de couro e alguns objetos espalhados na cama, pega os objetos e guarda-os nas duas bolsas de 726 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior couro, ficando apenas o cinzel na cama. Ele levanta-se da cama com o cinzel nas mãos. Mesa de canto. Dirceu abre a gaveta superior da mesa de canto e guarda o cinzel. Grande armário do quarto. Dirceu abre o grande armário do quarto. Cama com as duas bolsas de couro. Dirceu dirige-se até a cama, pega as duas bolsas de couro e guarda-as no grande armário do quarto. Dirceu o armário do quarto. Porta do quarto. Dirceu dirige-se até a porta do quarto. Ele abre a porta do quarto e sai. Quarto. Porta do quarto, fechada. SEQUÊNCIA 248 –INT./EXT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAMPINAS VERDES DA FAZENDA. Fazenda Ribeirão do Meio. Tarde. Campinas verdes. Dirceu e Marília cavalgam pela campinas verdes. Lagoa. Patos silvestres nadando na lagoa. Relvado às margens da lagoa. Dirceu e Marília sentados no relvado observam os patos silvestres nadando na lagoa. Dirceu e Marília beijam-se. MARÍLIA Dirceu, quero que vós mercê peça ao padre Joaquim alonso que faça amanhã cedo um passeio conosco na serra do itacorumi... DIRCEU (demonstra-se surpreso) O padre Joaquim Alonso fará o nosso casamento, Marília? MARÍLIA Sim, mas eu não quero que vós mercê conte a ele isso. Ele passeará conosco pela serra e lá ficará sabendo do que se trata... DIRCEU Aí, então ele fará o nosso casamento... 727 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Sim, isto mesmo, aí ele fará o nosso casamento, unindo as nossas almas e os nossos corpos em só, apenas... RELVADO. DIRCEU PUXA MARÍLIA AO ENCONTRO DO CORPO DELE. ELES ABRAÇAM E BEIJAM-SE. SEQUÊNCIA 249 – INT./EXT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. Fazenda Ribeirão do Meio. Capela da fazenda. Uma das portas laterais da capela da fazenda. Dirceu tira o chapéu da cabeça e entra na capela da fazenda por uma das portas laterais da capela da fazenda. Interior da capela da fazenda. Altar, púlpito, bancos da capela da fazenda. Padre Joaquim Alonso está lendo a bíblia, sentado em um dos bancos da capela da fazenda. Dirceu vê o padre Joaquim Alonso sentado em um dos bancos da capela da fazenda lendo a bíblia. Dirceu aproxima-se do padre Joaquim Alonso. Padre Joaquim Alonso vê Dirceu e fecha a bíblia colocando-a em cima do banco. DIRCEU Padre Joaquim Alonso, desculpe-me em incomodá-lo nesta tarde, sei que aos sábados vós mercê sempre está ocupando em seus estudos bíblicos, mas... JOAQUIM ALONSO Disponha-se, meu grande amigo, não se acanhe, cá estou para ser incomodado. Não faço do sábado o meu grande dia, Dirceu. Sei muito bem que "O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado". DIRCEU E "O Filho do Homem é senhor também do sábado", não é padre Joaquim Alonso? 728 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO Os fariseus, Dirceu, ao verem Jesus colhendo espigas, no sábado, para comer, traduziram o fato como a um trabalho normal de colheita. Mas Jesus superou todas as discussões, quando usou esse fato em defesa da vida. Um médico deixaria o seu paciente morrer, porque não trabalharia no sábado? Os pais deixariam os filhos com fome, porque não trabalhariam no sábado? DIRCEU Só sei, padre Joaquim Alonso, que Deus concluiu a sua obra em seis dias, no sétimo descansou, mas nós mortais, quando terminaremos de concluir as nossas obras? Nunca, não é padre? Pois somos tão imperfeitos, que nada no mundo consegue nos agradar integralmente... JOAQUIM ALONSO Isso é verdade, tudo que Deus fez, mesmo não conhecendo, Deus achou bom: o firmamento, as trevas, as luzes, as noites, os dias, os rios, os mares, os peixes, as aves do céu, os animais e até o homem... DIRCEU E por falar em tudo isso, padre Joaquim Alonso, antes que eu esqueça, vim até cá para fazer ao senhor um convite... JOAQUIM ALONSO Um convite? DIRCEU A sinhá Marília, minha dona e namorada, pediu para que eu convidasse vós mercê para um passeio amanhã, pela manhã... JOAQUIM ALONSO Um passeio? Onde será esse passeio? 729 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU O passeio será no alto da serra do ita-corumi, padre, ela disse que bem cedo, antes de o sol raiar. JOAQUIM ALONSO Um piquenique no alto da serra?! DIRCEU Decerto que sim, padre. Ela não me contou detalhes, apenas pediu para que eu fizesse-lhe o convite e preparasse os cavalos para sairmos amanhã bem cedo... SEQUÊNCIA 249 – EXT./ DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. Nascer do sol no alto da serra do Ita-corumi. Alto da serra do Itacorumi. Grande descampado no alto da serra do Ita-corumi. Cavalos de Dirceu, Marília e Padre Joaquim Alonso amarrados em troncos de árvores do grande descampado no alto da serra do Ita-corumi. Plantas. Vento soprando as plantas. Sol surgindo bonito no horizonte. Dirceu, Marília e Padre Joaquim Alonso no grande descampado do alto da serra do Ita-corumi. Marília segura a mão de Dirceu e olha para o padre Joaquim Alonso, sorrindo. MARÍLIA Padre, o senhor é uma autoridade de Deus, cá na terra. Eu quero e creio que Dirceu queira também que o senhor nos una, matrimonialmente, neste exato momento, a um só corpo. JOAQUIM ALONSO (surpreso) Como? O que está pedindo-me, dona Marília?! 730 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Isso mesmo. O meu coração e o de Dirceu estão pedindo a vossa reverendíssima que una as nossas almas nesta linda manhã de sol. JOAQUIM ALONSO (olha para Dirceu) É verdade? DIRCEU Sim, padre. O desejo de Marília é o meu desejo. MARÍLIA O senhor pode ou não nos casar, cá, agora, padre Joaquim Alonso? JOAQUIM ALONSO E por que, cá? Não haveria de ser na capela da fazenda ou numa das belas igrejas de Vila Rica? MARÍLIA Porque pertencemos à natureza, padre. Nada mais justo que unir as nossas almas, tendo-a como testemunha. Queremos que o senhor abençoe, em nome de Deus, a nossa união. JOAQUIM ALONSO Se Jesus disse em Mateus no capítulo dezoito e versículo vinte, que “Onde dois ou mais estiverem reunidos em seu nome, ELE estaria entre eles", então, em nome DELE, poderei fazer o que estão me pedindo... Marília sorri e olha para Dirceu. Padre Joaquim Alonso, pacientemente, olha para todos os arredores da serra do Ita-corumi e em seguida olha para Dirceu e Marília. 731 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO Neste exato momento em que o Sol aparece no horizonte, na direção Leste, peço a vós mercês Dirceu e Marília que, em silêncio, olhem para toda a serra e contemplem a natureza cá presente nesta manhã. Respirem, pois, o ar soprado pela brisa, qual representa a vida trazida pelo Espírito Santo de Deus. Dirceu e Marília contemplam com os olhos toda a serra. Plantas. Pássaros voando aos bandos. Pedras do lugar descampado. O céu, as nuvens do céu e o Sol ganhando aos poucos a sua intensidade. JOAQUIM ALONSO Assim como o sol está a apontar no horizonte e a fazer com que possamos ver toda a criação feita pelas mãos de Deus, quero também que vocês enxerguem o coração um do outro. E lembrem-se, não basta apenas enxergar o coração um do outro, como também senti-los e a socorrê-los, seja lá qual for a situação. Se ambos tornarão, em nome de Deus, uma só carne, um tornará responsável pelo outro. (une as mãos de Dirceu e de Marília) Quando um sentir dor, que encontre no outro o antídoto; quando um sentir tristeza, que encontre no outro alegria; quando um sentir ódio, que encontre no outro amor. Que cada um de vós mercês saiba compreender um ao outro; que vós mercês não sejam nunca contra as leis da natureza, porque o que Deus une, o homem nunca separa. (olha para Marília) É de todo o coração e desejo do fundo da alma que vós mercê, Marília, deseja aceitar Dirceu, como seu eterno esposo? MARÍLIA Sim, padre, é com todo o desejo do meu coração e da minha alma que eu aceito Dirceu como meu eterno esposo. 732 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO (olha para Dirceu) É de todo o coração e de toda a alma e de toda a responsabilidade, Dirceu, o desejo de casar-se, perante Deus, com Marília, fazendo-a sua esposa? DIRCEU Sim, padre. É de todo o meu coração, de toda a minha alma e de toda a minha responsabilidade que eu aceito casar-me com Marília. JOAQUIM ALONSO (olha novamente para Dirceu) Dirceu, tu és, a partir de agora, esposo de Marília. A ela, tu estás o dever de fidelidade e de todos os cuidados de um bom esposo. (olha novamente para Marília) Marília, tu és, a partir de agora, esposa de Dirceu. A ele, tu estás o dever de fidelidade e de todos os cuidados de uma boa esposa. (une novamente as mãos de Dirceu e Marília) Em nome de Deus e de tudo o que ele consagrou no mundo, eu os declaro casados. Vós mercês, em nome de Deus, terão a partir de agora uma vida em comum. O Sol brilha forte no grande descampado do alto da serra do Itacorumi. Padre Joaquim Alonso cumprimenta Dirceu e Marília. JOAQUIM ALONSO Sugiro a vós mercês que erguem neste descampado uma cruz para mostrar ao mundo o amor que existe entre vós mercês. DIRCEU Como é padre Joaquim Alonso? 733 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior JOAQUIM ALONSO Uma cruz, Senhor Dirceu, erguer uma cruz cá no alto da serra para servir de lembrança do casamento de vós mercê com a dona Marília. MARÍLIA Quem sabe não podemos erguer cá uma igreja, um pequeno templo... JOAQUIM ALONSO Mas em Vila Rica há tantas igrejas Marília... Seria mais interessante algo bem simples. Algo que possa deixar as pessoas lá em baixo curiosas.... Padre Joaquim Alonso afasta-se de Dirceu e Marília, andando pelo descampado da serra do Ita-corumi. Dirceu e Marília abraçam e beijamse emocionados. Lágrimas no olhos de Marília. Dirceu limpa as lágrimas dos olhos de Marília com as mãos. Árvores próximas ao descampado da serra. Dirceu olha para as árvores próximas ao descampado da serra. Cinta de couro na calça de Dirceu com um cinzel. Dirceu tira o cinzel da cinta de couro da calça. Árvores. Dirceu dirige até a uma das árvores com o cinzel na mão e marca em uma das árvores as iniciais dos nomes de Marília e dele. Tronco de árvore gravada os nomes de Dirceu e Marília. Pequena trilha da serra do Ita-corumi. Dirceu, Marília e padre Joaquim Alonso cavalgam pela pequena trilha da serra do Ita-corumi. SEQUÊNCIA 250– EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. Varanda do casarão. Todos da fazenda estão na varanda do casarão. Dirceu, Marília e padre Joaquim Alonso aparecem no quintal de frente da fazenda montados em seus cavalos. Padre Joaquim Alonso pula do cavalo e vai até a varanda. Ele entra na varanda e dá a notícia sobre o casamento de Dirceu e Marília. 734 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior PADRE JOAQUIM ALONSO Peço a vós mercês que prestem atenção na boa nova que vós darei: acabaram-se de casar, nesta manhã, o casal Dirceu e Marília. Eu os casei no alto da serra do Ita-corumi... Todos da fazenda olham para Dirceu e Marília. Eles batem palmas. Sebastiana sai da varanda acompanhada por Eulina, Quitéria e Inácia. Cozinha do casarão. Sebastiana, Eulina, Quitéria e Inácia preparam uma comida especial na cozinha do casarão. FADE OUT/FADE IN Quintal de frente da fazenda. Grande mesa debaixo de uma árvore no quintal de frente da fazenda. Pratos e talheres na mesa. Dirceu, Marília e todos da fazenda estão sentados na grande mesa debaixo de uma árvore do quintal da fazenda. Eulina, Quitéria e Inácia trazem a refeição e colocam na grande mesa debaixo da árvore. Todos se servem da refeição. Eulina, Quitéria e Inácia sentam ao lado de seus respectivos maridos, Miliquito, Hipólito e Cirilo. DIRCEU (VOICE OVER) Sebastiana, entusiasmada com a notícia, chamou Eulina, Quitéria e Inácia para a cozinha. Lá, elas prepararam-nos um grande e delicioso banquete, qual foi servido debaixo de uma das árvores do quintal da fazenda. Todos estavam presentes, inclusive os meus três pastores Alceu, Endimião e Trácio, qual fiz questão que os chamassem para a comemoração. Marília estava radiante a ponto de no final da refeição fazer-me uma surpresa. DIRCEU Gostaste da recepção, Marília? 735 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Gostei, foi uma surpresa e tanto. Não esperava que a Sebastiana, Eulina, Quitéria e Inácia fossem tão ágeis a ponto de fazer uma comida tão deliciosa para tanta gente... DIRCEU Esta família nossa, Marília, está sempre pronta para nos pregar surpresas... MARÍLIA É bom fazer parte de uma família assim, Dirceu, onde a coletividade faz parte e cada um respeita o limite do outro... DIRCEU E olha que cada um aprende com o outro na convivência do dia a dia. Seios de Marília. Marília enfia a mão dentro dos seios e um pequeno objeto. Mão fechada de Marília. Marília abre a mão e mostra para Dirceu o pequeno objeto, qual é uma pequena chave de ouro. Dirceu olha para a pequena chave de ouro um pouco confuso. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Outra chave? Por que duas? MARÍLIA Tens outra chave, Dirceu? Dirceu tosse e olha para Marília meio desajeitado, inventando qualquer resposta. DIRCEU Não, não Marília. Perguntei por perguntar... é que além da chave do meu coração, ainda existe essa... MARÍLIA 736 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Serão as chaves que abrirão os nossos corações... DIRCEU Os nossos corações ainda estão fechados, Marília? MARÍLIA Não! Mas ouça a minha história... DIRCEU Sou todo ouvidos, Marília... MARÍLIA Depois daquele dia em que vós mercê esteve em Mariana, fui à igreja Nossa Senhora da Assunção rezar e achei esta pequena chave caída no chão. DIRCEU E isso significa o quê, Marília... MARÍLIA Preste atenção no que eu tenho para te contar... Dirceu arregala os olhos para Marília. Pedaço de tronco debaixo de uma das árvores do quintal da fazenda. Dirceu faz uma reverência para que Marília o acompanhe até o pedaço de tronco debaixo de uma das árvores do quintal da fazenda. Marília o acompanha e os dois sentam-se no pedaço de tronco debaixo de uma das árvores do quintal da fazenda. Marília entrega a pequena chave de ouro para Dirceu. Ele recebe a pequena chave de ouro e, estando com ela na palma da mão, fica a fitála. CORTA PARA SEQUÊNCIA 251 - INT. /DIA. VILA MARIANA. IGREJA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO. 737 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Flash back - Relato de Marília.·. Mariana. Igreja Nossa Senhora da Assunção. Marília está ajoelhada perto de um dos altares da igreja Nossa Senhora da Assunção. Ela levanta-se para sair da igreja Nossa Senhora da Assunção. Interior da igreja. Há um homem branco, alto, magro, pele clara, olhos azuis e muito bem vestido, de aproximadamente sessenta anos, sentado em um dos bancos do interior da igreja Nossa Senhora da Assunção. Porta de frente da igreja Nossa Senhora da Assunção. Marília vai para sair na porta de frente da igreja Nossa Senhora da Assunção. Pequena chave de ouro no chão, próximo à porta de frente da igreja Nossa Senhora da Assunção. Marília vê a pequena chave de ouro no chão, próximo a porta de frente da igreja Nossa Senhora da Assunção. Ela abaixa rapidamente e pega a pequena chave de ouro no chão, próximo a porta de frente da igreja Nossa Senhora da Assunção. Pequena chave de ouro na mão de Marília. Marília fica reparando a pequena chave de ouro. Ela olha para o interior da igreja Nossa Senhora da Assunção e vê o homem branco, alto, magro, sentado em um dos bancos da igreja Nossa Senhora da Assunção. Ela vai ao encontro do homem branco, alto, magro, que está sentado em um dos bancos da igreja Nossa Senhora da Assunção. Ela aproxima-se do homem branco, alto, magro e mostra a pequena chave de ouro para o homem branco, alto, magro. MARÍLIA (VOICE OVER) Depois daquele dia em que vós mercê e o Cirilo estiveram em Mariana, eu fui à igreja Nossa Senhora da Assunção rezar e achei esta chavinha caída no chão. Havia apenas um homem branco, alto, magro e muito bem vestido sentado em um dos bancos da igreja. Como só havia ele e eu na igreja, eu pensei que a chave pertencesse a ele. Procurei-o para sondá-lo e devolvê-lo a chave. CORTA PARA Marília e o homem branco, alto, magro sentados em um dos bancos da igreja Nossa Senhora da Assunção. O homem branco, alto, magro 738 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior conversa de forma carinhosa com Marília. Marília mostra-se ora surpresa, ora assustada, olhando fixamente para o homem branco, alto, magro. HOMEM BRANCO, ALTO, MAGRO Ora, minha filha, esta chave não pertence a mim, ela, a partir de agora, pertencerá a vós mercê. Escute bem o que vou dizêla, guarde estas palavras no seu coração, vós mercê haverá de se casar com um fazendeiro e, quando isso acontecer, vós mercê entregará a ele esta chave. Não duvide nunca do que vou revelá-la. Essa chave é mágica e com ela o seu futuro e companheiro marido abrirá o seu coração. Se vós mercê realmente amá-lo, com toda a força do teu coração e do teu pensamento, por favor, tenha paciência, pois, depois de casada o seu marido fará uma longa viagem em prol de um grande bem para a humanidade. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 250.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA Marília e Dirceu sentados no pedaço de tronco debaixo de uma das árvores do quintal da fazenda. Dirceu olha para Marília meio apreensivo. DIRCEU Depois de casada, o seu marido fará uma longa viagem em prol de um grande bem para a humanidade? MARÍLIA Sim, agora casada, vejo que vós mercê é o candidato a essa viagem... 739 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Mas qual viagem seria essa? Em prol de um grande bem para a humanidade? Qual seria esse bem? MARÍLIA De repente pode haver alguma relação com o tal mistério da capela... DIRCEU Isso não, isso não, meu Deus! Afasta-se de mim esse cálice... MARÍLIA Creio que vós mercê haverá de beber desse cálice, Dirceu. E se isso acontecer, por favor, lembre-se que estarei cá, feito Penélope a espera do seu Ulisses, qual também foi para a Guerra de Tróia... DIRCEU Casei contigo para tê-la em todos os momentos da minha vida, Marília e não para viajar e tornar-me ausente de ti... MARÍLIA Parece bobeira dizer isso, Dirceu, mas às vezes a gente pode estar longe dos olhos, mas perto do coração de quem amamos. Marília e Dirceu abraçam e beijam-se sentados no pedaço de tronco debaixo de uma das árvores do quintal da fazenda. Dirceu abre a mão e olha novamente para a pequena chave de ouro na palma da mão. DIRCEU Longe dos olhos e perto do coração... E esta pequena chave, o que tem haver com toda essa história, Marília? O que disse mais, o tal homem da igreja Nossa Senhora da Assunção? CORTA PARA 740 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 251.1 – CONTINUAÇÃO - INT. /DIA. VILA MARIANA. IGREJA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO. Flash back - Relato de Marília. Igreja Nossa Senhora da Assunção. O homem branco, alto, magro põese de pé. Um terço de Marília cai no chão. Marília abaixa para pegar o terço. O homem branco, alto, magro desaparece. Marília pega o terço e quando levanta não mais vê o homem branco, alto, magro. Marília fica procurando o homem branco, alto, magro com os olhos, pelo interior da igreja de Nossa Senhora da Assunção. MARÍLIA (VOICE OVER) O meu terço caiu no chão, e, quando abaixei para apanhá-lo, não mais avistei o homem. Assustei, Dirceu, pois de onde estávamos até a porta de frente da igreja, era bem distante. Não sei se ele saiu ou depareceu, tudo foi tão rápido. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 250.2- CONTINUAÇÃO EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. Marília e Dirceu estão sentados no pedaço de um tronco debaixo de uma das árvores do quintal da fazenda. DIRCEU Coisa mais estranha, Marília. Havia ninguém na igreja, senão vós mercê e o tal homem? MARÍLIA Ninguém, Dirceu. Ao chegar à casa da minha madrinha Berta, eu contei para ela, mas ela disse que tudo não passasse de uma grande besteira. Ela disse para que eu não impressionasse com o tal fato... 741 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU A sua madrinha Berta está certa, Marília. É bom não se impressionar com o tal fato. Tem coisa que acontecesse com a gente, como se acontece nos sonhos, uma coisa efêmera de um acontecimento bobo. E o homem, vós mercê nunca o havia visto ou viu-o depois desse acontecimento? MARÍLIA Sei o que relatei a vós mercê, Dirceu. Eu não conhecia o homem e nem sequer nunca o vi em Mariana, Vila Rica ou qualquer lugar. Eu comentei isso também com a dindinha e ela apostou ser o homem um cigano. DIRCEU Um cigano? Estranho, Marília. Dizem que os ciganos são levados a falar sobre o futuro das pessoas. Creio que aqui na nossa fazenda existia um. Ele era um velho e bondoso homem que vivia inspirando-me grandes mistérios. No dia em que ele morreu, Marília, ele revelou-me que vós mercê teria um segredo para revelar-me. DIRCEU Revelado, mas ainda não cumprido... MARÍLIA Teme isso, Dirceu? DIRCEU Não, Marília. Isso apenas gera-me uma certa ansiedade... MARÍLIA Se havia algum segredo para revelar a vós mercê, o segredo é este. Eu teria de entregar a vós mercê a chave do meu coração, após contrairmos o casamento. Foi graças ao homem, ou cigano, não sei, que o meu sentimento fez-se mais forte em relação à vós mercê. Ele também disse que eu 742 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior haveria de casar com um fazendeiro, porque, ele e eu nascemos um para o outro. Jamais poderíamos ignorar a nossa união, porque, caso contrário, seríamos duas pessoas infelizes, a vagar por horizontes perdidos, sem nunca chegarmos a lugar nenhum. DIRCEU Isto talvez prova que tudo no céu e na terra está ligado, Marília. Se desligarmos alguma coisa, padecemos até o fim dos nossos dias. MARÍLIA Foi por isso que o padre Joaquim Alonso disse na cerimônia de que a partir de agora, perante a lei de Deus, somos um só corpo, uma só alma, um só espírito. Portanto, Dirceu, permito a vós mercê que pegue essa chave, qual está contigo, abra o meu coração e descubra que ele nunca pertenceu a ninguém, exceto a vós mercê. DIRCEU (beija a pequena chave de ouro) Eu sei disso, Marília. Eu também nunca amei ninguém, senão vós mercê. Se vós mercê está a entregar-me esta chave, que o homem da igreja diz ser do seu coração, ó, minha doce Marília, guardá-la-ei, comigo. Creio, em nome de toda a sua pureza, que não precisarei abrir o seu coração, porque há muito o conheço. Pescoço de Marília. Fino barbante de ouro no pescoço de Marília. Marília tira o fino barbante de ouro do pescoço e pega a pequena chave de ouro das mãos de Dirceu. Marília enfia a pequena chave de ouro no fino barbante de ouro. Marília ajeita a blusa de Dirceu e coloca o fino barbante de ouro com a pequena chave de ouro no pescoço de Dirceu. 743 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA É para vós mercê lembrar que a chave do meu coração está junto ao seu coração, também. DIRCEU Prometo mantê-la comigo para sempre, Marília. Zelarei por ela, com toda delicadeza, assim como também zelarei por vós mercê... Dirceu e Marília põem-se de pé, abraçam e beijam-se. Estrondoso trovão a estourar pelo céu azul e ensolarado. Dirceu e Marília assustam com o estrondoso trovão e dão risadas. Dirceu e Marília abraçam e beijam-se, novamente. DIRCEU O tempo não está para chuva, Marília. Aceita cavalgar com este pobre homem pelos campos verdes da fazenda... MARÍLIA Quero cavalgar para um lugar onde haja uma fonte secreta para que vós mercê e eu possamos mergulhar gostosamente em suas águas... DIRCEU Queres reinventar o pecado, Marília? MARÍLIA O mesmo de Adão e Eva, no jardim do Édem... SEQUÊNCIA 252 – INT./EXT./DIA./NOITE. RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS. FAZENDA Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Curral. Bois berrando no curral. Ambrósio e Cirilo apartando as vacas para tirar o leite. Leiteiras de leite. 744 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior CORTA PARA Chiqueiro das ovelhas. Ovelhas. Alceu, Trácio e Endimião estão dentro do chiqueiro cuidando das ovelhas. CORTA PARA Casa de oficina de queijos. Mãos de Eulina e Quitéria fabricando queijos na casa de oficina de queijos. Prateleiras com queijos frescos. CORTA PARA Engenho de cana ou moita. Dois jumentos fazendo rodar as engrenagens do engenho de cana de açucar. Engrenagens do engenho de cana espremendo a cana de açúcar. Hipólito recebendo cana das mãos de Miliquito. Mãos de Hipólito empurrando cana nas engrenagens do engenho. Aparador do caldo de cana. Caldo de cana caindo em um velho barril de madeira. CORTA PARA Casa de farinha de mandioca. Mandiocas descascadas em uma grande gamela. Inácia pegando mandioca descascada na grande gamela. Ralo. Mãos de Inácia ralando a mandioca de farinha. CORTA PARA Cozinha. Fogão de lenha da cozinha. Sebastiana na cozinha mexendo comida em uma das panelas do fogão. CORTA PARA Campinas. Bois pastando nas campinas. Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva cavalgando pelas campinas tocando os bois. CORTA PARA 745 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Capela da fazenda. Altar da capela da fazenda. Padre Joaquim Alonso ajoelhado no altar da capela da fazenda. CORTA PARA Noite. Quarto de casal do casarão da fazenda. Candeeiro aceso. Dirceu e Marília estão deitados na cama do quarto de casal do casarão da fazenda. Eles se abraçam e se beijam. Apaga-se a luz do candeeiro. CORTA PARA Manhã. Ouve-se o barulho do cantar do galo. Cozinha do casarão da fazenda. Sebastiana coloca um bule de café na mesa. Mesa da cozinha com o bule do café. Mão de Marília pegando o bule. Xícara de porcelana. Café sendo despejado na xícara de porcelana. Dirceu olha para Marília e puxa a xícara de porcelana com o café para ele. Dirceu toma um pouco do café. Marília coloca o café em outra xícara de porcelana para ela e toma um pouco do café olhando para Dirceu. MARÍLIA (sorri docemente) Creio que vós mercê deverá atender a sugestão do padre Joaquim Alonso... DIRCEU Sugestão do padre Joaquim Alonso? MARÍLIA Sim! Ou vai dizer que também se esqueceu de ter casado comigo... DIRCEU Ah, sim, a cruz do alto. A cruz que ele sugeriu que erguêssemos lá no alto da serra do Ita-corumi... 746 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Sim, Dirceu. Quero vê-la cá da fazenda e sorrir lembrando-se de nossa união... DIRCEU O padre Joaquim Alonso disse que a cruz dirá ao mundo sobre nós dois... MARÍLIA E que diga ao mundo coisas maravilhosas, Dirceu! Por que o amor como tema universal, nos livros, não deveria ser tão trágico... DIRCEU Os autos de Shakespeare ainda a impressiona? MARÍLIA Romeu e Julieta, sim! Não haveria de ser tão trágico... DIRCEU Logo irei à Vila Rica e encomendarei o serviço a um senhor de lá, Marília. Vou sugerir como quero que façam tudo e somente irei ver o serviço depois de concluído... MARÍLIA Uma cruz, Dirceu, basta colocar no alto da serra, uma cruz... DIRCEU Acho que nós merecemos algo mais Marília. Quando alguém, cá em baixo olhar para cima, verá uma cruz, mas se atrever ir até lá, encontrar um pequeno templo... MARÍLIA Construirá uma capela no alto da serra? 747 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não! Não será uma capela. Mandarei apenas construir um pequeno oratório, onde alguém possa abrigar-se para orar tranquilamente... MARÍLIA E quem chegar ao alto do Ita-corumi, próximo ao pequeno oratório, vai se sentir a um Moisés no Monte de Horebe, na Península do Sinai. DIRCEU Entre todas as leis a que se encontrará ali, a principal, será a de que o amor é eterno. SEQUÊNCIA 253 – INT./EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. Vila Rica. Manhã. Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Placa do "Empório de Zé Tomázio", vista ao longe. Dirceu cavalga em direção ao empório de Zé Tomázio. Empório de Zé Tomázio. Dirceu frea o cavalo na frente o empório de Zé Tomázio. Cavalo de Dirceu amarrado em um poste de frente ao empório. Balcão do empório de Zé Tomázio. Sales está no balcão da venda de Zé Tomázio. DIRCEU (VOICE OVER) Duas semanas depois fui a Vila Rica em busca de um bom carpinteiro e pedreiros para a realização do trabalho sugerido pelo padre Joaquim Alonso. Nessa viagem eu encontraria casualmente com Sales ao entrar na mercearia de Zé Tomázio. Empório de Zé Tomázio. Portas do empório de Zé Tomázio. Dirceu aparece em uma das portas do empório de Zé Tomázio. Dirceu vê Sales. Dirceu tira o chapéu da cabeça, olha para o lado de fora da rua e resolve entrar no empório de Zé Tomázio. Dirceu para um instante e 748 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior torna a olhara para Sales. Sales vai para sair do empório. Sales e Dirceu encontram-se frente a frente próximos a uma das portas do empório. SALES Ora, que grande surpresa, encontrar-me cá, o amigo... DIRCEU Também me surpreende encontrá-lo por cá, ainda cedo... SALES Não apareceu mais na minha fazenda, senhor Dirceu? O que houve? DIRCEU Nada. Simplesmente entreguei-me aos trabalhos com os rapazes de casa e cada dia ficamos mais presos à fazenda... SALES Impressionante! Deverias encher aquela fazenda de bons escravos. Mas não, quer tratá-los iguais aos brancos... DIRCEU Na minha fazenda a alforria é uma lei, senhor Sales... SALES Vós mercê esqueceu a dona Marília? Dirceu olha para todos os lados do empório de Zé Tomázio. Balcão do empório. Dirceu vê Zé Tomázio ocupado no balcão. Dirceu olha para Sales um pouco confuso. DIRCEU A dona Marília? O que aconteceu com a dona Marília? 749 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SALES Ora, então não sabe? Contaram para mim e para Amarílis que a danada da Marília, desde a primavera passada, fugiu ou foi para a Itália com o tal rapaz prometido. Ficamos sabendo disso pelos nossos próprios vizinhos, quais testemunharam têla visto partir numa bonita carruagem. DIRCEU (fala por solilóquio) Conto ou não conto ao Sales, que a bonita carruagem levou Marília foi para a minha fazenda? Não! Creio que não devo contar nada, sem antes consultar Marília... SALES A notícia o assustou Dirceu? Não era para menos. Amarílis e eu ficamos assustados. Supomos que a danada da Marília resolveu tudo com o rapaz por cartas... Quando pensou que não, olha o danado vindo buscá-la... DIRCEU Ora, senhor Sales, que o destino se faça cumprir, o que tem de ser cumprido. Espero que a dona Marília seja muito feliz... SALES Ora, ora, senhor Dirceu, sem dúvida de que deves estar. As mulheres encontram a felicidade facilmente, basta saber fazêlas um bom agrado... Dirceu olha para Sales, reverencia-o com a cabeça e vai até o balcão do empório de Zé Tomázio. Sales coloca o chapéu na cabeça e sai do empório. Zé Tomázio olha alegre para Dirceu. ZÉ TOMÁZIO E a cachopa, senhor Dirceu? O que arranjaste com a cachopa? 750 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Não soubeste, senhor Tomázio? A cachopa partiu de Vila Rica numa bela carruagem... ZÉ TOMÁZIO Ficamos todos sabendo, senhor Dirceu. Dizem que a rapariga foi para a Itália... DIRCEU (pisca um dos olhos para Zé Tomázio) E a Itália está tão próxima, senhor Zé Tomázio, que acabo de vir de lá, agora... ZÉ TOMÁZIO Deixe o povo comentar sobre a viagem de dona Marília para a outra Itália, senhor Dirceu. Deixe! Enquanto isso a dona Marília deita-se tranquila ao teu lado na Itália que vós mercê inventou para ela... Balcão do empório de Zé Tomázio. Dirceu e Zé Tomázio dão risadas no balcão do empório. SEQUÊNCIA 254 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VARANDA DO CASARÃO. Fazenda Ribeirão do Meio. Varanda do casarão. Rede. Marília está deitada na rede da varanda do casarão. Cavalo de Dirceu amarrado em um tronco de uma das árvores do quintal de frente da fazenda. Varanda. Rede balançando na varanda. Dirceu retira um saco cheio de mantimentos da garupa do cavalo e leva-o até a varanda, colocando-o no chão. Rede balançando. Dirceu tira o chapéu da cabeça e aproximase da rede e vê Marília deitada. Dirceu balança a rede vagarosamente. Marília acorda assustada, abrindo os olhos. 751 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Quer matar-me de susto, Dirceu? DIRCEU Desculpe, Marília, não pensei que vós mercê estivesse dormindo... MARÍLIA (senta-se na rede) Eu estava apenas com um pouco de preguiça, Dirceu. Passei a manhã toda na casa da Inácia, vendo-a, juntamente com a Quitéria, a fabricarem rendas de bilro. Meu Deus, uma arte complicada, mas que felizmente surte um efeito maravilhoso... DIRCEU Viu só, as moças da fazenda são prendadas, aprenderam não sei com quem, tais ofícios... MARÍLIA E fazem com a alma, nunca vi tantas rendas maravilhosas... DIRCEU Sabe quem eu encontrei em Vila Rica, Marília? MARÍLIA A minha irmã, Amarílis? Ou, não. Talvez a Rosa? DIRCEU Antes fosse a Amarílis ou a Rosa. Encontrei com o Sales... MARÍLIA O Sales? Onde o encontrou, foi por acaso? DIRCEU Sim, casualmente ao entrar na venda do Zé Tomázio. Ele saia, enquanto eu entrava. Foi um encontro inevitável... 752 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Inevitável, como assim? Falaste a ele sobre nós dois? Ele se demonstrou alguma preocupação comigo? E a minha irmã e sobrinho, o que ele disse... DIRCEU Não, ele não deu notícia alguma sobre ele ou da família, Marília. Apenas contou-me que soube através dos vizinhos que vós mercê havia fugido ou caprichosamente viajado para a Itália com o tal prometido, numa bela carruagem... MARÍLIA Isso faz parte do nosso velho plano, Dirceu. Deixemos que a minha irmã e o meu cunhado dêem como certas as notícias dos vizinhos da casa de Vila Rica. O importante para mim é a felicidade. Eu encontro-a vivendo ao lado de vós mercê, a quem eu amo muito... Rede. Marília tenta sair da rede. Dirceu segura as mãos de Marília e ajuda-a sair da rede. Marília sai da rede. Dirceu e Marília abraçam e beijam-se. DIRCEU Eu também a amo, Marília. Cada instante, dias e semanas, ao teu lado, são como sonhos que nunca se esgotam. MARÍLIA E a nossa cruz do alto da serra, contratou alguém para fazê-la? DIRCEU Sim, Marília. Os homens contratados para erguer a enorme cruz de cedro no alto da serra virão daqui a duas semanas para realizar o nosso trabalho... 753 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior MARÍLIA Os dias passam rápidos, Dirceu. Duas semanas passam em um fechar de olhos. DIRCEU E MARÍLIA ABRAÇAM E BEIJAM-SE NA VARANDA DO CASARÃO. SEQUÊNCIA 255 –EXT./DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAMPINAS. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. NOTA: Parte desta cena é composta por várias ações dividas por cortes indicando internas/externas. Vários dias. Nascer do sol no alto da serra do Ita-corumi. Alto da serra do Itacorumi. Grande descampado no alto da serra do Ita-corumi. TRÊS HOMENS MORENOS trabalham na serra do Ita-corumi. Os dois pedreiros medem a área do descampado, enquanto o carpinteiro escolhe uma árvore de cedro para cortar e fazer a cruz. CORTA PARA Cavalo de Cirilo troteando pela serra do Ita-corumi. Cirilo chega ao alto da serra do Ita-corumi. Cirilo solta o cavalo no descampado da serra e entrega a cada um dos três homens morenos uma gamela com comida. Árvore. Os três homens morenos almoçam sentados debaixo da árvore. CORTA PARA Descampado da serra. Monte de pedra no descampado da serra. OS dois pedreiros morenos trabalham levantando as paredes do pequeno oráculo. Machado. Árvore caída no chão. O CARPINTEIRO MORENO corta com o machado uma das galhas da árvore caída no chão. CORTA PARA 754 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Nascer do sol no alto da serra do Ita-corumi. Os três homens morenos chegam a cavalo no alto da serra do Ita-corumi. Descampado da serra. Monte de pedras amontoados no descampado da serra. Parede média do pequeno oratório. Os dois pedreiros morenos pegam pedras e erguem a parede do pequeno oratório. O carpinteiro lavra o tronco do galho da árvore, transformando-a em tábua. CORTA PARA Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Campinas verdes. Dirceu e Marília cavalgam emparelhados pela campina verde. Marília freia o cavalo e olha para o alto da serra do Ita-corumi. Dirceu também freia o cavalo dele e fica a observar Marília. DIRCEU O que foi Marília? Alguma coisa incomodando-a? MARÍLIA Não. Eu apenas parei o cavalo para olhar para o alto da serra... DIRCEU Só mesmo nós, da fazenda, sabemos que lá no alto há quase uma semana estão um carpinteiro e dois pedreiros trabalhando... MARÍLIA É verdade e não vejo a hora de ver de cá o resultado do trabalho deles... DIRCEU Não demorará muito e logo veremos a cruz fincada no alto da serra. CORTA PARA Legenda "Quatro semanas depois". 755 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Alto da serra do Ita-corumi. Os dois pedreiros morenos ajudam o carpinteiro moreno a erguer a grande cruz, qual está amarrada em uma corda. Buraco. Grande cruz sendo puxada pela corda pelos três homens morenos. Os três homens morenos fazem forças segurando firme a corda. O pé da grande cruz cai no buraco. Eles fazem força puxando a corda. A grande cruz ergue-se firmemente pelo ar. Pedras Os três homens morenos fazem a base de pedras para que a cruz fique ainda mais firme. CORTA PARA Fazenda Ribeirão do Meio. Campinas verdes. Dirceu e Marília cavalgam emparelhados pela campina verde. Marília freia o cavalo, olha para o alto da serra e vê a grande cruz erguida. Marília solta um grito de surpresa. MARÍLIA Olha, olha só para o alto da serra, Dirceu. DIRCEU (freia o cavalo e olha para o alto da serra também admirado) A cruz! Ergueu-se a nossa santa cruz, Marília... MARÍLIA Meu Deus, se eu sei por que ela está ali e fico curiosa em vê-la de perto, imagina os outros que nada sabem sobre ela... DIRCEU Vamos para casa Marília, vamos mostrar o pessoal da fazenda, inclusive ao padre Joaquim Alonso, a nossa cruz erguida lá no alto da serra. Dirceu e Marília saem cavalgando pelas campinas verdes até chegar à cancela da fazenda. Quintal de frente da fazenda. Inácia, Quitéria, Eulina, Sebastiana, Hipólito, Cirilo, padre Joaquim Alonso, Miliquito estão mirando o alto da serra para ver a cruz recém erguida. Marília e 756 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu, montados em seus cavalos, próximos à cancela da fazenda ficam parados observando o pessoal da fazenda admirando a cruz fincada no alto da serra. FOTOGRAFIAS DO ALTO DA SERRA DO ITA-CORUMI COM A CRUZ E O PEQUENO ORATÓRIO. SEQUÊNCIA 256 –EXT./INT. DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. DENTRO DO PEQUENO ORÁCULO. Manhã. Serra do Ita-corumi. Dirceu cavalga devagar subindo a serra do Ita-corumi seguindo uma pequena trilha. Alto da serra do Ita-corumi. Dirceu chega ao alto da serra do Ita-corumi e vê a cruz erguida no alto da serra do Ita-corumi. Ele amarra o cavalo debaixo de uma árvore e anda devagar até a grande cruz. Grande cruz. Olhos de Dirceu admirando a grande cruz fincada no alto da serra do Ita-corumi. Pequeno oráculo. Dirceu vai até ao pequeno oráculo e olha para dentro dele. Escada de degraus de pedras na entrada do pequeno oráculo. Dirceu observa a escada do pequeno oráculo. Ele vai até o primeiro degrau da escada e observa a entrada do oráculo. Ele tira o chapéu da cabeça e desce os degraus do oráculo. Vento forte e frio bate nas costas de Dirceu. Dirceu para em um dos degraus da entrada do pequeno oráculo. Sombra de uma pessoa. Dirceu vê a sombra de uma pessoa. Ele olha para trás. A sombra da pessoa transforma-se em um HOMEM MAGRO E ESQUIO olhando para Dirceu. Dirceu cumprimenta-o, mas o homem magro e esquio não dá confiança para Dirceu. O homem magro e esquio tem o olhar de um lobo faminto e perigoso. DIRCEU (VOICE OVER) Quando os pedreiros e o carpinteiro finalizaram o trabalho, cavalguei para o alto da serra a fim de contemplar o pequeno oráculo e o padrão cristão que nele se erguia. Ao chegar lá, admirei o cruzeiro, amarrei o meu cavalo numa árvore e me dirigi ao pequeno oráculo, pronto para descer os curtos degraus e entrar-me nele. De repente, senti um vento forte e 757 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior frio bater-me pelas costas. Uma sombra chamou a minha atenção. Olhei para trás e vi um homem magro e esquio olhando para mim seriamente. Não assustei. Pensei tratar-se de alguém que visitasse a recente cruz, que chamaria a atenção das pessoas lá embaixo, principalmente de quem passasse pela estrada que conduzia a Vila Rica. Cumprimentei-o e não obtive resposta. Fitei-o. Ele encarava-me com o par de olhos, como se fosse um lobo a cercar as ovelhinhas num lugar totalmente descampado. Não medi o tempo para temer. Dirigi-me até ele e perguntei. VOLTA PARA Dirceu está na escada do pequeno oráculo olhando para o homem magro e esquio. DIRCEU Quem é vós mercê? Vinde cá para ver a cruz e o pequeno oráculo de perto? Escada do pequeno oráculo. O homem magro e esquio olha para Dirceu com os olhos fosforescentes. Dirceu olha assustado para os olhos do homem magro e esquio. O homem magro e esquio enche o peito de ar e fala com uma voz igual a de um trovão. O HOMEM MAGRO E ESQUIO Tens contigo uma chave, não tem? Dirceu responde "sim" com a cabeça. O homem magro e esquio enche novamente o peito de ar e fala com uma voz igual a de um trovão. O HOMEM MAGRO E ESQUIO Então, tu foste o escolhido para esta missão. Se a ti foi incumbida essa tarefa, meu jovem, tu terás, a partir de agora, de enfrentar uma dura prova. 758 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (fala por solilóquio) Será se ele está falando é sobre as tarefas impostas pelo meu pai, quanto às moedas assassinas do Judas e a transformação da fazenda em um pequeno povoado? DIRCEU (dirige-se ao homem magro e esquio) Sim. A mim não foi incumbido apenas uma tarefa, mas duas ou muitas, talvez. O HOMEM MAGRO E ESQUIO A mim interessa que cumpra apenas uma... DIRCEU (assusta-se) Uma promessa? Qual? O HOMEM MAGRO E ESQUIO A promessa que fizeste a uma pessoa, um dia. DIRCEU Ao meu pai? Mas eu não prometi nada a ele, apenas recebi uma carta dele a pedir-me que... O HOMEM MAGRO E ESQUIO Se tu não lembras a quem deve a promessa, não há problema. Tudo o que posso afirmar-te é que chegou o momento de passares pelas provas. Sê, porém, prudente e sábio, para que tudo possa começar e terminar bem. O homem magro e esquio abre os braços. Os braços do homem magro e esquio transformam-se em asas brancas. O homem magro e esquio transforma-se em um anjo. Dirceu fica bobamente olhando para o anjo. 759 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU São Miguel Arcanjo! O homem magro e esquio, transformado em anjo aproxima-se de Dirceu. Mão direita do homem magro e esquio, transformado em anjo. O homem magro e esquio, transformado em anjo, coloca a mão direita sobre os peitos de Dirceu e, magicamente arranca do pescoço dele a pequena chave de ouro com corrente e tudo. O homem magro e esquio, transformado em anjo, desintegra-se deixando uma poeira de névoa. Dirceu passa as mãos no pescoço e fica procurando o homem magro e esquio transformado em anjo. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Como eu explicarei à Marília a perda da pequena chave? Se aquela chave era para abrir o coração dela, por que haveria de servir àquele anjo? SEQUÊNCIA 257 – INT./EXT./DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. PEQUENO ORÁCULO E LUGAR DESCAMPADO. Degraus do pequeno oráculo. Dirceu, parado em um dos degraus do pequeno oráculo, esfrega os olhos, abri-os e mira por todos os lados. Escada do pequeno oráculo. Dirceu desce os degraus do pequeno oráculo. Interior do pequeno oráculo. Dirceu ajoelha-se no interior do pequeno oráculo. O vento sopra no interior do pequeno oráculo. Dirceu escuta no sussurro do vento a voz de Tomás Antônio Gonzaga, em off. TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (OFF) Tu és ainda muito jovem, viverás muito. Portanto, ouça o que tenho para dizer-te. Por ceitil algum venda a tua liberdade. Também não te arrisques, jamais, perdê-la em prol da coletividade... 760 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Degraus do pequeno oráculo. Dirceu sobe correndo os degraus do pequeno oráculo e sai. Descampado do alto da serra. Dirceu olha para todo o descampado do alto da serra. Dirceu fala por solilóquio. DIRCEU Vender a minha liberdade? Eu jamais faria isso, seja lá por ceitil que fosse. OUTRA VOZ ESTRANHA FEITO A UM TROVÃO profere-se em off através do vento, despertando a atenção de Dirceu. OUTRA VOZ ESTRANHA FEITO A UM TROVÃO (OFF) Dirceu, quando cumprires a tua tarefa, ouça o teu coração. Tu és um homem bom. Por favor, não se esmoreça. Tu estás preparado a cumprir essa missão. Seja, portanto, tenente perante a tudo o que vier a acontecer-te. Não caias na tentação de pensar na coletividade. Pense apenas em ti, a missão exigirá isso de vossa senhoria. Dirceu corre pelo descampado, olha para um lado e outro e vê ninguém. Dirceu tapa os ouvidos com as mãos. DIRCEU Não estou entendendo o que está acontecendo comigo. Que missão terei de cumprir? Quem falava comigo por intermédio do vento? OUTRA VOZ ESTRANHA FEITO A UM TROVÃO (OFF) Tu entenderás tudo, no momento certo. Saberás qual é a missão que terás de cumprir. Saiba, portanto, que a minha voz, nada mais é que a manifestação da tua própria consciência. Lembra-te, meu jovem, o que tenho a pedir-te: por ceitil algum venda a tua liberdade! DIRCEU Por ceitil algum venderei a minha liberdade. A outra voz estranha perde-se no ar, cantando uma doce e leve melodia. Há uma pausa de silêncio. Dirceu anda tranquilamente pelo descampado 761 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior do alto da serra. Cavalo de Dirceu amarrado no tronco de uma das árvores. Dirceu anda em direção ao cavalo dele. Ouve-se, porém, no ar, uma terrível gargalhada. Dirceu tapa os ouvidos, quase caindo no chão, temendo a surdez. Após cessar a gargalhada, Dirceu ouve novamente uma voz grave, provinda das entranhas da terra. Esta voz grave, provinda do interior da terra é a do DEMÔNIO, qual se transfigurará em várias imagens. A voz grave provinda das entranhas da terra é a do demônio, qual está em off. DEMÔNIO (OFF) Dirceu, quando cumprires a missão, farei brotar para ti o ouro e a prata do seio da terra e, como se isso não bastasse, darei a ti todos os ricos tesouros escondidos entre o céu e a terra. Basta que cumpras a mim o que tenho a revelar-te. Dirceu fica a rodar com os braços abertos pelo descampado do alto da serra, desorientado ou perdido, sentindo-se num lugar deserto e distante. DIRCEU O que tens a revelar-me? O que queres de mim? DEMÔNIO (OFF) (Voz grave, provinda das entranhas da terra) Pegue as trinta moedas que estão sob o teu poder e deposite-as num cofre de ofertas da primeira igreja em que tu encontrares. CORTA PARA FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros apócrifos sobre a morte de Jesus Cristo. 762 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior SEQUÊNCIA 212.2 – CONTINUAÇÃO – EXT./INT./NOITE. JERUSALÉM. TEMPLO DOS ESCRIBAS E SACERDOTES. Noite. Templo dos escribas e sacerdotes. Judas Iscariotes aparece no templo dos escribas e dos sacerdotes. UM DOS ESCRIBAS E UM DOS SACERDOTES vão ao encontro de Judas Iscariotes... JUDAS ISCARIOTES Não foi justo o que fiz. Entreguei a vida do filho de Deus para ser julgado pelos homens. Nunca na fase da terra houve homem tão justo quanto Jesus Cristo.... UM DOS ESCRIBAS É tarde para se arrepender Iscariotes. Quer o quê, que salvamos o tal Messias? JUDAS ISCARIOTES (abre as mãos trêmulas com o saco de trinta moedas de prata) As minhas mãos não param de tremer... Moedas malditas, de sangue inocente... O um dos escribas e o um dos sacerdotes olham para Judas Iscariotes e dão risadas. Judas Iscariotes joga o saco de moedas nos pés de um dos sacerdotes e sai correndo para fora do templo. Saco de moedas jogado no chão. O um dos escribas pega o saco de moedas jogado no chão. Árvore em algum lugar de Jerusalém. Judas Iscariotes enforcado em uma árvore em algum lugar de Jerusalém. VOLTA PARA SEQUÊNCIA 257.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA. ALTO DA SERRA DO ITA-CORUMI. LUGAR DESCAMPADO DA SERRA. Dirceu no descampado da serra do Ita-corumi. 763 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Se ao devolver as pratas, os sacerdotes e os escribas não quiseram depositá-las no cofre das ofertas, haveria eu de fazer isso? Nunca! Descampado da serra do Ita-corumi. O cavalo de Dirceu relincha. Dirceu olha para a direção em que o cavalo dele está amarrado. Cavalo amarrado no tronco de uma das árvores. Na árvore em que o cavalo de Dirceu está amarrado, Dirceu vê, ilusoriamente, um corpo de um homem suspenso com uma corda sobre o pescoço. Este homem é o Judas Icariotes. DIRCEU Judas! É o Iscariotes que pede a mim este favor? DEMÔNIO (OFF) (voz grave, provinda das entranhas da terra) Somente vossa senhoria poderá salvar esta pobre alma. Sabes bem quem ela é. Precisamos de alguém com um bom coração para absolvê-la do terrível pecado cometido. Basta atender o nosso pedido e esta pobre alma se libertará para sempre. DIRCEU Se os sacerdotes rejeitaram devolver as moedas por elas serem pacto de sangue, haveria, eu, de depositá-las num cofre santo? Se eu assim fizer, darei ao Iscariotes 3.000 anos de reinado sobre a terra despertando aos homens a vã cobiça. DEMÔNIO (OFF) (voz grave provinda das entranhas da terra) Escutaste muito bem a voz da tua consciência pedindo-te a não pensar na coletividade. Pense em vossa senhoria. Se tu absolveres esta pobre alma, ganharás toda a riqueza que um homem possa ter na terra. Tu terás ouro, prata, diamantes e... 764 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu fica a rodar novamente com os braços abertos pelo descampado do alto da serra. Ele tapa os ouvidos com as mãos e grita. DIRCEU Não, não quero riqueza alguma. Afasta-te de mim, satanás. O Demônio transforma-se em uma tocha de fogo brotando da terra e vai em direção de Dirceu, como se fosse uma pesada corrente de água. Ao chegar perto de Dirceu, o Demônio transformado em tocha de fogo transfigura-se em forma humana de um homem. O HOMEM transfigurado pelo Demônio parece com JESUS CRISTO. Dirceu fica parado olhando para a forma humana de homem que parece com Jesus Cristo. O homem transfigurado pelo Demônio que parece com Jesus Cristo tem um olhar tranquilo e uma voz mansa. DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM JESUS CRISTO Não estás a crer em quem eu sou? Quero perdoar aquele que me vendeu aos homens e, portanto, preciso de um bom cristão que cumpra esta missão. Se as moedas estão sob o teu poder, porque não as apanha e deposite-as num cofre santo de uma igreja? DIRCEU (lábios trêmulos) Tu és o salvador do mundo? DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM JESUS CRISTO Sou quem tu estás a dizer... DIRCEU Quem és, então? DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM JESUS CRISTO Sou quem tu estás pensando que sou... 765 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Se és quem estou querendo dizer quem tu és ou quem estou pensando quem tu és, abra as tuas mãos e mostre a mim os furos dos pregos cravados na santa cruz... O homem transfigurado pelo Demônio que parece com Jesus Cristo abaixa a cabeça e aperta as mãos fortemente. Dirceu cai de joelhos nos pés do Homem transfigurado pelo Demônio que parece com Jesus Cristo e risca no chão o sinal da cruz. O homem transfigurado pelo Demônio que parece com Jesus Cristo transforma-se em um TERRÍVEL MONSTRO. Dirceu cai no chão de susto ao ver o terrível monstro. DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM TERRÍVEL MONSTRO Cumpra o que estou a pedir-te. Caso contrário, quando desceres deste morro, tu não mais encontrarás a tua fazenda. DIRCEU Acabarás com tudo o que possuo? DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM TERRÍVEL MONSTRO Digamos que sim, inclusive com quem tu mais amas! DIRCEU (grita desesperado) Marília. Não! Minha Marília, não! DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM TERRÍVEL MONSTRO Então cumpra a promessa. DIRCEU Eu não cumprirei, sem antes conhecer os mistérios dessa missão, se pretendes arruinar-me, creio existir alguém capaz de ajudar-me. 766 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Demônio transfigurado em um terrível monstro transforma-se, agora, em UM ANJO DE ASAS PRETAS. DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM ANJO DE ASAS PRETAS Alguém capaz de ajudar-te? Nunca. Tu seguirás um caminho torto, capaz de perder-te o equilíbrio, ou seja, a razão e a emoção. DIRCEU (faz o sinal da cruz) Tu não conseguirás isso. DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM ANJO DE ASAS PRETAS Veremos. Se não prometeres a cumprir-me a missão, voarei sobre as tuas terras e espalharei nela uma cinza poderosa, a qual impedirá que tu vejas nada ou ninguém que exista por lá. Tu serás banido de tua própria terra, sem nunca saíres dela. Tornarás um volteador, andarilho, até quando escolheres entre sete caminhos, aquele que tu deverás seguir. Qual dos caminhos seguirás? O caminho dos homens? O dos deuses ou o dos anjos? Quem sabe não nos encontraremos em um deles. DIRCEU Terei de escolher um caminho, entre os sete? DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM ANJO DE ASAS PRETAS Sim! E se não tiveres equilíbrio, perecerás para sempre em um deles. Descampado do alto da serra. Cruz erguida no descampado do alto da serra. Dirceu corre para perto da cruz erguida no descampado do alto da serra. Dirceu fecha os olhos e transfigura-se rapidamente em um menino de 14 ou 15 anos de idade. 767 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU TRANSFIGURADO EM UM MENINO Não cumprirei, não cumprirei, não cumprirei. Dirceu abre os olhos e volta à forma normal de homem. Uma enorme ave negra voa pela serra abaixo. Dirceu avista a enorme ave negra voando pela serra abaixo. DIRCEU (fala por solilóquio) Meu Deus, será se aquela ave negra vai causar danos à minha fazenda e ao meu povo? Cavalo de Dirceu amarrado no tronco de umas das árvores do descampado do alto da serra. Dirceu corre até o cavalo dele. Serra. Trilha da serra. Dirceu montado em seu cavalo cavalga descendo a serra pela trilha. DIRCEU (fala por solilóquio descendo por uma pequena trilha da serra do Ita-corumi) Tenho de chegar urgente em minha fazenda, quem sabe o padre Joaquim Alonso não me ajude a resolver esse problema. A ave negra é o anjo decaído do céu, que há séculos vive querendo ganhar almas cá, na terra... CAPÍTULO 16 SEQUÊNCIAS 258-264 Personagens deste capítulo: Dirceu Marília Velho pastor (Padre Joaquim Alonso) Anjo Celestial Oito ninfas Deusa Vênus 768 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Júpiter Prometeu Deusa Réia Vozes espaço (off) As sete estrelas filhas de Arlas Imagem de Dirceu (vaqueiro) Plateia Vento (off) Farias São Miguel Arcanjo Ancião (Tomás Antônio Gonzaga) Escribas e sacerdotes Anjos ensombrados Anjo São Gabriel Bando de abutres (anjos negros) FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA 1. Sequência 18 2. Sequência 114 3. Sequência 174 4. Sequência 21 5. Sequência 22 6. Sequência 23 7. Sequência 257.1 8. Sequência 24 SEQUÊNCIA 258 –EXT./DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. Serra do Ita-corumi. Patas do cavalo de Dirceu cavalgando na trilha da serra do Ita-corumi. Dirceu montado no cavalo, segurando firme a rédea. Várias trilhas vão surgindo. Dirceu freia o cavalo, para, olha para 769 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior as trilhas, tira o chapéu da cabeça, olha para um lado e para o outro Dirceu escolhe uma das trilhas e sai cavalgando. DIRCEU (VOICE OVER) No início pareceu-me fácil a viagem, mas, tempos depois, percebi que quanto mais eu descia a serra, mais eu me perdia nela. Por mais que eu galopasse, eu não encontrava a minha fazenda, a estrada que conduzia a Vila Rica e nem tampouco as casas, fazendas ou sítios da vizinhança. Toda a paisagem era familiar, somente não havia aonde e nem por onde andar para encontrar qualquer ponto capaz de orientar-me. Inventei gritar por Marília, pelos rapazes da fazenda e nada. Todos os meus gritos, instantes depois, eram devolvidos a mim, pelos ecos. Finalmente convenci de que o belzebu havia cumprido a promessa de banir-me das minhas terras sem que eu realmente saísse dela. Serra do Ita-corumi. Pôr-do-sol. Dirceu cavalgando a serra do Itacorumi. Ele tem várias visagens, ele vê a fazenda Ribeirão do Meio, a capela da fazenda e todos da fazenda esperando-o na cancela. Dirceu cavalga rápido, mas não consegue chegar à fazenda e nem em lugar algum de suas visagens. Ele começa a suar o rosto, vê Marília montada em um cavalo branco, ao lado dele, dentro de um facho de luz. MARÍLIA Vá adiante, Dirceu, não desista. Esta viagem será em um grande bem à humanidade. Fique tranquilo, cá, cuidarei de tudo... DIRCEU Marília, minha Marília... Tenho sede, mata-me a sede com um beijo teu... Dirceu tenta emparelhar o cavalo dele com o cavalo de Marília, mas Marília e o cavalo se desaparecem. Dirceu grita por Marília, a serra ecoa 770 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior os gritos de Dirceu. Anoitece. Dirceu cavalga durante toda a noite pelas trilhas da serra. SEQUÊNCIA 259 –EXT./DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. CASA DE PAU A PIQUE. Amanhece o dia. Dirceu aparece cavalgando em um lugar plano da serra do Ita-corumi. Lago com água azul e cristalina. Há uma casa de pau a pique á beira do lago. Dirceu freia o cavalo e olha para a casa de pau a pique à beira do lago. Dirceu desapeia do cavalo e aproxima-se da casa de pau a pique à beira do lago. Casa de pau a pique à beira do lago. A porta da casa de pau a pique está aberta. Dirceu aproxima-se da porta e chama por alguém, batendo palmas. Ninguém atende. Dirceu entra na casa de pau a pique. Sala da casa de pau a pique. Enorme banco de madeira na sala da casa de pau a pique. Dirceu senta-se no enorme banco de madeira da sala da casa de pau a pique. Ele deita em seguida no enorme banco e dorme tranquilamente. A imagem que se tem de Dirceu dormindo no banco é que o banco é tão grande, que ele torna-se uma imagem reduzida no banco. DIRCEU (VOICE OVER) Pela manhã, avistei uma pequena cabana à beira de um lago. Dirigi-me até ela. A porta da cabana estava entreaberta e, embora ousasse chamar pelos moradores, ninguém dela saía para atender-me. Julgando ser uma casa abandonada, entrei e sentei num enorme banco de madeira. O cansaço dominou o meu corpo. Adormeci ali, profundamente. Sala da casa de pau a pique. Enorme banco de madeira na sala. Dirceu dormindo. A imagem de Dirceu está reduzida e aos poucos vai se ampliando no banco até ele acordar. Dirceu acorda e senta-se no grande banco. Aparece de repente um velho pastor, sentado no banco. O VELHO PASTOR é o padre Joaquim Alonso de barbas e cabelos brancos, magro e alto, de aproximadamente sessenta anos de idade. 771 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu assusta-se ao vê-lo, mas não o reconhece. Dirceu esfrega os olhos olhando para o velho pastor. DIRCEU Meu Deus, onde estou? VELHO PASTOR (olha para Dirceu pacientemente e dá uma risadinha) Ora, meu filho, vós mercê encontra-se numa humilde casa de um velho pastor. Fizeste uma grande viagem e creio que ainda deva estar exausto. DIRCEU Desculpe-me, é que eu não o conheço e... VELHO PASTOR Não tem problema, meu filho, aqui vós mercê é todo bem-vindo. A minha casa é pequena e humilde, mas o meu coração é grande. Como já me apresentei, sou um velho pastor e vivo a apascentar o meu rebanho. Se pensa que está perdido, não se preocupe, porque vós mercê não está. VELHO PASTOR (fica calado apenas olhando para o velho pastor) Não demorará a achar o caminho de volta para a sua casa. Dirceu, ainda calado sorri para o velho pastor. O velho pastor tira de um alforje da cintura um pequeno saco de pano e mostra para Dirceu. VELHO PASTOR Pegue isso e siga o caminho que eu apontar-lhe. Ensinarei a vós mercê como resolver todo esse enigma. O velho pastor estende o braço para entregar para Dirceu o pequeno saco de pano. Dirceu não pega o pequeno saco de pano, olhando para o velho pastor meio desconfiado. O velho pastor fica com o saco de pano na mão. 772 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU O que é isso? VELHO PASTOR Não sabe? Neste saco contem trinta moedas de pratas, para que vós mercê possa depositá-las num cofre da primeira igreja que encontrar. Após cumprir essa missão, achará as suas terras, estará de volta à sua fazenda, ao lado de sua esposa e gozando de uma imensa riqueza. Dirceu afasta-se do velho pastor. Ele sai da casa de pau a pique. O velho pastor acompanha Dirceu. Margem do lago. Dirceu e o velho pastor estão na margem do lado. DIRCEU Não, não aceitarei a fazer isso. Se o senhor é um lobo, disfarçado em pele de ovelha, é melhor manter-se longe de mim. VELHO PASTOR (atira o saco no chão, próximo à margem do lago) Não, não se assuste, não sou quem vós mercê pensa. Vós mercê acabou de demonstrar a sua virtude, quando rejeitou a cumprir a missão imposta pelo espírito maligno, no alto da serra. Ele quer dominar o mundo e acha possível comprar os homens com as suas promessas de riquezas ilusórias. Saco atirado no chão. O saco atirado no chão começa a se mover. De dentro do saco evapora-se uma débil fumaça. Dirceu e o velho pastor olham para o saco que está exalando a fumaça pelo ar. VELHO PASTOR Eis aí o resultado do seu prêmio. Ao demonstrar-se temente ao exército de Deus, vós mercê ganhará do céu mais virtudes. 773 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Saco exalando a fumaça pelo ar. A fumaça exalada pelo saco transforma-se em um ANJO CELESTIAL. VELHO PASTOR Garanto a vós mercê que muitos homens desta colônia atirariam contra esta virtude para possuir toda a riqueza da terra. DIRCEU A maior riqueza do homem é a que ele carrega em sua alma. O anjo celestial aproxima-se de Dirceu, abre as asas brancas e coloca as mãos sobre a cabeça de Dirceu. Pequena chave de ouro com a corrente na mão do anjo celestial. O anjo celestial coloca a pequena chave de ouro no pescoço de Dirceu. ANJO CELESTIAL Devolvo a ti a chave que irá protegê-lo daqui por diante. Somente um homem de brio, poderia ser escolhido para cumprir essa missão. Há séculos esperávamos, sem a intervenção de Deus, que fizesse surgir entre os homens alguém capaz de nos ajudar nessa missão. Recorremos aos espíritos dos reis, dos homens de guerras, dos pobres e sofredores e, somente em vossa senhoria encontramos a verdadeira virtude. VELHO PASTOR Dirceu, vós mercê, a partir de agora, passará pela prova dos sete caminhos. Essa prova não dependerá somente de sua inteligência, mas também da magnificência do seu coração. Dirceu abaixa-se a cabeça e demonstra está preocupado. O anjo celestial olha para ele sorrindo. 774 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior ANJO CELESTIAL Não temas, quando deparares com os sete caminhos, tudo o que tens de fazer é buscar o equilíbrio do teu espírito entre a luz da razão e a luz da emoção. Se tu escolheres o caminho certo, ele te levará a tua real missão. DIRCEU A missão "monetae sicarii ludas"? O anjo celestial responde "sim" balançando a cabeça e farfalhando as asas. O velho pastor aproxima-se de Dirceu. VELHO PASTOR Se vós mercê escolher o caminho certo, receberá ordens a cerca do que deverá fazer. Não tenha medo e não se aborreça, pois, ao tocar no maldito tesouro, vós mercê terá direito a agir conforme o seu livre-arbítrio. Tanto o velho pastor, quanto o anjo celestial desaparecem. Dirceu fica só diante do lago. Ele dirige-se até a margem próxima do lago e fica reparando a imagem dele refletida no lago. Imagem de Dirceu refletida no lago. A imagem de Dirceu parece está refletida em um grande espelho. Dirceu senta-se à beira do lago e adormece. SEQUÊNCIA 260 – EXT./DIA. MARGEM DO LAGO. PORTUGAL. MARGEM DO RIO TEJO. GRÉCIA. MONTE PARNASO. LUGAR PLANO E ARENOSO. RELVADO VERDE E PLANO. Flash back – Sonho de Dirceu. Margem do lago. Surgem OITO NINFAS vestidas em túnicas transparentes na margem do rio. As oito ninfas estendem-se um grande lençol branco na margem do lago. Dirceu senta-se no grande lençol branco estendido na margem do lago. As ninfas pegam as pontas do grande lençol branco e voam mansamente pelo ar levando-o com 775 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior Dirceu. Visão panorâmica de Portugal. Dirceu sentado no lençol branco sendo carregado pelas oito ninfas, voando sobre os ares de Portugal. Rio Tejo. Dirceu é transportado para as margens do rio Tejo. As oito ninfas colocam o lençol branco em um bonito relvado às margens do rio Tejo, com Dirceu sentado sobre ele. Dirceu sentado no lençol branco às margens do rio Tejo. UMA DAS OITO NINFAS coloca uma coroa de folhas de oliveira na cabeça de Dirceu. Dirceu com a coroa de folhas de oliveira na cabeça. OUTRAS QUATRO NINFAS servem vinho para Dirceu em uma bonita taça de cristal. Dirceu bebe um gole do vinho. Carro puxado por cisnes estaciona-se próximo de Dirceu. Ele olha encantado para o carro puxado por cisnes. Uma bonita ninfa sedutora sai de dentro do carro puxado por cisnes. A ninfa sedutora é a DEUSA VÊNUS. Dirceu põe-se de pé. A deusa Vênus atira-se nos braços de Dirceu, sedutoramente. DEUSA VÊNUS Eu sou a deusa Vênus e se tu seguires o meu caminho, viverás fartamente as delícias do amor. Olhas para o Tejo, nele há abundâncias; tu ganharás todas as riquezas para viveres comigo na serra da Estrela. Lá, tu tornarás o meu vaqueiro e cuidará de um farto rebanho, sem nunca preocupares com o tempo que, para nós, será eterno. Dirceu põe-se de pé e foge dos braços da deusa Vênus. A deusa Vênus olha para Dirceu com os olhos quentes em brasas. Dirceu olha para os olhos quentes em brasa da deusa Vênus. Dirceu fecha os olhos. As ninfas dançam um bailado indo ao encontro da deusa Vênus. A deusa Vênus entra no carro puxado por cisnes. As ninfas circulam o carro puxado por cisnes. Carro, deusa Vênus e ninfas se desaparecem numa poeira de fumaça colorida. Dirceu abre os olhos e se vê no alto do monte Parnaso, o mais elevado dos montes Pindus, a noroeste do golfo de Corinto. Trono feito de pedras preciosas. Júpiter está sentado no trono de pedras preciosas. Dirceu é rapidamente transportado para diante do trono de Júpiter. Mãos de Júpiter lançam tenebrosos raios de fogo pelo ar. JÚPITER vê Dirceu e para de lançar os tenebrosos raios de fogo pelo ar. 776 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU Júpiter, tu és o deus Júpiter! Tu és o deus dos deuses, suprema autoridade do Olimpio e patrono de Roma! JÚPITER (tom compassado) O universo inteiro testemunhou a atitude da tua grandeza, quando tu negastes a cumprir a tarefa imposta pelas forças do mal, Dirceu. Não sei se tu sabes, sou conhecido como uma grande divindade protetora. Os homens e todos aqueles que são adeptos de mim, jamais se sentiram ou sentirão desamparados. Portanto, quero que tu sigas o meu caminho. Se segui-lo, verás que farei a ti um justo presente. Darei a ti uma enorme e eterna floresta de carvalho e sobre cada árvore gravarei nos troncos o teu nome e o de tua amada, Marília. Ambos serão os deuses das florestas e as governarão com retidão e justiça. Dirceu tenta falar alguma coisa para Júpiter, mas ele é tirado rapidamente da presença dele. Dirceu é colocado diante de um círculo de fogo, num lugar plano e arenoso. No meio do círculo de fogo, do lugar plano e arenoso, está PROMETEU. Dirceu olha para Prometeu. DIRCEU Prometeu, irmão de Epimeteu, cujas tarefa foi a de criar os homens e todos os animais. Foi vós mercê quem roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens... PROMETEU Sou Prometeu, símbolo imortal da humanidade. Luto contra a injustiça e a onipotência divina. Se tu, Dirceu, seguires o meu caminho encontrarás nele a encarnação da liberdade humana, que leva o homem a enfrentar com orgulho o seu destino. Darei a ti como prêmio a capacidade de venceres grandes lutas e capacidades de conquistares novas civilizações, tornando-te rei delas. 777 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior DIRCEU (fala por solilóquio) Quem disse que eu queria conquistar nações, dominar civilizações ou ser rei delas? Dirceu não está mais diante do círculo de fogo. Dirceu aparece de repente em um relvado verde e plano, parecendo infinito. Vento bate no rosto de Dirceu. Uma voz feminina responde o pensamento de Dirceu. A voz feminina é da DEUSA REIA. DEUSA REIA (OFF) Eu diria que sim! DIRCEU Quem respondeu o meu pensamento? A deusa Reia aparece no relvado verde e plano, parecendo infinito dentro de uma linda carruagem puxada por cavalos brancos. Dirceu fica mirando a carruagem e os cavalos brancos. UM COCHEIRO abre a porta da carruagem. A deusa Reia vira-se de lado, sentada, sem sair da carruagem. Ela olha para Dirceu. DEUSA REIA Sou a deusa Reia, cultuada em alguns pontos da Grécia. Sou conhecida também, entre os romanos, como a deusa Cibele. Se vossa senhoria escolher o meu caminho, eu o transformarei num eterno e imortal poeta. Cantará a natureza e a vida mística e sagrada de Creta, na Arcádia. Vossa senhoria não viverá preso como Dedálo e o filho Ícaro, no labirinto do rei Mino, ao contrário, darei a vossa senhoria um par de asas seguras e a liberdade de voar como águia, deslumbrando-se com as belezas, as mesmas que fascinaram o eterno e memorando Ícaro. Vossa senhoria poderá voar pelo azul do firmamento, aproximar-se do sol, sobrevoar o mar Egeu, de forma que, ao relatar as suas experiências em suas poesias, versejará aquilo que os poetas do mundo jamais conseguiram. 778 Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior VOLTA PARA Margem do lago. Dirceu está sentado na margem do lago. Ele abre os olhos e demonstra-se um pouco verve. O vento sopra o rosto dele. Ele põe-se de pé, assustado. A IMAGEM DE DIRCEU reflete no lago como se estivesse refletindo em um grande espelho. Dirceu anda pela margem do lago, olhando assustado para todos os lados. DIRCEU (fala por solilóquio) A troco de que os deuses do Olimpio estariam ali, no meu sonho a oferecer-me tantas promessas e prêmios? Lago. Água azul e cristalina. Imagem de Dirceu sentado, refletida no lago. Beira do lago. Dirceu sentado à beira do lago. Dirceu olha para a água azul e cristalina do lago. Dirceu vê a imagem de Marília refletida no lago. Ele põe-se de pé. A margem do lago transforma-se numa praia deserta de um mar. Dirceu vê Marília na praia deserta. Marília está linda e encantadora, vestida com um manto azul e com uma estrela brilhando intensamente sobre a testa. Junto a Marília está um pequeno rebanho de ovelhas alvas e puras. Marília olha para Dirceu com candura. Ela abraça Dirceu pela cintura. MARÍLIA Tu seguirás o meu caminho. Lembra-te, nele há o compromisso que firmaste comigo sob a bênção do padre. Seguirás comigo e nós, em nome do amor, brilharemos no céu servindo de orientação a todos os homens da terra. Mar. Ondas altas e espumantes do mar. Praia deserta. Dirceu tenta beijar Marília. Marília desaparece dos braços de Dirceu. Todo o pequeno rebanho de ovelhas alvas e puras também desaparece Dirceu olha para um lado e outra da praia deserta. Ele vê a casa de pau a pique. Ele está em pé na margem