ROTEIRO PARA TELEVISÃO
MISTÉRIO SOB AS LUZES DA ARCÁDIA
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Categoria: longa, televisão.
Proposta: 17 capítulos
Mistério sob as luzes da Arcádia / Francisco Rodrigues Júnior
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Longa /inédito / versão 2012
TRAMA
Num certo final de semana do ano da graça de 1784, o Narrador
conhece Tomás Antônio Gonzaga, através de padre Luís Vieira.
Três anos depois, em 1792, quando Gonzaga se envolve no
Movimento da Inconfidência Mineira e está próximo a ser
degredado à África, eis que o Narrador cumpre-lhe uma promessa
de visitá-lo na Serra da Fortaleza do Patriarca de São José da Ilha
das Cobras. Ao entrar na cela de Gonzaga, o Narrador – jovem a
que ninguém sabe quem é – se transforma em Dirceu, por
Gonzaga. Ele, portanto, tem uma missão a cumprir, qual, não se
resume apenas em viver um romance de amor com Marília, mas a
difícil missão de uma tarefa cheia de mistério e aventura, que
também envolverá o Iscaríotes, no dia da última ceia de Jesus
Cristo. Tudo acontece num espaço genuinamente arcádico: Minas
Gerais se faz cenário principal ao mundo da trama em plena
época, quando o Brasil vivia o ciclo do ouro.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
À Tizuka Yamasaki
A quem tenho grande apreço pelo sublime
trabalho na arte do cinema brasileiro.
“Chega um momento em sua vida, que voce sabe:
Quem é imprescindivel para voce,
quem nunca foi,
quem não é mais,
quem será sempre”!
(Charles Chaplin)
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
SEQUÊNCIAS 01-35.....................................................................6
CAPÍTULO 2
SEQUÊNCIAS 35-35.9................................................................58
CAPÍTULO 3
SEQUÊNCIAS 37-56....................................................................102
CAPÍTULO 4
SEQUÊNCIAS 57-76....................................................................141
CAPÍTULO 5
SEQUÊNCIAS 77-94....................................................................197
CAPÍTULO 6
SEQUÊNCIAS 95-114..................................................................247
CAPÍTULO 7
SEQUÊNCIAS 115-136................................................................298
CAPÍTULO 8
SEQUÊNCIAS 137-156................................................................381
CAPÍTULO 9
SEQUÊNCIAS 157.3-168.............................................................405
CAPÍTULO 10
SEQUÊNCIAS 169-184................................................................455
CAPÍTULO 11
SEQUÊNCIAS 185-202.1 .............................................................511
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CAPÍTULO 12
SEQUÊNCIAS 203-215................................................................566
CAPÍTULO 13
SEQUÊNCIAS 216-230................................................................615
CAPÍTULO 14
SEQUÊNCIAS 231-239................................................................671
CAPÍTULO 16
SEQUÊNCIAS 258-264 ...............................................................717
CAPÍTULO 15
SEQUÊNCIAS 245-257................................................................768
CAPÍTULO 17
SEQUÊNCIAS 265-282................................................................820
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CAPÍTULO 1
SEQUÊNCIAS 01-35
Personagens deste capítulo:
Narrador
Tomás Antônio Gonzaga
Padre Luís Vieira
Pai do de 16 anos
Criada de 18 ou 19 anos
Dirceu (passagem do Narrador)
Maria Antônia
Zé Antônio
Marília
Josias
Dragão alto e magro
Dragão gordo e baixo
Inconfidentes mineiros
Joaquim José da Silva Xavier
Homens negros e fortes
Crianças brancas e negras
Mulheres brancas e negras
Dragões
Tropeiros (homens a cavalos)
Dragão moreno
Dragão loiro
Narrador
Juvêncio
Dragões
Felipe dos Santos Freire
Mãe do menino de 12 anos e das filhas de 14 e 16 anos
Menino de 12 anos
Filha de 14 anos
Filha de 16 anos
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 1 – INT./DIA. VILA RICA.
Legenda: "Vila Rica, 1784”.
Manhã. Imagem panorâmica de Vila Rica. Vemos do alto os telhados
do casario, depois o casario, as praças, as ruas e pessoas brancas e
negras andando pelas ruas. Comércios abertos, placas dos comércios
detalhando nos letreiros a escrita da época. HOMENS NEGROS
montados em seus cavalos puxando jumentos com bruacas nos lombos.
Sinos repicando nas torres das igrejas do centro de Vila Rica. Igreja de
São Francisco.
REVOADA DE PÁSSAROS FUGINDO DA TORRE DA IGREJA
DE SÃO FRANCISCO.
SEQUÊNCIA 2 - SLIDE.
Exposição de imagens individuais dos inconfidentes mineiros, conforme
constam no inconsciente coletivo. São eles: JOAQUIM JOSÉ DA
SILVA XAVIER, INÁCIO JOSÉ DE ALVARENGA PEIXOTO,
SARGENTO-MOR LUÍS VAZ DE TOLEDO PISA, CORONEL
DOMINGOS DE ABREU VIEIRA, CORONEL FRANCISCO
ANTÔNIO DE OLIVEIRA LOPES, PADRE JOSÉ DA SILVA,
PADRE OLIVEIRA ROLIM, PADRE CARLOS CORRÊA DE
TOLEDO, CÔNEGO LUÍS VIEIRA DA SILVA, CLÁUDIO
MANUEL DA COSTA E TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA. Damos
importância para a figura de TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA, qual
será personagem desta história. A imagem de Tomás Antônio Gonzaga
se expande em um grande close e depois ganha uma pausa. A imagem
dele se converte no personagem para entrar em cena.
SEQUÊNCIA 3 – EXT./DIA. VILA RICA. CASA DE TOMÁS
ANTÔNIO GONZAGA.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA, magro, alto, olhos castanhos,
peruca (cabelos encaracolados, caídos aos ombros), 40 anos, sentado em
uma cadeira de braço na sala de visita de sua casa ao lado do
NARRADOR, um jovem de 23 anos, pele branca, olhos claros, alto,
magro, cabelos loiros, grandes e encaracolados e o PADRE LUÍS
VIEIRA, senhor de 50 anos, estatura mediana, olhos claros, cabelos
curtos, cercilhado ao centro, vestido a uma batina preta.
NARRADOR (VOICE OVER)
Quando eu soube que o meu admirado e velho amigo,
Gonzaga havia deixado se pegar no famoso vulto da
independência, e que todos diziam ser o verdadeiro líder da
conspiração, eu quase não acreditei. Eu conheci Antônio
Tomás Gonzaga em Vila Rica, num final de semana do ano da
graça de 1784, quando acompanhei o padre Luis Vieira a casa
dele.
CORTA PARA
Sala de visita da casa de Tomás Antônio Gonzaga. Padre Luís Vieira
está sentado em frente do Narrador e de Tomás Antônio Gonzaga.
PADRE LUIS VIEIRA
(falando entusiamado)
Este jovem, prezado Gonzaga, quando criança, sempre que o
senhor pai dele o levava em Mariana, ele estava sempre a
perguntar por tudo. Ele era um eterno admirador do céu e
queria saber o que faria para ver os anjos. Creio que, pelo fato
de eu ser padre, ele pensava que eu era capaz de mostrá-lo e,
até levá-lo ao mundo dos anjos...
(sorri olhando para o Narrador)
Mal ele sabia que para vê-los seria preciso trancar os olhinhos,
morrer... Mas ele, felizmente, se contentava em ver os anjos
dos afrescos da igreja. Ainda bem, que havia esse consolo...
CORTA PARA
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FLASH BACK – NARRADOR CRIANÇA - O Narrador é um menino
de aproximadamente 10 anos, pele branca, olhos claros, alto, magro,
cabelos loiros, grandes e encaracolados. Ele está em uma dada igreja em
Vila Rica, acompanhado pelo Padre Luís Vieira, qual se encontra um
pouco jovem. O Narrador olha para os afrescos de anjos, admirando-os.
PADRE LUÍS VIEIRA (OFF)
Ele viajava com os olhos pregados ao tetos, ria, a ponto de
ficar perdido, verve em pensamentos. Eu cá pensava, que
quando ele fosse jovem, seria logo tonsurado pelo santo
bispo. Daria um excelente padre. Porém, o danado, creio que
incentivado pelo pai, acabou escolhendo outra carreira...
CORTA PARA
Sala de visita da casa de Tomás Antônio Gonzaga.Tomás Antônio
Gonzaga está sentado de frente ao Narrador e ao padre Luís Vieira.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(olha para o Narrador um pouco surpreso)
Não quiseste seguir o celibato? Então qual a carreira foi
incentivada a ti, pelo senhor, vosso pai?
NARRADOR
(olha para o padre Luís Vieira, depois para Tomás Antônio
Gonzaga)
O senhor meu pai, na verdade, não foi o principal culpado de
incentivar-me a carreira. Foram os amigos dele, a maioria
fluente em assuntos ligados às leis e aos cânones...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Então, tu pretendes bacharelar-se em leis?
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
NARRADOR
(entusiasmado)
Sim, senhor Gonzaga, estou a caminho. Estudo em Portugal,
na Universidade de Coimbra...
PADRE LUÍS VIEIRA
(olhos arregalados, tom de voz profética)
E há de surpreender a todos, pois este menino é muito
estudioso, ativo, gosta de filosofia, sempre está a especular
sobre tudo, inclusive sobre os problemas da colônia. Sabe de
todos os acontecimentos de Portugal, lê quase todos os
jornais...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Isto é bom, padre Luís, isto é muito bom. Como sabemos esta
colônia está a passar por duras provas, pois o rei do outro
lado, qual se diz ser também rei dela, nada faz senão nos
cobrar duros impostos e duras penas. Sonhamos com o futuro
desta colônia acreditando em torná-la uma das maiores nações
do mundo. É uma pena que isso há de levar muitos e muitos
anos, senão, uma causa secular...
PADRE LUÍS VIEIRA
Às vezes eu chego a sonhar que esta colônia seja a terra
prometida, pois nela está a fluir leite e mel para Portugal...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Portanto, padre Luís, para que possamos provar que cá seja a
terra prometida é preciso que tenhamos um Moisés capaz de
lutar pela liberdade deste povo, que a cada dia torna-se todos
escravos de Portugal. Que tenhamos um Moisés, sim, um
Moisés corajoso, capaz de nos libertar das mãos de Portugal...
PADRE LUÍS VIEIRA
Ou mais cedo ou mais tarde isso haverá de acontecer,
Gonzaga. Para tudo é preciso ter esperança, nada acontece
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
sem antes passar por um amadurecimento. O que fazemos
agora é semear a semente e esperar que um dia alguém a colha
os seus frutos. Vejo hoje, por exemplo, este jovem a se
preocupar com as questões do mundo...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Este jovem a se preocupar com as questõs do mundo? Como
assim?
PADRE LUÍS VIEIRA
Ora, ele touxe-me uma folha de jornal, mostrando interessado
pelo assunto do tratado de Cabinda...
Padre Luís Vieira põe-se de pé. Rápido close no bolso da batina do
padre Luís Vieira. Ele enfia a mão no bolso da batina e tira para fora
uma folha dobrada de jornal. Ele entrega a folha dobrada para Tomás
Antônio Gonzaga.
PADRE LUÍS VIEIRA
(ainda entusiasmado)
Ele trouxe-me esta folha de jornal de Portugal, disse-me que
era para eu ficar inteirado do tratado franco-português sobre
Cabinda.
Tomás Antônio Gonzaga está com a folha de jornal nas mãos. Ele
desdobra a folha de jornal e passa os olhos sobre os textos impressos.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Obtive alguns conhecimentos sobre esse tratado. Tudo o que
eu sei é que Portugal está confiando nos seus direitos
incontestáveis e absolutos, porém, Leopoldo 11 sugeriu uma
reunião de uma conferência internacional para delimitar os
territórios em África. Creio que Portugal acabará ficando com
os territórios de Cabinda, Malembo e Massábi, ao norte do
Zaire...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Folha de jornal nas mãos de Tomás Antônio Gonzaga. Ele dobra a
folha de jornal. O padre Luís Vieira olha para Tomás Antônio Gonzaga.
Tomás Antônio Gonzaga devolve a folha de jornal ao padre Luís Vieira.
O Narrador, sentado em seu canto, fica observando o padre Luís Vieira
conversando com Tomás Antônio Gonzaga. Tomás Antônio Gonzaga
mira-se para o Narrador cheio de convicções.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Eu também estudei na Universidade de Coimbra e quase fui
professor lá. A minha tese foi sobre Tratado de Direito
Natural. Mas depois, devido algumas pretensões pessoais,
resolvi não seguir o magistério. Optei-me à magistratura.
Exerci o cargo de juiz de fora, na cidade de Beja, em Portugal
e em 1782, ao retornar-me para cá, fui nomeado Ouvidor dos
Defuntos e Ausentes desta comarca, prosseguindo, até hoje, a
minha labuta...
VENTO FORTE NAS JANELAS DA SALA, AS CORTINAS
SOBEM E DESCEM.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 4 - EXT./NOITE/DIA. VILA RICA. PEQUENA
VILA DO MORRO DAS QUEIMADAS.
Legenda: "Revolta de Vila Rica, 1720".
Noite do ano de 1720. DRAGÕES a cavalos, com tochas de fogos nas
mãos invadindo uma pequena Vila do Morro. Os dragões ateiam fogo
nas casas. Gritos de desesperos de homens, mulheres e crianças. Casas
pegando fogo, dragões com tochas de fogo nas mãos e homens,
mulheres, crianças e animais correndo pelas ruas.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 5 – EXT./DIA. VILA RICA. PRAÇA COM
CADAFALSO.
Manhã nublada. Vila Rica com cadafalso em uma de suas praças.
DRAGÕES imponentes cavalgando pelas ruas. PESSOAS andam pelas
ruas de Vila Rica indo encontrar-se com outras pessoas na praça onde
está o cadafalso. FELIPE DOS SANTOS FREIRE, português, cor
branca e olhos claros, de 40 anos de idade, é enforcado no cadafalso e
depois retirado da forca por alguns dragões. O corpo de Felipe dos
Santos Freire é arrastado pelas ruas de Vila Rica.
SEQUÊNCIA 6 - INT./EXT. NOITE. VILA RICA. NUMA
DETERMINADA CASA EM VILA RICA.
Noite. Sala ampla iluminada por candeeiros. Mesa. Vestido de
casamento sobre a mesa. Agulhas sobem e descem, costurando o
vestido de casamento. Mãos delicadas costurando o vestido. MÃE,
mulher branca, alta, gorda e olhos escuros, de 30 a 35 anos e as TRÊS
FILHAS, uma de 12 anos, pele clara, alta e olhos escuros, outra de 14
anos, pele morena, olhos escuros e gorda e outra de 16 anos, alta,
magra, pele morena e olhos escuros bordam o vestido de casamento.
Sala de visita. Janela da sala de visita, aberta, vista do lado interno da
casa. Tamborete de couro encostado à janela aberta, da sala de visita.
MENINO de 10 anos, pele morena, magro, olhos escuros e cabelos
corridos de pé no tamborete de couro, espiando o lado de fora da rua.
Rua. Casas. Portas e janelas das casas fecham-se rapidamente. Rua.
Cavalos. DOIS DRAGÕES (soldados da coroa portuguesa, no Brasil,
uniformizados conforme os militos da época colonial do séc. XVII. Eles
são dentificados pelas suas fisionomias: um gordo e baixo; outro magro
e alto, os dois de aproximadamente 40 anos de idade, usam bigodes,
barbas e cabelos ruívos) cavalgam pela rua. O menino de pé no
tamborete de couro, espiando o lado de fora da rua observa os dois
dragões cavalgando pela rua. Os DOIS DRAGÕES vêm em direção à
casa do menino que está de pé no tamborete de couro, espiando o lado
de fora da rua. Janela. O menino de pé no tamborete de couro, espiando
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
o lado de fora da rua fecha a janela. O menino salta-se do tamborete e
corre. Sala ampla, MÃE e FILHAS DE 12, 14 E 16 ANOS, costurando
o vestido. O menino chega correndo na sala ampla. A mãe e as três
filhas de 12, 14 E 13 anos olham assustadas para o menino. A mãe põese de pé. Vestido de casamento sobre a mesa.
MENINO
(olha para a mãe, apavorado)
Mamãe, soldados da coroa, soldados da coroa estão vindo cá...
MÃE
(assustada pega o vestido de casamento da mesa, embolandoo nas mãos e nos braços)
Corram para o quintal, meus filhos. Corram! Escondam-se lá
fora...
As três filhas de 12, 14 e 16 anos e o menino saem correndo da sala
ampla para o quintal da casa. Quarto de casal. A mãe corre para o
quarto de casal com o vestido nas mãos. Porta aberta do quarto de casal.
A mãe entra no quarto de casal. A mãe vê o baú no canto próximo à
cama de casal. A mãe abre o baú e joga o vestido dentro. A mãe fecha o
baú. Baú fechado. Porta aberta do quarto de casal. A mãe espia a sala
ampla, pela porta aberta do quarto de casal. A mãe sai do quarto de casal
e corre para a sala de visita. Sala de visita. Tamborete caído no chão. A
mãe na sala de visita. Porta da sala aberta. A mãe olha para a porta.
DOIS DRAGÕES, UM ALTO E MAGRO, OUTRO GORDO E
BAIXO aparecem na porta aberta da sala de visita. A mãe se assusta ao
ver os dos dois dragões na porta de entrada da sala de visitas. Os dois
dragões entram na sala de visitas e, em seguida, marcham para a sala
ampla. A mãe segue-os. O dragão magro e alto se destaca ao entrar na
sala ampla
DRAGÃO ALTO E MAGRO
Estamos cá para cobrar-lhe o imposto...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MÃE
(trêmula)
O senhor meu marido se encontra no garimpo, há dias não
volta para casa. Temos dificuldades em manter nossos filhos,
a nossa família... Há meses, ninguém consegue nada nos
garimpos.
DRAGÃO ALTO E MAGRO
(fecha a cara)
Eu cá tenho alguma coisa com isso? Vós mercês devem à
coroa alguns réis. O rei, como todos sabem, exige as nossas
providências...
MÃE
Mas o que temos, cada dia está mais pouco... O rei está a nos
tirar até as migalhas que caem debaixo da nossa mesa...
DRAGÃO BAIXO E GORDO
(dá risadas)
Ora, ora, se está a cair migalhas debaixo da mesa, é sinal de
que os pães estão fartos...
MÃE
(chorando)
Não compreendem o meu tormento, nem recorrendo à bíblia,
vossemecês são capazes de nos entender... Senhores, eu nada
posso fazer...
DRAGÃO ALTO E MAGRO
Não? Pois bem, então vasculharemos toda a casa, e, quem
sabe, encontraremos alguns bens que possam servir à coroa...
A mãe solta um grito e corre para o quarto de casal. Sala. Os dois
dragões vasculham a sala ampla. Porta aberta do quarto de casal. O
dragão gordo e baixo aparece na porta do quarto de casal. Baú perto da
cama de casal. O dragão gordo e baixo entra no quarto de casal e dirige15
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
se ao baú. A mãe tenta impedi-lo de se aproximar do baú. O dragão
gordo e baixo empurra a mãe. Cama de casal. A mãe cai deitada de
costas na cama de casal. O dragão gordo e baixo aproxima-se do baú e
abre-o. Baú aberto. Vestido de noiva dentro do baú aberto. O dragão
gordo e baixo vê o vestido de casamento enrolado no baú.
DRAGÃO GORDO E BAIXO
(olha para o vestido e em seguida para o dragão gordo e baixo)
Venha até cá, amigo. Creio ter encontrado algo útil... Traga cá
uma candeia, preciso de luz para observar direito este objeto...
Porta do quarto de casal. Dragão magro e alto com uma candeia na mão
estendendo a fraca luz para o interior do quarto de casal. Quarto de
casal ilumina-se. O dragão magro e alto entra no quarto de casal e
apressa os passos até o velho baú. Candeia. Dragão magro e alto
aproxima-se a luz da candeia no baú. Dragão gordo e baixo segura a
tampa do baú. Luz da candeia no interior do baú. Vestido de noiva.
Dragão gordo e baixo tira o vestido de noiva do baú. Cama de casal. A
mãe deitada na cama de casal tenta reagir, levantado e empurrando o
dragão gordo e baixo. O dragão gordo e baixo empurra novamente a
mãe na cama de casal. A Mãe caída na cama de casal. Dragão gordo e
baixo abre o vestido de noiva e fica a repará-lo.
DRAGÃO GORDO E BAIXO
Peça muito valiosa. Olha só, prezado amigo, fazenda francesa,
flores bordadas com linhas de ouro...
DRAGÃO MAGRO E ALTO
Servirá à coroa. Parece roupa de princesa, enviaremo-lo para a
corte...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MÃE
(deitada na cama assustada e com a voz trêmula)
Senhores, não façam isso. Não levem este vestido. Ele está
sob a minha responsabilidade. O vestido pertence a uma
noiva de um comendador de Mariana. É para um casamento
que acontecerá em breve...
DRAGÃO GORDO E BAIXO
Não temos nada com isso. Apenas cumprimos ordens. Devem-se ao
erário, pagam-se por via de qualquer forma... Se quiseres resgatar o
vestido, procure-nos para saldar as suas dívidas...
Vestido de noiva nas mãos do dragão gordo e baixo. Dragão gordo e
baixo enrola o vestido de noiva de qualquer jeito, coloca-o debaixo do
braço e sai do quarto de casal. A mãe sai do quarto de casal, atrás do
dragão gordo e baixo, tentando tomar-lhe o vestido de noiva. Sala de
visita, próximo à porta de saída da casa, a mãe aflita, esmurra as costas
do dragão gordo e baixo. O Dragão alto e magro agarra a mãe de
qualquer jeito e joga-a no canto da parede da sala. A porta está aberta.
Os dois dragões saem. A mãe levanta-se do chão, corre para a janela e
abre-a. A MÃE faca a fitar o lado de fora da rua. Rua. Cavalos. Os dois
Dragões cavalgam longe. Interior da sala de visita. A MÃE se atrira no
chão chorando. Menino e as três filhas de 12, 14 e 16 anos entram
correndo na sala de visita para socorrerem a mãe. O menino e as três
filhas de 12, 14 e 16 anos e a mãe agarram-se mutuamente. Eles choram
agarrados uns aos outros.
NARRADOR (OFF)
Embora eu soubesse que em nossa colônia, desde o século
passado, cogitavam-se guerrilhas entre brasileiros e reinóis,
ora pela posse do ouro, ora pela libertação e organização da
nossa capitania. Eu não imaginava que, após tantos
insucessos, alguém em nossa vila fosse capaz de seguir à risca
os ideais dos grandes iluministas europeus para colocar em
ação um plano contra a Coroa Real.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 7 - INT./NOITE. VILA RICA. CASA DE CLÁUDIO
MANUEL DA COSTA.
Sala ampla, janelas fechadas com cortinas de rendas brancas e lampiões
acessos. Há uma enorme mesa de cavalete forrada com uma toalha azul
de rendas brancas, onde estão sentados em volta dela os inconfidentes
mineiros. Joaquim José da Silva Xavier apresenta uma bandeira branca
com um triângulo e a expressão latina “LIBERTAS QUAE SERA
TAMEM” aos inconfidentes e depois a bandeira é passada pelas mãos
de todos até chegar nas mãos de Tomás Antônio Gonzaga, qual beija a
bandeira respeitosamente.
NARRADOR (OFF)
Imaginei o meu amigo Gonzaga, juntamente com um grupo
de amigos, aspirando a esse ideal...
SEQUÊNCIA 8 – INT./DIA. VILA RICA. CASA DE TOMÁS
ANTÔNIO GONZAGA. SALA DE VISITA.
Janela aberta da sala de visitas. Tomás Antônio Gonzaga observa
cautelosamente pela janela o lado de fora da casa. O Narrador observa
Tomás Antônio Gonzaga na janela aberta. O Narrador, meio
desajeitado, levanta-se da poltrona, pondo-se de pé.
NARRADOR
Estás a esperar alguma visita, senhor Gonzaga?
Tomás Antônio Gonzaga afasta-se da janela, observa o interior da sala e
aproxima-se tranquilamente do Narrador.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Não, não estou a esperar visita alguma, prezado jovem.
18
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
NARRADOR
(um pouco desajeitado)
Mesmo assim estou de saída, quero respirar o ar puro do
entardecer de Vila Rica...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(respira profundamente e sorri)
Creio que o ar de Vila Rica anda um pouco
pesado,ultimamente. É perigoso respirar ou aspirar alguma
coisa que está por alterar-se...
NARRADOR
Estas a falar por enigmas, senhor Gonzaga?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(olha para o lado de fora da janela e depois olha firme para o
Narrador)
Ao bom entendedor não existe enigmas, meu prezado jovem.
Poucas palavras bastam, não acha?
(afasta-se do Narrador, vai até a janela e olha para o lado de
fora. Em seguida olha para o Narrador)
Quando o ar de Vila Rica tornar-se um nevoeiro e poeiras de
sangue começarem a espalhar-se pelos ares, quero que tu
estejas do meu lado. Estando do meu lado, estarás ao lado do
povo brasileiro...
(pausa)
És meu amigo? Um amigo verdadeiro?
O Narrador olha para Tomás Antônio Gonzaga com um
olhar assustado, respondendo "sim" com a cabeça
NARRADOR (VOICE-OVER)
Quem teria coragem de lutar em prol desse grande bem?
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 9 – INT./DIA. VILA RICA. CASA DE TOMÁS
ANTÔNIO GONZAGA. SALA DE VISITA.
Legenda: "Vila Rica, 1788, quatro anos depois..."
Tomás Antônio Gonzaga na sala de visita acompanhado pelo Narrador,
sentado ao lado dele. Tomás Antônio Gonzaga se encontra com 44
anos de idade.
NARRADOR (VOICE OVER)
Em maio de 1788, quando terminei os estudos em Portugal,
voltei definitivamente para o Brasil. Alguns meses depois
visitei Gonzaga. Eu encontrei-o calado, pensativo e
preocupado. Ao ver-me, ele não demonstrou surpresa.
Conversou pouco, não perguntou sobre Portugal ou
comentou qualquer acontecimento na colônia.
Janela. Tomás Antônio Gonzaga espreitando o lado de fora pela janela.
Ruas dos arredores da casa de Tomás Antônio Gonzaga. Pessoas
passando nas ruas dos arredores da casa de Tomás Antônio Gonzaga.
Tomás Antônio Gonzaga olha de repente para o interior da sala.
NARRADOR
(levanta-se rápido da poltrona)
Por obséquio, espera alguma visita, Senhor Gonzaga?
Tomás Antônio Gonzaga está na janela. Ele olha novamente para o
interior da sala. O Narrador está de pé, olhando para a porta de saída da
sala. O Narrador fica-se de pé.
NARRADOR
Se estiveres a esperar alguma visita, por favor, senhor
Gonzaga, estou-me de saída.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Preocupo-me com algumas coisas, meu prezado jovem.
Desculpe-me se faço ausente, cá, neste momento. Quem sabe
20
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
um dia entenderás o fausto da minha história. Quem sabe, não
posso pedir-lhe uma promessa?
NARRADOR
Pedir-me uma promessa? Qual
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Cumpriria a mim?
NARRADOR
Obviamente que sim, senhor Gonzaga...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Então quando souberes dos meus augúrios, procure-me.
Pedirei a ti para cumprir-me uma promessa.
Entra na sala uma CRIADA, negra, traços bonitos, corpo esbelto, de
aproximadamente 18 ou 19 anos, com uma bandeja composta por dois
copos e uma jarra com suco de pitanga. A criada coloca-se a bandeja na
mesa e, com uma certa delicadeza, enche os dois copos com o suco de
pitanga e se retira da sala. Tomás Antônio Gonzaga e o Narrador
servem-se do suco de pitanga.
NARRADOR
Quando eu souber de seus augúrios, procurá-lo-ei, porque os
amigos, senhor Gonzaga, deverão estar prontos para todas as
horas.
(bebe um pouco do suco de pitanga e prossegue)
É preciso que eu vá, agora. Se eu descobrir porque o ar de
Vila Rica não está tão puro, lá fora, quem sabe eu não me
envolva em algum mistério.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(responde com um tom de brincadeira)
Envolver-se em mistérios no Brasil é como se sentir o mundo
às avessas e nunca poder fazer nada...
21
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
(olha nos olhos do Narrador e fala por solilóquio)
Tu envolverás em muitos mistérios, prezado jovem.
NARRADOR
(vira o copo na boca e toma todo o suco de pitanga)
Devemos dar tempo ao tempo, senhor Gonzaga. Quem sabe
um dia, no percurso de sua história, o Brasil não se verá livre
de Portugal? Quem sabe, talvez, não precisará haver guerras,
sangue, dores e sofrimentos...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(aproxima-se da mesa e coloca o copo na bandeja)
Talvez, possas ter razão, mas por enquanto, tudo o que a
nossa história nos mostra é que o rei luso nos enxerga como
meros escravos do seu reino.
NARRADOR
A lei é dura, mas é lei, senhor Gonzaga...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
É verdade, isso é o que nos ensina o antigo provérbio latino
"Dura lex sed lex"!
Rápido silêncio entre o Narrador e Tomás Antônio Gonzaga. O
Narrador olha para a porta de entrada da casa e dá um passo.
NARRADOR
Adeus, senhor Gonzaga.
Porta da sala. Ao dirigir-se à porta da sala, o Narrador vê Tomás
Antônio Gonzaga dirigir-se ao cabide e pegar o chapéu. Antes de o
Narrador alcançar a porta, Tomás Antônio Gonzaga, com o chapéu na
mão, apressa os passos, alcança a porta e abre-a ao Narrador. Apenas o
Narrador sai.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 10 - EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA.
O Narrador sai da casa de Tomás Antônio Gonzaga e anda pela rua em
frente da casa de Tomás Antônio Gonzaga. Ele para na rua e olha para
os arredores. Passam-se dois negros fortes carregando uma liteira. Um
homem branco dentro da liteira acena as mãos para o Narrador. O
Narrador continua andando pela rua. Ruas de Vila Rica. Tomás Antônio
Gonzaga, a passos rápidos, cruza uma das ruas de Vila Rica. O Narrador
para e observa Tomás Antônio Gonzaga cruzando a rua até desaparecer
numa esquina. Ele fala por solilóquio.
NARRADOR
Então é isso, reunião marcada com os amigos na casa do
poeta Claudio Manuel da Costa. É daquela casa que sairá o ar
a que todos nós, de Vila Rica, deveremos respirar.
O Narrador respira artificialmente, elevando os ombros e esticando as
costas. Tomás Antônio Gonzaga desaparece em uma das esquinas de
uma rua. Barulho de trotes de cavalos. Alferes cavalgando pelas ruas de
Vila Rica. Três alferes passam, olham para o Narrador e cavalga em
direção da rua tomada por Tomás Antônio Gonzaga.
NARRADOR
Espero que o senhor Gonzaga e seus respectivos amigos, não
estejam sendo perseguidos por estes alferes...
BARULHO DE SINETA. UM BODE COM UMA SINETA
AMARRADA NO PESCOÇO CRUZA UMA DAS RUAS
MOVIMENTADAS DE VILA RICA.
SEQUÊNCIA 11- EXT./ DIA. VILA RICA. LOCAL PRÓXIMO À
IGREJA DO PILAR.
Pessoas andando nas ruas de Vila Rica. Rua da igreja do Pilar. Imagem
geral do casario do lado esquerdo e direito da rua da igreja do Pilar. O
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Narrador aproxima-se da igreja do Pilar e encontra-se com um homem
branco,50 anos alto, magro, olhos claros, bem vestido, com chapéu e
bengala, andando apressado na direção dele. O Narrador olha para a
porta da igreja, vê algumas pessoas entrando na igreja dá um passo e
para. Ele vê que o homem branco é o pai dele. Ele espera a
aproximação do pai, qual vem alegre ao encontro dele.
PAI DO NARRADOR
Filho, estou a procurá-lo a um farto tempo. Tenho boas
notícias para vós mercê...
NARRADOR
(olha indiferentemente para o pai)
Boas notícias? Que boas notícias, senhor meu pai?
PAI DO NARRADOR
Não irás querer acreditar, filho!
NARRADOR
Talvez eu não queira acreditar, meu pai, pois desde que sai de
casa nesta manhã, ouvi de ninguém notícias boas. Ficamos
apenas com as notícias ruins sobre o Fanfarrão Minésio, que,
de Portugal, a cada dia, devora todo o nosso ouro, deixandonos apenas poeiras...
PAI DO NARRADOR
Ora, filho, não seja um proditor. Deixe o rei resolver por lá os
seus problemas. Escute isso...
(faz uma pausa para respirar e depois prossegue em tom
engraçado)
As proezas a mim foram concebidas, filho. Consegui para
vossa “mercezinha” uma nomeação ao cargo de ouvidor, para
a comarca de Soledade de Itajubá...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
NARRADOR
Então o pródigo governador de Minas, o senhor Visconde de
Barbacena, cumpriu a promessa feita ao senhor meu pai?
Arranjou-me uma ocupação?
PAI DO NARRADOR
Sim, filho! Não simplesmente uma ocupação, mas um ofício
digno de um homem letrado. O ofício é um cargo bom,
importante...
NARRADOR
O ofício é um cargo bom e importante?
PAI DO NARRADOR
Sim, filho. Trata-se de um cargo de ouvidor.
NARRADOR
Ouvidor?!
PAI DO NARRADOR
Sim, ouvidor! Vossa “mercezinha” não terá tempo para pensar
e responder se quer ou não. Sabe por quê? Porque eu mesmo
acertei tudo com o governador. Prometi a ele que daqui a dois
dias vossa “mercezinha” embarcará para Soledade de Itajubá...
Vou providenciar a caravana e assegurar a vós “mercezinha”
uma viagem tranquila, com boas companhias.
NARRADOR
O senhor meu pai, acha que eu deva ir mesmo?
PAI DO NARRADOR
(abana a cabeça, fazendo o sinal de "sim")
Óbvio que sim!
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 12 - INT./NOITE. VILA RICA. CASA DE
CLAUDIO MANUEL DA COSTA.
Casa de Cláudio Manuel da Costa. Sala ampla e arejada. Lampiões
acessos pendurados nos cantos da parede da sala ampla e arejada.
Grande mesa de cavaletes com os inconfidentes sentados. Há um
enorme mapa de estradas e vicinais estendido na mesa. Os inconfidentes
estudam o mapa; alguns passam os dedos nos pequenos desenhos das
estradas. Um copo de vinho na mão de Tomás Antônio Gonzaga. Ele
degusta o vinho sorridentemente.
SEQUÊNCIA 13 - EXT./NOITE. VILA RICA. RUAS, IGREJAS E
PRAÇAS DE VILA RICA.
Noite. Movimentos e rumores de pavores nas ruas de Vila Rica. Pessoas
saem apressadas de algumas igrejas e praças da cidade para esconderemse em suas casas. Em várias ruas de Vila Rica surgem dragões com
tochas de fogo nas mãos marchando em seus cavalos. Os dragões
encontram-se numa praça do centro da cidade. Homens negros e fortes
correm carregando liteiras nos ombros com os seus senhores brancos.
Alguns homens negros e fortes tropeçam ao correr e deixam as liteiras
de seus senhores brancos caírem. Eles fogem desesperados pelas ruas de
Vila Rica largando as liteiras. Porta da casa de Cláudio Manuel da Costa.
Os dragões chegam à porta da casa de Cláudio Manuel da Costa e detém
todos os inconfidentes. O vento bate uma janela aberta de uma casa do
centro de Vila Rica. Ouve-se (em off) gritos de lamento de mulheres.
Corujas voam de uma das torres de uma igreja de Vila Rica.
SEQUÊNCIA 14 - EXT./INT./DIA. SOLEDADE DE ITAJUBÁ.
PORTA DE UM ENORME SOBRADO. PEQUENA SALA DE
TRABALHO DO NARRADOR. ESTRADA REAL.
Legenda: "1792, três anos depois..."
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Janelas abertas de um enorme sobrado. As janelas abertas apontam para
uma pequena sala de trabalho do Narrador. Luz do sol invade a pequena
sala do enorme sobrado. Interior da pequena sala do enorme sobrado.
Mesa com gavetas abertas. Ao lado da mesa, no chão, um pequeno baú
feito de couro. o Narrador sentado em um frailero tira papéis das
gavetas abertas e os colocam dentro do pequeno baú.
NARRADOR (VOICE OVER)
Em abril de 1792, após ficar inteirado dos últimos
acontecimentos ocorridos em Vila Rica, qual final trágico
resultou-se em prisões, mortes e degredos, resolvi, sem
comunicar ao senhor meu pai, exonerar-me do cargo de
ouvidor em Soledade de Itajubá.
Janelas fechadas do enorme sobrado. Lado de fora do enorme sobrado.
O Narrador está próximo das portas fechadas do enorme sobrado em
companhia de alguns senhores, de várias idades, muito bem vestidos.
NARRADOR (VOICE OVER)
Creio que o meu impulso maior para essa decisão foi ao saber
que o meu amigo Gonzaga fazia parte do movimento da
revolta em prol de uma autonomia à nossa colônia. Embora
tudo desse errado, passei a admirar mais o meu amigo
Gonzaga, que, mesmo preso, enfrentou o destino dele com
dignidade.
O Narrador acena-se as mãos aos senhores, de várias idades e,
acomodado em um cavalo, alia-se aos dois homens pardos. Patas de
cavalos e de jumentos carregando cargas marcham lentamente pela
estrada em silêncio.
SEQUÊNCIA 15 - INT./EXT./ DIA. VILA RICA. IGREJA DE
SÃO FRANCISCO.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Igreja de São Francisco de Assis. Bancos da igreja. O Narrador está
ajoelhado em um dos bancos da igreja frente ao altar-mor. Lábios do
Narrador balbuciando preces.
NARRADOR (VOICE OVER)
Eu tinha uma promessa para cumprir. Gonzaga, certamente,
aguardava por mim. Eu não podia acovardar-me e devido a
minha dignidade, procurei um amigo, Juvêncio, em Vila Rica,
para que ele conseguisse para mim uma autorização com o
governador de Minas para eu visitar Gonzaga em seu
longínquo confinamento, em São Sebastião do Rio de Janeiro,
na Ilha das Cobras.
Portas laterais da igreja de São Francisco de Assis. Um moço de 30
anos, cor parda, baixo, magro, cabelos pretos e lisos entra em uma das
portas laterais da igreja que está aberta, O nome do moço é
JUVÊNCIO. Ele entra na igreja com um cartucho na mão, procurando
pelo Narrador. Ele vê o Narrador ajoelhado em um dos bancos da igreja
e va ao encontro dele. O Narrador vê Juvêncio ao seu lado e mostra-se
surpreso.
NARRADOR
Juvêncio! Que bom ver-te cá, ainda tão cedo...
JUVÊNCIO
(sorri e toca o cartucho na cabeça do Narrador)
Quando os amigos pedem algum favor para mim, eu prometo
cumpri-lo.
(entrega o cartucho ao Narrador, prosseguindo a fala)
Cá, está a encomenda. Consegui através de um amigo
comendador, a permissão para que vós mercê possa ir ao
Forte da ilha das Cobras, visitar o seu amigo Gonzaga...
NARRADOR
Que bom, Juvêncio! Conseguiste?!
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
O Narrador abre o cartucho e observa o pergaminho com os olhos
arregalados. Ele olha para Juvêncio com um ar de felicidade.
NARRADOR
O senhor meu pai acha tudo isso uma loucura, mas como eu
fiquei a dever uma promessa ao Gonzaga, creio que não custa
tentar ajudá-lo. Dizem que promessa é promessa e eu fiquei a
devê-lo uma...
JUVÊNCIO
(toca nos ombros do Narrador)
E que promessa, meu caro amigo! Mal sabes o que pode estar
por vir atrás desta promessa. Lembra-te dos que partiram
desta vida tão tragicamente, devido a promessas em prol da
colônia.
NARRADOR
Isto é verdade, Juvêncio, mas terei cautela, daqui por diante...
JUVÊNCIO
Isto mesmo, eu ia recomendar-te isso. Antes da promessa ao
tal Gonzaga, tenha cautela, prezado amigo com a viagem para
São Sebastião do Rio de Janeiro. Sabes que a viagem é longa.
É preciso que vós mercê invista numa confiável caravana...
NARRADOR
(olha para Juvêncio e para o pergaminho)
Agradeço ao amigo pela autorização e pela preocupação de
promessa de Gonzaga e da minha longa viagem. Porém,
deixo-o tranquilo, primeiro prometendo ser cauteloso e
segundo, consultar o senhor meu pai para que ele ajude a
mim, quanto aos companheiros de viagem. Logo que eu
colocar o senhor meu pai a par de minhas aventuras, ele,
decerto e, sem dúvida, se empenhará em arranjar para mim
uma boa caravana a quem ele e eu possamos confiar a
viagem...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JUVÊNCIO
Garanto ao amigo, que, com essa autorização, a que tens em
mãos, expedida pelo governador de Minas, não terás
dificuldade alguma para encontrar o teu amigo Gonzaga.
Pergaminho na mão do Narrrador. O Narrador enrola o pergaminho
deixando-o em forma de cartucho novamente.
O NARRADOR OLHA SATISFEITO PARA JUVÊNCIO.
SEQUÊNCIA 16 - INT./NOITE.
RICA. TERRENO BALDIO.
TEMPO NUBLADO. VILA
Tempo nublado, terreno baldio no fundo de uma das igrejas da cidade.
Alguns homens ou tropeiros montados em seus cavalos seguram
jumentos pelas rédeas. Cargas nos lombos dos jumentos. O Narrador
afasta-se do pai e se junta aos homens ou tropeiros. O Pai do Narrador,
montado no cavalo, aperta a rédea do cavalo e, parado, tira o chapéu da
cabeça e acena ao Narrador. O Narrador puxa a rédea do cavalo,
afrouxa-a e vira em direção ao pai. Mãos do Narrador acenando-se para
o pai. Cavalos iniciam-se a grande viagem para São Sebastião do Rio de
Janeiro. Estrada. Patas dos cavalos marchando pela estrada. Homens ou
tropeiros, juntamente com o Narrador, seguem a viagem. Pai do
Narrador, montado em um cavalo observa os tropeiros desaparecerem
entre uma nuvem de poeira.
NARRADOR (VOICE OVER)
Após receber das mãos de Juvêncio a carta de autorização,
contei ao meu pai o plano de visitar o amigo Gonzaga na Ilha
das Cobras, em São Sebastião do Rio de Janeiro. Ele, contudo,
não fez nenhuma objeção. Conforme, eu esperava, ele indicou
para mim uma caravana confiável para que eu viajasse e
deixasse a minha mãe e ele, despreocupados.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 17 - EXT./DIA. SERRA DA FORTALEZA DO
PATRIARCA DE SÃO JOSÉ DA ILHA DAS COBRAS.
Tarde. O Narrador e os três cavaleiros chegam a um ponto alto de uma
bonita serra de São Sebastião do Rio de Janeiro. Eles fream os cavalos e
miram do alto da bonita serra a Ilha das Cobras. O Narrador, surpreso,
sorri. O Narrador e os três cavaleiros tiram os chapéus da cabeça e
limpam os suores da testa. O Narrador, fixa a serra e olha para os três
cavaleiros.
NARRADOR
Dizem que nesta ilha tinha em si infinitas cobras e essas muito
peçonhentas, e por isso, deram-lhe o nome de ilha das
Cobras. Por incrível que pareça, segundo contam, alguns que,
por cá estiveram, as cobras agasalhadas nos leitos desta ilha,
nunca fizerm mal algum a ninguém. Cá estou eu, não para
enfrentá-las, mas para aceitar o desafio de se cumprir uma
promessa a um amigo.
UM DOS TRÊS CAVALEIROS
A nossa missão encerra aqui, senhor... Agora, basta o senhor
descer a serra e logo estará dentro do forte de São José da Ilha
das Cobras.
NARRADOR
Cá, sinto-me seguro, senhores...
Sela do cavalo do Narrador. Alforje preso à sela do cavalo. O Narrador
pega o alforje preso á sela e retira de dentro dele um pequeno saco de
pano com moedas. Ele balança o saco de moedas, apontando-o aos três
cavaleiros.
NARRADOR
Aqui está o pagamento e creio que há um pouco mais do
preço combinado...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Os três cavaleiros olham para o Narrador. O Narrador atira o pequeno
saco de moedas pelo ar em direção aos três cavaleiros. Um dos três
cavaleiros apara o pequeno saco de moeda. O Narrador tira o chapéu e
cumprimenta os três cavaleiros. Os três cavaleiros acenam as mãos para
o Narrador e saem cavalgando por uma pequena trilha. O Narrador
afrouxa a rédea do cavalo e desce a serra. Visão panorâmica da Fortaleza
do Patriarca de São José da Ilha das Cobras. Pôr-do-sol. O Narrador
entra na pequena vila. Três alferes magros, altos e olhos escuros, vão ao
encontro do Narrador.
SEQUÊNCIA 18 - INT./EXT. DIA. SÃO SEBASTIÃO DO RIO
DE JANEIRO. FORTALEZA DE SÃO JOSÉ DA ILHA DAS
COBRAS. MASMORRA. CELA DE TOMÁS ANTÔNIO
GONZAGA.
Interior da cela onde está Tomás Antônio Gonzaga. Barulho de passos.
O Narrador aproxima-se de uma enorme porta de grades de ferro.
Frestas de luzes no interior da cela. Há, no interior da cela, uma cama.
Na cama há um homem sentado. O homem é Tomás Antônio
Gonzaga. Ele está magro, mal vestido, cabelos longos e barba grande.
Tomás Antônio Gonzaga levanta-se de ímpeto da cama e aproxima-se
da porta de grades. O Narrador olha para Tomás Antônio Gonzaga.
NARRADOR (VOICE OVER)
Penalizei ao ver o ex-ouvidor e poeta escondido naquela
minúscula e escura cela. A verdade verdadeira era que
Gonzaga encontrava-se ali, preso, incomunicável, desde todo
o período da longa devassa. Abati-me ao vê-lo desamparado
naquela masmorra aguardando uma sentença ou qualquer
palavra a favor ou contra a vida dele. Confesso que eu não
encontrava palavras para confortá-lo.
Porta de grades da cela. Tomás Antônio Gonzaga frente ao Narrador na
porta de grades da cela. Ele olha surpreso para o Narrador.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Eu sabia que podia contar contigo...
NARRADOR
(assustado, vasculha com os olhos todo o ambiente)
Ainda te lembras de mim? Cá estou para cumprir a
promessa...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Como não, claro? O jovem a quem conheci através do cônego
Luís Vieira. Como conseguiste chegar a mim?
NARRADOR
Tudo o que importa é que eu fiquei a dever-te o cumprimento
de uma promessa e cá estou...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Isto é muito importante para mim...
Interior da Cela. Tomás Antônio Gonzaga dirige-se a uma mesa
pequena onde mesa há tinteiro, papéis, um livro, moringa de água em
pedra sabão, um prato e uma caneca. Ele pega a caneca e volta até a
porta de grades. Tomás Antônio Gonzaga bate a caneca nas grades da
porta. O Narrador assusta-se. Corredor escuro, passos apressados
vindos pelo corredor escuro. Dois dragões, um de cor parda, 40 anos,
outro de cor clara, 32 anos de idade. Os dois dragões se aproximam da
porta de ferro da cela onde está Tomás Antônio Gonzaga.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Por favor, senhores, preciso que permitam a entrada deste
jovem em minha cela...
O dragão de cor parda revista o Narrador. O dragão de cor clara abre a
porta de ferro da cela. O Narrador entra na cela um pouco acanhado. O
dragão de cor clara tranca a cela e sai juntamente com o outro dragão de
cor parda pelo corredor. Interior da cela de Tomás Antônio Gonzaga.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
O Narrador, no interior da cela, vasculha todo o ambiente com os
olhos. O Narrador fixa o olhos em Tomás Antônio Gonzaga, que
encontra-se desfigurado, tanto na aparência, quanto nas vestimentas.
NARRADOR
Então, qual é a promessa que compete a mim, cumprir-te?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(aproxima-se do Narrador e fala com um tom sóbrio)
É uma promessa simples, tu a entenderás como a um
conselho.
NARRADOR
Qual?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(denota-se um pouco angustiado)
Tu és ainda muito jovem, viverás muito. Portanto, ouça o que
tenho para dizer-te. Por ceitil algum venda a tua liberdade.
Também não te arrisques, jamais, perdê-la em prol da
coletividade...
NARRADOR
Não valeu a pena viver ideias revolucionárias?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(um pouco confuso, ainda denotando angústia)
Não ouso questionar-me, prefiro deixar ao julgo da
posterioridade. O que posso afirmar-te, neste momento, caro
jovem, é que não me arrependo de forma alguma ter feito
parte do grupo idealista e sonhador. O pior de tudo foi o
nosso emblema. Quando pensamos na coletividade,
esquecemos da ala da minoria que nos reteve todas as forças.
Nessa ala havia poucos homens, mas, infelizmente,
poderosos, capazes de vender a liberdade do povo brasileiro
pelo vil metal...
34
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
NARRADOR
Estás a pedires que eu viva uma liberdade centrada em meus
interesses próprios?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Se entendeste bem...
NARRADOR
(coça a cabeça, esfrega o nariz com os dedos e espirra devido
à poeira do cárcere)
Não foi em nome da liberdade de interesses próprios que o
coronel Silvério traiu todo o grupo?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Sim! O mesmo não fez o Iscariotes? Não pregarei para ti uma
liberdade individual, covarde. Falarei para ti de uma liberdade
individual em que mantenha na alma todo o brio e o caráter
de confiar na força coletiva...
NARRADOR
Não consigo entender aonde queres chegar...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
És ainda muito jovem, meu amigo. Somente reconhecerás o
valor das coisas, mesmo que estas coisas forem mundanas,
quando tornares um gajo consciente, maduro... O senhor meu
pai sempre pregava a mim que o amadurecimento surge da
dor... Agora, creio a razão dele, principalmente ao ver-me cá,
entre um ou a poucos dias a ser arrastado para uma terra
nunca vista antes. Não serei lá um aventureiro, mas um
prisioneiro...
NARRADOR
Então, tu sabes qual é a tua sentença?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Sim, tudo indica que serei banido à África...
NARRADOR
Como sabes?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Alguém adiantou para mim... Lá, manter-me-ei vivo, mesmo
louco, em memória de três grandes pessoas, quais, sem
dúvida, perderam a vida nessa honrosa empreitada. Um foi o
poeta Cláudio Manuel da Costa. Outro, o alferes, Joaquim
José da Silva Xavier e a outra uma mulher, que embora esteja
viva, nutrirá até os fins dos seus dias a esperança de um amor
impossível.
NARRADOR
(os olhos turvam-se de lágrimas)
Tu estás a falar de dona Maria Joaquina de Dorotéia?
Tomás Antônio Gonzaga balança a cabeça afirmando "sim". Bolsos da
calça de Tomás Antônio Gonzaga. Ele retira de dentro de um dos
bolsos um pedaço de papel e abre-o. No pedaço de papel há escrito um
poema, ele lê recita-o, lendo.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Conheço a ilusão minha;/
a violência da mágoa não suporto;/
foge-me a vista e caio,/
não sei se vivo ou morto./
Enternece-se Amor de estrago tanto;/
reclina-me no peito, e com mão terna/
me limpa os olhos do salgado pranto.
O Narrador olha firmemente para Tomás Antônio Gonzaga. Dos olhos
de Tomás Antônio Gonzaga saltam algumas lágrimas. Ele embola o
papel e enfia-o em um dos bolsos da calça. Toca nos ombros do
Narrador.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Aos que continuaram vivos, prezado jovem, bem sabes, nada
restou senão o degredo, principalmente a mim.
NARRADOR
Então não valeu a pena viver ideias revolucionárias?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(voz trêmula)
Não importa eu questionar se valeu a pena ter vivido ideias
revolucionárias, ou não. Por favor, não tortures a mim, com
este tipo de pergunta. Posso dizer-te uma coisa: tudo ao
homem serve de experiência. Eu também quero que vós
mercê viva uma, assim como eu gostaria, também, de vivê-la
intensamente. Trata-se de uma aventura em que apenas o
coração compadece, mas depois, de gostosas lutas, se ganha as
suas devidas recompensas... Por isso quero que cumpras a
minha promessa... Meu tempo é curto. Sonhei um dia fazer
desta colônia um país livre. Portanto, em nome de uma
liberdade individual e honrosa, restaram-me os sonhos...
NARRADOR
(resposta súbita)
Quais sonhos?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(aponta a velha cama ao Narrador)
Sente-se ali, por favor, naquele velho e humilde catre...
Cama de Tomás Antônio Gonzaga quase encostada à parede da
masmorra. Tomás Antônio Gonzaga e o Narrador vão até a cama. O
Narrador senta-se na cama. Tomás Antônio Gonzaga fica em pé, frente
ao Narrador.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
NARRADOR (VOICE OVER)
Quando sentei no velho catre, creio que eu aceitei jogar com
Gonzaga. Fixei o meu olhar no dele e permiti que ele
cumprisse a tarefa misteriosa que lhe cabia. Ele passou as
mãos no meu rosto, fitou-me com um olhar sereno e aos
poucos falou, murmurando.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Olhe profundamente nos meus olhos, prezado jovem...
O Narrador olha nos olhos de Tomás Antônio Gonzaga. Tomás
Antônio Gonzaga ajoelha-se frente ao Narrador, arregalando-lhe os
olhos e falando murmuramente.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Farei a ti um presente. Ouça bem isso, a liberdade é o maior
bem que o homem possui, goze eternamente dela. Quando
observares a constelação do céu, deixe que uma estrela o
seduza. Quando cá, na terra, encontrares com essa estrela, por
favor, ame-a com toda a força do teu coração e assim,
cumprirás a minha promessa... Nunca esqueças que o amor é
universal e, quando sincero, eterno. Não deixe que os homens
o escravizem pelo vil metal. Se sob o solo há ouro e prata,
sobre ele há mais riquezas do que o homem possa imaginar. A
liberdade não está no poder de ter e de possuir, mas no poder
de viver e avaliar a essência da vida nas coisas mais simples.
Carpe diem!
O Narrador continua sentado na cama e Tomás Antônio Gonzaga ao
lado dele balbuciando algumas palavras.
NARRADOR (VOICE OVER)
Abaixei a cabeça, fechei os olhos e deixei as suas palavras
penetrarem em minha mente. Ele surpreendeu-me um pouco
mais...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Por falar em simplicidade, em nome de toda pureza, tu agora,
meu jovem, serás conhecido como Dirceu. Tu serás
confundido a mim, porque, a partir de agora, nós dois
seremos uma só alma, o suficiente para que possamos ser
eternos nas memórias das futuras gerações. Eu, lá em terras
desconhecidas, expatriado. Tu, cá, no Brasil a viveres os
desejos a mim proibidos. Não sei se esses desejos foram
proibidos pelo destino, ou por mim mesmo. A única
impressão que trago comigo é que tudo isso estava escrito
num grande livro e bastou um leitor atrever a lê-lo, para que a
história acontecesse...
O Narrador coloca-se de pé, abre bem os olhos e tenta falar alguma
coisa, mas é interrompido por Tomás Antônio Gonzaga.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
A história aconteceu sem que os meus desejos cumprissem,
meu jovem...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(olhos cheios de lágrimas)
Portanto, meu amigo, creio que um dos meus desejos poderá
ser vivido por ti...
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(sorri esperançoso aumentando o tom de voz)
Sim, tu irás viver um deles e se não fores feliz, perdoe-me, por
favor. Quero que saibas, antes de tudo, que toda tentativa de
se fazer alguma coisa, em prol de um dos meus desejos, será
válida.
Tomás Antônio Gonzaga pega novamente a caneca em cima da mesa,
aproxima-se da porta e bate-a na grade da porta. Barulho de passos
39
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
rápidos vindo do corredor. O dragão de cor clara aparece na porta da
cela trazendo nas mãos um pacote. O Dragão de cor clara espia o
interior da cela.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Prezado senhor, se for possível, por favor, peça ao alferesmor que devolva para mim o meu matolão de couro. Eu
mesmo pedi para que ele guardasse-o para mim. Preciso dele,
neste momento.
DRAGÃO LOIRO
Ora, ora, senhor ouvidor, parece que nós estávamos
adivinhando. Desde a semana passada estou com esta
encomenda para entregá-lo.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(olha para o pacote na mão do dragão loiro)
Tens certeza que essa encomenda é para mim?
DRAGÃO LOIRO
Sim, creio que neste pacote esteja o matolão de couro de
vossa senhoria. O alferes, a quem vossa senhoria chamava de
alferes-mor foi promovido para outra comarca. Há dias, ele
pegou estrada.
O dragão de cor clara abre um pequeno compartimento da porta e
entrega o pacote para Tomás Antônio Gonzaga. O dragão de cor clara
fecha o compartimento e afasta-se da cela. Tomás Antônio Gonzaga
com o pacote agarrado entre os peitos dirige-se até o Narrador. O
Narrador está em pé, próximo à mesa e recebe o pacote das mãos de
Tomás Antônio Gonzaga.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Prezado gajo, leve isto contigo. Teu lugar não é cá, não é nas
terras aonde irei e, nem tampouco em Vila Rica. Tu viverás a
natureza, completarás a ela e deixarás a tua alma ultrapassar
40
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
todas as barreiras. Quando quiseres tornar-te humano,
poderás sê-lo; se quiseres tornar-te um deus, também. Tanto
homem, quanto deus, tu tornarás um eterno herói. Quanto a
mim, ao colocar-me os pés na pátria desamada, nas terras
forjadas, inventadas para o meu degredo, lá não passarei de
um simples Gonzaga. Lá serei puramente carne e osso. Mas,
tu, cujo viverás aqui, serás o meu espírito, cheio de aventuras,
realizações e desejos. Chegarei ao ponto de enlouquecer, mas
a minha loucura o mundo compreenderá, graças a vossa
mercê, que sentirás na alma, o verdadeiro Dirceu. O Narrador
demonstra-se surpreso e confuso.
NARRADOR
Dirceu?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Sim, Dirceu. Tu, mesmo sem saberes, vestirás este matolão e
conquistarás o teu maior sonho. Assim, tu realizarás a minha
promessa.
Tomás Antônio Gonzaga aponta para o Narrador o fundo da parede. O
quarto enche-se de luz. Na parede do fundo surge uma bonita bandeira
com o símbolo da Santíssima Trindade gravados em suas bordas os
seguintes dizeres: “LIBERTAS QUAE SERA TAMEM”. Desfaz-se a
luz clara. Tomás Antônio Gonzaga dirige-se até a mesa. Em cima da
mesa há um grande livro. Tomás Antônio Gonzaga abre o grande livro
ao meio. Na página do livro aberto ao meio há um desenho de uma
pequena caixa de madeira. Tomás Antônio Gonzaga passa as mãos na
figura da caixa desenhada e, magicamente, retira-a da página do grande
livro. Tomás Antônio Gonzaga está com a pequena caixa retirada da
página do livro nas mãos. Ele olha para o Narrador e sorri. Tomás
Antônio Gonzaga aproxima-se do Narrador e abre cuidadosamente a
pequena caixa de madeira. Dentro da pequena caixa de madeira há
restos de cinza. Tomás Antônio Gonzaga mostra os restos de cinza que
há na pequena caixa de madeira para o Narrador.
41
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
Estas cinzas são os restos mortais da minha história. Eu as
lançarei ao vento e tu darás início à outra...
NARRADOR
Como assim?
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(voz sob efeito sonoro)
Tu serás o meu personagem. A promessa que cumprirás a
mim consiste em viveres a minha história, qual, o destino
recusou-me a vivê-la...
Pequena caixa de madeira nas mãos de Tomás Antônio Gonzaga.
Tomás Antônio Gonzaga sopra a cinza de dentro da pequena caixa de
madeira. A cinza voa em direção ao grande livro aberto ao meio. O
grande livro cresce gradualmente. O vento abre as páginas do grande
livro, até fixar a uma página, onde há uma figura de uma linda colina
verdejante e um cavalo arreado pastando numa campina verde. Tomás
Antônio Gonzaga olha para o Narrador. Ele ainda está com a pequena
caixa de madeira aberta nas mãos. Ele sopra o restante da cinza que está
na pequena caixa de madeira para a direção do Narrador. As cinzas
sopradas por Tomás Antônio Gonzaga formam um redemoinho. O
redemoinho transfere o Narrador para a página do grande livro. O
Narrador aparece na figura do grande livro montado no cavalo. A
página do grande livro ganha a dimensão de uma tela. O Narrador
cavalga por uma estrada de uma linda colina verdejante. Tomás Antônio
Gonzaga fica olhando para a grande tela.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
A partir de agora, prezado jovem, tu serás o meu eterno
personagem. Tu chamarás Dirceu e viverás um eterno
romance de aventura, amor e mistério...
NOTA IMPORTANTE: a partir das sequências seguintes o Narrador
passará a ser um personagem de Tomás Antônio Gonzaga. O nome
42
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
dele será DIRCEU, um simples vaqueiro e personagem principal de
toda a trama.
SEQUÊNCIA 19 - EXT./INT./ DIA. COLINA VERDEJANTE.
CASA SIMPLES COM VARANDA.
Tarde. Linda colina verdejante. DIRCEU cavalga em seu cavalo numa
estrada da colina verdejante tomando a direção de uma casa simples
com varanda vista em um dos pontos da colina verdejante. Dirceu
afrouxa a rédea do cavalo e apressa o galope. Casa simples com varanda,
relvado no terreiro de frente da casa e currais de ovelhas, gados, galinhas
e porcos no fundo do quintal. Os animais berram impacientes no
cercado. Zé Antônio, de cor branca, esguio e idoso, 60 anos, pai de
Dirceu, arruma a cerca de um velho chiqueiro de porcos. Uma das
janelas da casa simples com varanda bate-se com o vento. Dirceu
montado no cavalo aproxima-se da varanda da casa. Maria Antônia,
uma mulher negra, 50 anos, magra e alta, aparece em um das janelas de
frente da casa simples com varanda e acena as mãos para Dirceu. Ele
chega no quintal de frente da casa simples com varanda. Janela aberta da
casa simples com varanda. Maria Antônia aparece na janela aberta e ao
ver Dirceu se aproximar da varanda da casa, ela foge da janela enfiando
a cabeça para dentro. Dirceu apeia-se do cavalo em frente à varanda da
casa simples. Porta aberta da frente da casa simples com varanda. Maria
Antônia sai pela porta de frente da casa simples com varanda. Maria
Antônia vai ao encontro de Dirceu. Mãos de Dirceu desamarrando um
grande alforje preso à sela do cavalo. Maria Antônia aproxima-se de
Dirceu. Grande alforje nas mãos de Dirceu. Ele vê Maria Antônia e
entrega a ela o grande alforje. Maria Antônia recebe o grande alforje e
coloca-o no chão, em um dos cantos da varanda. Dirceu puxa a rédea
do cavalo e amarra-o numa cerca de madeira no quintal de frente da
casa simples com varanda.
MARIA ANTÔNIA
Nhozinho deve tá com fome. Todas às vezes quando
nhozinho vai na freguesia, volta com fome e cansado. A
43
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
comida tá no fogão, quentinha. Parece que na freguesia não
dão comida pra nhozinho...
DIRCEU
(amarra o cavalo em um dos paus da cerca, enquanto fala)
Comida, isso tem lá, Maria Antônia. Mas igual a sua, não
existe em freguesia alguma...
MARIA ANTÔNIA
Quá, isso aí é prosa de nhozinho. Alguém por lá faz até mió.
Em Vila Rica e Mariana tá cheia de negas cozinheiras das
boas.
Dirceu tira o chapéu de vaqueiro e entra na sala da casa. Maria Antônia
acompanha Dirceu até a sala. Chapéu nas mãos de Dirceu. Maria
Antônia tira o chapéu das mãos de Dirceu. Cabide em um dos cantos da
sala. Maria Antônia coloca o chapéu de Dirceu no cabide.
DIRCEU
Tô dizendo isso tudo, não é porque eu tô com fome não,
negra velha, é porque passei o dia rodando em Vila Rica para
resolver algumas capenguices do senhor meu pai. Eu pensei
em comer naquelas pensãozinhas de lá, mas como eu estava
com pressa, acabei deixando para comer cá. Como a sua
comida é gostosa, vale a pena qualquer sacrifício.
MARIA ANTÔNIA
Quá, menino besta. Isso tudo é só para engabelar a nega,
aqui...
Cozinha. Dirceu marcha para a cozinha da casa simples com varanda.
Maria Antônia segue atrás dele. Dirceu passa os olhos em toda a
cozinha.
44
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Torresmo, linguiça e feijão de tropeiro. Depois queijo com
rapadura ou melado.
DIRCEU
(olha para um pequeno pote em um suporte da parede)
Está tudo ali, embalado nos potes...
MARIA ANTÔNIA
Deixa de tanta faladeira besta, nhozinho.
Fogão de lenha da cozinha da casa simples com varanda. Prato em cima
do fogão de lenha. Maria Antônia pega o prato em cima do fogão e o
entrega para Dirceu.
MARIA ANTÔNIA
Tão aqui esse prato, nhozinho, põe a comida do tanto que
vossemecê gosta e farta essa pança vazia... Até parece menino
que num cresce...
Dirceu pega o prato. Os dois dão risadas. Porta da cozinha. Zé Antônio,
pai de Dirceu, branco, alto e magro, de aproximadamente 50 anos de
idade, aparece na porta da cozinha. Zé Antônio olha para Dirceu.
Dirceu mastiga uma colherada de comida e, em seguida, olha para Zé
Antônio.
DIRCEU
Tudo resolvido meu pai, tudo resolvido. Já, já esclareço ao
senhor todo o meu feitio. O moço entregou-me o dinheiro e
disse que o negócio foi muito bom...
ZÉ ANTÔNIO
Foi sim, pois haveria de ser... Bom, muito bom... Aquele
português é muito ganancioso.
(faz uma pausa rindo maliciosamente)
45
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Coma devagar, sem pressa, depois, conte-me os detalhes...
Vou aguardar vós mercê na varanda, para vós mercê colocarme a par de tudo...
Dirceu levanta-se da mesinha, vai até ao fogão e enfia uma colher de
pau no caldeirão de feijão. Dirceu apenas olha para Zé Antônio e
responde "sim", com a cabeça. Zé Antônio sai da cozinha.
SEQUÊNCIA 20 – INT./EXT./ NOITE. CASA SIMPLES COM
VARANDA.
Noite. Varanda. Uma rede balança na varanda. Dirceu está deitado na
rede que balança na varanda. Interior da casa simples com varanda. Luz
fraca no interior da casa simples com varanda. A porta de um quarto
abre-se. Sai Maria Antônia da porta de um quarto que se abre. Ela anda
pelo corredor e aproxima-se de outra porta. A porta é a do quarto de Zé
Antônio. Maria Antônia abre a porta do quarto de Zé Antônio e entra.
Interior do quarto de Zé Antônio. Criado mudo. Mãos de Zé Antônio
acendendo uma candeia. Candeia acesa. Zé Antônio está sentado na
cama de casal. Maria Antônia, em pé, deixa a roupa do corpo cair no
chão. Zé Antônio deitado olha para Maria Antônia. Ela está nua e deitase na cama ao lado de Zé Antônio. Zé Antônio deita-se por cima de
Maria Antônia. Ele apaga a candeia com um sopro. Quarto escuro. Zé
Antônio e Maria Antônia amam-se no escuro. Escutam-se gemidos de
prazer de Maria Antônia e Zé Antônio.
SEQUÊNCIA 21 – INT./EXT./NOITE/ DIA. CASA SIMPLES
COM VARANDA.
Varanda da casa simples. Chapéu de Dirceu caído no chão próximo a
rede. Rede balançando suavemente com Dirceu deitado nela. As pernas
de Dirceu estão forradas com um gibão de couro.
46
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 22 - FLASH BACK – SONHO DE DIRCEU.
VÁRIOS.
Céu. Estrela brilhando no céu. Dirceu, vestido de pastor, está sentado
em um banco de nuvens, no meio das estrelas. As estrelas transformamse em ovelhas e pastam em um imenso campo verde e azul. A Lua
brinca de esconde-esconde por entre as nuvens escuras. A Lua, ora
aparece, ora some. Dirceu levanta-se segurando um cajado e olha rápido
para uma direção do céu, de onde surge um cometa, transformando-se
em um lobo. Dirceu ataca o lobo com o cajado. Ele toca o cajado no
lobo. O lobo se desfaz em cinzas. Vê-se um bonito trono. Dirceu sentase em no bonito trono. As estrelas transformam-se em lindas pastoras e
formam-se em círculo ao redor do bonito trono, onde Dirceu está
sentado. A Lua abaixa-se e de dentro dela surge uma linda pastora com
uma coroa de flores na cabeça. A pastora é MARÍLIA, loira, olhos
claros e pele branca e delicada. Marília aproxima-se do trono de Dirceu,
tira a coroa da cabeça e coloca-a na cabeça de Dirceu.
SEQUÊNCIA
VARANDA.
23
-
INT./NOITE.
CASA
SIMPLES
COM
Rede balança. Mão de Dirceu passando-se pela cabeça. Dirceu corda
assustado, levanta-se da rede e vai para o quintal da frente da casa
simples com varanda. Dirceu está no quintal olhando para o céu.
SEQUÊNCIA 24 - EXT./NOITE. CASA SIMPLES COM
VARANDA.
Noite. Quintal da casa simples com varanda. Céu. Estrelas brilham no
céu. Dirceu, em pé no relvado, fica a observar as estrela brilharem no
céu. O cenário é envolvente, como um vídeo game, qual jogo se
expande a todas as galáxias. Relvado. Dirceu, sentado no relvado, fita as
estrelas do céu. Uma estrela no céu brilha fortemente. Dirceu levanta-se
47
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
do relvado e, em pé, fica a mirar a estrela que brilha fortemente. Dirceu
fala por solilóquio.
DIRCEU
Qual mistério há naquela estrela, capaz de fazer-me abandonar
todas as outras para olhar só para ela? Será aquela estrela, a
Alpha Andromedae, conhecida comumente como Alpheratz?
Ah, sim, decerto, a estrela mais brilhante da constelação...
Senão, seria ela a Alpha Bootis ou Arcturus, que dá guarda à
Ursa Maior? Ou que sabe a Maravilha da Baleia, descoberta
em 1596, por David Fabricius. Não, ela não haveria de ser
nenhuma dessas estrelas já conhecidas e estudadas pelos
homens.
A estrela intensifica-se o brilho. Dirceu sorri e continua a falar por
solilóquio.
DIRCEU
Será se aquela estrela quer transformar-me num poeta, num
versejador, capaz de cantá-la em meus versos? Ah, posso dizer
que ela é a minha estrela, talvez uma das sete filhas de Arlas,
formadoras do aglomerado das Plêiades. Claro, quem sabe ela
não seria uma das sete filhas de Arlas, ou talvez de Eta Tauri,
conhecida pelo nome de Alcyone. Não, nada disso.
(faz uma pausa, olha fixamente para o céu e prossegue o
silóquio)
Aquela estrela não tem nome, ela surgiu no céu naquele
instante para ser contemplada por mim... Aquela estrela é a
minha Estrela, eu haverei de dar-lhe um nome, personificá-la,
transportá-la em forma humana para a terra, casar-me com ela
e fazê-la eternamente feliz.
(sorri, feito um louco)
Por enquanto, ela será para mim um mistério, um segredo
somente meu.
48
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 25 - EXT. /NOITE. VÁRIOS LUGARES DA
COLINA.
Dirceu está enrolado com o gibão de couro em vários lugares da colina,
à noite, observando a estrela cintilante no céu. Há uma ilusão de que ele
está fazendo uma grande viagem etérea e só a termina quando amanhece
o dia.
SEQUÊNCIA 26 - INT./ NOITE. CASA SIMPLES COM
VARANDA. QUARTO DE DIRCEU.
Madrugada. Barulho de chuva no telhado da casa simples com varanda.
Escuta-se o cantar do galo. Quarto de Dirceu. Ele está dormindo na
cama, virando-se de um lado para o outro.
SEQUÊNCIA 27 - INT./EXT. NOITE/DIA. VÁRIOS (IMAGENS
ONÍRICAS).
Flash back – Sonho de Dirceu
Uma estrela brilha no céu intensamente transformando-se
paulatinamente em uma figura humana de uma mulher, vestida igual a
Iemanjá. Esta mulher é Marília. Há um excesso de luz sobre o corpo
dela. Ela desce do céu feito um facho de luz e choca-se na janela do
quarto de Dirceu. Marília chama por Dirceu com a voz sob efeito
sonoro.
MARÍLIA
Dirceu! Dirceu!
Quarto de Dirceu. Janela. Dirceu abre a janela. Intenso facho de luz
invade a janela e todo o quarto de Dirceu. Ele tapa o rosto com as
mãos.
49
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Quem é que está a chamar por mim?
MARÍLIA
Sou eu, a sua estrela guia...
DIRCEU
(demonstra-se maravilhado)
A minha estrela do céu? Eu sabia que vós mercê havia surgido
no céu somente para mim... Se as estrelas são dos cientistas,
eu, humilde vaqueiro, também sou digno de ter uma no céu?
A luz diminui-se o brilho na janela e em todo o quarto. Marília está
defronte à janela do quarto de Dirceu. Ele, encantado, olha para Marília.
DIRCEU
Olha só, a minha estrela parece uma menina, um anjo
delicado, tão graciosa... Vieste mesmo do céu?
MARÍLIA
(voz suave, como se fosse o sussurro do vento)
Sim, venho do céu! Porém, sou uma estrela oriunda do mar...
DIRCEU
Do mar? Mas em Minas não existe mar, Minas é somente
campos, fazendas, vilas e povoados atraindo pessoas, devido
ao ouro a jazer-se do chão.
MARÍLIA
Tornei-me uma estrela viajante de ilha em ilha, sob o ímpeto
do mar, até que finalmente cheguei ao firmamento. Lá jurei
resplandecer a minha luz somente para aquele que realmente
for capaz de me amar... Em Minas não existe mar, mas tem as
suas fontes cristalinas, onde esperarei por vossa mercê...
50
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Oh, minha pastora, minha estrela do mar, da fonte, das relvas,
diga-me em qual fonte queres encontrar-me?
MARÍLIA
Venha, Dirceu, venha ao meu encontro!
Dirceu aparece de repente em um maravilhoso relvado. Ele para e olha
fixamente para Marília, qual está distante dele com os braços abertos.
MARÍLIA
Venha!
Dirceu anda pelo relvado ao encontro de Marília. Ela anda pelo relvado
ao encontro dele. Ambos se aproximam, mas não conseguem se
tocarem. Ambos lado a lado correm pelo relvado. Aparece um rebanho
de ovelhas no bonito relvado. Dirceu desvia-se do rebanho e cai no
relvado. Marília, porém, continua correndo. Dirceu levanta-se e procura
por Marília. Dirceu vê uma bonita fonte. Marília está nadando nua em
uma bonita fonte. Dirceu corre para a fonte e se atira na água. A fonte
transforma-se em um mar com ondas imensas. As ondas levam Marília.
Dirceu enfrenta as ondas. Ao dar as primeiras braçadas Dirceu cai no
terreiro de sua casa. Ele olha para o céu e vê Marília sorrindo entre o
terrível labirinto de Cnossos. Dirceu senta-se no relvado.
DIRCEU
Onde haverei de encontrá-la? Onde está a minha estrela?
Onde está a minha menina? No mar, na terra ou no céu? Não,
não, vejo-a presa no terrível labirinto de Cnossos...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 26.1 – CONTINUIDADE - INT./ NOITE.
QUARTO DE DIRCEU.
51
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Quarto de Dirceu. Dirceu acorda assustado. Ouve-se o cantar do galo.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 28 - EXT./DIA. FUNDO DO TERREIRO DA CASA
SIMPLES COM VARANDA.
Zé Antônio cuida dos animais no terreiro da casa. Maria Antônia sai da
porta dos fundos da casa com uma cuia de milho para jogar às galinhas.
Ela passa por Zé Antônio.
ZÉ ANTÔNIO
Dirceu acordou ou ainda está dormindo?
MARIA ANTÔNIA
Ele saiu do quarto não, "sinhô".
MARIA ANTÔNIA
(faz uma cara esquisita)
O nhozinho, ultimamente, parece cansado, quase todos os
dias só acorda depois do sol alto...
ZÉ ANTÔNIO
(toca umas cabras com uma vara)
Não é bom quando um homem feito ele se deixa ser
apanhado na cama, pelo sol. Outro dia ouvi-o na rede da
varanda, sozinho, conversando com as estrelas do céu. Até
parece que está louco.
MARIA ANTÔNIA
(ri um pouco espantada)
Onde se viu gente conversar com estrelas?!
(faz o sinal da cruz)
Credo Deus pai poderoso, será se o "nhozinho" está ficando
doido mesmo?
52
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZÉ ANTÔNIO
Está nada, esses gajos de hoje vivem a inventar modas. Daqui
a pouco está aí, dizendo que vai casar com uma estrela.
MARIA ANTÔNIA
Credo, Zé Antônio, vira essa boca pra lá. Casar com estrela?
Eu acho que até nhô tá ficando doido...
SEQUÊNCIA 29 – EXT./DIA. QUINTAL DO FUNDO DA CASA
SIMPLES COM VARANDA.
Tarde. Quintal do fundo da casa simples com varanda. Dirceu está
carregando dois baldes com comidas (ou lavagens aos porcos. Ele
tropeça em uma pedra e cai. Os baldes com comidas (ou lavagens)
derramam sobre ele. Maria Antônia e Zé Antônio correm para socorrêlo. Maria Antônia e Zé Antônio tapam os narizes com as pontas dos
dedos. Dirceu olha para o corpo sujo e faz uma careta de nojo. Todos
dão risadas.
ZÉ ANTÔNIO
É nisso que dá, quando não se dorme direito para ficar
perdendo tempo com estrelas... Ultimamente, Dirceu,
vossemecê tá um tanto lerdo. É melhor investir no sono,
dormir mais cedo e nda de ficar olhando estrelas ou não sei o
que, no céu...
SEQUÊNCIA
VARANDA.
30
-
INT./NOITE
CASA
SIMPLES
COM
Varanda da casa simples. Rede balançando. Dirceu está dormindo na
rede. A rede trepida e Dirceu acorda assustado. Ele levanta-se da rede e
olha para o céu. No céu não há estrelas. Ele anda cambaleando até a
porta da frente da casa, empurra a porta e entra na sala. Candeia acessa
em uma das mobílias do canto da sala. Ele dirige-se ao corredor, indo
53
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
até a porta do quarto de Zé Antônio. Ele empurra a porta do quarto de
Zé Antônio, de ímpeto. Ele entra no quarto de Zé Antônio e tropeça
numa caixa de couro que está em um dos cantos da entrada do quarto.
Dirceu cai de joelhos no chão, soltando um gemido de dor. Zé Antônio
acende-se uma candeia e vê Dirceu caído no chão. Zé Antônio senta na
cama, puxa a coberta e cobre a nudez de Maria Antônia. Dirceu levantase e sai do quarto de Zé Antônio. Zé Antônio apaga a candeia com um
sopro. No corredor da sala, Dirceu tropeça novamente em uma velha
poltrona. Dirceu anda pelo corredor mancando no escuro. Porta do
quarto de Maria Antônia está aberta. Dirceu entra no quarto de Maria
Antônia e, meio desajeitado, atira-se na cama de Maria Antônia. Ele
dorme na cama de Maria Antônia. Escridão total.
SEQUÊNCIA 31 – INT./EXT. DIA. CASA SIMPLES COM
VARANDA.
Manhã. Sol quente no quintal da casa simples com varanda. Porta do
quarto de Maria Antônia aberto. Dirceu deitado na cama de Maria
Antônia. Ele acorda com o barulho de animais vindo do terreiro e
levanta-se de ímpeto da cama de Maria Antônia. Janela do quarto.
Dirceu vai até a janela e abre. Ele vê a colina verdejante. O sol alcança
quase toda a colina verdejante. Ele deixa a janela aberta do quarto e
segue até a porta do quarto de Maria Antônia. Dirceu vai até o corredor
e passa pelo quarto de Zé Antônio. A porta do quarto de Zé Antônio
está aberta. Dirceu vê a cama de casal de Zé Antônio arrumada com um
lençol velho. Cozinha. Dirceu entra na cozinha, olha para o fogão de
lenha e para a mesa vazia. Ele aproxima-se da janela da cozinha, abre-a e
espia o lado de fora. Ele vê ninguém no quintal do fundo da casa. Ele
deixa a janela e vai até a porta da cozinha. Ele tira a trave da porta da
cozinha e sai para o quintal do fundo da casa. Ele procura por Zé
Antônio e por Maria Antônia. Ele somente vê os bichos no terreiro da
casa. Ele retorna, a passos rápidos, para a casa simples com varanda.
54
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 32 – INT./EXT. DIA/NOITE. CASA SIMPLES
COM VARANDA.
Manhã. Dirceu no fogão de lenha da cozinha coando café em um
enorme quador de pano. Quintal do fundo, Dirceu cuidando dos
animais. Cozinha, Dirceu preparando a comida. Tarde. Quintal do
fundo da casa simples com varanda, Dirceu capinando o mato e
cuidando das plantas. Pôr-do-sol. Dirceu está deitado na rede da
varanda. Noite. Dirceu está no relvado observando as estrelas.
DIRCEU (VOICE OVER)
Desde quando descobri que o senhor meu pai havia fugido de
casa com a Maria Antônia, passei a aprender sozinho a
cozinhar, a cuidar dos animais e a fazer pequenos reparos na
roça. O início foi difícil, mas aos poucos aprendi a lidar com
tudo aquilo que o meu pai confiou em mim, ou talvez, deixara
a mim como castigo. Eu aprendi também a não varar as
madrugadas, quando eu namorava a minha estrela, no terreiro,
às noites.
SEQUÊNCIA 33 – INT./EXT. DIA. CASA SIMPLES COM
VARANDA.
Quintal do fundo da casa. Bichos inquietos no quintal do fundo da casa:
cabras e bois berrando no curral e galinhas cocoricando e voando no
galinheiro. Vulto de um homem correndo no terreiro da casa. Este vulto
de homem é o de JOSIAS, um negro, magro, alto, boca e dentes
aprumados, tem 35 anos de idade.
CORTA PARA
Quarto de Dirceu. Dirceu está deitado na cama e acorda assustado com
o barulho dos animais, vindo do quintal do fundo da casa. Dirceu
levanta-se apressado, corre até a janela do quarto, abre-a, espia o lado de
fora do quintal.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Estaria ali um lobo ou algum animal feroz para vitimar os
meus animais?
Escuta-se o cocoricar impaciente das galinhas.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Uma raposa! Estaria ali uma raposa?
Barulho das cabras e dos outros animais dos currais e dos chiqueiros.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Um lobo, seria um lobo ou uma onça enorme?
Dirceu fecha a janela do quarto e corre para a sala. Pau de travar portas
em um canto da sala. Ele pega o pau de travar portas e corre para uma
das portas, qual dá acesso ao fundo do quintal da casa. Ele ajeita-se o
pau de travar porta nas mãos, abre a porta devagar e sai até o quintal do
fundo da casa.
CORTA PARA
Vulto de Josias correndo no terreiro de frente da casa. Josias. Touceira
de capim. Josias cai numa touceira de capim próxima ao passadiço do
terreiro de frente da casa. Corpo de Josias caído na touceira de capim.
CORTA PARA
Quintal do fundo da casa. Pau de travar portas nas mãos de Dirceu.
Dirceu sai andando devagar pelo fundo do quintal, passo a passo.
Quintal do fundo da casa. Chiqueiro, curral, galinheiro. Dirceu espia
todos os cantos oblíquos do quintal do fundo da casa. Ora ele abaixa,
ora ele levanta o corpo, procurando proteger-se. Quintal frente ao
56
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
quintal da casa simples com varanda. Dirceu vai até o quintal da frente
da casa. Dirceu olha para a touceira de capim. A touceira de capim
balança. Dirceu aproxima-se da touceira de capim e abre-a com o pau
de travar porta. Corpo de Josias caído no chão, atrás da touceira de
capim. Dirceu vê o corpo de Josias caído no chão. Dirceu aproxima-se
de Josias, ajeitando o pau de travar portas, nas mãos. Josias vira o rosto
para Dirceu respirando fundo e gemendo de dor. Josias está com as
roupas rasgadas, com arranhões pelo corpo e uma mordedura de cobra
na perna direita. Ele tenta falar algo, mas se encontra fraco. Bota do pé
esquerdo de Dirceu sobre o corpo de Josias. Dirceu balança o corpo de
Josias com o pé esquerdo.
DIRCEU
O que queres cá, em minhas terras?
Josias, com os lábios trêmulos e sujos de sangue, não consegue falar.
Bota do pé esquerdo de Dirceu deixa de tocar o corpo de Josias. Dirceu
atira longe o pau de travar portas e olha para o corpo de Josias.
DIRCEU
Meu Deus, que tanta desgraceira para um homem só.
DIRCEU
(olha para um lado e outro, baixa e arrasta o corpo de Josias até
a varanda da casa)
És um escravo fugitivo? Está sendo perseguido por homens
de seu senhor e dono?
JOSIAS
(balança a cabeça dizendo "não", gemendo)
Zenilda, onde está minha Zenilda...
DIRCEU
(põe-se de joelhos)
Ainda tem mais essa, ele me faz perguntas sobre uma pessoa a
quem não conheço?
57
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 34 – INT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA.
QUARTO DE MARIA ANTÔNIA.
Josias no quarto deitado na cama a que pertencia a Maria Antônia.
Sobre a testa de Josias há um pano branco com compressa quente.
Pernas de Josias estendidas ao alto, por travesseiros improvisados. Perna
direita enrolada com retalhos de panos brancos. Lábios de Josias
balbuciando o nome de uma mulher chamada "Zenilda".
DIRCEU (VOICE OVER)
Zenilda, ele repetia esse nome sem cessar. Acolhi-o em minha
casa, fi-lo deitar no velho catre que pertencia a Maria Antonia
e arrumei mezinhas para curá-lo. Dias depois, o negro, que
dizia chamar-se Josias, estava bom e pronto para relatar-me a
sua história.
CAPÍTULO 2
SEQUÊNCIAS 35-35.9
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Josias
Comandante
Homens brancos e negros (tropa do comandante)
Dom Miguel
Pai de dom Miguel
Dois irmãos de dom Miguel
Cavaleiros de dom Miguel
Raimundo
Cocheiro de dom Miguel
Jucá
Homens brancos e negros (da fazenda de dom Miguel)
Homem moreno
Dois homens galegos
Arigó
58
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Zenilda
Safira
Jera
Escravos(as) das fazendas
Homem branco de 40 anos
Homem branco de 30 anos
Mulher negra de 40 anos
SEQUÊNCIA 35 - INT./ DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA.
Legenda: "Algumas semanas depois”.
Josias na varanda da casa simples sentado em um tamborete, com uma
caneca na mão. Pernas de Dirceu balançando devagarzinho na rede da
varanda. Dirceu está sentado na rede. Josias olha para o tempo e franje a
testa. Caneca em uma das mãos de Josias. Ele bebe uma dose do líquido
da caneca e faz uma cara ruim.
JOSIAS
Chá margoso, sô! As velhas sinhás que moram lá, de onde eu
venho, diziam que chá margoso é que faz bem pra saúde.
(bebe outra dose do líquido da caneca, colocando-a em
seguida no chão e fazendo cara ruim)
Não sei como nhozinho achou tanta erva por cá, capaz de me
levantar tão rápido do catre...
DIRCEU
(olha para a cara feia de Josias e dá risadas)
O senhor meu pai sempre me dizia que nesta colina tem de
tudo, desde ouro, índios, bichos raros e até mesmo todos os
tipos de mezinhas para curar as nossas dores, Josias.
JOSIAS
Nhô Dirceu é homem muito espirituoso, tem bondade de
Deus no coração. Há de ser muito feliz no decorrer da vida...
59
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
A felicidade está para todos, Josias. Para tê-la, basta que cada
um saiba como servir-se dela. Uns são felizes porque tem
pouco, outros são infelizes, porque tem muito. O certo,
porém, é que ninguém nunca se dará por satisfeito. Olha só,
vós mercê, está cá, quase curado, mas não ainda feliz...
JOSIAS
Por qual modo está dizendo isso, nhô Dirceu?
DIRCEU
Todas as noites, desde que vós mercê chegou aqui, está a
queimar de febre, gritando por uma mulher...
JOSIAS
(acanhado)
A Zenilda, não é? Eu sei que é...
DIRCEU
(coloca os pés no chão e para de balançar da rede)
É sim, Josias. E quem é essa Zenilda?
JOSIAS
(pega outro tamborete ao lado da rede e senta-se nele,
aproximando-se mais de Dirceu)
Vou contar para vossemecê a minha história, nhô Dirceu. Ela
é cumprida, mas só vou contar o que se sucedeu de uns
tempos prá cá. Daí Zenilda entra na história e, até onde ela
fica, nhozinho vai conhecer...
DIRCEU
Vai lá, Josias. Nosso tempo hoje é todo aquele que podemos
gastar...
60
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Josias se ajeita o corpo no tamborete. Dirceu levanta as pernas e
recolhe-as para dentro da rede. Ele deita-se na rede de forma que dá
para olhar para Josias.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 36 – EXT./DIA. ESTRADA.
Flash back - Relato de Josias.
Manhã. Estrada. Patas de cavalos levantando poeira na estrada. Cavalos.
HOMENS BRANCOS E NEGROS vestidos de vaqueiros, cavalgando
em seus respectivos cavalos, entre eles está Josias, com um enorme
berrante amarrado na sela do seu cavalo. Riacho. Cavalos bebendo água
no riacho e homens brancos e negros lavando o rosto no riacho. Tarde.
Homens brancos e negros montando em seus cavalos. Poeira. Homens
brancos e negros galopando em seus cavalos. Noite. Cavalos pastando
no relvado. Redes amarradas em árvores. Homens brancos e negros
deitados nas suas redes. Alguns homens brancos e negros deitados em
suas redes fumam cigarros de palha, enquanto outros comem em cuias e
bebem água nas cabaças. Homens brancos e negros dormindo em suas
redes. Madrugada. Berrante. Barulho de berrante. Cavalos. Homens
brancos e negros na estrada, montados em seus cavalos. Poeira levantase em uma encruzilhada.
JOSIAS (VOICE OVER)
Eu, nhô Dirceu era vaqueiro numa fazenda muito distante,
que pertencia às terras da Bahia. O dono da propriedade tinha
uma grande estima por mim, pois, igual a ninguém eu sabia
conduzir boiadas quilométricas de fazenda a fazenda e região
a região, por mais distantes que fossem umas das outras. Eu
conheci muitos lugares da colônia, desde as fazendas
pertencentes à capitania da Bahia, até Pernambuco, São
Sebastião do Rio de Janeiro, São Paulo de Piratininga e Minas
Gerais.
61
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Estrada. Homens brancos e negros cavalgando pela estrada. Josias
assopra o seu berrante. Estrada. Vem na mesma estrada uma pequena
carruagem, estando DOIS HOMENS NEGROS montados em cavalos,
em suas laterais, cada um puxando dois burros com cargas e
indumentos de viagem.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 35.1. INT./DIA - CASA SIMPLES COM VARANDA.
Apenas a imagem de Josias narrando.
JOSIAS
Porém, nhozinho, a minha aventura de vaqueiro terminou
quando, na volta de uma dessas viagens, um comandante de
tropa decidiu agir de forma errônea ao armar, bestamente,
uma tocaia contra uns tropeiros que eles avistaram numa
estrada. A tropa era um bando de portugueses ricos que
seguiam viagem para São Paulo de Piratininga.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 36.1 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS.
EXT./DIA. ESTRADA.
Homens brancos e negros troteando na estrada. O COMANDANTE
da tropa, um senhor branco, de 50 anos, à frente, OUTROS SEIS
HOMENS BRANCOS, de 30, 35, 40 anos, nas laterais direitas e
esquerdas da estrada margeada de végeis. TRÊS HOMENS NEGROS,
entre 35, 40 e 45 anos, ao centro, troteando conforme os demais. Entre
os três homens negros está Josias. O comandante frea o cavalo e olha
para um monte descampado. Ele dá um sinal para que os homens freem
os seus cavalos também. Todos o obedecem. O comandante cavalga
rápido até o alto do monte. Do alto do monte descampado, o
62
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
comandante vê a pequena carruagem, estando os dois homens negros
montados em cavalos, em suas laterais, cada um puxando dois burros
com cargas e indumentos de viagem. O comandante sorri e coça a
cabeça. Ele espora o cavalo e desce do alto do monte descampado. Ele
fala alto, olhando para os companheiros.
COMANDANTE
Homens, quem de vossemecês não gostaria de possuir
riquezas e tornar-se livre para sempre...
Os homens brancos tiram os chapéus e os erguem para o ar, com as
mãos afirmando "sim" com as cabeças. Os homens negros abaixam a
cabeça, reprovando. Josias espora o cavalo no meio dos homens e
cavalga até ao comandante.
JOSIAS
(colocando-se frente a frente do comandante)
Por acaso descobriu alguma mina por esse morro que nhô
acabou de subir?
COMANDANTE
Parece que sim e está vindo em nossa direção. Venham todos,
cá, para junto de mim...
Os homens brancos e negros troteam e fazem um circulo em volta do
Comandante.
COMANDANTE
O que tenho para dizer é sobre um plano, qual, estou cá, a
matutar. Se vossemecês concordarem, vai ser bom para todo
mundo...
Ao longe dali, na mesma estrada, vem a pequena carruagem. Quatro
homens brancos a cavalo, entre eles um chamado de RAIMUNDO, alto
e magro, de aproximadamente 30 anos de idade e outro chamado JUCÁ,
alto e gordo, de aproximadamente 25 anos de idade. Eles viajam pela
63
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
retaguarda da carruagem; porquanto, ao lado, há os dois homens negros,
cada um puxando dois burros com cargas e indumentos de viagem.
Dentro da carruagem há três homens brancos, portugueses, DOM
MIGUEL, jovem de aproximadamente 27 anos, corpo esbelto e trajado
a um príncipe; DOIS IRMÃOS DE DOM MIGUEL, um de 25 anos e
outro de 20 anos, trajados também iguais a uns príncipes; PAI DE
DOM MIGUEL, de aproximadamente 50 anos e muito bem trajado,
igual aos filhos e o COCHEIRO, um homem moreno, de 30 anos, qual
conduz a carruagem.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 35.2. INT./DIA - CASA SIMPLES COM VARANDA.
Tarde. Josias volta à tona na varanda da casa simples, ao ladoa de
Dirceu, qual está sentado na rede.
JOSIAS
Homem que é ambicioso acaba ficando tolo. Imagina nhô
Dirceu que o comandante inventou o plano de tocaiar uma
carruagem que ia de Minas Gerais para São Paulo de
Piratininga. Segundo ele, se tudo corresse dentro dos
conformes, todos ficariam bem de vida. Ele casquetou na
cabeça de que a carruagem trazia ouro, muito ouro de Vila
Rica... Pensei logo na confusão que aquilo resultaria. Todos
nós, boiadeiros, não sabíamos de briga e de repente teríamos
de enfrentar quem nós não conhecíamos... Eu tentei avisar,
tirar do pensamento do comandante aquelas ideias, mas não
adiantou não...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 36.2 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS.
EXT./DIA. ESTRADA.
64
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cavalos agitados. O comandante na frente dos cavalos agitados.
Homens brancos e negros galopam rápidos pelo areião da estrada.
Levantam-se poeiras. Homens brancos e negros passam por uma curva
da estrada e entram numa reta. Ao longe da estrada vem a pequena
carruagem. Homens brancos e negros fream os cavalos e ficam
observando a pequena carruagem que vem ao longe.
COMANDANTE
Mirem-se senhores. Vejam, lá na capoeira! Está chegando a
nossa preciosa riqueza...
Os homens dão risadas. Galopam avante. Josias frea o cavalo ficando
para trás. O Comandante larga à frente e galopa rápido até Josias.
COMANDANTE
(vira para Josias um pouco nervoso)
O quê foi Josias? Resolveu amoar aí feito boi tapado? Está na
hora de avançar e atacar, Josias...
JOSIAS
(olha à frente da estrada e vê homens a cavalos e carruagem
vindos na estrada em direção a eles)
Carece não, comandante. Deixa disso. Isso tudo vai dar numa
desgraceira só...
COMANDANTE
Se todos pensarem igual à vossemecê.
COMANDANTE
(grita nervoso)
Adiante, homens, adiante! Querem ser escravos por toda a
vida?!!!
JOSIAS
Prefiro, porque não quero morrer hoje não.
65
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Estrada. O comandante dá meia-volta, em círculo e à frente da estrada
vê a carruagem. Sorri. Olha para Josias
COMANDANTE
Vem, lá a nossa riqueza. Posso perder tempo com vossemecê,
não, Josias.
Estrada. Carruagem aproximando-se. O comandante galopa mais à
frente para liderar os homens brancos e negros. Ele grita.
COMANDANTE
(grita aos homens)
Avante, avante. Vamos saquear todo o ouro que está naquela
rica carruagem... São contrabandistas, não são? Nós também
somos, a partir de agora...
Mãos de homens brancos e de homens negros para cima. Arreios
sacodem-se. Cavalos relincham. Os homens brancos e negros se
espalham pelos cantos da estrada. A poeira levanta-se. Josias trotea
devagar na retaguarda, ficando só. Ele olha à frente da estrada. Cavalos,
cavaleiros, a carruagem aproxima-se. O comandante tira um punhal de
um alforje, preso à sela. Ele ergue o punhal para cima e vai de encontro
a um dos homens negros, próximo à carruagem. Ele derruba o homem
negro do cavalo com um só golpe de punhal nas costas. O homem
negro cai no chão gemendo. Josias assusta-se ao ver os homens negros e
brancos, da sua tropa, atacar a carruagem. Ele pula do cavalo dele e foge
para o mato pela lateral esquerda da estrada. JOSIAS esconde-se dentro
de uma grota, onde fica escutando o barulho de tiros de bacamartes e
homens gritando. Estrada. Bacamarte nas mãos do cocheiro da
carruagem. O cocheiro atira por todos os lados, acertando um homem,
ora branco, ora negro, da tropa do comandante. A carruagem perde o
controle e tomba. O cocheiro cai no chão e perde o bacamarte. Ele
levanta-se do chão e corre até a carruagem tombada. O pai de dom
Miguel está preso na carruagem. Corpo do irmão de dom Miguel está
caído na estrada. O Cocheiro enfia os braços dentro da carruagem
tombada e saca uma espada. Um dos homens negros, da tropa do
66
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
comandante, a cavalo, corre em direção ao cocheiro, mas cai do cavalo.
O cocheiro sangra o peito do homem negro com a espada e corre para
atacar os outros homens da tropa do comandante. O cocheiro tropeça
na areia e cai. O comandante avança para cima do cocheiro e apunhalaos pelas. O cocheiro agoniza e morre. Carruagem tombada. Dom
Miguel tenta empurrar a carruagem para livrar o corpo do pai de uma
das rodas. O pai de dom Miguel está agonizando, com as mãos
escorrendo sangue. Ele geme-se de dor.
DOM MIGUEL
(grita desesperado)
Alguém me socorre, cá. O senhor, meu pai está ferido.
Ajudem-me a erguer está diligência...
Raimundo acha o bacamarte e sai correndo atrás do comandante e de
dois homens brancos, quais ainda restavam da tropa do comandante.
Cavalos assustados fogem pelo mato. Raimundo mata os dois homens
brancos da tropa do comandante. O comandante foge de Raimundo.
Carruagem. Corpo do pai de Dom Miguel preso na carruagem. O pai de
dom Miguel agoniza e morre. Dom Miguel fecha os olhos do pai com as
mãos. Ele chora, levanta-se e vai ao encontro dos irmãos. Corpos dos
irmãos. Dom Miguel solta um grito ao ver os corpos dos irmãos. Serra.
Os gritos de Dom Miguel ecoam pela serra.
DOM MIGUEL
(grita desesperado)
O quê fizeram? Mataram também os meus irmãos. Mutilaram a
minha família?
Tiros de bacamarte. Corpos dos dois irmãos de Dom Miguel. Dom
Miguel cai no chão de joelhos. Areia suja de sangue. Dom Miguel pega
um pouco da areia com o sangue, esfrega-a nas mãos e passa entre os
peitos, tentando sufocar o choro, mordendo os lábios.
67
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DOM MIGUEL
(cai de joelhos e ergue as mãos aos céus)
Custe o que custares, vingarei toda esta atrocidade feita ao
senhor meu pai e aos meus dois irmãos...
DOM MIGUEL ABAIXA-SE E DEITA O ROSTO NA AREIA DA
ESTRADA.
Homens mortos na estrada. Morro alto à direita da estrada. O
comandante, a pé, tenta fugir para o morro. Bacamarte na mão de
Raimundo mirando-se para o comandante. Ouve-se um tiro de
bacamarte. O comandante recebe um tiro pelas costa e cai morto na
margem do morro. Um dos burros carregados de indumentos de viagem
foge assustado para o mato pela lateral esquerda da estrada. Dom
Miguel, ainda caído de joelhos, chora a morte do pai e dos irmãos. Jucá
anda devagar e aproxima-se de Dom Miguel com a espada na mão.
Espada. Jucá parado atrás de Dom Miguel com a espada. Dom Miguel
vê Jucá pela sombra na areia com a espada na mão.
DOM MIGUEL
(fecha os olhos e abaixa-se a cabeça)
Faças o que tenhas de fazer, mas, por favor, mate-me com um
só golpe.
Dom Miguel deita-se na areia da estrada e estende-se o pescoço. Jucá,
com a espada nas mãos, responde com a voz comovida e entre lágrimas.
JUCÁ
Levante-se, Dom Miguel, sou eu, o Jucá... Parece que depois
desta desgraceira toda, somente restaram o senhor, o
Raimundo e eu...
Dom Miguel levanta a cabeça chorando. Raimundo vem em direção a
Dom Miguel e Jucá. Dom Miguel vira o rosto para Jucá, depois para
Raimundo e limpa as lágrimas dos olhos, esfregando-os com os braços.
68
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DOM MIGUEL
Armaram-nos um tocaia, Jucá. Armaram-nos uma tocaia,
Raimundo. Meu irmão havia avisado ao senhor meu pai que
estas viagens se tornariam perigosas...
Silêncio. Estrada. TRÊS HOMENS vêm galopando rápidos na estrada
em seus cavalos. UM HOMEM MORENO, vestido de vaqueiro, é
baixo, beiçudo, pele morena e 40 anos de idade; os OUTROS DOIS
HOMENS GALEGOS, vestidos de vaqueiros, têm peles e olhos
claros, cabelos loiros e idades entre 30 e 27 anos. Dom Miguel,
Raimundo e Jucá tentam levantar a carruagem. Eles fazem força para
erguer a carruagem, mas não conseguem. Os três homens aproximam-se
deles, fream os cavalos e olham para a estrada. Corpos de homens
mortos caídos na estrada.
HOMEM MORENO
O que foi que sucedeu por aqui, meu Deus de Jericó... Uma
tocaia, foi?
RAIMUNDO
(desiste de empurrar a carruagem e olha surpreso para os três
homens)
Sofremos uma das perigosas... olha só no que se deu...
HOMEM MORENO
Desgraceira, sô! Isso é difícil acontecer por estas bandas...
DOM MIGUEL
(olha para a carruagem e para os três homens)
Pois aconteceu, vejam os senhores, foi uma desgraceira
danada, perdi o meu pai, dois irmãos e alguns de meus
escravos e trabalhadores...
Tarde. Estrada. Carruagem tombada. Corpo do pai de Dom Miguel
preso nas rodas da carruagem. O homem moreno olha para o corpo do
69
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
pai de Dom Miguel preso entre as rodas da carruagem e faz o sinal da
cruz na testa.
HOMEM MORENO
O carro não sofreu muitos danos, as rodas estão inteiras.
Vamos aprumar os cavalos e usar o carro para transportar os
corpos... Há um cemitério numa freguesia próxima daqui, onde
vossemecês podem enterrar os seus mortos... Qualquer terra é
terra mesmo...
UM DOS OUTROS DOIS HOMENS GALEGOS
Se necessitam de ajuda, temos tempo. Vamos arribar a
carruagem e tirar o corpo deste santo homem daí de baixo e
levar os corpos para um cemitério de uma freguesia aqui
próxima... Querem ajuda?
Dom Miguel, Jucá e Raimundo aceitam a ajuda dos três homens
balançando um "sim" com as cabeças. Os TRÊS HOMENS
aproximam-se da carruagem. Cavalos caídos no chão, trelados à
carruagem. Os TRÊS HOMENS pulam-se de seus cavalos, vão até a
carruagem e desatrelam os cavalos da carruagem. JUCÁ, RAIMUNDO
e os TRÊS HOMENS fazem força e colocam a carruagem em pé. Dom
Miguel cai de joelho áo lado do corpo do seu pai. O homem moreno
observa toda a carruagem
HOMEM MORENO
O carro não sofreu muitos danos, as rodas estão inteiras.
Vamos aprumar os cavalos e usar o carro para transportar os
corpos... Há um cemitério numa freguesia próxima daqui,
onde vossemecês podem enterrar os seus mortos... Qualquer
terra é terra mesmo...
JUCÁ
Levaremos apenas os corpos dos nossos homens; os outros
carecem ser comidos pelos urubus...
70
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DOM MIGUEL
Vou deixar os teus corpos guardados nestas terras, meu pai,
meus irmãos, mas um dia eu volto e busco os ossos de vós
mercês para continuar o repouso em um cemitério junto aos
seus antepassados...
Estrada. Corpos dos homens mortos. Uma revoada de abutres voa
pelos ares em círculo dos corpos dos homens mortos na estrada. Pôrdo-sol. Grota. Josias aponta a cabeça para fora de uma grota. Ele sai da
grota e anda pelo mato. Estrada. Corpos dos homens do comandante e
do comandante jogados pela estrada. Josias chega à estrada para e olha
indignado para os corpos dos amigos de viagem. Josias anda por entre
os corpos dos homens mortos. Josias para ao lado do corpo do
comandante, à beira da serra e tira o chapéu da cabeça.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 35.3 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA
SIMPLES COM VARANDA.
Tarde. Josias volta à tona, na varanda da casa simples, ao lado de
Dirceu, qual está sentado na rede.
JOSIAS
Depois de toda a confusão, eu sai da grota, examinei
rapidamente os corpos dos meus amigos mortos e abandonei
a estrada ganhando o mato. Cavalguei sem rumo, subindo a
serra...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 36.3 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS:
EXT./DIA/NOITE. CAMPO LARGO. SERRAS. ESTRADAS E
VEREDAS
71
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Vereda. Um campo largo na vereda. Burro pastando com cargas nas
costas. Josias vê o burro. Ele cavalga depressa para pegar o burro. Josias
aproxima-se do burro, pula do seu cavalo e corre para pegá-lo. Josias
passa as mãos na cabeça do burro até tocar nas cargas. Bruacas. Josias
abre uma das bruacas penduradas no lombo do burro. Ele enfia as mãos
na bruaca e retira dela um alforje. Josias abre o alforje e tira de dentro
dele pedaços de queijo, de rapadura, um pequeno pote com melado e
outras iguarias de guloseimas de viagem. Josias morde um pedaço de
queijo e guarda tudo novamente dentro do alforje. Ele coloca o alforje
dentro da bruaca. Josias monta no cavalo dele e sai galopando levando
também o burro com as cargas no lombo. Noite. Serras. Josias
galopando serras, estradas e veredas. Josias enfrenta o sol, a chuva e a
cerração durante noites e dias.
JOSIAS (VOICE OVER)
Ao entardecer, antes que o sol morresse no ocaso, encontrei
não muito distante um burro com duas bruacas presas ao
lombo. Acalmei o burro, abri uma de suas bruacas trazidas ao
lombo e achei dentro de um alforje pedaços de queijo, de
rapadura, um pequeno pote com melado e outras iguarias. Um
pedaço de queijo bastou para matar a minha fome. Guardei
tudo novamente no alforje e coloquei na bruaca do burro.
Peguei o meu cavalo, a rédea do burro e levei-o comigo na
longa viagem, subindo e descendo morros.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 35.4 – CONTINUAÇÃO - INT./TARDE. CASA
SIMPLES COM VARANDA.
Josias volta à tona, na varanda da casa simples, ao lado de Dirceu, qual
está deitado na rede.
72
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Enfrentei sol, chuva e cerração, até chegar numa fazenda. O
nome da fazenda era Paraíso. A fazenda pertencia a um
mineiro bonachão, chamado Arigó. Nessa fazenda, o senhor
Arigó deu-me abrigo em troca de trabalho.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 36.4 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS:
EXT./INT. DIA/NOITE. FAZENDA PARAÍSO. VÁRIOS.
Tarde. Fazenda Paraíso. Josias entra no pátio de frente da fazenda
Paraíso. Casarão da Fazenda Paraíso. Varanda do casarão. Josias
aproxima-se do casarão da Fazenda Paraíso. Josias frea o cavalo e olha
para a varanda do casarão. Na varanda do casarão está ARIGÓ, um
senhor branco, baixo, gordo, barba cerrada e cabelos grisalhos, 60 anos
de idade. Arigó vê Josias montado no cavalo, segurando o burro com as
duas bruacas. Arigó aproxima-se do muro da varanda do casarão para
observar a chegada de Josias.
ARIGÓ
(fala por solilóquio)
Será se aquele negro está a trazer-me alguma encomenda? Não
encomendei nada a ninguém, de lugar algum...
Josias está montado em seu cavalo empurrando o burro com cargas. Ele
acena para Arigó. Escadas da varanda, que se dão à frente do terreiro.
Arigó desce as escadas da varanda um pouco apressado. Josias montado
em seu cavalo aguarda por Arigó, no pátio. Arigó aproxima-se de Josias
no pátio da fazenda Paraíso.
JOSIAS
Venho de uma longa viagem, nhô. O meu comandante,
juntamente com meus companheiros de viagem, foram todos
mortos numa terrível tocaia na estrada que segue de São Paulo
73
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
de Piratininga para Minas Gerais. A desgraça foi tão
desgraçadamente feia que restou apenas eu para contar a
vossemecê a história. Imagine "nhô", que Deus poupou este
pobre diabo da morte para tornar-se criado de vossemecê. O
pior de tudo para mim, não foi a tocaia, Senhor, foi a viagem.
Eu enfrentei tudo: bicho perigoso, capoeiras, morros e
veredas, dia e noite...
ARIGÓ
Vós mercê não é escravo foragido?
JOSIAS
Nhô, não. Sou vaqueiro, viajo pelas estradas afora de capitania
a capitania, tocando boiada para o meu patrão. Ele mora na
Bahia, nhô. Ele é um grande produtor de boi Nelore, raça
muito procurada no Brasil.
ARIGÓ
Tenho alguns nelores, cá, na fazenda...
JOSIAS
Se nhô estiver precisando de alguém no trato dos bois, posso
ficar aqui por alguns tempos...
ARIGÓ
E por que não? A fazenda sempre carece de gente bem
intencionada...
CORTA PARA
Noite. Celeiro. Quarto de Josias. A janela pequena do quarto está aberta.
A luz da Lua reflete-se no quarto, ora através da janela pequena aberta,
ora por algumas frestas abertas nas paredes. Cela pendurada em um
arreio preso ao caibro do telhado. Há duas bruacas de couro encostadas
em um canto, abaixo da janela. Cama. Na cabeceira da cama há um
alforje pendurado. Bruacas de couro. Em uma das bruacas há três letras
74
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
gravadas a fogo, quais iniciais são "JSN". Josias dirige-se até as bruacas.
Ele escolhe a bruaca com as letras gravadas, sem perceber as letras e
abre-a. Bruaca aberta. Josias olha atentamente as coisas que estão dentro
da bruaca. Ele tira da bruaca três panelas de pedra sabão, usadas, um
pequeno caldeirão de ferro e alguns talheres e xícaras de porcelanas
portuguesas e as espalham pelo chão. Fundo da bruaca. Josias olha para
o fundo da bruaca e enfia novamente as mãos. Josias pega uma pequena
caixa de couro. Olhos arregalados de Josias. Josias repara a caixa de
couro atentamente. Alforje na cabeceira da cama. Josias pega o alforje,
abre-o e retira dele um pequeno punhal. Cama. Josias ajeita-se na cama.
Punhal nas mãos de Josias. Ele corta, pacientemente, as amarraduras da
pequena caixa de couro. Caixa de couro aberta. Josias tira de dentro da
pequena caixa de couro uma pequena imagem de uma santa esculpida
em cedro. A imagem é de Santa Ifigênia. Josias coloca a imagem de
cedro em cima da cama. Josias enfia a mão na caixa de couro. Rosto de
Josias. Josias sorri. Mãos de Josias fechadas. Josias abre as mãos tendo
nelas algumas pepitas de ouro. Imagem de Santa Ifigênia em cima da
cama. Josias pega a imagem de Santa Ifigênia e olha-a atentamente,
sorrindo. Josias beija a imagem de Santa Ifigênia e faz o sinal da cruz.
JOSIAS (VOICE OVER)
Ao acomodar-me em um velho celeiro, na fazenda Paraíso,
numa certa madrugada, resolvi abrir uma das bruacas de
couro, qual eu nunca havia mexido. Eu fiquei surpreso ao
encontrar nela uma pequena caixa de couro. Eu peguei o meu
punhal, descosturei ponto por ponto e, ao abrir a caixa,
deparei com uma pequena imagem de Santa lfigênia e uma
boa quantidade em pepitas de ouro. Eu quase não acreditei.
Eu beijei a santinha e me abençoei com o sinal da cruz.
Bruaca fechada. Josias sentado na cama com as pepitas de ouro nas
mãos.
JOSIAS
Ouro é coisa do demô. Se o homem não tiver cuidado fica
tolo.
75
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Josias coloca a imagem de santa Ifigênia e as pepitas de ouro dentro da
pequena caixa de couro. Ele levanta-se da cama e arrasta-a de qualquer
jeito para outro lado. Punhal. Ele estende as mãos em um canto escuro
e pega o punhal. Chão batido. Ele cava o chão com o punhal e faz um
buraco. Ele pega a pequena caixa de couro e enterra-a no buraco do
chão batido. Josias empurra a cama para o mesmo lugar. Punhal em
cima da cama. Josias senta-se na cama, esfrega e sopra as mãos cheias de
calos.
JOSIAS
Nunca vou contar para ninguém sobre este tesouro guardado
debaixo da minha cama... Foi a santinha que quis tornar-me
dono de todo esse ouro...
LÁ FORA, UMA CORUJA VOA, POUSA EM UMA ÁRVORE E
SOLTA UM PIO.
Fazenda Paraíso. Amanhece o dia. Canto dos galos, coricocós das
galinhas e berrados de boi. Telhado de uma velha casa de palha.
Revoada de pássaros voam-se do telhado da velha casa de palha.
Interior da velha casa de palha. Arigó termina de vestir um casaco. Seios
e corpo de uma mulata, deitada em um lençol azul, entre palhas de
milho e capim seco. A mulata, bonita e fogosa chama-se ZENILDA, 22
anos, esbelta, corpo e peitos bem desenhados. Porta da velha casa de
palha. Arigó observa o lado de fora e sai pela porta.
CORTA PARA
Varanda do casarão. SAFIRA, esposa de Arigó, portuguesa, de 50 anos,
gorda, baixa, de olhos azuis e de cabelos claros e cacheados, pela
varanda da casa, espia os arredores da fazenda.
CORTA PARA
Terreiro da fazenda Paraíso. Arigó, a passos rápidos, dirige-se até o
curral. No curral, ALGUNS HOMENS NEGROS ordenham as vacas.
76
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
Velha casa de palha. Porta aberta. Josias entra na velha casa de palha
com um enorme cesto nas mãos. Há no canto da parede um monte de
espigas de milho secas. Josias se dirige até as espigas.Chão batido.
Pontas de um lençol azul. Zenilda dorme. Corpo nú de Zenilda. Mãos
de Zenilda entre os seios. Josias dá alguns passos e chega onde está
Zenilda. Josias vê Zenilda com as mãos entre os seios, dormindo. Os
olhos de Josias viajam sobre o corpo de Zenilda. Uma galinha faz
coricocó, fugindo com uma ninhada de pintos. Zenilda acorda
assustada. Zenilda vê Josias parado, observando-a. Zenilda assusta-se,
cobre o corpo de qualquer jeito e solta um pequeno grito. Josias foge
dali, rapidamente.
CORTA PARA
Manhã. Fazenda Paraíso. Terreiro do quintal. Um galo corre atrás de
uma galinha. Grande cesta com milho debuiado. Josias sentado em um
tamborete debuiando milho. Zenilda passa, olha para Josias e faz um
rebolado com o corpo. Josias para de debuiar o milho e fica parado,
observando Zenilda.
ZENILDA ENTRA NA VELHA CASA DE PALHA.
Fazenda Paraíso. Noite. Dentro da casa velha de palha, Zenilda está
nua, sendo possuída por Arigó.
CORTA PARA
Manhã. Josias sentado em um tamborete debuiando milho. Zenilda
passa, olha para Josias e faz um rebolado com o corpo, tentando seduzilo.
FADE OUT/FADE IN
77
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Tarde. Zenilda rebola, dá um sinal para Josias e corre em direção ao
bananal da Fazenda Paraíso. Josias corre atrás de Zenilda. Bananal da
Fazenda Paraíso. Folhas secas do bananal. Zenilda cai entre as folhas
secas das bananeiras. Josias cai em cima do corpo de Zenilda. Josias e
Zenilda beijam-se. Josias se despe e despe também Zenilda. Josias e
Zenilda unem-se os corpos em um ato sexual.
FADE OU /FADE IN
Madrugada. Casa velha de palha. Josias está dentro da casa velha. Porta
de dentro da casa de palha. Josias está escondido atrás da porta de
dentro da casa de palha. Josias observa Zenilda e Arigó deitados
praticando sexo.
CORTA PARA
Legenda: "Três meses depois”.
Manhã. Campo de pasto. Bois e ovelhas pastando. Zenilda passeando de
mãos dadas com Josias. Zenilda e Josias deitam-se no capim, beijam e
trocam carícias. JOSIAS tira a roupa de Zenilda. Tarde. Varanda do
casarão. Safira, na varanda do casarão, observa Josias e Zenilda fugirem
para o bananal da fazenda. Pôr do sol. Roupas jogadas na margem de
um pequeno rio. Zenilda e Josias, pelados, trocam carícias dentro do
pequeno rio. Noite. Celeiro. Quarto de Josias. Cama. Zenilda com as
mãos entre os seios, deitada ao lado de Josias. Meio-dia. Trouxa de
roupas na cabeça de JERA, uma senhora negra, gorda e que tem 50 anos
de idade. Escada da varanda. Jera desce os últimos degraus da escada da
varanda e vê Zenilda sentindo náuseas em um dos cantos do casarão.
Jera coloca a trouxa de roupa no chão e corre para acudir Zenilda. Ela
está pálida e faz vômito. Jera ergue a cabeça de Zenilda, segurando-a
pela testa.
JERA
Oxalá, meu pai e salvador! Tenho experiência em assuntos de
mulheres e nunca errei os meus palpites. Vossemecê tá
78
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
prenha, minha filha. Andou enrabichando com homem, não
andou? É nisso que dá...
CORTA PARA
Campina. Capim alto. Rabos de cavalos. Arigó e um de seus vaqueiros,
um negro magro e alto, vinte anos de idade, cavalgam tranquilamente
pelas campinas da fazenda Paraíso.
ARIGÔ
Parece praga amaldiçoada, sô! Toda negra que eu meto a besta
de tocar acaba-se emprenhando? Essas negrinhas parecem
terra fértil, daquelas bem adubadas. Caiu a semente e pronto,
já começa a germinar...
(cospe pelo ar, com raiva)
Merda, bosta, diabo de atentação. Deus me dá filho com
quem não posso criar... Vou fazer com ela igual eu fiz com as
outras, Bernardo, venderei ao primeiro mercador de escravo
que por cá aparecer. A Zenilda é escrava boa, fogosa, bem
tratada, bonita e muitos mercadores haverá de querê-la com
bucho grande e tudo.
CORTA PARA
Jera está pilando arroz no pilão. Mão-de-pilão cai no chão. Jera, imóvel,
arregala os olhos para a varanda do casarão. Varanda do casarão. Arigó
na varanda do casarão em companhia de Serafina e DOIS HOMENS
BRANCOS, um de 30 e outro de 40 anos de idade, baixos e gordos.
JERA, com o olhar assustado, comenta para TRÊS MULHERES
NEGRAS que estão próximas a ela, no pilão. As três mulheres negras
peneiram e sopram arroz.
JERA
Meu Deus, o nhô Arigó vai mandar levar a Zenilda. Olha só,
aqueles homens lá... Aqueles homens são os mesmos. Quando
eles aparecem aqui, ou é para trazer ou levar negros. Se não
79
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
trouxeram negros, vão levar alguém. Dessa vez é a pobre da
negrinha. Arrumou barriga emprestada tai no que dá...
Jera e as três mulheres negras olham para a varanda do casarão. Escada
da varanda do casarão. Zenilda sobe a escada da varanda do casarão.
JERA
Eu não erro os meus palpites. Olhem lá. A Zenilda vai ser
mostrada para eles. Daí, a coitada vai ser vendida. Não sei
porque, mas nessa fazenda não nasce crianças. Toda mulher
que aparece prenha, o "nhô" Arigó acaba vendendo... Tenho
cá as minhas desconfianças. A sinhá Safira é seca, não pode
ficar prenha e acho que não gosta de ver mulher prenha.
Deve-se aborrecer com choro de menino...
Varanda. Zenilda sobe os últimos degraus da escada e anda em direção a
Arigó, Safira e os dois homens brancos. Um dos homens olha para
Zenilda que já se aproxima deles.
HOMEM BRANCO DE 30 ANOS
Aquela que vem cá? Não, ela não há de nos servir. Ela é muito
francina, não vai tolerar o tipo de trabalho a ser submetido
por lá...
SAFIRA
Vossemecês não irão se arrepender. A cachopa parece
francina, mas é muito talentosa. Não há outra igual, na
cozinha...
Os dois homens brancos de 30 e 40 anos se entreolham.
HOMEM BRANCO DE 40 ANOS
Mas por que vossemecês estão colocando a menina à venda,
se a elogiam e afirmam sê-la tão boa na cozinha...
80
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ARIGÓ
Não estamos colocando a menina à venda, senhores. Não
temos o hábito de vender nossos escravos. Como vossemecês
insistiram em ficar mais tempo, cá, na fazenda, aproveitamos
para oferecê-los uma de nossas melhores prendas...
HOMEM BRANCO DE 30 ANOS
Ficaremos com ela, senhor. Quem sabe faremos um bom
negócio. Não temos o costume de negar aquilo que a nós é
oferecido. Dê o preço, quem sabe, ela não vale um bom
colchão de casal feito de penas e feno, com um luxuoso
revestimento de seda ou brocado.
ARIGÓ
Temos cá, esse colchão brocado com penas e fenos, vindo da
europa. Creio que ela vale bem mais do que vinte contos de
réis...
HOMEM BRANCO DE 30 ANOS
Fecharemos em quinze contos de réis, senhor. Dinheiro bem
pago, sem precisar consultar dentes, corpo...
Varanda do casarão. Safira chama Arigó a um canto da varanda e
cochicha com ele. Zenilda, parada a um canto apenas observa tudo.
SAFIRA
É melhor que aceite o lance dos moços e despache a moça de
uma vez. Desta forma não temos nada a declarar sobre a
gravidez dela...
Safira e Arigó voltam aos homens brancos de 30 e 40 anos.
HOMEM BRANCO DE 40 ANOS
Então, vão fechar o negócio?
81
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SAFIRA
Se assim desejam, por mim, a mulata condiz ao valor
estipulado pelos senhores...
Arigó olha para Zenilda e abaixa a cabeça. Zenilda engole a seco. Arigó
anda a passos rápidos. Porta aberta do casarão. Arigó atravessa a porta e
entra para dentro do casarão. Varanda. O homem branco de 30 anos
entrega uma quantia em dinheiro para Safira. Safira sorri, conferindo o
dinheiro. Zenilda olha para Safira com os olhos cheios de ódio e fala
por solilóquio.
ZENILDA
Os seus dias não vão demorar muito, dona Safira... Virá
também o dia da minha vingança.Vossemecê me vende com
dinheiro e o demônio vai te comprar com sangue... Quem
sabe não vai comprar com também o seu marido...
ROSTO DE ZENILDA COM A EXPRESSÃO DE ÓDIO.
Varanda do casarão da fazenda Paraíso. Safira está sozinha na varanda.
Ela olha para a entrada da fazenda. cancela aberta. Os homens brancos
de 30 anos e de 40 anos estão montados em seus cavalos. Zenilda
encontra-se ao lado deles com as mãos amarradas. Ela será levada por
eles para outra fazenda. Alguns escravos mantêm-se distantes, com os
olhares voltados para Zenilda. Jera está estendendo algumas roupas no
varal, juntamente com três mulheres negras. Uma MULHER NEGRA
DE 40 ANOS corre em direção de Jera.
MULHER NEGRA DE 40 ANOS
Vossemecê tava certa, nhô Arigó vendeu Zenilda. Olha lá, na
cancela, os dois homens tão levando ela...
Cancela da Fazenda Paraíso. Zenilda e os homens brancos de 30 anos e
de 40 anos montados em seus cavalos. Zenilda está na garupa do cavalo
de um dos homens brancos de 30 anos. Jera olha para a cancela.
82
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JERA
É, tô vendo que a coitada vai ser mesmo arrastada para longe.
Não sei por que diabo tem de ser desse jeito, com mãos
amarradas, feito bicho bravo que se pega no mato e depois
amansa.
MULHER NEGRA DE 40 ANOS
Isso é maldade de homem branco. Homem branco trata negro
feito bicho. Deus, lá do céu, parece que não pode fazer nada...
JERA
Deixa de meter Deus nessas histórias, menina. Deus tem
muito o que fazer. Os homens brancos também não mataram
o seu único filho, Jesus Cristo? Deus mostra que a
recompensa não está aqui, não, mas no céu, depois da morte...
Homens brancos de 30 e 40 anos saem pela cancela levando Zenilda
com as mãos amarradas. Zenilda é puxada por uma corda. Celeiro. Porta
abre-se. Josias sai pela porta, correndo para o bananal. Bananal. Ele se
joga de joelhos no chão, chorando e soluçando.
JOSIAS
Custe o que custar, Zenilda, eu não vou demorar a te buscar.
JOSIAS
Custe o que custar, Zenilda, eu não vou demorar a te buscar.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 35.5 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA
SIMPLES COM VARANDA.
Tarde. Varanda da casa simples. Josias na varanda da casa simples
sentado no tamborete ao lado de Dirceu. Dirceu continua deitado na
rede.
83
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Inconformado com a situação eu engoli tudo calado. Eu,
velho escravo, com a vida má resolvida, não podia comprar
Zenilda por qualquer preço em ouro que eu escondia
enterrado no chão, debaixo do velho catre. Quase morto de
paixão e saudade da minha nega, numa certa madrugada
resolvi abandonar aquela fazenda em busca dela.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 36.5 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS.
EXT./DIA. SERRA. FAZENDA DE DOM MIGUEL.
Josias trotea no cavalo entre as veredas da serra. Fumaça de poeira,
abaixo da serra. Josias frea o cavalo e observa a fumaça de poeira. Ele
fala por solilóquio.
JOSIAS
Aquela poeira vem de uma mina de ouro. Onde tem uma
mina de ouro, sempre tem uma fazendinha por perto...
Vista panorâmica da serra. Abaixo da serra uma fazenda, onde há
também uma mineradora disfarçada, qual pertence a Dom Miguel.
Josias cavalga, desce a serra e vê a fazenda de dom Miguel. Riacho de
águas cristalinas. Josias apea do cavalo, pega o cavalo e o burro pelos
cabrestos e amarra-os na frondosa árvore. Riacho. Josias segue o
percurso do riacho e entre as folhagens, espia os arredores da fazenda
de Dom Miguel. Josias mergulha na água do riacho e alcança a outra
margem. Ele escuta risadas de mulheres vindas da direção da fazenda de
Dom Miguel. Ele abre uma pequena fenda entre as folhagens e vê o
quintal da fazenda Dom Miguel. No quintal da fazenda há um grupo de
mulheres negras em torno de um jiral de madeira cuidando de um
capado de porco cortado ao meio. Pedra. UMA MULHER ALTA E
MAGRA sentada na pedra. Josias observa a mulher alta e magra sentada
na pedra. A mulher é Zenilda. Ela está descascando mandiocas. Olhos
84
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
de Josias fixos em Zenilda. Folhagens balançando. Josias ajeita o corpo
e anda um pouco mais entre as folhagens. Josias fixa o olhar para a
direção de Zenilda. Josias dá risadas, esfregando os olhos.
JOSIAS
Meu Deus, será se aquela mulher é a Zenilda ou eu estou
tendo alguma visagem? É ela, é ela, sim, a minha neguinha...
Folhagens balançam. Árvore frondosa. Cavalo e burro amarrados na
árvore frondosa. Josias, a passos largos, volta até onde os animais estão
amarrados. Burro. Josias dirige-se até o burro. Bruacas no lombo do
burro. Josias abre uma das bruacas e tira dela uma pequena caixa de
couro. Josias coloca-a no chão.
JOSIAS
Vou esconder esta caixa em algum lugar. Depois que eu pegar
a Zenilda, seguirei o meu destino de homem rico e livre...
Pequena caixa de couro no chão. Josias desamarra o cavalo do tronco da
árvore e monta-se nele ajeitando a pequena caixa de couro entre os
braços da mão direita. Josias deixa o burro amarrado em uma árvore
frondosa e galopa rápido até o alto da serra. Alto da serra. Campo de
cristais rochosos. Alforje na sela do cavalo. JOSIAS abre o alforje e
retira dele um punhal. Pequena caixa de couro entre os braços da mão
direita, punhal, também seguro na mão direita. Josias dá uma volta
rápida pelo campo de cristal e, ao pequeno centro, apea-se do cavalo.
Terreiro pedregoso. Josias olha para o terreno pedregoso, coça a cabeça,
coloca a pequena caixa de couro no chão e ajeita o punhal na mão para
cavar a terra. Josias cava a terra fazendo um buraco raso. Ele coloca a
pequena caixa de couro dentro do buraco e enterra-a. Ele vê uma
grande pedra próxima ao local da pequena caixa enterrada. Ele rola a
pedra colocando-a em cima do esconderijo da pequena caixa enterrada.
Josias limpa as mãos, senta-se na pedra e respira aliviado.
85
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Esta pedra há de marcar bem este local. Não é para ninguém
no mundo nunca pensar que debaixo dela existe uma caixa
com santa e pepitas de ouro. No mundo há tantas desgraças,
que se eu morrer, Deus há de permitir que eu ajudarei alguém
de minha estima, encontrá-la... Quem sabe Zenilda e, até um
dia, o meu filho ou um grande amigo...
Josias põe-se de pé, corre até o cavalo, monta-o e galopa rápido. Josias
desce a serra. Riacho. Árvore frondosa. Burro amarrado na árvore
frondosa. Josias apea-se do cavalo.
JOSIAS
Não sei se vou fazer besteira, mas tenho de chegar até aquela
fazenda e pegar a minha nega.
Árvore frondosa. Josias desamarra o burro da árvore frondosa. Ele
monta-se no cavalo, ajeita a rédea do burro nas mãos e sai galopando
devagar em busca da entrada da fazenda de Dom Miguel. Clareira. Raios
de sol. Cancela da fazenda de Dom Miguel. Josias aproxima-se da
cancela da fazenda de Dom Miguel. Pátio da fazenda de Dom Miguel.
Raimundo (qual parpicipara da tocaia contra a família de Dom Miguel)
vê Josias. Cavalo e burro. Josias montado no cavalo, segurando a rédea
do burro. Raimundo dá um sinal a três homens brancos, quais estão
vigiando a entrada da fazenda. Um dos três homens brancos é Jucá (qual
participara também da tocaia contra a família de Dom Miguel). Varanda
da casa. Raimundo vai até a varanda da casa. Bacamarte em um canto da
parede da varanda. Raimundo pega o bacamarte e, armado, vai ao
encontro de Josias. Josias, firme em seu cavalo, segura também o burro
pela rédea. Bacamarte nas mãos de Raimundo, mirado em direção a
Josias. Cancela fechada. Josias segura na cancela fechada, ajeita em uma
das mãos as rédeas do cavalo e do burro. Ele tira o chapéu e
cumprimenta Raimundo e os três homens brancos.
86
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Bom dia, inhores. Há dias viajo por essas bandas em busca de
serviço pro meu sustento...
Bacamarte nas mãos de Raimundo. Josias olha para Raimundo
corajosamente.
JOSIAS
Sou do mal não, moço. Nhô tem um servicinho pra mim,
nessas terras? Faço tudo que é tipo de serviço, sei ordenhar,
capinar, amansar cavalo bravo e...
Burro. Cargas do burro. Os olhos de Raimundo se fixam nas cargas
atreladas no burro. Raimundo continua com o bacamarte apontado para
Josias.
RAIMUNDO
Vossemecê não é escravo fugido?
JOSIAS
(faz o sinal de "não", com a cabeça)
Tô dizendo ao nhô que não...
RAIMUNDO
Vossemecê não é um tocaiador de estrada?
JOSIAS
Nhô, não. Sou homem de bem. Apenas fugi de uma fazenda
distante daqui, mas eu não pertencia ao dono. Não tenho
carta livre, mas fui largado no mundo pelo meu "nhozinho",
lá nas bandas da Bahia... Vivo assim, um dia aqui, outro dia ali.
Vivo de favores numa fazenda e n´outra...
RAIMUNDO
Então se vossemecê diz ser homem de bem, pode apear do
cavalo, atravessar a cancela e se "achegar" junto a nós.
87
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cancela aberta. Josias atravessa a cancela e entra no terreiro da fazenda,
empurrando o cavalo e o burro. Raimundo aproxima-se do burro.
Cargas atreladas ao burro. Raimundo observa as cargas atreladas no
burro.
RAIMUNDO
(passa as mãos em uma das bruacas)
Estas cargas são suas?
JOSIAS
(olha para Raimundo meio desconfiado)
Sim, quer dizer, não...
RAIMUNDO
(olha para Josias alterando a voz)
Sim ou não? São suas, ou não são suas?!
JOSIAS
Na verdade, não, nhô. Pertencia ao dono da fazenda de onde
fugi...
RAIMUNDO
(aproxima-se de Josias)
Então vossemecê é um fugitivo. A fazenda de onde
vossemecê fugiu fica longe daqui?
JOSIAS
É, nhô, é sim, fica depois do capoeirão para quem segue a
estrada ao sul...
Cargas atreladas ao burro. Raimundo volta a tocar nas cargas. Letras
inscritas em uma das bruacas "JSN". As letras "JSN", gravadas em uma
das bruacas, chama a atenção de Raimundo. Letras gravadas. Raimundo
aproxima-se da bruaca e passa os dedos entre as letras gravadas.
Raimundo fica um pouco impressionado. Raimundo passa os dedos em
cada uma das letras "J.S.M" gravadas na bruacae fala por solilóquio.
88
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
RAIMUNDO
João Souza Nascimento, português, pai de Dom Miguel,
morto numa tocaia armada para ele e todos nós, na estrada
entre Minas Gerais e São Paulo de Piratininga. Finalmente,
estamos de posse nas provas... Deus escutou as minhas
preces, agora tenho de acertar com o diabo...
RAIMUNDO
(olha para a carga, para o burro e, finalmente, para Josias.
Cospe no chão)
Se estiver procurando trabalho, isso aqui não falta. Adianto a
vossemecê, que o quê vossemecê vê aqui, não é propriamente
o que se vê...
JOSIAS
Mas o que vejo aqui é uma fazenda igual um tanto que existe
por aí, não é?
RAIMUNDO
Dom Miguel consegue enganar a todos, muito bem... Aqui
não é uma fazenda. É uma mina particular, que não pertence
ao Rei de Portugal e nem a qualquer governo desta capitania.
O dono desta mina é um moço novo e experiente, ele extrai o
ouro e manda-o para São Paulo de Piratininga e para São
Sebastião do Rio de Janeiro. De lá, embarcam-se as pepitas
para o mundo inteiro...
RAIMUNDO
(olha para os três homens brancos que vigiam a fazenda)
Vossemecês três aí larguem os seus postos, desatrelem o
burro e guardem as cargas no quarto que está desocupado, ao
lado do casarão...
RAIMUNDO
(tira uma enorme chave do bolso e entrega a um dos homens
que é o Jucá)
89
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Jucá, estou confiando em ti, esta missão. Desatrelem o burro
do moço, coloque as cargas naquele quarto.
(aponta para um quarto próximo ao casarão)
Depois, traga-me a chave. Quero proteger as cargas do
moço...
JOSIAS
(meio confuso olha para Raimundo e para os homens que
estão tirando as cargas do seu burro)
Carece não, nhô, nelas não tem nada de valor. Só tem
apetrechos de viagem de negro pobre, fugitivo...
CORTA PARA
Quarto da fazenda Paraíso. Raimundo está dentro do quarto juntamente
com Jucá observando as bruacas tiradas do burro de Josias. Raimundo
demonstra-se surpreso ao verificar tudo, com a ajuda de Jucá.
RAIMUNDO
O burro é o mesmo, as bruacas também são as mesmas, tem
até gravado em uma delas o nome do nosso finado patrão.
"J.S.N". João Souza Nascimento. Há meses estamos
procurando o responsável de toda aquela desgraceira, para
cumprir a nossa terrível vingança... Deus está a nos apontar o
rastro do tal mandante sanguinário. Quando Dom Miguel
aparecer por aqui, colocarei ele a par dessas coincidências...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 35.6 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA
SIMPLES COM VARANDA.
Tarde. Varanda da casa simples. Josias na varanda da casa simples
sentado no tamborete ao lado de Dirceu. Dirceu continua deitado na
rede.
90
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Sabe, nhô Dirceu, trabalhei por alguns dias nessa fazenda, sem
ganhar a confiança de ninguém. Eu acordava pela manhã,
capinava aqui e acolá e ficava reparando aquele bando de
homens indo pra lá e vindo prá cá. Eram todos mineradores e
extraiam ouro para vender sem o conhecimento do
governador da capitania. Aos poucos fui pescando as coisas e
descobri que o moço que havia me recebido, não passava de
um capanga do dono daquilo tudo, um tal de Dom Miguel.
Esse, fiquei sabendo depois que era filho de um homem
morto numa tocaia. Ora, sô e essa tocaia, não foi a mesma
inventada pelo comandante da minha tropa?!
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 36.6 – (CONTINUAÇÃO) - EXT./DIA. FAZENDA
DE DOM MIGUEL. PÁTIO, FRENTE AO CASARÃO DA
FAZENDA.
Cancela aberta. Cavalos. DOIS HOMENS BRANCOS, montados em
cavalos, entram pela cancela da fazenda de Dom Miguel. Atrás dos dois
homens brancos, montados em cavalos, surge uma carruagem.
Cocheiro. Janela da carruagem. Há um HOMEM JOVEM encostado na
janela da carruagem. O HOMEM JOVEM é DOM MIGUEL. Ele está
cochilando. Pátio. O cocheiro estaciona a carruagem no pátio, frente ao
casarão. Laterais do casarão da fazenda de dom Miguel. Josias capina o
mato nas laterais do casarão da fazenda. A porta do casarão se abre.
Raimundo sai do casarão e vai até o pátio em direção à carruagem.
Carruagem. O cocheiro pula-se da carruagem. A carruagem balança.
Interior da carruagem. Dom Miguel acorda assustado com o balanço da
carruagem. Cavalo. UM HOMEM dos dois homens brancos pula-se do
cavalo e corre para abrir a carruagem. Dom Miguel sai da carruagem
indo ao encontro de Raimundo. Ele e Raimundo cochicham olhando
para Josias.
91
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FADE OUT/FADE IN
Tarde. Pátio do casarão de Dom Miguel. Josias está sentado em um
tamborete de couro cercado por Dom Miguel e Raimundo. No fundo
vê se Jucá e os dois homens brancos armados com bacamartes, andando
para um lado e para o outro no pátio do casarão.
JOSIAS (VOICE OVER)
Quando o tal de dom Miguel chegou às suas terras, logo quis
saber sobre mim. Ele e o capanga, o tal do Raimundo, vieram
me perguntar sobre coisas que eu não sabia responder.
CORTA PARA
Pátio do casarão da fazenda de Dom Miguel. Josias sentado em um
tamborete. Raimundo e dom Miguel ao lado de Josias. Raimundo dá
um tapa no rosto de Josias
RAIMUNDO
(nervoso)
Conte-nos, desgraçado, quem foi o autor da tocaia...
Vossemecê também fez parte, não fez?
JOSIAS
Fiz não, nhô. Mas eu conto para vossemecês que a tocaia foi
armada pelo dono da fazenda de onde fugi. Está com ele todo
o ouro, dentro de uma caixa de couro, com santa e tudo...
DOM MIGUEL
(fica alegre, confuso e encabulado. Solta com força o seu
sotaque português)
É a imagem de Santa Ifigênia, veio de Portugal, era uma
relíquia de família. A santa pertencia à minha adorável
mãezinha... Leve-nos até essa maldita fazenda. Queremos
acabar com o dono e com toda a sua família. Quero entregar a
92
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
eles o troco, da mesma forma que eles fizeram com o meu pai,
com os meus dois irmãos e todo o nosso povo...
RAIMUNDO
Basta que vossemecê nos leve até lá, temos sede de vingança
e...
DOM MIGUEL
Se vos mercê nos levar até ao fazendeiro, prometo que após
matar a ele e toda a família, lhe darei a fazenda dele, com
documento, escravos e tudo. Além disso, o presentearei com
uma boa quantidade em ouro...
DOM MIGUEL
(abaixa a cabeça e assinala um "sim".)
Não temos tempo a perder.
DOM MIGUEL
(afasta-se um pouco de Josias e grita pelos empregados)
Homens, depressa. Ordeno a todos que preparem os cavalos
para fazermos uma longa viagem. Levaremos bacamartes,
espadas, tochas de fogo, tudo que for possível para acabar
com a raça daquela gente... Sairemos de madrugada, antes do
cantar dos galos...
Fundo do quintal. Cavalo galopando em direção ao pátio do casarão.
Jucá, galopando rápido, mal se aproxima de Dom Miguel, Raimundo,
Josias e alguns outros homens, ali, no pátio e grita.
JUCÁ
Um acidente... Aconteceu um acidente dentro da mina...
Alguns homens estão presos na mina, creio que alguns deles
morreram... Barreira, dom Miguel, queda de barreira bruta...
93
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DOM MIGUEL
Meu Deus, há anos não acontece isso! Junte todos, vamos
socorrer os nossos homens...
Cavalos. Dom Miguel corre rápido para montar em seu cavalo. Dom
Miguel monta no cavalo dele e ordena a todos ali que o sigam.
Raimundo, Jucá e todos os homens ali presentes montam rápidos em
seus cavalos e saem galopando em direção à mina. Todos desaparecem
pelo fundo da fazenda. Josias fica só no imenso pátio falando por
solilóquio.
JOSIAS
Meu Senhor Jesus Cristo, o que fiz. Entreguei gente inocente
a Dom Miguel e ao seu bando. Tenho que desfazer isso, eu
preciso agir rápido.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 35.7 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA
SIMPLES COM VARANDA.
Anoitecendo. Varanda da casa simples. Josias na varanda da casa
simples sentado no banco ao lado de Dirceu. Rede. Dirceu sentado na
rede. Josias voltando à tona, na varanda da casa simples.
JOSIAS
Temi ao pensar na mentira inventada por mim. Eu colocava
em risco a vida de nhô Arigó e da sua esposa. Eu precisava
fazer alguma coisa para salvá-los. Eu não podia e não devia
levar o dom Miguel e seus capangas até a fazenda para matar
pessoas inocentes...
VOLTA PARA
94
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 36.7 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS.
EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DOM MIGUEL.
Pátio do casarão de dom Miguel. Josias está sozinho no imenso pátio da
frente do casarão de Dom Miguel. Ele levanta-se rápido do tamborete e
vasculha com os olhos todo o ambiente. Varanda do casarão. Ele entra
na varanda. Porta aberta do casarão. Josias observa o lado de dentro da
casa e sai da varanda. Ele anda rapidamente até a lateral esquerda da
casa, indo para o fundo do quintal. Pequena cabana feita de pau-a-pique.
Josias vê a pequena cabana de pau-a-pique. Pedra. Zenilda está sozinha,
sentada na pedra. Josias vê Zenilda e se esconde por trás de uma
pequena árvore. UMA MULHER NEGRA aproxima-se de Zenilda e
entrega para ela uma gamela com feijão em palha para ser debulhado.
Zenilda olha para as unhas, sopra os dedos, recebe a gamela e coloca-a
ao seu lado, no chão. Árvore. Josias por trás da árvore mostra-se
inquieto. Ele inventa alguns sinais e gestos para chamar a atenção de
Zenilda. Chão com pequenas pedras. Josias abaixa, olha para o chão e
apanha duas pequenas pedras e atira as em direção a Zenilda. A pequena
pedra cai próxima a Zenilda. Zenilda se assusta, mas pega a gamela e se
ajeita no colo. Pedra na mão de Josias. Josias atira outra pedra em
direção a Zenilda. A pedra acerta na gamela. Zenilda atira a gamela no
chão e levanta-se de súbito assustada e com raiva.
ZENILDA
Diabo que tá acontecendo?!! Quem é o capeta que saiu do
inferno para atirar-me pedras? Virei passarinho, é? Se eu
virasse passarinho, eu estaria voando por aí e não presa aqui,
neste inferno a servir homens brancos do capeta...
Pedra. Gamela caída no chão. Zenilda dá alguns passos para frente. Ela
olha para um canto e outro. Pequena árvore. Josias sai de trás da
pequena árvore e corre ao encontro de Zenilda um pouco apreensivo.
JOSIAS
Zenilda, sou eu, Josias!!!
95
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZENILDA
(olha para Josias, admirada com os olhos arregalados)
Meu Deus, o que vossemecê tá fazendo aqui? Foi vendido
também por aquela peste de homem, foi?
JOSIAS
(senta-se na pedra e empurra Zenilda para os braços dele)
Não, não fui. Eu fugi da fazenda do "nhô" Arigó, poucos dias
depois que vossemecê foi arrancada de lá...
ZENILDA
(caindo nos braços de Josias)
Como vossemecê me encontrou cá, nesse fim de mundo,
dentro deste buraco...
JOSIAS
O mundo não tem fim não, Zenilda. Acho que nem tem
começo. Há um monte de dias tô procurando por vossemecê,
viajando dia e noite, espiando uma fazenda e outra...
ZENILDA
(sai dos braços de Josias)
Vendeu as pepitas de ouro, vendeu? Veio para comprar a
negrinha, cá, foi?
JOSIAS
A história é mais complicada do que vossemecê pensa. As
pepitas de ouro estão seguras, bem guardadas, o problema é
que o tal do Raimundo e do Dom Miguel descobriram umas
coisas e tão querendo derramar sangue de gente inocente...
ZENILDA
Como assim?
VOLTA PARA
96
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 35.8 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA
SIMPLES COM VARANDA.
Anoitecendo. Varanda da casa simples. Josias na varanda da casa
simples sentado no banco ao lado de Dirceu. Rede. Dirceu está sentado
na rede.
JOSIAS
Contei para Zenilda o que se sucedia, inclusive sobre a tocaia
causadora da morte do pai, dos dois irmãos de dom Miguel e
dos servos deles, armada pelo falecido comandante. Ao contála sobre a minha mentira, qual mal poderia resultar em morte
do nhô Arigó, da patroa dele e também de toda aquela gente
da fazenda Paraíso, ela nem se importou, ainda brigou comigo
porque eu não aceitei a oferta da proposta de Dom Miguel.
Ela disse que eu era um negro besta, mas como ela aceitou a
fugir comigo, eu nem liguei com isso. Só sei que eu peguei um
cavalo dos homens de Dom Miguel e fugi com a Zenilda pela
serra acima...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 36.8 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE JOSIAS.
INT./EXT. NOITE. MORRO. GRUTA.
Lua cheia. Alto da serra. Cavalos. Cavaleiros de dom Miguel cavalgando
pelo alto da serra. Mato coberto. Josias e Zenilda escutam o trotear dos
cavaleiros de Dom Miguel. Josias frea o cavalo. Árvores. Raios da luz da
lua entre as árvores. JOSIAS olha para um lugar e outro. Trotear de
cavalos. Zenilda pula de ímpeto da garupa do cavalo e cai de mal jeito
no chão.
ZENILDA
Os homens de Dom Miguel estão seguindo a gente, Josias.
Este cavalo parece que não anda? É melhor deixar ele por
97
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
aqui. Assim, a gente corre e esconde em algum lugar. A lua
"tá" clareando tudo e eles vão acabar vendo e pegando a
gente...
JOSIAS
Vamos descer a serra pelo outro lado e pegar a estrada...
ZENILDA
É melhor fazer o que tô falando. Vamos deixar de lado esse
cavalo manco e seguir o mato correndo a pé...
Trotear de cavalos. Josias pula da sela do cavalo, bate no animal e o faz
correr dali. O cavalo sai dando pinote e corre para a direção de uma
trilha, um pouco distante dali. O cavalo some rapidamente. O trotear de
cavalos aproxima-se. Josias agarra Zenilda. Josias e Zenilda se atiram
numa moita de capim. Trilha. Aparecem QUATRO CAVALEIROS dos
cavaleiros de dom Miguel. Os quatro cavaleiros fream os cavalos e
olham para a moita de capim.
UM DOS CAVALEIROS
Escutei um barulho por aqui...
OUTRO UM DOS CAVALEIROS
(soltando uma baforada de fumaça de um cigarro de palha)
Eu também escutei o barulho de um cavalo troteando. Deve
ser o cavalo do negro...
OUTRO UM DOS CAVALEIROS
(ajeita o cigarro de palha na boca e olha para adiante da
pequena trilha)
Vamos seguir em frente, eles devem ter seguido por esta
trilha...
Os quatro cavaleiros saem galopando pela trilha. Josias e Zenilda
levantam-se rapidamente da moita de capim. Zenilda está trêmula.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZENILDA
Ufa, por pouco eles não pegaram vossemecê e eu... Não falei,
são os homens de Dom Miguel. Eles farejam os negros, como
se fossem uns lobos famintos...
JOSIAS
São capitães-do-mato e só não trazem com eles,
cachorros.Eles seguiram para pegar a trilha adiante, por onde
o nosso cavalo seguiu. Vossemecê pensou bem, o cavalo
serviu para despistar os homens...
ZENILDA
Agora vamos procurar um esconderijo seguro, amanhã,
quando o dia clarear, descemos a serra e pegamos a estrada...
para onde vamos, não sei...
JOSIAS
Deus sabe onde, Zenilda, Deus sabe. ELE nunca desampara
ninguém...
ZENILDA
(chorando)
Desampara não, é? Tem raça mais desamparada do que a
nossa? Parece que negro também não entra no céu... É tanta
covardia. Homens e Deus, parece que todos estão contra a
gente.
JOSIAS
(abraça Zenilda)
Pensa assim, não, Zenilda. Deus, no final de tudo,
recompesará a gente...
ZENILDA
Depois da morte? Grande coisa isso.Vejo tantos negros
morrerem e serem jogados em valas, como se fossem bichos.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Zenilda limpa as lágrimas com a barra do vestido. Josias e Zenilda
brenham-se pelo mato.Andam. Correm. Param assustados. Escondemse por trás de árvores e às vezes se atiram em moitas de capins e entram
em grotas e valas. Enorme gruta. Josias avista a enorme gruta.
JOSIAS
Olha só, ali. Uma gruta. Quem sabe não serve de um bom
abrigo, por uma noite, Zenilda...
ZENILDA
Estou cansada, as minhas pernas estão todas arranhadas,
coçando de picadas de formigas e de muriçocas. Estou zonza
de sono. É bom mesmo entrar nesta gruta e descansar até o
sol nascer de novo e a gente seguir rumo sem lugar algum...
Gruta. Josias segue à frente e aproxima-se da entrada da gruta. A luz da
Lua ilumina-se o interior da gruta. Entrada da gruta. Josias observa da
entrada da gruta, todo o interior dela. Zenilda aproxima-se de Josias, dá
alguns passos à frente dele e entra na gruta.
ZENILDA
(entrando na gruta)
Parece uma gruta tranquila, nem morcego tem...
JOSIAS
(entrando na gruta)
Até parece casa de branco, toda limpinha, asseada e clarinha...
ZENILDA
(solta uma risadinha afiada e dengosa)
Vem cá, vem Josias. Vem para os braços de sua nega.
Josias aproxima-se de Zenilda. Zenilda está sentada em um canto da
gruta. Josias senta-se ao lado de Zenilda. Eles beijam-se na boca, trocam
carícias e deitam-se agarradinhos. Josias e Zenilda dormem agarrados.
100
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
UM MORCEGO SAI VOANDO PARA FORA DA GRUTA.
Madrugada. O Sol surge entre as serras. Os raios solares penetram,
debilmente, entre as frestas da gruta. Canto do interior da gruta. Josias
está deitado sozinho. Josias acorda assustado, põe-se de pé e procura
por Zenilda no interior da gruta. Ele fala por solilóquio, enquanto a
procura.
JOSIAS
Zenilda, onde está Zenilda. Ela dormiu comigo, não foi sonho
e nenhuma visagem... Meu Deus, onde está Zenilda?
Entrada da gruta. Josias sai da gruta. Um bando de pássaros foge de
uma árvore, em revoada. Ele dá uma volta rápida pelas laterais da gruta.
Pedras da gruta. Josias olha para um lugar e outro. Ele se arrisca a gritar
por Zenilda. Escuta-se o eco de sua voz. Mato. Ele sai correndo pelo
mato. Tarde. Josias correndo pelo mato. Noite. Pés de Josias. Uma
cobra Jararacuçu cruza rápido pelo mato. Pés de Josias. Josias pisa na
cobra jararacuçu. A cobra pica a perna de Josias. Chão. Touceira de
mato. Josias cai gemendo de dor de dor numa touceira de capim.
JOSIAS
Meu Deus, meu Deus... Até parece que a Zenilda tem razão,
será se o Senhor não importa mesmo com os negros?
COBRA JARARACUÇU ANDANDO ENTRE AS FOLHAGENS
DO MATO.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 35.9 – CONTINUAÇÃO - EXT./ NOITE. CASA
SIMPLES COM VARANDA.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Noite. Clarão da lua. Varanda da casa simples. Candeia acessa em um
dos cantos da varanda da casa simples. Dirceu deitado na rede e Josias
sentado no tamborete, voltando à tona.
JOSIAS
Taí, nhô Dirceu, a minha história. Eu dormi com a mulher e
acordei só. Não sei se os homens pegaram a danada ou se ela,
naquela madrugada, resolveu fugir sozinha, para outras
bandas. Eu pensei em procurar Zenilda por mais algum
tempo, rodar por aquela serra, mas como a coisa estava feia
pro meu lado eu tive de fugir, feito um ladrão, para bem longe
dos olhos daqueles homens. Foi daí que eu enfrentei a fome,
o cansaço e a mordedura de cobra. Jararacuçu é cobra
perigosa e, acho que por pensar que Deus havia me
desamparado, não é que eu ainda tô vivo, merecendo os
cuidados de nhozinho? Eu saberei como recompensar
vossemecê, nhô, saberei sim...
DIRCEU
A sua história é muito bonita, Josias e acho que ainda não
terminou aí. O mundo é cheio de mistérios e, creio eu, que
com o tempo, cada um vai desvendando o seu mistério. Creio
que vós mercê ainda há de ver e ter a sua Zenilda.
JOSIAS FECHA OS OLHOS E DÁ RISADAS. MUGIDOS DE
BOIS. CÉU ESTRELADO. DIRCEU PULA PARA FORA DA
REDE.
CAPÍTULO 3
SEQUÊNCIAS 37-56
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Josias
Velho Pedro
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Brancos e negros
Feirantes: compradores e vendedores
Zé Tomázio
Marília
Rosa
Homens negros e brancos (empório de Zé Tomázio)
Farias
Homens negros
Hipólito
Miliquito
Sebastiana
Conceição
Ernestino
Rapazes negros (engenho)
Homens negros (africanos)
Homens negros e brancos (Porto de Galinhas)
Homens, crianças e mulheres negros
Negros das lavouras
Esposa de Zé Antônio
Zé Antônio (jovem)
Dirceu (bebê de colo)
Dois rapazes negros
Duas mulheres negras
Taipeiros, pedreiros e Homens negros e brancos cortadores de pedras
Fiéis (pessoas brancas)
Padres
Homens negros
Índios botocudos
Índios Goitacazes
Escrivão
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 40.
103
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 37 – INT./EXT./DIA. CASA SIMPLES COM
VARANDA.
Manhã. Fundo do quintal da casa Galinhas cocoricando, cabras e bois
berrando. Mato. Josias capinando o mato. Pequeno curral. Balde com
leite. Dirceu termina de ordenhar uma vaca. Dirceu pega o balde e segue
até a porta da cozinha. Porta da cozinha. Dirceu entra na cozinha da
casa. Leiteira perto de uma prateleira da cozinha. Ele despeja o leite na
leiteira e o prepara com o coalho. Fundo do quintal da casa. Josias está
catando ovos no poleiro. Tarde. Gamela com queijos frescos. Dirceu e
Josias fabricam queijos. Punhal afiado em cima de uma pedra. Josias
amarrando uma ovelha de cabeça para baixo, no pé de uma árvore.
Varanda da casa. Arreios de couro pendurados na varanda. Josias e
Dirceu sentados em tamboretes, cortando couro e fazendo arreios.
Cozinha. Mesa da cozinha. Josias está em pé, na mesa da cozinha,
cortando uma enorme manta de toucinho. Dirceu pendura as tiras de
toucinho em um estendal de vara, acima do fogão de lenha. Tarde.
Fundo do quintal da casa simples com varanda. Bananal. Dirceu e Josias
cortam cachos de bananas. Despensa da casa. Dirceu embalando pencas
de bananas em um enorme balaio de bambu. Noite. Josias dormindo no
quarto dele. Dirceu olhando as estrelas na varanda. Madrugada. Quintal,
frente à casa. Jumento. Josias apertando uma cinta de couro entre as
duas bruacas cheias de mantimentos no lombo do jumento com
bruacas. Cavalo de Dirceu. Dirceu monta no cavalo, tira o chapéu e
acena para Josias. Josias empurra o jumento e entrega-o para Dirceu.
Dirceu sai galopando, empurrando o jumento pela rédea. Josias corre
para abrir o colchete que serve de entrada e saída das terras de Dirceu.
Dirceu montado no cavalo, puxando o jumento, passa pelo colchete e
galopa lentamente por uma pequena estrada. Ele desaparece em uma
curva da estrada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Josias e eu estávamos a trabalhar a semana inteira, portanto,
queríamos ver o resultado do nosso trabalho transformado
em patacões. Eu, embora inexperiente, teria de ir até Vila Rica
vender ou trocar as nossas mercadorias por mantimentos
104
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
necessários à nossa sobrevivência. Contávamos com queijos,
quartos de carne de porco e de carneiro, toucinho defumado,
cachos de bananas e arreios de couro para serem
comercializados. Certo dia, acordamos cedo, arrumamos as
cargas no lombo de um jumento e, antes que o sol começasse
a iluminar por inteiro, peguei o meu chapéu de vaqueiro,
montei no meu cavalo, empurrei o jumento e desci a serra em
busca da estrada, qual rumava até Vila Rica.
SEQUÊNCIA 38 – EXT./DIA. ESTRADA DA SERRA. VILA
RICA.
Serra. Estrada estreita e íngreme. Jumento. Bruacas balançando no
lombo do jumento. Dirceu cavalgando, descendo a serra. Cavalos.
GRUPO DE HOMENS MORENOS, BRANCOS E NEGROS
galopando a trotes lentos,uns puxam um; outros, dois jumentos.
Bruacas fechadas, outras abertas, cheias de mantimentos, sobre os
lombos dos jumentos.Entre o grupo de homens morenos, brancos e
negros, está um velho senhor galelo, olhos azuis, baixo e gordo, de
sessenta anos de idade, conhecido como VELHO PEDRO. O velho
Pedro conduz dois jumentos com bruacas abertas carregadas de
rapaduras, bananas,laranjas e pequenos potes de barro. Ele vê Dirceu.
Cavalo de Dirceu. Cavalo do velho Pedro aparelha-se com o cavalo de
Dirceu. O velho Pedro tira o chapéu da cabeça e acena-o para Dirceu.
Ele coloca novamente o chapéu na cabeça e frea a rédea do cavalo.
VELHO PEDRO
Mas olha quem eu vejo nesta estrada, o filho do meu bondoso
amigo, Zé Antônio...
DIRCEU
Bom dia, senhor Pedro. Já tão cedo e descendo a serra?
105
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VELHO PEDRO
Deus ajuda a quem cedo madruga, Dirceu. Assim, como
todos, vou negociar em Vila Rica rapaduras e uma pacatas
frutas do meu pomar. E o vosso pai? Quais são as notícias de
Zé Antônio?
DIRCEU
O senhor meu pai? ora, senhor Pedro, imagina vós mercê, que
ele resolveu fugir de casa com a Maria Antônia...
O velho Pedro se assusta e dá uma risada. Dirceu prossegue, sem tirar
os olhos da pequena estrada.
DIRCEU
Foi numa madrugada dessas. Eu acordei pela manhã e cadê
ele e a Maria Antônia? Evaporaram-se na serra... Ele deve terse acometido de alguma loucura para fazer isso...
VELHO PEDRO
A vida é assim mesmo, cada cabeça uma sentença. Não creio
que ele tenha se abatido de nenhuma loucura. Isso é vontade
de viver e provar as suas capacidades de ir longe. O pai de
vossemecê sempre foi um homem aventureiro...
DIRCEU
(balança um “sim” de cabeça)
Desde menino eu tenho percebido isso...
VELHO PEDRO
Então ele deixou vossemecê sozinho, naquele topo de serra?
DIRCEU
(mede o percurso da estradinha íngreme com os olhos)
Sozinho e Deus, até que apareceu um bom cristão por lá e
está a me ajudar em algumas tarefas do roçado e da casa...
106
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VELHO PEDRO
Deus não desampara ninguém. Ainda bem que vossemecê já
se fez homem feito, capaz de tocar a vida sozinho... Isso é
bom, fui criado dentro dessas condições também. Creio que o
pai de "nhozinho" deve ter achado ouro por essas bandas. Ele
estava sempre garimpando num lugar e outro. Ele parecia um
tatu, vivia atolado na lama em busca de riqueza.
DIRCEU
O senhor crer nisso?
VELHO PEDRO
Não só creio, como tenho certeza, o pai de vossemecê é
homem rico, possuidor de ouro e diamantes. Não foi à-toa
que ele morou no Arraial de Tijuco e depois de ter voltado
para cá, ter se embrenhado no alto deste morro. Ele gostava
de ouvir as histórias dos índios, principalmente dos
botocudos, vindos de outras regiões. Esses índios contavam
muitas histórias sobre onde havia ou não ouro e pedras
preciosas. Enquanto todos mangavam das histórias dos
índios, o vosso pai não perdia tempo, tomava nota de tudo e
rastreava os locais.
DIRCEU
Vós mercê também mangava das histórias dos tais índios
botucudos, senhor Pedro?
VELHO PEDRO
O pior que sim. Eu ouvia as histórias deles contadas pelo
povo da região. Lembro-me que também contavam haver
alguns padres metidos a serem donos dos índios. As histórias
eram engraçadas, pois diziam que padres desarmavam e
vestiam os índios com roupas de gente branca. Dizem que os
índios ficavam engraçados. Onde se viu índios sem flechas,
sem tacapes ou sem roupas feitas com coisas do mato?
107
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu e o grupo de homens morenos, brancos e negros dão risadas.
Cavalos troteando. Alguns o grupo de homens morenos, brancos e
negros apressam o galope de seus cavalos e atrelam-se ao lado do velho
Pedro. Silêncio. Dirceu troteia o cavalo, ficando um pouco para trás. O
velho Pedro segue-se à frente aparelhando o cavalo dele aos outros
homens do grupo de homens morenos, brancos e negros. Cavalos,
grupo de homens morenos, brancos e negros puxando jumentos
desaparecem numa pequena curva.
SEQUÊNCIA 39 – EXT. /DIA. VILA RICA. PRAÇA AMARRACAVALOS. FEIRA NUMA GRANDE PRAÇA.
Praça amarra-cavalos. Cavalos amarrados em postes. Lonas estendidas
pelos chãos com verduras e frutas, dentro de gamelas e enormes
masseiras. Galinhas presas com peias em jirais feitos de forquilhas.
Leitões peados ao lado dos donos. Pedaços de carnes expostos em
pequenos jirais de bambus. Produtos extraídos por todos os sitiantes da
região (laranja, ovos, doces, biscoitos, bolos, pequi,umbú,marolo,etc.).
HOMENS, MULHERES e CRIANÇAS andando para lá e para cá, na
grande feira livre. Dirceu vende suas mercadorias na feira livre (dentro
de todo o movimento da feira, ele receberá closes, negociando suas
mercadorias). O burburinho da feira livre é geral. COMPRADORES
BRANCOS escolhem as mercadorias, compram e as colocam nas cestas
carregadas por ESCRAVOS e/ou ESCRAVAS. Há em um dos cantos
um MERCADOR DE ESCRAVOS. HOMENS BRANCOS
escolhendo escravos e/ou escravas, como se comprassem animais,
consultando-lhes os dentes, corpos e pernas. Lona estendida com
poucas mercadorias e Dirceu vendendo as suas mercadorias estendidas
na lona. Fade out/fade in. Dirceu cansado, sentado em um tronco de
madeira, confere alguns patacões e coloca-os em um alforje.
DIRCEU (VOICE OVER)
Em Vila Rica a aventura foi proveitosa. Na praça principal do
comércio, conhecida pelo povo da roça de amarra-cavalos, fiz
bons negócios.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 40 – EXT/INT. DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA
RICA. PORTA DA VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. VENDA DE ZÉ
TOMÁZIO.
Ruas de Vila Rica. Dirceu anda a cavalo pelas ruas de Vila Rica. Dirceu
frea o cavalo e observa alguns pequenos comércios. Um grande
empório. Parede frontal do empório. Entre uma porta e outra da venda
há uma placa de madeira com as seguintes inscrições: “EMPÓRIO DO
TOMÁZIO”. A placa chama a atenção de Dirceu. Dirceu afrouxa a
rédea do cavalo e segue para o “EMPÓRIO DO TOMÁZIO”. Postes
de madeiras em frente ao empório. Há alguns cavalos amarrados nos
postes. Dirceu apea do cavalo e amarra-o no poste. Calçada do empório.
Dirceu dirige-se para a calçada. Portas do empório abertas. Dia. Vila
Rica. Empório de Zé Tomázio. Ao entrar na porta do empório de Zé
Tomázio, Dirceu para e observa rapidamente uma moça alta, esbelta, de
cabelos cacheados, louros e finos, olhos azuis, de 17 anos. A jovem é
MARÍLIA (a mesma que aparecera a ele no sonho). Marília sai da venda
aos passos delicados. Ela está acompanhada por uma jovem negra, cujo
nome é ROSA, também esbelta, alta, de aproximadamente 18 anos.
Rosa ao ver Marília colocar os pés na rua, logo abre um guarda-chuva
delicado, de cor rosa e bordado de rendinhas. Rosa protege a sua jovem
patroa contra o sol da tarde. Porta do empório de Zé Tomázio. Dirceu
parado próximo a porta do empório fica a observar Marília. Ele, com
um sorriso nos lábios, contempla Marília. Marília e Rosa na calçada do
empório. Marília olha para Dirceu e, delicadamente, sorri. Ela disfarça o
sorriso, levando as mãos aos lábios. Dirceu, estagnado, olha para
Marília. Rosa puxa Marília pelas mãos e protege-a com o guarda-chuva
cor de rosa.
ROSA
Vamos sinhá Marília, vamos! Não é bom dar confiança para
esses moços que nem a gente sabe de onde vem...
Rosa e Marília apressam-se os passos e dobram a esquina de uma
pequena rua. Dirceu entra no empório. Balcão largo. ZÉ TOMÁZIO, o
dono do empório é um português gordo,baixo, olhos claros, cabelos
109
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ruívos, de 47 anos. Ele está por trás do balcão atendendo alguns
fregueses. Sacos de feijão amotoados a um canto da parede. Dirceu se
atrapalha e esbarra nos sacos de feijão. Zé Tomázio, num carregado
sotaque português, dá risadas, cumprimentando Dirceu.
ZÉ TOMÁZIO
Boa tarde, meu prezadíssimo jovem. Ficaste impressionado
com a rapariga, não ficaste? Bonita a cachopa, não é? O nome
dela é Marília. O pai é um ex-minerador afortunado e cansado
de aventuras...
Dirceu olha para Zé Tomázio um pouco corado e sem graça. Dirceu
encosta-se a sacaria e fica calado, tentado ver Marília lá fora.
DIRCEU (VOICE OVER)
Marília. Esse nome bateu-me na mente como se fosse um sino
a repicar docemente. Marília, nome oriundo da palavra mar.
Pensei. Será se eu estaria a encontrar naquele momento a
minha Estrela, cá na terra?
Porta do empório. ALGUNS HOMENS BRANCOS e HOMENS
NEGROS entram no empório, dirigindo-se ao balcão. Balcão. Zé
Tomázio abre garrafas de vinho e despeja em canecas, servindo aos
homens. Prateleiras. Sacos abertos com mantimentos. Zé Tomázio
mede feijão em uma medida de madeira e despeja-o em um alforje. Ele
entrega o alforje cheio de feijão a um dos homens negros. Balcão.
Moedas (ou patacas) em cima do balcão. O empório esvazia-se de
repente. Dirceu aproxima-se do balcão olhando para as prateleiras. Zé
Tomázio toca o dedo indicador da mão direita na testa de Dirceu dando
risadas.
ZÉ TOMÁZIO
Creio que o rapaz se impressionou mesmo com a beleza da
rapariga... Se quiseres conhecer a rapariga, sei como fazer...
110
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Zé Tomázio sorri. Gaveta do balcão vista do lado de dentro. Zé
Tomázio abre a gaveta do balcão e tira de lá um leque antigo. Leque na
mão. Ele abre o leque e mostra-o para Dirceu.
ZÉ TOMÁZIO
Este leque pertence dona Marília. Há tempo ela esqueceu-o
cá, no balcão. Todas as vezes que ela vem cá, com a Rosa, a
criada dela, eu me esqueço de entregá-lo... Ficarei calado e
deixarei que vós mercê o entregue a ela. Invente qualquer
coisa, diga a ela que vós mercê achou em outro lugar. Foi
dessa maneira que eu conquistei a minha esposa, lá em
Mariana...
Leque na mão de Zé Tomázio. Zé Tomázio entrega o leque para
Dirceu. Dirceu pega o leque e sorri. Alforje pendurado nas costas.
Dirceu abre o alforje e coloca o leque dentro dele.
SEQUÊNCIA 41 – EXT. DIA. ESTRADA ÍNGREME DA SERRA.
Estrada da Serra. Dirceu, silenciosamente, trotea em seu cavalo,
puxando o jumento. Bruacas balançando no lombo do jumento.
Cavalos. Grupo de homens morenos, brancos e negros montados em
seus respectivos cavalos, puxando jumentos com bruacas. Nas bruacas
há mercadorias compradas em armazéns de Vila Rica. Alguns cavaleiros
estão aparelhados aos outros, proseando alegremente.
DIRCEU (VOICE OVER)
Não demorei a sair de Vila Rica. Durante a viagem eu pensava
na doce e jovem Marília, convencendo-me de que ela seria a
estrela do céu despencada no mar e acolhida pela terra para
que eu a contemplasse.
VOLTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
111
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Flash back sobreposto em voice-over
SEQUÊNCIA 40 – EXT/INT. DIA. VILA RICA. RUAS DE
VILA RICA. PORTA DA VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. VENDA
DE ZÉ TOMÁZIO.
Dirceu parado próximo à porta do empório fica a observar
Marília. Ele, com um sorriso nos lábios, contempla Marília.
Marília e Rosa na calçada do empório. Marília olha para Dirceu e,
delicadamente, sorri. Ela disfarça o sorriso, levando as mãos aos
lábios. Dirceu, estagnado, olha para Marília. Rosa puxa Marília
pelas mãos e protege-a com o guarda-chuva cor de rosa.
DIRCEU (VOICE OVER)
Eu havia encontrado a minha Estrela incorporada na alma de
uma jovem de cabelos compridos, louros e ondulados, testa
lisa e sobrancelhas arqueadas, olhos negros, da cor da noite
enluarada, de faces rosadas, beiços e dentes delicados...
CORTA PARA
Dirceu cavalga escutando apenas a voz dele sussurrada pelo vento.
DIRCEU
É ela, é ela, é ela!
Dirceu assustacom a própria vozdele, sussurada pelo vento. Ele frea o
cavalo. A voz dele volta a sussurrar como se tocada pelo vento.
DIRCEU
É ela, é ela, ela, a estrela que caiu do céu e fugiu do mar para
ficar contigo...
Dirceu afrouxa a rédea do cavalo. O cavalo dá um salto, relichando e
troteia ligeiramente. Ele sorri.
112
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Ora, parece que até o meu coração está a me dizer coisas,
através do vento?
VELHO PEDRO
(aparelha o cavalo, ao cavalo de Dirceu)
Então, prezado Jovem, fizeste bons negócios, na feira?
DIRCEU
(assusta-se com a voz do velho Pedro)
Sim, senhor Pedro, a vida está a iniciar para mim bons
negócios...
CLOSE NO ROSTO DE DIRCEU COM UM SORRISO FROUXO
NOS LÁBIOS
SEQUÊNCIA 42 – EXT./DIA. CASA SIMPLES COM VARANDA.
Tarde. Quintal da frente da casa. Josias está na frente do quintal
acompanhado por FARIAS, um senhor ruivo, cabelo grisalho, olhos
claros, baixo, magro, de 60 anos, qual tem uma aparência de um cigano.
Farias está na varanda sentado em um tamborete pitando um cachimbo.
Dirceu aparece cavalgando ainda longe, na estrada da colina. Josias,
estando de pé, sai da varanda e, do quintal de frente, avista Dirceu vindo
a galope em direção à casa. Dirceu apressa o galope até chegar à entrada
de suas terras. Josias corre para abrir a pequena cancela. Farias encostase na parede da varanda. Dirceu entra no quintal de frente da casa.
Farias olha atentamente para Dirceu. Cavalo. Dirceu apea-se do cavalo.
Josias pega o cavalo e o jumento com as bruacas e leva-os para o fundo
do quintal da casa. Dirceu observa Farias um pouco surpreso.
Cachimbo na boca de Farias. Baforada de fumaça pelo ar. Farias ajeita o
cachimbo na boca, sai da varanda e vai ao encontro de Dirceu no
quintal de frente da casa. Farias aproxima-se de Dirceu.
113
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FARIAS
Sinhozinho é o filho do Zé Antônio, não é?
(tira o chapéu e cumprimenta Dirceu respeitosamente)
Meu nome é Farias, estou aqui a mando do pai de
sinhozinho...
DIRCEU
Sim, sou o filho dele.
(respira apreensivo)
Traz a mim notícias a respeito do senhor meu pai? Aconteceu
alguma coisa com o senhor meu pai?
Pequeno alforje entre os peitos de Farias. Farias abre o pequeno alforje,
enfia a mão dentro e retira de dentro um pequeno pedaço de
pergaminho. Dirceu olha para o pergaminho. Farias estende a mão e
entrega o pergaminho para Dirceu.
FARIAS
Nada de mal aconteceu ao senhor seu pai. Estou cá, a mando
do pai de sinhozinho. Ele está bem, pediu para entregar a
vossemecê esta encomenda...
Pergaminho nas mãos de Dirceu. Dirceu afasta-se um pouco de Farias e
abre o pergaminho apressadamente. Olhos de Dirceu correndo sobre as
linhas escritas do pergaminho.
ZÉ ANTÔNIO
Meu filho, eu espero que esteja bem ao receber esse
comunicado. A vida inteira desejei fazer a vós mercê essa
surpresa. Espero que goste. Comprei uma fazenda para vós
mercê tocá-la sozinho. A fazenda fica abaixo do ribeirão,
conhecido como Rio dos Cascalhos. É a fazenda Ribeirão do
Meio, não sei se você ainda se lembra dela. Creio que nela
ainda há marcas dos seus primeiros passos, quando criança.
Estou morando com a Maria Antonia num rancho, acima
114
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
deste rio e, quem sabe, podemos ainda nos encontrar por
essas bandas. Um abraço do seu estimado pai, Zé Antônio.
Pergaminho nas mãos de Dirceu. Dirceu fecha os olhos e sorri. Depois
ele abre os olhos olha para o pergaminho e em seguida para Farias.
DIRCEU
Juro pela vida do meu pai, pela bela estrela do céu e pela
maravilhosa mulher que vi hoje em Vila Rica, que eu tornarei
na fazenda, Ribeirão do Meio, um grande vaqueiro...
Dirceu enche o peito de ar e solta um grito de alegria. O eco da serra
devolve-lhe o grito. Porta da casa simples com varanda. Josias corre do
terreiro do fundo da casa simples com varanda para ver o que estava
acontecendo com Dirceu. Farias solta uma gargalhada juntamente com
uma baforada de fumaça do cachimbo.
FARIAS
Sou o servo de sinhozinho e posso dizer que a fazenda lá é
bem aprumada.
DIRCEU
Fui criado lá. A fazenda já foi do meu pai. Ele vendeu-a
apostando em minérios. Uma vez ele largou tudo e mudou
para o Arraial do Tijuco em busca de diamantes. Moramos
por lá uns cinco anos, quando ele, desiludido em ficar rico,
retornou para esta região e construiu esta casa. Como
ninguém reclamou as terras, ele apossou-se delas e construiu
esta pequena propriedade. Desde quando ele vendeu a
fazenda Riacho do Meio, ele jurava que um dia compraria ela
novamente.
FARIAS
O pai de sinhozinho é homem de posse, tem ouro e diamante
pra negociar... A dona dele é beiçuda, mas bonita, bem
115
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
vestida, feito mulher branca. Ela apareceu lá na fazenda com
ele...
DIRCEU
O senhor mora lá na fazenda? Conte-me, como está a
fazenda, quem foi o último proprietário dela?
FARIAS
Carece falar sobre ela não, sinhozinho. Sinhozinho mesmo vai
ver ela de perto e avaliar por quantos danos ela passou. Os
outros donos não foram muito cuidadosos como o senhor seu
pai... Mas lá ainda está aquelas velhas negras, a Sebastiana e a
Conceição...
DIRCEU
Elas estão vivas? Moram na fazenda? Foram elas que
cuidaram de mim, quando criança... E o Ernestino? Ele
também mora por lá?
FARIAS
Conheci esse não. Sei que na fazenda comprada pelo senhor
seu pai tem quatro rapazes negros e muito bons, o nome deles
é Miliquito, Cirilo, Hipólito e Ambrósio. Eles foram deixados
na fazenda pelo último dono. O último dono da fazenda era
doutor letrado, mas se envolveu em problemas da colônia e
acabou sendo castigado. Dizem que ele foi mandado para
outro país, sozinho, sem família e sem nada. O senhor seu pai
comprou a fazenda Ribeirão do Meio, num leilão, seguindo
ordem do rei.
DIRCEU
Quero que o senhor fique cá, conosco, até a semana que vem,
para que possa nos ajudar na mudança. Atrelaremos as
bruacas nos jumentos, recolheremos os animais e fecharemos
a casa para tocarmos estrada, rumo à fazenda Ribeirão do
116
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Meio, qual pertenceu um dia ao senhor meu pai e agora a
mim...
SEQUÊNCIA 43 VARANDA.
INT. /NOITE. CASA SIMPLES DE
Casa simples de varanda. Varanda da casa simples. Josias dorme na rede
da varanda da casa simples. Farias dorme no quarto na cama de Josias.
DIRCEU (VOICE OVER)
Hospedei o velho Farias em minha casa, durante uma semana,
até que preparássemos a mudança para a fazenda Ribeirão do
Meio.
SEQUÊNCIA 44 - EXT./ DIA. QUINTAL DE FRENTE E DO
FUNDO DA CASA SIMPLES COM VARANDA. ESTRADA
ÍNGREME DA SERRA.
Madrugada. Cantar do galo. Frente do quintal da casa simples com
varanda. Três jumentos com bruacas atreladas. Josias e Farias acabam de
atrelar duas bruacas no quarto jumento. Gaiola de madeira perto de um
dos jumentos. Algumas galinhas e um galo, peados, dentro da gaiola de
madeira. Três leitões peados, sobre o relvado. Josias pega a gaiola de
madeira e coloca-a dentro de uma das bruacas. Farias pega os leitões
peados e coloca-os em outra bruaca. Dirceu sai de dentro da casa com
alguns utensílios domésticos, dirige-se a um dos jumentos, coloca os
utensílios no chão e arruma um a um, nas bruacas do jumento. Ovelhas
amotoadas a um canto, próximo da varanda da casa simples. Dois bois e
quatro vacas pastam no canto da cerca, próxima á pequena cancela.
Porta de frente da casa simples com varanda. Dirceu fecha a porta de
frente da casa simples com varanda. Quintal de frente da casa simples
com varanda. Cavalos de Dirceu, Farias e Josias. Dirceu, Josias e Farias
montam em seus respectivos cavalos. Josias sopra um berrante de chifre
de boi. Bois, vacas e ovelhas atravessam a pequena cancela.
117
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Outra semana depois, preparamos a mudança, atrelamos as
bruacas nos jumentos, recolhemos os animais, fechamos a
casa e tocamos pela estrada, rumo à fazenda Ribeirão do
Meio.
Estrada íngreme. Josias segue à frente, montado em um cavalo,tocando
bois e ovelhas. Berrante. Josias sopra o berrante. Cavalos. Jumentos
com bruacas. Dirceu e Farias, montados em seus cavalos, seguem atrás
de Josias, cada um puxando dois jumentos com bruacas carregadas.
DIRCEU (VOICE OVER)
A viagem foi divertida. Enquanto enfrentávamos os íngremes
caminhos e grotas, tocando gados e ovelhas, Josias ia à frente
soprando um berrante inventado por ele, na véspera da
partida. A viagem, ao contrário das outras, iniciou-se numa
tarde, ao baixar o sol. Como levávamos alguns apetrechos
atrelados aos jumentos, a viagem curta tornou-se longa.
SEQUÊNCIA 45 - INT./EXT. NOITE. RELVADO. CABANA (OU
TAPERA VELHA).
Noite clara de Lua cheia. Ovelhas, cavalos e bois pastando. Frondosa
árvore. Gaiolas de madeira com galinhas debaixo da frondosa árvore.
Porcos peados, fuçando o chão. Relvado. Dirceu está deitado no
relvado, com o olhar fixo para o céu. Velha cabana de pau-a-pique.
Fumaça saindo de dentro da velha cabana de pau-a-pique. Interior da
cabana. Paredes furadas. Fogo. Fogão feito de pedras. Farias, dentro da
cabana. Colher de pau na mão de Farias. Ele mete a colher de pau
dentro de uma panela fervente. Árvores. Troncos de árvores. Josias
amarra redes nos troncos das árvores. Relvado. Dirceu deitado sobre o
relvado.
118
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Na primeira noite paramos próximo a uma cabana
abandonada, para descansarmos. Dentro da velha cabana, o
velho Farias improvisava uma ceia para enganarmos o
estômago. Eu, ao descobrir no céu a Lua cheia, deitei-me no
relvado e fiquei a observá-la, juntamente com as estrelas. Eu
procurava a minha estrela, de brilho reluzente, porém, não a
encontrava. Ela parecia avisar-me que abandonara o céu para
ficar na terra, pertinho de mim. Se assim fosse, Marília estaria
em Vila Rica, a rir e a fugir de mim assustada e confusa por
não saber qual seria o seu destino. Seria a jovem Marília, a
minha pastora, a gentil e doce senhora da fazenda
reconquistada a mim, pelo senhor meu pai?
SEQUÊNCIA 46 - INT./EXT./ NOITE. INTERIOR DA
CABANA. RELVADO. RIACHO.
Interior da cabana abandonada. Pequenas gamelas nas mãos de Farias e
de Josias. Farias e Josias servem-se da comida dentro da cabana
abandonada. Luz da lua. Mato. Dirceu anda pelo mato. Riacho. Dirceu
encontra-se um riacho próximo dali. Riacho. Água caindo de um
penhasco. Lago com água cristalina, feito a um espelho. A Lua cheia e
as estrelas refletem-se na água. Margem do lago. Dirceu observa a Lua e
as estrelas refletidas na água. Dirceu põe-se de cócoras às margens do
riacho.
DIRCEU
Olha só quem está na água, a minha estrela, brincando com a
Lua...
Margem do lago. Dirceu abaixa, estende as mãos ao lago, toca-se na
água e lava o rosto
DIRCEU
Quero também brincar com a minha estrela...
119
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
EFEITOS: Margem do lago. Dirceu põe-se de pé e tira a roupa do
corpo. Relvado. Roupa de Dirceu no relvado. Nu Dirceu pula para
dentro do lago. Dirceu mergulha sob a água, tenta pegar a Lua e as
estrelas refletidas no lago. Dirceu joga beijos para as estrelas do céu e
tenta abraçar o reflexo delas, no lago. Céu. Lua e estrelas no céu. Lago.
Lua e estrelas refletindo-se no lago. Uma estrela do céu cai no lago e
transforma-se em Marília. Marília, nua, nada no lago. Dirceu vê Marília,
nua, nadando no lago. Ele, de ímpeto, sai nadando apressadamente ao
encontro de Marília. Ele alcança Marília. Marília se transforma em uma
estrela e foge rapidamente para o céu. Lago. Água parada. As imagens
da Lua e das estrelas refletem-se no lago. Margem do lago. Dirceu, nu,
sentado à margem do lago. Dirceu observa o reflexo da Lua e das
estrelas no lago.
DIRCEU (VOICE OVER)
A Lua e as estrela refletiam-se naquele enorme espelho
aquático, convidando-me, com ímpeto, a brincar com elas.
Sorri feito homem tolo a perder a razão por causa de uma
estrela... Sorri ao lembrar que aquela estrela, além de estar na
terra, estaria também no céu. Fiquei observando o reflexo dela
na fonte e constatei o quanto radiava alegria. A estrela do meu
sonho, a menina de Vila Rica, estava ali, na fonte, iluminando
o meu corpo e aliviando-me do cansaço.
Dirceu pula novamente no lago. Aparece, no centro do lago, apenas o
reflexo de uma estrela luzente. Ele mergulha e vai ao encontro dela. A
estrela luzente transforma-se em Europa. Dirceu mergulha na água e
transforma-se em Touro. Europa e Touro, ambos da mitologia grega,
mergulham no lago. Touro consegue pegar Europa. Europa, ao ser
tocada por Touro, transforma-se em Marília. Touro, porém, transformase em Dirceu. Marília e Dirceu, os dois nus, se abraçam. Dirceu tenta
beijar Marília, mas surge as ondas do mar e carrega Marília para longe.
Dirceu nada contra as ondas, mas as ondas transportam Marília para o
céu, transformando-a na estrela luzente. Água. Dirceu surge de um
megulho e olha para o céu. Céu. A estrela luzente brilha lá do céu.
Dirceu nada, alcança a margem do lago e sai. Relvado. Ele, nu, deita-se
120
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
no relvado e fica a observar a estrela luzente. Roupas de Dirceu. Mãos
de Dirceu pegando as roupas.
DIRCEU (VOICE OVER)
Mergulhei na água como se eu fosse o Jove disfarçado em
touro, pronto para roubar Europa e levá-la para o longínquo
oceano, fazendo-a minha esposa. Europa, não era Europa,
mas minha Marília de Vila Rica, que a partir de então não mais
sairia facilmente da minha mente.
SEQUÊNCIA 47 - EXT. /NOITE. FRENTE À TAPERA.
Árvores. Redes amarradas nas árvores. Josias e Farias dormem em suas
respectivas redes amarradas nas árvores. Labaredas de fogo. Pequena
fogueira, próxima às redes amarradas nas árvores. Dirceu sentado à
beira da fogueira. Mãos de Dirceu com gravetos. Dirceu alimenta a
pequena fogueira com gravetos. O fogo crepita-se, aumentando e
abaixando as suas labaredas. Brilho do fogo no rosto de Dirceu.
Labaredas de Fogo da fogueira.
SEQUÊNCIA 48 - EXT./INT. /DIA. ESTRADA. MATOS E
RIACHOS. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CANCELA.
CASARÃO DA FAZENDA E VARANDA.
Madrugada. O sol desponta no horizonte. Jumentos. Bruacas. Gaiola na
bruaca, porcos pendurados nas cangaias de um burro. Ovelhas, bois e
vacas berrando. Dirceu, Josias e Farias troteam em seus cavalos. Grotas.
Estrada fechada. Desvios entre o mato.Riacho.Animais bebendo água
no riacho. Árvore. Dirceu, Josias e Farias comendo queijo com rapadura
debaixo de uma frondosa árvore. Alto da serra. Visão panorâmica da
serra. Cavalos de Dirceu, Josias e Farias troteando rápido numa pequena
trilha. Tarde. Alto da serra. Dirceu frea o cavalo e avista a Fazenda
Ribeirão do Meio.
121
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(sorri e grita entusiasmado)
Ribeirão do Meio. Estou enxergando a minha fazenda,
estamos chegando...
Descida da serra. Caminho estreito da descida da serra. Fila indiana.
Jumentos atrelados. Cavalos. Dirceu, Josias e Farias apressam-se os
galopes. Pequena grota. Uma ovelha cai dentro da pequena grota. Josias
pula do cavalo e corre para tirar a ovelha de dentro da grota. Josias tira
a ovelha da grota e toca-a para junto do rebanho. Cavalo de Josias. Ele
Corre e monta em seu cavalo. Fim do caminho estreito. Pôr do sol.
Estrada de areia. Cavalo de Josias. Berrante. Josias sopra o berrante.
Josias, Dirceu e Farias se emparelham os cavalos. Fazenda Riacho do
Meio. Cancela da Fazenda Ribeirão do Meio. Josias sopra o berrante.
CIRILO, HIPÓLITO E MILIQUITO, homens negros, magros e altos,
entre 30 e 32 anos, correm para abrir a cancela da Fazenda Ribeirão do
Meio. Cirilo chega á frente e abre a cancela. Hipólito, parado, coloca as
mãos na cabeça, segurando o chapéu. Miliquito aproxima-se de
Hipólito. Miliquito e Hipólito reparam, admirados, a chegada de Dirceu,
Josias e Farias. Cirilo sai do lado de fora da cancela e espera pela
chegada dos viajantes. Dirceu se encontra no meio de Josias e Farias.
HIPÓLITO
O tal do nhozinho, filho do nhô Zé Antônio tá chegando.
Olha lá, é ele mesmo. O velho Farias tá com ele e o outro. O
novo dono da fazenda é bem moço.
Casarão da fazenda. Varanda do casarão. SEBASTIANA e
CONCEIÇÃO, mulheres negras, idosas, de aproximadamente 60 anos,
estão na varanda do casarão da fazenda. Elas, ansiosas, batem palmas ao
ver Dirceu, Josias e Farias atravessarem a cancela e entrarem no pátio de
frente da casa da fazenda. Sebastiana e Conceição acenam as mãos para
eles. Dirceu tira o chapéu e abana-o para todos. Ele frea o cavalo, olha
para o céu e faz o sinal da cruz.
122
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Os poucos criados da fazenda correram para nos receber na
cancela. Atravessamos a cancela. Eu tirei o meu chapéu e
acenei-o, para todos. A minha alegria foi tamanha, que olhei
para o céu e agradeci a Deus, fazendo o sinal da cruz.
CORTA PARA
Varanda do casarão. Sebastiana cutuca Conceição.
SEBASTIANA
Assunta lá, Conceição, olhe só o nosso menino no corpo de
homem...
CONCEIÇÃO
É mesmo, Sebastiana. O menino se fez a feição do pai... é a
cara e o jeito de nhô Zé Antônio, quando moço...
SEBASTIANA
Espero que ele se aprume aqui, Conceição, e que ele trate
direito desta fazenda...
CONCEIÇÃO
Peço a Deus que sim, Sebastiana, ultimamente essas terras de
cá andam tão maltratadas...
SEBASTIANA
Vamos lá, Conceição, vamos... Vamos receber o nosso
menino...
Dirceu, ainda montado no cavalo, calado, mira os olhos para toda a
gente, ali, da fazenda. Dirceu gira o cavalo e vasculha com os olhos toda
a frente da fazenda. O casarão, a varanda, as árvores e o velho curral,
tudo gira formando uma só imagem perante aos olhos de Dirceu.
123
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Calado, senti uma ansiedade louca de correr por toda aquela
terra, matar a minha saudade e crer na verdade de estar ali,
dando continuidade aos meus sonhos de criança. Meus olhos
não davam conta de registrar tudo de uma só vez.
Dirceu apea do cavalo e sai andando pela fazenda. Dirceu atravessa o
curral, em frente da casa, para e observa os animais, os pastos, as
plantas, as montanhas, as cercas, os currais e a pequena e velha senzala,
corrompida com o tempo.
DIRCEU (VOICE OVER)
Apeei-me do cavalo, atravessei o curral em frente da casa e
parei para observar os animais, os pastos, as plantas, as
montanhas, as cercas, os currais, a pequena senzala; enfim,
tudo o que os meus olhos pudessem alcançar em silêncio.
Percebi a mudança de algumas coisas, embora, ainda restavam
ali fortes resquícios de um passado distante.
Quintal de frente da fazenda. Cirilo, Miliquito, Hipólito e Ambrósio
estão ao lado de Josias, no quintal de frente da fazenda. Farias
aproxima-se deles.
FARIAS
Vossemecês ficam aí, de papo pro ar e nem ver que a tarde
está caindo. Logo anoitece e ainda não desatrelaram os
cavalos e os jumentos. Os bichos estão cansados, é preciso
dar água para eles e soltá-los no pasto. Separem um
lugarzinho no curral e coloquem as ovelhas, amanhã cedo, a
gente solta elas no pasto...
Miliquito põe o chapéu na cabeça e dá um sinal para os outros. Todos
obedecem as ordens de Farias. Josias também acompanha os rapazes da
fazenda para ajudá-los a desatrelar os animais. Farias vai para a varanda
do casarão.
124
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 49 – EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
COZINHA.
Cozinha da casa. Sebastiana e Conceição arrumam a mesa com algumas
iguarias. Dirceu entra na cozinha pela larga porta do fundo. Ele ergue o
nariz para cima e respira suavemente.
DIRCEU
Estou sentindo o cheiro de coisas gostosas...
SEBASTIANA
Bondade do nhozinho, as negras, cá, estão caducando,
esquecendo dos temperos e até fazendo coisas erradas na
cozinha.
Mesa grande. Bolo de mandioca no prato. Dirceu aproxima-se da mesa
e belisca um pedaço do bolo, comendo-o e se deliciando.
DIRCEU
O sabor está do mesmo jeito. Eu sempre gostei deste bolo de
mandioca. Só vós mercês mesmo para fazer, assim, um bolo
tão gostoso.
Mesa. bule esmaltado nas mãos de Conceição. Conceição coloca o bule
esmaltado na mesa.
CONCEIÇÃO
Nhozinho já deu uma voltinha por aí, não foi? Deu para
matar a saudade? Muitas coisas mudaram, não mudaram?
Dirceu faz "sim" com a cabeça. Banco encostado à mesa. Dirceu sentase no grande banco. Conceição serve-lhe um café com leite. Janela
aberta. Dirceu olha pela janela e avista uma grande mangueira.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Olha lá, o meu pé de manga. Foi o Ernestino e eu quem o
plantou, quando éramos crianças...
Dirceu levanta-se do banco e vai até a janela. Ele olha para o lado de
fora.
DIRCEU
(levanta-se do banco e vai até a janela. Ele espia o lado de
fora)
Foi o Ernestino e eu quem o plantou, quando éramos
crianças...
SEBASTIANA
(tampa uma das panelas no fogão e olha para Dirceu)
O menino deve de estar lembrando das traquinices de
infância, não está?
DIRCEU
Ué, Sebastiana, parece que vós mercê lê os pensamentos da
gente...
SEBASTIANA
O jeito de como nhozinho olhou para o pé de manga...
Lembra do pote de barro que vossemecê e o Ernestino
quebraram?
DIRCEU
Lembro, sim... Nós pegamos o pote de barro para molhar o
pé de manga...
SEBASTIANA
É e o tempo estava chovendo, não precisava de tanta
malineza. O pote era novo e o pai de inhozinho pagou caro
por ele...
126
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Eu lembro também da bronca de vós mercê...
SEBASTIANA
Depois nhozinho e Ernestino embrenharam-se no mato, que
só mesmo o Zé Antônio, pai de vossemecê para ir atrás...
DIRCEU
(larga a janela e vai sentar-se a mesa)
O senhor meu pai ficou tão preocupado com a fuga minha e
de Ernestino, que nem nos castigou... E por falar em
Ernestino, onde se encontra o Ernestino, Sebastiana? Ele
deve estar moço, feito assim, como eu, não deve estar?
Fogão de lenha. Pano de prato nas mãos de Sebastiana. Caldeirão de
ferro com algo fervente, na chapa do fogão de lenha. Sebastiana puxa o
caldeirão de ferro para fora da chapa do fogão de lenha. Sebastiana olha
para Dirceu, tristemente.
SEBASTIANA
Ernestino, nhozinho, Ernestino não teve a mesma sorte que
nhozinho, para se ver jovem e bonito. Ernestino partiu dessa
vida muito cedo. Faz tempo qu'ele morreu na moenda de
cana...
Dirceu tira o chapéu e faz o sinal da cruz. Conceição, em dos cantos da
cozinha faz também o sinal da cruz. Sebastiana olha para Dirceu e em
seguida para Conceição.
DIRCEU
Na moenda? Meu Deus deve ter sido horrível! Ernestino era
um menino tão esperto, vivo e atencioso. Como pôde
acontecer isso?
127
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 50 - EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
CASA-DO-ENGENHO OU MOITA.
Flash back - Relato de Sebastiana.
Legenda “1784”
Casa-do-engenho ou moita. Engrenagens do engenho moendo canas.
Jumentos atrelados ao engenho, fazendo rodar as engrenagens do
engenho de cana. DOIS RAPAZES NEGROS raspam as canas com
enormes facões e as entregam a um crioulo forte e musculoso. O
CRIOULO FORTE E MUSCULOSO enfia as canas raspadas nas
engrenagens do engenho de cana. O CRIOULO FORTE E
MUSCULOSO afasta-se das engrenagens do engenho de cana.
ERNESTINO, negro, com aproximadamente 15 anos de idade aparece
enfiando canas nas engrenagens do engenho de cana. Mãos de
Ernestino enfiando canas nas engrenagens do engenho de cana.
Engrenagens do engenho moendo canas. Mão direita de Ernestino
sendo puxada pelas engrenagens do engenho de cana. Caldo de cana
misturado com sangue escorre para o aparador. Casa da senzala da
fazenda Ribeirão do Meio. Quarto da casa da sensala da fazenda.
Ernestino deitado numa cama do quarto da sensala da fazenda.
Ernestino morto na cama do quarto da sensala da fazenda. Cemitério do
pé do morro. Sepultura de Ernestino no cemitério do pé do morro.
SEBASTIANA (OFF)
Dissem que o menino distraiu, nhozinho, contam que ele
enfiou um taquinho de cana na moenda e, quando viu, a mão
foi junta. O coitado perdeu uns três dedos da mão, agonizou
por algumas semanas, teve febre, calafrios. A mão do coitado
inchou, ficou azul, parecia que ele ia perder tudo, até o braço.
Numa madrugada, quando parecia qu'ele estava melhorando
da dor, ele morreu caladinho, feito um passarinho no ninho.
Agora ele "tá" lá, enterrado no pé do morro e descansando
com os anjos, no céu...
VOLTA PARA
128
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 49.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./ DIA. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. COZINHA.
Dirceu olha para Sebastiana e demonstra-se horrorizado com o relato
feito por ela.
DIRCEU
É, que os anjos o tenha no céu. Lá, o Ernestino deve ter se
transformado em um anjo... Sim, em um anjinho esperto,
voando entre as nuvens e ajudando, cá na terra, um e outro...
CONCEIÇÃO E SEBASTIANA FAZEM O SINAL DA CRUZ.
SEQUÊNCIA 51 – EXT./INT. VÁRIOS.
Flash back – Relato de Dirceu.
África. Reino do Congo. HOMENS NEGROS fugindo de Homens
brancos. HOMENS NEGROS sendo resgatados à força por homens
brancos e sendo jogados nos porões das naus. Mar. Naus chegando em
terras brasileiras. Porto de Galinhas. HOMENS BRANCOS negociando
os homens negros. Lavouras. Sol quente. HOMENS NEGROS
trabalhando nas lavouras de cana-de-açúcar, algodão, mandioca, tabaco
e café. Engenhos, oficinas e manufaturas. MULHERES e CRIANÇAS
NEGRAS, de várias idades, ajudando os homens negros na fabricação
de rapadura, aguardente, farinha de mandioca e tabaco.
DIRCEU (OFF)
Tanto eu, quanto o meu pai, nunca gostávamos de ter
escravos, mas, infelizmente, nessa época, o sistema da nossa
colônia não dava outra alternativa senão escravizar os negros
para o auxílio da mão-de-obra. Os homens brancos roubavam
os homens negros de África, a fim de enriquecerem-se com o
triste comércio de tráfico humano.
129
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Efeito: (imagens desbotadas). Legenda: "Vila Rica, 1772". Manhã.
Mercado de escravos. ZÉ ANTÔNIO aparece jovem, comprando dois
rapazes negros e duas mulheres negras. Tarde. Fazenda Ribeirão do
Meio, varanda da casa recém nova. ZÉ ANTÔNIO e uma mulher
branca, ESPOSA dele, jovem de aproximadamente 20 anos, com uma
criança branca, de aproximadamente dois anos, no colo - esta criança é
Dirceu - estão sentados em cadeiras de canapés, na varanda. Os DOIS
RAPAZES NEGROS e as DUAS MULHERES NEGRAS(os mesmos
comprados por Zé Antonio)estão na varanda da casa ao lado de Zé
Antônio e da esposa, com Dirceu no colo.Todos, na varanda da casa,
sentados nos canapés, conversam alegremente.
DIRCEU (OFF)
Se o meu pai comprava escravos, ninguém acreditava, que
eles, em nossa propriedade, eram tratados como cristãos; uns
ajudavam os outros. Dessa forma, todos formávamos uma
enorme família. Eu aprendi com o meu pai uma importante
lição: ninguém pertencia a ninguém, todos éramos criaturas de
Deus.
SEQUÊNCIA 52 – FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS.
Relvado. Dirceu andando a pé pelo relvado. Pássaros voam entre as
árvores. Uma velha capela. Os olhos de Dirceu alcançam a velha capela,
qual está nas terras da fazenda Ribeirão do Meio, do mesmo lado do
casarão da fazenda, a aproximadamente 2,OOO mts. Para se chegar à
capela, é preciso andar sobre uma pequena estrada de pedras. Dirceu
andando na pequena estrada de pedras. Capela da fazenda. Frontifício
detalhado da capela da fazenda.
DIRCEU (VOICE OVER)
Meus olhos alcançaram a capela feita de pedra. Ela foi
construída entre os anos de 1750 a 1753, quando foi
inaugurada. Eu não conhecia muito a história de como ou
porque ela fora construída ali, naquele descampado.
130
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 53 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
CONSTRUÇÃO DA CAPELA DA FAZENDA.
Flash back – Relato de Dirceu sobre a construção da capela da fazenda.
Construção da capela da fazenda: taipeiros, pedreiros, carpinteiros e
cortadores de pedras, trabalhando. Capela da fazenda construída.
DIRCEU (OFF)
Tudo o que eu sabia é que ela foi idealizada pelos jesuítas,
erguida por taipeiros mamelucos e carpinteiros do Reino,
pedreiros do Algarve e construtores do Norte, gente do Porto
e também de Tras-os-Montes. Todos eles, excelentes
cortadores de pedras que vieram para a nossa colônia devido à
farta mão-de-obra daquela época.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 52.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CAPELA DA
FAZENDA.
Dirceu observa os detalhes do altar e do púpito da capela. O altar da
capela parece um túmulo, cujos riscos foram copiados da tumba de
Artaxerxes II, da Pérsia. Um pequeno púpito simples, contornado e
cheio de cores complexas, um pequeno afresco com anjos, tendo ao
centro São Rafael e São Miguel Arcanjo. As pinturas são barrocas.
DIRCEU (VOICE OFF)
O altar e o púlpito da capela, segundo o meu pai, foram
projetados e construídos pelo mestre Noronha, sob a
proteção de um padre espanhol. Ele somente permitiu as
pessoas entrarem na capela no dia da inauguração. Os poucos
moradores da região aguardavam curiosos para conhecer a
131
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
beleza pousada no interior dela, mas, segundo o meu pai, eles
se desapontaram ao vê-Ia, nada extraordinário. No interior da
capela havia um altar, parecendo um túmulo e um pequeno
púlpito simples, cheio de contornos e cores douradas com
desenhos complexos.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 53.1– CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CAPELA DA
FAZENDA.
Interior da capela da fazenda. FIÉIS na capela (os fiéis são pessoas
brancas). Púpito. UM PADRE ESPANHOL pregando no púlpito da
capela.
DIRCEU (OFF)
O padre argumentava, naquela época, que o segredo mais
importante do mundo existia nesta capela.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 52.2 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. INTERIOR
DA CAPELA DA FAZENDA.
Interior da capela. Bancos. Dirceu sozinho sentado em um dos bancos
da capela.
DIRCEU
Seria a fé? A vocação de servir a Deus? Qual segredo seria
esse, que jamais fora revelado? Ora, se era um segredo, então
haveria qualquer coisa de mistério...
VOLTA PARA
132
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 53.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA. ADRO DA
CAPELA DA FAZENDA.
Adro da capela. Cova grande. PESSOAS BRANCAS e PADRES ao
redor da cova. Caixão de madeira. HOMENS NEGROS descem o
caixão de madeira para dentro da cova grande.
DIRCEU (OFF)
Semanas depois da inauguração o padre espanhol morreu e foi
sepultado no adro da capela. Daí, por diante, a capela foi
abandonada pelos fiéis, quais, jamais comentaram sobre o
maior segredo do mundo, guardado nela. Uma vez
abandonada, a capela acabou sendo invadida pelos índios
botocudos.
Dia. Capela. Aldeia dos índios botocudos na frente da capela. Na aldeia
as ocas são feitas com varas, fechada e coberta com palhas. Movimento
de índios nas ocas.Porta da capela aberta. ÍNDIOS BOTOCUDOS
entram e saem da capela. Interior da capela. Algumas ÍNDIAS
BOTOCUDAS estão amotoados no canto do altar fazendo cestas de
palhas, enquanto outras, sentadas no chão, amamentam crianças
botucudas no peito. Noite. Fogueiras. Festa na aldeia. No centro do
terreiro, entre as ocas, há TRÊS ÍNDIOS PUERIS OU GOITACAZES
amarrados em um poste. A tribo dos botocudos dança em volta dos três
índios pueris ou goitacazes, quais, são seus prisioneiros. Àrvores altas e
escuras, ao redor da aldeia dos índios botocudos. ÍNDIOS PUERIS OU
GOITACAZES sobem nas árvores e ateiam flechas com fogo nas ocas
dos índios botocudos. Labaredas de fogo. Incêncio geral. Barulhos.
Gritos dos índios botucudos. ÍNDIOS BOTOCUDOS abandonam a
aldeia. Capela. Alguns ÍNDIOS BOTOCUDOS correm para dentro da
capela. Interior da capela. Os ÍNDIOS BOTOCUDOS são
surpreendidos por um bando de índios pueris ou goitacazes. Fogo.
Flechas com fogo voam por todos os lados. ÍNDIOS PUERIS OU
GOITACAZES vencem a luta. Corpos de índios botocudos espalhados
pela aldeia. Os TRÊS ÍNDIOS PUERIS OU GOITACAZES
amarrados no poste são libertados pela tribo deles.
133
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (OFF)
Os índios botocudos eram perigosos, desordeiros e
praticavam o canabalismo, roubando e devorando os índios
de outras aldeias. Após a morte do padre fundador da capela,
eles invadiram a capela, construíram a sua aldeia ao redor dela
e só saíram dali devido a uma guerra com os índios da tribo
dos puris ou goitacazes, que, numa certa noite surgiram de
repente para salvar alguns índios de sua tribo que estavam sob
o poder dos bototocudos. Embora a capela servisse também
de esconderijo para a desavença noturna, felizmente, ela pôde
manter-se de pé. Tempos depois, dizeram que os jesuítas
alimentavam a esperança de começar ali uma freguesia, mas,
infelizmente, ninguém soube o porquê,os padres
abandonaram a região deixando de lado as suas missões
catequéticas. Cinzas no adro da capela. Tribo dos botocudos
abandonada. Imagem da capela.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 52.3 – CONTINUAÇÃO -INT./DIA. INTERIOR
DA CAPELA DA FAZENDA.
Interior da capela. Altar principal da capela sem nenhuma imagem.
Dirceu sozinho olhando para o altar principal da capela.
DIRCEU
Já ouvi falar de tantos mistérios que possam estar escondidos
nesta capela, mas parecia que tudo não se passava de mitos ou
lendas inventadas pelo povo desta pacata região de Minas...
SEQUÊNCIA 54 – INT. /DIA. VILA RICA. SALA DE UM
ESCRIVÃO.
134
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Vila Rica. Manhã. Casa assobradada. Sala ampla e arejada. Escrivaninha.
Mesa.Caderno de registro e uma enorme lupa em cima da mesa.Dirceu
sentado, juntamente com um escrivão. O ESCRIVÃO é um português
magro e alto, de 30 anos de idade, qual mantém forte o sotaque
português de Portugal. Caderno de registro sobre a mesa. O escrivão
abre o caderno de registro, pega a lupa e confere-lhe algumas folhas.
ESCRIVÃO
Ribeirão do Meio... Ribei...Ora, Senhor Dirceu, desde que o
senhor seu pai vendeu a fazenda, ela passou a pertencer a
muitos outros donatários. Portanto, ela passou a ter outros
nomes...
DIRCEU
Quero dar à fazenda o seu antigo nome,Ribeirão do Meio.
Posso desfazer esse último registro, não posso?
ESCRIVÃO
(volta a consultar as páginas do caderno com a lupa)
Sim, claro. Basta redigir uma ata e realizar o desejo de vós
mercê. Custará alguns réis...Nada que não possas pagar.
DIRCEU
Dinheiro não é o problema. Quero que a fazenda volte ao seu
antigo nome, estou a reformá-la e pretendo dar a ela todas as
melhorias possíveis...
Mesa. O Escrivão coloca-se os cotovelos na mesa. Caderno aberto. O
Escrivão desfolha o caderno e abre uma de suas páginas. Lupa na mão.
Com a lupa, o Escrivão consulta as letras escritas na página.
ESCRIVÃO
Estou a ver que o último proprietário da fazenda foi um
magistrado que largou a profissão para dedicar-se à
mineração, à agricultura, à pecuária e à industrialização de
aguardente.
135
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
E quem era esse magistrado?
ESCRIVÃO
(apenas prossegue)
Mas, infelizmente, esse pobre magistrado, ao se envolver em
assuntos da colônia, acabou sendo degredado à África.
Tivemos notícias que ele viveu pouco tempo por lá, pois
morreu de malária, em Angola.
DIRCEU
O senhor escrivão está falando do senhor...
ESCRIVÃO
Não, não nos interessa nomes... Sabemos que alguns desses
desgraçados foram mortos e outros degredados, devido ao
movimento de tentativa de libertação da colônia, de
Portugal....
Mesa. Mãos do escrivão. O Escrivão bate palmas e esfrega as mãos
meio apreensivo
ESCRIVÃO
O senhor seu pai adquiriu a fazenda por um preço quase
simbólico, pois o homem que havia arrematado a fazenda, ao
saber que ela pertenceu ao tal revolucionário, resolveu vendêla a qualquer preço. Todas as pessoas, por ignorância ou não,
diziam que esses revolucionários eram homens excomungados
pela Santa Madre Igreja, por intermédio do Papa Pio VI.
Porém, segundo eles, tanto os revolucionários, quanto os seus
descendentes e bens confiscados estavam endemoninhados...
DIRCEU
(dá risadas)
Meu Deus, que povo bobo, senhor escrivão, pois nada havia
de religiosidade naquele movimento. Tudo não se passou de
136
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
uma questão de poderes da coroa real. Ah, deixemos isso de
lado, o importante é que eu quero viver bem em minhas
terras novamente conquistadas...
O Escrivão solta dois ou três gritinhos engraçados, bate palmas e
esfrega as mãos. Dirceu fica a encará-lo.
ESCRIVÃO
Pois bem, veremos o que temos de fazer para que as terras
sejam suas, definitivamente suas, senhor Dirceu...
Mão direita pelo ar. O Escrivão sinaliza com as mãos que quer dinheiro.
Dirceu põe-se de pé, enfia a mão dentro de um alforje e tira um
pequeno saco com alguns patacões.O Escrivão sorri, pega o saco de
moedas, põe-se de pé, abre o pequeno saco e despeja as moedas sobre a
mesa. Moedas tilintam na mesa. O Escrivão arregala os olhos,sorri e
abre os braços sobre a mesa, cercando as moedas.Gaveta da mesa. O
Escrivão abre a gaveta da mesa e despeja as moedas abraçando-as entre
os braços.
ESCRIVÃO
Creio que estes patacões serão suficientes para pagar as
despesas da documentação, senhor Dirceu. Não sou lá tão
ambiociosa, mas, como bem sabes, senhor Dirceu, sem
dinheiro, ninguém vive.
Mesa. Caderno aberto e tinteiro com pena sobre a mesa. O ESCRIVÃO
ajeita-se o caderno, molha a pena no tinteiro e escreve alguma coisa na
página do caderno.
ESCRIVÃO
A fazenda, portanto, a partir de hoje pertencerá ao senhor
Dirceu.
137
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Que bom, senhor escrivão, dessa forma iniciarei logo a
reforma da minha fazenda...
ESCRIVÃO
Se precisares de bons trabalhadores, alugarei para ti os meus
escravos. Eles entendem de construção e de...
DIRCEU
(levanta-se rápido da poltrona)
Fico agradecido, senhor escrivão. É uma pena, mas, antes de
passar por cá, eu já havia deixado alguns homens sobre aviso
para a reforma. Quem sabe, numa próxima vez, eu venha a
contratar os seus serviços.
Cabide com alguns chapéus, entre eles um chapéu feminino, com um
enorme penacho rosa. Dirceu dirige-se ao cabide e pega o seu chapéu e,
sem perceber, toca as mãos no penacho rosa do chapéu feminino. O
Escrivão olha para Dirceu, bate palmas e solta um grito afiado.
ESCRIVÃO
Não, não toques nesse chapéu. Ele é uma lembrança de uma
doce rapariga, que eu conheci em Lisboa...
DIRCEU
(olha para o chapéu feminino)
Invés de trazer a rapariga, trouxeste foi o chapéu dela, senhor
escrivão?
ESCRIVÃO
(responde rapidamente)
Trazer o chapéu foi mais barato do que trazer a cachopa para
cá. Cobraram o preço do bilhete, apenas da minha pessoa.
Quem sabe um dia, não trago, cá, a minha rapariga.
138
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu sorri colocando o seu chapéu na cabeça e dirigindo-se até a
porta. O Escrivão o segue até a porta. Dirceu sai. O Escrivão olha para
o cabide. Cabide com chapéus. Chapéu feminino com penacho rosa. O
Escrivão fala com jeito engraçado, meio afeminado.
ESCRIVÃO
Lembrar-se da Maria do Carmo é muito mais barato do que
mantê-la... É muito mais. Chapéu não come, não gasta
dinheiro comprando bobagens...
(abre a gaveta e sorri)
Dinheiro, dinheiro... Hei de logo estar rico nesta colônia de
pessoas tão ignorantes...
SEQUÊNCIA 55 – EXT. /INT./DIA. CASARÃO DA FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO.
Manhã. Fazenda Ribeirão do Meio. Árvore alta e magra. Um joão de
barro faz a sua casa no alto da árvore. Varanda do casarão sem o
telhado. Caibros e ripas. Há QUATRO HOMENS, dois pardos e dois
negros, entre 30 e 40 anos, em cima do casarão martelando caibros e
ripas.Interior da casa. Cavaletes altos, de madeira, no interior da casa.
SEIS HOMENS, três brancos, dois pardos e um negro, entre várias
idades, a partir dos 30 anos, em cima de cavaletes, pintando as paredes
do casarão. Cozinha. Mesa com biscoitos, queijos e diversas iguarias.
Bules de cerâmicas com leite e bules esmaltados com café. Dirceu está
na mesa em companhia de três homens brancos, muito bem vestidos.
OS TRÊS HOMENS BRANCOS têm entre 27 e 30 anos. Canto da
mesa. Planta arquitetônica da fazenda estendida no canto da mesa.
Dirceu e os três homens brancos verificam a planta arquitetônica,
utilizando-se uma pequena vareta.
DIRCEU
Então, o senhores garantem que eu não preciso mudar nada?
Apenas reformar o casarão?
139
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
UM DOS HOMENS BRANCOS DE 30 ANOS
(segurando uma lupa na mão)
Ela está em perfeito estado, senhor Dirceu, verificamos toda a
estrutura. Esta casa ainda atravessará alguns séculos...
DIRCEU
Se está certo o que os senhores estão a me garantir,então
ficaremos com os pequenos reparos. Quero uma pintura
bonita, como de muitas casas que eu tenho visto em Vila Rica.
UM DOS HOMENS BRANCOS DE 30 ANOS
(coloca a lupa em cima da mesa)
Estamos a fazer isso, senhor Dirceu. O senhor não irá
arrepender-se. A nossa tinta é de excelente qualidade. Somos
os únicos, em Vila Rica, ou em toda a colônia a preparar
materiais para tintas a todos os pintores. É certo que eles
compunham suas misturas, mas neste caso, iremos entregá-la
ao senhor, prontinhas.
FADE OUT /FADE IN
Tarde. Laterais do casarão da fazenda pintadas na cor azul. Varanda
coberta por novas telhas. Todos da faenda Ribeirão do Meio, uma vez e
outra, tanto longe ou perto, a pé ou a cavalo e em seus postos de
trabalhos, observam com alegria a mudança do casarão. Embora o
casarão fosse colonial,ele passa a ganhar, na pintura, um aspecto
barroco. Paredes, portas e janelas de parapeitos ganham cores escuras.
Fachada da frente do casarão.
SEQUÊNCIA 56 – EXT. /INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. VÁRIOS.
Legenda: "Agumas semanas depois..."
Noite. Lua minguante. Fogueira crepitando no pátio de frente da
fazenda. Dirceu, Ambrósio, Hipólito, Cirilo e Josias estão sentados em
140
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
círculo. No meio do círculo está Farias toca a sua sanfona. Gamela com
bolos e biscoitos. Conceíção, com a gamela nas mãos, serve Dirceu,
Cirilo, Josias, Ambrósio, Hipólito e Farias biscoitos e bolos. Fogueira.
Brasas. Bule em volta da fogueira. Sebastiana pega o bule e despeja café
em alguns copos. Farias toca a sanfona. Lua minguante. Fogueira
apagada. Janela aberta. Quarto de Dirceu. Dirceu está na janela olhando
para as estrelas do céu.
DIRCEU
Custe o que custar, minha estrela, um dia vos trarei para
morar nesta nova casa. Se vossa senhoria não gostar da
reforma feita, farei outra e mais outra, conforme for o vosso
desejo.
DIRCEU
(respirando fundo)
Marília, Marília. Se tu fores a minha estrela, logo, cá, estarás
comigo...
CAPÍTULO 4
SEQUÊNCIAS 57-76
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Josias
Farias
Tiziu
Zé Antônio (35 anos)
Cirilo
Miliquito
Ambrósio
Hipólito
Dona Vera
Diodato
Criada (casa de Carlos)
Homens negros (das lavouras)
141
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Três homens brancos (vaqueiros)
Homem negro (arrastado na estrada)
Pessoas idosas, homens, mulheres, jovens e crianças Negros amarrados
em coleiras.
Fazendeiros(compradores e comerciantes de escravos)
Três jovens negros (Endimião, Alceu e Trácio)
Mulatinha
Senhor homem branco
Três mulheres negras (Inácia,Caliandra e Quitéria)
Três negros magros e altos (fazenda de Diodato)
Carlos
Alguns homens negros e brancos (fazenda de Diodato)
SEQUÊNCIA 57 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Tarde. Campo. Arados de tração animal. Mugidos de boi. Miliquito e
Cirilo aram a terra. Mato. Revoada de pássaros. Uma touceira de capim
cai sobre a terra. Hipólito capina o mato. Curral. Ambrósio está no
curral cuidando dos bois. Conceição está sentada em um canto da
varanda, com uma gamela, catando feijão. Quintal de frente da fazenda.
Árvore frondosa no quintal de frente da fazenda. Farias está encostado
no tronco da frondosa árvore de frente do quintal da fazenda, com o
cachimbo na boca, cochilando. Campina. Serra dos arredores. Dois
cavalos troteam, lado a lado. Dirceu e Josias troteando pela campina.
DIRCEU
Ontem, meu caro Josias, antes de pegar no sono, pensei
seriamente em plantar a cana-de-açúcar para fabricar a
cachaça, mas como o ouro anda um pouco escasso, creio que
muita gente está a fabricar esse produto...
142
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
(frea o cavalo e atalha o cavalo de Dirceu)
Carece não sinhô Dirceu, vossemecê pode investir em gado,
ovelhas... Sinhô leva jeito, gosta de aventura. O negro cá é
bom vaqueiro, posso ajudar vossemecê... Os rapazes também
gostam da fazenda, sabem fazer todos os tipos de serviços,
logo, vossemecê terá uma propriedade de fartura. Vaca pro
leite, boi pro corte, ovelhas para a lã...
DIRCEU
Vós mercê está dizendo isso por experiência própria, não é,
Josias? Crê que a terra seja boa, o pasto...
JOSIAS
Quando se dedica a terra com carinho, tudo se prospera,
"nhô" Dirceu. Dizia isso, meu "nhozinho" lá da Bahia. Ele era
um homem atrevido, inventava fazer as coisas do jeito dele e
tudo dava certo...
DIRCEU
Isso que vossa mercê falou, Josias anima o meu espírito. Vou
pensar direito no assunto. Não estou querendo fazer nada
pela vil ganância, quero fazer aquilo que seja para mim
prazeroso. A vida é uma só, meu amigo, se a gente não
aproveitar e viver bem, não adianta esperar viver depois da
morte... A vida, cá, agora, é a única certeza da nossa
existência...
JOSIAS
Ora, pois quem morre nunca vem contar aos vivos se está
vivo ou não em outro lugar, ou o que está fazendo, se
plantando, colhendo ou levando a vida de rezas...
DIRCEU
Vós mercê é um homem muito espirituoso, Josias. Até parece
que frequentou mestre escola...
143
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Quando menino eu fui criado por um padre, os proprietários
deram-me a ele como promessa. Quando o padre morreu, um
sobrinho dele cuidou de mim e ensinou-me o ofício de
vaqueiro. O coitado contraiu uma dívida de jogo e para não
sofrer consequências sérias, foi obrigado a entregar-me ao
vencedor. Dali por diante fizeram de mim escravo, aprendi
vários ofícios e, depois, com o tempo, o próprio sobrinho do
padre acabou me comprando de novo...
DIRCEU
Então era ele o fazendeiro, para o qual tocava a boiada?
JOSIAS
Sim e ele deve estar aborrecido por ter perdido a mim e aos
outros...
DIRCEU
Os que morreram na tocaia?
JOSIAS
(afirma “sim” balançando a cabeça)
Quer saber nhô Dirceu, aconselho a vossemecê criar gados e
ovelhas, pois a região tem clima favorável. Cá embaixo o
terreno é plano, o que facilita a engorda do gado. Quanto às
ovelhas, podemos fazer um enorme muro de pedras, no
fundo da fazenda, onde o lugar é mais rochoso. As ovelhas,
vossemecê pode mandar tosquiar e vender a lã. Já ouvi falar
que tem um bom preço.
DIRCEU
Não é que vós mercê tem uma boa visão sobre negócios,
Josias! Parece que vós mercê sabe o até mesmo os tipos de
matérias primas que os europeus estão a procurar em nossa
colônia, inclusive a lã para confeccionar os seus casacos de
pele. Mas eu não vou correr atrás de lucros, Josias, somente
144
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
quero o suficiente para que possamos viver com dignidade
nestas terras...
SEQUÊNCIA 58 – FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL
DE FRENTE DA FAZENDA.
Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Casarão da fazenda. Varanda do
casarão. Dirceu está sentado em um tamborete na varanda do casarão.
Farias aparece de repente de frente a Dirceu na varanda do casarão com
um alforje pendurado entre os peitos.
FARIAS
Tô procurando pelo nhozinho, pensei que estivesse
cavalgando pelas colinas com o Josias...
DIRCEU
Não, hoje eu não quis andar a cavalo, Farias. Acordei cedo,
como todos os dias, ajudei os rapazes nos afazeres da fazenda
e resolvi ficar um pouco, cá, para pensar na vida... Hoje,
Farias, amanheci lembrando no senhor meu pai, na Maria
Antônia..
FARIAS
(olha para um lado e outro e cochicha para Dirceu)
Carece preocupar com nhô Zé Antônio, não. Ele e a Maria
Antônia tão bem...
DIRCEU
Será?
FARIAS
Sim. Tenho até uma encomenda do senhor Zé Antônio para
nhozinho...
145
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Encomenda do senhor meu pai? Vós mercê tem visto o
senhor meu pai, Farias?
FARIAS
Não. O sinhô seu pai tá longe, sinhô Dirceu, esta encomenda
faz tempo que está comigo. Eu vou entregar hoje para
sinhozinho porque foi o sinhô seu pai que marcou o dia...
DIRCEU
O dia? Meu Deus, por que isso?
FARIAS
Porque eu não sei...
Farias olha para um canto e outro do lado de fora da varanda do
casarão, tira o alforje preso entre os peitos e entrega-o para Dirceu.
Dirceu recebe o alforje com uma das mãos. A mão desce, devido ao
peso. Dirceu coloca o alforje no chão. Cancela da fazenda. Farias olha
para a cancela da fazenda. Farias vê Josias montado no cavalo
empurrando a cancela da fazenda. Farias cutuca Dirceu pelo braço e
mostra Josias chegando à cancela da fazenda.
FARIAS
Vá para o quarto de vossemecê e olhe o que tem aí dentro...
Eu vou despistar o Josias, para ele não aborrecer o
sinhozinho...
DIRCEU
Se o senhor acha que deve ser assim, recolherei ao meu
quarto...
Farias sai em direção á cancela. Dirceu entra para dentro do casarão.
Farias encontra-se com Josias debaixo de uma frondosa árvore.
146
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 59 - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
QUARTO DE DIRCEU.
Quarto de Dirceu. Interior do quarto de Dirceu. Mesa redonda em um
dos cantos das paredes do quarto de Dirceu. Dirceu coloca o alforje na
mesa redonda de um dos cantos das paredes do quarto de Dirceu.
Dirceu arrasta uma poltrona pesada para perto da mesa redonda. Dirceu
senta-se na poltrona, respira fundo, abre o alforje e fala por solilóquio.
DIRCEU
Será se neste instante, estaria o senhor meu pai a colocar-me a
par sobre histórias da minha vida, do meu passado, sobre a
senhora minha mãe?
Alforje. Dirceu enfia a mão no alforje e retira dele um pequeno saco
muito bem amarrado. Dirceu tenta desamarrar o pequeno saco, mas não
consegue. Dirceu larga o pequeno saco na mesa redonda de canto.
Dirceu abre uma das gavetas da mesa redonda de canto e retira de
dentro dela um punhal. Punhal na mão de Dirceu. Dirceu pega o
pequeno saco na mesa redonda de canto e corta-lhe as amarras com o
punhal. Dirceu despeja o conteúdo do pequeno saco sobre a mesa.
Olhos de Dirceu arregalados. Pepitas de ouro. Sobre a mesa redonda de
canto estão espalhadas valiosas pepitas de ouro. Mãos trêmulas de
Dirceu tocando nas pepitas de ouro. Dirceu respira ofegantemente.
Olhos arregalados de Dirceu.
DIRCEU
Meu Deus, como o senhor meu pai conseguiu juntar toda esta
riqueza?
Alforje. Dirceu enfia a mão no alforje. Dirceu traz na mão algumas
pedras de diamantes bem lapidadas pela natureza. Dirceu fica
deslumbrado.
DIRCEU
Diamantes, o meu pai ainda tinha diamantes guardados...
147
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
(repara os diamantes)
O senhor meu pai sempre foi um homem aventureiro; um
afortunado aventureiro...
(joga os diamantes em cima da mesa redonda de canto)
Quando eu podia imaginar que o meu pai, sempre truão e
calado, estaria acumulando riquezas para dividir-se comigo?
Mesa redonda de canto. Pepitas e diamantes espalhados sobre a mesa
redonda de canto. Dirceu põe-se de joelhos e contempla as pedras
preciosas. Os olhos de Dirceu brilham juntamente com as pedras
preciosas espalhadas na mesa.
SEQUÊNCIA 60 – EXT./DIA. ARRAIAL DO TIJUCO, 1771.
PEQUENA CASA DE ENCHIMENTO À BEIRA DE UMA
ESTRADA.
Flash back – Pensamento de Dirceu
Legenda: "Arraial do Tijuco, 1771".
Tarde chuvosa. Barulho de trovões. Relâmpagos cortam o espaço. Casa
de enchimento. Interior da casa de enchimento. Chão batido. Colchões
amontoados em um canto, bruaca e caixa de couro aberta com peças de
roupa. Fogão de lenha. Fogo crepitando no fogão de lenha. Caldeirão
fechado cozinhando feijão com carne. DIRCEU, menino, com
aproximadamente dez anos de idade, todo encolhido, com as mãos
tapando os ouvidos, sentado em um banquinho encostado na parede da
casa de enchimento. Dirceu está trêmulo, ao lado dele, sentado em um
velho tamborete de couro, TIZIU, menino negro, magro e alto, com
aproximadamente doze anos de idade. Raios, relâmpagos e barulhos de
trovões. Dirceu se encolhe a cada barulho. Dirceu chora, devido ao mal
tempo. Tiziu levanta-se do tamborete, vai até a caixa de couro e tira
algumas peças de roupas. Tiziu escolhe uma blusa de Zé Antônio, veste,
pega um pedaço de pau em um dos cantos da parede da pequena casa
de enchimento, coloca um chapéu na cabeça e olha para Dirceu. Tziu
imita como os velhos andam e depois imita um macaco. Sombra na
parde de Tziu imitando os velhos e os macacos. Dirceu dá risadas.
148
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Trovão assustador. DIRCEU solta um grito, e põe-se de cócoras,
tapando os ouvidos com as mãos. Abre-se a porta. UM HOMEM entra
apressado na casa. É ZÉ ANTÔNIO, 35 anos, magro, barba mal feita e
pele queimada de sol. Zé Antônio está vestido com um matolão de
couro. O matolão está molhado e sujo de lama. Zé Antônio tira o
chapéu, o matolão de couro e pendura-os em um cabide improvisado na
parede. Zé Antônio olha para Dirceu. Relâmpago clareia o rosto de
Dirceu. Zé Antônio aproxima-se de Dirceu e abraça-o. Tiziu joga o pau
no canto do fogão, tira a blusa de Zé Antônio e joga-a dentro do baú.
TIZIU
Tô tentando fazer nhozinho calar, mas ele não dá prestância
na brincadeira...
ZÉ ANTÔNIO
(ri, olha para Dirceu e o toca pelo queixo)
Meu filho, meu pequeno homenzinho, por que choras? Não
temas a chuva, nós precisamos dela para que os rios e as
plantas nos dêem farturas... Ora, meu pequeno rapaz...
(limpa o rosto de Dirceu com as mãos)
Fique sabendo que não estou a sacrificar por mim, mas por
vossemecê também, meu filho.
(enfia a mão direita em um dos bolsos do matolão de couro,
tira as mãos e olha para Dirceu)
Abra as mãos, Dirceu, abra! Vou mostrar a vossemecê o que
encontrei hoje...
Dirceu abre as mãos. Zé Antônio deposita uma pedra de diamante nas
mãos de Dirceu. Dirceu abre as mãos e olha a pedra de diamante sem
nenhuma admiração ou diferença.
ZÉ ANTÔNIO
É um diamante, um rico diamante, meu filho...
DIAMANTE NA MÃO DE DIRCEU. UM RAIO ILUMINA TODA
A CASA. BARULHO DE TROVÃO.
149
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 59 - CONTINUAÇÃO - INT./DIA. QUARTO DE
DIRCEU.
Dirceu continua no quarto sentado na poltrona. Comovido, Dirceu pega
os diamantes nas mãos e, com delicadeza, verifica-lhe os detalhes. Cama
de Dirceu com lençol branco. Dirceu pega as pepitas de ouro, dirige-se
até a cama com lençol branco, senta-se nela e espalha as pepitas de
ouro. Dirceu deita-se na cama com o lençol, parecendo um bobo, diante
de todas as pepitas de ouro espalhadas.
SEQUÊNCIA 61 – INT./NOITE. VARANDA DO CASARÃO DA
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
Escuta-se o coaxar de sapos. Dirceu está reunido com Josia, Cirilo,
Ambrósio, Miliquito e Hipólito, na varanda do casarão da fazenda.
DIRCEU
Quero que vossas mercês opinem sobre o que devo fazer ou
não nesta fazenda. Se devo investir em animais, em plantações
ou em garimpos...
JOSIAS
Vossemecê, nhozinho já sabe o que penso sobre o que deve
ou não cultivar nestas terras...
DIRCEU
Sei sim, Josias. Vossa mercê pode ficar tranquilo que eu anotei
cá, na cabeça, e não vou esquecer-me do gado e das ovelhas...
Quero também ouvir os rapazes, conhecedores desta região,
sobre o que devo ou não fazer...
150
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
HIPÓLITO
Não sei se nhô sabe, mas próximo a esta região há homens
que comercializam gados, ovelhas e cabras trazidos de
Vacarias do Mar e Vacarias do Pinhal...
DIRCEU
É mesmo? já estão trazendo animais da região sul para serem
comercializados, cá?
MILIQUITO
Já faz alguns tempos, nhozinho, os donos de terras
comercializam animais lá no Rio das Mortes, uma freguesia
um pouco afastada daqui. Já vimos passar por aqui, várias
vezes, fazendeiros ricos pedindo informações sobre onde
comprar escravos, gados zebu e holandês, cavalos e ovelhas...
JOSIAS
Virgem, mãe de Jesus, se a tal freguesia é perto daqui,
podemos trotear até lá e tornar esta fazenda animada, com
barulho de bois, cabras e outros bichos...
DIRCEU
Uai, sô! Se é assim, vamos arrumar viagem que em poucos
dias estaremos em Rio das Mortes...
JOSIAS
Tô vendo que o patrãozinho tem pressa de se aprimorar ainda
mais esta fazenda...
AMBRÓSIO
Vossemecês estão falando em ir até Rio das Mortes. Rio das
Mortes não é tão pertinho daqui, não... Leva léguas e, além
disso, tem que se bandear por várias fazendas para garantir a
compra dos bichos...
151
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MILIQUITO
Isso que Ambrósio ta falando é verdade, mas ouvi dizer que lá
tem uma espécie de encomenda, nhozinho, dizem que os
fazendeiros entregam os animais na freguesia...
DIRCEU
Se podemos comprar mais animais para animar a nossa
fazenda, por que não nos apressar?
AMBRÓSIO
Não sei se nhô Dirceu sabe, eu não gosto de viajar não. Mas
se confiar em mim, cá ficarei olhando direitinho a fazenda...
DIRCEU
Esta dado a vós mercê a tarefa de olhar a fazenda, Ambrósio.
Eu gosto assim, que cada um assuma o seu posto, confiando
naquilo que sabe fazer...
CIRILO
Hipólito e eu podemos acompanhar nhozinho... O Josias
também deve ir...
JOSIAS
(balança a cabeça fazendo um sinal de "sim".)
Nhô, sim!
DIRCEU
Eu também estou pensando aqui, porque não trazer mais
gente para aumentar a nossa família. Acho que vou pedir os
rapazes que forem para escolher umas moças lá para servirem
de namoradas para vós mercês. Assim, vós mercês não
sentiram sozinhos nunca...
MILIQUITO
Como assim nhozinho, trazer umas moças para servirem de
namoradas pra gente?
152
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
E porque não? Sei que a gente não deve comprar gente, mas
nesse caso vou comprar as moças para casarem com vós
mercês... É isso mesmo, casar com vós mercês na capela da
nossa fazenda. Mas antes disso, claro, cada um tem gostar
primeiro da moça que escolher...
SEQUÊNCIA
ÍNGREME.
62
-
EXT./DIA.
ESTRADA
ESTREITA
E
Manhã. Estrada estreita e íngreme. Margens da estrada. Vergeis nas
margens da estrada. Revoada de pássaros. Poeira. Rabos de cavalos.
Cavalos. Estrada. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito troteiam em
seus respectivos cavalos, pela estreita estrada. Eles seguem para o Rio
das Mortes.
DIRCEU (VOICE OVER)
Desde o início do século passado, com a corrida do ouro nas
capitanias de Minas e de Goiás, muita gente abandonava as
atividades rurais sonhando em ficar rico da noite para o dia.
Isso causou um grande desenvolvimento urbano. Vila Rica,
por exemplo, passou a gozar de grande prestígio, com lojas e
variedades de comércio.
Tarde. Cavalos. Estrada. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito
troteando pela estreita estrada. Serras. Florestas. Campos. Rios. Riachos.
Garimos e garimpeiros. Noite. Cavalos amarrados nos troncos das
árvores. Redes. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito deitados nas
redes. Manhã. Estrada. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito
troteando pela estrada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Com o ouro, as pessoas enriqueciam-se depressa, fazendo a
todos pensar que ele duraria para sempre. A coroa portuguesa
153
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
tirava proveito disso, ora levando o ouro para a corte, ora
aumentando os impostos e dificultando a vida de todos nós.
Tarde. Estrada. Mata burro. Cancela. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e
Miliquito troteando. Cancela fechada. Cirilo pula do cavalo, pega-o pela
rédea e corre para abrir a cancela. Dirceu, Hipólito e Miliquito passam
pela cancela. Cirilo puxa o cavalo pela rédea passa pela cancela,
fechando-a em seguida. Cancela fechada. Cirilo monta em seu cavalo.
Estrada. Cavalos. Rabos de cavalos. Pequenos apetrechos de viagem nas
garupas dos cavalos de Miliquito e Hipólito. Dirceu cavalga olhando a
imensidão do estradão.
DIRCEU (VOICE OVER)
Agora, no final do século XVIII, quando o ouro começou a
dificultar-se, muita gente desenganada, começava a voltar
pessimista às atividades do campo. Tanto o gado, quanto o
negro aumentavam-se de preços, dificultando a indústria
canavieira e demais atividades agrícolas.
SEQUÊNCIA 63 – INT./NOITE. PEQUENO VILAREJO DE RIO
DAS MORTES.
Noite. Pequeno vilarejo de Rio das Mortes. O lugar é uma pequena
freguesia com igrejas, praças, ruas, casas e pequenas mercearias.
Pequena praça do lugarejo, próximo a uma igreja. Dirceu frea o cavalo
em uma pequena praça, próxima à igreja e olha para Josias, Cirilo,
Hipólito e Miliquito.
DIRCEU
Finalmente, chegamos em Rio das Mortes. Vamos, agora,
procurar uma estalagem para nos acomodar e rarefazer o
nosso cansaço...
Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito saem troteando pela vila de
Rio das Mortes em busca de uma estalagem. As placas das mercearias ou
154
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
tabernas apenas chamam a atenção de Dirceu. Ouve-se o repicar de
sinos de uma igreja. Dirceu faz o sinal da cruz. Casarão antigo. Placa de
madeira, gravado "ESTALAGEM DE RIO DAS MORTES". Dirceu
frea o cavalo e lê a placa. Dirceu, alegre, grita para Josias, Miliquito,
Cirilo e Hipólito.
DIRCEU
Encontrei uma estalagem. Vós mercês esperem por mim, cá.
Vou verificar se há vagas para todos nós...
Dirceu pula-se do cavalo, aproxima-se de Josias e entrega a ele a rédea
do cavalo. Dirceu observa a estalagem. No fundo da estalagem existe
um grande estábulo. Dirceu entra na estalagem, batendo palmas. Na
sacada do casarão aparece DONA VERA, uma senhora branca e gorda,
de 40 anos. Dona Vera olha para Dirceu e seus companheiros. Dona
Vera deixa a sacada. Porta da estalagem. Dirceu na porta da estalagem
batendo palmas. A porta da estalagem abre-se. Aparece uma
MULATINHA com um pano branco amarrado na cabeça, de
aproximadamente 18 anos. A mulatinha é tímida.
DIRCEU
Preciso de abrigos para passar uma ou duas noites. É para
mim e meus companheiros. Estamos em cinco pessoas.
Vossemecê tem vagas em quartos e camas confortáveis?
MULATINHA
(sorri ajeitando o pano na cabeça)
Entre, por favor, senhor. Cadê os outros amigos de
vossemecê?
DIRCEU
Estão lá fora, cuidando dos cavalos e dos nossos apetrechos
de viagem...
Porta da estalagem. A mulatinha abre mais um pouco a porta. Sala de
recepção da estalagem. Dirceu tira o chapéu da cabeça e entra na sala de
155
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
recepção da estalagem. A mulatinha pega o chapéu das mãos de Dirceu.
A mulatinha anda até um bonito cabide e coloca o chapéu de Dirceu.
Uma porta feita de cortina de pano, dando a um corredor, abre-se e
aparece a dona Vera. Dona Vera dá um sinal para que a mulatinha se
retire da sala. A mulatinha atravessa a porta feita de cortina de pano e
desaparece.
DONA VERA
Meu nome é Veranilda, sou conhecida como dona Vera. Eu
sou a dona do estaleiro. Em que posso servi-lo, senhor?
DIRCEU
Meu nome é Dirceu, senhora, estou chegando de uma longa
viagem com alguns amigos. Chegamos em Rio das Mortes
para comprar alguns animais... Não sei se ficaremos aqui
somente esta noite ou outra, preciso de abrigos para mim e
meus amigos...
DONA VERA
As reservas são feitas comigo mesma...
DIRCEU
Quero, para os meus amigos e para mim, tudo o que a
senhora puder nos oferecer do bom e do melhor, desde
banho, comida e cama para descansar...
DONA VERA
Vossemecês estão em quantos?
DIRCEU
Estamos em cinco pessoas. Eles estão lá fora, próximos a uma
cerca de amarrar animais. E por falar em animais, gostaria
também de abrigar os nossos cavalos em um estábulo, creio
ter visto um no fundo do quintal desta estalagem.
156
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DONA VERA
Temos sim. Incluímos com a hospedagem, mas damos um
bom desconto aos nossos hóspedes...
DIRCEU
Tudo bem, a senhora pode providenciar tudo, pagarei
mediante ao preço determinado pela senhora, dona Veranilda.
Dê-me licença, um instante, vou chamar pelos meus amigos...
Dirceu vai até a porta. Dona Vera o segue. Porta aberta. Dirceu e dona
Vera olham para os rapazes. Cavalos no canto de uma cerca. Josias,
Hipólito, Miliquito e Cirilo, próximos aos cavalos. Dona Vera faz uma
cara feia.
DONA VERA
São aqueles rapazes, ao lado dos cavalos, próximos à cerca.
DIRCEU
Sim, são eles. Eles são os meus amigos, quase irmãos...
DONA VERA
Amigos? Quase irmãos? Vejo ali quatro negros. Não são
escravos de vossemecê?
DIRCEU
Não, não são. São trabalhadores da minha fazenda. Além de
trabalhadores, eles são também meus amigos e quase irmãos...
DONA VERA
Tenho um estábulo no fundo da hospedagem. Há camas feitas
de palhas. É lá que ficam os escravos dos senhores, quando...
DIRCEU
(olha para dona Vera com um olhar de desprezo e fala
ironicamente)
157
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Pedi à senhora para nos servir do que há de melhor em sua
estalagem. Pagarei pelos serviços.
DONA VERA
São escravos, não são? São seus escravos e...
DIRCEU
Por que eles são negros, haverão de ser escravos? Não está à
senhora, branca, também a nos servir, dona Vera?
DONA VERA
Desculpe-me senhor Dirceu.
DONA VERA
(olha para Dirceu e sorri um pouco sem graça)
É que o mundo nos faz ver as pessoas dessa forma. Mas se é
assim, providenciarei tudo, conforme vossemecê deseja. Vai
custar a vossemecê alguns réis a mais...
DIRCEU
Eu pago os réis a mais!
DONA VERA
(sai para dentro da casa balançando os ombros, um pouco sem
graça, resmungando)
A gente vê por cá, tantas esquisitices, até a ponto de
acomodar negros em quartos de brancos,com catres de
lençóis de linhos, cheirando à lavanda e tudo...
VISTA NOTURNA DE VILA DA MORTE.
SEQUÊNCIA 64 - INT./NOITE. PEQUENO VILAREJO DE RIO
DAS MORTES. RUAS. VENDAS. ESTALAGEM DE RIO DAS
MORTES.
158
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Noite de Lua clara. Ruas de Vila da Morte. Dirceu sai andando á pé
pelas pequenas ruas. Duas ou três pequenas vendas abertas. Dirceu
entra em uma das vendas. Candeias iluminando o ambiente. HOMENS
BRANCOS E MORENOS encostados no balcão, conversando e
bebendo vinho e cachaça. Dirceu aproxima-se dos homens brancos e
morenos e pede informações. Homens brancos e morenos ouvem
Dirceu com atenção. Dirceu sai da venda. Ruas. Dirceu anda pelas ruas.
Placa da estalagem. Sala de recepção. Candeias acesas. Poltronas
confortáveis. Fazendeiros de várias idades, vestidos de vaqueiros,
sentados nas poltronas confortáveis da estalagem. Dirceu, também
sentado em uma das poltronas confortáveis da estalagem, conversando
com alguns fazendeiros. Entre os fazendeiros está DIODATO, um
senhor de cor parda, olhos escuros, barba grande e cabelos grisalhos, de
50 anos de idade. Diodato é quem se aproxima de Dirceu.
DIRCEU (VOICE OVER)
Em Rio das Mortes o comércio não era tão intenso quanto o
de Vila Rica. Lá, naquela mesma noite, deixei os animais
descansando no estábulo, os rapazes na estalagem e sai pelas
pequenas ruas do vilarejo, a fim de obter informações sobre
os comerciantes de animais, daquela região. Eu, após entrar
em uma pequena venda, obtive respostas de que alguns
senhores, ricos fazendeiros, procurariam por mim na
estalagem para fazer as suas ofertas em gados zebus e
holandeses, cavalos e ovelhas. Ao voltar para a estalagem, não
demorou muito para que eu recebesse a visita deles. Entre
todas as propostas, a de um dos fazendeiros, conhecido como
Diodato, foi a que mais me atraiu. No outro dia seguinte, pela
manhã, eu visitaria a fazenda dele para comercializar gados,
cavalos e algumas ovelhas.
SEQUÊNCIA 65 – EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DIODATO.
Fazenda de Diodato. Cavalos de Dirceu, Diodato, Josias, Cirilo,
Miliquito e Hipólito troteando pelas lavouras da fazenda de Diodato.
159
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Escravos trabalhando nas lavouras. Pastos. Bois e vacas zebus,
holandeses e nelores pastando. Dirceu e Diodato aproximam-se da
cerca para observarem o gado nelore.
DIODATO
Veja como o gado está gordo, cá, não temos problema com o
pasto, ele está sempre verde. Todo esse rebanho, a que o
senhores veem, já são crias da fazenda. No pasto,próximo ao
curral, deixo confinado os reprodutores, ou, como diz o povo,
lá em Vacarias do Mar, as matrizes...
DIRCEU
Vamos ao curral, quero conhecer as matrizes e quem sabe,
negociar algumas, com vossa senhoria...
Diodato e Dirceu afrouxam-se as rédeas dos seus cavalos e seguem à
frente. Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito seguem atrás, observando o
gado no pasto. Cancela. Miliquito apressa o trote, pula do cavalo e abre
a cancela. Diodato e Dirceu atravessam a cancela e depois Josias, Cirilo,
Hipólito e Miliquito. Terreno pedregoso. Ovelhas pastando. TRÊS
NEGROS MAGROS E ALTOS sentados numa enorme pedra vigiam
as ovelhas no pasto. Dirceu frea o cavalo. Diodato também frea o
cavalo dele, emparelhando-o com o cavalo de Dirceu. Dirceu olha as
ovelhas no pasto. Josias afrouxa a rédea do cavalo e emparelha o seu
cavalo entre os cavalos de Dirceu e Diodato. Josias olha para Diodato.
JOSIAS
Nhô Diodato já tosquiou algumas vezes as ovelhas?
DIODATO
Não, não é o meu interesse trabalhar com a lã. Eu crio para a
venda. Atendo encomendas de fazendeiros de vários lugares
da colônia. Há pouco tempo é que a minha esposa inventou
aproveitar o leite na fabricação do queijo, mas somente para o
consumo doméstico.
160
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Diodato afrouxa a rédea do cavalo, dá um sinal para Dirceu, Josias,
Cirilo, Hipólito e Miliquito. Todos seguem Diodato galopando até a um
curral. Curral. ALGUNS HOMENS NEGROS E BRANCOS, vestidos
de vaqueiros, trabalham no curral. Homens negros e brancos estão
apartando bois e vacas da raça nelore. Diodato pula-se do cavalo e vai
até a cerca do curral e cumprimenta seus trabalhadores.
DIODATO
Bom dia, homens. Hoje é dia de apartar o gado. Quero que
vossemecês confinem as vacas no pequeno pasto, pois,
quando tivermos certeza de que elas estejam prenhas,
daremos a elas um tratamento diferenciado...
DIRCEU
(pula da sela do cavalo e aproxima-se, também, da cerca do
curral)
Esse gado é a da raça nelore, não é senhor Diodato?
DIODATO
Sim, as das raças Zebu e holandesa estão nos outros currais,
mais adiante. Guardo aqui as matrizes.Vou levá-lo já, já, até
onde está o gado pronto para o comércio...
DIRCEU
Não se esqueça senhor, queremos comprar também cavalos e
ovelhas...
DIODATO
Pode ficar tranquilo, já, já, faremos bons negócios...
Curral. Dirceu e Josias observam as vacas e os bois nelores, zebus e
holandeses. Os vaqueiros de Diodato, com ferrões nas mãos separam os
animais escolhido por Dirceu e Josias, tocando-os para um corredor.
Curral de ovelhas. Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito observam
as ovelhas. Os pastores do senhor Diodato, com cajados nas mãos,
separam as ovelhas escolhidas por Dirceu e Josias, tocando-as para um
161
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
pequeno compartimento do curral. Pasto com cavalos. Dirceu e Josias
observam alguns cavalos. Josias encosta um cavalo na cerca e consultalhe as patas e os dentes.
DIRCEU
Nesta fazenda compramos cavalos, bois, vacas e ovelhas. O
senhor Diodato entregaria os animais no dia seguinte da
compra, na estalagem de Rio das Mortes.
SEQUÊNCIA 66 - EXT./ DIA. ESTRADA.
Estrada. Cavalos. Dirceu, Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito troteando
em seus respectivos cavalos. Dirceu trotea devagar, observando os
pastos e as lavouras. Homens negros trabalhando nas lavouras.
DIRCEU (VOICE OVER)
Além de comprar animais, pensei, também, seriamente, em
comprar alguns homens negros para nos ajudar nas tarefas,
quais, a partir dessas compras, aumentariam os nossos
trabalhos. Quanto ao tráfico de humanos, algo pesava em
minha consciência. Aproveitei, portanto, para sondar os
rapazes.
Dirceu, pensativo, trotea lentamente e se põe no meio dos rapazes.
DIRCEU, num dado instante, frea o cavalo e olha para Josias, Cirilo,
Hipólito e MiliquitoJ, que, também, fream rapidamente os seus cavalos.
Cavalos. Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito parados na estrada, mirando
para Dirceu.
DIRCEU
Onde já se viu homens tornarem-se mercadorias de homens?
A liberdade é o que há de mais precioso a todas as criaturas de
Deus.
(tosse secamente)
162
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Jesus havia passado pela terra, redimido os nossos pecados e
ainda ignoramos as suas palavras? E a igreja? O que a Santa
Madre Igreja, a quem Ele confiou as Santas Escrituras, fazia
em prol da liberdade das pessoas negras? Nada!
Simplesmente, nada... Haveria Deus de nos vender aos
demônios?
Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito fazem sinal de "não" com a cabeça.
DIRCEU
(olha para eles)
Por que eu haveria de comprar humanos, só por que a pele
deles são diferentes da minha?
Dirceu abaixa a cabeça um pouco triste. Josias trotea, aproximando-se
de Dirceu.
JOSIAS
Eta, nhozinho não vai comprar humanos, só porque são
negros, nhozinho vai comprar humanos para que eles possam
viver livres em suas terras...
CIRILO
Feliz do negro que "nhozinho comprar, pois este terá gosto
de viver livre e trabalhar...
DIRCEU
Por que?
CIRILO
Ora, nhozinho, uma coisa é viver trabalhando; outra coisa é
trabalhar para viver...
DIRCEU
Não entendi, Cirilo...
163
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
HIPÓLITO
Deixa que eu explico, nhozinho. O que Cirilo quer dizer é que
faz gosto trabalhar para vossemecê, porque outros "nhores",
por aí, só querem tirar vantagens nos lombos dos pobres
negros. Se negro não trabalhar, não come e, mesmo não
comendo, tem de trabalhar.
Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito dão risadas. Estrada. Barulho de
cavalos troteando. Latidos de cachorros. Dirceu olha para trás e dá sinal
para Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito para que eles se encostem à
pequena margem da estrada. Dirceu, Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito
se colocam em fila indiana. Passam por eles TRÊS HOMENS
BRANCOS, de aproximadamente 35 a 38 anos, vestidos de vaqueiros,
montados em seus cavalos, arrastando um homem negro, jovem, magro
e alto estando, este, com as mãos amarradas. O HOMEM NEGRO
sangra pela testa. Cachorros latem, seguindos os cavalos. Margem da
estrada. Cavalos em fila indiana. Dirceu, Josias, Hipólito, Cirilo e
Miliquito se silenciam,ficam parados, olhando para o homem negro
sendo arrastado. Estrada. Os TRÊS HOMENS BRANCOS, em seus
respectivos cavalos, arrastam o homem negro até sumirem em uma
curva da estrada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Ao vermos um negro sendo arrastado por três homens,
naquela estrada, guardamos as nossas dores em algum lugar
do nosso corpo. Ninguém comentou nada. Foi aí, que,
cavalgando, silenciosamente, eu lembrei de ter no céu a minha
estrela. E eles, quem sabe, na terra, não poderiam ter também
as suas estrelas? Lembrei da história de Josias, da mulher que
esperava um filho dele e do amanhecer na gruta, quando ela
desapareceu de seus braços. Não vacilei, fiz a eles o seguinte
trato.
CORTA PARA
164
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Quando chegarmos a Rio das Mortes, vossas mercês
escolherão, cada um, uma mulata. Quero que vossas mercês
consultem o coração, porque farei gosto de que elas sirvam a
vossas mercês de esposas...
Hipólito, Cirilo e Miliquito tiram os chapéus da cabeça, erguem os
chapéus para o ar e dão risadas.
HIPÓLITO
E que essas mulatas sirvam também "nhozinho", na fazenda...
DIRCEU
Comprarei também dois ou três mulatinhos novos para nos
ajudar na criação das ovelhas. Eles serão os nossos pastores e
todos terão liberdade para correr livres pelas colinas, pelos
verdes pastos e pelas nossas montanhas altaneiras. Darei um
nome a cada um deles. Todos viverão como bons cristãos em
nossas terras.
Pequena estrada. Cavalos cavalgando pela pequena estrada. Dirceu,
Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito esporam os cavalos e saem
cavalgando velozmente pela pequena estrada, na qual se levanta uma
nuvem de poeira.
SEQUÊNCIA 67 – INT./NOITE. ESTALAGEM DO RIO DAS
MORTES. SACADA DA ESTALAGEM.
Sacada da estalagem. Dirceu e Josias sentados em um banco de madeira.
DIRCEU
Amanhã iremos à praça escolher as mulatas a quem vós
mercês devem tomá-las como esposas. Vós mercê irá escolher
uma, Josias? Quem sabe não pode lhe fazer bem uma
companheira...
165
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
(abaixa a cabeça e olha para Dirceu meio chateado)
É ordem de nhozinho, que devemos escolher as mulheres
para serem as nossas esposas?
DIRCEU
Não, não se trata de uma ordem, digamos, de uma sugestão.
Não quero que vós mercês vivam sozinhos, sem uma
companheira...
JOSIAS
É que nhozinho sabe que...
DIRCEU
Que o seu coração já tem uma dona, não é Josias?
Compreendo. O meu coração também tem uma dona. A de
vós mercê perdida em algum lugar da terra e a minha
escondida em alguma casa de Vila Rica...
JOSIAS
A mulher que nhozinho gosta está em Vila Rica sobre bons
tratos, a minha, coitada, além de prenha, deve estar
enfrentando serviços pesados, sei lá prá quem... Sabe,
nhozinho, eu ainda sonho com a Zenilda. Eu vivo como se
esperando algum sinal para ir ao encontro dela...
DIRCEU
Não se deve esperar por sinais, Josias. Deve-se agir rápido.
Quando a gente chegar na fazenda Ribeirão do Meio,vossa
mercê vai arrumar viagem, pegar o cavalo e cavalgar por todos
os lugares da redondeza para encontrar a sua Zenilda. Se por
acaso, ela estiver em algum cativeiro, numa situação difícil de
ser negociada, deixa que eu resolva o assunto. Nada de querer
fugir com ela ou fazer qualquer besteira. É só voltar para a
fazenda e nós pensaremos juntos, em o que fazer... Lembre-se
para qualquer situação, há de existir um antídoto...
166
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Sei disso nhozinho, vossemecê é homem bom... Vou fazer o
que nhozinho está falando. Eu vou deixar o meu coração falar
alto e o meu pensamento me contar onde está a danada da
Zenilda. Vou tá com ela e vou com ela criar o meu filho que
vai nascer...
REFLEXO DE LUZ NO PARAPEITO DA SACADA. UMA
CORUJA PIA.
SEQUÊNCIA 68 – EXT./DIA. PEQUENO LUGAREJO DE RIO
DAS MORTES. GRANDE PRAÇA ONDE HÁ UM MERCADO DE
ESCRAVOS.
Praça da igreja de São Francisco. Repicar de sinos da igreja de São
Francisco. Final de missa na igreja de São Francisco. PESSOAS
IDOSAS, HOMENS, MULHERES, JOVENS e CRIANÇAS saem da
igreja de São Francisco, espalhando-se pela praça e ruas dos arredores.
Grande praça. Na grande praça há um mercado livre de escravos.
NEGROS amarrados em coleiras de ferros. MULHERES NEGRAS
com pés e mãos atados. FAZENDEIROS da região comercializando
escravos na grande praça. Os FAZENDEIROS COMPRADORES
consultam as peles, os dentes, os olhos e corpos dos escravos. Visão
panorâmica da grande praça. Cavalos amarrados em cercas. Capatazes
com chicotes, próximos a alguns homens negros e mulheres negras,
recém comprados. Dirceu, Josias, Hipólito, Cirilo e Miliquito passeiam
pela feira da grande praça, observando o movimento. TRÊS JOVENS
NEGROS atados pés e mãos, caídos sobre a calçada. UM SENHOR
HOMEM BRANCO, de 60 anos de idade, grita pelo valor de vinte réis,
a cada um desses três jovens negros. Dirceu aproxima-se do senhor
homem branco negocia os três homens jovens, sem consultar-lhes
dentes, corpos, pés ou mãos. Os três jovens negros sentados no chão
amarrados os pés com uma corda, olham para Dirceu, Josias, Cirilo,
Hipólito e Miliquito, com um olhar de quem pede misericórdia. Dirceu
aproxima-se dos três jovens negros. Punhal na mão do senhor homem
167
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
branco. Dirceu pega o punhal da mão do senhor homem branco e corta
a corda que prende os pés dos três jovens negros.
DIRCEU
Eu os comprei para viverem livres em minhas terras. Vós
mercês vão gostar do lugar. Quero que vós mercês sirvam-me
como pastores, para cuidar do meu pequeno rebanho. Nas
minhas terras vós mercês irão viver livres, como vivem livres
os pastores nos campos.
Dirceu entrega o punhal para o senhor homem branco. Os três jovens
negros se entreolham, olham para Dirceu, sorriem e erguem as cabeças
balançando-as, afirmando um "sim".
UM DOS TRÊS JOVENS NEGROS
Inhozinho não vai se arrepender, eu e os dois, cá, vamos fazer
o que nhozinho precisar, lá na fazenda de inhozinho...
MILIQUITO
(cochicha aos três jovens negros)
A fazenda é um paraíso, tem até igreja para vossemecês
rezarem... Lá, todos os santos escutam a gente num canto e
outro...
DIRCEU
Levantem-se criaturas, levantem-se. Tudo o que vossas
mercês têm de fazer é seguir a gente e se sentirem livres desde
já. Nada de ter medo de ninguém.
DIRCEU
(olha para Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito)
Vamos lá, rapazes, vamos lá, para vós mercês escolherem as
suas mulheres...
Cirilo, Hipólito e Miliquito observam algumas mulheres negras à venda.
Dirceu observa compra feita por Cirilo, Hipólito e Miliquito. Josias está
168
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
parado em um canto da praça, conversando com os três jovens negros,
recém comprados. Cirilo, Hipólito e Miliquito parecem satisfeitos com
as três mulheres negras, recém compradas, As TRÊS MULHERES
NEGRAS têm entre 25 a 27 anos de idade e todas são muito bonitas,
tanto de feição, quanto de corpo.
DIRCEU (VOICE OVER)
Os rapazes, atendendo à minha promessa, cada qual escolheu
uma mulher. O meu amigo Josias, como já havia entregado o
seu coração à Zenilda, apenas assistia às nossas compras
servindo-se de companhia aos três jovens recém comprados.
Grande praça. Dirceu olha para Cirilo, Hipólito, Miliquito e os rapazes e
moças negros recém comprados na feira da grande praça.
DIRCEU
Agora, pessoal, vamos voltar para a estalagem da dona Vera e
esperar que o seu Diodato nos entregue os animais. Ainda
hoje, se Deus quiser, pegaremos a estrada para Ribeirão do
Meio...
SEQUÊNCIA 69 - INT./EXT./ DIA. RIO DAS MORTES. PORTA
DA "ESTALAGEM DE RIO DAS MORTES". ESTÁBULO.
Interna. Meio-dia. Sacada da estalagem de Rio das Mortes. Dona Vera
está na sacada, sentada em um banco tecendo um forro de mesa. Ela
levanta-se de ímpeto e olha para a rua. Movimento de pessoas na rua.
Dirceu, Josias, Cirilo, Hipólito e Miliquito, os três jovens negros e as
três mulheres negras, recém comprados, estão na porta da estalagem.
Dona Vera deixa o forro de mesa cair no chão e se aproxima do
parapeito da sacada, assustada.
DONA VERA
Esse homem deve ser louco. Será se ele está pensando que a
minha estalagem é uma senzala? Meu Deus, só falta ele querer
169
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
um quarto para toda essa "negrada". Nem pagando caro, vou
consentir isso... O tal do Dirceu parece um louco ou inimigo
querendo desmoronar a minha estalagem...
Dona Vera retroage a alguns passos. Ela cata o forro caído no chão,
embola-o de qualquer jeito entre os braços e sai do terraço. Rua. Sopro
de berrante. Dirceu e Josias olham para o final da rua. Bois, ovelhas e
cavalos. Diodato e dois vaqueiros conduzem o rebanho à frente da
estalagem.
JOSIAS
Mas não é o rebanho comprado por vossemecê, "nhô"
Dirceu? Olha só, "Tá" vindo lá, até parece festa...
Rebanho vindo em direção à estalagem. Todos olhando para o rebanho.
DIRCEU
Que beleza! Daqui a pouco pegaremos a estrada para Ribeirão
do Meio levando bois, vacas, ovelhas e cavalos...
Rua. Cavalos troteando devagar. Os dois vaqueiros de seu Diodato
atalham o rebanho pelas laterais da rua. Porta da estalagem. Cara feia de
mulher branca e gorda passando pela rua, apressada. Porta da estalagem.
Dona Vera aparece na porta da estalagem e segue até a rua e aproximase de Dirceu. Dona Vera faz cara de zangada.
DONA VERA
O senhor não me vai dizer que quer hospedar, cá, na minha
estalagem, toda essa negrada, vai?
DIRCEU
Não, senhora. Daqui a pouco iremos pegar a estrada para a
minha fazenda. Carecemos de comer alguma coisa gostosa.
Dá para nos servir uma grande ceia?
170
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DONA VERA
(fecha a cara, assustada)
Sirvo, sim, ao senhor e aos seu amigos, cá dentro. Os outros,
creio que comprados agora, lá na praça,não. Essa gente não
tem modos, não sabem comportar-se numa mesa e...
DIRCEU
Todos precisam comer, minha senhora, arranje cá um jeito,
pois a viagem será um pouco longa...
DONA VERA
O único jeito que posso dar é mandar servir a comida para
eles, lá no estábulo...
DIRCEU
Tudo bem, mande que sirva a todos nós, lá no seu estábulo...
DONA VERA
Mas o senhor e os seus amigos podem...
DIRCEU
Não sou diferente de ninguém, dona Vera. Qual a diferença
que faz entre comer num estábulo ou dentro da sua bonita
estalagem?
DONA VERA
Tá querendo me ofender, senhor?
(fecha a cara)
Deixa para lá, deixa... Haverá demora, mas vou ver o que posso fazer...
DIRCEU
Tudo bem, eu só vou receber aquele rebanho que está vindo cá, comer e
seguir viagem com os meus amigos...
DONA VERA
(olha para Dirceu e sorri)
171
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Tô quase me convencendo de que o senhor é um homem
caridoso... Acho que vou servir a comida para vós mercês e
todos os seus amigos, cá mesmo, dentro da estalagem...
DIRCEU
Não carece tanto sacrifício, sinhá Vera. Creio que no estábulo
é bem melhor. Eu estou com saudade do cheiro da fazenda,
do estrume do gado... Além disso, no estábulo eu ficarei a
vontade com o meu pessoal... Lá, todos nós comeremos a
vontade, até fartar...
DONA VERA
Tudo bem, vou lá ordenar para que apressem a comida...
DIRCEU
É bom mesmo, pois creio todos estarem com uma danada
fome...
PORTA DA ESTALAGEM ABERTA. DONA VERA ENTRA PARA
A ESTALAGEM.
Rua. Rebanho na frente da estalagem. Hipólito, Cirilo, Miliquito e Josias
estão entusiasmados. Eles reparam o rebalho. Cavalo. Diodato montado
no cavalo. Dirceu aproxima-se de Diodato. Ele e Diodato tiram os
chapéus e, simultaneamente, cumprimentam-se.
DIRCEU
Conforme prometeste, cá, está o meu rebanho...
DIODATO
Os seus rapazes conferiram o rebanho. Eles deram-se por
satisfeitos. Pensei que vossemecê estava apenas com os quatro
moços, mas estou vendo outros...
172
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Eu comprei três jovens para nos ajudar com o rebanho e mais
três mulheres para servirem de esposas aos meus rapazes...
DIODATO
Assim é que se faz... Em cada cabeça, uma sentença. Olha o
rebanho, cá. Todos os animais estão conforme combinamos.
DIRCEU
Encomendei uma ceia para a dona da estalagem, assim que
comermos, pegaremos a estrada. Está servido a ceiar conosco?
DIODATO
Não, não, quero ir até a casa de uma parenta da minha
senhora esposa e depois voltar logo para a minha fazenda... O
senhor Dirceu partirá quando?
DIRCEU
Hoje, assim que todo mundo fartar o "bucho". Dentro de
cinco ou seis dias, sem falta, quero estar na fazenda reunido
com toda a minha gente...
DIODATO
Vejo que a viagem é longa, seu Dirceu, mas gente demais
vossemecê tem para ajudar a conduzir o rebanho...Os animais
são mansos, não darão trabalho na estrada. Como está tudo
acertado e eu tenho de resolver uns negocinhos de família,
por cá, espero que façam uma boa viagem.
Cavalo. Diodato tira o chapéu e acena para Dirceu. Os dois vaqueiros
de Diodato fazem o mesmo. Diodato e os dois vaqueiros saem
galopando em direção ao centro da vila. Porta da estalagem. UM
GRINGO, senhor branco, baixo e gordo, olhos claros, de
aproximadamente 45 anos, aparece na porta. O gringo fala a língua
portuguesa, com dificuldade. O gringo olha para todos procurando por
Dirceu.
173
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
GRINGO
Quem é a senhora Dirceu?
Todos olham para o gringo. Dirceu olha para o gringo com certo
espanto.
DIRCEU
O senhor Dirceu, sou eu, por que?
GRINGO
O senhor Vera manda falar que comida está pronto. Ele
também mandou esse chave, disse que a senhora Dirceu pode
abrir o porta grande da mato ao lado e colocar as animais para
descanso...
Todos continuam olhando para o Gringo. Dirceu aproxima-se do
gringo e pega a chave.
DIRCEU
Obrigado, senhor...
GRINGO
Meu nome é John Carl, senhora...
O gringo dá as costa e entra para a estalagem. Dirceu cochicha aos
outros.
DIRCEU
Ele não é da colônia, é um estrangeiro e ainda está
aprendendo a falar a nossa língua...
JOSIAS
Coitado, ele está fazendo até confusão com o que é homem e
com o que é mulher...
174
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Todos dão risadas. Dirceu aproxima-se de Josias. Chave na mão direita
de Dirceu. Dirceu entrega a chave para Josias. Josias segue-se até a
cancela e abre-a. Cancela aberta. Todos ajudam a tocar o rebanho para o
pequeno pasto. Estábulo. Mesa. Panelas de comida e pratos na mesa,
dentro do estábulo. Todos se servem da comida. Eles enchem os pratos
de comida e se espalham, sentando-se em pedras e em um velho carrode-boi quebrado, jogado a um canto do estábulo.
SEQUÊNCIA 70 – INT./DIA. ESTRADA DE VOLTA À
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
Tarde. Estrada de volta à fazenda Ribeirão do Meio. Rebanho. Dirceu
troteando no meio do rebanho. Cirilo, Hipólito e Miliquito levam em
suas garupas as três mulheres negras, compradas em Rio das Mortes.
Hipólito e Miliquito tocam o rebanho à esquerda da estrada. Cavalos.
Os tr~es jovens negros, também recém comprados em Rio das Mortes,
cada um trotea em um cavalo.Os três jovens negros tocam o rebanho à
direita da estrada. Josias troteia, tocando o rebanho pelo fundo, ora ele
vai até o meio, até a esquerda e direita, controlando o rebanho.
DIRCEU (VOICE OVER)
A viagem, apesar de durar seis dias, foi um bocado divertida.
Só percebemos a chegada em nossas terras quando Josias
tocou o seu escandaloso berrante.
Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. A chegada na fazenda Ribeirão do
Meio, dá-se de forma festiva. Josias toca o berrante, Cirilo, Hipólito e
Miliquito tiram os chapéus e gritam. Bois e ovelhas berram, cavalos
relincham. Os três jovens negros e as três mulheres negras, recémcomprados, arregalam os olhos medindo toda a fazenda. Varanda.
Farias, Conceição e Sebastiana estão na varanda assistindo a chegada
deles.
DIRCEU
Terra nostra est! Sejam todos bem-vindos à nossa terra!
175
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cancela. Miliquito se apressa na frente para abrir a cancela. Josias
atravessa a cancela tocando o seu berrante. Em seguida passa Dirceu e
depois os demais. Farias, no quintal da frente da fazenda, faz das mãos
uma viseira, observando os novatos que acabam de entrar na cancela.
Ambrósio sobe na cerca do curral da fazenda para ver a chegada de
Dirceu e todos os companheiros de viagem.
AMBRÓSIO
Ué, parece que veio mais gente do que foi... Que será que
aconteceu? Inhô Dirceu cumpriu a promessa de quando disse
que ia trazer umas mulheres. Ichi, vai ter casamento de negro
na capela da fazenda... Eu só quero ver...
Quintal de frente da fazenda. Farias alegre, aproxima-se do pessoal que
está chegando de viagem.
FARIAS
Parece que tem gente nova chegando à fazenda... Creio que
"nhô" Dirceu comprou também gente lá em Rio das Mortes...
SEBASTIANA
Se ele comprou é por que vai precisar de muita gente para
trabalhar aqui...
FARIAS
Parece que ele trouxe algumas mulheres também...
CONCEIÇÃO
E não tá errado, nós aqui já estamos velhas, não é Sebastiana?
Sebastiana força as vistas, tentando ver as três mulheres que chegavam
com os homens da fazenda.
SEBASTIANA
É, mas ainda Deus nos dará tempo para ensinar a elas tudo
aquilo que o nhozinho gosta...
176
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CONCEIÇÃO
Eu nunca vi o nhozinho reclamar de nada... Tudo pra ele tá
bom...
Curral da fazenda. Ambrósio pula da cerca do curral para ver todos e
também os novatos chegando de viagem.
AMBRÓSIO
Ué, não é que nhô Dirceu trouxe mesmo mais gente... E o
rebanho de gado e de ovelhas parece bem aprumado...
Curral da fazenda. Ambrósio pula da cerca do curral da fazenda e sai
correndo para a direção da cancela de entrada da fazenda.
CORTA PARA
Passam-se alguns dias. Visão panorâmica da fazenda. Dirceu montado
em seu cavalo cavalga pelas campinas.
DIRCEU (VOICE OVER)
Olhei para a fazenda com uma grande felicidade. A nossa
família de trabalhadores coletivos aumentava-se. Eu, mais do
que ninguém, sonhava em modificar todo aquele espaço,
transformando-o numa verdadeira comunidade onde negros e
brancos formassem uma só família.
SEQUÊNCIA 71 - INT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
TERREIRO DO FUNDO DO QUINTAL DA FAZENDA.
Manhã. Quintal do fundo da fazenda. Josias e os três jovens negros,
recém comprados em Rio das Mortes andando pelo fundo do quintal da
fazenda. Os três jovens negros acompanham Josias no terreiro da
fazenda. Josias olha para um local descampado e cheio de pedras.
JOSIAS para e olha para os três jovens negros.
177
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Construíremos, cá, o chiqueiro das ovelhas. Creio que teremos
de fazer um muro de pedras. Mais adiante temos um pasto
reservado para elas comerem á vontade...
Josias mapeia o lugar. Ele tira da cintura um facão e entrega a um dos
três jovens negros.
JOSIAS
Vossemecê pega o facão e corta alguns galhos de árvores.Vou
ensinar a vossemecês a fazer estacas. Com as estacas
enfincadas no chão a gente mede e marca tudo... Assim fica
mais fácil.
Um dos três jovens negros, qual recebera o facão das mãos de Josias,
afasta-se um pouco e entra numa pequena mata. Josias e os outros dois
jovens negros pegam enxadas e começam a limpar o terreno.
Tarde. Quintal do fundo da fazenda. Dirceu e Ambrósio, a pé, chegam
ao fundo do quintal da fazenda. Eles observam Josias e os três jovens
negros trabalhando na construção do chiqueiro das ovelhas. Josias e os
três jovens negros estão construindo um grande muro de pedras. Josias,
ao ver Dirceu e Ambrósio se aproximarem dele e dos três jovens
negros. Josias tira o chapéu da cabeça e aproxima-se de Dirceu e de
Ambrósio. Os três jovens negros continuam trabalhando na construção
do muro de pedras.
JOSIAS
Tarde boa, sinhô Dirceu e Ambósio...
Dirceu e Ambrósio tiram os chapeus e cumprimentam Josias.
DIRCEU E AMBRÓSIO
Tarde boa, Josias.
178
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Adiantaram bem o serviço, por hoje, em Josias? Desse jeito
vamos inaugurar logo o chiqueiro das ovelhas...
JOSIAS
Os meninos são trabalhadores, sinhô Dirceu. Parecem que
eles querem colocar logo, cá, as ovelhas...
AMBRÓSIO
Aproveitaram mesmo o dia, Josias. Desse jeito, o chiqueiro
das ovelhas não vai demorar muito para estar pronto...
DIRCEU
É verdade, Ambrósio. Se Josias e os três garotos continuarem
nesse ritmo, levarão no máximo uma semana para findar todas
as tarefas...
AMBRÓSIO
Até carece festa, quando tudo ficar pronto...
DIRCEU
Então vós mercê, Ambrósio está escolhido para matar uma
ovelha bem gorda para a inauguração. Quero comer ovelha
assada no buraco...
AMBRÓSIO
Ué, nhozinho sabe do buraco de assar bode, lá no terreiro de
frente da casa?
DIRCEU
Outro dia meti o bedelho nele. Quando eu era criança, o
senhor meu pai gostava de reunir por cá alguns amigos e assar
bovinos, pacas, veados e outras caças naquele buraco.
179
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Então uma ovelha tem de morrer para fazer festa em
comemoração ao chiqueiro novo das outras...
DIRCEU
É, Josias, nós chamamos isso de circulo da vida. É preciso que
uns morram para que outros vivam...
JOSIAS E AMBRÓSIO DÃO RISADAS.
SEQUÊNCIA 72 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
TERREIRO DO FUNDO DO QUINTAL DA FAZENDA.
FADE IN e FADE OUT implicando vários dias para a construção de
um chiqueiro de ovelhas. Manhã. Terreiro do fundo do quintal da
fazenda. Pedras amontoadas. Josias e os três jovens carregando pedras e
construindo o muro, circulando o chiqueiro das ovelhas. Tarde.
Miliquito, Hipólito, Cirilo e Ambrósio construindo uma choça ou
cabana, próxima ao chiqueiro das ovelhas. Manhã. Sebastiana e
Conceição levando comida para Josias e aos três jovens negros comida e
água. Grande pedra. Josias e os três jovens negros sentados na grande
pedra, comendo.
ATENÇÃO: O final de toda a encenação da construção do chiqueiro
das ovelhas dá-se com as ovelhas berrando e entrando nas novas
instalações. Os três jovens negros, vestido de pastores são quem tocam
as ovelhas para dentro das novas instalações. Josias, Dirceu, Miliquito,
Hipólito, Ambrósio e Cirilo observam os três jovens negros tocarem as
ovelhas para dentro das novas instalações. Josias, Dirceu, Miliquito,
Hipólito, Ambrósio e Cirilo batem palmas para os três pastores. Visão
panorâmica do chiqueiro das ovelhas.
SEQUÊNCIA 73 – EXT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. TERREIRO DO FUNDO DE FRENTE DA FAZENDA.
180
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Árvore. Ovelha amarrada de cabeça para baixo em uma árvore. Punhal
nas mãos de Ambrósio para matar a ovelha amarrada de cabeça para
baixo em uma árvore. Buraco calçado com adobes, cheio de lenha.
Cirilo coloca fogo nas lenhas. Brasas acesas no buraco calçado de adobe.
Mesa com o carneiro temperado, dentro de uma grande gamela. Tarde.
Buraco com braseiro. Carneiro sendo assado espetado em um grande e
grosso espeto de ferro. Forquilhas á beira do buraco com braseiro para
virar o carneiro. Hipólito e Ambrósio assam o carneiro. Noite. Quintal
da fazenda. Labaredas de fogo. Fogueira crepitando. Dirceu, Josias,
Miliquito, Cirilo, Hipólito, Farias, Sebastiana, Conceição, Ambrósio e os
três jovens negros estão sentados à beira da fogueira. Carneiro assado
no buraco. As três mulheres negras servem para todos que estão
sentados à beira da fogueira, em pequenas gamelas, com farinha de
mandioca, pedaços do carneiro assado.
DIRCEU (VOICE OVER)
Para a felicidade de todos, programei uma festa de
inauguração das instalações das ovelhas. Embora ninguém na
fazenda levasse a vida de pangaio, não custava abrir uma
exceção para nos divertir um pouco, esquecendo do trabalho
sério, executado de sol a sol. A festa foi bem simples, com
algumas iguarias para comer e beber e uma fogueira para
clarear o quintal e também nos aquecer. Aproveitei a ocasião e
inventei dar nomes aos nossos três jovens, que, a partir de
agora, passariam a ser os nossos três pastores.
Pequenas gamelas nas mãos de todos, com pedaços de carne de carneiro
assado. Fogueira crepitando. Os três jovens negros estão sentados
próximos à fogueira. Dirceu pega um tição da fogueira e aproxima-se o
tição a cada um dos três jovens negros. Dirceu, Josias, Miliquito, Cirilo,
Hipólito, Farias, Sebastiana, Conceição, Ambrósio, os três jovens negros
e as três mulheres negras olham para Dirceu, com o tição da fogueira
nas mãos. Dirceu dá um sinal para que os três jovens negros fiquem de
pé, frente a ele. Os três jovens negros põem-se de pé. Dirceu olha para
os três jovens negros e ergue o tição.
181
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
A igreja batiza os seus cristãos, com água, eu, porém, os
batizarei com fogo. O fogo simboliza a energia, a vivacidade, a
chama da vida, qual mantém acessa em cada um de nós.
Dirceu dá um sinal, para que um dos três jovens negros se aproxime
dele. Um dos três jovens aproxima-se de Dirceu. Dirceu faz o sinal da
cruz sobre o corpo do jovem negro, com o tição.
DIRCEU
Vós mercê, será chamado, a partir de hoje, de Endimião. Um
jovem de beleza excepcional que dormia eternamente.
Endimião era o rei de Elis ou um pastor no Monte Latmos,
em Caria. Diz a história que, Selene, a deusa da lua,
apaixonou-se por ele e o visitava todas as noites, assim que ele
adormecia numa caverna.
Dirceu dá outro sinal, para que outro jovem negro se aproxime dele.
Outro jovem negro aproxima-se de Dirceu. Dirceu faz o sinal da cruz
sobre o corpo do outro jovem negro, com o tição.
DIRCEU
Vós mercê, será chamado, a partir de hoje, de Trácio,
homenageando, dessa forma o povo mais numeroso e mais
poderoso do mundo. No século V a.C., os trácios ocupavam
as regiões entre o norte da Grécia e o sul da Rússia. Espero
que os descendentes de vós mercê venham a ser igual ao povo
traciano, cheio de bravura, mas, porém, unido.
Dirceu dá um sinal ao último dos três jovens negros. O último três
jovens aproxima-se de Dirceu. Dirceu faz o sinal da cruz sobre o corpo
do último jovem negro, com o tição.
DIRCEU
O seu nome, prezado jovem, será Alceu. Alceu, segundo a
história, é pai de Anfitrião, o marido de Alcmena.
182
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Fogueira. Dirceu atira o tição na fogueira. Miliquito levanta-se de onde
está e, todo entusiasmado, aproxima-se de Dirceu.
MILIQUITO
Nomes bonitos, nhozinho, os moços ficaram até satisfeitos...
Se junto a Deus do céu, nhozinho tem o poder de dar o nome
de alguém, creio que poderá também mudar...
DIRCEU
(olha para Miliquito e dá risadas)
Uai, sô, quer mudar o seu nome Miliquito? Mudar um nome é
como se a gente quisesse também mudar uma estrela do céu...
MILIQUITO
Não, não é meu nome, não nhozinho...
(aponta com o dedo para uma das três mulheres negras
compradas em Rio das Mortes)
É que o nome daquela é Caliandra, onde se viu nome mais
esquisito e difícil?
Caliandra, uma das três mulheres negras olha para Miliquito e sorri. Ela
para e fica observando o que Miliquito e Dirceu estão falando sobre o
nome dela.
DIRCEU
Caliandra! Ora, Miliquito, esse nome não é estranho. É um
nome bonito e até admirável. Caliandra é o nome de uma
planta ornamental.
MILIQUITO
(tira o chapéu, coça a cabeça e dá risadas)
Um nome de planta?
183
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Sim, um nome de planta! Mas por que vós mercê está
preocupado com o nome da moça, se ela foi escolhida em Rio
das Mortes, pelo Cirilo?
Josias olha para Cirilo. Caliandra e Cirilo olham-se mutuamente.
Caliandra abaixa-se a cabeça e aproxima-se de Dirceu e Miliquito.
CALIANDRA
Ele implicou com o meu nome, nhô Dirceu. Vive dizendo
para o Cirilo, que o meu nome é difícil. Esse nome quem me
deu foi uma sinhazinha, lá na fazenda Canastra. A sinhazinha
tinha lá seus quinze anos e disse que tinha uma amiga com
esse nome... Depois, a danada da sinhazinha, só porque não
fiz um de seus caprichos, acabou pedindo ao pai que me
vendesse... Se nhô mudar o meu nome e Deus no céu dizer
amém, isso fará bem a minha alma...
DIRCEU
Então vós mercê quer outro nome Caliandra?
Caliandra olha para Dirceu e balança a cabeça afirmando "sim".
Fogueira. Miliquito corre até a fogueira, pega um tição aceso e entrega-o
para Dirceu.
MILIQUITO
Aqui tá o tição, nhozinho, faz igual fez com os outros...
Tição nas mãos de Miliquito. Dirceu olha para Miliquito com um olhar
sério.
DIRCEU
Não, não preciso do tição Miliquito, pode voltá-lo para a
fogueira.
184
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Miliquito volta o tição para a fogueira. Dirceu coloca as mãos na cabeça
de Caliandra. Todos olham para Dirceu e Caliandra.
DIRCEU
Deus escreverá no grande livro do céu o teu novo nome,
Caliandra. Tu serás, a partir de hoje, conhecida por todos da
terra e do céu com o nome de Eulina, a que a todos traz na
lembrança, a ninfa, filha de Aucolo, qual, foi a grande paixão
do deus Jove.
Fogueira. Sanfona. Farias toca-se a sanfona. Todos cantam modinhas ao
redor da fogueira.
FOGUEIRA APAGADA. OUVE-SE O CANTAR DO GALO.
SEQUÊNCIA 74 – EXT. /INT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Manhã. Curral. Vacas apartadas. Dirceu, Miliquito e Cirilo estão no
curral Eles tiram leite das vacas. Galinheiro. Galinhas nos ninhos. Farias
com a cesta nas mãos cata os ovos das galinhas. Sebastiana, conceição e
Eulina preparam o café matinal. Pátio do quintal. Vassoura feita de
ramos verdes. Inácia e Quitéria varrem o terreiro de frente da fazenda.
Josias, Ambrósio e Hipólito tocam os bois no pasto. Muro de pedras.
Chiqueiro das ovelhas. Ovelhas pastando. Os três pastores, ALCEU,
ENDIMIÃO e TRÁCIO, sentados na porta da pequena choça ou
cabana, vigiam as ovelhas. Casarão da fazenda. Cozinha. Leiteiras no
chão, próximas à mesa. Mesa com o café e uma enorme assadeira na
mesa contendo um bolo de puba. Dirceu, Miliquito, Ambrósio, Josias,
Hipólito e Farias estão sentados à grande mesa. Conceição e Inácia
servem café para eles.
DIRCEU (VOICE OVER)
Os dias seguintes foram de união, criatividade e solidariedade
que se somavam ao trabalho como arte do homem em todas
185
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
as suas realizações. Eu aprendia com eles os ofícios e
admirava o quanto eles preocupavam com a perfeição em
tudo o quê eles faziam.
SEQUÊNCIA 75 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Tarde. Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado na cama observando o
leque, qual havia recebido de Tomázio, em Vila Rica. Dirceu observa as
letras góticas gravadas no leque. Cancela da fazenda Ribeirão do Meio.
Dirceu encontra-se com Josias perto da cancela da fazenda Ribeirão do
Meio.
DIRCEU (VOICE OVER)
Numa tarde, no meu quarto, ao sentir-me só, deitei-me no
catre e pensei na gazela de Vila Rica. Peguei o leque da moça e
fiquei a repará-lo. Nele havia as iniciais "AM" gravadas a fogo,
em letras góticas. "M" eu sabia que era de "Marília" e "A”? Aí
é que estava o mistério. Pensei um pouco e acabei inventando
uma viagem a Vila Rica. Procurei por Josias e pedi a ele que
arriasse o meu cavalo para eu fazer a viagem, na manhã
seguinte.
Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela da entrada da fazenda.
Dirceu e Josias estão frente à cancela da entrada principal da fazenda
Ribeirão do Meio.
DIRCEU
Josias, amanhã, madrugada, quero pegar a estrada para Vila
Rica. Quero que vós mercê prepare os nossos cavalos...
JOSIAS
(tira o chapéu, coça a cabeça e responde num tom de angústia)
Sinhozinho há de pensar que o amigo Josias não está
querendo cumprir as suas ordens...
186
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não entendi...
JOSIAS
É que em Rio das Mortes, sinhozinho pediu para que Josias
escolhesse uma mulher para servir-lhe de esposa, mas como o
coração de Josias, já se sente ter uma dona, ele não obedeceu
"nhozinho". Agora, "nhozinho" quer Josias como
companheiro de viagem, pelas bandas de Vila Rica e...
DIRCEU
E o meu amigo teme a estrada e uma tocaia inesperada dos capangas de
Dom Miguel?
JOSIAS
(bate a mão direita no peito)
Presentimento ruim nhô que bate cá na alma do negro.
DIRCEU
Compreendo, Josias, eu compreendo. Mas o amigo não pode
ficar feito um sapo, embirrado no poço, enquanto as coisas
acontecem no mundo. É preciso fazer o que falei a vós mercê.
Pegar o cavalo, seguir viagem e encontrar a Zenilda... O resto
fica por minha conta... O amigo sugere um dos rapazes para
seguir-me nesta viagem?
JOSIAS
(olha para a campina, avista o morro e coloca o chapéu na
cabeça)
Entre os rapazes, o mais experiente para viagem e capaz de
defender sinhozinho das emboscadas é o Cirilo...
DIRCEU
Então eu mesmo farei o meu convite a ele...
187
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 76 – EXT./ DIA. ESTRADA DO ITA-CORUMI.
VILA RICA. RUAS DE VILA RICA. CASA DE CARLOS. SALA DE
VISITA.
Madrugada. Cavalos de Dirceu e de Cirilo troteando. Cirilo frea o cavalo
e olha para um lado e outro. Dirceu também frea o cavalo e olha para
Cirilo. Serra do Ita-corumi. Olhar de Cirilo voltado à serra do Itacorumi.
CIRILO
Não se assuste não nhozinho, é que bateu, cá, na minha
cabeça, a ideia de pegar a outra estrada...
DIRCEU
Outra estrada? Outra estrada para se chegar a Vila Rica?
CIRILO
É! Não sei se nhozinho sabe, existe outra estrada. Por ela,
chega-se mais rápido em Vila Rica... Algumas pessoas dizem
que nela pode haver perigos...
DIRCEU
E que estrada é essa, Cirilo? Se ela leva os homens destas
bandas com mais rapidez para Vila Rica, não há como não
segui-la... Perigos, Cirilo, existem em todos os lugares...
CIRILO
Nhozinho tá vendo o morro?
Cirilo aponta para Dirceu a serra do Ita-corumi. Visão panorâmica da
serra. Dirceu olha para a serra e faz "sim" com a cabeça
DIRCEU
A serra do Ita-corumi?
188
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CIRILO
Basta subir, contornar o morro e, numa certa altura, descer e
entrar em Vila Rica...
Cirilo espora o cavalo e, seguindo-se na frente chega á uma estrada
estreita, qual entrada se dá quase fechada pelo mato. Dirceu o
acompanha. Dirceu e Cirilo fream os cavalos, observam a entrada da
estrada e, em fila indiana, seguem viagem pela serra do Ita-corumi.
DIRCEU (VOICE OVER)
O morro, ou a serra, ficava entre os rios do Carmo e dos
Prazeres conhecida como serra do “Ita-corumi”, significando
na língua dos índios "pedra-menina". Desde criança eu
escutava as pessoas falarem que essa serra ligava Minas Gerais
à Bahia, agora eu estava a crer nisso, principalmente ao saber
que ela tornava a minha fazenda mais próxima de Vila Rica e,
se assim fosse, eu também estaria mais próximo da minha
jovem e doce Marília.
CIRILO
Esta estrada nhô, só é pequeninha assim, no início, depois ela
fica maior e dá para quatro ou até cinco cavalos ficarem rente
uns aos outros...
A estrada estreita, aos poucos, torna-se ampla. Cirilo, sem que Dirceu
perceba, coloca novamente o seu cavalo páreo ao dele. Dirceu observa
Cirilo ao seu lado e dá risadas.
DIRCEU
Uai, nem percebi que a estrada já estava crescendo. Então, a
partir daqui qualquer tropeiro se sente seguro, Cirilo.
CIRILO
É o que falei pra nhozinho, acho que a estrada foi feita assim
para enganar as pessoas...
189
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Como foi que vós mercê descobriu esta estrada, Cirilo?
CIRILO
O outro patrão andava por ela. Eu sempre seguia viagem com ele. Eu
tenho costume com esta estrada, mas, agora, não sei por que, não quero
espantar nhozinho, mas eu estou sofrendo de uns arrepios, daqueles de
avisos ruins...
DIRCEU
(olha para Cirilo, naturalmente)
Não deve ser nada, Cirilo, é a altura da serra. Quanto mais
subimos a serra, mas sentiremos frio...
CIRILO
(assustado, tira o chapéu e se benze com o sinal da cruz)
Não gosto disso, Deus é testemunha de que não gosto...
DIRCEU
Eu não sabia sobre este trajeto. Durante a viagem constatei
que esse caminho íngreme era secreto e que, sem dúvida,
vinha a fazer parte dos planos do mísero inconfidente, exproprietário da minha fazenda. Lembrei-me também do
infeliz alferes, Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido
como Tiradentes.
CIRILO
(frea o cavalo e olha para Dirceu um pouco apavorado)
Tô sentindo frio, nhozinho, tô cada vez mais arrepiado, deve
ser alma penada me seguindo...
DIRCEU
(olha para Cirilo, ri dos modos dele e prossegue troteando
pela estrada da serra do Ita-corumi)
No início da viagem pensei em desistir, depois, não sei por
que, a viagem tornou-me prazerosa. Ao contornar a serra,
190
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
percebi a natureza invadir-me a alma, causando-me uma
sensação diferente, como se rejuvenescesse o meu espírito e o
meu corpo. Calado, eu inventei que eu subia para o céu em
busca da minha estrela. Sorri ao lembrar que ela não estava no
céu, mas na terra, em Vila Rica...
Cavalos. Dirceu e Cirilo contornam a serra do Ita-corumi, descendo-a.
CIRILO
Se nhozinho prestar atenção, na próxima curva, já dá para
avistar a freguesia. Bastam duas ou três curvas e já estaremos
entrando em Vila Rica.
Final de uma curva. Visão panorâmica de Vila Rica Dirceu solta um
grito e espora o cavalo. Vila Rica. Dirceu e Cirilo, a trotes lentos, entram
em Vila Rica. Porta da casa de Carlos. Dirceu e Cirilo fream os cavalos
na frente da casa de Carlos.
DIRCEU (VOICE OVER)
Entramos na vila a trotes lentos e nos conduzimos até a casa
de Antonio Baeta, um grande amigo meu, magistrado em
Direito, pela Universidade de Coimbra.
Dirceu e Cirilo, acompanhados por Carlos, um jovem de
aproximadamente 23 anos de idade, magro, alto e tem olhos claros. A
fala de Carlos é carregada por um leve sotaque da língua portuguesa de
Portugal. Carlos direciona Dirceu e Cirilo a uma grande sala. Carlos
recolhe os chapéus de Dirceu e Cirilo, colocando-os num cabide da sala.
Carlos, Dirceu e Cirilo sentam-se em confortáveis poltronas. Carlos e
Dirceu estão sentados mais próximos um do outro. Carlos com o jeito
de falador, entusiasmado, fala.
CARLOS
Creio, meu amigo Dirceu, que há muito tempo vós mercê não
se tem notícias do Antônio Baeta, pois ele, desde quando
retornou ao Brasil, assumiu o cargo de comendador na
191
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
capitânia de Pernambuco. Lá,segundo me disseram, ele está a
assumir a difícil função de defender as terras reconquistadas
pela coroa portuguesa, desde o fim das capitanias hereditárias.
Não sei se sabe, mas as reformas do Marquês de Pombal,
desde 1759, ainda causam polênicas pelo interior do Brasil.
DIRCEU
Isso lá é verdade, Carlos. Há tempo não tenho notícias nem
mesmo de vossa mercê... Creio que a última vez que nos
encontramos faz quatro ou cinco anos, quando acompanhei o
senhor meu pai, até aqui, para tratar de negócios com o vosso
pai... (pausa)Quanto às reformas do Marquês de Pombal,
muita gente tem sofrido irreparáveis danos...
CARLOS
Segundo o primo, Antônio Baeta, as terras que pertenciam a
Duarte Coelho, deveriam pertencer ao povo de Pernambuco,
porém o rei dizima a todos cobrando impostos por todos e
qualquer tipo de produto manufaturado... Os holandeses, a
quem o povo dessa companhia soma os lucros, são
constantementes vigiados pela coroa real... (pausa) Voltandose ao assunto que nos interessa, creio que, desde quando o
senhor vosso pai esteve aqui, nunca mais nos encontramos.
Não sei se vós mercê sabe, mas desde quando o senhor meu
pai faleceu, não tenho ocupado de outras coisas, senão dos
interesses da família. Há tempo, alguns da família tentam
convencer-me a deixar a colônia e embacar para Portugal,
porém, tanto a viagem, quanto o clima europeu, a mim,
nunca fizeram bem. Prefiro viver aqui, a servir a todas as
pessoas de bem. A esposa do meu pai, juntamente com a
minha tia e meus irmãos, lá estão. Tenho recebido notícias de
que todos já se aprimoraram por lá. A isso, eu dou graças a
Deus, pois quando eles lá chegaram, por alguns tempos,
ficaram feito o rei, sempre pedindo dinheiro e gastando toda a
nossa pacata herancinha...
192
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Se o ouro esgotar e a vossa família desfazer-se das minas, a ti
não será tão difícil. És um médico talentoso, meu amigo, Vila
Rica inteira sabe disso e creio não querer perder-te. Pacientes
nunca há de faltar para ti...
CARLOS
Ultimamente tenho me entregado às farras, às reuniões
noturnas de caráter musical. Aqui o que um médico faz, as
negras parturienses fazem muito bem.
(cochichando para Dirceu e Cirilo)
Ultimamente, nunca vi em outro ligar nascer tantas crianças
como neste lugarejo...
DIRCEU
(dá risadas)
Ora, pois, para se ter uma grande nação é preciso de
contigentes.
DIRCEU
(levanta-se e ergue a voz de forma engraçada)
As crianças de hoje, serão o futuro desta colônia...
CARLOS
Ou da nação portuguesa, porque a todos competem servir ou
servir ao rei e ao povo luso...
DIRCEU
Creio que as coisas mudarão com o tempo. Crianças não
nascem por acaso. Decerto, cada uma delas devem receber de
Deus uma missão importante, quem sabe, entre essas missões,
tornar-se o Brasil livre de Portugal.
CARLOS
Deixamos o entusiamo de lado... As coisas haverão de
acontecer com o tempo.
193
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
(faz sinal de "psiu" e bate a mão na parede)
Os adobes são grossos, senhor Dirceu, mas têm ouvidos... De
médico a minerador, não sei se vós mercê tomou partido,
tornei-me proprietário de um grande comércio.
DIRCEU
(demonstra-se surpreso)
Então, está o meu amigo Carlos a tocar um comércio?
CARLOS
Comprei o armazém da família do Gurmecindo. O danado do
português apaixonou-se por uma mulata, comprou-a de seu
dono, largou esposa e filhos, amancebou-se com ela e ambos
fugiram para o Rio de Janeiro. As dívidas foram muitas e a
família para se ver livre dos cobradores, venderam a mim o
comércio...
Entra na sala uma CRIADA, mulata alta, magra e sisuda. Bandeja nas
mãos com xícaras e bule com café. A Criada serve o café para Dirceu,
Carlos e Cirilo. Mesinha em um dos cantos da sala. A criada coloca a
bandeja com o bule na mesa e se retira da sala. Dirceu, Carlos e Cirilo
tomam-se do café.
DIRCEU (VOICE OVER)
Quando Carlos interagiu-me em ter se convertido ao
comércio de secos e molhados, logo percebi que, naquela
manhã, ele deveria estar pronto para atender a sua freguesia.
Entre uma xícara de café e outra, fi-lo contar para mim sobre
a jovem Marília. Ele a conhecia. Em Vila Rica todo mundo
conhecia todo mundo e sabia prestar informações sobre quase
tudo a respeito dos moradores.
CORTA PARA
194
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CARLOS
O pai de dona Marília chama-se Dom Manuel e, desde
criança, talvez por brincadeira, comentam-se que o senhor pai
dele sempre o chamava de "dom". Alguns diziam que ele
sonhava em fazer o filho rei do Brasil, inventando chamá-lo
de "dom Manuel", impondo ao filho uma forma de
tratamento qual exigisse o respeito de todos. Há poucos anos,
dom Manuel ficou viúvo. A esposa dele morreu devido a uma
doença incurável, qual custou muitas sangrias e noites
incansáveis de dores e tormentos a ela e a família. Dom
Manuel era um minerador, agora, segundo consta nos planos
dele, ele se tornará um fazendeiro...
DIRCEU
(demonstra-se um pouco impaciente)
E dona Marília? Conte-me o que vós mercê sabe sobre ela...
(ajeita-se confortavelmente na poltrona).
CARLOS
(sorrindo, observa a impaciência de Dirceu)
Calma, calma, prezado amigo... Bem, se queres saber sobre a
dona Marília, tenho algumas informações. Conheço bem a
família dela, fui médico durante toda a doença da esposa de
Dom Manuel...
(tosse secamente)
Dona Marília, a adorável dona Marilia é uma cachopa de
dezessete anos de idade e aguarda, conforme promessa do pai,
a vinda de um jovem pretendente da Itália, para casar-se com
ele...
DIRCEU
(coloca-se novamente de pé)
Isso é verdade? A Marília é uma moça comprometida a um
estrangeiro?
195
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Carlos levanta, aproxima-se de Dirceu e o faz sentar novamente na
poltrona. Dirceu senta-se na poltrona. Carlos senta-se na poltrona ao
lado dele.
CARLOS
Contei-lhe o que sei. Mas na vida, prezado amigo, nem tudo
se perde. Se estas a gostar da dona Marília e ela a ti
corresponder, nada impedirá que vós mercês possam ser
felizes...
DIRCEU
Isso cá é verdade. A vida não nos dá nada de graça. É preciso
arregaçar a manga e ir á luta. Quando se trata de algo ligado ao
coração, creio que as próprias emoções dão jeito de resolver
tudo...
Carlos levanta-se da poltrona e vai até a janela. Ele expia o lado de fora
da janela. Rua. Pessoas passando nas ruas. Alguns comércios abertos.
Carlos olha para Dirceu um pouco tenso.
CARLOS
As portas do comércio estão a abrir e os concorrentes
passarão-me a perna, senhor Dirceu...
Dirceu levanta-se rápido da poltrona. Cirilo faz o mesmo. Dirceu e
Cirilo se colocam em pé. Carlos, portanto, continua na janela.
DIRCEU
Ao bom entendedor meia palavra basta! Estou a roubar o seu
precioso tempo, não é senhor Carlos?
CARLOS
Eu gostaria que isso não fosse um roubo, pois é sempre bom
investir os nossos preciosos tempos para estar com os nossos
melhores amigos... Pena que a responsabilidade nos chama e a
vida nos enche de obrigações e deveres...
196
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu olha para o cabide e faz um sinal para que Cirilo pegue os
chapéus. Cirilo dirige-se ao cabide e pega o chapéu de Dirceu e o dele.
DIRCEU
Agradeço pela modéstia. Mas ainda creio que o amigo tenha
de gastar a maior parte do dia em seu comércio. Dessa forma,
não só o amigo ganha, mas todos de Vila Rica. Afinal um
concorrente a mais é sempre bom para quem compra...
CARLOS
Isso lá é verdade...
Carlos dirige-se até o cabide e pega o chapéu. Porta. Dirceu dirige-se até
a porta acompanhado por Cirilo. Carlos coloca o chapéu na cabeça e
dirige-se até a porta, abrindo-a. Porta aberta. Dirceu, Cirilo e Carlos
saem pela porta.
CAPÍTULO 5
SEQUÊNCIAS 77-94
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Rosa
Cirilo
Tropeiros (espanhóis)
Farias
Miliquito
Josias
Ambrósio
Sebastiana
Hipólito
Conceição (morta)
Caliandra
Inácia
197
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Quitéria
Homem negro de 31 anos
Homens negros e mulheres negras
Capataz
Jesus Cristo
Homem negro, forte e beiçudo (servo do Coronel)
Duas moças negras e bonitas (servas do Coronel)
Dois estrangeiros (gringos) deitados nas redes da casa do Coronel.
Coronel
Gringo
Padre Rocha
Vívila
Dom Manuel
Dono do Armarinho (em Mariana)
Mulatinho
Mulheres brancas e elegantes (em Mariana)
Laura
Marília
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 40.
SEQUÊNCIA 77 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA.
Ruas de Vila Rica. Movimento de pessoas nas ruas de Vila Rica. Cavalos
amarrados em postes de madeiras. HOMENS BRANCOS entrando e
saindo dos comércios. Vila Rica, finalmente, ganha uma aparência de
Paris, no auge do seu desenvolvimento. Dirceu e Cirilo observam todo
o movimento de Vila Rica. Rosa está andando distraidamente em uma
das ruas de Vila Rica. Dirceu vê Rosa. Olhos de Dirceu seguindo Rosa.
Dirceu dá um sinal para Cirilo e os dois cavalgam em direção de Rosa.
Rosa assusta-se ao ver Dirceu e Cirilo irem à direção dela. Rosa pula em
um degrau de uma calçada. Dirceu aproxima-se dela apertando a rédea
do cavalo. O cavalo dá um pinote. Rosa, com os braços abertos,
198
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
assustada, encosta-se na parede de um casarão. Dirceu olha para Rosa,
todo satisfeito.
DIRCEU
A mocinha lembra-se da minha pessoa?
ROSA
(ainda assustada, arregala os olhos e respira aliviada)
É o moço... O moço que dona Marília e eu vimos um dia no
armazém do português...
DIRCEU
Isso, mesmo, vê que a mocinha tem uma excelente memória...
ROSA
(ainda encostada na parede do casarão
ajeitando-se o corpo)
Ué, o moço não veio mais aqui não? Por quê?
DIRCEU
(entusiamado)
Então a sinhazinha ainda se lembra de mim?
ROSA
Claro! Eu e a dona Marília procuramos vossemecê por aí
algumas vezes...
DIRCEU
(alegre e surpreso)
É mesmo? E por que vós mercê e a sinhá Marília procuram
por mim nesta cidade tão grande e cheia de gente? A sinhá
Marília não tem ainda nenhum outro pretendente?
ROSA
(sorri, olha para os lados, coça os calcanhares e levanta a
cabeça timidamente)
199
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Sei disso não. Só sei que a sinhazinha disse que o amor é coisa
do coração, não é coisa arranjada não. O pai dela é que faz
gosto do casamento, mas ela mesma...
DIRCEU
Eu preciso ver a sinhazinha, como faço?
ROSA
Num falei que o moço quer saber demais? Tá bom, vou falar...
A sinhá Marília tá na casa da dindinha dela, a sinhá Berta.
Num sei se sinhozinho conhece é uma velha costureira da
vila...
DIRCEU
(impacientemente coloca o chapéu na cabeça e afrouxa a rédea
do cavalo)
A dona Marília está na casa da madrinha dela? A madrinha
dela chama-se sinhá Berta? Eu a encontrarei, eu a
encontrarei...
Rosa diz "sim" com a cabeça. Dirceu dá um rápido sinal para Cirilo e
ambos, sem se despedirem de Rosa, saem cavalgando apressados pelas
ruas de Vila Rica. Logo Dirceu frea a rédea do cavalo, observa as ruas e
se vê um pouco confuso e olha para Cirilo.
DIRCEU
A costureira? A madrinha ou dindinha de dona Marília? Quem
seria ela, onde morava essa senhora naquela cidade?
Dirceu e Cirilo cavalgam pelas ruas em trote lento. Dirceu aproxima-se
de uma pessoa e outra para obter informações sobre a casa da costureira
Berta. Ninguém sabe informá-lo. Dirceu e Cirilo troteiam entre uma rua
e outra, perdidos. Casarões. Janelas. Olhar de Dirceu sobre as casas de
Vila Rica. Dirceu frea o cavalo e olha para Cirilo.
200
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Ora, Cirilo, eu sou um tolo mesmo. Eu estava crente de que
nesta cidade se encontrava tudo e todos com facilidade.
Deixei a Rosa ir sem despedir-me dela e sem buscar mais
informações sobre a bendita casa da costureira...
SEQUÊNCIA 78 – EXT. DIA. ESTRADA DO ITA-CORUMI.
Estrada da serra do Ita-corumi. Dirceu e Cirilo estão cavalgando pela
estrada da serra do “ita-corumi”. Ao contornar a serra eles encontram
alguns tropeiros descansando debaixo de uma árvore. UM DOS
TROPEIROS, um senhor de aproximadamente 50 anos, ao ver Dirceu
e Cirilo, troteando em direção deles, acena para eles e pede uma
informação, misturando o espanhol com a língua portuguesa. Os
DEMAIS TROPEIROS procedem-se tranquilos e calados, apenas
olhando para Dirceu, Cirilo e os seus respectivos cavalos. ALGUNS
TROPEIROS, com alforjes pendurados no pescoço, enfiam as mãos
dentro dos alforjes e pescam pedaços de carne, comendo-os com
avidez. O um dos tropeiros aproxima-se de Dirceu e Cirilo.
UM DOS TROPEIROS
Nosotros inventamos subir esta montaña para el futuro de la
visión de algún pueblo quieres venir a la Villa Rica .. Creo que
estamos perdidos, los pasajeros pueden los informar dónde se
encuentra la Villa Rica o en otro pueblo cercano?
DIRCEU
Estão no caminho certo, senhor. Basta vossas senhorias
contornarem a serra e logo avistarão a freguesia. A estrada
daqui por diante não é tão íngreme, como a que vossas
senhorias já devem ter enfrentados...
UM DOS TROPEIROS
(solta um grito de alegria)
Gracias, señores y bueno viaje.
201
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu e Cirilo olham para o um dos tropeiros e dão risadas. Cavalo de
Dirceu. Alforje pendurado na sela. Dirceu enfia a mão dentro do alforje
e retira um pedaço de rapadura e uma pequena botija com água. Dirceu
aperta a rédea do cavalo e entrega ao um dos tropeiros o pedaço de
rapadura e a botija com água. O um dos tropeiros recebe o pedaço de
rapadura e a botija. Ele entorna a botija na boca.
UM DOS TROPEIROS
Gracias, señor. Agua... Yo estaba muy necesitado de agua...
O um dos tropeiros devolve a botija para Dirceu. Dirceu levanta a
botija, oferecendo aos outros tropeiros. Os outros trpeiros fazem "não"
com as cabeças. Alforje na sela, Dirceu nfia a botija no alforje e olha
para Cirilo. Dirceu e Cirilo acenam as mãos aos tropeiros. Dirceu e
Cirilo afrouxam as rédeas dos cavalos e saem galopando pela estrada.
Nuvens de poeiras, ao virar a primeira curva da estrada.
SEQUÊNCIA 79 - EXT./INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. VÁRIOS.
Noite. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela principal da fazenda. Dirceu
e Cirilo aproximam-se da cancela montados em seus cavalos. Cirilo abre
a cancela. Ao atravessarem a cancela, Dirceu e Cirilo avistam todos da
fazenda quietos, cabisbaixos e tristes. Candeias acesas na varanda do
casarão. Sebastiana está encostada em um canto da varanda, rodeada por
Eulina, Inácia e Quitéria. Farias, Ambrósio. Miliquito e Josias sentados
em círculo ao redor de uma fogueira crepitando no quintal de frente da
fazenda. Dirceu, ainda montado no cavalo, aproxima-se da varanda e
cumprimenta a todos. Todos respondem apenas balançando a cabeça.
Farias levanta-se do tamborete. Cachimbo na boca de Farias. Baforadas
de fumaça pelo ar. Farias sai de perto da fogueira indo ao encontro de
Dirceu. Ao aproximar-se de Dirceu, Farias tira o chapéu, aperta-o no
peito e olha para o céu escuro. Dirceu fita-o com certa preocupação.
Cavalo. Dirceu salta do cavalo e o entrega a Cirilo. Cirilo também salta
do cavalo, segura as rédeas dos dois cavalos e fica observando tudo em
202
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
um dos cantos do terreiro, próximo à varanda. Farias aproxima-se de
Dirceu falando com uma voz trêmula.
FARIAS
Sinhozinho passou o dia fora e ninguém trabalhou hoje na
fazenda.
Dirceu estranha a voz triste de Farias. Josias aproxima-se de Dirceu, que
se prepara para entrar na varanda.
JOSIAS
É que Conceição morreu...
DIRCEU
(olha para Farias e Josias, meio assustado, tira o chapéu da
cabeça e reverencia ao céu)
A Conceição? A minha velha preta morreu?
Canto do terreiro da fazenda. Cirilo parado segurando os dois cavalos
pelas rédeas. Assustado, Cirilo arregala os olhos, tira o chapéu e coça a
cabeça. Cirilo anda em direção à fogueira crepitante, onde estão
Hipólito, Ambrósio e Miliquito.
CIRILO
Senti arrepio o dia todo, desde a ida para Vila Rica, até a volta.
Até reclamei para nhozinho. Ele dizia que o arrepio era por
causa da altura da serra...
Dirceu olha para Cirilo e faz "sim" com a cabeça. Cirilo e Hipólito se
afastam da varanda e ficam confabulando em um dos cantos do quintal
de frente da fazenda. Miliquito e Ambrósio recolhem os cavalos, saindo
do quintal. Dirceu pendura o chapéu em um galho de uma pequena
árvore e fica a reparar Sebastiana. Dirceu entra na varanda indo ao
encontro de Sebastiana.
203
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Que desventura, Sebastiana! Então a Conceição passou desta
para melhor?
Sebastiana olha para Dirceu com certa melancolia, ajeita-se o corpo e
narra os acontecimentos do triste dia.
SEQUÊNCIA 80 – EXT./INT./DIA/FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Flash back – Relato de Sebastiana.
Quarto de Conceição. Conceição está deitada na cama. Sebastiana entra
no quarto de Conceição. Sebastiana acorda Conceição, tocando-lhe as
mãos. Ela mexe com o corpo de Conceição, mas esta está morta. Porta
do quarto de Conceição. Sebastiana aparece na porta do quarto de
Conceição, gritando por todos da fazenda. Miliquito, Josias, Ambrósio,
Hipólito, Eulina, Inácia, Quitéria e Farias correm até a porta do quarto
de Conceição. Farias aproxima-se do corpo de Conceição e tira do
pescoço dela um velho colar de sementes. Sebastiana está com o olhar
fixo no corpo de Conceição. Farias aproxima-se de Sebastiana e coloca
no pescoço dela o colar de sementes.
FADE OUT / FADE IN.
Capela da fazenda. Corpo de de Conceição estendido em um dos
bancos da capela da fazenda. Tarde. Quintal da fazenda. Inácia, Quitéria
e Sebastiana terminam de tecer uma rede de palha. Josias termina de
confeccionar uma cruz. Pôr do sol.
FADE OU/FADE IN
Cemitério no pé do morro. Cova. Todos da fazenda, inclusive os três
pastores, estão em volta da cova. Cordas trançadas na rede. Hipólito,
Josias e Ambrósio seguram as cordas para descer a rede de palha com o
corpo de Conceição. Terra caindo dentro da cova, sobre a rede de palha.
204
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cova fechada. Sepultura de Conceição. Josias coloca a cruz na sepultura
de Conceição. Hipólito tira a cruz da sepultura e balança a cabeça com
um sinal de "não". Ele devolve a cruz para Josias. Todos deixam o
cemitério, saindo de cabeça baixa. Josias carrega a cruz entre os braços.
SEBASTIANA (VOICE OVER)
Logo que nhozinho saiu com Cirilo, eu fui lá no quarto
acordar Conceição para ela cuidar das galinhas com o velho
Faria, mas ela estava lá estorricada no catre... Mexi ela de cá,
de lá e nada. Quando olhei direito estava ela sem respiração,
morta, feito um bichinho, toda fria. Os rapazes juntaram
todos e levaram ela para a capela, tecemos uma rede de palha
e enterramos ela, ainda há pouco, lá no pé do morro.
SEQUÊNCIA 79.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE/DIA.
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS, INCLUINDO
MONTAGENS.
DIRCEU
Colocaram uma cruz na sepultura dela?
Todos ali parados olham para Dirceu.
MONTAGENS: Imagens de segregação racial impostas pelos homens
brancos: cemitérios, igrejas, lugares públicos, comércios, etc.
DIRCEU (OFF)
Ao fazer esta pergunta, subitamente, todos olharam para mim
com olhares incandescentes. Eu sabia que eles agiriam dessa
forma. Era normal em nossa colônia e talvez na europa, que a
sociedade separasse cemitérios e igrejas de brancos e negros.
Uma raça vivia dependendo da outra, mas quando se tratava
do social, a distinção se fazia de forma grotesca e impensada:
branco era branco; negro era negro. A visão que se tinha era
205
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
como se Deus dividisse no céu todas as raças, privilegiando
umas e desprivilegiando outras. Nessa separação, a raça negra
era a que perdia para a branca.
CORTA PARA
JOSIAS
(levanta-se a mão direita e ganha a atenção de todos)
Eu fiz uma cruz para colocar na sepultura da Conceição, nhô
Dirceu, mas, não sei porque, não deixaram colocar ela lá. Foi
até Hipólito que tirou a cruz... Contei para eles que, nas
bandas de onde eu venho, já vi cruzes em sepulturas de
negros. "Nhô", sim, juro que vi...
DIRCEU
E por que não deixaram colocar a cruz na sepultura de
Conceição?
SEBASTIANA
Onde nhozinho viu falar que negro recebe cruz, quando
morre?
SEQUÊNCIA 81 – EFEITOS – INT./DIA. VÁRIOS.
EFEITO: Sol quente. Trono. HOMEM NEGRO amarrado no trono.
O HOMEM NEGRO é jovem, magro, alto, de 31 anos. Circulo de
homens negros e mulheres negras a alguns metros do trono. Trono. O
homem negro amarrado no trono. Chicote batendo no lombo do
homem negro. CAPATAZ surrando o homem negro no trono. Lombo
do homem negro escorrendo sangue. Chicotadas. O homem negro olha
para o céu e em seguida desmaia-se. Circulo de homens negros e
mulheres negras. VÁRIAS MULHERES NEGRAS tapam os olhos,
OUTRAS deixam escapar lágrimas dos olhos. Trono. O homem negro,
no trono, apanhando do capataz. Chicote na mão do capataz. O capataz
aproxima-se do homem negro e sorri. O capataz olha para o círculo de
206
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
homens negros e mulheres negras. Chão. Chicote sujo de sangue cai no
chão. Botas do capataz, passos apressados pelo pátio. Frondosa
árvore.O capataz some ao atravessar pela frondosa árvore. Trono.
Homem negro morto no trono. O circulo de homens negros e mulheres
negras fecha-se em torno do trono. HOMENS NEGROS desamarram
o homem negro morto do trono. Homem negro morto estendido no
chão. ALGUMAS MULHERES NEGRAS caem no chão de joelho.
Pedaço de pano branco cai sobre o corpo do homem negro morto. As
mulheres negras caídas de joelho cobrem o corpo do homem negro
morto. Vereda estreita. Fila indiana formada por homens negros e
mulheres negras. Corpo do homem negro morto sendo levado pelos
homens negros. Cova. Os homens negros atiram o corpo do homem
negro morto na cova. Mulheres negras aproximam-se da cova e cada
uma pega três punhados de terra e atira dentro da cova. Ocaso. Cruz.
JESUS CRISTO morto na cruz. A cruz, com Jesus pregado, sobe aos
céus. Terra. Lugar descampado. Sepultura do homem negro morto. A
cruz de Jesus cai sobre a sepultura do homem negro. Cruz. Luz forte.
Jesus Cristo, vestido em uma túnica branca e em um bonito manto azul
está próximo á sepultura do homem negro morto. Jesus Cristo ajoelhase á sepultura e entre um facho de luz surge da sepultura do homem
negro morto. O homem negro morto está vestido em vestes iguais a de
Jesus Cristo. No lugar descampado surge um algodoeiro. Jesus Cristo e
o homen negro morto andam pelo campo. Na medida em que Jesus
Cristo e o homem negro morto andam, homens brancos, mulheres
brancas; homens negros e mulheres negras - todos vestidos iguais a
Jesus Cristo - acenam as mãos para Jesus Cristo e o homem negro
morto. Luz intensa. Jesus Cristo e o homen negro morto desaparecem
entre os fachos de luz.
DIRCEU (OFF)
Sebastiana não estava errada, o negro levava a sua cruz
durante toda a vida, desde o dia em que nascia até a morte.
Talvez, após a morte, esta cruz não provia mais de significado.
Jesus a levou para o calvário, morreu nela, mas depois foi
sepultado sem ela. Se a cruz é comum nos cemitérios dos
brancos, tudo não passava de um mero símbolo cristão e, ela,
207
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
enquanto dada em vida aos negros servia de penitências
celestiais.
Deus
sabia
como
compensá-los.
Ao deparar com a morbidez e com o silêncio fúnebre de
todos os meus amigos da fazenda, instituí uma lei cristã em
minhas terras: a partir daquele dia, qualquer um que morresse
teria direito a uma cruz. Todos nós, perante Deus, éramos
cristãos e, sendo assim, todos éramos também, perante a fé,
irmãos uns dos outros. A cruz nos sinalizaria um pacto, que,
mesmo depois da morte continuaríamos ligados uns aos
outros, espiritualmente.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 79.2 - EXT./INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. VÁRIOS.
Varanda. Farias sentado no tamborete olha para Dirceu. Ele tira o
chapéu e agarra-o no peito.
FARIAS
Sinhozinho Dirceu é homem bom. É homem agraciado por
Deus.
SEQUÊNCIA 82 - EXT./INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. VÁRIOS.
Noite. Quarto de Dirceu. Cama. Dirceu sentado na cama. Ele tira as
botinas e deita na cama ajeitando-se a cabeça no travesseiro.
DIRCEU
Cansado e abatido com a notícia da morte de Conceição,
deixei todos na varanda conversando e tranquei-me no quarto
para dormir.
208
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Noite de lua clara. Cemitério do pé da serra. Sepulturas. Sepultura de
Conceição.
DIRCEU (OFF)
Conceição estava morta, enterrada numa sepultura igual a
tantas outras, marcada por um monte de terra.
VOLTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
(Flash back sobreposto EM VOICE OVER POR DIRCEU)
SEQUÊNCIA 40 – EXT/INT. DIA. VILA RICA. RUAS DE
VILA RICA. PORTA DA VENDA DE ZÉ TOMÁZIO. VENDA
DE ZÉ TOMÁZIO.
Dirceu parado próximo à porta do empório fica a observar
Marília. Ele, com um sorriso nos lábios, contempla Marília.
Marília e Rosa na calçada do empório. Marília olha para Dirceu e,
delicadamente, sorri. Ela disfarça o sorriso, levando as mãos aos
lábios. Dirceu, estagnado, olha para Marília. Rosa puxa Marília
pelas mãos e protege-a com o guarda-chuva cor de rosa.
DIRCEU (VOICE OVER)
Enquanto isso, eu, aqui no meu quarto, vivo, deitado no catre,
pensando um modo de como aproximar da minha jovem e bela Marília.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 82 - CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE.
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
Noite. Quarto de Dirceu. Cama. Dirceu deitado na cama com a cabeça
no travesseiro e olhos arregalados em direção ao teto. Ele fala por
solilóquio.
209
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Seria ela a menina prometida pelo pai ao tal rapaz italiano?
Alguma coisa dizia para mim que não. Marília seria a minha
Marília...
ESCURIDÃO TOTAL
SEQUÊNCIA 83 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
UMA VELHA OFICINA DE TRABALHO DA FAZENDA.
Vista panorâmica da fazenda Ribeirão do Meio. Telhado de uma oficina
de trabalho. A oficina é um salão aberto. Chão de terra batido.
Prateleiras. Formas de queijos nas prateleiras. Mesa velha deitada sobre
o chão. Ferramentas de trabalho espalhadas pelo chão. Martelo. Pregos.
Cirilo martela um prego na perna da mesa velha. Teias de aranhas.
Vassoura de palha desliza sobre a parede. Aranhas fogem e são
alcançadas pela vassoura. Mãos de Hipólito na vassoura. Hipólito
vasculha as paredes. Jirau feito de paus. Ambrósio coloca um pote com
água debaixo do jirau. Gamela cheia de água no jirau. Inácia lava as
formas de queijo usando buchas vegetais. Dirceu observa todos ali
trabalhando.
DIRCEU (VOICE OVER)
Os dias passaram-se rápidos, porquanto eu preocupava apenas
com os trabalhos da fazenda. Estávamos ampliando as
oficinas de queijo, de farinha e de rapadura, no intuito de
começarmos a fabricar farturas. A lavoura precisava de
seriedade, de gente simples, capaz de volver a terra e extrair
dela o alimento do corpo e da alma. Alguns homens, aos
poucos, abandonavam as atividades da extração de minérios
para apostarem na pecuária. Minas Gerais mudava,
paulatinamente, a sua paisagem.
210
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 84 - INT. /EXT./DIA. CAPELA DA FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO.
Capela. Cavaletes altos na frente da capela. Miliquito, Ambrósio e Cirilo
estão em cima dos cavaletes pintando o frontifício da capela. Brochas
nas mãos de Cirilo e Miliquito. Tinta marrom escorre na parede e eles
espalham com as brochas. Interior da capela. Altar. Pote com água
sobre o assoalho de madeira. Dirceu, Hipólito e Josias, abaixados,
esfregam com cuidado o limo acumulado em alguns cantos do altar da
capela.
DIRCEU
Nós vamos deixar esta capela aprumada. Ela é um grande
bem que temos em nossa fazenda. Creio que há muito tempo
não entra nela nenhum padre ou sacristão para rezar uma
missa. Estou pensando cá, numa ideia...
HIPÓLITO
Nhozinho tá pensando em trazer um padre para cá? Um
padre para rezar missas?
AMBRÓSIO
O povo fala de padre e sabe que eu nunca vi nenhum...
Dissem que eles não podem nem casar...
DIRCEU
Até que podem casar, Ambrósio, a questão é que eles têm de
deixar de ser padre...
HIPÓLITO
Então tem que trocar uma coisa por outra...
AMBRÓSIO
Então deve ter poucos padres por aí, por que mulher
querendo casar tem um tanto...
211
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
HIPÓLITO
Então como nhô Dirceu vai fazer para arrumar um para rezar
missa aqui?
A bucha vegetal cai das mãos de Josias. Ele pega a bucha, olha para
Hipólito e sorri frouxamente. Dirceu esfrega uma pequena sujeira de um
detalhe de um desenho do altar.
DIRCEU
Não, não vou trazer um padre para morar aqui e rezar missa,
mas um padre que venha cá para abençoar o casamento seu, o
de Cirilo e o de Miliquito com as moças do Rio das Mortes...
Pena que o nosso amigo Ambrósio não viajou conosco para o
Rio das Mortes, senão estaria casando também...
AMBRÓSIO
Carece preocupar não nhozinho o tempo mesmo dá conta de
arrumar isso...
HIPÓLITO
(para de esfregar um pequeno detalhe de sujeira do altar e
arregala os olhos para Dirceu)
Mas padre vem até cá, para fazer casamentos de negros?
Negros não vão em igrejas?
DIRCEU
Ora, Hipólito, se Maomé não vai á montanha, a montanha vai
até Maomé. Deixa comigo, vou providenciar tudo. Eu
conheço um padre em Vila Rica que não vai deixar de fazer a
mim esse grande favor...
JOSIAS
Então nós vamos ter festa também...
DIRCEU
(solta uma gargalhada)
212
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
E das boas, com brincadeiras e comilanças... Se vós mercê,
Josias, for atrás da Zenilda e trazê-la, a coisa vai ser melhor
ainda...
JOSIAS
Prometo para sinhozinho, não. Meu coração tá amarrado,
dizendo que ainda não é tempo de ir atrás da Zenilda, não...
DIRCEU
Vós mercê é quem sabe, assim que a capela ficar pronta vai
haver casamento da rapaziada...
JANELA LATERAL DA CAPELA, UM CASAL DE
ANDORINHAS ESFREGAM-SE OS BICOS UM NO OUTRO.
SEQUÊNCIA 85 – EXT./DIA. CAPELA DA FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. PÁTIO DA FAZENDA.
Legenda: "Alguns dias depois..."
Visão panorâmica da fazenda Ribeirão do Meio. Capela. Frontifício da
capela, cor marrom. Cavaletes armados próximo ao frontifício da capela.
Porta da capela, cor azul claro. Lateral da capela. Barrado das paredes
laterais, cor preta. Balde no chão. Dirceu e Josias, com brochas nas
mãos, acabam de terminarem a pintura do barrado da parede lateral da
capela. Dirceu pega o balde de tinta, joga a brocha dentro do balde,
recolhe também a brocha das mãos de Josias e joga-a no balde. Josias
pega o balde das mãos de Dirceu. Josias e Dirceu vão até a porta da
capela. Dirceu olha para dentro da capela. Visão interna da capela. Altar,
retábulo e púpito restaurados. Porta da capela. Dirceu sorri aliviado.
DIRCEU
Pronto, a capela ficou aprumada. Agora eu posso ir à Vila
Rica e buscar um padre para celebrar o casamento de Cirilo,
Hipólito e Miliquito...
(olha para Josias e prossegue)
213
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
E depois, quem sabe, o do amigo Josias, com a Zenilda...
JOSIAS
(olha para o frontispício da capela)
Ainda estou esperando os sinais, sinho Dirceu...
DIRCEU
Espera pelos sinais e não corre atrás não, Josias. Com o passar
do tempo as coisas podem tornar-se difíceis...
JOSIAS
(bate as mãos no peito)
Meu coração vai dizer onde a minha neguinha está e eu vou
diretinho nos rastros dela...
DIRCEU
Enquanto vós mercê, Josias, espera sinal do coração, estarei
casando os outros...
Lateral da capela. Miliquito, Ambrósio, Cirilo e Hipólito aparecem de
repente pela lateral da capela. Eles seguem até a frente da capela, olham
para os cavaletes armados e começam a desmontá-los. Porta da capela.
Dirceu e Josias entram na capela. Porta lateral da capela aberta. Josias
olha para a porta lateral da capela aberta e sai correndo. Josias para no
adro da capela. Morro. Josias olha para o morro, cai de joelhos e solta
um grito.
JOSIAS
ZENILLLLLLLLLLLLLLLLDAAAAAAAA!!!
O eco do grito de Josias repercute o som para longe. Pátio da fazenda
Ribeirão do Meio. Sebastiana, Eulina, Inácia e Quitéria largam seus
afazeres e correm para o pátio da fazenda. Pátio da fazenda. Farias
também aparece no pátio assustado com o grito de Josias. Sebastiana,
Eulina, Inácia, Quitéria e Farias se encontram no pátio da fazenda e
ficam procurando com os olhos de onde veio o grito.
214
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FARIAS
É grito de homem raivoso que perdeu a mulher por algum
motivo...
SEBASTIANA
(limpa as mãos no avental e olha para Farias com uma cara
feia)
Quá, nhô tem cada ideia esquisita...
EULINA
Homem gritando assim, por mulher, é coisa bonita de
demais...
QUITÉRIA
E não é que é bonito mesmo? Só não dá nem pra saber se o
doido que gritou estava chamando por uma mulher ou se
arremedando algum bicho...
SEBASTIANA
(sai para a direção da varanda da casa)
Deus e Jesus que leve esse doido para bem longe... Eu vou é
cuidar das minhas obrigações...
CORTA PARA
Dirceu, Cirilo, Hipólito e Miliquito estão próximos a Josias. Chão. Josias
está caído de joelhos no chão com a cabeça baixa. Ele levanta do chão
um pouco envergonhado.
JOSIAS
É o coração, o que fazer, se ele pede isso?
Todos dão risadas. Frontifício da capela. Cavaletes armados. Dirceu,
Cirilo, Hipólito, Miliquito e Josias desarmam os cavaletes.
DIRCEU (VOICE OVER)
215
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Com o restante do dia, ao ajudar os rapazes a desarmar os
cavaletes, eu inseri algumas brincadeiras em um jogo de
conversas entre Cirilo, Hipólito e Miliquito e acabei obtendo
um resultado surpreendente. Aos poucos, eles revelaram para
mim que nenhum deles casaria com a moça escolhida no dia
das compras; ou seja, Hipólito casaria com a moça escolhida
por Cirilo; Cirilo, com a moça escolhida por Miliquito e
Miliquito com a moça escolhida por Hipólito. Pensei na
liberdade do coração de cada um deles. Conclui, pois, que
ninguém mandava no coração de ninguém.
SEQUÊNCIA 86 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
FUNDO DO QUINTAL DO CASARÃO.
Fundo do quintal do casarão da fazenda Ribeirão do Meio. Buraco com
barro e capim. Dirceu e Josias estão dentro do buraco com barro e
capim. Dirceu e Josias sapateiam no barro, massando-o para a
fabricação de adobes. Formas de adobe. Miliquito, Ambrósio e Hipólito,
com as formas de adobe, fabricando adobes. Mãos no barro; barro nas
formas; adobes prontos. Cirilo carregando adobes e colocando-os em
filas sob o sol.
DIRCEU (VOICE OVER)
Tempos depois resolvemos melhorar a velha senzala,
transformando-a em pequenas casas para servirem de moradia
aos novos casais da fazenda. Investimos em alguns dias na
fabricação do adobe.
SEQUÊNCIA 87 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
FUNDO DO QUINTAL DA FAZENDA.
Buraco com terra vermelha. Dirceu, Ambrósio e Josias, sujos de barro
vermelho. Dirceu e Josias estão dentro do buraco, sapateando no barro.
216
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Miliquito e Hipólito fabricando telhas utilizando as coxas deles como
formas. Cirilo carrega as telhas e coloca-as em filas, sob o sol
DIRCEU (VOICE OVER)
Depois fabricamos telhas, quais formas ficaram nas medidas
das coxas de Hipólito e Miliquito...
SEQUÊNCIA 88 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
QUINTAL LATERAL DA FAZENDA.
Manhã. Quintal lateral da fazenda. Construção das três casas geminadas.
Duas casas estão prontas, a terceira casa está recebendo as últimas telhas
do beiral. Josias e Hipólito estão no esteio da casa recebendo as telhas e
arrumando-as. Miliquito, em cima dos degraus de uma escada feita de
varas amarradas recebe as telhas das mãos de Cirilo. Ambrósio e Dirceu
carregam as telhas até onde está Cirilo. Visão panorâmica dos telhados
das três pequenas casas. Beiral pronto. Tarde. Visão panorâmica da
fazenda Ribeirão do Meio. As três casas prontas. As janelas frontais das
três casas se abrem. Aparecem nas janelas das casas os casais Cirilo e
Inácia; Hipólito e Quitéria; Miliquito e Eulina. Cirilo, Hipólito e
Miliquito tiram os chapéus e cumprimentam uns aos outros. Tronco de
árvore. Josias, Ambrósio, Dirceu e Farias, encostados em um velho
tronco de uma árvore, tiram os chapéus e também cumprimentam
Cirilo, Hipólito, Miliquito e suas respectivas mulheres.
DIRCEU (VOICE OVER)
A velha senzala, em poucas semanas transformou-se em três
pequenas casas de futuras famílias. Casas pequenas, com
quarto, sala e cozinha. Dessa forma, as famílias de Cirilo,
Hipólito e Miliquito viveriam dignamente na fazenda
trabalhando e criando os seus filhos livremente.
SEQUÊNCIA 89 – INT./EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA
RICA. CASA DO CORONEL.
217
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Vila Rica. Ruas de Vila Rica. Dirceu anda a pé pelas ruas de Vila Rica até
alcançar um bonito casarão azul. Portão do casarão azul. Ele dirige-se
até o enorme portão e espia a varanda do casarão azul. A varanda do
casarão azul é grande, nela há plantas, viveiros com araras e pássaros
coloridos. Na varanda do casarão azul há um HOMEM NEGRO
FORTE E BEIÇUDO, muito bem vestido, sentado em um tamborete,
três redes, onde há DOIS HOMENS BRANCOS, estrangeiros, deitados
nelas. Enormes leques de penas coloridas conduzidos por DUAS
MOÇAS NEGRAS, altas e esbeltas, rostos bem feitos, vestidas em
roupas de seda. Porta do casarão. Dirceu bate na porta do casarão azul.
O Homem negro forte e beiçudo levanta-se do tamborete e segue até o
portão e abre-o. O Homem negro forte e beiçudo faz Dirceu entrar na
varanda da casa. Dirceu atravessa a varanda seguindo o homem negro
forte e beiçudo. Porta do casarão. O Homem negro forte e beiçudo abre
a porta do casarão e dá sinal para que Dirceu entre. Sala do casarão.
Dirceu tira o chapéu da cabeça e prende-o entre as mãos. Enorme sala,
cheia de aparatos ricos. Os olhos de Dirceu passeiam sobre a sala.
Relógio de parede, vários canapés e cadeiras de braços espalhados pela
grande sala. Enorme espelho de cristal emoldurado e um cabide de
chapéus. Porta lateral da sala do casarão azul. A porta lateral da sala do
casarão se abre. Aparece o CORONEL, um senhor de sessenta anos; ele
é claro, olhos pretos, gordo, baixo e barbudo, vestido com uma
bombacha, embora não tenha a aparência de espanhol. Dirceu, ao vê-lo
entrar na sala, dirige-se até o cabide emoldurado pelo espelho de cristal
e deposita o seu chapéu. O Coronel fita Dirceu com os olhos,
reparando o pequeno alforje, a que ele traz pendurado nas costas.
CORONEL
Bom dia, prezado senhor, espero que tenha trazido algo
interessante neste pequeno alforje..
DIRCEU
Trago sim, coronel, creio que o senhor há de saber avaliar e
me dar um bom preço pela peça...
218
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORONEL
Está ficando esperto igual ao pai...
DIRCEU
Tenho que ficar esperto coronel, não moro mais com o
senhor meu pai e...
CORONEL
O senhor seu pai esteve cá antes de partir com a Maria
Antônia. Eles dormiram duas noites cá, nós fizemos bons
negócios e depois ele e a Maria Antônia partiram com uma
caravana lá para São Sebastião do Rio de Janeiro...
DIRCEU
Fico aliviado em saber disso, coronel.
CORONEL
Como sabe, meu tempo é curto e tenho que fazer negócios
rápidos para não chamar atenção dos amigos ocultos do rei e
inimigos nossos. O que traz, é ouro ou prata...
Poltronas. O Coronel aproxima-se de uma das poltronas e senta-se. O
coronel acena as mãos para que Dirceu se sente ao lado dele. Poltrona.
Dirceu senta-se na poltrona, ao lado do Coronel.
DIRCEU
Trago, cá, para negociar com vossa senhoria, coronel, alguns
quilates de ouro e um rico diamante. Creio que o senhor há de
dar a mim, por eles, um bom valor...
Alforje aberto. Dirceu enfia uma das mãos no alforje e tira uma pedra
de diamante, qual coloração é branca-azulada. O Coronel arregala os
olhos para a pedra de diamante.
219
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORONEL
Vossemecê ta com sorte, mocinho! Hoje estou valorizando
tudo o que aparece em minha porta. Deixe-me ver esta pedra
de pertinho, junto aos meus olhos.
Dirceu entrega o diamante para o Coronel. O Coronel tira do bolso do
casaco uma lupa e examina o diamante, levando-o para perto dos olhos.
CORONEL
Vou ficar com o diamante. Tenho cá um gringo que vai se
interessar por ele. Sei que vossemecê confia em minha pessoa
e sabe que não vai se dá mal.
DIRCEU
Tenho cá, também, algumas pepitas de ouro, se o senhor
quiser avaliá-las...
CORONEL
Um instante, por favor, meu apressado jovem. Vamos
resolver primeiro a compra do diamante, depois as pepitas de
ouro. Cá, não misturo os negócios.
O Coronel levanta-se da poltrona. Porta lateral da sala. O Coronel dá
alguns passos até a porta e bate palmas. O homem negro e beiçudo
aparece na porta lateral da sala do casarão. Poltrona. O Coronel volta a
sentar-se na poltrona e olha para o homem negro forte e beiçudo.
CORONEL
Vá lá e chame o gringo, traga-o cá, fale pra ele que é urgente.
Porta lateral da sala. O Homem negro forte e beiçudo desaparece para
dentro da casa. O Coronel olha para Dirceu e fala baixinho, quase
sussurrando.
220
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORONEL
Vou apresentar esta pedra para um inglês, ele é lá da GrãBretanha e disse que não quer ir embora com as mãos vazias.
Ele disse que anda por cá estudando a região, até mostrou
para mim alguns mapas desenhados por ele. Eu lá entendo
dessas histórias riscadas em papéis. Há alguns dias ele se
apossou da minha casa, gostou das minhas criadas e foi
ficando por cá...
Porta lateral da sala. Entra um, GRINGO, de 28 anos, magro, barba
ruiva,olhos e pele claros. O gringo aproxima-se rapidamente do
Coronel.
CORONEL
Seu dia hoje está sendo de sorte. Olha só o que apareceu cá...
O Coronel mostra a pedra de diamante ao gringo. O gringo aproxima-se
do Coronel e sorri entusiasmado.
CORONEL
Coisa rara, essa pedra tem valor...
Poltrona. O gringo senta-se na poltrona perto de Dirceu e do Coronel.
O Coronel entrega o diamante ao gringo. O gringo pega o diamante e
fica olhando para ele extasiado.
GRINGO
This stone is very beautiful! I want to take this valuable
stone...It is a diamond's true!
CORONEL
(olha para Dirceu e sorri)
Acho que o gringo se entusiasmou com a pedra...
O gringo olha para Dirceu e para o coronel. O Coronel entrega a lupa
para o gringo. O gringo observa o diamante através da lupa.
221
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
GRINGO
How much is this diamond? I'm interested and want to buy
it...
CORONEL
(olha para Dirceu e pisca um dos olhos)
Ele fala também a nossa língua, isso é porque ele está muito
entusiasmado. Isso é comum aos gringos, quando fazem
negócio por cá.
Diamante nas mãos do gringo. O gringo entrega o diamante ao Coronel
e põe-se de pé. Bolso da calça do gringo. O gringo enfia a mão no bolso
e retira um maço de dinheiros. O gringo conta algumas notas, separa-as
e as entrega ao coronel. O Coronel recebe o maço de dinheiros e beijao. O Coronel põe-se de pé e enfia o maço de dinheiros no bolso. Ele
senta-se novamente na poltrona. Porta lateral da sala. O gringo vai até a
porta e desaparece para dentro do casarão. O Coronel coloca-se as mãos
no queixo, sorri e olha para Dirceu.
CORONEL
Eu somente faço este tipo de comércio para evitar que o rei
de Portugal leve toda a nossa riqueza para lá... Esta riqueza é
extraída do nosso solo, do nosso amado solo. Essas pedrinhas
preciosas, que encontramos, cá, servem também de
lembrancinha aos aventureiros que por cá passam. Vamos
agora aos nossos acertos...
SEQUÊNCIA 90 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA
Ruas de Vila Rica. Movimentos urbanos. Dirceu anda a pé pelas ruas de
Vila Rica. Dirceu está um pouco distraído, como se procurando alguém.
Comércios. Pessoas entrando e saindo das lojas. Casas. Portas das casas.
Casas. Janelas das casas. Moças brancas, em uma janela e outra,
mexendo-se com os rapazes brancos que passam nas ruas de Vila Rica
222
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
montados em seus cavalos. Dirceu observa atentamente as moças
brancas em uma janela e outra. Ele fala por falando por solilóquio.
DIRCEU
Meu Deus, aonde dona Marília andaria naquele momento?
Vejo pessoas trabalhando, comprando, passeando, acenando
os compatrícios pelas janelas e até moças castas nas janelas a
bulirem com os jovens que passam por elas em seus cavalos
rabões. Qual, entre aquelas casas, seria a casa de dona Marília?
PADRE ROCHA, de aproximadamente 70 anos de idade, vestido a
uma batina preta, anda lentamente por uma das ruas estreitas do centro
de Vila Rica. Dirceu vê o padre Rocha e se dirige ao encontro dele.
Dirceu anda prosseguindo o seu solilóquio
DIRCEU
Ué, não é que aquele é o padre Rocha? Justamente o padre a
quem eu gostaria de conversar sobre o casamento dos rapazes
com as moças da fazenda na minha capela.
Rua estreita. Dirceu para entre o cruzamento de uma rua e outra e
espera o padre Rocha, qual está vindo casualmente em sua em sua
direção. O padre Rocha aproxima-se de Dirceu. Dirceu cumprimenta o
padre Rocha, pedindo-lhe a bênção. O padre Rocha abençoa Dirceu
fazendo com as mãos o sinal da cruz.
DIRCEU
Foi muito bom encontrá-lo cá, padre Rocha. Vossa
reverendíssima pode atender-me mais tarde em sua paróquia?
PADRE ROCHA
Ora, meu filho, se vós mercê não estiver pressa, siga-me. Vou
visitar um amigo que está a partir de Vila Rica daqui a poucos
dias com a família.
223
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Então deixaremos a conversa para mais tarde na paróquia,
padre Rocha...
PADRE ROCHA
Não, não, vós mercê vem comigo. A visita é breve. Enquanto
andamos, poderá falar-me sobre o assunto que tem a tratar
comigo... Não deve ser de confessionário, é?
DIRCEU
Não, é que...
Dirceu e o padre Rocha andam pelas ruas de Vila Rica, conversando.
DIRCEU (VOICE OVER)
Contei ao padre Rocha sobre a minha fazenda, o modo como
eu vivia com a minha gente, o meu repúdio à escravidão e o
modo como eu gostaria de agir com os meus ajudantes. Ele
sorriu e achou interessante o meu modo de pensar.
Dirceu e o padre Rocha conversando e andando pelas ruas de Vila Rica.
Padre Rocha dá uma paradinha e responde.
PADRE ROCHA
O mundo novo está por vir e todos os homens haverão de
prestar a Deus contas sobre todas as coisas más e boas que
fizeram na terra.
DIRCEU
Padre, há alguma possibilidade de a Santa Igreja Católica
aprovar o casamento entre casais negros?
PADRE ROCHA
(para, enverga o corpo e olha assustado para Dirceu)
Vossa senhoria já foi em alguma igreja assistir a um casamento
de crioulos?
224
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não, padre Rocha. É justamente por isso que estou a
perguntá-lo...
PADRE ROCHA
A igreja não faz. Isso não se trata de nada de mais. Como
sabemos, os africanos e seus descendentes não têm religião.
Eles acreditam em crenças pagãs, fundamentadas em magias,
o que contraria os princípios da Igreja e da Santa Escritura,
conforme nos foram confiadas por Deus.
DIRCEU
E se eu disser ao santo padre que os crioulos da minha
fazenda são cristãos e que eu quero dar a eles os direitos
nunca negados por Deus.
Ruas. Casas. Calçadas altas. O padre Rocha levanta a batina para subir
um degrau de uma das calçadas altas.
PADRE ROCHA
Como assim?
Calçada alta. Casas. Dirceu e o padre Rocha andam pela longa calçada,
conversando. Dirceu e o padre Rocha vez em quando dão uma
paradinha e um vira-se de frente ao outro, depois continuam andando.
DIRCEU (VOICE OVER)
Contei a ele da melhor forma possível como eu sonhava em
construir um mundo melhor, capaz de não haver injustiça ou
qualquer diferença entre raças, classes sociais, religiões ou
credos. Um mundo feliz, capaz de cada um ter o direito à sua
liberdade. Contei a ele sobre a compra das moças em Rio das
Mortes, o meu procedimento perante a compra e, finalmente,
a possibilidade de casá-las com os rapazes na capela da
fazenda, demonstrando-lhe o meu repúdio ao concubinato.
225
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Casa de dom Manuel. Porta da casa de Dom Manuel. Padre Rocha para
defronte a porta da casa de dom Manuel. O padre Rocha bate na porta
da casa. Na porta aparece Vívila, uma negra jovem, alta, muito bem
vestida e de olhar tranquilo. Ela tem aproximadamente 25 anos de
idade.
PADRE ROCHA
Dom Manuel se encontra em casa?
PADRE ROCHA
(olha para Dirceu e comenta rapidamente, com a voz baixa)
Prometi e cá estou para despedir-me de dom Manuel e de sua
filha, a dona Marília.
DIRCEU
(cora as faces e sente o coração palpitar. Imóvel, olha para o
padre Rocha e para Vívila surpreso. Fala por solilóquio)
Dona Marília? Eu estava na porta da casa de dona Marília, a
quem eu tanto desejava conhecer? Seria a dona Marília, a
quem eu procurava há tempos?
VÍVILA FAZ O PADRE ROCHA E DIRCEU ENTRAREM NA
CASA.
SEQUÊNCIA 91 – INT./DIA. VILA RICA. CASA DE DOM
MANUEL. SALA DE VISITA.
Enorme sala de visitas. Mobílias bem variadas, ao gosto do final do
século XVIII. Dirceu e o padre Rocha tiram os chapéus e os entregam à
Vívila. Cabide de chapéus ao canto da sala. Vívila dirige-se até o cabide,
coloca os chapéus do padre Rocha e de Dirceu, nele. Vívila retira-se da
sala. Poltronas. Em das poltronas está DOM MANUEL, um senhor
branco, olhos castanhos, gordo, forte e cabeça um pouco calva, de 52
anos, sentado dom Manuel está lendo um folheto sobre notícias de
Portugal e ao ver o padre Rocha e Dirceu, a quem ele não conhece, ele
226
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
larga o folheto na poltrona, levanta-se e os cumprimenta. Poltronas.
Padre Rocha e Dirceu, acompanhados por dom Manuel, sentam-se nas
poltronas.
DIRCEU (VOICE OVER)
O destino, por intermédio daquele santo padre, levava-me em
carne, osso e espírito, à casa da jovem e doce Marília. O meu
coração bateu forte. Mantive firme para que nada ali desse
errado.O padre Rocha apresentou-me ao pai de Marília,
dizendo a ele que eu não passava de um jovem louco, de
ideias loucas a incomodá-lo. O padre, por não ter tatos na
língua contou para Dom Manuel a minha ventura de querer
casar pretos sob o teto da Santa Igreja Católica. Dom Manuel
riu e, como se não quisesse levar o assunto adiante, respondeu
secamente.
CORTA PARA
DOM MANUEL
Vimos pessoas grandes a perder a vida e outros a serem
degredados da colônia por pensar em libertar o Brasil de
Portugal... Agora estou prestes a ver um jovem a ser
excomungado pelo Santíssimo Papa, entregando a pele ao
Santo Ofício para ser queimada na grande fogueira
apocalíptica. Tudo isso porque está inventando cerimônia de
casamento entre casais negros perante a Santa Igreja Católica
e Apostólica. Deixa isso de lado, meu caro jovem, invista o
seu tempo em fazer fortuna à custa desses pobres
desgraçados. Na semana passada eu fui até Rio das Mortes,
comprei gados zebu e holandês e ovelhas, além de negros, dos
bons. Mandei tudo para as minhas terras e, se Deus quiser,
não demorarei a morar nela com a minha família. O meu paço
está por terminar, apenas espero por alguns pequenos reparos
num canto e outro. As minhas terras, por enquanto, estão sob
o comando de dois bons vaqueiros, do Zé da Viúva e do
Raimundo Sobreiro. Eles verificaram as terras, afirmaram para
227
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
mim que elas são férteis, boas para a criação de gado leiteiro e
de corte e também de farta plantação. Quanto aos negros,
espero deles trabalho, muito trabalho. Caso contrário, eles
sentirão as chicotadas
DIRCEU
(dá uma risadinha e fala por solilóquio)
Não é que a madrinha de Marília morava em Mariana? E eu,
naquela tarde ensolarada, juntamente com Cirilo, fiquei
galopando feito um bobo por todas as vielas de Vila Rica!
Mariana, era nessa vila em que morava a madrinha de Marília,
a costureira chamada Berta.
PADRE ROCHA
E a casa? Irá vender esta casa?
DOM MANUEL
Esta casa, padre Rocha, não pertence a mim. É de um irmão
da minha falecida esposa que abandonou Portugal e morou
aqui por alguns anos. Ele não suportou a vida da colônia e,
tempos depois, após fazer bons negócios por cá, resolveu se
aventurar na Itália. Lá, ele se fez sócio de um velho italiano e
passou a trabalhar no cultivo da videira. Ele pretende vir ao
Brasil até o próximo ano. É com ele que o gajo, prometido à
Marília, virá. Hei de casá-la com o italiano e isso não há de
demorar muito.
Dirceu arregala os olhos para dom Manuel e abaixa a cabeça
tristemente.
PADRE ROCHA
Deus permita que não, assim com a Amarílis casou com o
moço de São Sebastião do Rio de Janeiro, Marília também há
de casar-se com o italiano. Deus é quem toma as providências.
228
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DOM MANUEL
Numa das últimas cartas que ele enviou a mim, padre Rocha,
ainda este ano, dizia que o gajo gostaria de apostar em videira
no Brasil. Pedi a ele que respondesse ao gajo, futuro esposo
de Marília, que estamos bebendo e nos embriagando de vinho
bom, do Porto. Deixei-o decidir se vem para cá apostar nesse
ramo ou não. Se for para produzir bons vinhos, que venha,
senão, que fique por lá.
Sala da casa de Dom Manuel. Poltronas. Dom Manuel, padre Rocha e
Dirceu conversando, sentados nas poltronas.
DIRCEU (VOICE OVER)
O padre Rocha riu do desfecho de Dom Manuel. Eu,
portanto, fiquei imensamente chocado e arrasado por dentro,
quando ouvi dom Manuel falando da sentença reservada à
Marília. Ela casaria com um gajo italiano e moraria na Itália.
Isso não era justo, Marília pertencia a mim, filho de um
camponês, oriundo daquela santa e abençoada região. As
minhas mãos gelaram e os meus olhos não sabiam para onde
olhar. As minhas pernas adormeceram, não sei se por
nervosismo ou pela minha má posição na poltrona.
Padre Rocha dá um sinal com os olhos para Dirceu e em seguida
levanta-se da poltrona. Dirceu faz o mesmo.
PADRE ROCHA
Creio ter tomado o tempo de vós mercê. Tenho assuntos a
tratar na paróquia e, como o amigo não tão já, deixará Vila
Rica, volto em outra ocasião para prosearmos...
DOM MANUEL
É sempre esperada a vinda de vossa reverendíssima nesta casa,
padre Rocha. Quando eu mudar definitivamente para as
minhas terras, comunicá-lo-ei.
229
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PADRE ROCHA
(afirma "sim" com a cabeça e olha para a porta)
E quando a dona Marília estiver pronta para casar com o gajo
italiano quem sabe eu não serei o felizardo, realizador da
cerimônia.
DOM MANUEL
Coisa que ainda não se resolve padre Rocha. Mas um dia a
minha filha subirá no santo altar da madre igreja para casar-se
com o prometido!
Dirceu olha para o padre Rocha e morde os lábios. Vívila aparece na
sala com os chapéus do padre Rocha e de Dirceu e entrega-os aos
respectivos donos. Padre Rocha e Dirceu saem da casa de dom Manuel.
SEQUÊNCIA 92 – INT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA.
Padre Rocha e Dirceu andam pelas ruas de Vila Rica.
DIRCEU (OFF)
Saímos daquela casa a respirar o ar puro da manhã pelas ruas
de Vila Rica. Após andar alguns metros em silêncio, o padre
olhou para mim, sorriu e, observando algo, apertou-me o
ombro direito com as mãos perguntando-me onde ficava a
minha fazenda.
PADRE ROCHA
Vós mercê aparece-me com a ideia maluca de casamento entre
escravos, na igreja católica, apostólica e romana e, por mal que
eu lhe pergunte, onde fica mesmo a sua fazenda?
DIRCEU
A minha fazenda, padre Rocha, antigamente era conhecida
como Ribeirão do Meio, mas, após pertencer a vários
proprietários, acabou ganhando outros nomes e perdendo
230
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
com o tempo a sua verdadeira identidade. A fazenda,
inicialmente, pertenceu à família do senhor meu pai e, foi
justamente por isso, que ele, comprou-a novamente para mim.
PADRE ROCHA
Eu creio que conheço essa fazenda, algo me faz lembrar dela,
mas não sei o quê...
DIRCEU
Ora, padre Rocha, creio que vossa reverendíssima deva
recordar-se de alguma capela construída pelas missões
catequéticas dos jesuítas. Eles construíram uma nas terras da
fazenda Ribeirão do Meio.
PADRE ROCHA
A capela? Por acaso esta capela não foi uma vez invadida
pelos índios botocudos?
DIRCEU
Sim, padre Rocha, ouvi contar essa história, mas depois disso,
a capela continuou firme...
PADRE ROCHA
Então a capela ainda existe?
DIRCEU
Sim, padre Rocha, por que? A capela não haveria de existir
mais?
PADRE ROCHA
A capela parecia frágil, incapaz de suportar as ações dos
tempos. Eu a conheci, desde 1752, quando eu fazia parte das
missões catequéticas, iniciadas pelos jesuítas em 1549. Essas
missões tinham como objetivo em catequizar os índios,
introduzindo a eles o ensino das artes e ofícios necessários à
vida cotidiana. O surgimento da capela na fazenda Ribeirão do
231
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Meio, apesar de ter sido construída pelos padres da ordem de
emergência, conhecida como "ordem de Loyola”, que se
estendia pelo interior do Brasil, algo nela tornou-se misterioso
com o passar dos tempos, a ponto de ser abandonada pelos
dogmas da Santa Igreja católica, apostólica e romana.
DIRCEU
(arregala os olhos para o padre Rocha)
Algo na capela tornou-se um mistério? Qual mistério, Padre
Rocha?
PADRE ROCHA
Ninguém nunca soube desse mistério e, como apenas era uma
hipótese, acabou que todo mundo esqueceu dele. Um dos
donos da fazenda, conhecido como Zé Antônio, tentou
reanimar a capela, fazendo festas santas de devoções,
reunindo os fiéis da região. Eu, por exemplo, fui convidado a
celebrar algumas missas lá, naquela época. Eu era mais jovem
e bem mais disposto do que hoje.
DIRCEU
O Zé Antônio, qual o senhor mencionou, é o senhor meu pai,
padre Rocha.
PADRE ROCHA
Eu já havia percebido isso, pois vós mercê é igual ao senhor
vosso pai, quando coloca uma ideia na cabeça, não há cristão
que tire...
DIRCEU
Desculpe-me, Padre Rocha, é que...
PADRE ROCHA
Vamos deixar de muita conversa e marcar logo a cerimônia de
casamento de seus escra... quer dizer, dos seus empregados. Se
na sua fazenda há uma capela, nada impede de eu ir até lá.
232
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Prometa-me uma coisa, fará dos criou... quer dizer, dos seus
empregados, bons cristãos. Saiba, portanto, que não posso
constar dos livros da igreja nenhum registro dessas
cerimônias.
DIRCEU
Isso não tem problema, padre Rocha. O importante é o livro
de Deus, que nele esteja constado no céu, tendo todos os
anjos como testemunhas...
PADRE ROCHA
É, isso é verdade, pois a santa escritura nos diz que tudo o que
o homem liga na terra, será também ligado no céu. Está
escrito em Gêneses que "o que Deus uniu o homem não
separa”.
DIRCEU
Isso mesmo, padre Rocha. Então se vossa reverendíssima
concordou em realizar as cerimônias de casamento,
providenciarei a data, a viagem e a estadia do vosso reverendo
em minha fazenda...
O padre Rocha diz "sim" com a cabeça. UM GRUPO DE PESSOAS
BRANCAS vem ao encontro do padre Rocha. Dirceu despede-se do
Padre Rocha próximo à igreja de São Francisco de Assis.
SEQUÊNCIA 93 - EXT./DIA. VILA RICA. ESTRADA
Praça "amarra cavalos". Cirilo está sentado em uma pedra na praça
amarra cavalos. Dirceu encontra-se com Cirilo na praça e comenta todo
feliz sobre o acerto que fez com o padre Rocha.
DIRCEU
O padre Rocha vai à fazenda rezar o casamento de vós mercê
e dos outros, Cirilo.
233
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Serra do Ita-corumi. Dirceu e Cirilo sobem a serra do Ita-corumi. Os
dois cavalgam lado a lado.
DIRCEU
A madrinha de dona Marília não mora em Vila Rica, não
Cirilo. Fiquei sabendo que ela mora em outra vila, lá em
Mariana. Dona Marília, a quem tanto quero vê-la, está ainda lá,
na casa da "dindinha" dela...
.CIRILO
(mede a serra com os olhos)
Ué, se é em Mariana, basta dar outra volta pela serra e
nhozinho chega lá...
DIRCEU
Eu conheço Mariana, mas eu não sabia que esta serra também
dá acesso até ela...
(olha para Cirilo meio apreensivo e frea a rédea do cavalo)
A viagem é muito demorada até lá, Cirilo?
CIRILO
Não. Se chicotar o cavalo chega lá mais rápido que o vento...
DIRCEU
(solta uma gostosa gargalhada e espora o cavalo)
Não tenho nenhum compromisso hoje com a fazenda. Vós
mercê toca a viagem, vamos estar em Mariana.
CIRILO
(também espora o cavalo)
Se é assim, nhozinho, segure firme a rédea do cavalo e vamos
para lá...
CIRILO E DIRCEU CAVALGAM A SERRA ITA-CORUMI EM
DIREÇÃO À MARIANA.
234
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 94 – EXT./DIA. VILA MARIANA.
Dirceu e Cirilo chegam em Mariana galopando em seus cavalos.
Movimento urbano. Dirceu e Cirilo chamam a atenção de algumas
pessoas que estão pelas ruas. Comércio. Dirceu aproxima-se de um
armarinho em busca de informações. O DONO DO ARMARINHO
chama por um mulatinho. O mulatinho monta em um burro e leva
Dirceu e Cirilo até a casa da costureira Berta. Porta da casa da costureira
Berta. Dirceu tira um patacão do bolso e entrega ao mulatinho. O
mulatinho sai dali, montado no burro. Porta da casa da costureira Berta.
Dirceu pula-se do cavalo, entrega as rédeas para Cirilo e aproxima-se da
porta da casa da costureira Berta. Armarinho em frente a casa da
costureira Berta. LAURA, uma moça branca, loira e bonita, de 17 anos
se encontra na porta do armarinho, tocando em algumas toalhas e
colchas de renda. Laura observa Dirceu tentando chamar por alguém na
porta da casa da costureira Berta. Dirceu mostra-se desajeitado. Dirceu
coça as pernas, tenta novamente chamar por alguém, mas acaba
desistindo. Laura olha apara Dirceu, dá um passo para frente para tentar
ajudá-lo, mas Dirceu aproxima-se de Cirilo e monta em seu
cavalo.Cavalos de Cirilo e Dirceu. Pequena mercearia, em frente a casa
da costureira Berta. Dirceu e Cirilo pulam-se de seus cavalos. Poste.
Cirilo amarra o cavalo dele e o de Dirceu no poste. Mercearia. Dirceu e
Cirilo entram na mercearia. Balcão. HOMEM MORENO atende
Dirceu e Cirilo, no balcão. Petiscos em cima do balcão. Dirceu e Cirilo
servem-se dos petiscos. Olhos de Dirceu vigiando a casa da costureira
Berta. ALGUMAS MULHERES BRANCAS, elegantes, entram e saem
da casa da costureira Berta.
DIRCEU (VOICE OVER)
O meu coração palpitou forte. Mal entramos em Mariana e
logo procurei informações sobre a casa da costureira Berta.
Obtive as informações desejadas por intermédio de um
bondoso senhor que, não só nos prestou as informações,
como também ordenou a um mulatinho que montasse num
burrico e nos levasse à casa da madrinha de Marília. Ao
chegarmos à porta da casa da costureira, tirei um patacão do
235
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
bolso e lancei-o ao mulatinho. Alegre, aproximei-me da porta
da casa e, não sei por que, senti uma sensação estranha a
correr pelo meu corpo. Creio que a sensação partia de um
simples pressuposto: eu não conhecia Marília, a irmã dela e
nem tampouco a madrinha. Cocei as pernas, nervoso, ameacei
uma, duas ou três vezes gritar por alguém na porta e não tive
coragem. Montei e convidei Cirilo a ir comigo para uma
pequena mercearia em frente da casa. Lá, pedimos a um moço
que nos servisse deliciosos petiscos. Enquanto eu comia, os
meus olhos, esperançosos, vigiavam a porta da casa para ver
se Marília saía dali para ver a rua ou ir a algum lugar. Num
entrementes, mulheres chegavam à porta da casa de dona
Berta, chamavam-na e, ao serem atendidas, enfiavam para
dentro da casa.
CORTA PARA
Rua da casa de dona Berta. Cavalos. Dirceu e Cirilo cavalgando na rua
da casa de dona Berta. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Se Marília saísse à porta para atendê-las, isso bastaria para
deixar-me contente, mas ela, infelizmente, não saía de lá.
Armarinho. Laura ainda se encontra na porta do armarinho, tocando
nas toalhas e colchas de renda. Cirilo vê Laura e, entusiasmado,
aproxima-se de Dirceu e comenta.
CIRILO
Nhozinho, por acaso, não tá procurando aquela moça bonita,
lá na porta da mercearia? Não é ela a dona Marília? Reparei
bem e vi que a moça de vez em quando olha para o
nhozinho...
Laura está de costas. Dirceu olha para Laura.
236
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Será aquela moça, a minha Marília?
Dirceu sorri e, de mansinho, aproxima-se de Laura. Porta do armarinho.
Laura continua de costas, distraída, observando as peças de renda.
Dirceu frea o cavalo em frente ao armarinho. Laura assusta-se e olha
para Dirceu. Dirceu olha surpreso para Laura e abaixa a cabeça, sem
graça. Ele tenta sair de perto de Laura.
DIRCEU
Desculpe, é que eu pensei que a sinhazinha fosse...
LAURA
(olha para Dirceu e responde imobilizada)
O moço está necessitando de informações?
DIRCEU
(diz "sim" com a cabeça)
Não sei se devo...
LAURA
Então é só falar. Quem sabe eu ou outro por cá, possamos
ajudá-lo...
DIRCEU
Meu nome é Dirceu, venho lá das bandas de Vila Rica. A
sinhazinha, por acaso, conhece a afilhada da senhora Berta, a
dona Marília?
LAURA
Meu nome é Laura, sou filha da senhora Berta, a costureira,
madrinha de Marília. Vós mercê está querendo ver a dona
Marília?
237
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Sim, dona Laura, venho de longe, porque criei coragem e
preciso de falar com a dona Marília...
LAURA
Se vós mercê pretende namorá-la, saiba, por conseguinte, que
ela já tem nos olhos e sente no coração o verdadeiro amor do
rapaz com quem irá se casar...
DIRCEU
Acho que disso todo mundo sabe. O italiano, não é? O
comprometido que nem o pai de dona Marília conhece.
LAURA
Creio que de quem estou falando não é do tal rapaz italiano,
estou falando de outro, qual dona Marília o conheceu na
venda de um português em Vila Rica. Ela nem o nome dele
sabe, apenas apaixonou-se e pronto!.
DIRCEU
Tem como chamá-la, por favor, cá fora, para que eu possa
pelo menos vê-la. Diga para ela que é o rapaz que ela viu na
venda do Zé Tomázio, do português, em Vila Rica.
LAURA
Então, vós mercê mora em Vila Rica?
DIRCEU
Precisamente em uma fazenda pra lá de Vila Rica...
Dirceu tira o chapéu, coça a testa e pula-se do cavalo. Dirceu chama por
Cirilo através de um sinal. Cirilo aproxima-se de Dirceu e pega o cavalo.
Cirilo afasta-se carregando o cavalo de Dirceu.
238
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
LAURA
Vens então de longe, em gajo? O que o coração não faz com a
gente. Se veio para vê-la, posso ajudar vós mercê. Chamarei
por ela na casa da senhora minha mãe...
Dirceu sinaliza um "sim", com a cabeça, um pouco acanhado. Laura
ajeita as colchas e as toalhas de renda na enorme mesa. Calçada. Laura
pula da calçada, atravessa a rua e alcança a porta da casa da costureira
Berta. Cirilo segura os dois cavalos pelas rédeas. Dirceu dá um sinal para
que Cirilo amarre os cavalos em um poste próximo a uma pequena
praça. Marília aparece na porta da casa com Laura. Marília e Laura
olham para Dirceu e cochicham. Calçada do pequeno armarinho.
Dirceu fica imóvel, do outro lado, na calçada do pequeno armarinho.
Ele observa Laura cochichando para Marília.
LAURA
É aquele rapaz, o nome dele é Dirceu e disse ter vindo de
longe para vê-la. Ele diz ser o mesmo gajo, qual me contaste
ter visto na venda do português.
MARÍLIA
Que atrevimento! Eu não o conheço. Eu apenas o vi uma
vez...
LAURA
Não o conhece? E daí? Agora chegou a vez de conhecê-lo.
Esse está bem próximo do que o italianinho arranjado por seu
tio e pelo seu pai.
MARILIA
Deve ser algum louco de Vila Rica ou de alguma terra desta
região...
LAURA
Que é louco, isso sim, mas pela sinhazinha...
239
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Isso lá são modos, Laura...
LAURA
Ora, Marília, vamos até o gajo. Vamos satisfazer as nossas
curiosidades...
MARÍLIA
Se há alguém curioso aqui, este alguém...
LAURA
Este alguém sou eu, não é? Sou e estou mesma curiosa, venha,
venha!
Laura pega a mão de Marília e a arrasta para o outro lado da rua. Laura e
Marília aproximam-se de Dirceu. Dirceu fica feito um bobo olhando
para Marília.
DIRCEU (VOICE OVER)
Quando Marília aproximou-se de mim, quase não pude
respirar. O meu coração bateu forte, os meus lábios tremeram
e as minhas pernas bambearam de emoção. Eu estava vendo e
sentindo exalar o perfume da minha linda e bela estrela
aproximando-se de mim...
CORTA PARA
LAURA
(olha para Marília e para Dirceu)
Não sei se tu o conheces, Marília. Este rapaz disse que veio de
uma fazenda pra lá de Vila Rica somente para ver-te.
DIRCEU
(olha para Marília)
240
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Sim, cá estou para ver a senhorinha, novamente. Há tempo
desejo matar esta vontade. Não sei se a sinhazinha lembra-se
de mim. Eu a vi uma vez no armazém de Zé Tomázio.
MARÍLIA
(sorri compassadamente, ajeita o cabelo na testa e responde
em tom baixo)
Sim, claro! Lembro-me do senhor, apenas de vista. Eu o vi na
venda do Zé Tomázio. Eu sempre encomendo algumas coisas
por lá, ainda mais quando o senhor meu pai resolve fazer
alguma festa em casa...
DIRCEU
(aproxima-se um pouco mais de Marília e se sente mais a
vontade)
Então gostas de festas?
MARÍLIA
Pequenos serões, coisas inventadas pelo senhor meu pai, nada
de muito exagero...
DIRCEU
Que bom vê-la. Desculpe-me, eu precisava fazer isso.
MARÍLIA
Eu também. Confesso ter gostado de vê-lo aqui. Espero que
tu vás um dia em minha casa conhecer o meu pai.
DIRCEU
Dom Manuel? Conheci-o hoje. Estive na tua casa com o
padre Rocha...
Marília morde os lábios. Dirceu resolve fazer uma brincadeira com
palavras.
241
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Fui lá para conhecê-lo e pedir a tua mão em casamento...
LAURA
(olha para Marília e depois para Dirceu)
Marília sempre jurou que quando lhe aparecesse um
pretendente, ambos, primeiramente, se conheceriam e depois
partiriam para as formalidades.
DIRCEU
(bate a mão na testa)
Meu Deus, fiz bobeiras, acho que coloquei os carros diante
dos bois e...
Marília olha assustada para Dirceu. Laura tagarelando, acaba
atrapalhando o desfecho de Dirceu.
LAURA
E perdeste a confiança da minha amiga, senhor Dirceu...
MARÍLIA
(resmunga com a cara fechada)
Perdeste mesmo, o que nem começou, graças a Deus...
DIRCEU
(tom sério)
Olha aí, está resmungando, senhora dona Marília, sei muito
bem que a senhora está de casamento marcado com um
italiano. Um gajo arranjado para vós mercê pelo teu tio e pai...
MARÍLIA
(arregala os olhos para Dirceu e morde os lábios com raiva)
Como sabes disso? Quem contou isso à vossa senhoria?
242
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(tom irônico)
O senhor, seu pai, ele disse que a sinhazinha irá casar com um
italiano rico e dar a ele netos europeus, italianos.
MARÍLIA
Meu pai disse isso para vós mercê? Então é verdade que foi lá
pedir a minha mão em...
DIRCEU
Não, não fui lá para pedir a sua mão em namoro. Nunca,
jamais faria isso sem a permissão de vossa senhoria. Fui até a
sua casa por acaso, acompanhado pelo padre Rocha...
LAURA
Foi lá acompanhado por um padre? Então na certa seria para
casar com a dona Marília.
DIRCEU
Ora, Laura, com essas tuas conclusões, vós mercê estraga
tudo...
MARÍLIA
Tudo de nada que ainda começou...
LAURA
(vira-se de costas para Marília e Dirceu)
Tá bom, ta bom, não está aqui mais a Laura, amiga de Marília.
DIRCEU
Posso esclarecer, Laura. Encontrei o padre Rocha na rua e ele
convidou-me para ir até a casa de um amigo que está por
mudar de Vila Rica para uma fazenda. Acompanhei-o devido
a um assunto pessoal. Fiquei surpreso quando descobri que
este moço de quem se despedia era dom Manuel, pai da jovem
que eu um dia avistei em Vila Rica e nunca mais a esqueci. .
243
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
LAURA
(vira-se de novo para Marília e Dirceu, batendo palmas e
sorrindo)
Que homem romântico!!! Meu Deus, está difícil ver outro cá
na terra...
MARÍLIA
(demonstra-se um pouco irritada e com vergonha)
E o que estamos fazendo na porta deste armarinho em pleno
sol quente, dona Laura? Acho melhor voltarmos para casa. A
dindinha pode estar a nos procurar. Vós mercê há um bom
tempo está por cá, vendo peças de enxoval e sonhando casarse com o Paulo Henrique, aquele mancebo desajeitado...
LAURA
Já falei para a amiga, que do meu destino cuido eu...
MARÍLIA
(tom irônico)
E está aí, noiva, prestes a casar e a mudar-se para uma
fazenda, onde se tornará uma sinhá a tosquiar ovelhinhas
brancas.
LAURA
(faz gestos engraçados com o corpo)
E de muitos gados, senhorinha. Quem sabe não serei igual à
Joaquina do Pompeu , que cada dia que passa fica mais rica.
MARÍLIA
Vos mercê poderá até tornar-te rica, nos moldes da dona
Joaquina mas, para isso, precisarás que os teus pais tragam-te
dois pretendentes para a festa de noivado. Quem sabe não
faria uma escolha melhor...
244
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
LAURA
Ora, senhora Marília, estás falando assim porque não gostas
do meu noivo. Além do mais, tu tens ciúmes, só porque
casarei primeiro.
Laura e Marília frente a frente, discutindo-se. Dirceu apenas observa a
discussão das duas amigas.
DIRCEU (VOICE OVER)
Fiquei reparando as duas raparigas trocando palavras em vão.
As duas, mesmo brigando, não deixavam de ser amigas. Elas
mantinham o assíduo cuidado de escolher palavras ao dirigirse uma à outra. Foi aí que aproveitei para perquirir Marília
sobre a questão de ela gostar ou não de morar em fazenda,
campo ou local semelhante ao locus amoenus.
CORTA PARA
Laura e Marília terminam a discussão. Dirceu olha para Marília e tenta
tocá nas mãos. Marília recua o corpo.
DIRCEU
Dona Marília, por ventura, não aceitaria casar-se comigo e
morar no campo?
MARÍLIA
(fecha a cara e faz-se sisuda)
Nunca! Eu prefiro viver presa em um convento a casar-me
com um homem de roça.
LAURA
E a amiga não haverás de morar com o pai na nova fazenda?
245
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Claro que morarei, Laura. Essa é a condição oferecida pelo
meu pai, no momento. Quanto a um marido, esse será
citadino, educado, servil, quem sabe, até um poeta...
LAURA
Então o homem da Itália não é um provinciano? Agricultor,
dono de uma vinha, sócio do teu tio... Isso tudo é o que a
sinhazinha sabe sobre ele...
MARÍLIA
E quem disse que casarei com um italiano? Ainda mais que
nem o conheço. Essa é uma ideia maluca do meu pai, Laura.
A sinhazinha bem me conhece, hei de desfazer esse desejo do
meu pai no tempo certo.
Laura olha para Dirceu, sorri e agarra Marília pelos braços para levá-la
para casa. Dirceu aproxima-se de Marília e segura-a pelo outro braço um
pouco nervoso.
DIRCEU
Quer saber de uma coisa, dona Marília? Eu sou do campo e
não troco a vida da fazenda por nada deste mundo. Espero
que a sinhazinha namore, case ou concubine com um
rapazote da cidade e viva com ele todas as aventuras possíveis.
Quem sabe, em minhas andanças pelo campo não encontrarei
a minha verdadeira Marília? Deus haverá de mostrar-me outra,
capaz de aceitar o meu amor e as minhas condições para
nutri-lo.
Silêncio. Laura e Marília seguem em direção à casa da costureira Berta.
Marília, duas ou três vezes olha para trás, como se querendo dizer
alguma coisa para Dirceu. Dirceu vai em direção a Cirilo, que lhe
entrega o cavalo. Cavalo. Dirceu monta no cavalo. Dirceu e Cirilo vão
para fugir em galope, mas Dirceu coloca a mão em um alforje,
pendurado na cela. Dirceu dá um sinal para Cirilo. Cirilo frea o cavalo.
246
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Porta da casa da costureira Berta. Laura e Marília andam em direção a
porta da casa da costureira Berta. Dirceu vê Marília e Laura andando em
direção à casa da costureira Berta. Dirceu sai galopando em direção a
Laura e Marília. Laura e Marília assustam-se, mas aguardam por Dirceu.
Dirceu aproxima-se de Laura e Marília. Alforje. Dirceu tira um leque do
alforje e entrega-o à Marília.
DIRCEU
Este objeto pertence à sinhazinha, eu o achei um dia...
Marília, surpresa, recebe o leque. Ela, confusa, agarra as mãos de Laura.
Marília e Laura entram na casa. Dirceu grita por Cirilo. Cavalos. Dirceu
e Cirilo saem galopando pelas ruas de Mariana. Dirceu e Cirilo saem de
Mariana a galope.
CAPÍTULO 6
SEQUÊNCIAS 95-114
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Casais vestidos elegantemente (Casa da Ópera)
Orquestra (Casa da Ópera)
Padre Rocha
Senhoras brancas
Moças negras
Sebastiana
Eulina
Quitéria
Inácia
Hipólito
Ambrósio
Cirilo
Hipólito
Josias
Raimundo Sobreiro
247
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Zé da Viúva
Dois fazendeiros
Dupla de sitiantes
Sitiantes, fazendeiros, esposas
e filhos
Dois seminaristas
Cavaleiros de dom Miguel
Zenilda
Dom Miguel
Vinte homens brancos e negros de Dom Miguel
Arigó
Safira
Escravos(as)da fazenda Paraíso
Jera
Mulheres negras da fazenda Paraíso
Raimundo
Jucá
Alceu
Endimião
Trácio
Marília
Laura
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 36.8 (para continuidade de ação em 36.9)
SEQUÊNCIA 95 - INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
Dirceu está na mesa de canto do quarto dele. Ele escreve em um
pergaminho, usando pena e tinteiro.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
248
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Nem tudo na vida são flores. A Marília sonhada por mim e
traçada no feitio dos meus amores, era uma moça tênue e
frágil, incapaz de enfrentar a vida do campo. Eu devia
reconhecer isso.
Visão panorâmica de Vila Rica. Igrejas. Casario. Casa da ópera de Vila
Rica. Casais elegantemente vestidos entrando na Casa da Ópera de Vila
Rica. Palco da Casa da Ópera. Atores no palco apresentando uma cena
de "O Parnaso Obsequioso", drama de Cláudio Manuel da Costa.
DIRCEU (OFF)
Em Vila Rica, assim como outras cidades da colônia, além de
possuir as mais belas igrejas de Minas Gerais, contava também
com um centro cultural e civilizador muito significante, capaz
de acolher as liras musicais, os poetas, escultores, pintores,
artesãos e arquitetos.
VOLTA PARA
Quarto de Dirceu. Mesa de canto. Pena sendo molhada no tinteiro.
Mãos de Dirceu escrevendo no pergaminho. Rosto de Dirceu fixado no
pergaminho. Imagens de Vila Rica, fazendas, campos com animais
pastando, cascatas, etc., conforme a narração de Dirceu em voice over.
DIRCEU (VOICE OVER)
Se essa cidade oferecia uma vida intensa às famílias de classe
média e alta, por que uma moça de lá haveria de aceitar a
casar-se comigo, um homem campesino, a ter tão pouco para
oferecer. Tudo o que eu podia oferecer a Marília era o dia, o
sol, a noite, a lua e as estrelas. Se Marília exigisse um pouco
mais, quem sabe eu não daria a ela também os rios, as cascatas
murmurantes, as relvas verdes e refrescantes, as ovelhas e os
gados a se confundirem nos campos pastoris e selvagens. E se
isso não bastasse, consultá-la-ia e, sem dúvida, ofereceria as
minhas parcas pedrinhas de ouro e os meus dois ricos
diamantes para que ela mandasse o mais caro artesão
249
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
transformá-los em uma joia rica e rara. E se ela ainda julgasse
tudo isso pouco, entregaria a ela minha alma sertaneja,
carregada de amor e de felicidade intensa, capaz de preencher
o vazio de seu coração e de sua alma. Se Marília soubesse o
meu tormento.
Tinteiro. Dirceu para um pouco de escrever e bate o braço no tinteiro.
O tinteiro cai sobre o pergaminho, borrando-o. Dirceu levanta-se rápido
da mesa de canto. Janela do quarto. Ele vai té a janela, abre-a. Céu.
Estrelas no céu. Ele contempla as estrelas no céu, rindo à-toa. A Lua
prateada ilumina todo o terreiro da fazenda.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Creio que as estrelas estão a pregar-me algumas peças. Não
mais as verei, dali por diante. Nesta noite, despeço-me de
todas e a partir de amanhã dormirei cedo e acordarei
madrugada disposto a ajudar os rapazes em todas as tarefas da
fazenda... Dessa forma esquecerei Marília e livrarei de viver
esse tormento...
DIRCEU FECHA A JANELA. ESCURIDÃO TOTAL.
SEQUÊNCIA 96 – INT./ DIA. VILA RICA. IGREJA DE SÃO
FRANCISCO DE ASSIS. INTERIOR DA IGREJA DE SÃO
FRANCISCO DE ASSIS.
Vila Rica. Fachada da Igreja de São Francisco de Assis. Dirceu tira o
chapéu e entra na igreja de São Francisco de Assis.
DIRCEU (VOICE OVER)
Certa vez, tendo de ir à Vila Rica duas ou três vezes a
negócios, aproveitei uma dessas viagens para marcar com o
padre Rocha o dia da celebração do casamento dos rapazes
com a moças da fazenda.
250
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Interior da igreja de São Francisco de Assis. Nossa Senhora cercada de
anjos músicos, de Mestre Ataíde, no teto da igreja. O padre Rocha está
sentado em uma confortável poltrona, próximo ao altar principal da
igreja. Pano úmido nas mãos do padre Rocha. Ele limpa um enorme
castiçal de prata. Há na igreja algumas SENHORAS BRANCAS e
MOÇAS NEGRAS auxiando o padre Rocha na limpeza da igreja.
MOÇAS NEGRAS varrem o piso da igreja e limpam os altares. As
SENHIORAS BRANCAS trocam os forros dos altares e arrumam
flores nos vasos. Dirceu está em pé, ao lado do padre Rocha. O padre
Rocha olha para Dirceu.
PADRE ROCHA
Então vós mercê é mesmo como o vosso pai! Não desiste
mesmo da ideia do casamento!
DIRCEU
Não, não desisto, padre Rocha. É justamente por isso que
estou cá. Venho para marcar o dia da celebração. É algo
simples, uma bênção aos noivos e só...
PADRE ROCHA
Como vê, meu filho, estou velho e cansado, mas creio que
poderei atendê-lo... Há tempo não saio por esta região,
inclusive para a fazenda do senhor seu pai, onde, conforme já
lhe disse, celebrei algumas festas santas...
DIRCEU
A viagem fará bem ao senhor, padre. A paisagem do lugar é
bonita e a estrada, embora um pouco íngreme, tem melhorado
bastante...
PADRE ROCHA
(tosse secamente)
Desde que aumentou a vinda de tropeiros por cá, as estradas
têm se tornado boas, embora algumas perigosas...
251
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não estão tão perigosas como antes, padre Rocha. Com a
escassez do ouro, muita gente gananciosa tem se afastado para
outras capitãnias.
PADRE ROCHA
Isso é verdade, meu filho. Se vós mercê já providenciou todos
os acontecimentos da celebração, conforme prometi, lá estarei
eu. Possuo um espírito curioso e creio gostar de ver
novamente a fazenda e a capela, com toda a sua firmeza.
DIRCEU
(demonstra-se entusiasmado)
Embora os donos da fazenda, depois do meu pai, não tenham
conservado a capela, como bem merecia, estou com o
propósito de erguê-la, não somente conservando paredes,
torre e altar, mas também a fé cristão, padre Rocha.
Castiçal de prata. O padre Rocha tenta erguer o castiçal de prata. O
castiçal balança. Dirceu pega o castiçal das mãos do padre Rocha. Padre
Rocha aponta com o dedo para um dos altares da igreja, dando sinal
para que Dirceu coloque o castiçal. Dirceu carrega o castiçal de prata e
coloca-o no altar apontado pelo padre Rocha. Castiçal no altar. O padre
Rocha observa o castiçal no altar e olha para Dirceu.
PADRE ROCHA
É interessante que vós mercê pense assim. O senhor seu pai,
Zé Antônio, tem tentado aproximar os fazendeiros,
garimpeiros, mineradores e sitiantes da região, através de
festas religiosas, realizadas na capela. Eu, por exemplo,
participei de algumas delas, com gosto.
(faz uma pausa para respirar e prossegue)
Os demais donos deixaram a capela à mercê, creio que muita
gente dali esqueceu-se dela. Também, não é por menos, nem
eu mesmo sei a utilidade daquela capela construída ali...
252
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(arregala os olhos para o padre Rocha)
Como assim, padre Rocha, estaria aí o mistério?
PADRE ROCHA
É que para a igreja, essa capela de suas fazenda, não tem sido
muito útil. Não posso nem dar certeza se ela é ou não
confirmada pelo órgão de controle superior da Santa Sé.
Talvez esteja aí o mistério...
DIRCEU
Mas todas as igrejas são úteis, não são padre Rocha? E as
capelas também não são?
PADRE ROCHA
Sim, perante o olhar dos leigos, todas as igrejas e capelas, são
úteis. A capela da sua fazenda, por exemplo, tornará, a partir
de agora útil.
DIRCEU
Por que?
PADRE ROCHA
Porque a partir de agora possa servir para realizar casamentos
de escravos...
DIRCEU
Ora, vosso reverendo, expliquei ao senhor que os rapazes da
fazenda não são escravos...
PADRE ROCHA
Meu filho, como não,se até nós somos...
DIRCEU
Mas Deus não quis e não quer que o mundo insista nesta
imperfeição, padre.
253
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PADRE ROCHA
Deus é tão complacente e tão misterioso. Se vivemos os
propósitos d'ELE, não podemos jamais questioná-LO...
DIRCEU
Mas podemos questionar os homens...
PADRE ROCHA
Sim, claro, mas questionar os homens para se chegar a que
ponto...
DIRCEU
(um pouco sem graça)
Se o que eu estou pedindo ao vosso reverendo, custar caro,
para com Deus e, principalmente, para com os homens, por
favor, padre Rocha, não mais precisarei da sua bênção aos
rapazes e suas respectivas noivas...
PADRE ROCHA
Não, não vamos nos inflamar. Vamos resolver o que está
predito. Falei que iria e irei. Não é á-toa que vós mercê deseja
executar essa tarefa cristã. Deus haverá de estar triunfante
com tudo isso. Os sinais dados por ELE não devem jamais
ser ignorados. Deus trabalha em silêncio e usa um e outro
como sua ferramenta...
Altar principal da igreja de São Francisco de Assis. Imagem do Cristo
crucicado. Padre Rocha olha para a imagem do Cristo crucificado.
PADRE ROCHA
Quem sou eu para ignorar os propósitos de Deus...
DIRCEU
Então falaremos sobre a data e...
REPICAR DE SINOS DE UMA IGREJA PRÓXIMA
254
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 97 - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
VARANDA DO CASARÃO.
Tarde. Varanda do casarão. Dirceu está sentado em um tamborete, na
varanda do casarão. Sebastiana, Eulina, Quitéria, Inácia e Hipólito estão
sentados em um enorme banco.
DIRCEU
Acertei tudo com o padre Rocha e ele disse que fará gosto de
vir fazer o casamento dos rapazes com as moças. Vou
precisar da ajuda de todos, porque, tanto a capela, quanto este
quintal da fazenda ferverá de gente. A festa há de ser bonita,
coisa que há muito tempo não se vê por essas bandas. Vós
mercê lembra-se de todas as iguarias que eram feitas para o
povo comer, Sebastiana?
SEBASTIANA
Eu lembro claro. A velha aqui caduca apenas ao esquecer-se
dela, mas das coisas que faz e que já foram feitas para agradar
os nhozinhos dela, jamais... Nhozinho pode ficar
despreocupado que eu e as moças da casa resolvemos tudo...
Ainda mais estas três mocinhas, noivinhas, casando em igreja
com padre e tudo...
Eulina, Quitéria, Inácia balançam a cabeça afirmando um "sim".
DIRCEU
Estamos fazendo o que é certo. Se casais brancos unem-se nas
igrejas em nome de Deus, Criador e Dono de todas as
criaturas, qualquer raça, por certo, deverá unir-se suas carnes
perante a igreja.
SEBASTIANA
Basta nhozinho dar ordem do que fazer para o povo comer na
festa, que estamos na cozinha prontas para as tarefas.
255
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Sebastiana levanta-se do banco e dá um sinal para que Eulina, Quitéria e
Inácia sigam-na. As quatro mulheres entram no casarão. Hipólito olha
para Dirceu todo entusiasmado.
HIPÓLITO
Tô vendo nhô muito entusiasmado com a festa. Eu tava até
pensando por que nhozinho não faz no dia uma brincadeira
que todo mudo desta região gosta.
DIRCEU
E qual é esta brincadeira que todo mundo gosta, Hipólito?
HIPÓLITO
O pega-boi é uma brincadeira muito conhecida pelos
moradores destas bandas, nhozinho.
DIRCEU
Uai, por que não fazemos o pega-boi, ora?!
SEQUÊNCIA 98 - EXT. /DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
CAMPO DO PEGA-BOI.
Tarde. Campo com matos rasteiros. Enxadas. Dirceu, Ambrósio, Cirilo,
Hipólito, Josias e Miliquito com enxadas carpinando o campo.
FADE OUT / FADE IN
Tarde. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito terminando
de carpinar o campo.
FADE OUT /FADE IN
Tarde. Postes de madeiras. Cirilo, Ambrósio e Hipólito carregam postes
de madeiras. Miliquito, Josias e Dirceu armam cercas paralelas no
campo com os postes de madeiras.
256
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FADE OUT /FADE IN
Manhã. Pista cercada. Cirilo, Ambrósio e Hipólito terminam de
construir um brete para a contenção dos animais. Dirceu e Josias
vistoriam o mourão, reforçando os esteios.
FADE OUT/FADE IN
Tarde. O campo do pega-boi está pronto.Pista cercada. Curral. Brete
(para a contenção dos animais). Mourão. Cavalos. Dirceu, Ambrósio,
Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito vestidos de vaqueiros montam em
seus cavalos para treinarem o pega-boi. Boi saindo do brete e correndo
para a pista cercada. Dirceu e Josias correm atrás do boi. Josias derruba
o boi pelo rabo. Todos dão risadas.
DIRCEU (VOICE OVER)
Hipólito lembrou-me de uma brincadeira interessante. O
pega-boi dava aos vaqueiros da região a oportunidade de
demonstrarem todas as suas perícias no trato com o gado.
Nos dias seguintes, Hipólito, Cirilo, Miliquito, Josias e eu
reuníamos para os preparos da brincadeira. Nós dividimos o
campo com cercas e escolhemos os bois a serem derrubados
pelos vaqueiros. Todas as tardes nós treinávamos no campo a
brincadeira. Josias, o mais rápido entre todos, ensinava-nos a
cavalgar e a nos tornar ágeis para o jogo, ora usando o laço,
ora segurando o gado pelo rabo e até mesmo pelos chifres. Os
nossos treinos tornavam-se divertidos.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 99 - EXT. /DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
CAMPO DO PEGA-BOI.
Outras tardes. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito,
vestidos de vaqueiros, montados em seus cavalos. Boi saindo do brete e
257
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
correndo para a pista cercada. Hipólito e Cirilo correm atrás do boi.
Hipólito tenta laçar o boi, mas não consegue. Cirilo tenta aproximar-se
do boi, mas o boi corre dando coices. Todos dão risadas. Ambrósio
corre atrás do boi, derruba-o pelo rabo, mas cai do cavalo. (Vários
FADE OUT E FADE IN para alternar algumas tardes). Tarde. Boi na
pista cercada. Miliquito e Josias derrubam o boi. Cerca. AlGUNS
SITIANTES e FAZENDEIROS do lugarejo estão presentes,
observando a pega de boi, próximos à cerca. Cavalo. Dirceu pula-se do
cavalo e cumprimenta ZÉ DA VIÚVA, vaqueiro, baixo, magro, pele
clara e queimada pelo sol, de 32 anos de idade e RAIMUNDO
SOBREIRO, também vaqueiro, pele branca, queimada de sol, magro e
alto, de aproximadamente 28 anos.
DIRCEU (VOICE OVER)
Todos os dias, à tarde, apareciam sitiantes e fazendeiros da
região para SE divertirem conosco. Eu os convidava para os
treinos, deixando-os inteirados sobre a grande festa de
cerimônia de casamento dos rapazes. Numa dessas tardes,
recebemos a visita de dois vaqueiros, quais, depois, trouxeram
outros amigos para participar da nossa brincadeira.
Pôr-do-sol. Boi correndo na pista cercada. DOIS FAZENDEIROS do
lugarejo tentam derrubar o boi na pista cercada. O boi escapa dos dois
fazendeiros. Cerca. Zé da Viúva grita.
ZÉ DA VIÚVA
Assim, não há de ser... Assim, não... não há de derrubar boi,
nunca...
Cerca. Zé da Viúva, encostado na cerca, dá risadas. ALGUNS ali,
também, dão risadas. Dirceu solta uma gargalhada, tira o chapéu e olha
para Zé da viúva.
DIRCEU
És também amansador de cavalo bravo e derrubar de boi
corredor?
258
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZÉ DA VIÚVA
Meu nome é Zé, de onde venho, todos me chamam de Zé da
Viúva.
ZÉ DA VIÚVA
(dando risadas)
É porque fiquei viúvo três vezes, casando-me com mulheres
víúvas, em poucos meses. O meu último casamento, todos
comentam com audácia, pois eu nem cheguei a dormir com a
viúva. Não é que ela morreu antes do anoitecer?
(respira fundo e prossegue)
Sabe, inhô, já fui bom amansador de cavalo bravo e grande
derrubador de boi corredor e remetedor... Hoje vivo de
campinar boi manso e creio ter perdido os trejeitos...
Pista cercada. Cirilo e Ambrósio derrubam um boi pelo rabo. Risadas e
gritos. Dirceu olha para Raimundo Sobreiro.
DIRCEU
O companheiro de vós mercê também é bom no pega-boi?
Quem sabe, vós mercês não formam uma dupla e...
RAIMUNDO SOBREIRO
(tira o chapéu da cabeça e se apresenta)
Meu nome é Raimundo Sobreiro, vosso criado. Sabe "nhô",
gôsto não falta, qual vaqueiro dessa região não gosta de
brincar de pega-boi, vaquejada ou coisas assim?
(coloca novamente o chapéu na cabeça)
Pena que meu companheiro e eu temos tantos serviços na
fazenda, que não teremos tempo para treinar...
DIRCEU
Faz mal não. Vós mercês aparecem aqui numa tarde e n´outra
e juntem-se a nós para os treinos. Não estamos fazendo nada
oficial, só uma brincadeirinha para animar o casamento de uns
rapazes, qual acontecerá daqui a alguns dias...
259
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZÉ DA VIÚVA
Se é assim não vamos dispensar, não é Raimundo Sobreiro?
RAIMUNDO SOBREIRO
É, nós nem vamos pensar para responder ao "nhô". A
resposta é sim...
DIRCEU
Dirceu, o meu nome é Dirceu. Todos nós, nesta fazenda,
formamos uma só família...
RAIMUNDO SOBREIRO
Da pra vê, inhô, o povo aqui é feliz... O amigo e eu vamos
fazer o possível para comparecer nos treinos. No dia da festa,
quem sabe, podemos estar bom de tinir...
Boi na pista cercada. DUPLA DE SITIANTES do lugarejo, correndo
atrás do boi. UM DA DUPLA DE SITIANTES derruba o boi pelo
rabo. Boi caído na pista cercada. Todos gritam e bate palmas.
DIRCEU
Não é por mal que eu pergunto, vossas mercês trabalham em qual
fazenda nesta região?
ZÉ DA VIÚVA
Nós viemos de Rio das Mortes, tocamos o rebanho até a
fazenda em que estamos e fomos contratados pelo dono... A
fazenda é próxima a de "nhô". Ela fica acima do Rio dos
Cascalhos. O dono é desta região, lá de Vila Rica e, segundo
ele, logo mudará com a família para a fazenda. Tudo lá é
novinho, desde as terras, a casa, a senzala, os currais, as
cancelas... coisa de que ainda está sendo construída para ser
inaugurada...
260
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(coça o nariz e ri disfaçadamente, falando por solilóquio)
CHIIIII!!!! Só falta a fazenda vir a pertencer ao tal dom
Manuel... O destino, por acaso, faria isso comigo? O que fiz
aos deuses para eu ser perseguido?
Abre a cancela, Um vaqueiro sai correndo pelo campo e agarra um boi
pelo rabo e o derruba.
TODOS GRITAM.
SEQUÊNCIA 100 - INT./EXT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA.
Amanhecendo. Canto do galo. Sol surgindo no horizonte. Fazenda
Ribeirão do Meio. Cirilo, Hipólito, Josias e Miliquito colocam mesas e
cadeiras debaixo das árvores. Eulina e Inácia acabam de varrem o
quintal. Cozinha. Fogo no fogão a lenha. Sebastiana mexe colher de pau
nas enormes panelas no fogão a lenha. Quitéria coloca compotas de
doces, bolos, biscoitos, pães de queijo, café, leite e vinho, na mesa da
cozinha. Forno à lenha com assados e petiscos. Mesa com assadeiras
contendo pernis de carneiros e de porcos temperados. Ambrósio e
Cirilo colocam enormes assadeiras de pernis no forno à lenha. Buraco
com braseiro. Novilha sendo assada espetada em grandes e grossos
espetos de ferro. Forquilhas á beira do buraco com braseiro para virar a
novilha. Cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Cavalos. Padre Rocha.
Dois jovens seminaristas e um velho zelador da igreja de São Francisco
de Assis chegam à cancela da fazenda, montados em seus respectivos
cavalos. Dirceu recebe o padre Rocha, os dois seminaristas e o zelador
da igreja de São Francisco de Assis, no terreiro da fazenda.
Cozinha. Compotas de doces, bolos, assados, café, leite e vinho na mesa
da cozinha. Café e cesta cheia de pães de queijo na mesa da cozinha da
fazenda. Dirceu, I padre Rocha, os dois seminaristas e o zelador da
igreja de São Francisco de Assis estão sentados à mesa da cozinha da
261
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
fazenda. Sebastiana e Quitéria servem para eles o café com os pães de
queijo e outras iguarias mineiras.
SEQUÊNCIA 101 – INT./DIA.
MEIO. VÁRIOS.
FAZENDA RIBEIRÃO DO
Relâmpagos riscando o céu. Cancela da fazenda, aberta. Movimento de
pessoas chegando à fazenda, uns a cavalo, outros em carros de boi e
outros a pé. São SITIANTES E FAZENDEIROS COM ESPOSAS,
FILHOS E CRIADOS. No campo construído para o pega-boi há
alguns vaqueiros desfilando com os seus cavalos. Ao redor da cerca do
campo de pega-boi Há algumas CRIANÇAS penduradas na cerca,
reparando os bois. Dirceu e padre Rocha cavalgam pelas campinas da
fazenda. Ao chegarem à entrada da fazenda, eles cumprimentam os
convidados. Ouve-se o fraco repicar de sinos da capela da fazenda.
ALGUMAS PESSOAS marcham-se para a capela. Interior da capela.
FIÉIS sentados nos bancos da capela. Altar da capela. Padre Rocha está
no altar da capela. Porta principal da capela. Os três casais, Cirilo e
Inácia; Hipólito e Quitéria; Miliquito e Eulina entram na capela. Altar.
Noivos aproximando-se do altar. Padre rocha defronte aos noivos, quais
ajoelham-se perto dele.
DIRCEU (VOICE OVER)
Não demorou muito e a vizinhança se achegou para a festa de
casamento dos rapazes e das moças da nossa fazenda.
Sitiantes, filhos e filhas de fazendeiros, acompanhados ou não
de seus criados, fizeram encher minhas terras de conversas e
barulhos. O padre, após cavalgar pelas campinas verdes da
fazenda, em minha companhia, marchou para a capela, vestiu
a sua batina festiva e aguardou pelos noivos para oficializar a
cerimônia de casamento. Os três casais Cirilo e Inácia;
Hipólito e Quitéria; Miliquito e Eulina entraram dignamente
na capela e ajoelharam-se no pequeno altar para receberam a
bênção de casamento do pároco.
262
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
Altar da capela da fazenda. Padre Rocha celebra dos rapazes e das
moças da fazenda.
PADRE ROCHA
Se não há nada que impeça a felicidade destes três casais, para
unir cada um deles em uma só carne, peço ao senhor Dirceu,
encarregado destas uniões, que dirija-se até cá, neste altar para
entregar as respectivas noivas aos seus futuros maridos.
Padre Rocha faz um sinal chamando por Dirceu. Dirceu aproxima-se do
altar. O padre Rocha pede a Dirceu que una as mãos de cada uma das
três moças aos seus respectivos noivos. Dirceu une as mãos dos casais
Inácia e Cirilo; Quitéria e Hipólito; Eulina e Miliquito. Dirceu dá dois
passos para o lado esquerdo. O padre Rocha continua a cerimônia.
PADRE ROCHA
A quem Deus une, homens e mulheres, para tornarem-se uma
só carne, jamais pode, perante a lei dos homens, se separarem.
A igreja se faz forte, quando os casais contraem matrimônios
e constituem famílias dentro dos preceitos cristãos.
Um dos jovens seminaristas traz a caldeira de água benta e coloca sobre
o altar. Padre Rocha desce do altar, pega a caldeira de água benta e
aproxima-se dos noivos e os abençoa com a água benta trazida por um
dos jovens seminaristas.
PADRE ROCHA
In nonime Patris et Fílii et spitiui Sancto.
FIÉIS
Amém!
Padre Rocha sobe novamente no altar e reza "O Pai Nosso", em Latim,
sendo acompanhado em seguida por todos os fiéis.
263
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PADRE ROCHA
Pater noster, qui es in caelis Sanctificétur nomen tuum:
Advéniat regnum tuum: Fiat voluntas tua, sicut in caelo, et in
terra.
FIÉIS
Panem nostrum quotidiánum da nobis hódie : Et dimítte
nobis débita nostra, sicut et nos dimíttimus debitóribus
nostris.Et ne nos indúcas in tentatiónem.
PADRE ROCHA
Sed líbera nos a malo.
FIÉIS
Amen!
Sequência 102 – Ext./Int./Dia. Fazenda Ribeirão do Meio. Vários.
Capela da fazenda cheia de gente. Chuva grossa. Logo abre-se o sol e
todos saem da capela. Cancela da fazenda. Noivos recebidos na entrada
da cancela da fazenda. Adultos comem e bebem, fartamente,
conversando em círculos. Crianças brincam de correr entre as árvores e
entre os adultos. Vaqueiros no campo do pega-boi. Vaqueiros em seus
cavalos correm no campo do pega-boi. Duplas de vaqueiros correm
atrás dos bois no campo de pega-boi. Pegadas de boi. Bois derrubados
pelos rabos, por vaqueiros. Cerca do campo do pega-boi. Padre Rocha
pendurado na cerca observando as pegadas de boi. Hipólito e Cirilo
correm atrás do boi. Hipólito laça o boi e derruba-o. Raimundo
Sobreiro e Zé da Viúva correm atrás de um boi. Raimundo Sobreiro
derruba o boi. Varanda do casarão da fazenda. Farias toca sanfona e
pessoas alegres estão em volta dele cantando modinha, na varanda da
fazenda. Mesas fartas com farofas e grandes gamelas com pernis assados
de carneiro e de porcos. Pessoas servindo-se à vontade.
Sequência 103 – Ext./Dia. Fazenda Ribeirão do Meio. Adro da capela
da fazenda.
264
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Tarde. Adro da capela da fazenda com pessoas em volta dele esperando
a apresentação de uma cavalhada. CAVALEIROS DA CAVALHADA
devidamente paramentados saem da estrada que liga a fazenda Ribeirão
do Meio à capela, marchando em fila dupla até o adro da capela. Adro
da capela da fazenda com os espectadores. Cavaleiros da cavalhada
iniciam o ritual de saudação, tirando os gorros e as facas das bainhas e
benzendo-se. Eles realizam no adro da capela, o torneio de corridas de
argolinhas e em seguida retiram-se desfilando. Eles beijam e agitam as
facas na direção aos espectadores. Os espectadores aplaudem os
cavaleiros da cavalhada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Um dos proprietários de uma fazenda próxima, conhecido
como Antenor, católico assíduo, pediu autorização a mim para
exibir uma tradicional cavalhada , ensaiada por uns homens de
uma associação religiosa da nossa região. Permiti a exibição.
Eles apresentaram a cavalhada, finalizando-a com um bonito
desfile de cavaleiros. Após a apresentação, Antenor agradeceu
a oportunidade e aproveitou para fazer-me um convite de
ingresso na associação religiosa de que ele fazia parte.
Quintal de frente da fazenda. ANTENOR, senhor de aproximadamente
50 anos, alto, magro, pele clara, bigode e barba bem aparados, vestido
de cavaleiro da cavalhada, encontra-se com Dirceu no pátio da fazenda.
ANTENOR
Festa muito bonita, senhor Dirceu. Há tempo não vemos cá,
tanta gente alegre a se unir e a se divertir tanto, uns com os
outros...
DIRCEU
Alegre, sou eu quem estou, Antenor. Isso se dá devido ao fato
de eu saber que os meus compatrícios não medem esforços
para compor a felicidade de todos.
265
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ANTENOR
Há tempo, fundamos cá uma associação religiosa, precingindo
vários fazendeiros e sitiantes. Aos domingos, reunimos numa
casa e outra para fazer as nossas celebrações eucarísticas.
Inventamos a cavalhada como uma harmonia capaz de
lembrar aos homens que para Deus é válido qualquer proeza
ou ação arriscada para eternizar o seu nome. Gostaria, se vós
mercês aceitar o convite, vir a fazer parte de nossa irmandade.
DIRCEU
Faço gosto, senhor Antenor, depois desta belíssima
apresentação e com uma capela esperando por
acontecimentos desta ordem, não tenho como não aceitar o
convite...
Dirceu e Antenor conversam no pátio da fazenda. PESSOAS andando
de um lado para o outro. CRIANÇAS brincando umas com as outras.
MULHERES ajudando a servir as pessoas. PESSOAS comendo
petiscos. NOIVOS e NOIVAS felizes, recebendo uma vez e outra
cumprimentos de alguém.
CORTA PARA
Estrada da fazenda Ribeirão do Meio. Carro-de-boi. Os últimos
convidados se retiram da fazenda em um carro-de-boi. Farias recolhe-se
na varanda, juntamente com Josias. Os recém casados respectivamente
com as suas noivas estão sentados em círculo, debaixo de uma árvore,
próximos á entrada da fazenda. Dirceu dirige-se aos recém-casados.
Três cartuchos nas mãos de Dirceu. Ele entrega os cartuchos a cada um
dos casais. Os casais abrem os cartuchos, retiram deles um pergaminho
com escritas góticas e letras douradas.
DIRCEU (VOICE OVER)
No final da tarde entreguei aos noivos o meu presente. Cada
um recebeu uma carta de alforria, tornando-se livres para ficar
ou partir da fazenda. Nessa época não era comum a prática de
266
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
presentear escravos com cartas de alforria, mas, como esse foi
o meu desejo de proprietário, bastou eu consultar um
especialista em Vila Rica e receber dele as devidas orientações
na preparação dos documentos. Eles resumiam-se numa
simples declaração de liberdade concedida por mim aos meus
cativos.
CORTA PARA
HIPÓLITO
(devolve o cartucho para Dirceu)
Carecemos disso não, "nhozinho". A nossa liberdade não "tá"
nesse papel escrito com letras douradas, mas "tá" na
consciência de vossemecê, que sempre nos trata como gente
branca...
DIRCEU
Liberdade alguma deveria estar escrita em papéis com letras
douradas, mas sim, na conciência dos homens, mas se
inventaram este capricho, nada melhor do que se prevenir. É
bom que vós mercês guardem estes papéis, porque nunca
sabemos o que pode acontecer amanhã. Logo, vós mercês
constituirão famílias e devem garantir a liberdade de seus
filhos. Saibam, vós mercês, que ninguém, nem vós mercês,
nem eu mesmo, mandam em nada da colônia. Em tudo, quem
manda, é Portugal, através de um rei, qual fica lá a escutar
relatos do que fazemos ou deixamos de fazer por cá...
FRONDOSA ÁRVORE. PÁSSAROS POUSANDO NA
FRONDOSA ÁRVORE.
SEQUÊNCIA 104 - EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CAPELA DA FAZENDA.
Legenda: “Algumas semanas depois...”
267
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu procura por Josias pela fazenda e ao ver o cavalo dele amarrado
em uma árvore, próxima à capela, dirige-se para lá. Porta de frente da
capela aberta. Dirceu tira o chapéu e entra na capela. Bancos da capela.
Josias está sentado em um dos bancos da capela. Dirceu, com o chapéu
na mão, aproxima-se de Josias e senta-se no banco ao lado dele.
DIRCEU
Meu amigo, tenho procurado-o por toda a fazenda, desde
cedo. O que fazes, aqui. Parece-me triste...
DIRCEU
Estou tendo alguns sonhos confusos, nhozinho...
DIRCEU
Sonhando com a Zenilda?
JOSIAS
Sim, acho que é algum sinal...
DIRCEU
Então está na hora de agir. Aconselho o amigo a atrelar o seu
orgulho, pegar o cavalo e rodar por aí, pelas fazendas para
localizar a Zenilda. Como já lhe falei, ao encontrá-la, volte e o
resto cuido eu...
JOSIAS
Sei não, nhozinho, o coração aqui, apertado, não me diz
coisas boas...
DIRCEU
Às vezes o coração nos engana, Josias. Creio que os
sentimentos se confundem e faz surgir no nosso âmago coisas
ruins. É bom que o amigo aja, prepare uma viagem e vá atrás
do seu destino. Quando encontrar Zenilda, dependendo da
situação em que ela se encontra, volte cá, ao seio dos amigos,
para que possamos estudar e ver como ajudá-lo... Creio que a
268
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
criança está por nascer e vós mercê terá como ampará-lo,
aqui, em nossas terras.
JOSIAS
Estou pegando fé com a santinha, qual deixei enterrada lá no
morro, com pepitas de ouro e tudo. Quem sabe ela não me
fará um milagre. O mundão é tão grande, são tantas fazendas
aqui e acolá para serem vasculhadas por mim. E no mundo há
tanta gente má, basta ver de longe um negro e já quer
escravizá-lo, tratá-lo feito animal selvagem.
DIRCEU
Então, para que vós mercê não sofra nenhum tipo de ameaça
ou risco, perante a essa gente má, aguarde por alguns dias.
Logo irei a Vila Rica e providenciarei um documento de
alforria para vós mercê...
JOSIAS
Carece não, nhô Dirceu. Sei como lutar pela minha liberdade.
Deus fez o homem livre, com direito de ir e vir, como bem
entender, pelo mundo afora...
DIRCEU
A lei dos homens são sempre contrárias as de Deus, Josias...
JOSIAS
Mas creio obedecer à lei de Deus. Se Deus estiver também ao
lado dos negros, hei de obedecer "nhozinho". Só vou esperar
por algumas luas e conforme for, pegarei o cavalo de
"nhozinho" emprestado e vou tourear toda a campina até
chegar nos rastros da minha nega.
DIRCEU
É assim que se fala e que se faz, Josias. Tudo o que vós mercê
há de se servir, primeiramente, é de cautela. Nada de tomar
medidas precipitadas. Estude a situação de Zenilda e,
269
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
conforme a situação em que ela se encontra, volte e nós
pensaremos como agir.
JOSIAS
Nhô, sim; nhô, sim.
CORTA PARA
Serras da região ouropretana. Josias, a cavalo, vestido com um matolão
de couro, desce e sobe as serras da região ouropretana.
DIRCEU (OFF)
Josias permaneceu calado por alguns dias e, numa bela noite
surpreendeu-nos quando se declarou apto a procurar pela
mulher amada. Dois dias depois, após preparar uma pequena
provisão, ele sumiu numa madrugada cinzenta. Nós, cá na
fazenda, cuidando dos nossos afazeres, ficávamos curiosos
pela chegada dele e quem sabe, também de sua amada,
Zenilda, com o filho no ventre, perto de nascer.
SEQUÊNCIA 105 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
MANGA DO PASTO. CURRAL.
Manga do pasto. Cirilo cavalgando na manga do pasto. Cavalo arreado,
magro e faminto, solto na manga do pasto. Cirilo, de longe, vê o cavalo
arreado, magro e faminto, solto no pasto. Ele galopa apressado em
direção ao cavalo arreado, magro e faminto, solto no pasto. Ele observa
o cavalo arreado, magro e faminto, solto no pasto e pega-o pelo arreio
sem dificuldade alguma. Ele fala por solilóquio.
CIRILO
Uai, sô. Este cavalo é o do Josias... Será se aconteceu alguma
coisa com o moço? Pode ter acontecido e o cavalo, como
conhece a fazenda, debandou por esses rumos...
270
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cirilo cavalga, arrastando o cavalo arreado, magro e faminto. Ele troteia
até a cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Hipólito, Ambrósio e
Miliquito estão no curral. Cirilo grita por Hipólito.
CIRILO
Hiiiipoooooolitooooo!!!
Curral. Hipólito escuta o grito de Cirilo. Ele larga uns arreios no chão,
para um momento, ergue a cabeça e olha para Miliquito e Ambrósio.
HIPÓLITO
Cês escutaram? É o Cirilo gritando por mim...
MILIQUITO
Então é melhor vossemecê tratar de ir ao encontro dele que
ele deve de estar avexado com alguma coisa, Hipólito...
AMBRÓSIO
Não é de se ver Cirilo gritar por ninguém da fazenda...
CIRILO (OFF)
Miliiiiquiiiiitoooooooooo!!!
MILIQUITO
Virgem Santa mãe de Deus, não é que o Cirilo "tá" gritando
por mim também... Vamos lá, vamos socorrer o homem...
AMBRÓSIO
Vós mercês vão lá, que eu dou conta do serviço cá. Se precisar
de mim, vós mercês podem gritar...
Miliquito e Hipólito saltam duas ou três cercas do curral e correm para o
pátio da fazenda. Cancela da fazenda. Cirilo está do lado de fora da
cancela da fazenda segurando o cavalo arreado, magro e faminto, que
ele encontrou no pasto. Miliquito e Hipólito correm em direção à
cancela da fazenda. Cancela da fazenda. Miliquito e Hipólito abrem a
271
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
cancela da fazenda e correm em direção de Cirilo. Cavalo arreado,
magro e faminto, nas mãos de Cirilo. Miliquito e Hipólito olham
espantados para o cavalo arreado, magro e faminto. Cirilo pula-se do
cavalo, amarra-o num tronco de uma árvore e fica apenas segurando o
cavalo arreado, magro e faminto, que ele encontrou no pasto.
CIRILO
Encontrei o cavalo de Josias, está aqui no pasto, magro e com
fome... Venham, todos, deve ter acontecido coisa ruim com o
nosso amigo...
Estrada. Dirceu vem a cavalo em direção à cancela da fazenda. Dirceu
vê Miliquito, Hipólito, Ambrósio e Cirilo do lado de fora da cancela.
Dirceu apressa o galope em direção à cancela da fazenda.
MILIQUITO
É o cavalo do Josias, meu Deus, como "tá" magro, parece que
vem de viagem longa...
HIPÓLITO
Se o cavalo chegou sem o dono, decerto aconteceu alguma
coisa perigosa, nhô Dirceu...
DIRCEU
(sem apear do seu cavalo, observa o cavalo de Josias nas mãos
de Cirilo)
Deus permita que não!
CIRILO
Olha só, nhô Dirceu, encontrei este cavalo judiado, no pasto.
Ele é de Josias. Estamos cá pensando, será se não aconteceu
nada de mal com Josias? Esse negócio de aparecer só o
cavalo, ainda mais assim, magro, faminto...
272
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(observa o cavalo de Josias)
Foi nada de grave, não. Josias apenas judiou do pobre do
cavalo, viajando noite e dia...
DIRCEU
(olha para Cirilo)
Cirilo, leve o pobre do cavalo para a fazenda, desarreia-o e
solte nos pastos do fundo.
DIRCEU
(olha para Hipólito e Miliquito)
Vós outros vasculhem toda o pasto, procurem pelo Josias,
quem sabe ele pode estar caído por aí... Quanto a mim, vou
verificar se ele está na capela...
HIPÓLITO
A capela deve está fechada, nhozinho...
Dirceu não dá atenção para Hipólito. Ele sai dali cavalgando em direção
à capela. Capela. Porta da capela. Josias, magro e abatido, está
desmaiado na porta da capela. Dirceu toca em Josias, aproxima os seus
ouvidos no peito de Josias, verificando se ele está vivo.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Desgraceira, sô. Mais uma desventura deste meu amigo... O
que o amor é capaz de fazer a um homem. Isto não está
apenas nos livros, mas também, na vida real.
UMA CORUJA PIA NO ALTO DE UMA ÁRVORE.
SEQUÊNCIA 106 - INT. /EXT./ NOITES/DIAS. CASARÃO DA
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE JOSIAS.
CAPELA DA FAZENDA.
273
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Quarto de Josias. Josias está deitado na cama, com febre, delirando ao
repetir várias vezes o nome de Zenilda. Sebastiana entra no quarto e
serve para Josias um caldo. Josias não consegue beber o caldo. Quitéria
molha um pano numa bacia, aplicando compressas na testa de Josias.
Josias, delirando-se de febre, move a cabeça de um lado para o outro.
JOSIAS
Não devia ter feito isso, Zenilda... Oh, minha Zenilda... Onde
está o meu filho? Escondeu ou matou ele no ventre?
Dias depois Josias está deitado na cama, um pouco estabelecido. Dirceu
está ao lado de Josias, sentado em um tamborete. Compressas de pano
molhado no rosto de Josias. Inácia aplica compressas de pano molhado
no rosto de Josias. Josias abre os olhos e olha para Dirceu.
DIRCEU
Conte-nos, Josias, o que aconteceu? Por que voltaste da
viagem, tão abatido?
JOSIAS
Zenilda, nhozinho, Zenilda...
DIRCEU
Que sucedeu, com a Zenilda?
JOSIAS
Desgraceira, sinhozinho, só desgraceira...
FADE OUT / FADE IN
Quarto de Josias. Josias está sentado na cama. Sebastiana servindo um
caldo para Josias. Josias bebendo o caldo. Vários fade out e fade in para
marcação de tempo: dia e semanas. Josias andando sozinho no quintal
da fazenda. Josias sozinho no seu quarto. Josias distante das pessoas da
fazenda. Josias sentado em um dos bancos da capela.
274
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Josias, aos poucos foi se estabelecendo a saúde. Quando ele
pôde ficar de pé, nos dando a esperança de que a sua vida
haveria de se prosseguir, ele começou a agir de forma
esquisita. Ele se isolava, não falava com ninguém, ora fugindo
para o quintal da fazenda, para o seus aposentos e até mesmo
para a capela, gastando todo o dia sentado num canto, feito
boi raivoso, amuado. Aconselhei aos rapazes a deixá-lo agir
daquela forma, quem sabe, ele mesmo, agindo daquela forma,
não encontraria respostas para resolver seus próprios
problemas?
CORTA PARA
Josias está amoado a um canto, no chão da capela. Dirceu observa
Josias de uma das portas laterais da capela. Ele tira o chapéu da cabeça,
faz o sinal da cruz e entra na capela aproximando-se de Josias.
DIRCEU
Creio que o amigo não há de ter vergonha de mim. Quando
um homem enfrenta problemas e tem amigos, a quem possa
confiar, qualquer parte do problema pode ser resolvido, senão
todo...
JOSIAS ENCARA FIRMEMENTE PARA DIRCEU.
JOSIAS
Meus problemas não há de serem resolvidos nunca, sinhô
Dirceu.
Dirceu senta-se no chão, acomoda-se e coloca o chapéu no colo. Josias
também se ajeita o corpo.
DIRCEU
Como pode ter tanta certeza disso?
275
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
A Zenilda aprontou desgraceira...
DIRCEU
Aprontou desgraceira? Como assim?
JOSIAS
Vou confessar a vossemecê a história e quero que sinhô ouça
como a um padre...
DIRCEU
Como bem quiser Josias. A sua história começa aqui e termina
aqui, também... Se for algo que posso fazer alongaremos a sua
história para que tenha um final feliz...
Josias coloca as mãos na cabeça. Algumas lágrimas saltam das faces
queimadas de sol, de Josias. Ele respira fundo, ajeita-se o corpo no
canto da parede e olha para Dirceu.
JOSIAS
Feliz, não. Quem age feito demônio, pode lá, ser feliz?
Dirceu abana a cabeça, dando um sinal de "não". Josias prossegue.
JOSIAS
Depois de cavalgar muito pelas capoeiras afora, beirando as
fazendas e pedindo informações ao povo alheio, acabei sendo
informado por um sitiante que Zenilda estava na fazenda
Paraíso, qual fizera-se dona... Disse que ela parecia mulher
branca, rica a mandar em tudo e em todos.
DIRCEU
Vós mercê acreditou nisso, Josias?
276
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Não só acreditei como aproximei da fazenda e vi com os
meus próprios olhos sinhozinho, que a terra há de comer um
dia... Escute só, não é que a danada entregou o mineiro e a
esposa dele para o dom Miguel?
DIRCEU
Aconteceu isso?
JOSIAS
Sim, não é invenção e nem sombra de minha cabeça. É pura
verdade, sinhô, verdade, sim. Quando contei para o
sinhozinho, sobre o escorijo na caverna em que ela
desapareceu no amanhecer do dia, não é que a danada me
deixou ali dormindo e foi estar com o bando de dom Miguel,
ainda naquela madrugada...
DIRCEU
Meu Deus, quem podia contar com uma desventura dessa...
JOSIAS
Foi o que aconteceu. Escute só, sinhô Dirceu. Quando eu
abandonei o cavalo e corri com Zenilda serra acima,
escondendo aqui e acolá, em grotas e valas, tarde da noite,
quando o barulho era só de corujas e cobras, encontramos
uma enorme gruta e escondemos dentro dela. Ela e eu
deitamos ali, agarrados, trocando carícias, até que eu dormi.
Não é que a danada, aproveitou do meu sono pesado e fugiu
dali, indo atrás do bando de Dom Miguel...
DIRCEU
Não foi assim que havia terminado a sua história, Josias?
277
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Antes terminasse ali, sinhozinho, na manhã em que a cobra
picou a minha perna... Mas a Zenilda, a Zenilda é treiteira e
acabou fazendo desgraceira...
JOSIAS
Fiquei sabendo do restante da minha história com Zenilda,
depois do dia lá na gruta. Como vossemecê já conhece parte
dela, vai entender o resto. A Zenilda, inhozinho, abandonoume na gruta de madrugada e juntou-se aos homens de dom
Miguel. Não é que ela levou adiante a minha mentira e se deu
bem com dom Miguel...
VOLTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 36.8 (para continuidade de ação em 36.9)
SEQUÊNCIA 36.8 – INT./EXT./NOITE/DIA. VÁRIOS.
Flash back – Relato de Josias.
Gruta. Josias segue à frente e aproxima-se da entrada da gruta. A
luz da Lua ilumina-se o interior da gruta. Entrada da gruta. Josias
observa da entrada da gruta, todo o interior dela. Zenilda
aproxima-se de Josias, dá alguns passos à frente dele e entra na
gruta.
ZENILDA
(entrando na gruta)
Parece uma gruta tranquila, nem morcego tem...
JOSIAS
(entrando na gruta)
Até parece casa de branco, toda limpinha, asseada e
clarinha...
278
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZENILDA
(solta uma risadinha afiada e dengosa)
Vem cá, vem Josias. Vem para os braços de sua nega.
Josias aproxima-se de Zenilda. Zenilda está sentada em um canto
da gruta. Josias senta-se ao lado de Zenilda. Eles beijam-se na
boca, trocam carícias e deitam-se agarradinhos. Josias e Zenilda
dormem agarrados.
UM MORCEGO SAI VOANDO PARA FORA DA GRUTA.
ATENÇÃO: HÁ CONTINUIDADE DE AÇÃO EM 36.9
SEQUÊNCIA 36.9 – EXT./NOITE.GRUTA. MATO. TRILHA.
Lua cheia. Josias e Zenilda estão dentro da gruta. Josias dorme. Zenilda
levanta-se de mansinho, sai da grupa e anda por entre o mato. Trilha.
Claridade da lua cheia. Zenilda segue uma trilha. Na trilha há três
cavaleiros em circulo, conversando. Zenilda sai da trilha e esconde-se no
mato. Zenilda joelha-se no mato e escuta o diálogo dos três cavaleiros.
UM DOS CAVALEIROS
O negro é mesmo um idiota, o patrão ofereceu pra ele um
mundo de vantagens pra ele entregar o fazendeiro que
inventou a tocaia e ele não quis. Preferiu virar bicho e sair por
aí correndo pelo mato. O pior de tudo é que ele ainda levou a
pobre da crioulinha que nada tem a ver com isso tudo...
Mato. Zenilda à parte, ajoelhada no mato, sorri ao ouvir a conversa de
um dos cavaleiros. Ela fala por solilóquio.
ZENILDA
Então é verdade a história que Josias contou. Vou tirar
proveito nisso. Aquele fazendeiro desgraçou a minha vida e
279
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ninguém ali foi capaz de me defender, só bater com a língua, a
ponto de eu ser vendida e tocada por essas bandas... Ora, vou
lá viver vida de escrava, comendo sobra de comida de branco?
Vou dar meus jeitos, dizem que negro não tem o que perder
mesmo? Se vive, é só desgraceira; se morre, por ninguém será
lembrado.
Zenilda respira fundo e sai pé ante pé do esconderijo e se embrenha um
pouco mais no mato denso. Ela rasga a roupa do corpo e deixando os
bonitos seios desnudos. Zenilda cai de qualquer jeito no mato e grita
por socorro. Os três cavaleiros escutam o grito de socorro de Zenilda.
Eles saem circulando pelo mato.
UM DOS CAVALEIROS
O barulho vem daquele lado, é um grito de uma mulher...
OUTRO UM DOS CAVALEIROS
Ichi, só falta ser a negrinha que o danado roubou da fazenda...
Zenilda sai correndo do mato e vai em direção aos três cavaleiros.
Trilha. Os tr~es cavaleiros estão parados na trilha, olhando para um
lado e outro. Zenilda aparece de repente entre os três cavaleiros. Zenilda
chora, tapando os seios com as mãos.
ZENILDA
Socorram-me senhores, socorram-me. Fui roubada da fazenda
de Dom Miguel, por um negro maldito, perigoso. Ele deixoume desmaiada e só agora acordei espantada com o breu da
noite e os pios das corujas. Graças a Deus que vossemecês
estão por cá para me socorrem. Vejam senhores, o que o
maldito fez comigo. Danou-me toda...
Os três cavaleiros colocam Zenilda na garupa de um dos cavaleiros.
280
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
UM DOS CAVALEIROS
Vá urgente para a fazenda de dom Miguel e entregue a
rapariga lá. Ela precisa de alguns cuidados. Avise para dom
Miguel que já estamos nos rastros do negro...
O Cavaleiro sai a galope levando Zenilda na garupa do cavalo dele. Os
outros cavaleiros embrenham-se na mata densa iluminada pela lua cheia.
CORTA PARA
Fazenda de Dom Miguel. Dia. Sala da casa da fazenda. Poltronas.
Zenilda, bonita e muito bem vestida, está sentada ao lado de dom
Miguel.
DOM MIGUEL
Então a moça vai nos ajudar a chegar até aos culpados da
tocaia armada, qual matou o meu pai, meus irmãos e alguns de
meus servos?
ZENILDA
Ajudarei, claro, mas desde já aviso que aquele povo é muito
perigoso, sinhozinho...
DOM MIGUEL
Não mais do que os meus homens. Tenho um exército, se
precisar. Vou acabar com todos eles e depois, se vós mercê
ajudar-me mesmo, dar-lhe-ei como prêmio a fazenda e todos
os escravos que sobreviveram no massacre.
ZENILDA
(arregala os olhos para dom Miguel com alegria)
Trato é trato! Qual será a minha garantia?
DOM MIGUEL
Toda. Não sou homem de jogar palavras ao vento. Falo e
cumpro o que falo. Terá a fazenda e tudo lavrada em teu
281
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
nome. Vós mercê será a crioula rica, talvez a primeira em toda
a colônia.
ZENILDA
(fala por solilóquio)
Chegou a minha vez, senão por Deus, pelo diabo, entrego a
minha vingança. Nhô Arigó e sinhá Safira irão beber da minha
amarga vingança...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 36.10 – EXT./INT. NOITE. FAZENDA PARAÍSO.
VÁRIOS.
Fazenda Paraíso. Madrugada. Dom Miguel e sua tropa, de
aproximadamente vinte homens, invadem a fazenda Paraíso. Eles ateam
fogos nas senzalas. Escravos saem correndo de um lado para o outro. O
Casarão é cercado, tiros de bacamartes estouram pelos ares. Arigó está
no palheiro, nu, deitado com uma mulata e ao ver o fogo espalhando-se
pelo palheiro, ele sai correndo, tentando vestir as roupas. Uma tocha de
fogo cai nos pés de Arigó. Arigó tenta vestir a roupa. A roupa de Arigó
cai no fogo. Arigó sai correndo, apenas vestido com as roupas de baixo.
Safira, a esposa de Arigó, acorda com o barulho infernal e, vestida com
roupas de dormi, corre para a varanda, gritando por socorro. Ela recebe
um tiro no peito e cai morta no chão. Jera e algumas mulheres negras
sobem os degraus da escada do lado de fora para refugiarem-se na
varanda do casarão, mas os tiros acertam algumas delas. Jera morre,
cambaleando-se nos degraus. Homens negros fogem pelos bananais,
outros pegam a estrada e são cercados por homens brancos de om
Miguel, quais acabam de chegar na fazenda Paraíso trazendo mais
munições. Varanda da fazenda. Bacamartes. TRÊS HOMENS
BRANCOS, da fazenda Paraíso, com bacamartes nas mãos, atiram-se
contra os homens de dom Miguel, mas logo cessam-se os tiros, porque
acaba a munição. TRÊS HOMENS BRANCOS, da fazenda Paraíso,
saem correndo e são atingidos pelas costas ao entrarem na casa.
Cavalos, burros, éguas, ovelhas e porcos se espalham no terreiro da
282
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
fazenda, correndo, espantados. Um cachorro ataca um homem de dom
Miguel, que sai correndo e sobe na cerca de um curral. Amanhece o dia,
Jucá e Raimundo encontram Arigó no bananal da fazenda. Arigó está
ridiculamente vestido em trajes de roupa de baixo. Bacamarte apontado
na cabeça de Arigó. Jucá e Raimundo miram para Arigó a enorme
bacamarte. Arigó treme confuso e com medo.
ARIGÓ
Eu sou o dono da fazenda. O que estão fazendo, por que
estão destruindo tudo. Vossemecês atendem ordem de quem?
JUCÁ
Cale a boca, sô. As explicações devem ser dadas ao nosso
patrãozinho...
ARIGÓ
Patrãozinho? Quem é esse patrãozinho que está a desgraçarme?
Raimundo corre até um dos cavalos. Cavalo. Alforje amarrado na sela
do cavalo. Raimundo pega o alforje, abre e tira de dentro dele uma
corda. Raimundo corre até onde está Arigó e amarra-lhe as mãos com a
corda.
RAIMUNDO
Hoje é dia de prestação de contas. Como sabe, tem o dia da
caça e o dia do caçador...
Fazenda Paraíso. Dia. Porão do casarão da fazenda Paraíso. Chão do
porão. Arigó está caído no chão do porão. Mãos e pés de Arigó, atados.
Dom Miguel e Raimundo chutam Arigó violentamente. Arigó está com
a boca e nariz sangrando.
DOM MIGUEL
Então vós fostes o responsável por toda desgraça acometida à
minha família...
283
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ARIGÓ
Não sei do que vossemecê está falando...
DOM MIGUEL
Sabes, claro que sabes. Não fostes vós que armastes a tocaia,
para sacar a nossa riqueza e vitimar vários dos nossos
homens?
ARIGÓ
Não sei mesmo do que vossemecê está falando, homem. Sou
gente de paz, vivo aqui do meu trabalho, nunca roubei, matei
ou preparei tocaia alguma...
DOM MIGUEL
Pensas que irás me convencer de tua honestidade? Não sei
por que ainda estou a dialogar contigo.
(coloca a mão na cabeça para repor a consciência)
Eu já deveria ter feito, contigo, o que já fiz com todos,
mandar-te para o inferno...
(dá um chute em Arigó)
Desgraçado, a mocinha estava certa, não deves valer uma
roupa gasta...
Porta do Porão. Jucá entra pela porta do porão e dirige-se a dom Miguel
JUCÁ
A maioria dos escravos que sobreviveram foram capturados,
dom Miguel. Eles estão todos amarrados e estamos
aguardando ordens de nhozinho...
DOM MIGUEL
Diga aos homens que levem todos para a minha mineradora.
Deixá-los-ei lá para pensar depois o que farei. Eles agora
pertencerão a Zenilda...
284
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Arigó abaixa a cabeça. Jucá sai para fazer cumprir a ordem de dom
Miguel. Arigó fraco e cansado arregala os olhos assustados para dom
Miguel.
ARIGÓ
Zenilda, o que essa negra tem a ver com esta desgraceira toda?
DOM MIGUEL
(ri surpreso)
Então conhece a Zenilda, não conhece?
ARIGÓ
Esta crioula pertenceu a mim, eu a vendi depois que...
Dom Miguel dá um chute em Arigó. Arigó cai do tamborete gemendo.
Raimundo aponta a bacamarte em direção a Arigó. Dom Miguel olha
para Raimundo. Raimundo prepara a bacamarte para atirar em Arigó.
Dom Miguel grita.
DOM MIGUEL
Não atire, não atire. Creio que a minha vingança está no fim.
Sairei daqui, agora, vós mercê não se arreda o pé deste recinto.
Olhos abertos dia e noite, até quando eu retornar-me, cá.
Dom Miguel sorri. Par de luvas marrom em cima de um velho
tamborete. Dom Miguel pega o par de luvas marrom. Ele veste as mãos
com o par de luvas marrom. Porta do porão. Dom Miguel alcança a
porta e sai a passos rápidos. Raimundo senta-se no velho tamborete.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 106.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA.
285
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Capela da fazenda. Josias e Dirceu estão sentados em um canto, no chão
da capela.
JOSIAS
Como a Zenilda, infelizmente, aproveitou-se de todo o
aparato para vingar-se do fazendeiro causando desgraça à vida
daquelas pessoas inocentes, Dom Miguel deu jeito de arrumar
uma papelada, fazendo o fazendeiro assinar. A fazenda
Paraíso passaria dali por diante a pertencer a Zenilda...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 36.11 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. FAZENDA
PARAÍSO. PORÃO DO CASARÃO DA FAZENDA.
Flash back – Relato de Josias.
Porão do casarão. Mãos vestidas com um par de luvas marrom
segurando um bacamarte. Tamborete. Arigó sentado em um tamborete
com as mãos e os pés amarrados. Bacamarte apontado em sua direção.
Dedos. Aperto do gatilho da bacamarte. Tiro certeiro no peito de Arigó.
Arigó cai morto no chão. Dom Miguel com a bacamarte na mão. Dom
Miguel coloca a bacamarte no chão e sorri satisfeito.
DOM MIGUEL
Pronto! Está tudo resolvido. Se agi certo ou errado, a questão
do meu orgulho está na vingança. Vinguei o mal feito por ele
à minha família.
DOM MIGUEL
(cai de joelhos perto do cadáver de Arigó)
Agora é só entregar o corpo desse traste aos vermes.
VOLTA PARA
286
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 106.2 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA.
Capela da fazenda. Josias e Dirceu estão sentados em um canto, no chão
da capela.
JOSIAS
E aconteceu toda a desgraceira, sô!!! Não é que dom Miguel, o
príncipe do diabo, matou o dono da fazenda Paraíso e
entregou tudo aquilo nas mãos da Zenilda... A negra está lá,
vivendo o direito que Deus deu aos brancos...
DIRCEU
Meu Deus, que história mais dramática Josias? Então Zenilda
aproveitou-se de toda a esperteza para vingar dos donos da
fazenda Paraíso, matando a todos e tornando-se dona da
fazenda...
SEQUÊNCIA 107 – INT./EXT./NOITE/DIA.
RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE JOSIAS.
FAZENDA
Quarto de Josias. Josias está deitado na cama, com febre. Inácia molha
um pano numa bacia, aplicando compressas na testa de Josias. Josias
sofre uma terrível convulsão. Sebastiana que estava encostada na porta,
sai do quarto gritando por socorro. Dirceu, Miliquito e Josias entram
correndo no quarto de Josias. Dirceu e Miliquito erguem a cabeça de
Josias. Josias para de sofrer a convulsão e entra em estado de coma.
Farias olha para Josias e balança a cabeça negativamente.
FARIAS
Escapa não. Depois desse tremelico todo é morte certa.
Porta do quarto. Sebastiana está na porta do quarto. Sebastiana faz o
sinal da cruz na testa. Cirilo e Ambrósio, próximos a cama de Josias.
287
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cirilo entra no quarto apertando o chapéu no peito. Josias. Olhos
arregalados de Josias. Ele tenta respirar com dificuldades. Ambrósio
aparece na porta com uma vela acesa. Ele aproxima-se de Josias e com a
vela acesa na mão e segura-a entre as mãos de Josias. Reflexo da luz da
vela no rosto de Josias. Dirceu olha para Josias e fica em um fechar e
abrir de olhos. Lágrimas rolam do rosto de Dirceu.
DIRCEU
A vida Deus dá e Deus tira. Quem somos nós para ir contra a
vontade dele. Todo o mistério da vida se resume em alfa e
ômega, o princípio e o fim. Se é chegada a tua hora, amigo
Josias, sejas corajoso, não tenhas medo, porque é somente
através da morte que completamos em Deus a nossa
plenitude.
Josias abre os olhos e olha para Dirceu. Ele balança a cabeça levemente,
respira três vezes com dificuldade e morre. Dirceu balança a cabeça
negativamente. Ambrósio coloca a vela acesa em uma pequena mesa
que há no canto do quarto e volta até Josias para fechar-lhe os olhos.
DIRCEU
Ad infinitum, Josias. A Deus compete dar-lhe a vida eterna.
Dirceu afasta-se da cama de Josias e olha para Farias e Cirilo. Farias e
Cirilo estão assustados. Chapéus amassados sobre os peitos de Cirilo e
de Farias. Ambrósio e Sebastiana saem do quarto.
DIRCEU
Agora meus amigos, levaremos o corpo de Josias para a capela
e providenciaremos o enterro dele amanhã bem cedo.
Encomendaremos o corpo dele ao pó de onde viemos.
SEQUÊNCIA 108 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CEMITÉRIO DO PÉ DA SERRA.
288
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Manhã. Cemitério do pé da serra. Enterro de Josias. Rede com o corpo
de Josias. Miliquito e Cirilo carregam a rede com o corpo de Josias.
TODOS da fazenda Ribeirão do Meio acompanham o enterro. Cova
aberta. Rede com o corpo de Josias descendo à cova aberta. Terra
deslizando sobre a cova. Sepultura de Josias. Hipólito finca uma cruz na
cabeceira da sepultura de Josias. Todos fazem o sinal da cruz.
DIRCEU (VOICE OVER)
A morte de Josias causou lamentos a todos nós. Enterramos o
corpo dele na manhã do dia seguinte no cemitério do pé da
serra. Hipólito não se esqueceu de colocar a cruz na sepultura
dele. A cruz foi confeccionada pelo próprio Josias, enquanto
ele ficava amuado na capela. A fazenda, por algumas semanas,
tornara-se triste.
SEQUÊNCIA 109 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CAMPINAS. CHIQUEIRO DAS OVELHAS.
Tarde. Campinas. Dirceu montado no cavalo galopa pelas campinas.
Chiqueiro das ovelhas. Alceu, Endimião e Trácio cuidam das ovelhas.
Dirceu aproxima-se dos três pastores e fica na cerca observando o
rebanho. Cavalo de Dirceu amarrado numa árvore. Enorme pedra.
Dirceu, Alceu, Endimião e Trácio conversando sentados na enorme
pedra.
ALCEU
Nhozinho já deve de sabê que na fazenda acima, perto do rio
Ribeirão do Meio, já mora um pessoá. E quase todas as tardes,
três mocinhas vêm até o riacho pra tomá banho...
TRÁCIO
E elas fazem um barulhão, parecendo um bando de piriquito
quando se encontra num galho de uma mangueira...
DIRCEU
289
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
(surpreso)
E quem são as moças? São bonitas? São filhas do proprietário
da nova fazenda acima da nossa?
ALCEU
Eram duas mocinhas brancas e uma da minha cor...
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Seria a dona Marília, com as suas amigas, desfrutando nestas
terras o meu pedacinho do céu?
SEQUÊNCIA 110 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
VARANDA DO CASARÃO. VÁRIOS.
Tarde. Dirceu está deitado na rede da varanda do casarão. Ele fecha os
olhos e começa a sorrir.
CORTA PARA
Fantasia ou pensamento de Dirceu.
Campo florido. Marília está com uma cesta de flores correndo pelo
campo florido. Árvore. Dirceu escondido atrás da árvore, observando
Marília correndo pelo campo florido. Marília encontra-se com Dirceu
próximo a árvore. Marília e Dirceu caem no relvado e beijam-se. Árvore,
casal de pombos e de aves, na árvore. Rio, casais de peixes nadando no
rio. Mato denso, casal de serpente, de onça, de tigre e de leão, no mato
denso. Relvado. Marília e Dirceu estão sentados no relvado.
DIRCEU (VOICE OVER)
Quem sabe Marília não entregaria a alma à Natureza, quando
souber buscar lições de vida nela? A natureza é sábia e sempre
nos ensina lições maravilhosas, principalmente as lições de
amor. Se Marília observar a natureza com a percepção do
verdadeiro amor verá que todos ali também se amam: as
290
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
castas pombas, as aves, os peixes, a serpente venenosa, a onça,
o tigre e o leão... Somente Marília, na lei da natureza, teria
isenção? Lembrei-me das grandes deusas do Olímpio,
principalmente de Diana a suspirar de amor por Endimião.
Não, Marília, tu não queixarás deveras pelo amor que há de
abrasar em teu corpo, cuja inspiração virá do céu, da terra ou
do palácio dos sábios e generosos deuses.
VOLTA PARA
Varanda do casarão. Rede balançando. Dirceu levanta-se rapidamente
da rede, senta, coloca as mãos na cabeça e pensa.
DIRCEU (VOICE OVER)
Marília que esperasse por mim, pois, eu estava disposto a
cercá-la por todos os lados. O meu coração pedia isso e jamais
eu o negaria.
SEQUÊNCIA 111 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO.
Tarde. Dirceu montado em seu cavalo marcha até a fonte do ribeirão.
Fonte do ribeirão. Dirceu pula-se do cavalo e amarra-o no tronco de
uma árvore. Margens da fonte do ribeirão. Folhagens nas margens da
fonte do ribeirão. Dirceu entre as folhagens das margens da fonte do
ribeirão. Dirceu espia a fonte do ribeirão com atenção. Marília, Laura e
Rosa aparecem na fonte do ribeirão. Rosa a aia de Marília, senta-se
sobre a relva, ajeitando uma cesta de piquenique. Laura, ao avistar a
fonte, livra-se dos sapatinhos de couro e senta-se numa enorme pedra à
beira do regato. Pés delicados, de Laura, dentro da água da fonte.
Marília, toda barulhenta e marota, livra-se das roupas de cima e
mergulha na água da fonte, com a combinação.
LAURA
Marília, tu pareces uma tresloucada, onde se viu uma moça
elegante cometer tal ação?
291
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Pensas que venho aqui, para olhar a fonte? Ora, Laura, quero
refrescar-me por inteira...
Folhagens nas margens da fonte do ribeirão. Dirceu entre as folhagens,
observam Marília, Laura e Rosa. Dirceu entre as folhagens da fonte do
ribeirão escuta Laura pronunciar o seu nome. Dirceu tira o chapéu e
beija-o.
LAURA
Depois dizias ao tal Dirceu que jamais moraria numa roça ou
fazenda...
MARÍLIA
(bate as mãos na água cristalina da fonte)
Eu lá sabia destas delícias, Laura.
Marília nada na fonte. Ela atira água em Laura e dá risadas. Rosa estende
um pano branco na relva, abre a cesta de piquenique e retira dela alguns
talheres, guloseimas e potes de sucos. Rosa levanta-se e vai até a
margem da fonte chamar por Marília e Laura. Marília atira água em
Rosa. Rosa sai correndo da margem da fonte. Relvado. Marília, Laura e
Rosa lancham sobre o relvado.
DIRCEU (VOICE OVER)
Marília mergulhava na fonte, jogava água nas companheiras e
nadava feito uma sereia no pequeno lago azul e cintilante. Eu,
verve, como um desertor dos conselhos de Ulisses ouvia o
canto fatal da sereia. Marília não cantava, mas os seus gritos
causavam-me uma sensação sinestésica de uma cantiga suave e
melódica.
SEQUÊNCIA 112 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO.
292
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Tarde. Fonte do ribeirão. Dirceu pula-se do cavalo e amarra-o no tronco
de uma árvore. Margens da fonte do ribeirão. Folhagens nas margens da
fonte do ribeirão. Dirceu entre as folhagens das margens da fonte do
ribeirão. Dirceu espia a fonte do ribeirão com atenção. Marília, Laura e
Rosa estão na fonte do ribeirão. Laura está sentada na relva lanchando.
Árvore na beira da fonte. Galho da árvore. Marília e Rosa escalam um
galho da árvore. Cobra no galho da árvore. Marília vê a cobra e solta um
grito.
MARÍLIA
Meu Deus, uma serpente... Uma serpente Rosa...
ROSA
(segura firme em um dos galhos da árvore)
Tô vendo não, dona Marília, deve ser coisa da cabeça da
sinhazinha...
Galho da árvore. Marília fica imóvel. Cobra. Rosa também vê a cobra.
ROSA
Meu Deus, uma anaconda enorme... Dona Marília, a
sinhazinha tem razão. Vamos ficar quietinhas para ela não
atacar a gente...
Rosa e Marília gritam de pavor.
MARÍLIA
Socorro, Laura. Socorro, uma cobra no galho da árvore onde
estamos...
Relvado. Laura põe-se em pé, no relvado e corre para a direção da
árvore.
LAURA
Pulam, meninas, pulam! Pulam na água da fonte.
293
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cobra. Marília e Rosa estão imobilizadas no galho da árvore. Marília
olha para a água da fonte e para Laura. A cobra põe a língua para fora.
MARÍLIA
(gritando)
Socorro, Lauraaaaa!!! A cobra vai nos picar...
Folhagens nas margens da fonte do ribeirão. Dirceu entre as folhagens
das margens da fonte do ribeirão escuta o grito de Marília. Dirceu larga
o esconderijo, monta no cavalo, dá meia-volta e chega na fonte do
ribeirão. Árvore. Marília e Rosa em um dos galhos da árvore, gritando
desesperadas. Cobra enrolada em uma ponta do galho, abaixo do galho
em que está Marília e Rosa. Laura aflita, correndo de um lado e de outro
da fonte. Cavalo. Dirceu chega na fonte montado em seu cavalo. Laura
vê Dirceu e solta um grito grave e tênue.
DIRCEU
Eu estava andando pelas trilhas ao lado e escutei algum
pedido de socorro. Foi alguém daqui, foi...
LAURA
Sim, foi daqui...
Laura aponta para a árvore em que está Marília e Rosa.
LAURA
Uma cobra, uma cobra naquela árvore, querendo picar as
minhas amigas...
Árvore. Dirceu olha para a árvore. Marília e Rosa estão imobilizadas
devido ao choque. A cobra continua pendurada no mesmo galho.
Dirceu vai até a árvore. Dirceu sobe na árvore e tira da cintura uma faca.
Cobra. Dirceu dirige-se até a cobra e num só golpe, corta a cobra ao
meio. Marília faz cara de nojo, fitando Dirceu. Rosa alcança uma galha
abaixo e pula-se dela. Rosa cai no chão. Laura corre para socorrer Rosa.
Galho da árvore. Dirceu ajuda Marília a descer da árvore. Dirceu escuta
294
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
barulho de passos de cavalos. Dirceu monta em seu cavalo e saí
galopando pelo mato adentro. Pôr- do-sol.
SEQUÊNCIA 113 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CURRAL DA FAZENDA.
Curral. Dirceu e Hipólito estão no curral arrumando umas cercas.
Ambrósio chega no curral com um envelope na mão. Ambrósio entrega
o envelope para Dirceu.
AMBRÓSIO
Quem mandou disse que é urgente...
DIRCEU
(olha para o envelope)
Uma carta? Dificilmente eu recebo uma carta.
Envelope nas mãos de Dirceu. Ele abre o envelope e retira de dentro
dele um pequeno bilhete. Ele abre o bilhete, afasta-se um pouco de
Ambrósio e lê . Olhos de Dirceu correndo sobre as linhas escritas do
pergaminho.
MARÍLIA (LEITURA DA CARTA EM OFF)
Dirceu, perdoai-me se o magoei quando critiquei a minha
amiga sobre a vida do campo. Deus é testemunha do quanto
estou gostando da vida cá. Não tenho como compará-la com
a da cidade. Quando naquela tarde você apareceu na fonte do
ribeirão para salvar a mim e a minha criada Rosa, daquela
terrível serpente, nem imagina o quanto fiquei feliz. Quero vêlo, urgente, na fonte.Sua confusa e admiradora, Marília.
SEQUÊNCIA 114 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO.
295
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Tarde. Fonte do ribeirão. Relvado. Dirceu e Marília estão na fonte do
ribeirão, sentados no relvado, frente a frente, conversando.
DIRCEU (VOICE OVER)
Marília estava ali, na fonte, só, sem as suas companheiras
vesperais. Lá, sentados no relvado, conversamos bastante.
Nós falamos da vida da cidade, do campo e até mesmo da
possibilidade de nos conhecermos melhor. Percebi que
conversávamos com cuidado para não tocarmos na maldita
promessa do pai dela, em casá-la com o italiano que, nem
sequer, conhecia a nossa colônia.
Dirceu e Marília sentados no relvado, frente a frente.
MARÍLIA
Dirceu. Como e onde vós mercê achou aquele leque, qual
entregaste a mim, em Mariana?
DIRCEU
Marília, minha doce Marília, se isto lhe afugenta o espírito,
porque não contá-la a verdade. O leque encontrava-se com o
comerciante de Vila Rica, Zé Tomázio. Segundo ele, a
sinhazinha o esqueceu lá, quando foi com a Rosa comprar
alguma coisa. Daí, como ele me descobriu impressionado e
enfeitiçado pela sua beleza, ele entregou-me o leque para que
eu inventasse alguma história afim de aproximar-me de vós
mercê.Zé Tomázio agiu a mando do nosso cupido, ferindonos com o seu arco e carcás com setas para despertar amor e
paixão em nossas almas.
MARÍLIA
Eu havia procurado muito aquele leque. Eu jamais poderia
perdê-lo. O leque pertenceu á minha senhora avó materna,
depois à senhora minha mãe. As duas morreram e, porém, o
leque, acabou ficando comigo...
296
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Então as letras gravadas no leque são da senhora sua
avozinha?
MARÍLIA
Sim, as letras góticas "AM", gravadas a fogo, eram as iniciais
do nome composto da senhora minha avó, "Ana Maria”. Foi
ela quem sugeriu ao meu pai o meu nome de batismo: Marília!
DIRCEU
Não haveria de existir outro nome mais bonito. Marília. O seu
nome, ao mesmo tempo em que lembra o mar, lembra-se
também de uma ilha. Desta forma tu és Marília cercada de
amigos por todos os lados. Dentre esses amigos, queira a
mim, Marília, como o seu namorado.
Relvado. Dirceu põe-se pé no relvado. Dirceu pega as mãos de Marília e
a levanta. Dirceu passa as mãos na cintura de Marília e beija-a.
DIRCEU
Há ali uma frondosa árvore de carvalho. Vamos, pois, gravar os nossos
nomes no tronco dela.
(tira uma faca da cintura)
MARÍLIA
(tira a faca das mãos de Dirceu)
Dê-me cá este cinzel de prata, Dirceu. Creio que serei bem
mais romântica que vossa senhoria...
Frondosa árvore de carvalho. Marília corre até a árvore. Dirceu corre
atrás de Marília. Tronco da frondosa árvore de carvalho. Marília risca o
tronco com a faca, tatuando nele um enorme coração. Dirceu toma a
faca de Marília e risca no centro do coração as letras iniciais do nome de
Marília e dele. Marília e Dirceu dão risadas. Dirceu guarda a faca na
bainha da cintura e abraça Marília. Dirceu e Marília beijam-se.
297
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Dirceu, o nosso romance será um segredo a ser compartilhado
apenas com a natureza.
Marília abraça Dirceu fortemente. Marília foge dos braços de Dirceu.
Relvado. Marília corre e senta-se no relvado. Dirceu anda a passos
rápidos e senta-se no relvado, ao lado dela. Eles deitam-se lado a lado e
beijam-se romanticamente.
ÁRVORE. CASAL DE PASSARINHOS BATEM OS BIQUINHOS
UM NO OUTRO EM CIMA DE UM DOS GALHOS DA ÁRVORE.
CAPÍTULO 7
SEQUÊNCIAS 115-136
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Marília
Alceu
Endimião
Trácio
Rosa
Alguns homens negros
(fazenda de dom Manuel)
Vívila
Raimundo Sobreiro
Ianaiá
Dom Manuel (morto)
Zé da Viúva
Pessoas (velório)
Dona Berta
Dona Inácia (tia de Marília) Farias
Padre Rocha
Colotino Durães
Sebastiana
Miliquito
Hipólito
298
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cirilo
Quitéria
Inácia
Eulina
Estela
Antenor
As duas filhas e o filho de Antenor e Estela
Sales
Amarílis
Escrivão (relato de Marília)
Farias
Ambrósio
SEQUÊNCIA 115 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO.
Tarde. Fonte do ribeirão. Marília está com os pés tocados na água da
fonte do ribeirão. Dirceu está perto do cavalo. Dirceu abre um alforje
que está na sela do cavalo, enfia a mão no alforje e pega um pequeno
objeto. Dirceu aproxima de Marília e senta-se ao lado dela, na fonte do
ribeirão.
DIRCEU
Marília, por favor, fecha os teus olhos e abra as tuas as mãos.
Eu quero fazer-te um presente...
Marília fecha os olhos e abre as mãos. Dirceu coloca nas mãos de
Marília uma pequena pepita de ouro.
DIRCEU
Abra-te os olhos e veja! Este é o meu presente do nosso
primeiro encontro...
MARÍLIA
(abre os olhos e vê em suas mãos a pequena pepita de ouro)
Uma pepita de ouro!
299
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Tenho tantas outras pepitas iguais a essa em casa, presentes
do senhor meu pai.
MARÍLIA
Dirceu, fecha-te os olhos e abra-te as mãos. Eu quero fazer-te
um presente...
Dirceu fecha os olhos e abre as mãos. Marília coloca nas mãos de
Dirceu a pequena pepita de ouro, ganhada por ele.
MARÍLIA
Abra-te os olhos e veja! Estou devolvendo-lhe o tal presente.
Dirceu abre os olhos e vê em suas mãos a pequena pepita de ouro.
DIRCEU
(um pouco sem graça)
Tu não gostaste do presente, Marília?
MARÍLIA
Não é questão de gostar ou não gostar, Dirceu. É que eu não
ligo com joias, ouro ou quaisquer dessas coisas que geram a
cobiça humana... Tudo o que eu quero é ser feliz,
independentemente de qualquer riqueza.
MARÍLIA
(aproxima-se um pouco mais de Dirceu)
Venha, pegue-me nos teus braços e me beija, cá, seremos
presentes um do outro.
Pepita de ouro na mão de Dirceu. Dirceu abre a mão e olha a pepita.
Margem da fonte do ribeirão. Água mansamente a correr próxima à
margem da fonte do ribeirão. Dirceu atira a pepita de ouro na margem
da fonte do ribeirão. Dirceu abraça Marília e ambos beijam-se.
300
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Pareces um louco. Por que jogaste a pepita de ouro na
margem da fonte, Dirceu?
DIRCEU
Eu não necessitava daquela pedra de ouro e nem das outras
que eu possuo na fazenda, Marília. Saiba, pois, que a maior
preciosidade em toda a minha vida eu havia conquistado nesta
tarde, cá, na fonte. Esta preciosidade é vós mercê, dona
Marília.
Água da fonte do ribeirão corre mansamente. Marília e Dirceu beijam-se
loucamente.
TARDE CAINDO. UMA PASSARADA DE AVES RECOLHE EM
SEUS NINHOS.
SEQUÊNCIA 116 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Colinas verdejantes. Dirceu e Marília andando a cavalo pelas colinas
verdejantes. Cachoeiras. Dirceu e Marília banhando nas cachoeiras.
Chiqueiro das ovelhas. Dirceu, Marília, Alceu, Endimião e Trácio
correndo atrás das cabras. Dirceu sentado na grande pedra rindo de
Marília. Marília acariciando um filhotinho de uma ovelha. Pequena
choça ou cabana. Interior da pequena choça ou cabana. Rede. Dirceu e
Marília estão dentro da pequena choça ou cabana, deitados na rede.
MARÍLIA
Podemos casar e morar nesta casa, Dirceu...
DIRCEU
Nesta casa? Chama-te esta choça de casa? Aqui, nada mais é
que um lugar de descanso dos meus três pastores... Agora, se
301
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
quiseres torná-la o lugar dos nossos encontros, posso
melhorá-la de zero a mil...
MARÍLIA
Não, não quero que faças nada nela. Esta casa ou choça,
conforme disse vós mercê é bonita por ser assim mesma.
Nada nela impede de nos torná-la um dos nossos locais de
encontro. O nosso romance será um segredo a ser
compartilhado apenas com a natureza...
DIRCEU
Não temas sermos descobertos pelo senhor vosso pai? Dom
Manuel parece um homem bem arredio, ainda mais que ele
está a encomendar-lhe ao tal italiano...
MARÍLIA
Tenho tomado minhas providências, Dirceu. Se eu precisar de
alguma emergência, a Rosa estará pronta para ajudar-me a
compor algumas mentirinhas...
DIRCEU
E queres mentir ao senhor vosso pai, por longo tempo?
MARÍLIA
O tempo que for necessário para a efetivação do nosso
namoro.
REDE BALANÇA. DIRCEU E MARÍLIA BEIJAM-SE NA REDE.
SEQUÊNCIA 117 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Legenda: "Dias depois, outras tarde..."
302
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Ovelhas. Chiqueiro das ovelhas. Enorme pedra. Alceu e Rosa sentados
na enorme pedra. Cavalo. Dirceu coloca Marília na garupa do seu
cavalo. Campos. Dirceu e Marília cavalgam pelo campo.
DIRCEU (VOICE OVER)
De vez em quando Rosa vinha em companhia de Marília e
nos deixava admirados ao mostrar-se interessada por Alceu.
Os dois sentavam-se na enorme pedra e namoravam fingindo
vigiar as ovelhas, enquanto Marília e eu corríamos pelos
campos em busca de aventuras.
Tarde Fonte do ribeirão. Relvado. Dirceu e Marília estão sentados sobre
o relvado. Água da fonte do ribeirão. Corça selvagem bebendo água na
fonte do ribeirão. Marília vê a corça selvagem bebendo água na fonte do
ribeirão e põe-se de pé. Dirceu assusta-se.
DIRCEU
O que aconteceu, Marília! Por que puseste de pé, tão rápido?
Dirceu põe-se de pé e olha por todos os lados da fonte do ribeirão.
Olhos de Marília na corça selvagem bebendo água na fonte do ribeirão.
MARÍLIA
Uma corça, Dirceu, vede, cá na fonte, bebendo água. Vamos
fazer como os bons caçadores? Pegaremo-la.
Marília corre para a fonte atrás da corça. Dirceu também corre atrás de
Marília. A corça foge soltando pinotes. Dirceu cai deitado no relvado,
dando risadas. Marília fica parada olhando para o local em que a corça
fugiu dando pinotes. Marília, parada no relvado, olha para o local em
que a corça fugiu. Marília olha para Dirceu tristemente.
MARÍLIA
Lá se foi a minha corça, dando pinotes pela mata densa...
303
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não se entristeça, minha Marília. Prometo que em pouco
tempo terás em tuas mãos essa corça, como sua cativeira...
PÔR-DO-SOL NA FONTE DO RIBEIRÃO.
SEQUÊNCIA 118 – EXT./DIA. FAZENDA DE DOM MANUEL.
Fazenda de Dom Manuel. ALGUNS HOMENS NEGROS trabalhando
no pátio da fazenda de Dom Manuel. Alceu, no pátio da fazenda de
dom Manuel, entrega para Marília a corça.
ALCEU
Nhô Dirceu disse que a corça é um presente dos deuses...
MARÍLIA
(segura a corça pela corda)
Como é linda e amável! O Dirceu é mesmo um louco! Ele
falou que daria a mim esta corça de presente e não é que ele
cumpriu a promessa?!
ALCEU
A bichinha tá mansinha sinhá Marília. Ela também tá prenha...
MARÍLIA
A danadinha vai ser mamãe? Assim não somente cuidarei dela,
como também dos filhotinhos dela... Que fofinha! Vós mercê
pode ajudar-me a levar a corça até a varanda da casa? Vou
pedir a Rosa para fazer-lhe companhia até que eu escreva para
Dirceu um pequeno bilhete para agradecê-lo o presente. Vós
mercê levará o bilhete e o entregará nas mãos do senhor
Dirceu.
304
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 119 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
QUARTO DE DIRCEU.
Casa da fazenda Ribeirão do Meio. Quarto de Dirceu. Dirceu sentado
na cama lendo um bilhete. Dirceu olha para o bilhete, sorri e fala por
solilóquio.
DIRCEU
A felicidade de Marília foi tamanha ao receber a corça, que ela
pediu que eu fosse pessoalmente até a fazenda do pai dela,
para que ela possa agradecer-me o presente.
SEQUÊNCIA 120 – EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DOM
MANUEL. VARANDA DA CASA.
Fazenda de dom Manuel. Varanda da casa. Poltronas confortáveis na
varanda da casa. Vívila e Rosa estão sentadas em das poltronas
confortáveis na varanda da casa. Vívila está cosendo uma peça de roupa.
Rosa, apenas observando a costura de Vívila. Dirceu e Marília estão
sentados lado a lado, também, em uma das poltronas confortáveis na
varanda. Marília atira-se nos braços de Dirceu. Vívila, de vez em
quando, arregala os olhos para Marília.
DIRCEU
Ora, dona Marília, quem ganhou o melhor presente fui eu,
onde eu poderia imaginar que a captura de uma simples corça
brindar-me-ia a este encontro. Pena que o pai de vossa
senhoria, o senhor dom Manuel, não esteja cá, para que
possamos resolver tudo...
MARÍLIA
Insiste mesmo em falar com o senhor meu pai? Não deveria
ainda está tão seguro. Meu pai, se conheceres o meu pai,
como eu conheço, não ousaria levar em frente tal plano...
305
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Viveremos este grande amor às escondidas, na
clandestinidade? Isto não fará jus a uma moça de família, a
que tem um nome para se zelar...
MARÍLIA
Ora, meu amado Dirceu, devo primeiro pensar em mim,
depois nos outros. Nunca gostei de ser uma menina mimada,
a ponto de deixar nas mãos dos outros o meu destino. As leis
do meu destino, caro Dirceu, estão escritas desde o princípio
da minha criação e somente compete a mim, consultá-lo. O
senhor meu pai, por mais que queira bancar-se o Júpiter,
jamais poderá aplacar o meu destino, nem a favor dele, nem a
favor do tal italiano ou de qualquer outro homem. Faço do
meu coração o meu oráculo, portanto é a ele quem consulto e
peço as minhas orientações.
Marília atira-se nos braços de Dirceu. Vívila e Rosa arregalam os olhos
para Marília. Dirceu espanta-se.
DIRCEU
Adverto à senhora dona Marília que se proceda, evitando aos
exageros...
MARÍLIA
Não gostas dos meus beijos e nem das minhas carícias,
Dirceu?
DIRCEU
Claro que sim, mas temos que respeitar a Rosa, a Vívila, a
todos os serviçais da fazenda do senhor seu pai e até a nós
mesmos. Além disso, a ausência também do senhor seu pai...
MARÍLIA
(olha para Vívila e Rosa)
Vívila, Rosa, vós mercês estão vendo alguma coisa de mais?
306
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VÍVILA
Não, não estou vendo nada de mais, dona Marília. Eu não sei
de nada e não estou vendo nada, dona Marília.
(olha para Rosa)
Vossemecê está vendo alguma coisa, Rosa?
Rosa fecha os olhos e balança a cabeça sinalizando um "não". Marília
agarra Dirceu e dá-lhe um beijo. Rosa e Vívila dão risadas. Dirceu põese de pé.
DIRCEU
Creio que esteja tarde e eu preciso pegar a estrada de volta à
minha fazenda...
MARÍLIA
Teria o senhor Dirceu coragem de nos deixar cá, sozinhas,
neste fim de mundo inventado pelo senhor meu pai?
DIRCEU
Creio que dom Manuel logo estará por cá. Ele não pegará
estrada escura...
MARÍLIA
Isso lá é verdade, o senhor meu pai deve chegar logo. Porque
não fique conosco até que ele chegue. A sua fazenda não é tão
distante e qualquer coisa, se ficar muito tarde eu peço para
que Raimundo Sobreiro ou Zé da Viúva te acompanhe até a
sua fazenda.
Poltrona. Dirceu senta-se novamente na poltrona, ao lado de Marília.
Vívila e Rosa olham para Dirceu e Marília, dando risadas.
DIRCEU
Tudo bem, esperamos por cá, o senhor seu pai, quem sabe
hoje mesmo nós não resolvemos o nosso assunto de amor,
307
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
noivado e casamento. Façamos o senhor seu pai saber de
tudo...
VÍVILA
A dona Marília é uma tresloucada e sem juízo, senhor Dirceu.
O namoro de vossemecês não é um assunto ignorado em
família, pois, tanto os criados, quanto o pai de dona Marília
sabem dos seus encontros nos arredores da fazenda.
DIRCEU
(demonstra-se surpreso)
Isso que a Vívila falou é verdade, Marília?
MARÍLIA
Sim, é verdade! Só que o senhor meu pai está sempre dizendo
que eu não escaparei da promessa de ele fazer-me casar com o
italiano. Ora essa, como pode o senhor meu pai se atrever a
fazer isso? Do meu destino, cuido eu. Casarei, portanto, com
quem amarei e confiarei a minha vida... Pensa que as mulheres
há de ser sempre submissa aos maridos? Isto cá está mudando
Dirceu. O grande exemplo do momento, para nós mulheres, é
a dona Joaquina do Pompeu, que aos 11 anos era prometida
de um comerciante, mas se recusa a casar-se com o noivo,
declarando-se interessada por um capitão-mor, o senhor
Inácio de Oliveira Campos. A vontade dela foi respeitada e ela
realmente casou com o capitão-mor, em 1764. Olha só, em,
ela somente tinha 12 anos de idade e o capitão 30 anos...
DIRCEU
Será se essa mulher seria um bom exemplo, Marília? Esta
longe dos costumes da colônia que as mulheres escolham os
seus maridos...
MARÍLIA
Então não devo casar contigo...
308
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Por que?
MARÍLIA
Também não escolho vós mercê?
DIRCEU
Ora, Marília, não vamos colocar os carros diante dos bois...
Vamos respeitar as coisas do destino... Se vós mercê permitir,
Marília, eu oficializarei o nosso namoro ao falar-me com dom
Manuel. Quem sabe não consigo fazer com que o senhor seu
pai não desista da ideia de casá-la com o italiano?
Marília olha para Dirceu e dá um sorriso meio sem graça. Uma coruja
pousa numa árvore próxima ao quintal da fazenda.
CORTA PARA
Tarde. Céu cor de rosa. Numa árvore, próximo ao quintal da varanda da
fazenda de dom Manuel, está uma coruja. A coruja solta alguns piados.
Marília e Dirceu cochilam-se na poltrona. Rosa levanta-se, vai até o
quintal da fazenda e procura pela coruja.Vívila põe-se de pé e
acompanha Rosa com os olhos.
VÍVILA
O que foi Rosa? Escutou algum barulho de chegada de
alguém?
ROSA
Não, Vívila! Estou procurando pela coruja que há tempo está
a me atormentar com os seus pios agourentos...
VÍVILA
E se encontrar a coruja, vossemecê irá matar a coitadinha?
309
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ROSA
Não, mas não é nada bom quando essa ave começa a piar
perto de casa.
Varanda. Vívila sai da varanda e vai ao encontro de Rosa. Rosa estende
os braços para Vívila.
ROSA
Olha cá, o meu braço. Ele está todo arrepiado. Não estou
gostando dos piados dessa coruja, parece agouro, sinal de
notícia ruim...
VÍVILA
Ora Rosa, isso é porque vossemecê sente gastura do pio da
coruja, só isso.
ÁRVORE. A CORUJA, NA ÁRVORE, SOLTA ALGUNS PIADOS.
Varanda. Poltrona com Dirceu e Marília. Marília abre os olhos. Marília
depara-se com o ocaso. Marília cutuca Dirceu. Dirceu acorda. Marília e
Dirceu põem-se de pé. Cancela da fazenda de Dom Manuel. Um
cavaleiro aparece na entrada da fazenda, galopando apressadamente.
Vívila aponta o cavaleiro para dona Marília. Marília dá três ou quatro
passos para frente, observa o cavaleiro e reconhece-o. O cavalheiro é
Raimundo Sobreiro.
MARÍLIA
É o Raimundo Sobreiro...
VÍVILA
Sozinho! E dom Manuel?
DIRCEU
(Dirceu dá alguns passos para frente e aproxima-se de Marília)
Decerto dom Manuel resolveu pernoitar em Vila Rica...
310
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
(fala tranquilamente)
Ora, o Raimundo Sobreiro veio à frente e o papai e Zé da
Viúva, decerto, estão por chegar.
ROSA
Ai meu Jesus, espero que isso não tenha a ver com os piados
da coruja...
Marília abraça Dirceu pela cintura. Cancela da fazenda. Raimundo
Sobreiro abre a cancela da fazenda e olha para o quintal da fazenda. Ele
vê Marília, Vívila, Rosa e Dirceu.
RAIMUNDO SOBREIRO
Nhô Dirceu! É o nhô Dirceu, que bom que vossemecê está
aqui...
DIRCEU
Sim, sou eu Raimundo Sobreiro... Por que vens com tanta
pressa? E Dom Manuel? Estamos aguardando por Dom
Manuel.
RAIMUNDO SOBREIRO
Dom Manuel, ah, sim... Então, venha cá...
Raimundo Sobreiro olha para Marília, tira o chapéu da cabeça e dá um
sinal para que Dirceu se aproxime dele. Raimundo Sobreiro salta do
cavalo. Dirceu sai da varanda da casa e aproxima-se de Raimundo
Sobreiro no quintal de frente da fazenda. Raimundo Sobreiro fala em
voz baixa, quase sussurrando.
RAIMUNDO SOBREIRO
O pai da sinhá Marília morreu agora a tarde, depois do
almoço, em Vila Rica. É verdade verdadeira, sinhô Dirceu. O
311
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
povo comenta que foi fraqueza no coração. Vim buscar a
sinhá e algumas criadas a pedido do padre Rocha.
DIRCEU
(assusta e arregala os olhos para Raimundo Sobreiro)
Dom Manuel morreu? Levaremos a sinhá Marília para Vila
Rica, daqui a pouco. Por enquanto, não conte nada a ela nem
a ninguém. Quando chegarmos à cidade, daremos a ela e a
todos que acompanhá-la, a triste notícia.
Raimundo Sobreiro faz um sinal de "sim" como a cabeça. Raimundo
Sobreiro passa cabisbaixo por Marília, Rosa e Vívila. Marília atalha
Raimundo Sobreiro.
MARÍLIA
Raimundo, por favor, não me esconda nada. Aconteceu
alguma coisa com o senhor meu pai, ou com o Zé da Viúva?
Por que eles não vieram com vós mercê?
Raimundo Sobreiro faz um sinal de "não" com a cabeça. Raimundo
Sobreiro vai até a varanda e entra na casa. Marília corre para os braços
de Dirceu.
MARÍLIA
Conte-me Dirceu, o que foi que o Raimundo disse a respeito
do senhor meu pai. Conte-me, por favor, não me esconda
nada...
Dirceu coça a cabeça sem saber o que falar. Marília olha apreensiva para
Dirceu. Varanda. Ouvem-se gritos na varanda, vindo do interior da casa.
Os gritos são de Ianaiá. Ela sai da casa para a varanda. Vívila corre para
socorrer Ianaiá. Ianaiá corre até onde está Marília. Ela chora e abraça
Marília.
312
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
IANAIÁ
Sinhazinha há de ter nossos cuidados, há, sim... Pode ficar
tranquila, Deus do céu sabe o que faz...
Ianaiá abraça Marília. Dirceu tenta tirar Marília dos braços de Ianaiá.
MARÍLIA
Conte-me Ianaiá, o que aconteceu? Raimundo Sobreiro
contou-lhe alguma coisa sobre o senhor meu pai...
ROSA
Eu tava certa de que aquele pio de coruja era agoureto. Eu
estava certa, sim, até senti gastura... mas ninguém queria
acreditar em mim...
IANAIÁ
(chorando)
Dom Manuel, o pai da sinhazinha, morreu...
MARÍLIA
(tira Ianaiá dos seus braços e atira-se nos braços de Dirceu)
O senhor meu pai, morreu? Foi esta a notícia que o Raimundo
Sobreiro veio nos trazer?
DIRCEU
Eu estava procurando um meio para contá-la, sem que fosse
dessa forma...
MARÍLIA
Agradeço-lhe a preocupação. Se o meu pai morreu é porque
Deus viu que foi chegada-lhe a hora. Não lastimarei, guardarei
a minha dor em silêncio...
DIRCEU
Posso fazer alguma coisa por vós mercê?
313
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Sim, quero que me acompanhe até Vila Rica. Quero estar lá
ainda esta noite. Quero velar o corpo do meu pai, até o
instante de ele ser sepultado.
CORUJA VOA DA ÁRVORE.
SEQUÊNCIA 121 – INT./EXT./NOITE/DIA. VILA RICA.
IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. CEMITÉRIO NO
ADRO DA IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS.
Noite. Igreja de São Francisco de Assis. Caixão com o corpo de dom
Manuel. Marília vestida de luto, mãos trêmulas, ao lado do caixão de
dom Manuel. Pessoas aproximam-se de Marília para as manifestações de
pesar ou condolências pela morte de dom Manuel. Dirceu está em um
circulo, juntamente com Raimundo Sobreiro, Zé da Viúva e outros
homens. Madrugada. DONA BERTA, senhora de 50 anos, baixa,
gorda, pele clara e olhos claros, e a sua filha Laura entram na igreja de
São Francisco de Assis. Dona Berta e Laura aproximam-se do caixão de
Dom Manuel e abraçam Marília. Lágrimas nos olhos de Marília. Dona
Berta e Laura ficam ao lado de Marília. Minutos depois DONA
INÁCIA, tia de Marília, uma senhora de aproximadamente 47 anos,
olhos castanhos e pele clara, vestida de luto, entra na igreja de São
Francisco de Assis, com outras pessoas. Dona Inácia vai ao encontro de
Marília. Caixão com o corpo de Dom Manuel. Dona Inácia e Marília
choram, silenciosamente, a morte de dom Manuel. Bancos da Igreja de
São Francisco de Assis. Várias pessoas sentadas no banco da Igreja de
São Francisco de Assis. Rosa cochila em dos bancos. Raios de sol batem
na entrada da igreja de São Francisco de Assis. Manhã. Enterro de dom
Manuel. Homens carregam o caixão de dom Manuel. Laura acompanha
Marília segurando-a pela cintura.
314
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
O corpo de dom Manuel encontrava-se na igreja de São
Francisco de Assis. Marília, ao ver o pai estendido no caixão
silenciou-se mais ainda. Ela não chorava e nem lamentava. A
madrinha de Marília, dona Berta, a amiga Laura e a tia, dona
Inácia chegaram durante a madrugada com alguns dos
familiares. Eles consolavam Marília. Eu, portanto, colei-me ao
silêncio dela durante toda a madrugada e manhã seguinte, até
o momento de o corpo ser encomendado no cemitério do
adro da igreja, pelo Padre Rocha.
Cemitério do adro da igreja de São Francisco de Assis. Caixão de dom
Manuel ao lado do local do sepulcro, de uma a carneira. Pessoas em
volta da carneira, onde dom Manuel será sepultado. Padre Rocha
encomenda a alma de dom Manuel. Marília está entre os ombros de
Dirceu e de Laura. Sepultamento de dom Manuel. Padre Rocha
encomenda a alma de Dom Manuel.
PADRE ROCHA
Senhor Deus, cá estamos nesta manhã para encomendar a
alma do nosso irmão Manuel, qual, em nome do teu filho,
Jesus Cristo, foi chamado para a vida espiritual. Confortai-nos
senhor, porque a matéria nos trai e não nos deixa
compreender os teus mistérios da vida e da morte. Ó Senhor
Deus, receba em tuas mãos o espírito do nosso irmão e teu
filho, Manuel, qual corpo santo será entregue à terra para
reduzir-se ao pó, conforme nos criaste.
Um jovem seminarista traz uma caldeira de água benta e estende-a ao
padre Rocha. Padre Rocha faz a aspersão com a água benta da caldeira,
no caixão de dom Manuel.
PADRE ROCHA
Irmãos vamos recitar agora a oração que o Senhor Deus nos
ensinou através do seu filho e nosso salvador, Jesus Cristo.
Pater noster, qui es in caelis,
315
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Sanctificétur nomen tuum,
Advéniat regnum tuum,
Fiat volúntas tua,
Sicut in caelo, et in terra.
PESSOAS QUE ESTÃO NO ENTERRO
Panem nostrum quotidiánum da nobis hódie.
Et dimítte nobis débita nostra,
Sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris.
Et ne nos indúcas in tentatiónem.
Sed líbera nos a malo. Amem.
Carneira aberta. Caixão de Dom Manuel descendo na carneira.
MARÍLIA abraça a madrinha dona Berta e a tia Inácia. DIRCEU, um
pouco afastado do movimento do enterro, observa o sofrimento de
Marília.
SEQUÊNCIA 122 – INT./EXT./DIA. VILA RICA. CASA DE
DOM MANUEL. LOTE VAGO EM VILA RICA.
Tarde. Casa de dom Manuel. Sala de Visitas. Dirceu, Raimundo e
Raimundo Sobreiro sentados nas poltronas da sala de visitas da casa de
dom Manuel. Tarde. Lote vago. Tropeiros preparando viagem para São
Sebastião do Rio de Janeiro no lote vago. Dirceu e Marília entregam
uma carta para um HOMEM MAGRO E ALTO, de aproximadamente
25 anos, comandante dos tropeiros. O nome dele é COLOTINO
DURÃES...
DIRCEU (OFF)
Após o sepultamento de dom Manuel, Marília preferiu ficar
em Vila Rica, juntamente com Rosa e Vívila. Ela pediu para
que Raimundo, Zé da Viúva e eu tomássemos conta da
fazenda até que ela se recuperasse do triste passamento. A
tarde, ao sabermos que Colatino Durães levaria mercadorias
316
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
para serem embarcadas para além-mar, pelo porto da baía de
Guanabara, Marília e eu pedimos a ele que portasse a triste
notícia para Amarílis, a irmã de Marília, sobre a morte do
senhor seu pai, Dom Manuel.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 122.1 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. FAZENDA DE DOM MANUEL.
Manhã. Fazenda Ribeirão do Meio. Cozinha. Dirceu sentado à mesa
tomando café meio apressado. Sebastiana serve para Dirceu um beiju de
tapioca.
SEBASTIANA
Nhô Dirceu anda tão avexado esses dias que parece que não
sente nem a comida descer no bucho. Ora tá aqui, ora tá
pegando estrada para a fazenda da tal de sinhá Marília.
DIRCEU
Isto é por pouco tempo, Sebastiana. Estou cuidando da
fazenda do pai de Marília. Agora que ele morreu, ela tendo de
ficar em Vila Rica, confiou em mim, nos meus préstimos.
FADE OUT/FADE IN
Manhã. Fazenda de dom Manuel. Fundo do quintal da fazenda de dom
Manuel. Uns HOMENS NEGROS trabalham na construção de um
chiqueiro de ovelhas. Buraco. Pés sujos, amassando o barro. HOMENS
NEGROS fazendo adobes em formas e telhas, utilizando as coxas das
pernas. Relvado. Tijolos e telhas espalhados sobre o relvado. Dirceu,
Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva medem uma área do quintal do
fundo da fazenda, onde há uma carreirinha de casas feitas de madeiras,
cobertas de palhas. Dirceu olha para Raimundo Sobreiro.
317
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Depois que derrubarmos essas casas provisórias, feitas de
paus e de palhas, o quintal da fazenda ganhará uma visão mais
descente...
RAIMUNDO SOBREIRO
Creio que o finado Dom Manuel não tinha plano disso não, nhô Dirceu.
Ele pensava em aumentar a senzala e trazer mais negros para os
trabalhos da fazenda...
DIRCEU
Não sei por que, mas a fazenda dele não é tão grande assim.
Se não é tão grande, também não tem ocupação para tanta
gente. Não consigo entender, Raimundo Sobreiro, as besteiras
que os donos de terras fazem. Eles compram escravos
colocam em suas terras para trabalhar e nunca calculam o
quanto gastam com eles...
RAIMUNDO SOBREIRO
Parece que não gastam nada, pois negros por cá morrem à
mingua. Os animais dos patrões têm melhores tratos do que
eles...
CASA DE JOÃO DE BARRO NO GALHO DE UMA ÁRVORE.
SEQUÊNCIA 123 – EXT./INT./NOITE/DIA. ESTRADA DA
SERRA DO ITA-CORUMI. VILA RICA. CASA DE DOM
MANUEL.
Madrugada. Estrada da serra do Ita-corumi. Dirceu cavalgando sozinho
pela estrada da serra Ita-corumi. Vila Rica. Dirceu troteando pelas ruas
de Vila Rica. Casa de dom Manuel. Dirceu para no portão da casa de
dom Manuel. Janela da casa de dom Manuel. Rosa está na janela e vê
Dirceu no portão da casa. Rosa desaparece da janela. Pouco tempo
depois Marília aparece no portão da casa de dom Manuel. Marília abre o
318
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
portão e abraça Dirceu. Os dois entram na casa. Sala de visita. Marília e
Dirceu sentam em uma das poltronas da sala de visita. Sala de Jantar.
Mesa. Dirceu e Marília sentados à mesa sendo servidos por Rosa e
Vívila.
DIRCEU (VOICE OVER)
Assim que completou sete dias da morte de dom Manuel
arrisquei ir sozinho à Vila Rica, aonde fui estar com as moças.
Marília, ao ver-me aproximar do portão da casa, veio correndo
a abraçar-me. Eu percebi que tanto ela, quanto as criadas,
estavam chorosas e caladas. Marília relatou-me que as lágrimas
desabaram naquela manhã ao vivenciar as primeiras sensações
da saudade paterna. Conversei bastante com ela, contei-lhe
sobre a fazenda de dom Manuel, as pequenas reformas que
começamos a fazer por lá e dei-lhe notícias da corça, qual
estava prenha. Tentei algumas fórmulas para animá-la. Eu
queria fazê-la voltar à fazenda, pois lá o ambiente seria
propício para que ela se distraísse um pouco.
MARÍLIA
Não, Dirceu. Não voltarei para a fazenda, porquanto a minha
irmã, Amarílis, vier de São Sebastião do Rio de Janeiro...
DIRCEU
Mas a viagem de São Sebastião do Rio de Janeiro até cá, em
Vila Rica, demora dias, Marília. Digamos que até a senhora
vossa irmã receber o comunicado da morte do senhor pai de
vós mercês, e, que ela venha a Vila Rica, isso demorará cerca
de quarenta ou mais dias. Estamos vivendo o mês de
dezembro de 1792, a senhora vossa irmã, Amarílis, portanto,
chegará cá, em Vila Rica, somente no segundo meado do mês
de janeiro do ano seguinte, ou seja, de 1793.
MARÍLIA
Neste prazo, coloco a minha cabeça em ordem. Não quero,
até o devido momento, voltar à fazenda do meu falecido pai.
319
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Se a minha irmã demora a chegar, tanto só, quanto com o
marido dela, eu ficarei alguns dias na casa da minha madrinha,
em Mariana e na casa da minha tia Inácia, em Sabarabussu.
DIRCEU
Ó, Marília, como vai ser difícil ficar longe de vós mercê.
Tomara que a sua irmã e seu cunhado venham logo para que
possamos resolver a nossa a vida a dois.
SEQUÊNCIA 124 – INT./EXT./DIA/NOITE
(MARCADOS POR FADE OUT E FADE IN)
–
VÁRIOS
Manhã. Curral da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu, Hipólito e Cirilo
ordenham as vacas. Dirceu tira o leite de uma vaca. Leiteira com o leite.
Miliquito carrega uma leiteira de leite para fora do curral. Colina. Dirceu
e Cirilo cavalgam pela colina. Pasto. Gados pastando nas campinas.
Dirceu a cavalo junta o gado. Chiqueiro das ovelhas. Dirceu, Trácio e
Endimião estão sentados na pedra olhando o rebanho de ovelhas.
FADE OUT / FADE IN
Tarde. Fazenda de dom Manuel. Dirceu está na fazenda de Dom
Manuel. Construção da senzala. HOMENS NEGROS colocando telhas
nas novas casas construídas com adobes. Dirceu, Raimundo Sobreiro e
Zé da Viúva reparam o serviço da construção da senzala.
FADE OUT / FADE IN
Fazenda Ribeirão do Meio. Oficina de trabalho. Prateleira com queijos
frescos. Formas de queijo. Quitéria, Inácia e Eulina na oficina de
trabalho fabricando queijos. Dirceu tira o chapéu e entra na oficina de
trabalho.
FADE OUT / FADE IN
320
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Noite. Casarão da fazenda Ribeirão do Meio. Quarto de Dirceu. Dirceu
deitado na cama dele.
DIRCEU (VOICE OVER)
Desde quando Marília ausentara-se de sua fazenda, os meus
dias pareciam intermináveis. Eu acordava cedo, aliava-me aos
rapazes para ordenhar as vacas, cavalgava pela colina, ajudava
a levar e a recolher o gado, a rebanhar as ovelhas e a
inspecionar os trabalhos na fazenda de Marília. O dia não
passava. Quando, a muito custo, vinha a noite, essa ainda era
mais aterrorizante. O silêncio dela envolvia-me em suores e
calafrios inexplicáveis. Eu deitava, enrolava e sentava no catre,
ora pensando na morte de dom Manuel, nas decepções de
Josias com a mulher amada e em sua morte. Esses
pensamentos deixavam-me pessimista, inseguro e com medo
de perder o maior bem da minha vida, a minha Marília. De
outro lado eu pensava na vitória do meu pai, sempre quieto e
silencioso planejando, às escondidas, o seu futuro ao lado da
mulher amada, a ponto de abandonar tudo para ser feliz ao
lado dela. Isso servia para mim de exemplo: eu também faria o
mesmo para eternizar-me ao lado da minha Marília.
SEQUÊNCIA 125 – INT./EXT./ DIA/NOITE. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. CAPELA DA FAZENDA. ESTRADA.
SÍTIO DE ANTENOR.
Capela da fazenda. Manhã. Altar da capela. Quitéria, Inácia e Eulina
estão terminando de limpar o altar da capela da fazenda. ESTELA, a
esposa de Antenor, uma senhora alta, magra, de olhos claros, está
sentada em um dos bancos da capela, vasculhando o interior de uma
pequena caixa de madeira, posta em cima do banco. Ela tira da caixa de
madeira, com delicadeza, algumas peças de presépio (Nossa Senhora,
São José, anjos e pastores, o recém-nascido, Jesus Cristo, os três Reis
Magos, camelos e outros animais. As imagens retiradas da caixa de
madeira são feitos de argila e/ou de madeira). Altar da capela. Próximo
321
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ao altar da capela, Estela, juntamente com Quitéria, Inácia e Eulina,
montam o presépio representando o nascimento e adoração do Menino
Jesus na manjedoura de Belém, conforme os relatos dos Evangelhos e
fontes apócrifas. Porta de frente da capela. Antenor entra pela porta de
frente da capela, indo direto ao altar. Ele observa as mulheres
terminando de montar o presépio.
ANTENOR
Que maravilha, Estela! O presépio ficou perfeito. Amanhã
receberemos os fiéis da região para a comemoração do Natal,
a maior festa cristã da nossa Santa Igreja Católica Apostólica
Romana.
ESTELA
Eu vou pedir algum homem para que amanhã, antes da
comemoração do natal, toque os sinos da capela.
ANTENOR
Os toques dos sinos devem ser animados, como aqueles que
em Belém, avisaram o nascimento do Menino Jesus...
FADE OUT/ FADE IN
Sol esconde-se por trás dos montes. Frontifício da capela da fazenda
Ribeirão do Meio. Alto da torre da capela da fazenda. UM HOMEM
MORENO toca os sinos da capela da fazenda. Sinos da capela da
fazenda repicam em tom festivo. Fazenda Ribeirão do Meio e toda a
região escutam em off o repicar dos sinos da capela.
FADE OUT/ FADE IN
Estrada em direção à capela da fazenda. Cavalos e cavaleiros troteando
na estrada em direção à capela da fazenda. Arredores da capela da
fazenda. Cavalos amarrados em postes no adro da capela da fazenda.
Noite. Interior da capela. Velas acesas no interior da capela. FIÉIS
sentados nos bancos. Altar da capela. CRIANÇAS e MULHERES
322
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
olhando o presépio do Menino Jesus. Púlpito. Antenor sobe-se no
púlpito. FIÉIS colocam-se de pés.
ANTENOR
Comemoramos, irmãos, com alegria a maior festa cristã da
igreja católica, apostólica romana, o natal. Nesta data em que
se comemora o nascimento de Jesus Cristo, o nosso salvador.
Segundo o evangelista Lucas, quando Jesus nasceu havia
pastores vivendo ao ar livre e mantendo vigias sobre os
rebanhos perto do local onde ELE nasceu. Estes pastores
foram avisados no evento chamado de Anunciação aos
pastores. Somos, pois, alguns pastores, outros rebanhos de
Jesus. Aos pastores, competem levar as palavras de Jesus,
conforme foram testemunhadas no Novo Testamento. Aos
rebanhos, competem ouvir as palavras de seus pastores, quais
são alimentos à alma. Agora, todos, numa só voz, recitamos a
ladainha de Nossa Senhora, mater Dei.
Fiéis ajoelham-se para rezar a Ladainha de Nossa Senhora.
NOTA: a Ladainha de Nossa Senhora será recitada até o nono verso.
As vozes dos fiéis vão aos poucos caindo, até entrar em off.
ANTENOR E OS FIÉIS
Senhor, tende piedade de nós
Cristo, tende piedade de nós
Senhor, tende piedade de nós
Cristo, ouvi-nos
Cristo, atendei-nos
Deus Pai dos Céus, tende piedade de nós
Deus Filho, Redentor do Mundo, tende piedade de nós
Deus Espírito Santo, Santíssima Trindade que sois um só
Deus
Santa Maria, rogai por nós...
Ouve-se a música "El Dia del Corpus" em espanhol - Villancico
(canção de Natal) Anônimo, Bolívia, século XVIII, qual vai
323
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
aumentando-se aos poucos. Esta música também servirá de fundo para
a procissão.
Os fiéis saem da capela em procissão. Estrada. Fiéis munidos de tochas
e velas acesas, em procissão, pela estrada até o sítio de Antenor. Dirceu,
Cirilo, e Inácia; Hipólito e Quitéria; Eulina e Miliquito, Ambrósio,
Trácio, Endimião, Alceu e Farias acompanham a procissão. Sítio de
Antenor. Cancela do sítio de Antenor. Quintal do sítio de Antenor
iluminado com tochas de fogo e lampiões de azeite. Fiéis entram em
procissão no terreiro de frente do sítio de Antenor. Estela e os TRÊS
FILHOS DE ANTENOR, um jovem de 14 anos, pele clara e olhos
escuros e duas jovens, uma de 16 anos e outra de 18 anos, de olhos
claros, peles claras e cabelos loiros encaracolados, recebem os fiéis.
Antenor mostra-se feliz. Festa. Toque de sanfona. HOMENS
NEGROS e HOMENS BRANCOS tocando sanfonas. Os fiéis se
espalham para dançar, conversar, comer e beber vinho. O pessoal da
fazenda Ribeirão do Meio estão sentados em tamboretes, debaixo de
uma árvore, bebendo vinho, comendo petiscos e conversando.
SEQUÊNCIA 126 – INT./EXT./ DIA/NOITE. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
Flash back – Sonho de Dirceu
Madrugada. Quarto de Dirceu. Janela do quarto de Dirceu. Dirceu abre
a janela do quarto. Barulho de ovelhas berrando.
DIRCEU
Ovelhas berrando no quintal de frente à fazenda? Ali não há
pasto, o que está acontecendo?
Janela do quarto de Dirceu. Ele instiga o quintal da fazenda com os
olhos. Quintal da fazenda. Rebanho de ovelhas no quintal da fazenda.
Ovelhas berrando no quintal da fazenda.
324
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Quem ousaria trazer aquele rebanho para o quintal de frente
da fazenda? Vou sair daqui já e punir o responsável.
Janela do quarto de Dirceu. Ele instiga novamente o quintal da fazenda
com os olhos. Quintal da fazenda. Rebanho de ovelhas no quintal da
fazenda. Marília, vestida de pastora, conduz o rebanho de ovelhas,
juntamente com Trácio, Alceu e Endimião. Marília toca o rebanho até a
janela do quarto de Dirceu, juntamente com os três pastores. Imagem
pausada de Trácio, Alceu, Endimião e o rebanho numa grande tela, feito
uma pintura arcádica. Apenas Marília move. Ela vê Dirceu na janela do
quarto e olha para ele sorrindo.
MARÍLIA
Cheguei, Dirceu! Se pensas que vim a passeio, enganas. Vim
para morar contigo, na tua fazenda...
DIRCEU
Marília? Vieste morar, eternamente, comigo?
Janela. Dirceu pula a janela e corre para receber Marília de braços
abertos.
DIRCEU
Marília, tu serás, deveras, a minha pastora?
MARÍLIA
Não estás a ver? Trago comigo todo o meu rebanho e os
meus três pastores. Tu serás o meu vaqueiro e eu serei a
pastora dos teus sonhos Dirceu...
DIRCEU
Pastora dos meus sonhos, sonhos, sonhos...
Grande quadro arcádico. Marília, Dirceu, os três pastores e o rebanho
são personagens do quadro arcádico.
325
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
Quarto de Dirceu. Dirceu acorda assustado na cama. Ele senta-se na
cama e fala por solilóquio.
DIRCEU
Meu Deus, se eu pudesse eu arriaria o meu cavalo agora e iria
até Vila Rica. Será se está acontecendo alguma coisa de ruim
com Marília? Será se a irmã e o cunhado dela chegaram do
Rio de Janeiro?
SEQUÊNCIA 127 – INT./EXT./ DIA/NOITE. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. COZINHA. SALA DE VISITA.
Cozinha da fazenda Ribeirão do Meio. Mesa da cozinha. Dirceu está
terminando de almoçar. Sebastiana coloca um bule de café na mesa.
Inácia coloca algumas xícaras na mesa. Prato de comida vazio. Dirceu
empurra o prato e pega uma xícara. Bule. Dirceu pega o bule e despeja o
café do bule na xícara. Hipólito entra na cozinha e aproxima-se de
Dirceu.
HIPÓLITO
Nhozinho me desculpa por eu tá entrando cá, assim, na hora
do seu almoço. É que não sei se nhozinho lembra, o nome
dele é Zé da Viúva. Ele ta lá na varanda querendo prosear
com nhozinho .
DIRCEU
Zé da Viúva? Meu Deus será se os sonhos vêm, no sono, para
nos avisar sobre coisas? Alguma coisa deve ter acontecido por
lá na fazenda do finado dom Manuel... Vá lá Hipólito, peça
para ele aguardar por mim na sala. Quero falar com ele em
particular.
326
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Hipólito anda até a porta da cozinha para o interior do casarão. Dirceu
levanta-se da mesa e faz o mesmo. Porta do corredor com a sala de
visita. Dirceu entra pela porta na sala de visita. Zé da Viúva está sentado
em uma das poltronas da sala. Os dois cumprimentam-se. Dirceu sentase ao lado de Zé da Viúva.
ZÉ DA VIÚVA
Não sei se nhô sabe, a irmã de dona Marília chegou com o
marido de São Sebastião do Rio de Janeiro. O nome dela é
dona Amarílis e do senhor, marido dela, é Sales, um extenente e coronel. Eles estão na fazenda e dizem que vieram
de mudança pra essas terras...
DIRCEU
A irmã de Marília já chegou a Vila Rica com o marido dela?
ZÉ DA VIÚVA
Chegou, nhô Dirceu. O coronel Sales disse que a mulher dele
está perto de ter filho. Ela não tá na fazenda, não, ela tá lá em
Vila Rica com a irmã, a dona Marília...
DIRCEU
E as coisas lá da fazenda, me conte como andam.
ZÉ DA VIÚVA
O coronel Sales, assim que ele quer ser chamado, tomou
posse da fazenda. O clima lá tá pesado. O motivo que tô aqui
é para pedir abrigo ao nhô, pois o coronel mandou o
Raimundo Sobreiro e eu desocupar a fazenda ainda hoje...
DIRCEU
Qual foi o motivo que levou ele a fazer isso, Zé da Viúva?
ZÉ DA VIÚVA
O tal do coronel parece que tem sangue ruim, nhô Dirceu. O
coronel Sales disse que tanto a dona Marília, quanto os criados
327
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
da casa e de toda a fazenda, têm de prestar obediência a ele.
Ele disse querer fazer da propriedade um grande meio de se
obter lucros e não um lugar para passeio ou festas.
DIRCEU
Meu Deus, Zé, nunca vi tanta tolice em um homem só!
Quanto a vós mercê e o Raimundo Sobreiro, se quiserem
continuar nesta região, não hesitarei em aceitá-los. Depois
conversamos e acertamos os detalhes. Por enquanto a casa
está às ordens de vós mercês. Hoje mesmo, podem mudar
para cá. Não ficaram sem abrigo...
Quitéria entra na sala com uma bandeja nas mãos e serve café para
Dirceu e Zé da Viúva. Dirceu olha para Quitéria.
DIRCEU
Quitéria, por favor, arrume um quarto cá dentro da casa para
dois amigos. Eles irão trazer as coisas deles ainda hoje. Eles
unirão forças com a nossa gente para cuidar do nosso gado.
SEQUÊNCIA 128 – EXT./INT./ DIA/ VILA RICA. FRENTE À
CASA DOS CONTOS.
Legenda: "Fevereiro de 1793".
Manhã. Vila Rica. Dirceu galopa pelas ruas de Vila Rica até chegar à
Casa dos contos. Lá, ele apeia-se do cavalo e o amarra em um poste.
Marília aparece de repente vindo ao encontro dele.
DIRCEU
Recebi o recado para encontrar com vós mercê aqui. Está
acontecendo alguma coisa de grave com vossa senhoria? Não
me esconda nada Marília, creio que eu já posso imaginar o que
esteja acontecendo.
Dirceu abraça Marília. Ambos beijam-se.
328
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Quase todos os dias eu peço a Rosa para procurá-lo cá em
Vila Rica. Como ela o encontro hoje na venda do português,
ela mesma marcou este local para que pudéssemos nos
encontrar... Eu não queria que as coisas acontecessem assim,
Dirceu. Mas depois da morte do senhor meu pai e da chegada
da minha irmã e cunhado as coisas engrossaram para o meu
lado.
DIRCEU
Nada há de nos abalar, Marília. Se sentirmos adultos e
responsáveis pelos nossos atos, teremos motivos suficientes
para medir as nossas forças e ir contra tudo o que der e vier.
MARÍLIA
Assim, vós mercê me enche de coragem, Dirceu.
DIRCEU
Conte-me o que aconteceu ou o que está acontecendo, sou
todo ouvidos teu, Marília.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 129 – EXT./ INT. /DIA. VILA RICA. PORTÃO DA
CASA DE DOM MANUEL.
Flash back – Relato de Marilia.
Tarde. Carruagem estacionada no portão da casa de Dom Manuel.
Cocheiro chama no portão da casa de Dom Manuel. Vívila atende o
portão da casa de dom Manuel. Carruagem. Vívila olha assustada para a
carruagem. Marília e Rosa saem de dentro da casa e correm até o portão.
Marília vê a carruagem e fica surpresa. Ela sai do portão e vai até a
carruagem. Carruagem. SALES e AMARÍLIS estão dentro da
carruagem. O cocheiro abre as portas da carruagem. SALES, 35 anos,
alto, magro, olhos azuis e pele clara e AMARÍLIS, 25 anos, alta, olhos
329
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
escuros e pele clara, grávida de seis meses, saem da carruagem. Amarílis
dá um forte abraço em Marília. Barriga de Amarílis de uma grávida de
seis meses. Marília passa as mãos, carinhosamente, na barriga de
Amarílis. Marília e Amarílis dão risadas abraçando-se. Sales
cumprimenta Marília com um aperto de mão. Rosa e Vívila saem do
portão e cumprimentam Amarílis e Sales.
MARÍLIA (VOICE OVER)
Como vós mercê pôde ter observado, Dirceu, eu criei uma
grande espectativa para receber a minha irmã, Amarílis e o
senhor meu cunhado, Sales. Sempre eu estava atenta no
portão, aguardando pela chegada deles. O dia em que eles
chegaram eu fiquei tão feliz. Procurei arranjar a eles tudo o
que fosse melhor da casa. Deixei Rosa e Vívila à disposição de
minha irmã, a ponto de não deixá-la fazer nada, senão cuidar
da gravidez dela. Mal eu sabia, que quando eles chegassem a
Vila Rica a minha vida se tornaria em um inferno...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 128.1 – EXT./DIA/ VILA RICA. FRENTE À CASA
DOS CONTOS.
Rua da casa dos contos. Marília e Dirceu de pé, frente a frente
conversando.
DIRCEU
Como assim, num verdadeiro inferno, Marília?
MARÍLIA
Como sabe Dirceu, o senhor meu pai morreu de repente e
não deixou nenhum testamento. Devido a esse fato, logo que
a minha irmã e o marido chegaram a Vila Rica, eles trataram
rapidamente de mexer com o inventário dos bens procurando
330
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
um escrivão e dizendo a mim que estavam legalizando tudo,
conforme a lei...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 130 – INT./DIA. VILA RICA. SALA AMPLA E
AREJADA DE UM ESCRIVÃO.
Flash back – Relato de Marilia.
Sala ampla e arejada. Sales, Amarílis e Marília estão sentados à mesa,
juntamente com um escrivão. O ESCRIVÃO tem aproximadamente 27
anos. Ele é baixo, gordo, loiro e meio desajeitado. Caderno de registro
sobre a mesa. O escrivão abre o enorme caderno de registro, pega a lupa
e confere-lhe algumas folhas. Ele consulta o enorme caderno, usando
uma lupa.
ESCRIVÃO
Ora, ora, vejamos cá, senhor Sales. Bem, se Dom Manuel não
deixou nenhum testamento, podemos passar a tutela dos bens
para a irmã mais velha de Dona Marília, dsta forma ela irá
representar a Dona Marília, assistindo-lha nos atos da vida
civil, quanto a defesa, o amparo, a proteção; a tutoria; a
dependência ou a sujeição vexatória.
Sales coça a cabeça.
SALES
E quanto a mim, escrivão? Como fico nesta história?
ESCRIVÃO
O senhor poderá administrar os bens da família, zelando pela
proteção material.
ESCRIVÃO
(faz um sinal com os dedos, insinuando dinheiro)
331
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Tudo é possível, senhor Sales. Se quiser, lavrarei um
documento, agora...
SALES
Que o faça, senhor escrivão, que o faça...
Marília olha para Amarílis, para Sales e põe-se de pé. Marília olha para a
porta da sala do escrivão, dirige-se até ela, abre-a e sai. Amarílis faz o
mesmo, indo ao encontro de Marília.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 128.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./ DIA/ VILA
RICA. FRENTE À CASA DOS CONTOS.
Rua da casa dos contos. Marília e Dirceu de pé, abraçados.
MARÍLIA
Amarílis, por ser a minha irmã mais velha e, casada, teve
direito à tutela dos bens. Eu sei que isso não passa de um
conluio do cunhado com o advogado arranjado por ele. Eu
fiquei à mercê da minha herança e, o pior de tudo, tendo de
agir conforme a vontade do casal. Eu não me conformo com
as atitudes ameaçadoras da minha irmã que, a cada dia,
deixava-se envenenar pelas ideias do marido. Por
determinação do cunhado Sales, eu continuarei morando em
Vila Rica e a fazenda ficaria por conta de dele.
DIRCEU
Por enquanto, tudo o que posso pedir a vossa senhoria, é que
tenha paciência. Não dê muita importância ao que eles estão
fazendo, pois, se eles pegarem um de seus pontos fracos,
pronto, as coisas tornarão intoleráveis. Quanto á herança,
lembre-se, que jamais vós mercê ficará desamparada, pois eu,
332
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
como viste com teus próprios olhos, até pepita de ouro atirei
na água da fonte...
MARÍLIA
Uma pessoa normal não faria o que vós mercê fez...
DIRCEU
Fiz o que fiz, porque sou mais do que normal, Marília. Um
louco por ouro, dinheiro e riquezas, jamais faria isso. Se vós
mercê não ligou com a pepita como um presente meu, eu
também muito menos ligaria com ela.
MARÍLIA
Meu Deus, Dirceu. Então ficaste aborrecido comigo aquele
dia, na fonte?
DIRCEU
Não, Marília, eu não fiquei. Por favor, conte-me seus
augúrios.
MARÍLIA
O meu sofrimento maior é ter que morar cá em Vila Rica. A
minha irmã e o meu cunhado, Sales, quer obrigar-me isso.
Logo agora, que eu tinha tantos planos de morar na fazenda
do finado senhor meu pai, ao lado de vós mercê a quem tanto
amo...
DIRCEU
Calma Marília, vamos resolver isso com o tempo. Não sei se
vós mercê sabe, o teu cunhado dispensou o Zé da Viúva e o
Raimundo Sobreiro dos trabalhos da fazenda. Os dois
pediram-me abrigo e trabalho. Eles estão trabalhando para
mim, na minha fazenda.
333
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Agradeço pela sua generosidade em acolhê-los em sua
fazenda, Dirceu. O senhor meu pai gostava tanto deles. Eu
sabia que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde, porque o
plano de Sales é ter na fazenda apenas escravos. Segundo ouvi
o dizer, ele trará de São Sebastião do Rio de Janeiro um
benfeitor e um capataz para cuidarem da fazenda.
DIRCEU
Meu Deus, isso dá a mim a certeza de que não demorará
muito em eu estar morando perto de uma fazenda cheia de
negros cativos a quebrar o nosso silêncio com os seus
gemidos de dores e suplícios.
FACHADA DA CASA DOS CONTOS. DIRCEU ABRAÇA E BEIJA
MARÍLIA, DEFRONTE À FACHADA DA CASA DOS CONTOS.
SEQUÊNCIA 131 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Capela da Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Altar da capela. Antenor
está no altar da capela fazendo uma celebração eucarística. Poucos fiéis
sentados nos bancos da capela da fazenda. Estela com os três filhos,
Dirceu, Inácia e Cirilo, quitéria e Hipólito, Eulina e Miliquito, Farias e
alguns sitiantes e fazendeiros da região.
ANTENOR
In nómine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti.
FIÉIS
Amen
ANTENOR
Grátia Dómini nostri Iesu Christi, et cáritas Dei, et
communicátio Sancti Spíritus sit cum ómnibus vobis.
334
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FIÉIS
Et cum spíritu tuo.
ANTENOR
Fratres, agnoscámus peccáta nostra, ut apti simus ad sacra
mystéria celebránda.
FIÉIS
Confíteor Deo omnipoténti et vobis, fratres, quia peccávi
nimis cogitatióne, verbo, ópere et omissióne:
Todos prosseguem batendo com as mãos nos peitos ao confessarem a
culpa.
FIÉIS
Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa. Ideo precor beátam Maríam
semper Vírginem, omnes Angelos et Sanctos, et vos, fratres, oráre pro
me ad Dóminum Deum nostrum.
VOZES CAEM AOS POUCOS, ENTRANDO EM OFF.
CORTA PARA
Antenor está no altar da capela. Poucos fiéis na capela, em pé, batendo
as mãos no peito. FADE OUT/FADE IN. Quintal da fazenda Ribeirão
do Meio. Grande mesa improvisada debaixo de uma árvore. Recepção
dos poucos fiéis que estavam assistindo à missa na capela da fazenda.
Sebastiana, Quitéria, Inácia e Eulina colocam vasilhas com quitutes na
grande mesa improvisada debaixo de uma árvore. Copos de vinhos nas
mãos de alguns homens. CRIANÇAS brincam de correr no quintal da
fazenda. Tarde. Varanda da fazenda. Cirilo, Hipólito e Miliquito estão
sentados nos tamboretes, dentro da varanda da fazenda. Rede da
varanda. Dirceu está sentado na rede da varanda.
335
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
A cada segundo domingo do mês, Antenor e sua pequena
família reuniam-se conosco na capela da fazenda para uma
celebração eucarística. De vez em quando aparecia gente
diferente a nos auxiliar nos cultos. Após a celebração,
Sebastiana oferecia para todos nós seus fartos e deliciosos
quitutes. O nosso banquete era uma festa rápida, improvisada,
cheia de conversas e risos. Após findar a festa, os rapazes da
fazenda e eu gastávamos o resto do dia proseando na varanda
da casa.
FOTOGRAFIAS DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
SEQUÊNCIA 132 – EXT./INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. VARANDA
DO CASARÃO.
Cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Sales, montado em um bonito
cavalo, aproxima-se da cancela da fazenda. Dirceu está conversando
com Farias e Miliquito no quintal da fazenda. Miliquito avista Sales na
cancela da fazenda e olha para Dirceu.
MILIQUITO
Parece que nhô Dirceu vai receber visita...
Miliquito olha para Dirceu e aponta com o queixo em direção à cancela.
Sales bate palmas na cancela da fazenda, chamando pelo dono. Dirceu
olha para a cancela. Miliquito levanta-se para ir até a cancela. Dirceu
adverte-o com um sinal para não ir. Dirceu levanta-se e vai até a cancela
encontrar-se com Sales. Cancela. Dirceu aproxima-se da cancela e abrea. Sales olha para Dirceu.
SALES
Eu quero falar com o dono da fazenda, o senhor Dirceu. Não
o conheço de vista, mas de fama...
336
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Está aqui, quem o senhor procura. Sou o próprio Dirceu e
dono desta humilde propriedade.
Sales e Dirceu se cumprimentam tirando os chapéus e colocando-os
novamente nas cabeças
SALES
Não sei se o senhor me conhece ou já viu falar sobre mim, o
meu nome é Sales. Coronel Sales. Há menos de poucos dias
estou morando cá, nesta região, na fazenda do finado meu
sogro, dom Manuel.
Sales pula do cavalo e segura o cavalo pela rédea. Dirceu olha admirado
para Sales.
DIRCEU
Então tu és o cunhado da dona Marília, o moço que veio de
São Sebastião do Rio de Janeiro para se juntar ao povo desta
região.
Miliquito aparece na cancela de repente, cumprimenta Sales com um
balançar de cabeça e toma-lhe a rédea do cavalo. Sales olha para
Miliquito carregando o seu cavalo para frente do quintal da fazenda e
em seguida olha para Dirceu.
SALES
Eu gostaria de saber qual o ramo de atividade agrícola é mais
comum nesta região e quantos escravos vós mercê têm em sua
fazenda...
Varanda do casarão. Dirceu e Sales seguem-se para a varanda do
casarão. Tamboretes na varanda. Dirceu e Sales sentam-se em uns dos
tamboretes da varanda.
337
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Escravos? Tenho nenhum, senhor Sales. Com o tempo, vós
mercê há de perceber, que, cá, nesta fazenda, formamos todos
uma só família. Uns ajudando aos outros. Assim, conforme
deveria ser a lei da sobrevivência.
Quintal de frente da fazenda. Cirilo, Hipólito, Miliquito e Ambrósio
estão sentados em um velho tronco estendido debaixo de uma frondosa
árvore. Eles conversam animadamente. Sales olha para eles e em seguida
para Dirceu.
SALES
Aqueles negros, não são seus escravos, senhor Dirceu? Ou
são apenas os que muitos chamam de escravos de ganho...
DIRCEU
Conforme eu disse ao coronel Sales, escravos, não tenho
nenhum. Formamos aqui uma família, todos ajudando uns aos
outros. Eles também não são escravos de ganhos, como as
pessoas preferem chamar aos que trabalham livres em uma ou
outra profissão.
SALES
(ri, coça o bigode, encara os rapazes e pergunta bruscamente)
Aqueles negros não são mesmo seus escravos, senhor Dirceu?
DIRCEU
Não, não, senhor Sales. Conforme afirmei cá não tenho
escravos. Cá, tenho amigos e vivemos na labuta da lavoura e
da fazenda para os nossos sustentos. Todos precisamos de
comer, vestir e de se divertir.
SALES
Não entendi. Se vós mercê não tem escravos, como pode
administrar esta fazenda? Como pode estar em dias todas às
atividades da fazenda, se vós mercê não prega nenhum
338
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
convívio social regido conforme os princípios dos grandes
fazendeiros da colônia, o senhor está sendo contra a
escravidão...
DIRCEU
Sei o que fazer aqui. O regime de escravidão está longe do
meu convívio. Está certo que vós mercê vê que a maioria das
pessoas nesta fazenda é negra, mas isso não nos impede que
sejamos amigos e que compartilhe entre nós a paz e a
felicidade...
Dirceu olha para Cirilo, Hipólito, Miliquito e Ambrósio, quais proseiam
alegremente debaixo da frondosa árvore.
DIRCEU
Olha lá, senhor Sales, como eles são felizes por cá. Hoje, por
exemplo, é domingo e tanto eles, quanto todos os outros e eu
estamos em dia de descanso. Para quem prega e defende a
escravidão, eu apenas digo o seguinte, cada um que bula a sua
consciência e faça o que achar melhor. Tudo o que queremos
nesta fazenda é plantar e colher fartura para o nosso sustento,
senhor Sales.
SALES
(olha para Dirceu entediado)
Ora, ora, senhor Dirceu. Que ideologia! Negro é negro e veio
ao mundo para nos servir de escravos. Comprarei alguns nesta
semana. Apenas aguardo a chegada de um benfeitor para
administrar a minha propriedade. Terei também um carrasco
e, se possível, agirá no lombo dos negros desobedientes.
DIRCEU
No ano passado visitei por acaso um senhor chamado dom
Manuel. Ele dizia a mesma coisa que vós mercê está dizendo
agora. Ele comprara gados zebus e holandeses, ovelhas e uns
negros em Rio das Mortes e mandado para a fazenda que
339
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
estava construindo. Contando que ficaria rico com o
investimento, dizia que esperava dos negros muito trabalho,
caso contrário, eles sentiriam na pele as chicotadas. Portanto,
onde está dom Manuel? Como sabes, está morto, entregue aos
vermes. Enquanto isso, outras pessoas pensam em fazer o
mesmo que ele, sem pensar na vida de seus empregados, que
além de serem tratados como meras mercadorias, trabalham
em troca de suas míseras sobrevivências, sem nunca terem
direito à liberdade de seus próprios pensamentos. A maior
mesquinhez do ser humano é julgar ser superior aos demais.
SALES
Tu estás falando do dom Manuel, meu finado sogro?
DIRCEU
Sim, ex-proprietário da fazenda, a qual vós mercê ocupa
agora.
SALES
Então vós mercê conheceu dom Manuel, o senhor meu
finado sogro?
DIRCEU
Sim, vi-o uma vez, no dia em que ele discursou o que acabei
de relatar á vossa senhoria.
SALES
Isso a mim não importa...
DIRCEU
Deveria importar porque os negros são humanos, senhor
Sales. Perante Deus somos todos irmãos.
SALES
Disso não sei, porque não sou muito adepto às coisas da
igreja. Entrei em uma igreja apenas 5ara casar com Amarílis e
340
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
pronto. Se eu não fizesse isso, eu não a conheceria e não a
teria como esposa.
Dirceu olha para Sales um instante. Sales observa o quintal do pátio da
fazenda.
DIRCEU (VOICE OVER)
Ciente de que não converteria Sales a agir conscientemente
com os negros da fazenda herdada por ele, tratei de mudar o
assunto.
Dirceu olha para Sales que parece distraído e prossegue o diálogo
DIRCEU
Então vós mercê é o cunhado de dona Marília?
SALES
(senta-se novamente na poltrona ao lado de Dirceu)
Sim! dona Marília contou-me que vós mercê namorava-a...
DIRCEU
Não, eu não namorava a dona Marília, eu namoro-a...
SALES
(morde os lábios)
A minha senhora esposa e eu conversamos bastante com a
dona Marília. Ela é uma rapariga nova, sem juízo. Todos nós
sabemos que ela é compromissada com um jovem italiano e
que não deveria namorar rapaz algum da colônia. O meu
falecido sogro fazia gosto de vê-la casada com o rapaz
prometido. É uma pena que ele morreu sem cumprir duas
coisas.
DIRCEU
Como?
341
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
Sim, o meu finado sogro morreu sem chicotear os seus
escravos e sem realizar o casamento de sua jovem filha, com o
italiano. Se esses eram os seus desejos, trataremos de realizálos. Chicotearei os escravos, caso venham a desobedecer-me e
casarei a jovem Marília com o mancebo da Itália.
DIRCEU
E sabes por acaso se é esse o desejo de dona Marília?
SALES
E precisamos consultá-la? Se a família rege dentro desses
moldes, temos de cumprir. Não seria lícito casar as nossas
filhas, irmãs ou parentas com vis aventureiros que batam às
nossas portas. Queremos dar a elas homens fluentes, com
poder, dinheiro e fartura.
DIRCEU
(põe-se de pé e ergue-se a voz)
Tenho recursos suficientes para oferecer a Marília sem que ela
nunca dependa de nada da herança de dom Manuel, senhor
Sales. Quanto ao estrangeiro a quem dom Manuel prometeu a
mão de Marília, verá que tudo não passou de uma
informalidade. A moça não o conhece e para ser feliz...
SALES
E pensas por acaso que eu conhecia a minha esposa antes do
casamento? Conheci-a no altar, no momento da cerimônia.
Abri mão de tantas outras raparigas para cumprir a vontade
do meu pai. Nem por isso, somos infelizes.
DIRCEU
(senta-se novamente no tamborete)
Cada caso, um caso, senhor Sales...
342
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
(põe-se de pé)
Se vós mercê e dona Marília conhecem e pretendem lutar para
ficarem juntos, creio causarem problemas a mim e a minha
senhora esposa. Veremos o que fazer para cumprir a
promessa do memorável pai da moça. Farei cumprir o que foi
determinado por ele e desde já peço a vós mercê que não
volte a vê-la. A menina é sem juízo, não se atina muito ao
destino.
DIRCEU
(se põe de pé, de frente ao Sales)
Não sei se o destino vai querer que as coisas andem desta
forma senhor Sales, mas prometo não aborrecer vós mercê e
nem a sua dignifica esposa...
SALES
Vós mercê acaba de deixar-me tranquilo, senhor Dirceu.
Desta forma encaminharemos Marília ao destino dela, ao lado
daquele que a espera na Europa, na terra dos deuses pagãos e
católicos...
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Que mal fiz aos deuses, para que este moço apareça de
repente e quer mudar todos os meus planos?! Eu conhecia
Marília e tinha a convicta certeza de que podia contar com ela
naquele desafio. Ora, ora, senhor Sales, ninguém jamais
conseguirá separar-me de Marília, exceto Deus.
SEQUÊNCIA 133 – INT./ DIA/. CAPELA DA FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO.
Capela da fazenda. Porta lateral do lado esquerdo da capela aberta.
Farias, com o chapéu na mão, faz o sinal da cruz e entra na capela pela
343
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
porta lateral do lado esquerdo. Ele vasculha com os olhos toda a capela.
Ele vê Dirceu ajoelhado próximo ao altar da capela. Farias anda devagar
em direção ao altar onde Dirceu está ajoelhado. Farias aproxima-se de
Dirceu. Ele olha para Dirceu com um olhar enigmático. Dirceu põe-se
de pé.
FARIAS
Sinhozinho está procurando alguma coisa aqui... Sinhozinho
parece preocupado eu senão curioso...
DIRCEU
Não, Farias, não procuro por nada, apenas sustento cá, a
minha paz espiritual...
FARIAS
Paz é o que nhozinho mais tem no coração. Nhozinho é
homem bom, não gosta de desavenças...
Farias e Dirceu sentam-se em um dos bancos da capela.
DIRCEU
Não gosto mesmo, Farias, mas de vez em quando aparece
alguém não sei de onde para tirar a minha paz.
FARIAS
Inhozinho tá falando da visita que recebeu, não foi?
DIRCEU
Foi, Farias. O tal do coronel ou sei lá, o Sales, deixou-me
verve, confuso...
FARIAS
Carece sinhozinho preocupar com isso não. A dona Marília
faz parte do destino de nhozinho...
344
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Dona Marília? Como sabe disso Farias? Conte-me o que sabe,
alivia-me esta dor, cá no peito...
FARIAS
Tudo o que eu tenho para dizer a vós mercê é que sinhá
Marília guarda um grande segredo para o sinhozinho.
DIRCEU
(demonstra-se surpreso)
Segredo? Ela guarda para mim um segredo?
segredo, Farias?
Qual é este
FARIAS
(sorri)
Se é segredo, somente a dona Marília sabe. Na hora certa, ela
há de contar ao sinhozinho...
Dirceu tenta fazer outra pergunta para Farias. Farias não dá
importância. Ele sai andando devagar até a porta lateral esquerda da
capela. Dirceu fica imóvel, sentado no banco vendo Farias sair da capela
pela porta lateral aberta. Dirceu aproxima-se do altar da capela e fica
reparando os detalhes dele. Uma pequena lagartixa corre pelo altar.
Dirceu olha atentamente para a lagartixa. A lagartixa tenta entrar num
pequeno orifício que há no altar, mas ela engancha-se no pequeno
orifício. Dirceu acorre para desenganchar a lagartixa, tentando pegá-la
pelo rabo. A lagartixa solta o rabo e sai correndo assustada. Orifício.
Dirceu observa o orifício. Ele passa as mãos no orifício, sopra a poeira e
constata haver ali uma portinhola. Dedos de Dirceu tocando o orifício
da portinhola do altar. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Há um pequeno orifício cá e ele trata-se de um pequeno
ferrolho. Para abrir este pequeno orifício bastava uma
pequena chave. O que estaria escondido dentro daquele altar
da capela? Onde estaria a pequena chave daquele altar? Se a
345
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
capela pertencia à fazenda, decerto a chave haveria de está em
lugar da casa da fazenda. Vou procurar nos móveis da sala e se
eu não encontrar, saberei sobre a chave com a Sebastiana.
SEQUÊNCIA 134 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. SALA DE VISITA.
Sala de visita do casarão da fazenda. Mobílias antigas e exageradas.
Dirceu abre gavetas procurando a chave. Gavetas abertas. Dirceu
vasculha as gavetas. Dirceu fecha a última gaveta e fala por solilóquio.
DIRCEU
Vou encontrar não. Procurar o que não sabe onde pode está é
muito complicado. Vou acabar revirando a casa toda e nada.
Acho melhor perguntar para a Sebastiana, ela deve saber até
quem zelava pela capela nos outros tempos.
SEQUÊNCIA 135 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA. SALA DE VISITA
DO CASARÃO.
Cozinha. Sebastiana está sentada à mesa da cozinha cochilando. Dirceu
entra na cozinha de supetão. Sebastiana acorda assustada e olha para
Dirceu.
SEBASTIANA
Nhozinho? Nhô Dirceu, nem vi quando entrou... A velha
anda cansada, dormindo à toa, nhozinho...
DIRCEU
Eu não queria perturbar vós mercê, Sebastiana. Perdoe-me é
que...
346
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEBASTIANA
(coloca-se de pé)
Nada nhozinho... Vossemecê precisa de quê, quer um café
quentinho, vou coar para nhô...
DIRCEU
Não, não Sebastiana. Pode sentar e descansar. Eu só quero
saber...
Porta do fundo da cozinha, dando para o quintal. Farias entra pela porta
do fundo da cozinha. Farias para e olha para Dirceu e Sebastiana.
FARIAS
Sinhô Dirceu quer saber alguma coisa que Sebastiana também
não sabe...
DIRCEU
(olha assustado para Farias)
Como ela não sabe se eu nem...
FARIAS
Vamos lá pra sala, sinhô Dirceu. Lá falaremos sobre o que
vossemecê quer saber...
FADE OUT/FADE IN
Sala de visita do casarão. Dirceu e Farias estão sentados lado a lado em
umas das poltronas. Farias olha enigmático para Dirceu.
FARIAS
Sinhozinho descobriu o buraco da chave no altar da capela,
não descobriu?
Dirceu balança a cabeça sinalizando um "sim". Farias olha para Dirceu
com um olhar de censura ou de medo.
347
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FARIAS
Sinhozinho deve ter cautela. Sinhozinho tem de saber que o
mistério não pertence a vossemecê e a ninguém. Ele é um
perigo para a colônia e quando tiver no poder de sinhozinho,
escute a voz do Espírito Santo e aja conforme a vontade
DELE.
DIRCEU
Não entendi...
FARIAS
Sinhozinho vai entender a partir do dia que os anjos
aparecerem. Um anjo é grande, outro maior, um ajuda, outro
engana. Os caminhos de sinhozinho vão ser iguais a uma
encruzilhada.
DIRCEU
Um desses anjos descerá do céu para entregar-me uma chave?
FARIAS
(olha fixamente para os olhos de Dirceu)
Sinhozinho não pode arrombar a porta, sinhozinho age com
prudência. Se o santo anjo julgar que sinhozinho merece a
chave do mistério, ele saberá como agir para ajudar
sinhozinho a tê-la. Sinhozinho fique sabendo o que o santo
padre Fernandez disse que mistério é um desafio capaz de
colocar em perigo a colônia e todo o povo do mundo.
DIRCEU
Sobre o quê o amigo Farias está falando? Qual mistério é um
desafio capaz de colocar em perigo a colônia e todo o povo
do mundo?
FARIAS
(faz o sinal da cruz)
348
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Do mistério, sim do mistério do padre Fernandez. Sinhozinho
não sabe o que é, mas teve gente que pediu para o santo padre
na época abrir um buraco bem fundo e enterrar ou atear fogo
na coisa ruim, mas ele disse que não podia fazer isso não. A
missão dele era aquela, salvar a terra dele dos males que
estavam por acontecer.
DIRCEU
Qual terra dele e quais os males, Farias?
FARIAS
Quá, o resto vós mercê saberá com o tempo, creio que falei o
que haveria de falar... O resto depende de como se desatará o
mistério...
Farias levanta-se e sai da sala da casa da fazenda. Dirceu continua
sentado na poltrona, paralisado, pálido e assustado.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Mistério! Esta palavra parece ter um sabor de aventura, de
desafio e de curiosidade, acima de tudo...
SEQUÊNCIA 136 - INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DE
MEIO. CAPELA DA FAZENDA. CEMITÉRIO DO PÉ DA
SERRA.
Porta da lateral esquerda da capela aberta. Dirceu entra apressado na
capela e dirige-se até o altar da capela. Ele confere o orifício no altar.
Dirceu sente um arrepio correr pelo corpo dele. Dirceu olha para os
bancos da capela. CORPO DE UM HOMEM caído em um dos cantos
do chão da capela. Dirceu corre em direção ao corpo do homem caído
em um dos cantos do chão da capela. Dirceu aproxima-se do corpo.
349
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu vê que se trata do corpo de Farias. Farias está morto. Dirceu
assusta ao ver Farias morto, caído em um dos cantos do chão da capela.
Dirceu cai de joelhos e toca no corpo de Farias, pegando e apertando o
punho dele.
DIRCEU
Farias? Meu Deus, o que aconteceu com o velho Farias? Meu
Deus, o Farias morreu!
FADE OUT/FADE IN
Porta da lateral esquerda da capela aberta Dirceu corre até a porta da
capela e grita por todos da fazenda Ribeirão do Meio. Logo aparecem na
capela Cirilo, Ambrósio, Miliquito e Hipólito. Eles correm ao encontro
de Dirceu, próximo ao corpo de Farias. Pôr-do-sol. Cemitério.
Sepultura de Farias. Cirilo finca uma cruz na sepultura de Farias. Todos
da fazenda Ribeirão do Meio estão em volta da sepultura de Farias.
Varanda da fazenda. Em um dos cantos da varanda da fazenda está a
sanfona de Farias. Hipólito pega a sanfona de Farias.
DIRCEU (VOICE OVER)
Quando eu encontrei Farias caído em um dos cantos do chão
da capela e constatei que ele estava morto, eu corri até a porta
da capela e gritei pelo pessoal da fazenda. Ninguém creu na
morte súbita e serena de Farias. Como um dos rapazes havia
encontrado uma rede e algumas recomendações escritas sobre
como Farias quisesse o seu enterro, nós fomos obrigados a
não velá-lo e, portanto, ainda naquela tarde, enterramo-lo no
cemitério do pé da serra. Na sepultura dele fincamos também
uma cruz como o nosso último presente de despedida.
350
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CAPÍTULO 8
SEQUÊNCIAS 137-156
Personagens deste capítulo:
Zé Tomázio
Dirceu
Fregueses de Zé Tomázio
Menino moreno de 13 anos
Marília
Trácio
Endimião
Alceu
Eulina
Quitéria
Raimundo Sobreiro
Zé da Viúva
Cirilo
Inácia
Ambrósio
Sebastiana
Antônio Francisco Lisboa
Antônio Francisco Lisboa (aos 13 anos)
Meninos entre 12 e 14 anos
Vinte homens negros e fortes (Coronel Tonico)
Hipólito
Miliquito
Ambrósio
Dois negros jovens (fazenda Paraíso)
Zenilda
Homens negros (fazenda Paraíso, guiadores dos carros de bois)
Homens negros (fazenda de Dom Manuel)
Paulo (benfeitor da fazenda de Dom Manuel)
Dois homens brancos, altos e magros
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 135
2. Sequência 149
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
3. Sequência 36.6(para adaptação, conforme critério do Diretor)
4. Sequência 150
SEQUÊNCIA 137 - INT./EXT./DIA. VILA RICA. EMPÓRIO DE
ZÉ TOMÁZIO.
Dirceu está dentro do empório Zé Tomázio. Ele está próximo ao
balcão. Zé Tomázio termina de atender dois fregueses e depois se dirige
para Dirceu.
ZÉ TOMÁZIO
Então, o gajo conseguiu conquistar a dona Marília? E a
história do leque? Conta-me gajo como foi que entregaste o
leque para a dona Marília?
DIRCEU
Se dependesse de dona Marília e deste pobre homem, tudo
daria certo, Zé Tomázio, mas, como a vida é cheia de altos e
baixos, as coisas acabam dando erradas...
ZÉ TOMÁZIO
Virgem mãe do céu! O que pode estar atrapalhando um
romance que mal começou? Estavas namorando com a dona
Marília, não estavas?
DIRCEU
Creio que ainda estou, Zé Tomázio, mas depois da morte do
senhor pai de dona Marília, o Dom Manuel, as coisas
começaram a se complicar. A irmã e o marido da dona
Marília, recém chegados de São Sebastião do Rio de Janeiro,
resolveram meter o bedelho onde não deviam. Não é que o
352
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
cunhado de dona Marília, um sujeitinho chamado Sales,
proibiu a Marília e eu de nos encontrarmos?
Balcão. Zé Tomázio atende um freguês no balcão. O freguês sai do
empório. Zé Tomázio aproxima-se de Dirceu.
ZÉ TOMÁZIO
Mas que mal fizeste o senhor e a dona Marília, aos deuses?
DIRCEU
Creio que nenhum mal, Zé Tomázio! Os deuses humanos, de
carne e osso, são quem estão a nos cercar dia e noite,
estragando os nossos planos...
ZÉ TOMÁZIO
Outro dia a dona Marília esteve por cá com a criada para
comprar alguns mantimentos. Eu achei a dona Marília tão
tristezinha...
DIRCEU
A morte do pai abateu-a muito...
ZÉ TOMÁZIO
E conforme estou a ver, agora, a coitada sofre de amor
também. De um amor corrompido... Mas, se o amigo precisar
de uma ajuda, cá estou a servir-lhe de cupido...
DIRCEU
Tudo o que eu quero nesta manhã, meu amigo Zé Tomázio é
ver e conversar com a dona Marília...
ZÉ TOMÁZIO
E para isso precisam de um lugar seguro. Ora, ora, cá tenho
uma ideia excelente, senhor Dirceu...
353
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Zé Tomázio sai de dentro do balcão e vai até a uma das portas aberta do
empório. Há um MENINO MORENO, de 13 anos de idade, vigiando
os cavalos amarrados nos postes, frente à venda de Zé Tomázio. Zé
Tomázio grita pelo menino moreno, de 13 anos. O menino moreno de
13 anos corre rápido em direção a Zé Tomázio.
ZÉ TOMÁZIO
Vá garoto até a casa da dona Marília, levar um recado para
mim. Ninguém pode receber o recado, senão dona Marília.
Diga a ela para ir até a igreja de Nossa Senhora do Carmo, no
Morro de Santa Quitéria. Diga que tem alguém lá querendo
conversar com ela... Vá, vá... Vá rápido garoto e não descuide
do recado, heim!
O menino moreno de 13 anos de idade sai correndo pela rua. Portas
abertas do empório. Zé Tomázio volta para trás do balcão e chama por
Dirceu.
ZÉ TOMÁZIO
Irás encontrar a dona Marília lá na igreja de Nossa Senhora do
Carmo, no Morro de Santa Quitéria. Pedi a um garoto para
avisar a dona Marília. Pegue o cavalo e vá para lá. Enquanto
dona Marília não chega, aproveite também para rezar uma
ladainha, faz sempre bem para afastar os desassossegos.
DIRCEU
Na igreja Nossa Senhora do Carmo, no Morro de Santa
Quitéria?
ZÉ TOMÁZIO
Há outro lugar mais seguro do que nessa ou noutra igreja?
DIRCEU
Não, não outro lugar mais seguro do que as igrejas...
FOTOGRAFIAS DE ALGUMAS IGREJAS DE VILA RICA.
354
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 138 – INT./EXT./DIA. RUAS DE VILA RICA.
MORRO DE SANTA QUITÉRIA. IGREJAS DE VILA RICA.
IGREJA NOSSA SENHORA DO CARMO.
Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Morro de
Santa Quitéria. Dirceu cavalga para o Morro de Santa Quitéria.
DIRCEU (VOICE OVER)
Eu aderi ao plano de Zé Tomázio, porque sabia ser a igreja o
lugar mais tranquilo de Vila Rica ou de qualquer outra cidade.
Enquanto eu marchava para o Morro de Santa Quitéria, tecia
solilóquios a respeito do profano e do sagrado.
Vila Rica. Frontifício de uma igreja. Fiéis rezando em uma igreja.
PADRE pregando no púlpito de uma igreja. HOMENS e MULHERES
flertando-se disfarçadamente, durante a pregação do padre no púlpito de
uma igreja. Uma igreja vazia. UM CASAL JOVEM namorando-se em
um dos bancos da igreja. Altar da igreja. Atrás do altar da igreja. UM
HOMEM e UMA MULHER praticando beijando-se e abaçando-se
escandalosamente atrás do altar de uma igreja. Casas de Vila Rica.
Janelas abertas das casas de Vila Rica. Pessoas espiando umas às outras
pelas janelas aberta das casas de Vila Rica.
DIRCEU (VOICE OVER)
Nessa época a igreja era um lugar puramente social e um dos
meios mais apropriados para a população se encontrar, flertar,
paquerar e namorar. Não havia outro esconderijo melhor,
quando, em plena luz do Sol, homens e mulheres quisessem
se encontrar para namorar ou até cometer adultérios. Isso se
dava devido à falta de privacidade. As casas rodeadas por
janelas, varandas e sacadas por todos os lados, faziam com
que todos perdessem espaço para suas intimidades. Qualquer
passo falso, infelizmente, era motivo de fofocas pela cidade de
forma rigorosamente maldosa. Todo mundo conhecia todo
mundo e, além disso, uns esperavam o momento propício
para acabar com os outros, senão materialmente, moralmente.
355
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Ou eu encontraria Marília naquela igreja, ou inventaria um
esconderijo no mato, o que não era de todo seguro.
SEQUÊNCIA 139 - EXT./INT. DIA. VILA RICA. MORRO DE
SANTA QUITÉRIA. IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO.
Morro de Santa Quitéria. Frontifício da igreja de Nossa senhora do
Carmo. Interior da igreja. Dirceu está sentado em um dos bancos da
igreja. Porta da igreja. Marília aparece na porta da igreja. Ela observa
todo o interior da igreja e vê um homem sentado em um dos bancos da
igreja. Marília observa o homem com atenção. Ela anda pelo corredor
central da igreja e observa o homem e sorri quando descobre que o
homem é Dirceu.
MARÍLIA
Dirceu! Que loucura! Como não pensei que poderia ter sido o
Dirceu? Eu cá pensando que fosse alguma reunião em prol da
Irmandade de Santa Quitéria...
Marília olha atentamente para Dirceu. Dirceu está sentado, inerte,
cochilando no banco da igreja. Marília observa Dirceu cochilando e,
ajeitosamente, se aproxima dele. Ela cochicha em um dos ouvidos de
Dirceu.
MARÍLIA
Saíste de casa tão cedo a ponto de ficares com sono? Ou fui
eu quem demorou a chegar?
DIRCEU
(abre os olhos e olha para Marília de forma radiante)
Marília! Vieste ao meu encontro Marília? Que bom, isto vale
para mim todos os presságios...
Dirceu ajeita-se no banco da igreja. Marília senta-se ao lado dele. Marília
e Dirceu olham por toda a igreja. A igreja Nossa Senhora do Carmo está
356
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
vazia. Dirceu e Marília beijam-se. Marília coloca-se os dedos entre os
lábios, abre uma pequena carteira e retira de dentro dela um lenço
branco transparente. Marília coloca-se o lenço na cabeça. Marília
ajoelha-se, faz o sinal da cruz, balbucia alguma prece e em seguida sentase ao lado de Dirceu.
MARÍLIA
Quero contar para vós mercê algumas novidades sobre a
loucura do senhor meu cunhado, Sales.
DIRCEU
Ele continua aprontando, é?
MARÍLIA
Sales está metendo na cabeça da minha irmã que eu deva
casar-me urgentemente com o rapaz da Itália. Segundo ele é
para fazer cumprir a promessa do finado senhor meu pai. Por
eu não aceitar a ideia do casamento, estou vivendo uma
terrível luta em casa, ora brigando com o Sales, ora com a
Amarílis.
DIRCEU
Ora, Marília, creio que tudo isso é muito desgastante, não é bom que
vós mercê deixe que as coisas se inflame. Finja que aceite tudo, até que
possamos bolar um plano e colocar em ação...
MARÍLIA
Se eu não aceitar o casamento, a minha irmã e o meu cunhado
prometem meter-me em um convento de freiras. Segundo
eles, ou caso com o italiano, ou viro freira.
Dirceu olha por toda a igreja. A igreja Nossa Senhora do Carmo está
vazia. Dirceu beija Marília.
DIRCEU
Antes preferia ser freira a casar com um homem da roça, não?
357
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Falei isso aquele dia, lá em Mariana, porque eu ainda não
conhecia as coisas do coração, Dirceu. Eu ainda não havia
namorado, nem sabia o quanto era bom ficar ao teu lado.
DIRCEU
Pois agora que conheces as coisas do coração, peço à senhora,
dona Marília que não discuta com ninguém. Será muito
interessante deixá-los agirem da forma como eles quiserem.
Qualquer ameaça contra vós mercê, Marília, não passará de
uma tolice deles. O interesse de Sales está em reinar sobre a
herança de dom Manuel. Bastais vós mercê pacientar-se para
as coisas darem certo. Lembre-se que eu jamais me separarei
de vós mercê. Se algum dia eu perder-te de vista e ninguém
souber dizer para mim o seu paradeiro, eu moverei o céu e a
terra para encontrar-te. Se tu, por ventura, estiveres metida em
um convento, eu encontrarei, raptarei e esposar-te-ei.
MARÍLIA
(sorri confiante)
Eu confio em vós mercê Dirceu, talvez isso me tranquiliza um
pouco. O Sales enviou uma carta ao meu tio marcando o
prazo para o italiano vir ao Brasil e casar-se comigo.
DIRCEU
Mas que italiano ou romano é esse que até agora ninguém
disse o nome? Esse noivo secreto é coisa arrumada pelo
senhor seu tio, que mora na Itália, ou foi pelo finado senhor
vosso pai?
MARÍLIA
Sei lá, Dirceu. Creio que tudo isso não passa de uma armação.
Onde que eu, dona Marília, vou aceitar conhecer o meu noivo
no dia do casamento, no altar? Até parece que não me
conhecem? Eu sou de um novo tempo e não daquele tempo
onde o livre arbítrio reinava-se nas mãos de outrem... Eu cá
358
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
serei uma pessoa manipulável, um joguete nas mãos de Sales e
de Amarílis? Jamais, Dirceu, jamais!
DIRCEU
Jamais, Marília, jamais, a partir de hoje nós dois estaremos a
medir forças para desfazer os caprichos dos outros sobre os
nossos destinos. Deus, presente nesta santa igreja, há de nos
fazer alcançar a nossa vitória.
Sorriso largo nos lábios de Marília. Dirceu e Marília beijam-se.
Frontifício da igreja Nossa Senhora do Carmo. Dirceu e Marília andam
pelo adro da igreja Nossa Senhora do Carmo.
DIRCEU
Lembro-me de conhecer uma velha mina abandonada, aonde
ninguém vai até ela. Podemos nos encontrar lá. Se vós mercê
concordar eu pegarei vós mercê perto da Casa dos Contos e a
levarei até lá, comigo. Ficaremos em paz, Marília, em paz!
SEQUÊNCIA 140 – INT./EXT. VILA RICA. IGREJA NOSSA
SENHORA
DO
CARMO.
TRILHA.
VELHA
MINA
ABANDONADA.
Legenda: “Quinze dias depois...”
Marília na garupa do cavalo de Dirceu. Dirceu e Marília cavalgam numa
pequena trilha pelo mato. Velha mina abandonada. Dirceu freia o cavalo
de frente à mina abandonada. Dirceu pula do cavalo e ajuda Marília a
descer do cavalo. Cavalo de Dirceu amarrado em um canto da entrada
da mina. Dirceu e Marília encostam-se em um canto da velha mina
abandonada. Dirceu e Marília beijam-se ardentemente.
DIRCEU (VOICE OVER)
A partir deste dia, Marília e eu combinamos a cada quinzena
nos encontrar nesta velha mina. Falei a Marília que em cada
encontro teríamos uma surpresa, pois o cupido, decerto,
359
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
atirar-nos-ia aljavas de setas de seu arco. Marília pedia que eu
descrevesse como era o cupido. Eu corria às descrições dos
poetas latinos, dizendo que ele era um menino de olhos
vendados, de corpo despido e de ligeiras asas nos ombros a
lançar flechas douradas nos corações dos apaixonados. Ele
não era moço, nem cego e só poderia conhecê-la muito bem,
quem por ele fosse ferido no peito. Eu conhecia-o devido a
essa ferida que somente cicatrizaria se houvesse
simultaneidade de sentimento íntimo, constante e responsável
por parte dela, a quem eu amava.
SEQUÊNCIA 141 - INT./EXT./DIA. TRILHA. VELHA MINA
ABANDONADA.
Outra tarde. Cavalo de Dirceu amarrado na entrada da velha mina
abandonada. Um bonito facho de luz do sol invadindo a entrada da
velha mina abandonada. Dirceu e Marília em um dos cantos da entrada
da velha mina abandonada.
MARÍLIA
Juro por tudo que for sagrado no mundo, Dirceu, que eu
jamais deixarei de amá-lo. Não é à-toa que eu corro todos os
riscos para a cada duas vezes por mês vir até cá, para ver-te. O
meu coração pulsa como o velho relógio de minha casa,
marcando as semanas, os dias, as horas e os minutos para
encontrar-te, meu amado Dirceu...
DIRCEU
Isso tudo que tu sentes Marília, é pura arte do suposto deus
pagão, chamado Cupido. O amor, além de uma aventura, é
antes de tudo uma grande responsabilidade de quem ama...
Facho de luz do sol invadindo um dos cantos da entrada da velha mina
abandonada. Dirceu e Marília em um dos cantos da entrada da velha
mina abandonada. Os dois beijam-se.
360
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Haveremos, Marília, de ter o nosso lugar no Olímpio, onde o
poeta grego, Homero, em sua Odisseia, diz tratar-se de um
monte onde se encontra o palácio de Zeus, construído por
Hefesto. Dizem que nesse lugar não há nuvens e nem
tempestades; no enorme e bonito castelo mora apenas o
supremo Zeus, de onde vive vigiando o destino dos homens.
Se em outras cristas, ficam os palácios dos outros deuses,
haveremos de construir também o nosso, quem sabe não
participaremos das assembleias e não nos tornaremos
divindades superiores formando também a corte. Eu, quem
sabe, serei como o grande Jove, a tomar várias formas. Ora
serei namorado, amante, esposo, vaqueiro e seu fiel pastor e
você, minha deusa, será namorada, amante, esposa, criada e
minha fiel pastora. E não haveremos de fazer mais nada, a não
ser ouvir as cantigas dos deuses ao som da lira e servirmos um
ao outro os encantos do amor. Juro, por tudo que me é
sagrado, Marília, que não haverá no mundo um Dirceu tão
feliz quanto eu. Se o fado tirano obrigá-la a deixar-me, por
Deus e por todos os deuses, sem dúvida, gritaria para o
universo inteiro ouvir: Marília, Marília, sou o teu cativo, por
favor, escute a voz desse triste pastor.
MARÍLIA
(sorri, olha para Dirceu e segura-o pelas mãos)
E creio que não precisarás gritar tão alto, bastarás pensar em
meu nome e eu, por mais longe que eu estiver, ouvirei ou teu
grito e lançarei para ti, também, o meu. Pedirei que vós mercê,
meu senhor, vá até a fonte e lá encontrarás comigo. Creio
existir no reino dos deuses, com maior perfeição, todo o
espaço que procuramos na terra para ficarmos a sós,
tranquilos.
DIRCEU
Sem dúvida alguma, minha amada, Marília, o reino de Zeus
não é como a terra perversa. Creio que lá a paz reina
361
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
constante e há melhor compreensão quanto aos ciclos da vida
no que tange ao amor e à paixão eterna.
MARÍLIA E DIRCEU BEIJAM-SE ARDENTEMENTE.
SEQUÊNCIA 142 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CHIQUEIRO DAS OVELHAS.
Tarde. Chiqueiro das ovelhas. Dirceu, Trácio e Alceu observam algumas
ovelhas recém nascidas.
TRÁCIO
Tá aumentando o rebanho, nhô Dirceu. Ainda tem mais
algumas cabras para parirem. Até o final do ano isso aqui vai
multiplicar...
DIRCEU
E vai ter que aumentar o chiqueiro, Trácio. Bem que Josias
falou isso para mim. Ele queria fazer um chiqueiro grande,
mas eu não pensava que esses bichinhos rendessem tanto...
ALCEU
Quando são bem tratadas, "nhô" Dirceu, num instante elas
rendem igual as estrelas do céu...
DIRCEU
E Endimião, onde está o Endimião...
DIRCEU
(olha para Trácio e coça a cabeça. Demonstra-se assustado)
Aconteceu alguma coisa com o Endimião?
Trácio olha para a pequena choça ou cabana. Alceu coça as pernas meio
desajeitado.
362
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ALCEU
Aconteceu nada não nhô, Endimião tá lá na choça...
Choça. Dirceu olha para a Choça. Trácio dá um ou dois passos
distanciando-se de Dirceu.
ALCEU
É que uma cobra mordeu ele desde o final da semana
passada...
DIRCEU
(leva um susto)
Uma cobra? Endimião contraiu veneno de cobra? Vamos até
lá, tenho de ver como ele está.
Choça ou cabana. Dirceu e Alceu entram na choça. Rede. Endimião está
deitado na rede. Um dos pés de Endimião está com uma atadura de
pano. Alceu aproxima-se da rede.
ALCEU
Nhô Dirceu veio ver vossemecê, Endimião...
ENDIMIÃO
(voz fraca, gemendo-se de dores)
Ele sabe é? Vossemecês contaram pra inhozinho?
DIRCEU
E haveria de contar, ora. Quero ver como está a perna e se
possível vou mandar levar vós mercê lá para a casa da
fazenda. Lá, todos nós cuidaremos de vós mercê, Endimião.
ENDIMIÃO
Carece preocupar não, nhozinho eu tô quase bom, a perna
teve pior, agora não dói muito não...
CORTA PARA
363
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Casarão da fazenda Ribeirão do Meio. Quarto. Endimião está deitado
em uma cama do quarto. Eulina e Quitéria aplicam compressas de pano
na perna de Endimião. Dirceu está sentado em um tamborete, perto da
porta do quarto.
EULINA
Esses meninos parecem que não tem juízo. Onde se viu
alguém ser picado por uma anaconda e ficar assim, assim,
gemendo de dor feito bicho no mato...
QUITÉRIA
Tamos aqui um pra ajudar o outro e parecem que tem medo
de contar o mal feito...
DIRCEU
Mal feito nada, as cobras são traiçoeiras, elas picam a gente
bestamente, basta não ter cuidado...
EULINA
Ainda bem que ele já está bem melhor...
DIRCEU
Viu só, como vós mercê está melhor, Endimião? Não sei
porque vós mercê inventou de5 esconder a doença. Quando
alguém cá, adoece, a responsabilidade é de todos para a busca
da cura...
SEQUÊNCIA 143 – INT./EXT./DIA. VÁRIOS.
Manhã. Chiqueiro das ovelhas. Trácio, Alceu e Endimião estão sentados
na grande pedra observando as ovelhas no curral. Dirceu, Raimundo
Sobreiro e Zé da Viúva estão na cerca do curral observando o gado.
Cirilo tira o leite de uma vaca. Inácia e Quitéria estão na oficina
364
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
fabricando queijos. Prateleira com queijos frescos e curados. Casa-deengenho ou moita. Ambrósio está tirando os bagaços de cana para fora
da casa-do-engenho. Cozinha da fazenda. Meio dia. Sebastiana e Eulina
servem o almoço para Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva.
Miliquito arreia o cavalo de Dirceu no quintal de frente da fazenda.
Tarde. Dirceu monta no cavalo.
CORTA PARA
Estrada da serra do Ita-corumi. Dirceu cavalga pela estrada da serra do
Ita-corumi. Vila Rica. Dirceu trotea pelas ruas de Vila Rica. Ele
encontra-se com Marília na entrada da velha mina abandonada. Dirceu e
Marília abraçam-se e beijam-se. O tempo fica nublado. Chuva forte.
Dirceu e Marília entram para dentro da velha mina abandonada. O
interior da mina é escuro, Dirceu e Marília seguram-se as mãos.
Relâmpagos e raios clareiam o interior da velha mina abandonada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Passaram-se alguns dias e logo Endimião estava curado e
unido a Trácio e Alceu para cuidar das ovelhas. Isso deixavame menos preocupado, a ponto de não faltar ao encontro
quinzenal, marcado com Marília. Como sempre, acordei cedo,
perquiri rapidamente os olhos na fazenda e, depois do
almoço, pedi ao Miliquito que arreasse o meu cavalo. Antes
que o sol esquentasse peguei a estrada para Vila Rica e fui
encontrar com Marília naquela tarde.E foi nessa bela tarde,
quando uma chuva grossa e fria obrigou-nos a recolher no
interior da mina deserta e escura, que tivemos uma surpresa...
SEQUÊNCIA 144 – INT./ DIA. VELHA MINA ABANDONADA.
Tarde. Um dos cantos da entrada da velha mina abandonada. Marília e
Dirceu estão em um dos cantos da entrada da velha mina abandonada.
Marília e Dirceu abraçam e beijam unindo os seus corpos sedentos de
amor. Cai uma chuva grossa. Dirceu pega a mão de Marília e arrasta-a
365
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
para o interior da mina. Eles abraçam e beijam-se no interior da mina.
Relâmpagos clareiam o interior da mina. Marília demonstra-se medrosa.
MARÍLIA
Abraça-me Dirceu! Sinto arrepios devido aos trovões,
relâmpagos e até do efeito do eco que potencializa as nossas
vozes...
DIRCEU
(abraça Marília e ri, procurando tranquilizá-la entre os braços)
Calma, Marília. Fique tranquila, cá, estamos seguros. Vamos
ficar em silêncio, para evitar o eco. Aconchega-te, em mim.
Deixamos, pois, as palavras de lado e vamos sentir os nossos
corpos e as nossas almas se unirem...
Dirceu e Marília unem-se os corpos beijam-se e murmuram palavras de
amor. Sem que eles soubessem há um homem sentado em uma pequena
sala da caverna, onde há um pequeno orifício para o sol entrar. Este
homem é ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA, conhecido
historicamente como “O ALEIJADINHO”.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Se outros namorados descobrirem este local para ficarem a
sós, perderei o meu sossego.
Dirceu e Marília assustam-se. Marília agarra Dirceu, quase lhe cravando
as unhas. Dirceu esfrega os olhos, olha de um lado para o outro e tenta
identificar quem estava ali dentro da velha mina abandonada.
DIRCEU
Quem é? Quem é que está a nos falar, cá dentro desta mina...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Um pobre desgraçado que arrasta a vida cheia de dores...
MARÍLIA
366
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
(cochicha assustada nos ouvidos de Dirceu)
Deve ser alguma alma penada...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Não mocinha, não sou nenhuma alma penada... Ora, vós
mercês já ouviram falar do homem feio?
MARÍLIA
(cochicha novamente nos ouvidos de Dirceu)
É o fazedor de santo, o senhor António Francisco Lisboa, a
que todos chamam de homem feio ou aleijadinho...
DIRCEU
Sim, já ouvi falar... O senhor meu pai já me falou dele...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Eu sei quem é o rapaz e a moça. O rapaz é o senhor Dirceu,
filho do dono da fazenda Ribeirão do Meio e a moça é a filha
do finado e ambicioso dom Manuel. É a dona Marília, rapariga
bonita e muito simpática.
Marília arregala os olhos para Dirceu. Dirceu mexe todo o corpo,
tentando ver onde Antônio Francisco Lisboa está. Entre um relâmpago
e outro se vê rapidamente Antônio Francisco Lisboa sentado em um
canto da velha mina.
MARÍLIA
O que fazes aqui, senhor Antônio?
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Sou eu que pergunto à menina: o que estás a fazer aqui, com
esse homem? Por acaso já não estás comprometida a casares
com um italiano? Dom Manuel morreu, mas eu ouvi dizer que
a promessa continua...
MARÍLIA
367
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Não devo entregar o meu coração a quem não conheço...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Concordo com a moça, se todos os pais pensassem assim. Eu
mesmo não fui homem que tivesse sorte com casamento.
MARÍLIA
E por que vens a este lugar? Cá é tão sombrio e perigoso...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Porque nesta velha mina há um pouco do meu passado...
DIRCEU
Enquanto chove lá fora, porque não nos conta um pouco do
seu passado ou alguma história que tenha relação a esta velha
mina abandonada...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 145 – EXT./INT./ DIA./ ANO DE 1744. VELHA
MINA ABANDONADA E SEUS ARREDORES.
Flash back – Relato de Antônio Francisco Lisboa.
Legenda: "Vila Rica, 1744".
Meninos correndo e escondendo no mato. Pequena trilha no mato. O
menino Antônio Francisco Lisboa, cor pardo-escuro, baixinho, gordo,
rosto e cabeça redondos, cabelo preto e anelado, testa larga, beiços
grossos e orelhas grandes, com treze anos de idade, corre pela pequena
trilha para procurar os meninos escondidos no mato. Meninos correm,
Antônio Francisco Lisboa corre atrás deles. Velha mina abandonada.
DOIS HOMENS BRANCOS a cavalo, estacionam-se na entrada da
velha mina abandonada. UM DOS HOMENS BRANCOS aproxima-se
com o cavalo até a entrada da velha mina abandonada e grita aos que
estão lá dentro.
368
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
UM DOS HOMENS BRANCOS
Coronel Tonico manda ordem de sair desta mina! Nela há
mais ouro e vossemecês que estão aí dentro nos
acompanharão para outra mina próxima à Mariana...
Antônio Francisco Lisboa esconde em uma pequena moita do mato e
observa o movimento na velha mina abandonada. Entrada da velha
mina abandonada. VINTE HOMENS NEGROS E FORTES saem da
velha mina abandonada. Os DOIS HOMENS BRANCOS a cavalo
conferem o número dos homens negros e fortes. Os dois homens
brancos apeiam-se de seus cavalos. Saco amarrado na garupa de um dos
cavalos dos dois homens brancos. Um dos homens brancos abre o saco
amarrado na garupa de um dos seus cavalos e tira uma corda. Os dois
homens brancos lançam a corda ao chão. Os vinte homens negros e
fortes seguram pela corda. Os dois homens brancos montam-se em seus
cavalos e cada um segura a ponta da corda. Os vinte homens negros e
fortes seguram a corda e formam uma fila indiana entre os dois homens
brancos que estão em seus respectivos cavalos. Os dois homens brancos
cavalgam pela trilha carregando entre eles os vinte homens negros e
fortes. Ao observar que os dois homens brancos e os vinte homens
negros fortes sumem pela trilha, Antônio Francisco Lisboa levanta-se da
pequena moita todo alegre.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Agora sim, meus amigos e eu podemos brincar nesta gruta...
Vamos fazer dela os nossos esconderijos...
Entrada da velha mina abandonada. Antônio Francisco Lisboa e alguns
meninos entram na velha mina abandonada.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 144.1 – CONTINUAÇÃO - INT./ DIA. VELHA
MINA ABANDONADA.
369
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Antônio Francisco Lisboa volta à tona na velha mina abandonada (em
off). Dirceu e Marília estão quietos, agarrados um ao outro.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Quando menino eu brincava por estas bandas e gostava de ver
os negros entrando e saindo desta mina em busca de ouro. Eu
contava com treze ou catorze anos, quando aconteceu a
escassez de ouro nela. Os homens negros que trabalhavam
nela foram transferidos para outra mina e até o ambicioso
coronel Tonico, que dizia ser o dono da mina, também
desapareceu...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 145.1 - CONTINUAÇÃO - RELATO DE ANTÔNIO
FRANCISCO LISBOA. INT./EXT. /DIA. VILA RICA. VÁRIOS.
Legenda: "Quatro anos depois..."
Vila Rica. HOMENS BRANCOS bebem vinho em um balcão de uma
pequena mercearia em uma das esquinas das ruas de Vila Rila. Entre os
homens brancos está um MULATINHO de aproximadamente 18 a 19
anos. Ele é falador e engraçado. O mulatinho toma um trago de vinho e
dá risadas. UM DOS HOMENS BRANCOS aproxima-se do
mulatinho, tira-lhe o copo de vinho das mãos e o agarra pelos ombros,
dando risadas.
UM DOS HOMENS BRANCOS
Ouvi dizer que o mulatinho está dizendo para todo mundo de
Vila Rica que ainda há ouro na velha mina do coronel Tonico?
O mulatinho solta-se das mãos do homem branco e pega novamente o
seu copo de vinho. Ele traga o restante do vinho e coloca o copo no
balcão.
MULATINHO
370
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Ora, não falei pra todo mundo, se espalharam em Vila Rica é
porque não sabem fazer segredo... Eu estou cá, a serviço de
um padre, mas depois que me falaram dessa tal mina eu fiquei
curioso, de forma que até sonhei encontrado nela uma grande
pedra de ouro...
Todos os homens brancos que se encontram próximo ao balcão da
pequena mercearia dão risadas.
OUTRO DOS HOMENS BRANCOS
E era tão grande, tão grande que o mulatinho não pôde
carregar e acabou acordando...
MULATINHO
(olha para todos com uma cara feia)
Vós mercês podem fazer mofa, ri do coitado aqui, mas
quando pensar que não, vou embora de Vila Rica levando
uma pedrona de ouro...
Os homens brancos continuam rindo e debochando do mulatinho. O
mulatinho sai da mercearia um pouco furioso.
CORTA PARA
Vários fade out/fade in. Velha mina abandonada. O mulatinho está
dentro da velha mina abandonada. Ele cava a lateral da parede da velha
mina abandonada.
CORTA PARA
Manhã. Velha mina abandonada. Buraco oco em uma das paredes
laterais da velha mina abandonada. O mulatinho enfia a mão no buraco
oco e dá um sorriso. Ele enfia também a outra mão no buraco, cutuca-o
e traz nas mãos uma enorme pepita de ouro. Ele olha a pepita e beija-a.
Porta da velha mina abandonada. Um dos homens brancos, qual bebia
vinho no balcão da pequena mercearia em uma das esquinas das ruas de
Vila Rila, aparece na porta da velha mina abandonada. O mulatinho sai
371
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
correndo da velha mina abandonada e ao ver o homem branco assustase.
UM DOS HOMENS BRANCOS
Vi aqui pedir-lhe desculpas sobre aquele dia na pequena
mercearia. Vós mercê não precisa de provar para ninguém se
cá há ouro ou não... Desista, meu amigo, cá nestes cascalhos
não gera mais ouro e nem qualquer preciosidade... Os homens
já exploraram tudo o que tinham de explorar...
MULATINHO
Posso confiar-lhe um segredo?
UM DOS HOMENS BRANCOS
Sim, por que não?
MULATINHO
Promete que não irás prejudicar-me?
UM DOS HOMENS BRANCOS
Por Deus e por todos os anjos que voam no céu. Jamais quero
prejudicá-lo...
O mulatinho abre as mãos e mostra-lhe a grande pepita de ouro. O um
dos homens brancos arregala os olhos para ver melhor a pepita de ouro.
UM DOS HOMENS BRANCOS
Meu Deus, então encontraste o que tanto almejavas?
MULATINHO
Sim, agora posso ir embora tranquilo... tenho grandes sonhos
para realizar até o fim da minha vida.
372
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
UM DOS HOMENS BRANCOS
Sonhos, todos nós temos... Agora vá cuidar ligeiro de sua
vida, porque a ambição pelo ouro, cá em Vila Rica, não
respeita brancos, mulatos e nem tampouco negros...
SEQUÊNCIA 144.2 - CONTINUAÇÃO - INT./ DIA. VELHA
MINA ABANDONADA.
Antônio Francisco Lisboa volta à tona na velha mina abandonada (em
off). Dirceu e Marília estão quietinhos, agarrados um ao outro.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Lembro-me como hoje, a descoberta do ouro pelo mulatinho
causou um rebuliço danado em Vila Rica. Todo mundo
queria ver o ouro encontrado por ele. O mulatinho foi
chamado para prestar conta ao coronel Tonico, dono desta
velha mina. O coronel Tonico, na verdade, queria tomar do
mulatinho a grande pepita, mas o mulatinho foi esperto e
dizem que com a ajuda de um homem branco, ele sumiu
numa certa madrugada pelo capoeirão e nunca mais foi visto
por ninguém de Vila Rica. O coronel Tonico ficou homem
raivoso.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 145.2 – CONTINUAÇÃO - RELATO DE
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA. – INT. VILA RICA. CASA DO
CORONEL TONICO. VELHA MINA ABANDONADA.
Casa do coronel Tonico. Grande sala. QUATRO HOMENS
BRANCOS sentados nas poltronas ao lado do coronel Tonico, na
grande sala.
373
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORONEL TONICO
Diacho, sô, falaram para mim que o ouro daquela velha mina
havia esgotado... Que nada, viram só, apareceu um mulatinho
dizendo que lá tinha ouro, todos riram dele e o danado
provou...
UM DOS HOMENS BRANCOS
Isto não passa de um casuísmo coronel... Não é bom que vós
mercê invista esforço algum nela. Ninguém na verdade viu a
tal da pepita de ouro...
CORONEL TONICO
Vou comprar mais escravos, burros, bruacas, vou arranchar na
porta da mina e todo negro que entrar nela não sairá sem ser
revistado...
UM DOS HOMENS BRANCOS
Carece não coronel, não faça essa besteira. A ambição é capaz
de fazer o homem perder a razão...
CORONEL TONICO
Que perder a razão que nada. Vou colocar a negrada para
cavar e procurar ouro noite e dia. Ai de um negro se
reclamar...
CORTA PARA
Antônio Francisco Lisboa volta à tona, na velha mina abandonada (em
off). Dirceu e Marília prosseguem quietinhos e agarrados um ao outro.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA OFF)
O coronel Tonico convencido de que aqui ainda havia muito
ouro, comprou escravos, burros, bruacas e, conforme
prometeu, arranchou na porta da mina sonhando em ficar
374
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
mais rico. Ele colocou a negrada para cavar e procurar ouro
noite e dia, sem cessar, mas algo misterioso aconteceu aqui.
Todos os escravos do coronel foram sumindo aos poucos
dentro desta mina. Uns diziam que os pobres negros
afundavam numa lama podre, lá embaixo, morrendo
sufocados; outros diziam que eles transformavam-se em ouro
e se alguém os achasse ficaria muito rico.
MARÍLIA
Meu Deus, esta história é muito interessante... E o coronel, o
que aconteceu com o coronel Tonico?
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
O coronel Tonico, coitado, investiu o quanto pôde. Como ele
era muito ganancioso, acabou ficando pobre, vivendo de
esmolas em Vila Rica. Sabe dona Marília, estou doente,
padecendo de zamperina ou doença desconhecida, mas não é
por ganância não. As minhas feridas são para dizer aos
homens que o orgulho não vale nada. Uns, após a morte
viram pó, sem sentir; outros veem e sentem o seu próprio
corpo derreter e cair aos pedaços como se fosse um corpo
morto, teimoso, que não aceita ser enterrado. Não demorará
muito e os abutres logo estarão a perseguir-me em busca da
minha carniça. Eu cá nesta mina fico pensando, a vida nada é
que uma simples ilusão.
Marília agarra-se entre os peitos de Dirceu. Dirceu aconchega Marília
entre os braços.
DIRCEU
É verdade seu Antônio, a vida nada é que uma simples
ilusão...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Vós mercê, senhor Dirceu, deva saber que há um grande
mistério na capelinha da fazenda de seu pai. Um dos meus
375
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
mestres, o senhor Noronha, grande entalhador português foi
quem fez a decoração esquisita daquele altar e do pequeno
púlpito. Segundo ele, um padre espanhol, que acompanhava
todo o serviço, guardou um mistério no altar. Só quem sabe
de toda a história é um velho amigo do seu pai, o Farias. Nem
o padre Rocha, celebrante da primeira missa rezada naquela
capela, sabe nada...
DIRCEU
O velho Farias morreu faz pouco tempo...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (EM OFF)
Então lá se foi o mistério...
Marília tenta empurrar Dirceu para fora da velha mina. Dirceu inventa
qualquer coisa para falar com Antônio Francisco Lisboa.
DIRCEU
O mistério já foi revelado, dentro do altar nada havia, apenas
uma caixa de maribondo, daqueles de fogo.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Então creio que quando os jesuítas abandonaram a nossa região levaram
o tesouro com eles. A dúvida maior girava em torno da morte do padre
espanhol, dias depois, após a inauguração da capela. Ouvi falar que ele
morreu devido ao mistério.
DIRCEU
Conversa frouxa do povo, não há e nunca houve mistério
algum naquela capela. Da mesma forma que disseram sumir
todos os escravos do coronel, nesta mina. Por acaso, não
estamos dentro dela? Sinhô Antônio não está aí, bem abaixo?
Da mesma forma que entramos aqui, sairemos sãos e salvos.
376
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (OFF)
Vós mercê pode estar certo, senhor Dirceu, mas saiba de uma
coisa, cada época tem o seu mistério.
MARÍLIA
(mostra-se impaciente puxando Dirceu pelo braço)
Vamos Dirceu, tenho pressa de chegar em casa...
DIRCEU
(olha para a direção em que vem a voz de Antônio Francisco
Lisboa)
Desejo melhoras, Senhor Antônio. A tarde está caindo, o
tempo estiou e tenho de levar a donzela para casa.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA (EM OFF)
A donzela? Dona Marília?! O italiano reclamará isso. Vós
mercê terá de prestar contas a ele, senhor Dirceu.
(solta uma gargalhada sarcástica)
Mexer com mulher alheia é igual mexer com caixa de
marimbondo de fogo...
Entrada da velha mina abandonada. Dirceu e Marília saem de mãos
dadas da velha mina abandonada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Tornar a ver Marília custaria um pouco mais de tempo, pois
combinamos nos encontrar apenas no final daquele mês na
igreja do morro de Santa Quitéria. Enquanto isso eu me
concentraria nas atividades da fazenda.
SEQUÊNCIA 146 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VARANDA DA CASA DA FAZENDA.
377
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Domingo. Varanda da casa da fazenda. Dirceu, Cirilo, Hipólito,
Miliquito, Raimundo Sobreiro, Ambrósio e Zé da Viúva sentados nos
tamboretes da varanda da casa da fazenda.
DIRCEU
Eu pedi para que vós mercês se reunissem hoje, cá, na
varanda, para que possamos pensar em uma forma de nos
ajudar e ajudar também alguns sitiantes e fazendeiros da
região. Todos nós sabemos que a nossa fazenda é uma das
únicas que contém oficina de queijo, engenho de cana de
açucar e oficina de farinha. Portanto, alguns fazendeiros e
sitiantes procuraram por mim para beneficiar os produtos
deles. Segundo eles, nós ficaríamos com a metade...
HIPÓLITO
Preguiça, cá ninguém tem, "Nhozinho", pode pegar o que eles
oferecerem...
AMBRÓSIO
E vamos espalhar fama pela região afora com grandes
trabalhadores...
CIRILO
Nhozinho, sim. Nhô Dirceu pode agraciar com a nossa
vontade de trabalho...
RAIMUNDO SOBREIRO
Como todos nós sabemos, o homem para sobreviver depende
de sua produção...
ZÉ DA VIÚVA
Isso não é só bonito, Raimundo, como também é verdade. Se
temos a matéria prima, porque não unirmos ao trabalho? A
terra dá, a gente transforma o que ela dá em comida, roupas e
assim por diante...
378
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Então se é assim iremos a partir de amanhã, segunda-feira,
medir todos os nossos esforços para obter bons lucros e
garantir fartura na nossa subsistência doméstica...
MILIQUITO
Nhô Dirceu pode mandar avisar os fazendeiros e sitiantes dos
arredores, que estamos prontos para ajudá-los a beneficiar os
produtos deles. Cá, mandioca vai virar farinha, tapioca, puba e
beiju; cana de açucar vai virar melaço, rapadura e aguardente.
AMBRÓSIO
Igual nos tempos dos outros donos que tinham até mais gente
para ajudar...
DIRCEU
Creio que vamos dar conta de todo o serviço. Não vamos
pegar a matéria prima de todos os sitiantes e fazendeiros.
Apenas alguns, aqueles que nos oferecer vantagens...
RAIMUNDO SOBREIRO
Inhô Dirceu tá certinho...
SEQUÊNCIA 147 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
VÁRIOS.
Vários Fade in/fade out para a marcação de tempo: dias e semanas,
manhãs e tardes. Fazenda Ribeirão do Meio. Porta da casa da oficina de
farinha de mandioca. Carro de boi na porta da casa de oficina de
mandioca. O carro de boi está cheio de mandioca. Cirilo e Miliquito
tiram as mandiocas do carro de boi e levam para dentro da casa da
oficina de farinha de mandioca. Mandiocas amontoadas a um canto da
casa da oficina. Gamelas com mandiocas descascadas. Grandes ralos.
Eulina e Inácia ralam mandiocas. Assadeira de barro ou trempe de
pedra. Quitéria torra a farinha de mandioca na assadeira de barro ou
379
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
trempe de pedra. Grande masseira (ou gamela grande) cheia de farinha
de mandioca. Casa-de-engenho ou moita. Miliquito está na moagem da
cana. Caldo de cana caindo no parol ou tanque. Enormes barris abertos.
Alceu e Dirceu coam o caldo de cana e despeja-o em enormes barris
para a fermentação. Grande fogão com tacho de cobre. Endimião está
sentado no grande fogão. Ele enfia uma escumadeira no tacho de cobre
e mexe o melado de cana. Enorme balcão de madeira com formas de
rapadura. Sebastiana está arrumando as rapaduras em um canto do
enorme balcão de madeira. Carro de boi estacionado perto da casa-deengenho ou moita com dois homens brancos e dois homens negros, de
outra fazenda. Ambrósio ajuda os dois homens brancos e os dois
homens negros pegar as rapaduras e colocar no carro de boi. Campina
da fazenda. Bois pastando. Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva estão
tocando os bois na campina da fazenda.
DIRCEU (VOICE OVER)
Os rapazes e suas respectivas esposas tomavam a frente dos
trabalhos da fazenda. Todos os dias nós acordávamos com os
rumores dos primeiros pássaros e só descansávamos quando o
sol se escondia no ocaso. Alguns proprietários antigos da
região ao saber que eu estava tocando a velha fazenda, vinham
nos oferecer seus produtos à meia para serem beneficiados
por nós. No primeiro instante aceitamos beneficiar a
mandioca e a cana de açucar. Como a cachaça, desde 1789
havia se transformado em símbolo da resistência ao domínio
português, por que não fabricá-la?
SEQUÊNCIA 148 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
FUNDO DO QUINTAL DA FAZENDA.
Manhã. Dirceu está andando no fundo do quintal e encontra-se com
Raimundo Sobreiro saindo da casa de oficina de farinha. Raimundo
Sobreiro, ao ver Dirceu, tira o chapéu e o cumprimenta.
380
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
RAIMUNDO SOBREIRO
Ouvi dizer que o senhor está querendo fabricar cachaça...
DIRCEU
Estou Raimundo, mas o problema é a escassez da cana de
açúcar. Os agricultores estão começando a apostar no plantio
do café e, portanto, estão se desfazendo do plantio da cana.
RAIMUNDO SOBREIRO
Uai, sô, então daqui uns tempos nós vamos tomar café
amargo porque não terá o melaço e nem a rapadura para
adoçar...
DIRCEU
Então quem continuar a plantar a cana irá, futuramente, fazer
bons negócios...
RAIMUNDO SOBREIRO
Eu ouvi dizer que não muito distante de cá, tem uma fazenda
oferecendo três hectares cortados de cana de açúcar. Dizem
que a dona da fazenda quer negociar em pepitas de ouro...
DIRCEU
(tira o chapéu e limpa o suor da testa)
Uai, sô, não é que eu vou atrás dessa dona. Eu cá estou
precisando de cana para aumentar as nossas reservas...
Raimundo descubra onde fica essa fazenda e me conte. Se der
certo, dentro de poucos dias vou até lá com o Miliquito e o
Cirilo para fechar negócio.
RAIMUNDO SOBREIRO
Nhô, sim, vou saber onde fica essa fazenda...
381
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 149 - INT./EXT./DIA. REGIÃO OUROPRETANA.
FAZENDA PARAÍSO. VARANDA DO CASARÃO DA FAZENDA
PARAÍSO.
Madrugada. Estrada estreita margeada de vergeis. Dirceu, Cirilo e
Miliquito cavalgam em seus cavalos pela estrada estreita margeada de
vergeis. Tarde. Imagens de pequenas mudas de café plantadas nos sítios
e nas fazendas, próximos às estradas onde Dirceu, Cirilo e Miliquito
troteam com seus cavalos. Pôr do sol. Dirceu, Cirilo e Miliquito chegam
à cancela da Fazenda Paraíso. DOIS NEGROS, de mais ou menos 20
anos de idade, correm para abrir a cancela da fazenda. Casarão da
Fazenda Paraíso. Varanda do casarão. Na varanda do casarão está
Zenilda, muito bem vestida e bonita. Zenilda vê Dirceu, Cirilo e
Miliquito entrando na cancela. Zenilda aproxima-se do muro da varanda
do casarão para observar a chegada de Dirceu, Cirilo e Miliquito.
Zenilda aproxima-se do casarão da Fazenda Paraíso, frea o cavalo e fica
para o lado de cima da varanda. Zenilda vê Zenilda. Um dos dois negros
pede para que Dirceu, Cirilo e Miliquito desçam de seus cavalos. O um
dos dois negros dá um sinal para Cirilo e Miliquito acompanhá-lo com
os cavalos. Cirilo pega a rédea do cavalo de Dirceu. Escada da varanda
do casarão. Dirceu sobe pela escada da varanda do casarão. Dirceu e
Zenilda se encontram na varanda do casarão e se cumprimentam.
DIRCEU VOICE OVER)
Depois que Raimundo Sobreiro buscou informações sobre
onde ficava a fazenda da dona que estava negociando, por
pepitas de ouro, os três hectares cortados de cana. Cirilo,
Miliquito e eu numa certa madrugada, pegamos estrada para a
tal fazenda. Segundo Raimundo, a fazenda pertencia a uma
senhora, qual estava decidida a acabar com o cultivo da canade-açúcar para apostar no cultivo do café. A viagem foi longa
e, ao chegar lá, mal acreditei quando soube que a proprietária
era uma jovem crioula chamada Zenilda. Ela, pensei, seria a
personagem da história de Josias? Se fosse, estava lá, ela, carne
382
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
e osso, naquela varanda para receber-me e negociar comigo os
hectares cortados de cana de açúcar.
CORTA PARA
Varanda do casarão da fazenda Paraíso. Poltronas em um dos cantos da
varanda do casarão. Zenilda aponta para Dirceu as poltronas. Dirceu e
Zenilda caminham até as poltronas. Dirceu puxa uma das poltronas para
Zenilda sentar. Dirceu senta-se em uma das poltronas, frente à Zenilda.
ZENILDA
Creio que veio devido a notícia que fiz espalhar por aí, sobre a
venda de três hectares de cana...
DIRCEU
Sim, foi devido à notícia. Eu tenho cá algumas pepitas de ouro
e creio que podemos fazer um bom negócio...
ZENILDA
E o senhor está a crer que sou a dona desta fazenda?
DIRCEU
Por que não? És tão jovem e bonita! Creio também que sejas
casada...
ZENILDA
Não, ainda não... Por enquanto eu não me arrisco a essa
loucura...
DIRCEU
Tem, cá na fazenda, um lugar para que meus dois amigos e eu
possamos pernoitar?
ZENILDA
Há, sim senhor...
383
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Dirceu, desculpe-me eu acabei esquecendo de dizer o meu
nome...
ZENILDA
Dirceu? Nome muito interessante... O meu é Zenilda.
Vossemecê pode ficar sossegado que eu vou mandar
providenciar os quartos para o senhor e os seus, os seus...
DIRCEU
Amigos e grandes companheiros. São eles que me ajudam e
me fazem companhia durante as minhas viagens...
ZENILDA
E quanto aos hectares de cana, o senhor vai comprar toda a
safra?
DIRCEU
Quero. O problema no momento é o transporte. A fazenda
da senhora é um pouco distante da minha fazenda... Mas
como avaliei as estradas de lá, até cá, vi que o transporte pode
ser feito de carros de boi...
ZENILDA
Quanto ao transporte das canas, não se preocupe, eu
providenciarei a entrega. Claro que aumentará um pouco em
pepitas de ouro, mas creio que não tão caro, a ponto de que o
senhor não possa pagar...
DIRCEU
Isso me tranquiliza muito...
Zenilda levanta-se da poltrona e vai até a beira do muro da varanda
observar o pátio da fazenda. Dirceu olha para Zenilda um pouco
confuso. Zenilda volta a sentar na poltrona ao lado de Dirceu.
384
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Logo percebi que se tratava da mulher, cuja história Josias
havia relatado a mim, sobre o seu amor e suas decepções
amorosas. Fitei-a com afinco e somente tive certeza de que
era a Zenilda do Josias quando, entre uma conversa e outra,
ela relatou-me estar à procura de um negro que havia roubado
a imagem de uma santa na propriedade dela.
DIRCEU
(sentado ao lado de Zenilda, na poltrona)
Como assim, a senhora foi roubada, cá na fazenda...
ZENILDA
Sim, eu tinha cá um negro chamado Josias. Eu confiava muito
nele, a ponto de deixá-lo entrar e sair da minha casa. Quase
que entre nós, coisas de homens e de mulheres, aconteceu um
namoro, mas, infelizmente, não sei porque, numa certa
madrugada ele fugiu da fazenda roubando-me objetos de
valores, inclusive uma imagem de uma santinha de
estimação... No início, ouvi dizer que ele andou foragido pelas
serras da região, mas depois ninguém nunca mais me deu
notícias dele. Eu avisei para alguns sitiantes e fazendeiros da
região que se alguém encontrasse o Josias e falasse para mim
onde ele estava, ganharia um prêmio. Eu só queria de volta a
imagem da santinha...
DIRCEU
E ninguém nunca se manifestou?
ZENILDA
Ninguém...
Zenilda levanta-se da poltrona e vai até o muro da varanda do casarão.
Zenilda olha para o pátio da fazenda. Dirceu continua sentado na
poltrona e olha para Zenilda,
385
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(fala por solilóquio)
A senhora, dona Zenilda, jamais poderia imaginar que o Josias
descansa em paz em minhas terras, lá no cemitério do pé do
morro...
CORTA PARA
Manhã. Estrada. Carros de bois cheios de cana andando pela estrada.
HOMENS NEGROS guiam os carros de boi na estrada. Dirceu, Cirilo
e Miliquito cavalgam em seus cavalos pelas laterais da estrada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Fechamos o negócio, fiz o pagamento em ouro à Zenilda e,
assim que os três hectares de cana foram cortados, com
alguns carros de boi carregados de cana seguimos viagem
para a nossa fazenda...
SEQUÊNCIA 150 – INT./DIA. ESTRADA DE VOLTA À
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FRONDOSA ÁRVORE À
BEIRA DA ESTRADA.
Meio-dia. Frondosa árvore à beira da estrada. Dirceu, Miliquito e mais
alguns HOMENS NEGROS DA FAZENDA PARAÍSO, quais guiam
os carros de boi, descansam debaixo da frondosa árvore. Todos comem
paçocas tiradas de alguns alforjes e bebem águas de suas devidas
cabaças. Dirceu aproxima-se de um dos homens negros da fazenda
Paraíso.
DIRCEU
Por acaso, vós mercê ouviu falar que a dona Zenilda está em
busca de uma santa roubada lá na fazenda dela, por um tal de
Josias?
UM DOS HOMENS NEGROS DA FAZENDA PARAÍSO
386
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Ah, sim, a patroa tá atrás dessa tal santinha faz muito tempo.
Ouvimos falar lá na fazenda que a santinha pertence a um
homem muito rico... Dizem que esse tal homem rico foi o que
deu para a dona Zenilda a fazenda Paraíso...
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Ah, sim. Então o tal homem rico é o dom Miguel... Então se
ele está procurando pela imagem da santa é porque nela deve
contr algum mistério... Quem sabe ouro... Isso mesmo, ouro?
Então a santinha deveria ser igual tantas outras chamadas de
santa-do-pau-oco...
CORTA PARA
Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela aberta por Hipólito. Carros
de boi carregados de cana, entrando pela cancela. Dirceu, Cirilo e
Miliquito em seus cavalos tiram os chapéus e cumprimentam Hipólito.
SEQUÊNCIA 151– EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Manhã. Moenda. Casa-de-engenho ou moita. Raimundo Sobreiro e Zé
da Viúva na moagem da cana. Caldo de cana caindo no parol ou tanque.
Monte de cana amotoados no canto da casa-de-engenho ou moita.
Cachaça pingando do alambique. Grande fogão com tacho de cobre.
Enorme balcão de madeira com formas de rapadura. Fogo do grande
fogão. Alceu, sentado no grande fogão, enfia uma escumadeira no tacho
de cobre e mexe o melado de cana. Oficina de farinha. Grande masseira
(ou gamela grande) cheia de farinha de mandioca. Inácia e Eulina torram
a farinha de mandioca na assadeira de barro ou trempe de pedra.
DIRCEU (VOICE OVER)
Quando chegamos à fazenda, percebemos o novo aspecto
criado naquele espaço roceiro: canas, barulho da moenda
387
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
tocada por burros, bagaço, garapa, fogo, mel, rapadura, garapa
azeda, alambique, cachaça; mandiocas, prensas, massas, beijus
e farinha de mandioca. O dia, desde que amanhecia naquela
fazenda, transformava-se numa grande festa.
SEQUÊNCIA 152 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CAMPINAS. CHIQUEIRO DAS OVELHAS.
Manhã. Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu cavalgando em seu cavalo
pelas campinas da fazenda. Cavalo de Dirceu amarrado em uma árvore.
Chiqueiro das ovelhas. Cerca do chiqueiro das ovelhas. Dirceu, Alceu e
Endimião na cerca do chiqueiro das ovelhas.
ENDIMIÃO
Nhô Dirceu sabia que o dono da fazenda lá de cima tá
procurando ouro cá na fonte do ribeirão.
DIRCEU
Ouro? Dono da fazenda de cima procurando ouro, cá na
fonte do ribeirão?
ENDIMIÃO
Uai, desde ontem "tá" um tanto de homem lá cavando as
beiradas da fonte pra encontrar ouro...
DIRCEU
Mas quem disse que lá tem ouro, Endimião?
ALCEU
Vi falar nhô Dirceu que o novo dono da fazenda tava dando
uma volta na beirada do rio que sinhô ia ver sinhá Marília e
encontrou uma pedrica d'ouro lá. Ele ficou doido com a
pedrica d’ouro e está mandando a negrada dele cavar lá a
beirada toda do regato para ver se encontra mais.
388
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Meu Deus, então o coronel Sales era mesmo um homem
avarento, a ponto de destruir a natureza em busca de uma
riqueza que ali não existe. Josias estava certo ao dizer que
"ouro era coisa do demônio e se o homem não tivesse
cuidado, virava tolo".
ENDIMIÃO
Um dos homens brancos que estava comandando os negros,
na fonte, pegou dois para castigo, de fazer dó...
DIRCEU
Como assim?
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 153 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO.
Flash back – Relato de Alceu e Endimião.
Fonte do ribeirão. HOMENS NEGROS cavando as margens da fonte
do ribeirão. DOIS NEGROS largam as ferramentas no chão e correm
ao encontro de PAULO, loiro, cabelos grisalhos, alto, magro, de
aproximadamente 30 anos, benfeitor da fazenda, qual está sentado no
relvado.
UM DOS NEGROS
Tem ouro cá não nhô Paulo...
PAULO
(põe-se de pé)
Quem dá as ordens cá, sou eu negro preguiçoso...
OUTRO UM DOS NEGROS
Tem ouro mesmo cá não nhô Paulo, tamo acabando com o
riacho...
389
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PAULO
Já falei que quem dá as ordens cá, sou eu... Voltem, voltem
com os outros e cavem as beiras do riacho...
UM DOS NEGROS
Carece não, tá estragando a natureza de Deus...
OUTRO UM DOS NEGROS
Tá sujando a água toda que desce para dar vida a outras
pessoas lá embaixo...
Relvado. Paulo fica nervoso. Ele pega uma corda, dobra e chicoteia os
dois negros. Ele amarra os dois negros numa corda, monta-se no cavalo
e arrasta-os por uma pequena trilha do mato. Folhagens próximas à
fonte. Alceu e Endimião, entre as folhagens, observam tudo o que está
acontecendo na fonte.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 152.1 - CONTINUAÇÃO
CHIQUEIRO DAS OVELHAS.
-
EXT./DIA/
Chiqueiro das ovelhas. Alceu e Endimião voltam à tona, ao lado de
Dirceu.
ALCEU
O homem branco é mal, nhô Dirceu. Ele pegou depois os
dois negros, amarrou a corda nos braços deles e saiu
arrastando pela pequena trilha do mato...
ENDIMIÃO
Acho que ele arrastou os dois homens até a fazenda que era
do pai da dona Marília... Parece que o povo de lá é povo mal,
judiam dos pobres negros...
390
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Como vós mercês viram tudo isso?
ALCEU
Quando as ovelhas bebiam água da fontinha do lado de cá, a
água estava vindo muito suja. Daí, eu e Endimião
acompanhamos pela beira do riacho para ver o que estava
acontecendo...
ENDIMIÃO
Foi aí que vimos um tanto de negros cavando a beira do
riacho, dizem que procurando ouro e os dois negros
apanhando e sendo depois arrastado pelo homem branco é
mal feito cão...
SEQUÊNCIA 154 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO.
Fonte do Ribeirão. HOMENS NEGROS cavando as margens da fonte
do ribeirão. Folhagens. Dirceu entre as folhagens observa os homens
negros cavando as margens da fonte do ribeirão. DOIS HOMENS
BRANCOS vigiam os homens negros cavando as margens do ribeirão.
Água do ribeirão escura, devido à lama.
DIRCEU (VOICE OVER)
Ouro ou qualquer tipo de riqueza transformava-se os homens
em tolos. Eu, agora, sabia que próximo à minha fazenda havia
um homem chamado Sales, tolamente possuído pela ganância.
O ouro encontrado por ele não passava de uma pequena
pepita que lancei ali, quando Marília recusou aceitá-la. Se a
joguei na margem daquele regato, decerto, foi a mando dos
deuses. Talvez eles quisessem fazer-me conhecer até onde ia
a ambição do homem, justamente daquele homem, que
queria,também por motivos tolos, separar-me de Marília. Eu
não atreveria contar a verdade a ele e nem a ninguém sobre a
pepita de ouro. Quem sabe ele não aprenderia uma grande
391
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
lição, agindo daquela forma. Se Marília soubesse a peripécia
do cunhado, jamais o perdoaria por fazer aquilo com a nossa
murmurante fonte. Sales, coitado, jamais encontraria ouro
naquela fonte.
SEQUÊNCIA 155 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Tarde. Terreiro do fundo da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu,
Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva
estão sentados numa grande mesa debaixo de uma árvore. Bules de café,
botija com caldo de cana e gamela com beijus quentinhos, servidos a
eles por Inácia e Quitéria. Todos comem, conversam alegremente e dão
risada.
CORTA RÁPIDO PARA
Capela da fazenda. Cavalos soltos no adro da capela da fazenda. DOIS
HOMENS BRANCOS, altos e magros contra golpea uma das portas
laterais da capela.
CORTA RÁPIDO PARA
Terreiro do fundo do quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Grande
mesa. Dirceu, Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Raimundo Sobreiro
e Zé da Viúva estão sentados na grande mesa debaixo da árvore.
Barulho em off do contra golpe da capela da fazenda, qual é dado pelos
dois homens brancos é ouvido por Ambrósio na grande mesa debaixo
da árvore. Ambrósio para um instante e pede silêncio para todos que
estão na grande mesa. Todos se silenciam e olham confusos para
Ambrósio.
DIRCEU
O que foi Ambrósio? Está sentindo alguma coisa?
392
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Ambrósio levanta-se da mesa, dá alguns passos, abaixa e deita-se,
colocando o ouvido no chão. Todos olham para ele assustados.
Ambrósio põe se pé e grita por Miliquito.
AMBRÓSIO
Vamos montar rápidos em nossos cavalos, porque estou
ouvindo barulhos estranhos vindo não sei de onde,
Miliquito...
Ambrósio sai correndo para pegar um cavalo. Miliquito também sai em
seguida correndo em direção a Ambrósio. Ambrósio e Miliquito pegam
dois burricos que estão soltos próximos a casa-de-engenho ou moita e
saem galopando de qualquer jeito em direção à cancela da fazenda.
CORTA RÁPIDO PARA
Capela da fazenda. Os dois homens brancos, altos, magros estão contra
golpeando uma das portas laterais da capela
CORTA RÁPIDO PARA
Terreiro do fundo do quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Grande
mesa. Dirceu, Cirilo, Miliquito, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva estão
sentados na grande mesa debaixo da árvore olhando uns para os outros
sem entender o que estava acontecendo com Hipólito e Miliquito. Cirilo
escuta o barulho em off do contra golpe dado na porta da capela da
fazenda. Cirilo põe-se de pé. Dirceu olha para ele assustado.
DIRCEU
Que foi Cirilo, viu alma penada é?
CIRILO
É barulho de quebradeira, inhozinho... Parece alguém
querendo quebrar uma porta...
393
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
RAIMUNDO SOBREIRO
A capela, alguém deve está querendo invadir a capela...
DIRCEU
Meu Deus, estaria de volta, aqui, os botucudos?
ZÉ DA VIÚVA
Botu o quê? São bichos?
DIRCEU
Índios, Zé, índios daqueles que comem gente...
Zé da Viúva se benze com o sinal da cruz.Cirilo levanta-se da mesa, vê
um cavalo arreado amarrado no tronco de uma árvore e corre em
direção a ele. Cirilo monta-se no cavalo e sai em direção à capela da
fazenda. Cirilo alcança a cancela que está aberta e continuará aberta e
some pela estrada. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva levantamse rápidos da mesa e se espalham pelo terreiro. Cavalos, uns com sela,
outros não. Montados em cavalos com selas ou não. Dirceu, Raimundo
Sobreiro e Zé da Viúva saem dali a galope em direção à cancela da
fazenda. Dirceu cavalga na frente, dando sinal com as mãos para que
Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva o seguissem. Quitéria e Inácia
chegam até a grande mesa debaixo da árvore e vêem a mesa vazia.
Quitéria e Inácia olham uma para a outra sem entender o que estava
acontecendo.
SEQUÊNCIA 156 – EXT./INT./DIA/ CAPELA DA FAZENDA.
Capela da fazenda. Em uma das laterais da capela da fazenda estão
Miliquito e Ambrósio, cada um com um pau na mão. Na frente deles
estão os dois homens brancos acoados na da parede da lateral da capela.
Cirilo chega na capela da fazenda montado em um cavalo e vê Miliquito
e Ambrósio com paus nas mãos e os dois homens brancos acoados na
parede lateral.
394
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CIRILO
O barulho veio foi daqui mesmo, Hipólito e Ambrósio já
cercaram os culpados... Vou avisar nhô Dirceu e os outros.
Cirilo afrouxa a rédea do cavalo, dá meia volta e galopa de volta à
estrada para chamar pelos outros da fazenda. Cirilo encontra-se na
estrada com Dirceu, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro calvagando
rápidos em direção á capela da fazenda. Cirilo, Dirceu e Zé da Viúva
chegam a uma das portas laterais da capela da fazenda. Dirceu pula do
cavalo e entrega a rédea para Cirilo. Dirceu olha para os dois homens
brancos acoados no canto da parede lateral da capela. Ambrósio e
Hipólito continuam armados com os paus nas mãos. Dirceu olha para
Ambrósio e Hipólito.
DIRCEU
Hipólito, Ambrósio, podem abaixar os porretes. Nada de
violência por cá. Vamos perquirir os moços para saber o que
eles estão querendo, cá, em propriedade alheia...
AMBRÓSIO
Eles dois estavam querendo quebrar a porta da capela, nhô,
olha só o sinal das botas deles na porta...
HIPÓLITO
E se nós não escuscutássemos o barulho, de certo coisa boa
eles não iam fazer por cá...
Os dois homens brancos arregalam os olhos para Dirceu, para
Ambrósio e Miliquito. Ambrósio e Miliquito abaixam os paus que estão
nas mãos. Cirilo, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro também dão
coberturas para Ambrósio e Miliquito. Os homens brancos, acoados à
parede lateral da capela da fazenda, se entreolham confusos.
395
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Creio que vós mercês tenham alguma explicação para tudo
isso. Vejo que os senhores vieram de longe e não foram por
motivos alheios.
UM DOS HOMENS BRANCOS
Não queremos fazer mal a ninguém, apenas queremos
verificar o interior da capela...
DIRCEU
Em busca de quê?
UM DOS HOMENS BRANCOS
Creio que não é de interesse de vós mercê...
DIRCEU
Mas esta capela pertence à nossa fazenda.
UM DOS HOMENS BRANCOS
Não, não pertence à fazenda. Esta capela pertence à igreja e é
em nome de um sacerdote que estamos cá.
DIRCEU
Vós mercê poderia nos dizer quem é o sacerdote?
UM DOS HOMENS BRANCOS
Também não conhecemos o sacerdote, estamos cumprindo
uma ordem secreta, uma missão a pedido dele.
DIRCEU
Qual é a ordem secreta?
UM DOS HOMENS BRANCOS
Nada grave. Não carece vós mercê e seus empregados e
escravos preocuparem-se... Desculpe-nos, senhor o absurdo
de querer abrir a porta da capela, forçosamente. Tudo não
396
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
passou de uma grande curiosidade. Pensávamos que a capela,
embora esteja bem conservada, estivesse bandonada.
DIRCEU
Se quiserem entrar na capela eu tenho cá, comigo, a chave da
porta de frente...
OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS
Se for possível, agradaria muito a nós dois... Desta forma,
aceitaremos este encômodo como perdão de vossa senhoria,
perante a nossa falha.
DIRCEU
Vamos então até o frontifício da capela.
Dirceu e os dois homens vão até o frontifício da capela da fazenda.
Dirceu entrega a chave da capela da fazenda para Miliquito.
Miliquito entrega o pau para Cirilo e se apressa para abrir a
porta da frente da capela da fazenda. Ambrósio segue
Miliquito. Outro dos dois homens brancos olha para o
frontifício da capela da fazenda e sorri.
OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS
É aqui mesmo, descobri o principal indício, amigo...
UM DOS HOMENS BRANCOS
Eu também já havia percebido...
Os dois homens brancos olham para Dirceu.
OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS
Não precisamos entrar na capela, senhor...
DIRCEU
(meio desajeitado e confuso)
Logo que estamos cá. O rapaz abriu a capela...
397
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS
Então não custa nada entrar...
UM DOS HOMENS BRANCOS
Então vamos vistoriar a capela. Bastamos olhar o santo altar...
Porta da capela da fazenda. Miliquito entrega a chave da capela da
fazenda para Ambrósio. Ambrósio abre a porta da capela da fazenda.
Miliquito se põe de pé na porta da capela, feito um dragão do rei. Porta
da capela da fazenda aberta. Dirceu e os dois homens brancos entram
na capela da fazenda. Hipólito, Cirilo, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva
e Raimundo Sobreiro ficam de prontidão na porta da frente da capela da
fazenda.
DIRCEU (VOICE OVER)
Indício de quê? Será se existia mesmo algum mistério a ser
desvendado naquela capela?
Os dois homens brancos entram na capela da fazenda como se fossem
dois furacões. Os dois homens brancos revistam todo o interior da
capela, com os olhos. Os dois homens brancos conversam entre eles,
apontam alguns cantos do altar da capela. Os dois homens brancos vão
circulando a capela. Dirceu para em dos cantos da capela e fica
observando os dois homens brancos.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Seriam aqueles homens os anjos, conforme o velho Farias
dissera para mim?
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir:
398
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 135 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA.
Dirceu balança a cabeça sinalizando um "sim". Farias olha para
Dirceu com um olhar de censura ou de medo.
FARIAS
Sinhozinho deve ter cautela. Sinhozinho tem de saber
que o mistério não pertence a vossemecê e a ninguém.
Ele é um perigo para a colônia e quando tiver no poder
de sinhozinho, escute a voz do Espírito Santo e aja
conforme a vontade DELE.
DIRCEU
Não entendi...
FARIAS
Sinhozinho vai entender a partir do dia que os anjos
aparecerem. Um anjo é grande, outro maior, um ajuda,
outro engana. Os caminhos de sinhozinho vão ser iguais
a uma encruzilhada.
DIRCEU
Um desses anjos descerá do céu para entregar-me uma
chave?
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 156.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA/
CAPELA DA FAZENDA.
O dois homens brancos continuam circulando pelo interior da capela da
fazenda observando tudo com os olhos e comentando um com o outro
alguma coisa, ora apontando com os queixos ou com as mãos. Dirceu
399
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
continua parado em dos cantos da capela da fazenda observando os dois
homens brancos vasculharem com os olhos todo o interior da capela.
DIRCEU (VOICE OVER)
Não, não seriam. Talvez aqueles homens estivessem
procurando pela imagem de Santa lfigênia, qual Josias
escondera juntamente com o tesouro. Onde o falecido Josias
escondeu a imagem? Será se a imagem estaria enterrada
mesmo em algum lugar da serra, por onde Josias passou antes
de chegar em minha casa? O que teria de mistério com a tal
da imagem? Seria uma relíquia preciosa, a ponto de dom
Miguel investir naquela empreitada? Será se aqueles dois
homens não estariam cá a serviço de Dom Miguel? Será se
Dom Miguel descobriu que o Josias morou nesta fazenda e cá,
ele está morto e enterrado?
Os dois homens brancos circulam pela capela da fazenda e chegam até a
porta de frente. Os dois homens brancos saem da capela. Eles
cumprimentam Miliquito, Cirilo, Ambrósio, Hipólito, Zé da Viúva e
Raimundo Sobreiro. Dirceu vê os dois homens brancos sairem pela
porta da capela e apressa para alcançar a porta. Cavalos dos dois
homens brancos. Os dois homens brancos montam em seus cavalos e
saem cavalgando rapidamente. Hipólito e Ambrósio saem correndo para
montar nos cavalos e perseguir os dois homens brancos. Dirceu sai pela
porta da capela e ao ver Hipólito e Ambrósio correndo para montar nos
cavalos, impedi-os dessa ação.
DIRCEU
Não, não, deixem os homens partirem! Coitados, eles
cometeram um lêdo engano... Nesta capela não há nada capaz
de interessar a eles...
AMBRÓSIO
400
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Será se não tem mesmo nada mesmo pra eles aqui, nhozinho?
Tem gente besta no mundo que procura confusão atoa.
Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva
dão risadas. Dirceu coloca o chapéu na cabeça e dirige-se para pegar o
cavalo.
CORTA PARA
Tarde. Terreiro do fundo da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu,
Ambrósio, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva
estão novamente sentados na grande mesa debaixo da árvore. Bules de
café e gamela com beijus quentinhos, servidos por Inácia e Quitéria.
Todos conversam animadamente, dando risadas do recente episódio.
SEQUÊNCIA 157 – INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
Quarto de Dirceu. Luzes de candeeiros iluminam o quarto de Dirceu.
Dirceu está sentado confortavelmente na cama. Ele fala por solilóquio.
DIRCEU
Coisa mais estranha, primeiro Zenilda dizia estar à procura de uma
imagem, mentindo ter sido roubada por um negro em sua fazenda.
Agora aparecem aqui dois homens estranhos cumprindo ordens secretas
a fim de vistoriar algo na capela da fazenda? Quem sabe, dom Miguel
não estava por trás daquilo? Segundo Josias, ele não havia vingado a
morte dos seus entes, com as pessoas erradas?
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir.
401
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA
149
INT./EXT./DIA.
REGIÃO
OUROPRETANA. FAZENDA PARAÍSO. VARANDA DO
CASARÃO DA FAZENDA PARAÍSO.
Dirceu sentado ao lado de Zenilda, na poltrona.
DIRCEU
Como assim, a senhora foi roubada, cá na fazenda...
ZENILDA
Sim, eu tinha cá um negro chamado Josias. Eu confiava
muito nele, a ponto de deixá-lo entrar e sair da minha
casa. Quase que entre nós, coisas de homens e de
mulheres, aconteceu um namoro, mas, infelizmente, não
sei porque, numa certa madrugada ele fugiu da fazenda
roubando-me objetos de valores, inclusive uma imagem
de uma santinha de estimação... No início, ouvi dizer
que ele andou foragido pelas serras da região, mas
depois ninguém nunca mais me deu notícias dele. Eu
avisei para alguns sitiantes e fazendeiros da região que
se alguém encontrasse o Josias e falasse para mim onde
ele estava, ganharia um prêmio. Eu só queria de volta a
imagem da santinha...
DIRCEU
E ninguém nunca se manifestou?
ZENILDA
Ninguém...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 157.1 - CONTINUAÇÃO - INT./NOITE.
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
402
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama prossegue com o seu
solilóquio.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
A Zenilda queria de volta a imagem da santinha... Mas uns dos
homens que trabalha para ela disse que a imagem que ela
procurava era para um homem muito rico. Decerto, seria esse
homem rico o dom Miguel... Ah, isso mesmo, isso constava-se
no relato de Josias...
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir.
SEQUÊNCIA 150 – INT./DIA. ESTRADA DE VOLTA À
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. FRONDOSA ÁRVORE À
BEIRA DA ESTRADA.
DIRCEU
Por acaso, vós mercê ouviu falar que a dona Zenilda está
em busca de uma santa roubada lá na fazenda dela, por
um tal de Josias?
UM DOS HOMENS NEGROS DA FAZENDA PARAÍSO
Ah, sim, a patroa tá atrás dessa tal santinha faz muito
tempo. Ouvimos falar lá na fazenda que a santinha
pertence a um homem muito rico... Dizem que esse tal
homem rico foi o que deu para a dona Zenilda a fazenda
Paraíso...
VOLTA PARA
403
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 157.2 – CONTINUAÇÃO - INT./NOITE.
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama prossegue com o seu
solilóquio.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Segundo o relato de Josias, a família de dom Miguel tinha
grande estima pela imagem da santinha, dizendo que ela era
uma relíquia de família. Seria mesmo? Se Josias estava certo
do que relatou a mim...
VOLTA PARA
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no relato de Josias,
conforme corte a seguir. Este flash back pode ser apresentado em
off (fica a critério do Diretor).
SEQUÊNCIA 36.6 – (CONTINUAÇÃO) - EXT./DIA.
FAZENDA DE DOM MIGUEL. PÁTIO, FRENTE AO
CASARÃO DA FAZENDA.
DOM MIGUEL
(fica alegre, confuso e encabulado. Solta com força o seu
sotaque português)
É a imagem de Santa Ifigênia, veio de Portugal, era uma
relíquia de família. A santa pertencia à minha adorável
mãezinha... Leve-nos até essa maldita fazenda.
Queremos acabar com o dono e com toda a sua família.
Quero entregar a eles o troco, da mesma forma que eles
fizeram com o meu pai, com os meus dois irmãos e todo
o nosso povo...
404
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VOLTA PARA
CAPÍTULO 9
SEQUÊNCIAS 157.3-168
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Marília
Zé Tomázio
Rosa
Vívila
Cirilo
Miliquito
Garoto branco (14 anos)
Vívila
Cirilo
Miliquito
Garoto branco (14 anos)
Padre Rocha
Índios (homens, mulheres e crianças)
Padres Jesuítas
Padre Rocha (25 anos)
Padre Fernandez
Fiéis (pessoas brancas)
Pessoas de Vila Rica (procissão)
Mulheres, homens e crianças
Homens e mulheres negros (Vila Rica)
Homens brancos (liteiras)
Feirantes e compradores
Informantes
Joana
Antônio Francisco Lisboa
Vários escultores (relato de Antônio Francisco Lisboa)
Ambrósio
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 36.3
2. Sequência 166
405
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
3. Sequência 166
SEQUÊNCIA 157.3 – CONTINUAÇÃO - INT./NOITE.
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama prossegue com o seu
solilóquio.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Lembrando detalhadamente da história contada a mim, por
Josias, eu entendo, agora, que o interesse de dom Miguel
ligava-se puramente ao ouro. A imagem julgada por ele como
a uma velha relíquia de família, na verdade não se passava de
um instrumento de transporte ilegal de ouro ou pedras
preciosas. É isso mesmo, Josias decerto havia descoberto
isso...
VOLTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no relato de Josias,
conforme corte a seguir.
SEQUÊNCIA 36.3 - INT. NOITE. FAZENDA PARAÍSO.
CELEIRO. QUARTO DE JOSIAS.
(...) Caixa de couro aberta. Josias tira de dentro da pequena caixa
de couro uma pequena imagem de uma santa esculpida em cedro.
A imagem é de Santa Ifigênia. Josias coloca a imagem de cedro
em cima da cama. Josias enfia a mão na caixa de couro. Rosto de
Josias. Josias sorri. Mãos de Josias fechadas. Josias abre as mãos
tendo nelas algumas pepitas de ouro. Imagem de Santa Ifigênia
em cima da cama. Josias pega a imagem de Santa Ifigênia e olha406
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
a atentamente, sorrindo. Josias beija a imagem de Santa Ifigênia e
faz o sinal da cruz.
NOTA: esta ação praticada por Josias é sobreposta na narração em off,
por Dirceu.
DIRCEU (OFF)
A imagem de Santa lfigênia, coitada, não passava de uma
"santinha do pau-oco", utilizada para o tráfico do ouro. Isso
mesmo, essa prática era muito utilizada entre mineradores e
atravessadores de pedras preciosas... Então Josias, sem dúvida,
havia escondido as pequenas pepitas de ouro e a imagem da
Santa lfigênia no altar da capela... Será? Como não, se antes de
morrer, ele fez da capela o seu lugar de refúgio? Está aí, o
achado! O velho Farias devia ter presenciado tudo e, devido
ao medo, queria alertar-me sobre os perigos de portar algo
que não pertencia a mim ou a ninguém da fazenda. Mas o
discurso do velho Farias foi tão confuso...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 135 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA.
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir:
FARIAS
Quá, o resto vós mercê saberá com o tempo, creio que
falei o que haveria de falar... O resto depende de como se
desatará o mistério...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 157.4 – CONTINUAÇÃO - INT./NOITE.
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
407
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama prossegue com o seu
solilóquio.
DIRCEU
(Fala por solilóquio)
Desatar um mistério. De onde o velho Farias tirou esse
argumento? Ele referia o mistério ligado ao pequeno altar da
capela...
(sorri e prossegue o solilóquio)
Antônio Francisco Lisboa disse também algo sobre aquele
pequeno altar da capela. Mistério, a palavra chave se definia
em mistério. Caberia a mim, secretamente, solucioná-lo.
SEQUÊNCIA 158 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
CAMPINAS.
Flash Back – Ilusão de Dirceu.
Manhã. Campinas da fazenda. Dirceu cavalga pelas campinas da
fazenda. Dirceu frea o cavalo, observa os bois pastando, os pássaros
voando e toda a colina verdejante. Ele imagina Marília cavalgando com
ele. Marília cavalga em um cavalo branco, mas quando Dirceu pareia-se
com o cavalo dela, ela desaparece. Dirceu sorri e continua cavalgando.
Penhasco. Água despencando-se do penhasco. Lagoa. Pássaros voando.
Animais silvestres correndo no mato.
DIRCEU (VOICE OVER)
Fechei os meus olhos e fiquei imaginando se Marília estivesse
ali em minha companhia. Como seria bom e rico o meu
passeio. Na medida em que eu cavalgava colocava-me
observador de toda a natureza. O barulho do vento e o
sussurro da água, despencando-se do penhasco, faziam a
minha alma, antes livre e liberta, a sentir-se presa ao amor e a
saudade de alguém que gritava por meu nome por intermédio
dos cantos dos pássaros, em algum lugar.
408
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Marília, ilusoriamente, aparece galopando em um cavalo branco. Dirceu
cavalga ao encontro dela. Marília desaparece. Dirceu circula com o
cavalo, procurando por Marília. Ele grita.
DIRCEU
Marília, tu chamas por mim?
Marília, ilusoriamente, aparece galopando em um cavalo branco. Dirceu
cavalga ao encontro dela. Marília desaparece. Dirceu circula com o
cavalo, procurando por Marília. Ele grita novamente.
DIRCEU
Espera, minha amada, que eu vou.
Marília, ilusoriamente, aparece galopando em um cavalo branco. Dirceu
cavalga ao encontro dela. Marília desaparece novamente. Dirceu circula
com o cavalo, procurando por Marília.
DIRCEU
Longe de ti Marília, o mesmo não sou.
Relvado. Cavalo de Dirceu e cavalo branco de Marília soltos no relvado,
lado a lado. Marília e Dirceu deitados no relvado, beijando-se. Dirceu
evapora-se de repente dos braços de Dirceu. Dirceu fica sozinho,
sentado no relvado. Cavalo de Dirceu também sozinho, solto no
relvado.
DIRCEU
Antes de ficar louco, vendo Marília por toda parte, tenho de ir
urgente à Vila Rica. Em Vila Rica eu sei que a minha Marília
está com os lábios e o coração, sedentos de amor...
SEQUÊNCIA 159 – INT. /EXT. VILA RICA. EMPÓRIO DE ZÉ
TOMÁZIO. MATRIZ N. SRA. DA CONCEIÇÃO.
409
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Vila Rica. Ruas de Vila Rica. Dirceu troteia-se devagar pelas ruas de Vila
Rica. Placa do empório de Zé Tomázio. Dirceu amarra o cavalo em um
poste de frente ao empório do Zé Tomázio. Ele entra no empório de
Zé Tomázio. Zé Tomázio termina de atender alguns fregueses e dá um
sinal para que Dirceu encoste-se no balcão.
ZÉ TOMÁZIO
Vieste ver a dona Marília?
DIRCEU
Sim, o amigo tem visto-a, por esses dias?
ZÉ TOMÁZIO
Sabe que a dona Marília não mais apareceu por cá? Creio que
ela arrumou outra freguesia...
DIRCEU
Ultimamente a dona Marília está sendo controlada pelo
senhor cunhado dela e pela irmã...
ZÉ TOMÁZIO
E dificultando tudo, não senhor Dirceu?
DIRCEU
Como se eu estivesse feito mal a todos os deuses, Zé
Tomázio...
ZÉ TOMÁZIO
(ri)
Podes brigar com todos os deuses, senhor Dirceu, menos com
o cupido... Queres ver a dona Marília, não queres? Pois vá já
até a Matriz N. Sra. da Conceição que eu mandarei um recado
para que dona Marília vá até lá...
410
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Irei sim, amigo Zé Tomázio e mais tarde volto cá para
comprar alguns mantimentos.
ZÉ TOMÁZIO
E contar-me também, como foi o encontro com a bonita
donzela, não é mesmo senhor Dirceu?
Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Visão panorâmica da Matriz N.
Sra. da Conceição. Dirceu amarra o cavalo em um poste próximo à
Matriz N. Sra. da Conceição. Ele anda devagar até a Matriz N. Sra. da
Conceição. Ele entra na Matriz Nossa Senhora da Conceição, senta-se
em um dos bancos e fica a contemplar a beleza dela, com os olhos.
Marília chega sozinha na Matriz N. Sra. da Conceição, entra e vê Dirceu
sentado em um dos bancos. Marília aproxima-se de Dirceu e senta-se do
lado dele. ALGUMAS MULHERES entram na Matriz N. Sra. da
Conceição e se ajoelham próximo aos altares. Dirceu e Marília
conversam através de cochichos.
DIRCEU
Estou morrendo de saudade de vós mercê...
MARÍLIA
Eu também...
DIRCEU
Vamos sair daqui e procurar outro lugar...
MARÍLIA
Vamos lá para fora da matriz, quem sabe há algum lugar
reservado para conversarmos...
DIRCEU
E quem disse que eu quero só conversar?
411
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Vós mercê e os seus caprichos...
Marília levanta-se do banco e sai pelo corredor da Matriz N. Sra. da
Conceição. Dirceu levanta-se em seguida e também sai. Porta da Matriz
N. Sra. da Conceição. Dirceu e Marília olham para todas as ruas de Vila
Rica. Rosa, a aia de Marília, surge em uma das pequenas ruas perto
da Matriz N. Sra. da Conceição. Marília vê Rosa e afasta-se um pouco
de Dirceu.
MARÍLIA
É a Rosa, olha lá, ela vem ao meu encontro...
DIRCEU
Vós mercê contou a ela sobre o nosso encontro, cá?
MARÍLIA
Sim!
Marília olha para a direção de Rosa. Rosa vê Marília e Dirceu e apressa
os passos.
DIRCEU
Vou entrar na igreja e desapareço pelas portas laterais...
MARÍLIA
Não, não carece nada disso. Não
assiustadora...
teremos
notícia
ROSA
(aproxima-se de Marília e de Dirceu com um ar de cansada)
Sinhazinha pode ir, está tudo resolvido. Dona Amarilis já foi
para a fazenda...
MARÍLIA
(sorri para Rosa)
412
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
E a Vívila? Ela está fazendo o que eu a pedi?
ROSA
Tudo conforme sinhazinha pediu...
DIRCEU
(confuso, com os olhos arregalados para Marília e Rosa)
O que está acontecendo, que eu não sei? Não atrapalhar vós
mercê, dona Marília...
Marília e Rosa dão risadas. Dirceu continua com os olhos arregalados e
confuso.
MARÍLIA
Vós mercê está convidado para almoçar comigo, em casa...
DIRCEU
Está louca, dona Marília? Quer arranjar mais confusão?
MARÍLIA
Prometemos lutar por nós dois, ou não?
DIRCEU
Se for assim, aceito o convite.
MARÍLIA
Vou para a casa com a Rosa, ajeitar alguma coisa que falta e
depois vós mercê pode ir...
DIRCEU
Farei uma compra na venda de Zé Tomázio e, depois do
almoço, pegarei a estrada para a minha fazenda...
MARÍLIA
Faça o que tenha de fazer, contando que não falte ao nosso
compromisso...
413
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ROSA
(olha para Dirceu)
Fizemos também a combinação de que vós mercê não precisa
chamar no portão da casa. Basta chegar e entrar, nós vamos
deixar as portas frouxas...
UM BANDO DE ANDORINHAS POUSA NA TORRE DE UMA
IGREJA DE VILA RICA.
SEQUÊNCIA 160 – INT. /EXT. VILA RICA. CASA DE DOM
MANUEL.
Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Venda de Zé
Tomázio. Dirceu no balcão comprando alguns mantimentos na venda
de Zé Tomázio. Grande relógio de parede na sala de visitas da casa de
dom Manuel. Sala de jantar da casa de dom Manuel. Grande mesa da
sala de jantar da casa de dom Manuel. Dirceu e Marília estão sentados
na grande mesa da sala de jantar da casa de dom Manuel. Vívila e Rosa
servem o almoço para Marília e Dirceu. Marília e Dirceu servem-se da
comida, cautelosamente.
MARÍLIA
Se souberes o que estou prestes a descobrir, Dirceu, jamais
acreditarias...
DIRCEU
Estás atrás de desvendar mistérios, é?
MARÍLIA
Quase, mas ainda não posso contar-te. Deixe-me ter certeza e
tu serás a peça principal para o meu plano...
414
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Vais então deixar-me cheio de suspenses?
MARÍLIA
Quem sabe isso não ajudará vós mercê a preparar-te o
espírito?
VÍVILA COLOCA NA MESA UMA BONITA VASILHA COM
UMA SOBREMESA MINEIRA.
SEQUÊNCIA 161 – EXT./ INT./DIA. CAPELA DA FAZENDA.
Tarde. Capela da fazenda. Dirceu desce do cavalo e o solta no adro da
capela. Frontifício da capela. Dirceu observa todo o frontifício da
capela. Porta da capela da fazenda. Dirceu abre a porta da capela da
fazenda e entra. Interior da capela, os olhos de Dirceu passeam entre as
paredes, os bancos, o piso, o pequeno púlpito e o altar.
DIRCEU
O que haveria de tal misterioso, cá, nesta capela...
Interior da capela da fazenda, os olhos de Dirceu passeam entre as
paredes, os bancos, o piso, o pequeno púlpito e o altar.
DIRCEU (VOICE OVER)
Se é que existe algum mistério nesta capela, eu jamais poderei
ignorá-la. Por enquanto devo servir-me de informações sobre a
história de sua criação. Não é em qualquer fazenda que há uma
capela tão complexa quanto esta...
Dirceu olha para o teto da capela da fazenda. Ele fica observando o
pequeno afresco dos anjos, tendo ao centro São Rafael e São Miguel
Arcanjo.
415
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
O anjos! Seriam aqueles anjos do afresco, responsáveis pelo
mistério? Farias disse que eu ia entender tudo a partir do dia
que os anjos aparecerem. Segundo ele, um anjo é grande, outro
mais grande, um ajuda, outro engana e que os meus caminhos
serão igual a uma encruzilhada.
CORTA PARA
Imagens de anjos do afresco da capela da fazenda.
DIRCEU
(olha fixamente para o afresco da capela)
Um desses anjos descerá do céu para entregar-me uma chave?
SEQUÊNCIA 162 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA.
Quintal de frente da Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu apeia-se do
cavalo ao encontrar com Cirilo e Miliquito.
DIRCEU
Cirilo, Miliquito, quero que vós mercês preparem para mim
uma pequena encomenda para eu levar para o padre Rocha
em Vila Rica...
CIRILO
Nhô vai ainda hoje para Vila Rica?
DIRCEU
Não, Cirilo, irei amanhã bem cedo...
MILIQUITO
Nhô vai sozinho de novo?
416
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Sim, mas quem está com Deus, nunca está sozinho...
Preparem para eu levar ao padre Rocha quatro rapaduras, dois
potes de melado, cinco queijos frescos e curados, alguns
beijus e duas ou três medidas de farinha de mandioca...
CIRILO
Nhô Dirceu vai levar também um jumento com a carga?
DIRCEU
Não, como vou sozinho, creio ser um pouco incômodo.
Temos alguns sacos feitos de juta e algodão, pegue um deles.
Creio que caberá a encomenda e como eu tenho feito outras
vezes, amanhã cedo, amarrarei o saco na garupa do cavalo...
CIRILO
Nhô sim... Eu e Miliquito vamos fazer tudo direitinho...
DIRCEU
Deixem o saco no canto da varanda, que amanhã cedo é só
colocá-lo na garupa do meu cavalo...
SEQUÊNCIA 163 – INT./EXT./ VILA RICA. CASA DO PADRE
ROCHA.
Manhã. Vila Rica. Casa do padre Rocha. Porta da casa do padre Rocha.
Dirceu está na porta da casa de Padre Rocha sendo atendido por um
garoto branco, de mais ou menos 14 anos de idade.
DIRCEU
Padre Rocha se encontra em casa?
GAROTO BRANCO
Sim, mas se5 for alguma coisa a respeito de igreja ele só atende na...
417
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não, é pessoal. Eu trouxe algumas encomendas para ele...
Cavalo de Dirceu. O garoto branco olha para o saco amarrado na
garupa do cavalo.
GAROTO BRANCO
Quer que eu receba a encomenda?
DIRCEU
(demonstra-se um pouco impaciente)
Não, não posso entregar-lhe a encomenda, porque eu preciso
também conversar um pouco com o padre Rocha... Ele está
bem, não está?
O garoto branco faz "sim" com a cabeça e entra rápido para dentro da
casa do padre Rocha. Dirceu pula do cavalo e lhe segura o arreio,
aguardando pelo padre Rocha. Padre Rocha aparece na porta da casa.
DIRCEU
Bom dia, padre Rocha! Não quero incomôdá-lo. Apenas
passei por cá para deixar-lhe uma encomenda e receber-lhe as
bênçãos...
PADRE ROCHA
Deixar uma encomenda? Uma encomenda a mando de quem?
DIRCEU
A mando de ninguém, padre Rocha, eu mesmo fiz o capricho
de trazer-lhe uma encomenda minha e de todo o pessoal lá da
fazenda Ribeirão do Meio...
PADRE ROCHA
(olha para Dirceu atentamente)
Ah, vejo cá, então, o filho do Zé Antônio...
418
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Eu mesmo, padre, o Dirceu...
PADRE ROCHA
O mesmo, teimoso igual ao pai, quando coloca uma coisa na
cabeça...
DIRCEU
Eu trouxe cá, padre Rocha, algumas especiarias da minha
fazenda para vossa reverendíssima provar...
PADRE ROCHA
Isso deixa-me surpreso, pois ultimamente ninguém tem
lembrado deste velho pároco...
Cavalo. Dirceu solta o arreio do cavalo e tira o saco de juta e algodão.
Ele coloca o saco no chão. O garoto branco aparece novamente na
porta da casa do padre Rocha, vindo do lado de dentro. Padre Rocha
pede ao garoto para amarrar o cavalo de Dirceu em um poste próximo à
casa. Dirceu entrega o arreio do cavalo para o garoto branco. Padre
Rocha convida Dirceu para entrar. Dirceu levanta o saco de juta e
algodão cheio de mantimento.
CORTA PARA
Grande sala da casa de padre Rocha com poltronas e uma grande mesa.
Dirceu e padre Rocha estão sentados à mesa. Saco de juta e algodão
aberto entre as pernas de Dirceu. Dirceu vai tirando do saco de juta e
algodão os mantimentos e colocando-os em cima da mesa: cinco queijos
frescos e curados; um alforje com as três medidas de farinha de
mandioca; uma trouxa de pano com beijus; dois portes de melado e
quatro rapaduras. O padre Rocha aprecia com os olhos os mantimentos.
PADRE ROCHA
Só mesmo o grande e bondoso Deus, meu filho, para
abençoar e fazer prosperar toda a riqueza em sua fazenda...
419
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Vós mercê tem uma alma boa, foi capaz de lembrar do pobre
pároco, cá, já cansado e quase preparado para entregar a alma
ao criador...
DIRCEU
Que nada, padre Rocha, vossa reverendíssima ainda vai viver
muitos anos. Ainda há de salvar muitas almas para Deus...
PADRE ROCHA
É o nosso dever de cristão, meu filho...
DIRCEU
É verdade padre Rocha, pensando na qualidade de bom
cristão, tenho preocupado em estar pelo menos uma ou duas
vezes por mês, reunindo os fiéis da minha região na nossa
santa capelinha...
PADRE ROCHA
(ajeita-se na poltrona)
A capela, eu sei parte da história daquela capela...
DIRCEU
Um dia virei cá e roubarei o seu tempo para ouvir a história
daquela capela, padre...
PADRE ROCHA
Não precisa de ser um longo tempo, meu filho, tudo o que eu
sei se resumo em muito pouco... mas é a história da capela em
toda a sua essência...
Dirceu olha para as confortáveis poltronas da sala. O padre Rocha
também olha para as poltronas. O padre Rocha põe-se de pé.
PADRE ROCHA
Vamos nos acomodar naquelas poltronas. Elas são macias e
não cansam os nossos traseiros...
420
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Padre Rocha e Dirceu riem enquanto dirigem-se para as poltronas. Os
dois sentam-se lado a lado.
DIRCEU
E não cansando os nossos traseiros padre Rocha, eu poderei
gastar mais tempo ouvindo a história da capela da minha
fazenda...
Padre Rocha e Dirceu conversam animadamente.
DIRCEU (VOICE OVER)
Embora eu soubesse a história da fundação da capela da
minha fazenda, não custava, naquele momento, pedir ao padre
Rocha que a me contasse segundo a versão dele. Tudo o que
eu faria era prestar atenção aos detalhes fornecidos por ele,
ligando os pontos mais importantes para o início daquela
intrigante investigação. Entre uma conversa e outra, aproveitei
um momento oportuno para pedir a ele que falasse sobre a
construção da capela na fazenda.
CORTA PARA
Padre Rocha coça a cabeça, levanta-se da poltrona e dirige-se à enorme
janela da sala, onde respira tranquilamente. Dirceu acompanha o
movimento do padre Rocha apenas com os olhos. Padre Rocha volta
novamente para a poltrona e ajeita-se o corpo. Padre Rocha tosse duas
ou três vezes, limpa a garganta e inicia a narrativa.
PADRE ROCHA
Não sei se vós mercê sabe, os jesuítas, nome dado aos
membros da Companhia de Jesus, desde o descobrimento do
Brasil, cujos ideais perseveravam na defesa da fé, era uma
ordem religiosa de caráter masculina, fundada em 1540, pelo
sacerdote espanhol, Inácio de Loiola. Sua atividade era
puramente intelectual, pedagógica, missionária e assistencial,
tendo como lema "Ad Majorem Dei Gloriam”. Nove anos
421
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
depois, em 1549, um grupo dessa companhia, liderado pelo
padre Manuel da Nóbrega, instalou-se no Brasil. Dessa forma,
em 1553, data em que o padre Anchieta chegou ao Brasil, foi
criada aqui a "Província Jesuítica do Brasil". A partir do século
XVI, os jesuítas introduziram o ensino das artes e dos ofícios
necessários à vida cotidiana da colônia, principalmente à do
sertão. Eles não somente se preocupavam com as missões
catequéticas, como também procuravam preservar as línguas
indígenas registrando os fatos importantes de seu tempo, e foi
justamente devido a essa importância que alguns desses
religiosos chegaram a essa região.
SEQUÊNCIA 164 – EXT./DIA – FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. ALDEIA DOS ÍNDIOS. CAPELA DA FAZENDA.
Flash Back – Relato do Padre Rocha
Legenda: "Fazenda Ribeirão do Meio, 1741".
Aldeia dos índios. MULHERES ADULTAS INDÍGENAS, umas
cuidando dos filhos, outras da agricultura, plantando e/ou colhendo
mandioca, feijão e milho, outras fabricando objetos de cerâmica, vasos e
potes e outras preparando os alimentos para o consumo, colhendo
frutos, fabricando a farinha de mandioca e o beiju e tecendo redes.
Grande aldeia com um tanto de crianças indígenas sentados em grupos.
Os PADRES JESUÍTAS estão no meio das crianças indígenas,
ensinando-as algumas tarefas. HOMENS ADULTOS INDÍGENAS,
uns caçando animais selvagens; outros pescando; outros fabricando
instrumentos de caça e pesca. ÍNDIOS de várias aldeias guerreando-se.
Setas de flechas voando por todo o lado. Algumas setas acertam índios e
índias, ora pelas costas, ora no peito. Índios e índias mortos, caídos no
terreiro. Aldeias sendo incendiadas. Ocas pegando fogo. MULHERES,
HOMENS e CRIANÇAS INDÍGENAS correndo pelo mato. Trilhas
no mato. Os padres jesuítas correm salvando algumas crianças e
mulheres indígenas.
422
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PADRE ROCHA (OFF)
Nessa época, algumas tribos indígenas habitavam esta região
nos entrementes de um tempo e outro. As terras de Vila Rica,
por não serem produtivas, não os interessavam, fazendo com
que eles procurassem a região, onde se localiza a fazenda
Ribeirão do Meio. Desde 1741, os jesuítas trabalhavam em
prol de fixá-los na região. Porém, como os índios viviam
migrando de uma região à outra, a tarefa dos padres tornavase difícil. Os índios mais comuns dessa época eram os
goitacás, tupiniquins, guaianás e carajás, entre outros que
vinham das margens do rio, que segundo os índios, chamavase Opará, batizado, posteriormente, pela civilização como o
Rio São Francisco. A missão dos jesuítas resumia-se em ajudálos a se aldeiarem e a torná-los cristãos.
SEQUÊNCIA 164.1 – CONTINUAÇÃO - RELATO DO PADRE
ROCHA. EXT./DIA – FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. ALDEIA
DOS ÍNDIOS. CAPELA DA FAZENDA.
Legenda "Fazenda Ribeirão do Meio, 1750-1753”.
Fazenda Ribeirão do Meio. Lugar descampado. Bandeira da ordem dos
Jesuítas, suspensa em um mastro, balançando com o vento. Na bandeira
há a seguinte descrição "Ad Majorem Dei Gloriam” e a sigla abreviada
"A.M.D.G." A bandeira é branca, contendo ao centro o coração de
Jesus Cristo, na cor vermelha (Sagrado Coração de Jesus). PADRE
FERNANDEZ, espanhol, alto, magro, cabelos lisos e ruivos, pele clara,
debaixo do mastro em que está a bandeira da Ordem dos Jesuítas.
Depois se vê que, juntamente com ele, há outros padres da companhia
de Jesus, um pouco afastados dele.
PADRE FERNANDEZ
Cá, onde está fincada esta bandeira da Ordem dos Jesuítas
será construída uma capela. Se nós conseguirmos, com o
tempo, fixar os índios por cá, nesta região, o nosso trabalho
será uma grande bênção...
423
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Construção da capela da fazenda: taipeiros, pedreiros, carpinteiros e
cortadores de pedras, trabalhando. Capela da fazenda construída. (ação
conforme a sequência 53). Ou pode surtir um efeito substituindo a
bandeira da Ordem dos Jesuítas na torre da capela da fazenda e em
seguida mostrando todo o frontifício dela.
CORTA PARA
Interior da capela da fazenda, destacando-se o altar. Padre Rocha,
jovem, 25 anos, ao lado do padre Fernandez.
PADRE FERNANDEZ
Rocha, entre todos os padres de nossa companhia, vós mercê
foi o escolhido para celebrar a primeira missa desta capela...
PADRE ROCHA
(assusta-se)
Eu? Mas por que eu, padre Fernandes? Uma missa tão
importante, de inauguração de uma capela?
PADRE FERNANDEZ
Porque vivemos de acordo com os desígnios de Deus, não é
padre Rocha? Mas não se preocupe, porque eu prepararei a
missa, quanto aos textos da vulgata. O tema da missa será em
torno da última ceia de Cristo, dando valor enfático à traição
de Judas Iscariotes, o único apóstolo de Jesus que não era
galileu.
PADRE ROCHA
A missa será celebrada mesmo no dia oito de maio, padre
Rocha? Esse dia dará numa terça-feira... Não seria melhor em
um final de semana?
PADRE FERNANDEZ
Tudo está conforme tem de estar para acontecer padre
Rocha...
424
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FADE OUT/FADE IN
Capela da fazenda. Detalhes do altar e do púlpito da capela. O altar da
capela parece um túmulo, cujos riscos foram copiados da tumba de
Artaxerxes II, da Pérsia. Um pequeno púlpito simples, contornado e
cheio de cores complexas, um pequeno afresco com anjos, tendo ao
centro São Rafael e São Miguel Arcanjo. As pinturas são barrocas.
FIÉIS na capela (os fiéis são pessoas brancas). ALGUNS ÍNDIOS
(homens, mulheres e crianças), acompanhados pelos padres anchietanos,
nos cantos laterais da capela. Padre Rocha no altar da capela da fazenda
celebra a missa. Púlpito. O padre Fernandez falando ao povo através do
púlpito.
PADRE ROCHA (OFF)
A missa foi celebrada no dia 08 de maio, numa terça-feira,
uma manhã ensolarada, do ano de 1753. A capela estava cheia
de fiéis. Eu celebrei a Santa Missa como se fosse a primeira
missa celebrada em toda a minha vida. Preguei a leitura da
vulgata, ilustrando todo o significado da traição do Judas
Iscariotes... No final da celebração, o padre Fernandez subiu
no pequeno púlpito da capela e confessou para todos sobre a
importância daquela capela ali, naquela região.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 163.1 – INT./ DIA. CASA DO PADRE ROCHA.
Sala da casa do padre Rocha. Dirceu e padre Rocha estão sentados na
poltrona.
DIRCEU
É verdade, padre Rocha, que o padre Fernandez argumentava,
naquela época, que o segredo mais importante do mundo
existia naquela capela.
425
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PADRE ROCHA
Ora, meu filho é porque, depois da primeira missa celebrada
naquela capela, o padre Fernandez veio a falecer.
DIRCEU
Como assim, de repente?
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 164.2 – CONTINUAÇÃO - RELATO DO PADRE
ROCHA. EXT./INT./DIA – FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
ALDEIA DOS ÍNDIOS. CAPELA DA FAZENDA.
Ano de 1753. Capela da fazenda. Padre Fernandez de joelhos, orando,
dentro da capela da fazenda. Adro da capela. Aldeia de índios. Grande
oca indígena. PADRES DA COMPANHIA DE JESUS dentro da
grande oca indígena, sentados em uma mesa fazendo as suas refeições.
Capela da fazenda. Padre Fernandez de joelhos, orando, dentro da
capela da fazenda. Portas da capela da fazenda fechadas. UM DOS
PADRES DA COMPANHIA DE JESUS aproxima-se das portas da
capela da fazenda, empurrando-as. Grande escada. O um dos padres da
Companhia de Jesus arrasta a grande escada. Uma das janelas laterais da
capela da fazenda. Ele ergue a escada em uma das janelas laterais da
capela da fazenda, sobe e observa o interior da capela. Altar da capela da
fazenda. Padre Fernandez está deitado nos pés do altar da capela da
fazenda. O um dos padres da Companhia de Jesus vai até a grande oca
indígena e comunica aos outros padres sobre o que viu no interior da
capela. TODOS OS PADRES DA COMPANHIA DE JESUS correm
para as portas da capela da fazenda. ALGUNS PADRES DA
COMPANHIA DE JESUS arrombam uma das portas laterais da capela
da fazenda. Todos os padres da Companhia de Jesus entram na capela
da fazenda. Padre Fernandez continua deitado no pé do altar. Os padres
da Companhia de Jesus dirigem-se até o padre Fernandez. Padre
Fernandez está morto. Os padres da Companhia de Jesus caem-se de
joelhos em torno do padre Fernandez. Adro direito da capela da
426
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
fazenda. Túmulo de madeira no adro da capela ao lado de fora da capela
da fazenda. Padre Fernandez sendo sepultado pelos padres da
companhia de Jesus. Índios participam-se do enterro do padre
Fernandez.
PADRE ROCHA (OFF)
Todos os dias o padre Fernandes trancava-se na capela para
orar. Nunca o incomodávamos, a ponto de um dia, somente à
tarde, ao sentirmos a falta dele, um dos irmãos da Companhia
foi procurá-lo na capela. Como o padre Fernandez não
respondia aos seus chamados, ele, caladinho, resolveu pegar
uma escada e espiar pela janela para ver se o padre estava lá, se
passava bem ou mal. Foi aí então que ele nos comunicou que
o padre Fernandez estava caído sobre os pés do altar da
capela. Invadimos o interior da capela e constatamos que
Deus o havia levado para sempre. Preparamos um túmulo de
madeira ao lado de fora da igreja e o sepultamos.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 163.2 - CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA DO
PADRE ROCHA.
Sala da casa do padre Rocha. Dirceu e o padre Rocha estão sentados na
poltrona. Padre Rocha prossegue a sua fala saindo de off.
PADRE ROCHA
Se não me falha a memória, dois ou três anos depois
apareceram alguns padres espanhóis por lá para apanhar a
ossada do padre Fernandez e levá-la para a Espanha.
DIRCEU
E o que se sabe sobre o padre Fernandez, padre Rocha? Se a
ossada dele foi levada de volta para a Espanha deve ser
427
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
porque ele era muito importante para a comunidade católica
de lá, não?
PADRE ROCHA
Ora, meu filho, tudo o que eu sei é que o padre Fernandez
viera de uma antiga colônia romana, conhecida como
Valência, situada ao leste de Espanha. Ele fazia parte da
Companhia de Jesus desde os 1709, quando tinha apenas 17
anos. Ele chegou ao Brasil, em 1740, contava com 48 anos, se
estabeleceu no Rio Grande do Sul, vindo três anos depois
para esta região. Eu o conheci aqui, em 1743, quando ele
tornou-se um chefe do subgrupo formado pela Companhia.
Em 1745 ele viajou para a Espanha e depois de quatro anos
ele voltou para cá. Em 1750 ele iniciou a construção da capela
que está em sua fazenda.
DIRCEU
Poucos dias antes de morrer, padre, o que o padre Fernandez
fazia?
PADRE ROCHA
Ah, sim, meu filho. O padre Fernandez, duas semanas antes
de morrer, inventou fazer uma via-sacra por algumas igrejas e
capelas de Vila Rica, juntamente com alguns religiosos
escolhidos por ele. Não sei porque, eu também fui escolhido.
Eu era o padre mais jovem dentre todos os escolhidos para a
via-sacra.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 164.3 – CONTINUAÇÃO - RELATO DO PADRE
ROCHA. EXT./INT./DIA – VILA RICA. VÁRIOS.
Vila Rica. Ruas de Vila Rica. Bandeira da ordem dos Jesuítas sendo
levada por um padre da Companhia de Jesus. Procissão. Padre
428
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Fernandez lidera a procissão com mais ou menos vinte padres da
Companhia de Jesus. Janelas abrem-se nas casas de Vila Rica, surgindo
pessoas nelas para apreciarem a procissão. Fade out e fade in para
denotar vários dias de procissão. Igrejas de Vila Rica. Procissão
passando nas portas das igrejas de Vila Rica. Pessoas de Vila Rica
acompanhando a procissão. Capela de Sant´Ana. A procissão para em
frente à capela de Sant´Ana. O padre Fernandes entra sozinho na
capela. Altar da capela. Padre Fernandez ajoelha-se no altar da capela de
Sant´Ana.
FADE OUT/FADE IN
Manhã ensolarada. Capela da fazenda Ribeirão do Meio. Altar da capela
da fazenda. No altar da capela da fazenda está um andor da imagem de
São Miguel Arcanjo, enfeitado e pronto para ser carregado em
procissão. UM PADRE DA COMPANHIA DE JESUS termina de
celebrar uma missa. ALGUNS HOMENS BRANCOS vão até o altar da
capela da fazenda e pegam a imagem de São Miguel Arcanjo. Imagem de
São Miguel Arcanjo no ombro dos homens brancos. Adro da capela da
fazenda. Procissão saindo do adro da capela da fazenda. Estrada.
Procissão pela estrada.
FADE OUT/FADE IN
Vila Rica. Procissão chegando à Vila Rica com a imagem de São Miguel
Arcanjo. Porta da capela de Sant´Ana. Padre Fernandez e os padres da
Companhia de Jesus recebem a procissão que traz para a capela de
Sant´Ana a imagem de São Miguel Arcanjo. Todos entram na capela de
Sant´Ana. A imagem de São Miguel Arcanjo é colocada no altar
principal (ou nicho) da capela de Sant´Ana.
PADRE ROCHA (OFF)
O padre Fernandez, duas semanas antes de morrer, inventou
fazer uma via-sacra por algumas igrejas e capelas de Vila Rica,
juntamente com alguns religiosos escolhidos por ele. Quando
entramos em Vila Rica em marcha, o povo alvoroçado
429
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
pensando tratar-se de uma procissão nos acompanhava. No
último dia da via-sacra, num domingo à tarde, ele presenteou a
capela de Sant’Ana com a imagem de São Miguel Arcanjo,
pedindo que as irmandades de Sant’Ana fossem buscá-la na
capela da fazenda. Após celebrarmos uma missa na capela, os
fiéis saíram em procissão trazendo o Santo Anjo para esta
cidade. A imagem de São Miguel Arcanjo era grande, bonita,
e, segundo o padre Fernandes, foi herança de um tio dele,
também padre, falecido em Valência, em 1714.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 163.3 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA DO
PADRE ROCHA.
Sala da casa do padre Rocha. Dirceu e o padre Rocha sentados na
poltrona. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
O padre Rocha falou de uma imagem de anjo, qual pertencia à
capela da minha fazenda. Será se essa imagem não seria a
mesma que o Farias havia silogicamente mencionado?
DIRCEU
(olha para o padre Rocha)
E a imagem de São Miguel Arcanjo, encontra-se na capela de
Sant' Ana, padre Rocha?
PADRE ROCHA
(ajeita-se na poltrona)
Não, ela não está mais lá não. Desde o final do ano de 1759,
quando o marquês de Pombal aderiu ao espírito anticlerical,
expulsando a Companhia de Jesus de Portugal e proibindo-a
nos domínios ultramarinos, os nossos trabalhos aqui na
colônia foram totalmente interrompidos. Todos nós, jesuítas,
430
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
sofremos graves perseguições, vendo-nos obrigados a fechar
os nossos colégios e a abandonar as aldeias indígenas. No ano
de 1761, todos os bens da nossa Companhia foram
confiscados e incorporados à coroa por meio de cartas régias.
Lembro-me que ficamos alvoroçados com tantas perseguições
dos governos europeus. Mesmo assim, graças misericordioso
Deus, a Companhia persistiu na Prússia até o ano de 1780,
sem falar que desde 1777, quando D. Maria I assumiu o trono
devido à morte do pai D. José I, o marquês de Pombal
renunciou ao cargo, favorecendo o retorno dos jesuítas a
Portugal, prosseguindo, então, os trabalhos de ensino e
evangelização missionária. O certo foi que eu, assim como
outros padres, fiquei aqui pregando a palavra de Cristo, o que
era conveniente aos fiéis.
DIRCEU
Onde se encontra a imagem do anjo, padre Rocha?
PADRE ROCHA
Sei não, meu filho. Ela desapareceu do nicho da capela de
Sant’Ana há muitos anos. Se vós mercê quiser saber sobre a
imagem de São Miguel Arcanjo, não custa procurar o Antônio
Francisco Lisboa, ele, mais que ninguém, está sempre nos
informando sobre os paradeiros das imagens. Outro dia
mesmo ele mandou um menino avisar-me sobre uma imagem
há muito tempo perdida pela igreja.
DIRCEU
O senhor esta falando sobre o "homem feio", o mísero aleijado que
trabalha taciturno talhando madeiras e esculpindo imagens?
431
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PADRE ROCHA
Sim, estou falando sobre o mísero, mas cheio de talentos. Estou falando
do Antônio Francisco, qual o mundo ainda há de se abalar com as suas
artes.
SEQUÊNCIA 165 – INT./EXT. DIA. VILA RICA. EMPÓRIO DE
ZÉ TOMÁZIO. IGREJA NOSSA SENHORA DO CARMO. CASA
DE DOM MANUEL.
Tarde. Vila Rica. Empório de Zé Tomázio. Dirceu está no balcão do
empório de Zé Tomázio. Zé Tomázio atende alguns fregueses, depois
se aproxima de Dirceu.
ZÉ TOMÁZIO
Daqui a pouco vossemecê pode ir à igreja, a dona Marília
espera o senhor, lá...
DIRCEU
(sorri esfregando as mãos)
É verdade? Fizeste isso por mim, Zé Tomázio?! Isto é que eu
chamo de amigo...
ZÉ TOMÁZIO
Ora, patrício, não percebe que o português é inteligente? Vi-o,
nesta manhã entrando na casa do pároco e apressei a marcar o
encontro entre vossa senhoria e a dona Marília. Pedi a um
molequinho para avisá-la que vossemecê a esperaria na igreja
Nossa Senhora do Carmo.
DIRCEU
Deixei o meu cavalo amarrado na praça amarra cavalos, agora
vou ter de ir a pé...
432
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZÉ TOMÁZIO
(sorri)
Ah, mais é um sacrifício que vale a pena. A dona Marília
também não bate as perninhas, atrás do gajo? Então agora é a
vez do gajo também bater as suas pernas atrás da bela
rapariga... Então vá à igreja, vá, a cachopa está a esperá-lo.
Porta do empório de Zé Tomázio. Dirceu sai na porta do empório de
Zé Tomázio. Ele coloca o chapéu na cabeça e anda pela rua apressado.
Algumas ruas de Vila Rica. Passos rápidos de Dirceu. Morro de Santa
Quitéria. Igreja Nossa Senhora do Carmo. Passos de Dirceu entrando
na igreja Nossa Senhora do Carmo. Dirceu no interior da igreja Nossa
Senhora do Carmo. Ele vasculha com os olhos todo o interior da igreja
e vê Rosa vindo na direção dele. Rosa sorri, balança o corpo
desengonçadamente e, com o seu jeito apressado, olha para Dirceu.
ROSA
Eu cá etava impaciente, pensei que o sinhozinho não viria...
DIRCEU
(olha para Rosa e fica confuso)
Rosa, o que fazes aqui? E a dona Marília? Meu encontro não
seria com a dona Marília?
ROSA
(dá risadas e faz gestos engraçados)
Comigo que não é né, nhô Dirceu?
DIRCEU
E a dona Maria, me conte? O que aconteceu com a dona
Maria?
ROSA
Sinhá Marília espera nhozinho lá na casa dela.
433
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Como?
ROSA
Ela pediu para nhozinho ir até lá ...
DIRCEU
E a irmã dela, o cunhado Sales...
ROSA
A fazenda está sendo o lugar deles... Vou para casa porque a
dona Marília deve está preocupada...
DIRCEU
Vou somente pegar o meu cavalo, cá embaixo na praça
Amarra cavalos e já vou... Fale para a dona Marília que quero
tomar um cafezinho coado por ela... com bolo, biscoito e
tudo...
ROSA
Inhozinho, sim. Pensa que a dona Marília não sabe fazer café
e quitutes gostosos, é?
SEQUÊNCIA 166 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA
RICA. PORTA DA CASA DE DOM MANUEL.
Tarde. Ruas de Vila Rica. Cavalos cavalgam lentamente pelas ruas de
Vila Rica. MULHERES NEGRAS carregam cestas e tabuleiros de
doces. Mulheres brancas passeando pelas praças em companhias de suas
aias. Centro de Vila Rica. Liteiras. HOMENS BRANCOS dentro das
liteiras. HOMENS NEGROS E FORTES carregam liteiras. Dirceu
calvaga pelas ruas de Vila Rica. Portão da casa de Dom Manuel. Marília
está no portão da casa de Dom Manuel esperando anciosa por Dirceu.
434
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Ele chega a cavalo no portão da casa de Dom Manuel. Ele pula do
cavalo e Marília agarra-o e dá-lhe um beijo. Dirceu afasta-se olhando
para todos os arredores.
MARÍLIA
Finalmente apareceste...
DIRCEU
Eu, por ventura, deveria vir mais vezes?
MARÍLIA
Todos os dias, por que não?
DIRCEU
Estás feliz, o que aconteceste de bom?
MARÍLIA
Vamos entrar, sentar e conversar. Tenho excelentes planos...
DIRCEU
Planos?
MARÍLIA
Sim, planos! Não via o momento de ver-te.
Cavalo de Dirceu amarrado em um poste. Marília pega Dirceu pelas
mãos e coduz para dentro da casa. Dirceu e Marília entram na sala da
casa de dom Manuel e sentam-se, a sós, em uma das confortáveis
poltronas.
DIRCEU
Por que não preferes ir à igreja?
435
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Não tenho porque namorar às escondidas... Descobri o
complô que papai armou para mim ...
DIRCEU
Como? Não entendi...
MARÍLIA
(olha para Dirceu, sorri e fala apressadamente)
Irás entender, apenas escute o que tenho para dizer-te, com
atenção.
DIRCEU
Então...
MARÍLIA
O italiano, a quem papai dizia eu ser prometida, não passa de
uma farsa. O meu tio respondeu a carta e, por sorte, ela veio
parar em minhas mãos.
DIRCEU
A tal promessa de casamento não passa de uma farsa? Como
assim? Como vós mercê descobriu isso? Que carta veio parar
em vossas mãos?
MARÍLIA
(sorri satisfeita e beija Dirceu)
Colatino Durães chegou com a tropa dele na semana passada
de São Sebastião do Rio de Janeiro. Quando eu soube disso,
procurei-o para saber se ele trazia encomenda para mim ou
para alguém da família. Então ele entregou-me esta
encomenda.
Seios de Marília. Marília enfia uma das mãos entre os seios e tira um
pergaminho dobrado. Ela entrega o pergaminho para Dirceu. O
436
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
pergaminho é uma carta. Dirceu abre ligeiramente o pergaminho,
consultando-o com os olhos.
MARÍLIA
É uma carta do meu tio que mora na Itália. Embora ela tenha
sido endereçada ao meu cunhado, não contive, fechei-me no
meu quarto e abri. A carta deixou-me confusa, pois o meu tio
conta nela que o meu pai nunca fez compromisso algum a
respeito de casar-me com qualquer rapaz daquela província.
Se o rapaz prometido a mim fosse o sócio dele - como o papai
costumava dizer a mim e a todos da cidade - tudo não passava
de um equívoco, pois o rapaz, segundo meu tio, é um senhor
idoso, viúvo, doente, esperando pela morte. Ele disse ter
sentido muito pela morte do papai e aconselha ao meu
cunhado a casar-me com um rapaz daqui de Vila Rica, onde,
decerto, eu viveria tranquilamente.
Sala da casa de Dom Manuel. Marília para de falar e olha para Dirceu.
Pergaminho nas mãos de Dirceu. Dirceu passa os olhos pelo
pergaminho, lendo a carta atentamente.
DIRCEU (VOICE OVER)
Corri os olhos sobre a carta, li-a com cautela e constatei que
Marília não blefava. Tudo o que ela contava para mim estava
escrito na carta. Percebi claramente a intenção de dom
Manuel. Ele arranjara esse meio para proteger a filha a não se
aventurar tão cedo com os rapazes da cidade. Agradeci-o no
meu pensamento.
CORTA PARA
Sala da casa de Dom Manuel. Dirceu termina de ler a carta e olha
alegremente para Marília.
DIRCEU
E Sales, falou com ele sobre a carta?
437
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Não, eu estava esperando por ti.
DIRCEU
(cochicha para Marília mostrando a ela a carta)
Este assunto não pode ser tratado aqui.
MARÍLIA
Fique tranquilo, o cunhado Sales está na fazenda e a minha
irmã também, fazendo repouso, cercada de parteiras,
esperando o nascimento da criança a qualquer um desses
dias...
DIRCEU
O que a sinhazinha pretende fazer?
MARÍLIA
Armar um plano contra o meu cunhado e a minha irmã.
Desde ontem estou arquitetando um.
DIRCEU
E qual é o plano?
MARÍLIA
Um plano simples, somente vós mercê poderá ajudar-me.
Marília e Dirceu beijam-se.
DIRCEU
Conte-me o plano, explique como poderei ajudá-la...
MARÍLIA
Vós mercê escreverá uma carta talentosa ao meu cunhado...
DIRCEU
Uma carta?
438
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Sim, uma carta que dê resposta a esta que está sobre o nosso
poder. Ora, conforme vimos, o tal rapaz italiano não existe.
Tudo não passou de uma fantasia do senhor meu pai, para
que os garjos, cá, de Vila Rica não me cortejassem...
DIRCEU
Isso feito pelo falecido senhoror seu pai foi muito bom...
MARÍLIA
Melhor ainda será se vós mercê aderir ao meu plano. Então?!
DIRCEU
Desconheço o meu talento, quanto a isso, mas, como se trata
de lutar por um grande bem, tentarei compor a mentira para
impressionar o Sales e a senhora sua irmã, Amarílis.
MARÍLIA
O plano, conforme eu expliquei é muito simples, Dirceu.
Basta vós mercê escrever uma carta dizendo que o tal
pretendente está passando por dificuldade e pede recursos
para passagem de Marsalha para cá, além de estadia e alguns
dotes para recomeçar a vida. Diga também que para ele casarse comigo e morar cá em Vila Rica, ele vai querer um bom
investimento em terras para a plantação de uma grande
videira...
DIRCEU
Será se eu consigo, Marília?
MARÍLIA
Confio no teu talento, Dirceu. Escreva a carta, entregue a
mim e o resto do plano ficará por minha conta...
439
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Porque vós mercê não pensa em outro plano, Marília. Esse
parece tão complicado...
MARÍLIA
Como inventar outro plano? Isso não, Dirceu. A única coisa
que temos de concreto para contra argumentar com o Sales e
com a Amarílis é essa bendita carta que recebi das mãos de
Colatino Durães... Quer arma melhor do que essa! O Sales
está aguardando uma resposta e, portanto, aproveitaremos
para dar-lhe outra que não seja igual a da carta. Quero assustar
a ele e a minha irmã, somente isso!
Dirceu olha para Marília meio encabulado. Ele tenta fazer alguma
pergunta, mas Rosa entra na sala de visitas neste instante. Dirceu e
Marília olham para Rosa. Dirceu enfia o pergmaminho dobrado iem um
dos bolsos da calça e pisca para Marília.
ROSA
A mesa está pronta, dona Marília...
MARÍLIA
Ué, então vamos comer alguma coisa...
Marília levanta-se da poltrona e vai para a sala de jantar acompanhada
por Rosa. Dirceu prossegue um pouco mais na sala de visita. Sentado na
poltrona, ele fecha os olhos e respira meio apreensivo.
DIRCEU (VOICE OVER)
Meu coração bateu forte. Lembrei-me do velho Farias. Ele
dissera a mim que Marília haveria de revelar-me um segredo.
Então, se o segredo era esse, não haveria de existir outro
melhor. Marília, a cada dia, fazia crer ainda mais que a Estrela
do céu era realmente ela. Cada dia ela se aproximava mais de
mim, a ponto de não demorar muito a viver eternamente ao
meu lado. Eu, Dirceu, não podia fazer outra coisa senão
440
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
agradecer a Deus por aquele maravilhoso presente. Ela, agora,
me propõe um plano. Eu teria que escrever uma carta. Como
eu a escreveria? Custasse o que fosse, ajudá-la-ia. Nós,
finalmente, tínhamos um plano a armar contra o casal Sales e
Amarílis.
CORTA RÁPIDO PARA
Sala de jantar. Marília observa a mesa de jantar. Mesa com xícaras, bules
com chá, café e vasilhas com alguns quitutes da culinária mineira.
CORTA RÁPIDO PARA
Dirceu levanta-se da poltrona e vai até a sala de jantar. Rosa puxa uma
das cadeiras da mesa e o convida para sentar ao lado de Marília. Marília
e Dirceu, sentados lado a lado à mesa de jantar são servidos por Vívila e
Rosa.
SEQUÊNCIA 167 – EXT./INT./DIA. PRAÇA AMARRA
CAVALOS. ARRAIAL DE ANTÔNIO DIAS. CASA DE ANTÔNIO
FRANCISCO LISBOA.
Tarde. Praça amarra-cavalos. Pequena feira próxima à praça amarracavalos. Mesas improvisadas. PESSOAS BRANCAS e MORENAS
vendendo frangos vivos, bandas de porcos em mesas forradas por
folhas verdes de bananeiras, frutas, artesanatos (como arreios, sacolas,
bordados de rendas, etc), doces (rapaduras, açúcar mascável, melados
em potes, etc.). Dirceu pega o cavalo dele na praça amarra-cavalos e sai
galopando devagar. Ele, às vezes, freia o cavalo para pedir informações
a uma pessoa e outra. UMA PESSOA E OUTRA olham para a rua e
aponta uma direção e outra. UM DOS INFORMANTES aproxima-se
mais de Dirceu.
441
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
UM DOS INFORMANTES
O senhor está procurando a casa do senhor Antônio, a que
todos chamam de aleijadinho ou homem feio?
DIRCEU
Sim, procuro a casa do senhor Antônio Francisco...
UM DOS INFORMANTES
O caminho para chegar até lá é um pouco difícil, o cavalo tem
que cavalgar devagar, caso contrário, tanto o senhor, quanto o
bicho podem sofrer danos... A casa do "homem feio"
pertence à nora dele, pois desde que o pobre ficara
gravemente doente, ele somente contava com a nora e com
dois escravos que o ajudavam nos trabalhos. A casa fica
próxima ao arraial de Antonio Dias, no fundo de uma
mangueira, onde se enxerga uma fileirinha de casas sem eiras
ou beiras. Vila simples, de pessoas pobres...
DIRCEU
Muito agradecido, senhor, pelas informações...
O um dos informantes aponta para Dirceu a direção. Cavalo de Dirceu
segue a direção apontada pelo um dos informantes. Dirceu vai se
desertando, entrando numa viela acidentária, íngreme e tortuosa. A viela
é cheia de barrocas com espessas lamas e limos mal cheirosos. O cavalo
cavalga com um pouco de dificuldade. Arraial de Antônio Dias,
fileirinha de casas sem eira e nem beira. Casa simples, cercada com paus
e garranchos secos de ávores, dando-se com uma pequena chácara ao
fundo. Dirceu, montado no cavalo, aproxima-se da cerca da casa
simples e fica observando-a, todo o espaço. Quintal de frente à casa
simples. JOANA, uma jovem mulher negra, bonita, boca e dentes bem
feitos, cabelos encaracolados, caídos aos ombros, alta e magra, de
aproximadamente 28 anos de idade, recolhe roupas em um jirau de
varas. Dirceu observa Joana. Manqueira, grota ao lado da mangueira.
QUATRO MOLEQUES MORENOS, em idades diferentes, entre 12,
13, 14 anos, tocam um burro bravo na grota ao lado da mangueira,
442
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
cercando-o, perigosamente. O burro bravo dá alguns pinotes, fazendo a
poeira subir, os meninos gritam cercando-o. Joana olha para a poeira,
vai até a cerca, observa os quatro garotos mexendo com o burro bravo e
grita.
JOANA
Tem educação, não, moleques. Isso cá é hora de mexer com
burro alheio? Tomara que levem coices bravos para
aprenderem a lição de não serem tão malinos... Não estão
vendo que o bicho faz a poeira levantar e estragar-me a roupa
que acabo de lavar?
O burro bravo sai correndo pela mangueira. Os quatro moleques
morenos saem correndo atrás do burro. Joana volta ao jirau para dobrar
as roupas. Portãozinho de entrada da casa. Dirceu aproxima-se do
portãozinho de entrada da casa. Joana vê Dirceu, larga as roupas
dobradas no varal e corre para atendê-lo.
JOANA
O moço carece de alguma informação?
DIRCEU
Estou procurando a casa do senhor Antônio Francisco, o
fazedor de santo...
JOANA
Vós mercê até parece que já sabia da casa de quem procura?
Pois esta é a casa de Antônio Francisco, é cá, mesmo...
Portãozinho da casa. Joana abre o portãozinho da casa e sai. Dirceu tira
o chapéu da cabeça e limpa o suor da testa. Joana olha para Dirceu
atentamente e prossegue.
JOANA
O moço veio para encomendar serviço? Ouvi dizer que o meu
sogro está lotado de encomendas, e, como já está um pouco
443
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
doente, só pegará outras depois de cumprir as que têm cá,
compromissadas...
DIRCEU
Não, não se trata de uma encomenda, não. Eu preciso falar
com ele, creio que ele até sabe que eu haveria de procurá-lo.
Ele não está em casa?
JOANA
Está repousando. Seu Antônio trabalhou a noite toda
talhando algumas imagens numa igreja de Vila Rica. Como ele
está trocando o dia pela noite, devo a ele o respeito do
descanso...
DIRCEU
Venho de uma longa viagem, lá do Ribeirão do Meio, será se
vós mercê não poderia verificar se o senhor Antônio não está
acordado e se ele pode ou não atender-me? A prosa não será
muito longa. Diga a ele que é o filho do Zé Antônio, lá da
fazenda Ribeirão do Meio.
Portãozinho da casa. Joana fecha o portãozinho da casa e sem dizer
nada, sai correndo, pega algumas roupas dobradas no jirau de varas e
entra na casa.
CORTA PARA
Portãozinho da casa fechado. Dirceu está montado no cavalo ao lado do
portãozinho. Dirceu olha para um lado e para o outro, sem saber se fica
ali parado, esperando por Joana, ou se vai embora. Joana aparece na
porta da casa. Dirceu olha para Joana meio entusiamado. Joana corre até
o portãozinho e abre-o.
444
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOANA
Seu Antônio está acordado e pediu para vossemecê entrar.
Cavalo.
Dirceu pula do cavalo, amarra-o na cerca e entra no portãozinho
acompanhado por Joana. Dirceu e Joana entram na pequena casa escura
e sombria. Joana conduz Dirceu até os aposentos de Antônio Francisco
Lisboa. O quarto de Antônio Francisco Lisboa é pequeno, ele está
deitado em uma cama encostado a uma frágil parede de taipa. Dirceu
entra no quarto. Antônio Francisco Lisboa, ao ver Dirceu, ergue se a
cabeça. Joana desaparece na porta do quarto. Dirceu fica a sós com
Antônio Francisco Lisboa.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Dirceu! O filho do grande e bondoso fazendeiro Zé
Antônio... Até parece que eu sei porque vossemecê veio
procurar-me...
Sabia que o seu velho pai encomendou-me uma imagem de
santo, pagou-me em uma boa dosagem de ouro e nunca veio
buscá-la?
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
(tosse dibilmente e cospe numa velha escarradeira que está ao
lado da cama)
Creio que vieste buscá-la. Que pena, a imagem se encontra na
minha casa, lá do outro lado da cidade e é tão grande que...
Joana aparece na porta do quarto com um tamborete nas mãos. Antônio
Francisco Lisboa se interrompe ao ver Joana aparecer na porta do
quarto com o tamborete. Joana entrega o tamborete para Dirceu sentarse. Dirceu ajeita-se o tamborete, sentando-se próximo à cabeceira da
cama de Antônio Francisco Lisboa. Antônio Francisco Lisboa olha para
Joana e sorri.
445
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Ela é a minha nora, Joana. Ela é uma mulher de alma muito
boa e generosa. Foi ela quem inspirou-me a imagem de Santa
Helena, que hoje ocupa um dos nichos da igreja de Nossa
Senhora do Rosário. Quem vê a imagem de perto,
reconhecerá que o rostinho dela é o da Joana esculpida...
Dirceu e Antônio Francisco Lisboa olham para Joana. Ela,
envergonhada, tapa o rosto com as mãos e sai do quarto de fininho.
CORTA RÁPIDO PARA
Joana, à parte, na pequena sala da casa, resmungando.
JOANA
Ora, seu Antônio, como ousa dizer tal besteira. Todos, cá em
Vila Rica sabem que a imagem de Santa Helena, nada mais era
que a Helena, sua ex-amante, que ao vê-lo deformado pela
doença fugiu de casa procurando amor nos braços de um
moço da guarda conhecido como João Romão.
CORTA PARA
Antônio Francisco Lisboa sofre outro ataque de tosse. Dirceu fica
olhando para ele um pouco assustado.
DIRCEU (VOICE OVER)
Enquanto Antônio Francisco tossia e se retorcia no
desajeitado estrado de madeira, pausei pensando na imagem
encomendada a ele pelo meu pai. Na capela da fazenda não
havia imagens e o pequeno nicho do beatífico carecia de uma.
Quem sabe a imagem encomendada pelo meu pai, a ele, não
seria a de uma padroeira da capela e de toda a região? Creio
não me lembrar de padroeiro algum escolhido pelo povo para
representar a devoção da capela da fazenda. Assim que a tosse
de Antônio Franciso cessou, perguntei-o sobre a imagem.
446
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
DIRCEU
Vós mercê poderia dizer-me qual foi a imagem encomendada
pelo senhor meu pai, a vós mercê?
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Ah, sim, claro. Vossemecê não somente verá como terá a
imagem em suas mãos...
DIRCEU
E qual é a imagem? Trata-se de qual santo ou padroeiro...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Vossemecê saberá qual é a imagem, no dia que vê-la. Pode
confiar em mim. Fiz um trato com o senhor seu pai e não vou
faltar...
DIRCEU
Vós mercê pode informar-me sobre o paradeiro da imagem de
São Miguel Arcanjo?
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
(fecha os olhos, mexe o corpo, solta dois ou três gemidos,
senta-se na cama e responde secamente)
Não sei de paradeiro de anjo algum... São Miguel Arcanjo,
decerto deve está no céu...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
(sorri ironicamente)
Não é lá o paradeiro dos anjos e santos?
DIRCEU
Mas, nós estamos falando em imagens, criação do homem,
como arte, Antônio Francisco...
447
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Taí, gostei do que o rapaz me disse a arte como criação do
mundo... Sabe que o seu Claúdio sempre me disse isso?
Quanto a estátua do anjo, o São Miguel Arcanjo, deve está
enfiada em um porão de alguma igreja. Isso deve ter
acontecido desde a expulsão dos jesuítas da colônia, em 1759.
Creio que essa imagem sumiu da igreja em 1762, quando
desde o ano anterior o rei de Portugal confiscava os bens dos
padres. Talvez, alguém devoto ao anjo, com medo de que a
estátua fosse levada para Portugal, tirou-a do nicho da capela e
escondeu-a em algum lugar seguro...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
(sorri ironicamente)
Será se essa imagem não estaria escondida na capela da sua
fazenda?
DIRCEU
Não, lá não há nenhuma imagem no altar.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Pois agora haverá uma lá, senhor Dirceu. Espero que faça um
nicho bonito para colocá-la.
DIRCEU
Há um nicho nela, se não me falha a memória, pertencia a São
Miguel Arcanjo. Ele foi tirado de lá, quando o padre
Fernandez presenteou-o à capela de Sant'Ana. Pretendo
encontrá-la.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
(olha para Dirceu com certa curiosidade)
Está em busca do segredo que há em sua capela, não é?
448
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Sim, busco indícios, conforme algumas coisas começaram a
acontecer por lá...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
E essas coisas que começaram a acontecer por lá, tem a ver
com a imagem que vossemecê está procurando?
DIRCEU
Sim, ela pertenceu ao padre espanhol que construiu a capela e
morreu dias depois.
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Eu conheci a imagem. Ela ficava no principal nicho da Capela
de Sant'Ana, em Vila Rica. O povo a venerava, mas...
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
(faz uma pausa, encosta a cabeça em um travesseiro alto,
estica as pernas e geme de dor)
A imagem sumiu...
DIRCEU
Como era essa imagem, Antônio Francisco?
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Fiz uma imagem, igualzinha à do anjo para a igreja de Nosso
Senhor Bom Jesus de Matosinhos. O meu falecido pai dizia
para mim que uma arte bem trabalhada ninguém nunca
esquece. A imagem de São Miguel Arcanjo trazida pelo padre
espanhol foi esculpida por um artista de Andaluzia, contendo
todas as perfeições atribuídas ao anjo.
CORTA PARA
Antônio Francisco Lisboa esculpindo uma imagem de São Miguel
Arcanjo, em pedra sabão. Várias imagens de São Miguel Arcanjo,
449
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
conforme a concepção de vários artistas, desde o renascimento, até os
nossos dias atuais.
DIRCEU (OFF)
Antônio Francisco descreveu-me a imagem de forma
absoluta, como se estivesse tocando nela. Eu imaginava que
em algum lugar dessa imagem estava escondida uma
pequenina chave, capaz de desvendar o grande mistério
possivelmente contido dentro do altar da capela. Lá, decerto,
não havia maribondos, como eu dissera a ele, haveria algo
mais impressionante, talvez um mistério capaz de pertencer
somente à Santa e Madre Igreja Católica. Isso me deixava
intrigado. Se o mestre aleijadinho não oferecia pistas sobre
como encontrar a imagem a minha missão em questioná-lo
encerraria ali mesmo, naquele quarto escuro e mal ventilado.
CORTA PARA
ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA
Quanto à imagem encomendada pelo senhor seu pai, Zé
Antônio, espere na fazenda. Prometo mandar os meus
escravos levá-la até lá, para vossemecê. A entrega apenas
custará a vossemecê alguns patacões.
DIRCEU
Não importo, Antônio Francisco, mande-me a imagem
encomendada pelo senhor meu pai, para a fazenda, que eu
pagarei todas as despesas da viagem...
Dirceu põe-se de pé, enfia a mão na algibeira da calça e tira alguns
patacões. Patações nas mãos de Dirceu. Ele entrega os patacões a
Antônio Francisco Lisboa. Antônio Francisco Lisboa recebe as moedas
com um pouco de dificuldade. Porta do pequeno quarto. Dirceu, ainda
de pé, olha para a porta do pequeno quarto e olha para Antônio
Francisco Lisboa.
450
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Está tarde e preciso voltar á fazenda. Portanto, despeço-me
cá, Antônio Francisco, contando em receber por lá, a
encomenda do senhor meu pai...
SEQUÊNCIA 168 – INT./DIA/NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. VÁRIOS.
Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Curral. Dirceu, Miliquito, Ambrósio
e Cirilo apartam as vacas para tirarem o leite. Campina verde com bois
pastando. Dirceu, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro tocam os bois na
campina verde.
DIRCEU (VOICE OVER)
Minha vida em poucos dias resumia-se em acordar cedo,
ajudar os rapazes nas tarefas matinais da fazenda...
FADE OUT / FADE IN
Tarde. Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado na mesa de canto.
Pergaminho e tinteiro na mesa de canto, do quarto. Pena em uma das
mãos de Dirceu.
DIRCEU (VOICE OVER)
E a se trancar o resto do dia no meu quarto, pois Marília
incumbiu a mim a tarefa principal de seu plano. Eu teria de
elaborar uma carta, capaz de impressionar o cunhado dela, a
ponto de fazê-lo aprovar o nosso namoro.
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir.
451
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 166 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA
RICA. PORTA DA CASA DE DOM MANUEL.
MARÍLIA
O plano, conforme eu expliquei é muito simples, Dirceu.
Basta vós mercê escrever uma carta dizendo que o tal
pretendente está passando por dificuldade e pede
recursos para passagem de Marsalha para cá, além de
estadia e alguns dotes para recomeçar a vida. Diga
também que para ele casar-se comigo e morar cá em
Vila Rica, ele vai querer um bom investimento em terras
para a plantação de uma grande videira...
DIRCEU
Será se eu consigo, Marília?
MARÍLIA
Confio no teu talento, Dirceu. Escreva a carta, entregue a
mim e o resto do plano ficará por minha conta...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 168.1 - EXT./DIA/ QUARTO DE DIRCEU.
Manhã. Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado na mesa de canto.
Pergaminho e tinteiro na mesa. Pergaminho nas mãos de Dirceu. Dirceu
lê algumas linhas escritas no pergaminho e reprova. Ele faz uma cara
ruim, embola o pergaminho e joga-o em um dos cantos da mesa. Gaveta
superior da pequena mesa. Dirceu abre a gaveta e pega outro
pergaminho, entendendo-o na mesa. Pena em uma das mãos de Dirceu.
Ele molha a pena no tinteiro e volta a escrever algumas linhas na folha
do pergaminho. Ele para de escrever e coça a cabeça.
452
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER
Meu Deus, há tempo estou tentando escrever esta carta e não
consigo. Custe o que custasse, eu passaria o resto das minhas
manhãs a escrever até conseguir. O meu feitio teria de surtir
um forte efeito, tal qual um feitiço, capaz de tornar a vingança
de Marília contra a irmã e o cunhado, deliciosa. Há dias, eu
pensava, pegava a pena, escrevia no papel, lia, revisava e nada.
Eu pensava em desistir e fazer Marília inventar outro plano.
POLTRONA DA MESA. DIRCEU COÇA A CABEÇA E FECHA
OS OLHOS.
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir.
SEQUÊNCIA 166 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA
RICA. PORTA DA CASA DE DOM MANUEL.
DIRCEU
Porque vós mercê não pensa em outro plano, Marília. Esse
parece tão complicado...
MARÍLIA
Como inventar outro plano? Isso não, Dirceu. A única
coisa que temos de concreto para contra argumentar com
o Sales e com a Amarílis é essa bendita carta que recebi
das mãos de Colatino Durães... Quer arma melhor do que
essa! O Sales está aguardando uma resposta e, portanto,
aproveitaremos para dar-lhe outra que não seja igual a da
carta. Quero assustar a ele e a minha irmã, somente isso!
VOLTA PARA
453
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 168.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA/ QUARTO
DE DIRCEU.
Quarto de Dirceu. Dirceu sentado na mesa de canto abre os olhos, sorri
e olha para o pergaminho em branco em cima da mesa. Ele fala por
solilóquio, enquanto olha para o pergaminho em branco.
DIRCEU.
Eu, infelizmente, tive de aceitar esse desafio... E o talento,
falta-me o talento, Marília.
FADE OU/FADE IN
Madrugada. Dirceu está dormindo e acorda de repente. Ele põe-se de
pé, acende o candeeiro e corre para a mesa de canto. Pergaminho
estendido na mesa. Pena em uma das mãos de Dirceu. Ele molha a pena
no tinteiro e começa a escrever linhas e mais linhas na folha do
pergaminho. Ele para de escrever, lê rapidamente as linhas escritas,
sorri, balança a cabeça afirmamente e continua escrevendo. Pergaminho
cheio de linhas escritas. Gaveta superior. Dirceu pega outro pergaminho
e continua escrevendo sem parar.
DIRCEU (VOICE OVER)
Certa noite, como se a feiticeira Circe estivesse presente em
meu quarto oferecendo-me o seu feitiço, levantei-me de
súbito do catre, acendi o candeeiro, muni de pena, tinteiro e
papel e lancei-me na mesa para escrever. Finalmente as ideias
concatenaram-se com o meu pensamento, concretizando no
papel uma carta contendo na medida certa o conteúdo que
Marília e eu precisávamos. Li, reli, revisei e, pacientemente,
passei a carta a limpo.
454
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CAPÍTULO 10
SEQUÊNCIAS 169-184
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Marília
Rosa
Moradores de algumas casas dos arredores das igrejas
Senhora branca (60 anos)
Senhor branco (70 anos)
Zé Tomázio
Sales
Dois rapazes negros (fazenda de dom Manuel)
Paulo
Miguelim
Bauduim
Hipólito
Inácia
Quitéria
Eulina
Cirilo
Miliquito
Zé da Viúva
Raimundo Sobreiro
Ambrósio
Josias (corpo de Hipólito)
Pai de dom Miguel(corpo de Hipólito)
Sebastiana
Alceu
Endimião
Trácio
Antenor
Estela
Fiéis (sitiantes e fazendeiros)
Homens e mulheres (espectadores da Casa da Ópera)
Amarílis
Orquestra (Casa da Ópera)
455
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 169 – EXT. VILA RICA. CHAFARIZ PRINCIPAL
DE VILA RICA.
Manhã. Vila Rica. Chafariz. Marília e Dirceu se encontram no chafariz
principal de Vila Rica. Marília e Dirceu olham para todos os lados e
beijam-se rapidamente. Alforje entre os peitos de Dirceu. Ele tira os
pergaminhos dobrados do alforje e mostra-os para Marília.
DIRCEU
(entrega os pergaminhos dobrados para Marília)
Cá está dona Marília, o resultado executado da primeira parte
do nosso plano.
MARÍLIA
(abre os pergaminhos e os lêem rapidamente)
Que talento, Senhor Dirceu!
(sorri sutilmente)
Meu cunhado nunca mais meterá a besta de querer casar-me
com quem ele não conhece...
Dirceu e Marília riem juntos olhando para os pergaminhos.
DIRCEU
E o pior que o tal noivo nem sequer existe...
MARÍLIA
A segunda parte do plano caberá a mim, Dirceu. Espero ter o
mesmo talento que o de vossa senhoria...
Chafariz derramando água. Marília e Dirceu beijam-se e bebem da água
do chafariz.
DIRCEU
Se por ventura, essa fonte for a fonte dos amantes, que a água
dela purifique as nossas almas e os nossos corações para que o
nosso amor seja finito...
456
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Fonte dos amores, lindo, não? Esta fonte, quem sabe, não
será dado a todos como a fonte de Dirceu e de Marília...
DIRCEU
E todos que vierem de qualquer parte dessa colônia e do
mundo, ao beber da água dessa fonte há de vivenciar na alma
todas as experiências lindas e surpreendentes do amor...
Rua próxima ao chafariz. Rosa vem correndo pela rua em direção à
Marília e Dirceu. Marília vê Rosa, foge dos braços de Dirceu e vai ao
encontro dela. Dirceu vai também atrás de Marília. Rosa puxa o fôlego,
respira fundo e olha para Marília confusa.
ROSA
A irmã de sinhazinha, a senhora dona Amarílis entrou em
trabalho de parto. As parteiras estão todas lá em casa para
aparar a criança. Vívila pediu para eu chamar a sinhazinha...
MARÍLIA
Fez bem Rosa, fez bem...
MARÍLIA
(olha para Dirceu)
Tenho de ir, Dirceu, a minha irmã entrou em trabalho de
parto...
DIRCEU
Vai sim, Marília, mais tarde passarei rapidamente na sua casa
para ter notícias da senhora sua irmã. Se permitirem a mim,
portarei a notícia ao Sales, lá na fazenda dele...
MARÍLIA
Se fizeres isso, será de grande utilidade, Dirceu. Desde já
agradeço em nome dessa família, qual também vós mercê virá
a fazer parte...
457
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Creio que os deuses estão torcendo para que isso aconteça.
Vá, Marília, vá! Logo a criança estará apontando-se para o
mundo e precisa de estar perto de uma tia bonita e carinhosa...
MARÍLIA
Creio que eu serei a titia mais feliz do mundo!
CANTO DE UMA CASA COM EIRA E BEIRA. UM PASSARINHO
NO NINHO DÁ COMIDA AOS FILHOTES PELO BICO.
SEQUÊNCIA 170 – EXT./INT./DIA. VILA RICA. IGREJAS DE
VILA RICA. CAPELA DE SANT´ANA.
Igrejas de Vila Rica. Dirceu entra em algumas igrejas de Vila Rica e
sonda ligeiramente os altares delas.
CORTA RÁPIDO PARA
Portas de algumas casas dos arredores das igrejas visitadas por Dirceu.
Dirceu bate nas portas de algumas casas dos moradores. Ele conversa
um pouco com cada pessoa que o atende, mas ninguém sabe falar sobre
a imagem de São Miguel Arcanjo.
CORTA RÁPIDO PARA
Capela de Sant´Ana. Dirceu entra na capela de Sant´Ana, aproxima-se
do altar fixa os olhos no nicho principal da capela, onde tem a imagem
de Nossa Senhora Sant'Ana.
CORTA RÁPIDO PARA
Dirceu bate nas portas de algumas casas de moradores próximos à
capela de Sant`Ana. Entre as pessoas que o atende, somente em uma
458
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
das casas uma senhora branca, de aproximadamente 60 anos é quem lhe
dá a devida atenção.
DIRCEU (VOICE OVER)
Aproveitei o resto do dia para visitar algumas igrejas da cidade
e sondar os altares delas em busca da imagem de São Miguel
Arcanjo. Não a encontrava em igreja alguma. Localizei
pessoas das ordens terceiras para instigá-las sobre o paradeiro
da imagem e, somente uma senhora, moradora próxima à
capela de Sant´Ana, foi capaz de relatar-me dando-me toda a
certeza de que a imagem encontrava-se em Vila Rica.
CORTA PARA
SENHORA BRANCA
Vós mercê está procurando pela imagem do santo anjo, o
Arcanjo de Deus?
DIRCEU
Precisamente, da imagem de São Miguel Arcanjo, que,
segundo consta na história ela deveria estar no nicho principal
da capela de Sant’Ana, qual presente foi de um padre
espanhol...
SENHORA BRANCA
Dessa história, sei não, senhor. Tudo o que eu sei e se é que
posso ajudá-lo, tem haver com o homem feio...
DIRCEU
O senhor Antônio Francisco?
SENHORA BRANCA
Sim, o fazedor de santo, o seu Antônio...
459
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Então eu farei gosto de ouvir a história que a senhora tem
para me contar...
SENHORA BRANCA
Então vá até a capela e aguarde por mim. Lá contarei a
vossemecê tudo o que sei.
CORTA PARA
Capela de Sant`Ana. Bancos da capela de Sant´Ana. Dirceu e
a senhora branca estão sentados em um dos bancos da capela
de Sant´Ana.
DIRCEU
A imagem de São Miguel Arcanjo teria de estar naquele altar
principal da capela.
SENHORA BRANCA
Sim, mas não de tudo errado, pois no altar está a imagem de
Nossa Senhora de Sant´Ana, a quem a capela homenageia...
DIRCEU
Se a imagem de São Miguel Arcanjo foi tirada do altar para
colocar essa outra imagem, alguém terá de saber onde ela
está...
SENHORA BRANCA
Não sei se vossemecê sabe, mas tudo aconteceu quando a
capela de Sant’Ana carecia de uma pequena reforma.
DIRCEU
Então...
SENHORA BRANCA
Então, a irmandade contratou o senhor Antônio para executar
os serviços.
460
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
O senhor Antônio Francisco?
SENHORA BRANCA
O próprio. Ele fez os reparos necessários na capela e, quanto
ao pagamento, que seria em ouro, o chefe da irmandade
lesou-o. Daí, dizem que ele, muito nervoso, pediu aos
escravos que subissem no nicho do altar e pegassem para ele a
imagem do Santo Anjo.
DIRCEU
Então a imagem está com o senhor Antônio Francisco?
SENHORA BRANCA
Sim, ele a levou para casa, dizendo devolvê-la quando a
irmandade se preocupasse em pagá-lo. Ninguém registrou
queixa alguma na cadeia e nem os padres ligaram com o fato.
DIRCEU
Então simplesmente colocaram no altar a imagem de Nossa
Senhora Sant´Ana e pronto!
SENHORA BRANCA
Não, não foi bem assim. Foi meses depois, quando uma
família recém-chegada de Portugal doou a imagem de Nossa
Senhora Sant'Ana à capela. Colocaram-na no nicho principal
da igreja, onde ficava a imagem do Santo Anjo e ninguém
mais comentou essa história...
Frontifício e arredores da capela de Sant´Ana. Dirceu anda devagar
observando os arredores. Ele conversa com algumas pessoas brancas,
idosas. Um SENHOR BRANCO, de aproximadamente 70 anos, passa
por Dirceu. Dirceu para diante do senhor branco para pedir-lhe
informações.
461
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
A história da mulher deixou-me intrigado. Por que o aleijado
escondeu de mim essa informação? Pensei em procurá-lo, mas
deixei para outro instante. Quem sabe eu não a encontraria
em alguma igreja da região? Se ele trabalhava na confecção de
imagens, não era de duvidar que ele vendesse a imagem do
anjo para alguma igreja.
CORTA PARA
SENHOR BRANCO
Tudo o que sei, meu rapaz, é o que se propaga por aí. Dizem
as boas ou más línguas que o seu Antônio vendeu a imagem
de São Miguel Arcanjo para os fiéis da igreja de Matosinho...
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Antônio Francisco Lisboa disse a mim que havia esculpido
uma imagem semelhante a do anjo, para essa igreja. Não
custava a mim conferi-la...
SEQUÊNCIA 171 – INT./DIA. VILA RICA. RUA DE VILA RICA.
PORTÃO DA CASA DE DOM MANUEL.
Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Venda de Zé
Tomázio. Dirceu compra alguns mantimentos na venda de Zé Tomázio.
Cavalo de Dirceu com um saco cheio de mantimentos amarrado na
garupa. Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga em uma das ruas de Vila Rica
até chegar ao portão da casa de dom Manuel. Marília é quem atende
Dirceu no portão.
DIRCEU
Após sondar algumas igrejas e perguntar a algumas pessoas
sobre a imagem do santo Anjo, fiz algumas compras na venda
do Zé Tomázio e, como eu havia prometido à Marília, passei
462
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
rapidamente na casa dela para obter notícias sobre a irmã. A
criança estreava o mundo. Era um menino. Marília, radiando
felicidade pediu para eu portar a notícia ao pai da criança, na
fazenda dele. Eu daria naquela tarde mesmo a notícia para
Sales.
SEQUÊNCIA 172 - INT./EXT. DIA. FAZENDA DE DOM
MANUEL.
Pôr-do-sol. Fazenda de dom Manuel. Dirceu está na varanda da casa
aguardando por Sales. Sales chega pelas laterais do quintal da fazenda e
vê Dirceu na varanda da casa aguardando por ele. Sales e Dirceu
cumprimentam-se simultaneamente.
SALES
Senhor Dirceu? O que o faz está por cá a estas horas?
DIRCEU
Desculpe-me Sales, mas é que hoje estive em Vila Rica e
fizeram-me portador de uma notícia boa a vós mercê...
SALES
Notícia boa?
DIRCEU
A TUA ESPOSA DEU A LUZ A UM MENINO, HOJE, EM VILA
RICA...
SALES
(senta-se em uma das poltronas espalhadas na varanda)
Meu filho nasceu? É um menino! Dê-me detalhes, como está
a minha esposa e o meu filho, senhor Dirceu...
463
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não, não tenho outras notícias, eu estava em Vila Rica e
alguém pediu para que eu comunicasse a vós mercê que o seu
filho havia nascido e estava tudo bem, tanto a mãe quanto a
criança.
Sales levanta-se da poltrona, sai da varanda e anda pelo quintal de frente
da fazenda gritando pelos escravos deles. Dirceu continua na varanda,
de pé, apenas observando-o
SALES
Miguelim, Arouxe, Bauduim, alguém prepara-me um cavalo...
(volta para junto de Dirceu, na varanda)
Veja só, são uns desgraçados, aparece ninguém, quando
preciso.
Sales volta para a varanda da casa. DOIS RAPAZES NEGROS, de
aproximadamente 20 anos de idade, chegam correndo no quintal de
frente da fazenda e vão até a varanda da casa. Eles aproximam-se de
Sales. Sales olha furioso para os dois rapazes negros.
SALES
Chamei por Miguelim, Arouxe e Bauduim e nada. Onde esses
negros se meteram? Quero já um cavalo pronto para uma
viagem. Paulo, onde está o benfeitor Paulo?
UM DOS DOIS RAPAZES NEGROS
Paolo tá na fazenda não nhô. Paolo saiu a cavalo faz tempão.
SALES
Diabo, o desgraçado deve estar enrabichado com alguma
negra no mato. O desgraçado desde quando veio morar nesta
fazenda, se engraçou com uma mulatinha a ponto de deixar os
serviços desta fazenda de lado. Tanto serviço cá, tanto serviço
cá e ele enrabichado com a mulata.
464
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Os dois rapazes negros saem correndo pelas laterais do quintal da
fazenda. Sales anda de um lado para o outro na varanda da casa.
SALES
Meu filho nasce e eu não posso ir à cidade para vê-lo...
DIRCEU
Por que não?
SALES
E se este bando de negros cretinos fugirem da fazenda?
DIRCEU
Está a tratá-los a ponto de eles fazerem isso?
SALES
Não sei. São negros, parecem bichos. Em bicho a gente não
confia.
DIRCEU
Nos meus, eu confio. São pessoas iguais a mim. Vou a Vila
Rica ou a qualquer parte do mundo se eu quiser e eles tomam
conta de tudo na fazenda.
SALES
(nervoso)
Isto cá é momento de dar-me lição, senhor Dirceu?
AROUXE, MIGUELIM e BAUDUIM, negros, altos e magros, de
aproximadamente 23 a 25 anos de idade, aparecem no quintal de frente
da fazenda trazendo o cavalo de Sales, pronto para a viagem. Sales vê o
cavalo pronto e olha para Dirceu.
465
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
O meu cavalo, o meu cavalo está pronto, agora falta chegar o
desgraçado do Paulo...
Cancela da fazenda de dom Manuel. PAULO, um rapaz loiro, cabelos
cacheados e olhos escuros, de 25 anos de idade, está na estrada,
aproximando-se na cancela da fazenda. Ele cavalga em um burro manso
em direção à cancela da fazenda de dom Manuel. Miguelim vê Paulo
aproximando-se da cancela da fazenda e corre para abri-la. Bauduim
corre para a varanda da casa da fazenda, gritando.
BAUDUIM
Nhô Paolo, nhô Paolo! Nhô Paolo vem lá na estrada, nhô
Sales.
SALES
(olha para a direção da cancela da fazenda e vê Paulo
troteando no burro manso)
Diabo de idiotice, o desgraçado do Paulo vem lá troteando
num burro manso. Os dois bichos parecem que não tem
pressa de nada...
DIRCEU
Calma Sales, calma!
Sales olha para o quintal de frente da fazenda e coloca o chapéu na
cabeça. Arouxo segura o cavalo de Sales pela rédea. Sales olha para o
cavalo dele e sai da varanda da casa para o quintal. Sales monta no
cavalo dele e sai cavalgando rápido até a cancela da fazenda. Cancela da
fazenda aberta. Sales encontra-se com Paulo na cancela da fazenda.
SALES
Vou até Vila Rica, acabo de receber notícias de que a minha
esposa deu a luz a uma criança.
466
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PAULO
Vou já preparar o meu cavalo para ir com vossemecê, senhor
Sales.
SALES
Não, vós mercê tem de ficar para vigiar os negros. Vai que
alguns deles fogem e pronto! Está armado o prejuízo... Vê
senão fica no mato enrabichado com a crioula...
Paulo abaixa a cabeça e sai troteando no burro para dentro do quintal da
fazenda. Sales espora o cavalo e sai da cancela cavalgando em direção à
estrada da capoeira. Dirceu corre, monta no cavalo dele e também sai
em direção a Sales. Cancela da fazenda ainda aberta. Dirceu atravessa a
cancela da fazenda e num instante atalha Sales, na capoeira. Dirceu frea
o cavalo frente a Sales. Sales também frea o cavalo dele.
SALES
O que estás fazendo, senhor Dirceu?
DIRCEU
Não deves pegar a estrada, sozinho. Está anoitecendo e...
SALES
Está preocupando-se com um ex-coronel e combatente da
milícia? É perda de tempo, senhor Dirceu. Sei como defenderme. Já enfrentei muitas empreitadas sozinho em São Sebastião
do Rio de Janeiro.
DIRCEU
Cá, por estas terras, a ambição é filho do cão. Se caíres numa
emboscada, sozinho, não há como defender-te, Sales.
SALES
Isso é maçada!
467
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não, não é maçada! Queres que eu peça um dos meus rapazes
para acompanhar-te? Farei levar-te por uma estrada mais
próxima à Vila Rica.
SALES
E qual é a estrada?
DIRCEU
Não tenho porque ensinar-te. Caso queiras chegar rápido a
vila, tomarei as devidas providências.
SALES
(faz um "sim" com a cabeça)
É por meu filho, apresso-me em conhecê-lo. É também por
minha mulher, apresso-me em saber se ela passa bem...
DIRCEU
Entendo, somente peço para que tenhas cautela. Então, se
queres mesmo chegar logo em Vila Rica, siga-me até a minha
fazenda.
SALES
Mas...
DIRCEU
É através da minha fazenda que se entra na estrada secreta
que vai até Vila Rica...
SALES
Se é assim...
Dirceu e Sales afrouxam as rédeas dos seus respectivos cavalos. Dirceu
vai um pouco a frente. Sales segue Dirceu. O sol se esconde por trás do
horizonte.
468
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 173 – INT./EXT./DIA/ NOITE. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. VARANDA DO CASARÃO.
Anoitecendo. Fazenda Ribeirão do Meio. Varanda. Sanfona de Farias
nas mãos de Hipólito. Hipólito toca a sanfona de Farias. Inácia, Quitéria
e Eulina cantam algumas modinhas. Cirilo, Miliquito, Zé da Viúva,
Raimundo Sobreiro e Ambrósio estão na varanda ouvindo Hipólito
tocar a sanfona e as mulheres cantarem modinhas. Cancela da fazenda.
Dirceu entra pela cancela da fazenda em seu cavalo. Sales olha para a
varanda e vê o pessoal da fazenda alegre, cantando e tocando sanfona.
SALES
O pessoal desta fazenda parece feliz. Onde já se viu negros
tocando, cantando e conversando felizes assim. Dirceu não é
lá um senhor muito normal. Eu, por minha vez, jamais
aceitarei isso em minha fazenda. Lugar de negro é no trabalho
ou na senzala. Comigo negro canta e dança é no chicote.
Dirceu chega perto da varanda e pula do cavalo. Miliquito, Cirilo,
Ambrósio e Raimundo Sobreiro correm ao encontro de Dirceu.
DIRCEU
Não se preocupem meus amigos, está tudo bem. Apenas
estou indo novamente a Vila Rica...
CIRILO
Nhozinho tá doido, tá? Acabou de chegar, deixou cá as
compras, foi até a fazenda de nhô Sales e agora vai de novo
para Vila Rica? Nhô Dirceu deve está cansado.
DIRCEU
Quem está cansado é o meu cavalo, Cirilo.
Todos dão risadas. Dirceu olha para Ambrósio e Miliquito.
469
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Ambrósio, Miliquito, dessarreiam o meu cavalo e solte-o no
pasto.
(olha para Cirilo)
Cirilo prepare o seu cavalo para a viagem...
CIRILO
Nhô sim é prá já!
Cirilo corre em direção ao curral. Raimundo Sobreiro olha para a
cancela e vê Sales. Dirceu olha para Raimundo Sobreiro e bate as mãos
nas costas dele.
DIRCEU
Vós mercê, Raimundo, pode se divertir com os outros. Não
carece preocupação alguma...
RAIMUNDO SOBREIRO
Tem alguém lá na cancela esperando vós mercê, senhor
Dirceu? Quem é?
DIRCEU
É o coronel Sales. Ele não quis entrar...
RAIMUNDO SOBREIRO
Que mal faz ele, cá?
DIRCEU
Esperando que eu lhe faça um grande bem, Raimundo. A
esposa dele pariu hoje, lá em Vila Rica. Vou acompanhá-lo
para que ele não vá só a Vila Rica para ver a esposa e
conhecer o filho.
RAIMUNDO SOBREIRO
Nhô Dirceu é homem muito bom, porque para prestar favor
para um sujeito daquele...
470
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu não dá resposta para Raimundo Sobreiro. Dirceu simplesmente
atravessa a varanda e entra no casarão. Quarto de Dirceu. Dirceu abre
uma enorme gaveta do armário e pega uma pedra de diamante,
enrolando-a em um pedaço de pano. Dirceu sai novamente do casarão
para a varanda. Dirceu vê Cirilo na porta da varanda montado no cavalo
dele. Dirceu cochicha para Cirilo.
DIRCEU
Dê-me o teu cavalo, Cirilo, sou eu quem vou acompanhar o
coronel Sales até Vila Rica, Cirilo.
Cirilo pula-se do cavalo e o entrega a Dirceu. Dirceu monta no cavalo,
tira o chapéu acena para os rapazes da fazenda e vai ao encontro de
Sales, na cancela.
DIRCEU
Vamos!
SALES
Vós mercê fará a mim companhia?
DIRCEU
E para que serve os amigos?
SALES
E os negros, vós mercê não tem medo de que eles fujam?
DIRCEU
Fugir para onde, se cá eles tem tudo que nós precisamos.
Temos o dia para o trabalho e a noite para o descanso. Um
dia e outro a gente inventa rezar e festejar com muitas iguarias
gostosas e bebidas iguais a dos deuses...
SEQUÊNCIA 174 – EXT./NOITE. ESTRADA DA SERRA DO
ITA-CORUMI.
471
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Noite caindo. Serra do Ita-corumi. Dirceu e Sales cavalgando pela
estrada da serra do Ita-corumi.
DIRCEU (VOICE OVER)
Sales e eu pegamos a estrada da serra do Ita-corumi. Durante
a viagem Sales contava-me sobre as suas aventuras de milico.
O pai sonhava mandá-lo para a França, onde ele estudaria
para doutor, mas como vieram os tempos difíceis, acabaram
perdendo as principais economias, impossibilitando a
realização do sonho. Ele confessava a mim que não pensava
em estudar, sempre sonhava tornar-se um grande fazendeiro,
dono de escravos, bois, vacas, cavalos. Finalmente ele estava
sentindo-se realizado com a vida que levava na fazenda,
apesar da fraca experiência em lidar com a propriedade.
Aproveitei a espontaneidade dele ao contar-me uma coisa e
outra e atinei a perguntá-lo sobre a mudança ou o estrago da
pequena fonte do ribeirão feito através do comando dele.
Alto da serra do Ita-corumi. Clarão da lua. Dirceu e Sales cavalgando
pela estrada do alto da serra do Ita-corumi.
SALES
Ora, ora, estavas procurando ouro...
DIRCEU
Mas naquela fonte do ribeirão não tem ouro...
SALES
Eu estava passeando numa bela tarde pela fazenda e resolvi
mergulhar na fonte. Quando sentei numa pedra das margens
do rio, encontrei uma pequena pepita de ouro...
DIRCEU
E encontraste mais ouro?
472
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
Não. Eu pedi aos negros que cavassem para eu fazer uma
pesquisa, mas até o momento não encontrei mais nada. Estou
pensando em mandar os negros cavar mais fundo, há lugares
em que o ouro se esconde no interior da terra, feito minhocas
no inverno.
DIRCEU
Não convém fazeres isso.
SALES
Por quê?
DIRCEU
Até o momento, sabemos que não há ouro nessa parte da
região. A terra é de cultura, própria para o plantio.
SALES
Mas eu encontrei uma pepita.
DIRCEU
Encontrar uma pepita não significa que exista ali uma mina...
SALES
Creio que...
DIRCEU
Posso revelar-te um segredo?
SALES
(aperta a rédea do cavalo e volta o corpo para o lado de
Dirceu, mostrando-se curioso)
Qual é o segredo?
473
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(dá risadas)
A pepita de ouro que encontraste na margem da fonte,
pertencia a mim.
SALES
Mas a fonte pertence à minha propriedade...
DIRCEU
Disso eu sei, mas fui eu quem atirou a pepita de ouro ali.
SALES
Como?
DIRCEU
Encontrei certa tarde com Marília, lá na fonte e como eu
estava com a pepita de ouro em um dos bolsos da minha
calça, eu dei-a de presente...
SALES
A dona Marília perdeu a pepita de ouro na fonte?
DIRCEU
Não, ela não aceitou o presente, então não sei porque, atirei a
pepita de ouro longe.
SALES
Vós mercê fez isso?
DIRCEU
Fiz e a Marília chamou-me de louco. Eu não liguei, naquele
momento ela era mais valiosa para mim do que qualquer
pepita de ouro ou pedra de diamante. Ela era a minha joia e
estava ali, na fonte sorrindo e contando-me suas histórias...
474
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Noite. Estrada da serra do Ita-corumi. Sales alinha-se o cavalo rente ao
cavalo de Dirceu.
SALES
Por que não constaste a mim isso antes?
DIRCEU
Eu lá sabia que estavas procurando ouro. Eu pensei que
estavas transformando a fonte em um grande rio...
Dirceu e Sales soltam uma enorme gargalhada.
SALES
Rio, nada, eu não estava a transformar a fonte em nenhum
rio, eu estava era sonhando com o diabo do ouro...
DIRCEU
Sabia que ouro é um metal perigoso, a ponto de causar uma
febre incurável no homem? Quanto mais o homem encontra
ouro, mais ele quer. Se não encontra, fica sonhando dormindo
e acordado até se tornar obsessivo, doente. Já ouviste a
história do bandeirante, Fernão Dias? É um bom exemplo
disso. Ele, audacioso e desbravador, explorou o sertão de
Minas Gerais sonhando em encontrar esmeraldas. Dizem que
ele encontrou umas pedras verdes, mas não passavam de
meras turmalinas. O coitado morreu enganado. O meu pai
contou para mim que ele morreu no arraial de Sumidouro,
próximo a Sabarabussu, atacado por uma terrível febre,
delirando com essas pedras.
SALES
(arregala os olhos para Dirceu)
Existe esta história é? Já ouvi falar dos bandeirantes, mas
sobre a ganância deles, não...
475
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Para nós, donos de fazenda, o ouro não está no fundo da
terra, está sobre o solo, emerso. O ouro é o que plantamos e
colhemos para garantir o nosso sustento e o do próximo. Ele
é bem mais precioso do que o ouro encontrado nas areias de
aluvião ou nas perigosas minas, causadoras de intrigas e
mortes.
Estrada da serra do Ita-corumi. Sales faz um "sim" com a cabeça. Sales e
Dirceu galopam por alguns instantes em silêncio. Após virar duas curvas
da estrada, Sales olha para Dirceu.
SALES
Ainda gosta de Marília?
DIRCEU
Sim, mas nada sério... Fiquei sabendo que ela vai casar com
um italiano, não é verdade?
SALES
Sim, é verdade, cumprirá o gosto do falecido pai. Tu
Namoraste a dona Marília, não?
DIRCEU
Foi coisa passageira, nada tão séria a ponto de abalar nossas
estruturas...
SALES
Estás namorando alguma moça?
DIRCEU
Aos solteiros, os nossos olhos estão sempre perquirindo uma
e outra. Namoro muitas moças e não fico seriamente com
nenhuma...
476
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
E a dona Marília?
DIRCEU
Dona Marília há de cumprir o destino dela, conforme o pai
desenhou. Achei interessante quando ela me disse que teria de
cumprir a vontade do pai. Isso é bom, pois une-se o útil ao
agradável...
SALES
Como assim?
DIRCEU
Ouvi falar que muitos jovens italianos pretendem apostar na
agricultura em nossa colônia. O problema maior é que eles
não têm o apoio dos pais. Alguns estão procurando moças da
nossa colônia para casar-se e contar com o apoio do sogro
para afeiçoar-se aqui. Dizem que eles são trabalhadores, mas
também avaros ao extremo.
SALES
Não é o caso do rapaz encomendado a casar-se com a minha
cunhada. Segundo informações dadas a dom Manuel ele é
sócio do tio de Marília. Homem muito rico, dono de videiras
em Marsala, no oeste da Sicília.
DIRCEU
Marsala, Marsala. Marsala é a terra das videiras, não é? Ouvi
dizer que é de lá os jovens que estão abandonando as suas
famílias e vindo para o Brasil aventurar-se.
Sales não responde nada para Dirceu. Sales e Dirceu olham para a frente
da estreita estrada e prosseguem calados até chegarem em Vila Rica.
477
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Estás na cidade, senhor Sales... Daqui volto novamente à
minha fazenda...
SALES
Não irás pernoitar por cá? Dizem que há duas ou três
estalagens em Vila Rica muito boas...
DIRCEU
Não. A lua está clara e logo estarei de regresso á minha
fazenda...
Dirceu abre um alforje que está na sela do cavalo e tira de dentro o
diamante enrolado ao pano. Dirceu entrega o diamante enrolado ao
pano para Sales. Sales pega o pano meio desconfiado.
SALES
O que é? Um pedaço de pano?
DIRCEU
Um presente ao teu filho, Sales. Não é muito, apenas uma
lembrança a uma criatura que acaba de despertar-se no
mundo. Que ele seja feliz no mundo dos homens. Guarde-o
com cuidado e somente abra quando estiver em casa...
Sales guarda o diamante enrolado ao pano dentro de um alforje. Dirceu
tira o chapéu e cumprimenta Sales. Sales faz o mesmo e sai galopando
em direção á entrada de Vila rica. Dirceu volta galopando em direção a
estrada da serra do Ita-corumi. Ele freia o cavalo, olha para a lua, volta
cavalgando novamente até a entrada de Vila Rica falando por solilóquio.
DIRCEU
E Marília, seria possível vê-la? Creio que passarei a noite por
cá. Mas Marília, não poderei vê-la, senão os nossos planos vão
todos água a baixo.
478
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Entrada de Vila Rica. Dirceu galopa em direção à entrada de Vila Rica.
Dirceu frea o cavalo e fica contemplando a cidade meio clara escura.
OLHOS BRILHANTES DE AVES NOTURNAS.
SEQUÊNCIA 175 – EXT./NOITE. SERRA DE ITA-CORUMI.
CAMPOS DE CRISTAIS NO ALTO DA SERRA.
Estrada de entrada à Vila Rica. Dirceu galopa devagar em direção à
entrada de Vila Rica. Ele vez em quando frea o cavalo e contempla a
cidade meio clara escura. Estrada da serra de Ita-corumi. Cirilo e
Hipólito aparecem cavalgam lentamente na estrada da serra do Itacorumi. Eles seguem Dirceu, sem que ele os veja. Dirceu trotea devagar
sem saber se entra em Vila Rica ou volta para a fazenda. Dirceu olha
para trás e vê Cirilo e Hipólito em seus respectivos cavalos. Dirceu frea
o cavalo bruscamente, olhando surpreso para Cirilo e Hipólito. Cirilo e
Hipólito aproximam-se de Dirceu.
CIRILO
Inhozinho tem de desculpar nós dois. É que ficamos
preocupados com vossemecê e com o coronel Sales.
Resolvemos vir atrás para assegurar de algum perigo da
noite...
HIPÓLITO
Sinhozinho vai passar a noite na vila. Se for, nós vamos
embora agora mesmo...
Dirceu olha para Cirilo e Hipólito. Ele olha para a estrada da serra e
sorri.
DIRCEU
Fico feliz ao ter certeza de que vós mercês têm verdadeira
estima por mim. Eu também os estimo muito, meus amigos.
Eu não irei pernoitar em Vila Rica, voltarei com vós mercês
479
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
para a fazenda. Sozinho, talvez, eu estaria perdendo a
coragem, mas acompanhado por vós mercês, eu vou até o
inferno...
Estrada da serra de Ita-corumi. Dirceu, Cirilo e Hipólito cavalgam-se
tranquilamente pela estrada da serra de Ita-corumi, conversando.
DIRCEU (VOICE OVER)
Por falar que em companhia dos rapazes eu iria até o inferno,
naquela viagem de volta à fazenda aconteceu-nos algo de
arrepiar os cabelos. Hipólito guiava-nos à frente, Cirilo e eu
cavalgávamos atrás, descontraídos dando boas risadas sobre
um comentário feito por mim a respeito da empreitada de
Sales, no pequeno riacho. Ninguém imaginava a possibilidade
de nossas terras brotarem ouro ou quaisquer pedras preciosas.
Se lá houvesse, não estaríamos vivendo tranquilos esquecidos
pelo resto do mundo e, principalmente, das pessoas
ambiciosas de nossa colônia. Cirilo contava algumas histórias
de terror persuadindo-nos a crer serem verdadeiras. As
histórias giravam em torno de fazendas, senhores, escravos,
minas assombradas e pactos entre homem e diabo.
CIRILO
(acabando de contar uma história de assombração)
E o fazendeiro muito esperto conseguiu enganar o diabo
ficando com toda a fortuna dele. Dizem que era tanto ouro,
tanta prata, que o homem até hoje não deu conta de gastar.
HIPÓLITO
Jesus, filho de Maria, essa história é de tirar o sono, Cirilo...
Estrada da serra de Ita-corumi. Dirceu, Cirilo e Hipólito descem a
estrada da serra, calados. O vento bate forte entre as árvores causando
um assobio de se arrepiar. Hipólito para um instante e fica imóvel.
Dirceu e Cirilo cavalgam na frente e olham para trás espantados ao ver
Hipólito parado no mesmo lugar da estrada.
480
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Creio que a sua história deixou o Hipólito impressionado,
Cirilo.
Dirceu e Cirilo voltam galopando rápidos até Hipólito. Dirceu
aproxima-se de Hipólito e toca em seu cavalo. Tanto o cavalo, quanto
Hipólito, os dois estão congelados, feito estátuas de pedra sabão. Cirilo
grita por Hipólito, tentando animá-lo. Hipólito continua do mesmo
modo com o olhar fixo sobre a serra. Dirceu balança as mãos em frente
ao rosto de Hipólito. Hipólito não pisca e não mexe o corpo. O cavalo
também se procede da mesma forma.
DIRCEU
Está vendo alma penada, Hipólito?
HIPÓLITO
(montado no cavalo e imobilizado)
Não, sinhozinho, tô vendo não...
DIRCEU
Então desempaca, homem de Deus.
HIPÓLITO
O cavalo não quer andar e eu também não consigo mexer o
meu corpo, somente abrir a boca e conversar...
CIRILO
(pula-se do cavalo e observa as patas do cavalo de Hipólito)
Ó, diabo! Só falta ser uma cobra enroscada na pata do bicho...
Cobra é bicho enfezado, impede cavalo ou qualquer bicho
grande de andar...
O cavalo de Hipólito relincha-se e dá um pinote. Cirilo cai de costas no
capoeirão. Hipólito segura firmemente a rédea do cavalo. Dirceu pula
do cavalo dele para socorrer Cirilo. Cirilo põe-se de pé e monta no
cavalo, enquanto o cavalo de Hipólito vira-se para um lado e outro, bate
481
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
com as patas dianteiras no chão e, sem que Hipólito consiga controlá-lo,
cavalga entre pastos e capoeiras próximos. Dirceu e Cirilo montam em
seus cavalos e saem cavalgando atrás de Hipólito.
DIRCEU
Segure firme, Hipólito, nós iremos socorrê-lo...
Hipólito solta risadas estranhas, gritando para Dirceu e Cirilo
acompanhá-lo. Dirceu e Cirilo acompanham o cavalo de Hipólito. O
cavalo de Hipólito cavalga rápido por uma estrada desconhecida da
serra. Os cavalos de Dirceu e Cirilo troteam atrás do cavalo de Hipólito,
sem nunca alcançá-lo. Subida da serra. Hipólito cavalga na frente,
Dirceu e Cirilo, atrás, subindo a serra. Alto da serra. Campo de cristais
rochosos. O cavalo de Hipólito para no campo de cristais rochosos e
relincha mansamente. Tanto o cavalo, quanto Hipólito, ficam
novamente feito estátuas. Dirceu e Cirilo aproximam-se de Hipólito.
Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Estaríamos vivendo naquela madrugada uma passagem
apocalíptica? Seria aquele acontecimento uma força
sobrenatural capaz de revelar o mistério da minha capela?
Campo de cristais rochosos. O cavalo de Hipólito circula o pequeno
campo e relincha. Uma forte luz de cristal surge do chão e ilumina-se
todo o corpo de Hipólito. Dirceu e Cirilo assustam-se com o brilho da
luz. Eles tentam fugir a galope, mas os cavalos deles se paralisam.
HIPÓLITO
Venham, é aqui!
DIRCEU
Aí, o quê?
HIPÓLITO
Aproxime-se senhor Dirceu...
482
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cirilo é quem se aproxima de Hipólito. O cavalo de Cirilo dá um pinote
e sai troteando pelo mato adentro, levando-o para longe. Dirceu fica só
para atender o chamado de Hipólito. Dirceu salta do cavalo e aproximase de Hipólito. Hipólito deixa Dirceu perturbado, pois, uma ora ele se
converte na imagem dele, outra ora na imagem de Josias.
NOTA: Josias é uma imagem de ilusão sobre o corpo de Hipólito.
DIRCEU
Com quem devo falar, com Hipólito, ou com Josias? Se eu
não estiver perdendo o meu juízo, estou vendo duas imagens
de dois amigos que se apagam e que se acendem. O que vós
mercês querem comigo?
JOSIAS
Sinhozinho sabe quem sou eu? Eu sou o velho amigo, o
vaqueiro Josias. Não quero assustar inhozinho não.
DIRCEU
(afrouxa a rédea do cavalo e cavalga dois passos de ré)
Josias? Tu estás penando, meu irmão?
JOSIAS
Sou alma penada, não inhozinho. Ganhei permissão para
poder livrar de uma coisa que aflige a minha alma.
DIRCEU
(afrouxa a rédea do cavalo e cavalga dois passos à frente)
Qual coisa aflige a sua alma?
JOSIAS
Inhozinho lembra-se do causo da santinha?
DIRCEU
Sim, lembro.
483
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOSIAS
Enterrei a coitadinha juntamente com o ouro por essas
bandas. Só sinhozinho pode me ajudar. Vossemecê pode me
acompanhar para buscá-la?
DIRCEU
Sim.
Campo de cristais rochosos. Todos os cristais brilham intensamente.
Hipólito, com o corpo emprestado a Josias, pula-se do cavalo e anda até
o centro do campo de cristais. Hipólito, com o corpo emprestado a
Josias, levanta as mãos para o céu, se ajoelha e com a voz trêmula (de
JOSIAS), murmura. Há uma grande pedra. Hipólito, com o corpo
emprestado a Josias, toca-se os pés na pedra. A grande pedra dilui-se,
tornando um pó de areia branquinho.
JOSIAS
Vossemecê, sinhozinho, cava a terra aqui.
Dirceu pula-se do cavalo e aproxima-se de Hipólito, com o corpo
emprestado a Josias. Ele olha firme para o chão e abaixa para tocar a
terra, abrindo as mãos.
DIRCEU
Estou desprovido de qualquer instrumento capaz de cavar a
terra...
JOSIAS
Cave com as mãos, sinhozinho consegue...
Hipólito, com o corpo emprestado a Josias, abaixa-se e com um dedo
radiando uma forte luz e, com os olhos fechados, risca o chão, fazendo
um pequeno círculo. Dirceu senta-se no chão e cava a terra entre o
pequeno círculo. A terra, embora pareça rochosa transforma-se em uma
areia fina, brilhante e macia a ponto de se tornar uma fina poeira e a se
escapar das mãos de Dirceu. Dirceu toca-se em uma pequena caixa de
484
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
couro e sopra a areia fina que resta no buraco. Aparece a pequena caixa
de couro. Hipólito, agora empresta o corpo ao pai de dom Miguel.
Hipólito com o corpo emprestado ao pai de dom Miguel, abaixa-se,
enfia as mãos na cova, tira dela a pequena caixa de couro e entrega-a
para Dirceu. Dirceu olha para Hipólito e vê a imagem do pai de dom
Miguel. Dirceu, assustado, afasta-se do local arrastando-se de joelhos.
DIRCEU
Quem é? Se não mais é o Josias?
PAI DE DOM MIGUEL
(aproxima-se de Dirceu)
Está aqui, senhor Dirceu...
DIRCEU
Quem é? Se não mais é o Josias?
PAI DE DOM MIGUEL
Sou o pai de dom Miguel. Assim como o irmão Josias, eu
também preciso de vós mercê. Todo o ouro, contido cá,
pertence a vós mercê, porém a imagem deverá ser doada a
uma igreja de Vila Rica.
DIRCEU
Qual igreja?
PAI DE DOM MIGUEL
A igreja de Santa Ifigênia, construída por Chico Rei e sua
tribo, em Vila Rica...
DIRCEU
E Josias, onde está o irmão Josias?
PAI DE DOM MIGUEL
Josias já se vê livre disso tudo. Graças a vós mercê, a missão
dele terminou no mundo material. Lembre-se irmão Dirceu,
485
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
tanto nós espíritos, quanto vós, matéria, somos todos
desertores de Deus.
DIRCEU
Desertores de Deus? Mas os desertores de Deus, não são os
que fogem Dele? Não são os traidores?
PAI DE DOM MIGUEL
Não, Dirceu. Somos todos desertores de Deus, porque
abandonamos a matéria e tornamos espíritos, segundo a
vontade dele. Cá estou, assim como Josias também esteve,
numa espécie de deserção para cumprir forçosamente algo
que não cumprimos quando éramos matérias. Tornar-se um
desertor também implica ir contra as leis dos homens e
tornar-se a favor das leis de Deus.
DIRCEU
Tudo isso é muito confuso. Não queres que eu entregue ao
seu filho a imagem e o ouro? Não conheço o seu filho, mas
posso procurá-lo pelas regiões de Vila Rica...
PAI DE DOM MIGUEL
Não. Em breve o meu filho venderá tudo o que adquiriu na
colônia e embarcará para Portugal.
DIRCEU
Como a um desertor?
PAI DE DOM MIGUEL
Não falei que somos todos desertores de Deus? Nada é nada
para o homem, apenas tudo é tudo para Deus. O meu filho
não mais poderá ficar no Brasil. Ele também jamais poderá
tomar posse dessa imagem que agora está com vós mercê.
Não se preocupe com esta missão. Nada irá afetar vós mercê.
Portanto, quando souberes da partida do meu filho, para
além-mar, leve a imagem de Santa Ifigênia à igreja construída
486
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
por Chico Rei e sua tribo e coloque-a na entrada da igreja.
Não deixe que ninguém veja vós mercê fazendo isso.
Ninguém também jamais saberá o que se sucedeu cá. Quero
que vós mercê fique tranquilo, em nome de Deus.
DIRCEU
Amém!
O campo de cristal enche-se de luz. O corpo de Hipólito livra-se dos
espíritos de Josias e do pai de dom Miguel. As luzes do campo de cristal
se desfazem. Hipólito anda em círculo e, como se acordasse de um
sonho estranho, cai no chão sentado, olhando para Dirceu.
HIPÓLITO
Inhozinho, onde estamos?
DIRCEU
Um pouco longe de casa, Hipólito. Apenas me ajude a colocar
esta caixa no meu cavalo e pronto, partiremos agora.
Cavalo de Dirceu. Dirceu monta no cavalo. Hipólito entrega para
Dirceu a pequena caixa. O cavalo de Hipólito vem em direção a
Hipólito. Hipólito monta no cavalo dele. Dirceu e Hipólito descem a
serra.
SOL DESPONTA-SE NO HORIZONTE.
SEQUÊNCIA 176 – INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado à mesa do canto olhando para a
pequena caixa de couro.
487
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Está aqui a pequena caixa de couro do meu amigo e finado
Josias. Aos poucos a história dele vai se tornando uma
verdade verdadeira.
Porta do quarto de Dirceu. Alguém bate na porta do quarto. Dirceu
levanta rápido da mesa de canto e vai atender a porta. Dirceu abre a
porta. Surge Hipólito na porta.
HIPÓLITO
Inhozinho, tá todo mundo preocupado com o Cirilo, desde
ontem, depois da viagem, ele ainda não apareceu na fazenda.
A Inácia, mulher do Cirilo tá chorando desesperada.
Vossemecê não acha bom que nós vamos atrás dele, na serra...
DIRCEU
Não, Hipólito. Fala para todo mundo se acalmar que o Cirilo
logo vai está aqui na fazenda. Eu confio em Deus e creio que
nada de ruim aconteceu com ele.
HIPÓLITO
Inhozinho deve de tá certo. Vamos esperar Cirilo. Deus vai
trazer Cirilo são e salvo...
Hipólito afasta-se da porta do quarto. Dirceu fecha a porta e vai até a
cama. Dirceu deita-se na cama de barriga para cima.
DIRCEU
Que aconteceu, meu Deus, por que o Cirilo ainda não
apareceu até agora? Já é bem tarde, mas se eu mostrar estar
preocupado, será pior. Vou aguardar mais um pouco, qualquer
coisa eu chamo pelos rapazes e vamos todos atrás do Cirilo
pela serra. Como disse o pai de dom Miguel, somos todos
desertores de Deus. O homem é nada de nada e somente
Deus é tudo é de tudo.
488
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Noite. Candeeiro acesso. Quarto de Dirceu. Mesa de canto. Pequena
caixa de couro em cima da mesa de canto. Dirceu sentado na mesa pega
a pequena caixa de couro. Gaveta superior da mesa de canto. Dirceu
abre a gaveta superior da mesa de canto e pega um pequeno cinzel.
Cinzel na mão de Dirceu. Ele fecha a gaveta da mesa de canto, ajeita-se
a pequena caixa de couro em cima da mesa e abre-a com o cinzel.
Pequena caixa de couro aberta. Dirceu olha para dentro da pequena
caixa de couro aberta, extasiado. Ele enfia as mãos dentro da pequena
caixa de couro e pega algumas pepitas de ouro. Pepitas de ouro
pequenas e grandes nas mãos de Dirceu. Dirceu enfia novamente as
mãos dentro da pequena caixa de couro e tira dela a imagem de Santa
Ifigênia. Ele pega a imagem de Santa Ifigênia com zelo e coloca-a em
cima da mesa de canto. Ele fica a reparar a imagem de Santa Ifigênia,
tocando-a pacientemente. Ele verifica as costas da imagem de Santa
Ifigênia, levanta-a e olha o fundilho dela. No fundilho da imagem de
Santa Ifigênia há uma pequena tampa feita de pedra sabão. Dirceu pega
o cinzel e cutuca a tampa do fundilho da imagem de Santa Ifigênia.
Algumas pepitas de ouro derramam sobre a mesa de canto. Dirceu olha
para as pepitas de ouro espalhadas na mesa do canto, com os olhos bem
estalados. Detalhes da imagem de Santa Ifigênia.
DIRCEU (VOICE OVER)
Enquanto todos nós aguardávamos tensos a misteriosa
chegada de Cirilo, tranquei-me no quarto, peguei a pequena
caixa de couro e abri-a com a ajuda de um cinzel. Ao enxergar
os objetos contidos no fundo, fiquei boquiaberto. Josias
estava certo sobre a riqueza contida nela. Pepitas de ouro
pequenas e grandes. Peguei a santa com certo zelo. Ela pesava
alguns quilos. Toquei-a, pacientemente. Ela trazia a aparência
de uma escultura moderna, daquelas criadas por Antônio
Francisco Lisboa ou por algum artista da nossa colônia. Seria
difícil identificar o seu autor, pois, infelizmente, a coitada foi
esculpida intencionalmente para enganar a coroa real. Era uma
imagem modesta, bem retratada, a ponto de não parecer o que
realmente era: uma santa do pau-oco. Verifiquei as costas da
santa e, somente após consultar-lhe o fundilho, encontrei uma
489
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
pequena tampa feita de pedra sabão. Cutuquei-a com a ponta
afiada do cinzel.
SEQUÊNCIA 177 – INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VARANDA DO CASARÃO.
Noite. Candeeiros acessos na varanda do casarão. Inácia está sentada em
uma das poltronas, juntamente com Eulina, Quitéria e Sebastiana na
varanda do casarão. Sebastiana cochila. Cancela da fazenda. Cirilo chega
à cancela da fazenda. Miliquito e Ambrósio estão no quintal de frente à
fazenda e vêem Cirilo chegar à cancela da fazenda. Ambrósio tira o
chapéu da cabeça, dá um passo para frente, olha para a cancela da
fazenda e olha para Miliquito.
MILIQUITO
Viu lá, Ambrósio, viu lá quem tá chegando...
AMBRÓSIO
Tô vendo alma penada ou é mesmo o Cirilo, Miliquito?
Chapéu de Ambrósio cai no chão. Miliquito pega o chapéu de
Ambrósio do chão e entrega para ele. Ambrósio corre para a cancela da
fazenda. Miliquito corre para a varanda do casarão para avisar o pessoal
sobre a chegada de Cirilo na cancela da fazenda.
FADE OUT/FADE IN
Quarto de Dirceu. Dirceu está sentado na cama arrumando as pepitas e
a imagem de Santa Ifigênia dentro da pequena caixa de couro. Dirceu
escuta gritos vindos do terreiro. Inácia ( em off) comemora alegre a
chegada de Cirilo. Dirceu levanta da cama, vai até o velho armário do
quarto, abre-o e guarda a pequena caixa de couro.
FADE OUT/FADE IN
490
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Porta do casarão com a varanda. Dirceu aparece na porta do casarão
que se dá com a varanda. Ele, sem ser notado por ninguém, fica
observando Cirilo rodeado por Miliquito, Ambrósio, Hipólito, Zé da
Viúva, Raimundo Sobreiro, Inácia, Eulina e Quitéria. Sebastiana
continua sentada em uma das poltronas cochilando. Cirilo, ainda
montado em seu cavalo, no quintal de frente da fazenda, próximo à
varanda, exibe alegremente uma seriema, duas emas, quatro perdizes e
três codornas peadas em embiras de cipós.
CIRILO
Não sei o que aconteceu, mas de uma hora para outra eu
desviei da estrada, deixei o nhô Dirceu e o meu amigo
Hipólito de lado e sai correndo atrás de umas caças. Enquanto
eu não peguei, não sosseguei. O poleiro, que eu fiz lá no
fundo do quintal está pronto, faltavam esses bichinhos para
botar nele...
Miliquito, Ambrósio, Hipólito, Zé da Viúva, Raimundo Sobreiro, Inácia,
Eulina e Quitéria dão risadas. Dirceu, ainda parado na porta do casarão
que se dá para a varanda, observa a todos.
DIRCEU (VOICE OVER)
Todos riram de Cirilo. Eu, portanto, fiquei ali, quieto,
agradecendo ao deus Fauno, que, embora fosse protetor das
lavouras e dos rebanhos, desviara Cirilo da missão, que só a
mim pertencia, enviando-lhe caças raras e dando-lhe
condições de pegá-las vivas para criá-las em seu cativeiro.
Adianto, aqui, portanto, que tanto Cirilo, quanto Hipólito, eles
nunca comentaram a mim e nem a ninguém sobre a noite
sinistra que enfrentamos em prol do mistério revelado pelas
almas de Josias e do pai de dom Miguel.
SEQUÊNCIA 178 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO.
Legenda: "Alguns dias depois..."
491
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Manhã. Oficina de queijo. Eulina, Inácia e Quitéria arrumam queijos
curados em uma velha prateleira, na oficina de queijo. Miliquito e Cirilo
consertam uma velha mesa que está capenga, também na oficina de
queijo. Curral da fazenda. Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão
sentados na cerca do curral arrumando alguns arreios. Ambrósio e
Dirceu cavalgam sobre a campina verde.
FADE OUT/FADE IN
Tarde. Chiqueiro das ovelhas. Grande pedra. Dirceu sentado na grande
pedra. Vento toca os cabelos de Dirceu. Ovelhas pastando. Alceu olha
para a grande pedra e vê Dirceu. Alceu deixa as ovelhas sob o comando
de Endimião e Trácio e vai ao encontro de Dirceu. Dirceu recita um
poema por solilóquio.
DIRCEU
Marília, de que te queixas? / De que te roubou Dirceu / O
sincero coração? / Não te deu também o seu? / E tu, Marília,
primeiro/ Não lhe lançaste o grilhão?
Dirceu está sentado na grande pedra. Alceu aproxima-se de dele.
Dirceu, distraído demora um pouco perceber a presença de Alceu.
ALCEU
Nhô Dirceu? Perturbo o meu estimado nhô Dirceu?
DIRCEU
(olha para Alceu assustado)
Perdão, Alceu. Eu estava cá, tão distraído pensando na dona
Marília que eu não vi vós mercê chegar...
ALCEU
(Alceu senta-se na grande pedra ao lado de Dirceu)
Tenho um recado para nhozinho. Ainda há pouco um moço
lá da fazenda de cima, da fazenda que era do pai de dona
Marília, veio cá e pediu pra eu levar um recado para nhozinho.
492
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(arregala os olhos para Alceu.)
Recado? Que recado, Alceu?
ALCEU
(tira o chapéu e coça a cabeça)
Ele falou para mode dizer pra nhozinho que um tal de Sales
quer falar com nhozinho.
DIRCEU
(coloca o chapéu na cabeça)
O Sales? O ex coronel Sales quer falar comigo?
ALCEU
É pra vossemecê ir lá à fazenda dele, nhô. É a mesma fazenda
da dona Marília...
SEQUÊNCIA 179 – EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DOM
MANUEL.
Manhã. Fazenda de dom Manuel. Dirceu chega a cavalo na cancela da
fazenda de dom Manuel. Miguelim e Arouxe correm para atender a
cancela da fazenda. Dirceu tira o chapéu e cumprimenta-os. Estrada
próxima do lado de fora da cancela da fazenda de dom Manuel. Sales e
Paulo vêm cavalgando pela estrada em direção à cancela da fazenda.
Dirceu vê Sales e Paulo vindo em direção à cancela da fazenda. Dirceu
frea o cavalo próximo à cancela da fazenda e espera Sales e Paulo
aproximarem-se. Sales e Paulo apressam o galope para chegar logo à
cancela da fazenda. Sales e Paulo recebem Dirceu na cancela da fazenda.
Sales, Dirceu e Paulo entram no quintal de frente da fazenda. Sales e
Dirceu saltam-se dos cavalos. Paulo recolhe o cavalo de Sales e o de
Dirceu indo para uma alameda de frente do quintal da fazenda para
amarrá-los. Sales e Dirceu vão até a varanda da casa e sentam-se nas
poltronas. Dirceu e Sales conversam animadamente.
493
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Sales recebeu-me logo que cheguei à cancela da frente da casa.
Percebi que a sua aparência de homem carrancudo havia se
transformado em outra, pendendo a um homem mais aberto,
alegre e espontâneo. Ao cumprimentar-me, ele logo quis
saber, novamente a forma de como eu tratava os negros da
minha fazenda. Contei a ele os meus hábitos e completei com
os antigos modos do meu pai. Ele admirou e disse que queria
sossego na fazenda. Sugeri-o a agir de forma mais amigável
com o pessoal dele. Ele contou-me algo que aconteceu na
fazenda dele, que o deixou assustado.
SALES
Quando cheguei de Vila Rica fiquei sabendo que morreram
dois escravos desta fazenda.
DIRCEU
Eram novos? Geralmente os recém-chegados de África
sofrem do chamado mal de banzo.
SALES
Não, não eram novos na fazenda. Eles nasceram na colônia e
pertenciam à leva de escravos comprados pelo meu finado
sogro. Eles morreram nas mãos do benfeitor, devido a um
castigo tolo e severo. O benfeitor exigiu que eles
continuassem a cavar a margem da fonte em busca de ouro,
como eles ousaram a lhe desobedecer, fez o que fez.
DIRCEU
Meu Deus, mas isso é desumano. Por isso é que eu sempre
falo meu caro Sales, a escravidão não passa de um lava-cara
inventado pelos brancos no auge de toda a covardia humana.
Imagina vós mercê o quanto é triste saber que esses coitados
foram roubados de suas terras, separados de suas famílias, em
África, para atender aos ideais dos brancos de forma forçosa,
no Brasil e em toda a Europa.
494
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
Os dois negros que morreram eram bons escravos e isso me
causou prejuízos. Também Acertarei as contas com o
benfeitor e o expulsarei da fazenda o mais rápido possível,
senão daqui a pouco ele estará matando outros escravos e...
DIRCEU
E o prejuízo aumenta não é senhor Sales? Ainda está
procurando ouro lá na fonte do ribeirão? Vós mercê sabe que
lá não existe...
SALES
Fiquei sabendo disso com vós mercê, durante a viagem. Eu,
assim que cheguei de Vila Rica e abati-me com os prejuízos de
perder dois escravos bons, eu mandei cessar a busca pelo
ouro, lá na fonte... Mas eu o chamei aqui para negócios.
DIRCEU
Negócios? Que tipo de negócios, senhor Sales.
SALES
Quero vender esta fazenda para vós mercê.
DIRCEU
Vender-me esta fazenda?
SALES
Sim, agora que o meu filho nasceu, acho por bem tocar um
negócio em Vila Rica. Creio que farei um bom negócio se eu
abrir em Vila Rica um grande armazém para comercializar
grãos alimentícios, farináceos, azeites, chapéus, bengalas,
utensílios domésticos e demais iguarias. Esses ramos de
negócio são menos complicados do que tocar uma fazenda...
495
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Aconselho o amigo a fazer aquilo que acha que deva fazer.
Dizem que a nossa cabeça é o nosso guia. Agora, tens,
todavia, uma família a zelar e negociando na cidade, sem
dúvida, correrá menos riscos. Mas a fazenda, vender a
fazenda?
SALES
Vós mercê compra-me a fazenda, não compra?
DIRCEU
Não, não posso, senhor Sales. Como vós mercê sabe, senhor
Sales, administrar uma fazenda dá trabalho. Duas então são
mais trabalhosas ainda. Minha ambição não chega a tanto a
ponto de querer possuir duas ou mais fazendas...
SALES
Mas vós mercê pode comprá-la, não pode?
DIRCEU
Estas insinuando...
SALES
Que vós mercê tenha dinheiro ou valores capazes de comprarme esta fazenda...
Dirceu olha para Sales e balança a cabeça insinuando um "não". Sales
solta uma risada.
SALES
Creio que vós mercê tenha diamantes e muitas pepitas de
ouro guardados em sua fazenda, senhor Dirceu...
DIRCEU
Se eu fosse o senhor eu não acreditaria nisso, senhor Sales...
Se alguém lhe contou...
496
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
Ninguém contou a mim, estou supondo. Aquela noite,
quando fez-me companhia até Vila Rica, entregou-me um
simples pedaço de pano como presente ao meu filho. Nele
continha um bonito e raro diamante.
DIRCEU
(olha para Sales meio desconfiado)
Ah, sim. Eu ganhei aquele diamante ainda criança. Eu apenas
quis repassá-lo ao seu filho.
SALES
(Sales fica um pouco sem graça, mas desfarça com um sorriso
cínico no rosto)
Sabe qual o valor da pedra? Ela vale uma fortuna...
DIRCEU
Não, não sei. Nunca pedi especialista algum para avaliá-la.
Talvez por julgar o quanto ela vale, resolvi dá-la ao teu filho...
SALES
Isso que fizeste foi por Marília, não foi?
DIRCEU
Digamos que sim...
SALES
Se Marília não fosse comprometida com o italiano, eu a
casaria com o senhor...
DIRCEU
Neste caso, venderia a rapariga para mim, não é senhor Sales?
497
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
Não vamos pensar nesses termos, senhor Dirceu, embora
para nós homens tudo gira em torno de negócios...
DIRCEU
Nem tudo gera em torno de negócios, senhor Sales. Não sei
se o senhor considera o que tenho a dizer, mas o coração não
se compra ou se vende.
SALES
Vós mercê é homem e sabe que agimos dessa forma. Ainda
deseja casar com a dona Marília, senhor Dirceu?
DIRCEU
Não, Marília foi uma aventura. No auge dos acontecimentos,
o senhor e a vossa senhora proibiram nos ver, portanto,
esfriamos. Creio que nem ela pensa mais em mim.
SALES
E a fazenda, por que não comprá-la?
Dirceu põe se de pé e coloca o chapéu na cabeça. Sales, sentado, dá um
sinal para que Dirceu torne a sentar-se na poltrona. Dirceu
cumprimenta Sales e sai da varanda da casa, colocando o chapéu na
cabeça. Cavalo de Dirceu amarrado debaixo da alameda da fazenda.
Dirceu desamarra o cavalo, monta nele e sai galopando pelo terreiro da
fazenda. Estrada. Dirceu sai cavalgando lentamente pela estrada.
Encruzilhada. Dirceu faz o sinal da cruz perto de uma encruzilhada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Despedi-me rapidamente de Sales, na varanda da casa, montei
rápido no cavalo e galopei de volta à minha fazenda. Não
perderia tempo com aquele assunto de Sales, cheio de rodeios,
como se ele estivesse a perquirir-me riquezas. Assim como o
corpo de Hipólito foi possuído por dois espíritos amigos, para
ajudar-me, Sales, decerto, poderia ser possuído por um
498
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
espírito ruim, capaz de destruir-me. Benzi-me com o sinal da
cruz e afastei-me dos pensamentos malignos. Ao chegar à
fazenda, pensei no velho Farias que, no meu pensamento,
dizia.
EFEITOS: Encruzilhada. Quando Dirceu passa pela encruzilhada e faz
o sinal da cruz, Farias aparece montado em um cavalo branco ao lado
do cavalo dele. Dirceu olha assustado para Farias. Farias está com barba
e bigodes bem aparados, vestindo um Rhinegrave verde, sapatos de
couro e meias brancas, com um manto azul bordado de estrelas da cor
do ouro, jogados pelas costas. Farias pareia o cavalo dele com o de
Dirceu.
FARIAS
Sinhozinho não é besta, pega tudo de valor e esconde noutro
lugar, fora da casa. O diabo anda solto, beirando o
patrãozinho...
Nuvem de poeira. Farias desaparece na nuvem de poeira. Dirceu galopa
rápido pela estrada da capoeira.
SEQUÊNCIA 180 – INT./NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUARTO DE DIRCEU.
Madrugada. Candeeiro aceso. Quarto de Dirceu. Mesa de canto.
Pequena caixa de couro no chão e alforje com pepitas de ouro e
diamantes em cima da mesa de canto. Dirceu anda pelo quarto e olha
para todas as velhas mobílias. Velho armário. Ele abre o velho armário e
sorri. Mão de Dirceu pegando a caixa de couro e o alforje com pepitas
de ouro e diamantes em cima da mesa. Luz do candeeiro apaga-se.
DIRCEU (VOICE OVER)
Abri os olhos e, crendo na verdade do pensamento, inventei
outro esconderijo para depositar o que havia de valor em meu
499
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
quarto. Criei uma frase e anotei no meu bloquinho de contas:
"a cobiça é a pior desgraça da humanidade".
GALO CANTA NO POLEIRO DO QUINTAL DA FAZENDA.
SEQUÊNCIA 181 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CAPELA DA FAZENDA. QUINTAL DA FAZENDA.
Legenda: "Segundo domingo de maio de 1793".
Manhã. Capela da fazenda. Poucos fiéis sentados nos bancos da capela
da igreja. Altar da capela. Antenor, no altar da capela, termina de fazer
uma celebração eucarística. A voz de Estela, esposa de Antenor, sempre
sobressai no responsório dos fiéis.
ANTENOR
Dóminus vobíscum.
FIÉIS
Et cum spíritu tuo.
ANTENOR
Benedícat vos omnípotens Deus, Pater, et Fílius, + et Spíritus
Sanctus.
FIÉIS
Amen.
ANTENOR
Ite, missa est.
FIÉIS
Deo grátias.
FADE OUT/FADE IN
500
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Manhã. Cancela da fazenda Ribeirão do Meio, aberta. Cirilo e Hipólito
recebem os poucos fiéis que estavam assistindo à missa na capela da
fazenda, na cancela. Quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Grande mesa
improvisada debaixo de uma árvore. Os poucos fiéis (adultos) sentam-se
na grande mesa improvisada. Na grande mesa improvisada há vasilhas
cheias de quitutes. CRIANÇAS correm pelo pátio da fazenda brincando
umas com as outras. Zé da Viúva, Raimundo Sobreiro e Ambrósio
conversam sentados em círculo, debaixo de uma árvore. Quitéria, Eulina
e Eulina estão na varanda juntamente com Cirilo e Hipólito. Hipólito
toca a sanfona de Farias. Hipólito puxa interessantes foles. Mesa grande
improvisada. Copos de vinho nas mãos de Dirceu e de Antenor. Dirceu,
Antenor e Estela conversam-se alegremente. Dirceu coloca o copo de
vinho na mesa e comenta para Antenor.
DIRCEU
Suas celebrações são ótimas, senhor Antenor. Fico feliz
porque a missa é rezada na língua dos santos anjos de Deus,
igual as rezadas em Vila Rica...
ANTENOR
(termina de engolir um trago de vinho e olha para Dirceu)
O latim, senhor Dirceu, a língua mais bela e prosaíca que
existe na face da terra...
DIRCEU
Para falar essa língua, senhor Antenor é preciso de ser um
bom entendedor de arte...
ANTENOR
Sem dúvida, senhor Dirceu. E por falar em arte não sei se vós
mercês ficou sabendo haverá a reabertura da Casa da Ópera
de Vila Rica para uma célebre apresentação de um grupo de
atores franceses e italianos...
DIRCEU
É mesmo? Grupo de atores franceses e Italianos?
501
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ANTENOR
Sim, trata-se de uma peça operística, baseada no conserto
musical do grande compositor e maestro, Vivaldi , "Le quattro
stagioni"...
ESTELA
Até hoje não sei o que é ópera ou peça operística, mas que eu
vou também eu vou...
ANTENOR
Vamos sim Estela, claro. Espero que o senhor Dirceu nos
faça companhia também à nossa caravana. Então, senhor
Dirceu, estou preparando uma pequena caravana para irmos
até a Casa da Ópera, de Vila Rica para assistirmos ao grande
espetáculo.
Dirceu demonstra-se pensativo. Antenor levanta o copo de vinho para
despertá-lo.
ANTENOR
Vá ou não conosco?
DIRCEU
Irei, irei com a caravana de vós mercê assistir a um teatro pela
primeira vez...
ANTENOR
Arrumei até uma estalagem descente para a nossa caravana se
hospedar após o espetáculo...
Grande mesa improvisada. Visão panrâmica do quintal com as pessoas
nas mesas, em círculos e crianças brincando entre as árvores. Dirceu,
Antenor e estela conversam animadamente.
Nota: ouve-se a música "A Primavera: Adargio-largo-Allegro", DE
VIVALDI, para a narração de Dirceu em off, qual dará prosseguimento
com a sequência 194.
502
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Segundo os informantes, a população de Vila Rica, desde a
classe mais alta e intelectualizada, às mais abastadas
comentavam a estréia do espetáculo. Desde 1788, quando o
fundador, diretor e responsável da casa, Sousa Lisboa falecera
nada de cultura extraordinária acontecia na Casa da Ópera.
SEQUÊNCIA 182 – INT./EXT./NOITE. VILA RICA. CASA DA
ÓPERA.
Legenda: "Três semanas depois..."
Vila Rica. Noite. Porta da Casa da Ópera de Vila Rica. Fila de mulheres
e homens, todos muito bem vestidos, na porta da Casa da Ópera. A
porta da Casa da Ópera abre-se e todos se entram educadamente. Sala
da Casa da Ópera. Luzes de lampiões acesos. Espectadores sentados nas
cadeiras ansiosos para o início do espetáculo. Dirceu, sentado na
cadeira, entre os espectadores. Orquestra pronta. Palco. Atores entramse no palco encenando as músicas de Vivaldi, tocadas pela maravilhosa
orquestra: Adargio-largo-Allegroe; Allegro non molto-presto; Allegro
Adágio Molto; Allegro non molto-larggo-allegro. Fim da apresentação.
Público de pé, aplaude o grande espetáculo. Porta da Casa da Ópera.
Homens e mulheres saem pela porta da Casa da Ópera. Dirceu olha
para as mulheres, como se quisesse encontrar Marília no meio delas. Ele
fala por solilóquio.
DIRCEU
Meu Deus, cada uma das quatro estações apresentadas pela
ópera foram maravilhosas. Qual dessas quatro estações estaria
a mágica capaz de fazer-me unir eternamente a Marília?
Homens e mulheres saindo pela porta da Casa da Ópera. Dirceu
reparando as mulheres. Dirceu aparece no meio das mulheres e de
propósito esbarra-se em Dirceu. Ele assusta-se, mas logo reconhece
Rosa.
503
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Rosa?!!!
ROSA
Eu mesma, senhor Dirceu e trago notícias da dona Marília...
DIRCEU
(alegra-se)
Ela está aqui na Casa da Ópera, Rosa?
ROSA
Não, ela não quis vir, mas soube que viria uma caravana de
sua fazenda para cá, então imaginou que vós mercê poderia
também vir...
DIRCEU
(olha para um lado e outro)
E a dona Marília, onde está a dona Marília, Rosa?
ROSA
Sinhá Marília aguarda por vossemecê perto da Igreja Nossa
Senhora da Conceição de Antônio Dias...
DIRCEU
Mas é um lugar longe, escuro... Dona Marília é mesmo louca...
ROSA
Dona Marília tem uma amiga por lá e o pai da tal amiga não
há de desampará-la, caso precisar...
DIRCEU
Então o recado está dado, Rosa, eu vou ao encontro de dona
Marília perto da igreja Nossa Senhora da Conceição de
Antônio Dias.
504
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 183 – EXT./NOITE. VILA RICA. VÁRIOS.
Calçada alta de uma casa, perto da Igreja Nossa Senhora da Conceição
de Antônio Dias. Cavalo de Dirceu amarrado em um poste. Dirceu e
Marília beijando-se próximos à calçada alta.
MARÍLIA
Agora, Dirceu, posso te abraçar, te abraçar, te abraçar e te
beijar, te beijar e te beijar até o fim da minha vida...
DIRCEU
Conte-me onde está toda essa segurança tão convicta,
Marília...
MARÍLIA
O nosso plano. Fiz a carta que vós mercê forjou cair nas mãos
do senhor meu cunhado...
DIRCEU
O Sales? Ele leu a carta?
MARÍLIA
(faz uma cara engraçada)
Leu e leu, depois releu e releu e até acho que também, se é
que existe essa palavra, desleu. O coitado do Sales ficou
possesso com o suposto italiano a casar-se comigo...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 184 – INT./DIA. CASA DE DOM MANUEL. SALA
DE VISITA DA CASA DE DOM MANUEL.
Flash back – Relato de Marília.
Dia. Casa de dom Manuel. Sala de visita da casa de dom Manuel. Sales
sentado fogosamente na poltrona com a carta na mão. Amarílis e Marília
505
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
estão também na sala de visitas, sentadas, juntas, em outra poltrona
frente à poltrona de Sales.
SALES
Coisa mais idiota. O italiano concorda casar-se com Marília,
desde que a família dela arque com todas as despesas,
inclusive com a da viagem dele da Itália para a colônia. Olha
só, Amarílis, ele exige dinheiro, conforto e promete fazer
grandes empreendimentos, cá, na colônia, caso apostarmos
nele. Até parece que vamos aceitar... até parece...
MARÍLIA
Promessa do senhor finado pai, Sales. Se for promessa tem de
ser cumprida. Venderemos a fazenda e se possível também
esta casa para que o moço venha ileso da Itália...
AMARÍLIS
(olha para Marília meio desajeitada)
Queres mesmo casar com o mancebo da Itália, Marília?
Queres que invistamos nesse casamento cheio de exigência...
MARÍLIA
Como não? Há outro jeito para dar sossego à finada alma do
nosso pai? Até parece e Deus me perdoe, se estou blefando,
mas até parece que a alma do papai está tiçando vós mercês
para tudo isso...
AMARÍLIS
Estas louca, Marília, rezes o credo e peças perdão a Deus pela
bobeira que estás a falar...
MARÍLIA
Peço ao cunhado Sales que escreva urgente ao estrangeiro e
peça alternativa plausível, fácil de nos arranjar ao trato...
506
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
Não vou me atrever a mandar carta nenhuma para esse
"talzinho". A minha resposta é não, não e não! Que buscar
alternativa que nada...
MARÍLIA
Mas as coisas Não podem ficar assim, assim, Sales...
AMARILIS
Assim, assim como, Marília? Ouvi histórias de um romance
proibido entre vós mercê e um tal de Dirceu... É verdade?
Gostas dele? Por que vós mercê não o aceita como
namorado?
MARÍLIA
Como o quê?
AMARÍLIS
Como um namorado, Marília. Sei que ele andou-lhe fazendo a
corte...
MARÍLIA
Pensas que vou casar-me com um louco, minha i5rmã...
AMARÍLIS
Com um louco?
MARÍLIA
Sim, com um louco, capaz de atirar ouro nas margens de uma
fonte...
AMARÍLIS
(arregala os olhos para Marília)
Ele fez isso? Atirou fora...
507
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
(imita o arregalo dos olhos de Amarílis)
Sim, atirou fora uma pepita de ouro nas margens da fonte do
ribeirão...
Sales ajeita-se todo na poltrona e olha assustado para Marília.
AMARÍLIS
(Amarílis olha para Sales e para Marília)
Então ele é muito rico ou deveras um louco...
MARÍLIA
Louco, dou-lhe a certeza disso. O senhor Dirceu é um louco!
Prefiro ao italiano do que um louco...
AMARILIS
Meu Deus! Conte-me irmã, como foi que ele atirou a pepita
de ouro nas margens da fonte do ribeirão...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 183.1 – CONTINUAÇÃO - EXT. NOITE. VILA
RICA. CALÇADA ALTA DE UMA CASA, PERTO DA IGREJA
NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DE ANTÔNIO DIAS.
Calçada alta. Dirceu e Marília sentados na calçada alta. Marília e Dirceu
abraçam-se e beijam-se. Os dois conversam animadamente. Uma vez e
outra passa uma liteira carregada por homens negros e fortes. Dirceu e
Marília olham rápidos para um ou outro acontecimento em volta e
continuam firme, sentados na calçada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Marília contou para Amarílis como e porque eu joguei a pepita
de ouro nas margens da fonte do ribeirão. Sales, obviamente,
ficou sabendo pela esposa e teve certeza de que o ouro
508
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
encontrado por ele, na fonte, realmente pertencia a mim,
conforme eu havia revelado a ele. Contei a Marília sobre os
novos planos do cunhado em vender a fazenda e apostar no
comércio. Ela não se surpreendeu, contando-me que o
cunhado mostrou para a esposa uma valiosa pedra de
diamante...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 184.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA DE
DOM MANUEL. SALA DE JANTAR.
Flash back – Relato de Marília.
Casa de dom Manuel. Sala de jantar com mesa posta com algumas
guloseimas e variados tipos de sucos. Sales, Amarílis e Marília estão
sentados à mesa. Vívila serve Sales, Amarílis e Marília. A um dos cantos
da sala está Rosa, sentada em uma cadeira com o bebê de Amarílis no
colo. Sales olha para Amarílis e para Marília e tira de uma das algibeiras
da roupa uma grande pedra de diamante. Os olhos de Amarílis brilham
ao olhar para a pedra.
SALES
Vejam senhoras, que beleza! Esta é uma raríssima pedra de
diamante, muito valiosa...
AMARÍLIS
(quase que se deixando hipnotizar pelo diamante)
Onde conseguiste isso Sales! Que pedra bonita... Creio nunca
ter visto um diamante antes...
SALES
Ora, ora, esta pedra foi herança de um tio-avô. Herdei-a faz
muito tempo. Desfar-me-ei dela para apostar em um negócio
em Vila Rica...
509
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
É devido a essas porcarias de pedras que o homem destrói
tudo o que existe na natureza. Há pouco tempo, antes de os
portugueses a portassem cá, esta terra era outra...
SALES
Era sim, outra terra, sem civilização alguma.
(olha bem para o diamante)
E pedrinhas iguais a esta, preciosas, ficavam bem
escondidinhas da gente, parecendo não querer valer nada...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 183.2 – CONTINUAÇÃO – EXT./NOITE. VILA
RICA. VÁRIOS.
Calçada alta. Marília e Dirceu beijam-se. Cavalo de Dirceu. Dirceu pega
a mão de Marília e leva-a até o cavalo. Dirceu coloca Marília na garupa
do cavalo. Cavalo andando pelas ruas de Vila Rica até o portão da casa
de Marília. Marília despede-se de Dirceu com um beijo. Dirceu chega à
porta de grande casarão. Na porta do grande casarão há uma placa
escrita "Estalagem Anjo da Guarda".
DIRCEU (VOICE OVER)
Mordi os lábios ao constatar que Sales, além de ambicioso,
também não passava de um mentiroso. Algo parecia querer
alertar-me sobre a segurança da fazenda e dos que nela
moravam. Despedi-me de Marília e marchei rapidamente para
a estalagem "Anjo da Guarda", onde estava hospedada
também a minha caravana.
510
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CAPÍTULO 11
SEQUÊNCIAS 185-202.1
Personagens deste capítulo:
Sales
Bando de cavaleiros(homens brancos e negros)
Miliquito
Cirilo
Inácia
Eulina
Ambrósio
Zé da Viúva
Raimundo Sobreiro
Sebastiana
Dirceu
Joaquim Alonso
Irmão de Joaquim Alonso
Irmã de Joaquim Alonso
Pai de Joaquim Alonso
Mãe de Joaquim Alonso
Homens encapuzados
Guardas das naus
Marujos
Cozinheiros da nau
Homens que pulam da nau
Marília
Filha de Antenor de 16 anos
Filha de Antenor de 18 anos
Rosa
Antenor
Trácio
Endimião
Alceu
Alguns fazendeiros da região
Alguns sitiantes da região
Terêncio
Tibúrcio
511
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Velho índio
Garimpeiros
Homens do campo de cristal
Menina de 9 anos (filha de Vivêncio)
Menino de 11 anos (filho de Vivêncio)
Menino de 13 anos (filho de Vivêncio)
Velho Tonhim
Moça loira descabelada
Dois moços morenos e fortes
Dois filhos do velho Tonhim
Índia tupiniquim
Moço espanhol
Bebê recém-nascido
Senhora branca
Dois padres espanhóis
Criança indígena com 7 anos de idade
Poucos fiéis
Farias
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 135
2. Sequência 60
3. Sequência 185
SEQUÊNCIA 185 – INT./EXT. NOITE. FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. ESTRADA PRÓXIMA À FAZENDA. CANCELA DA
FAZENDA. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. VARANDA
DO CASARÃO.
Flash back – Sonho de Dirceu
Fazenda Ribeirão do Meio. Estrada próxima à fazenda. UM BANDO
DE CAVALEIROS (homens brancos e negros) cavalga pela estrada
próxima á fazenda, ao comando de Sales. Cancela da fazenda aberta.
Sales dá ordem para que o bando de cavaleiros entre pela cancela da
fazenda. Bando de cavaleiros entra no quintal de frente da fazenda.
512
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Miliquito e Cirilo estão no quintal de frente da fazenda e vêem o bando
de cavaleiros entrarem pela cancela da fazenda. Cirilo e Miliquito correm
em direção ao bando de cavaleiros. Sales dá ordens para alguns
cavaleiros saquearem seus bacamartes e atirarem em Cirilo e Miliquito.
ALGUNS CAVALEIROS atiram em Cirilo e Miliquito. Cirilo e
Miliquito caem enrolando no chão e morrem. Inácia e Eulina aparecem
gritando em direção aos corpos dos maridos Cirilo e Miliquito. DOIS
HOMENS DO BANDO DE CAVALEIROS atiram em Inácia e
Eulina. Inácia recebe um tiro nas costas e cambaleia-se caindo próxima
ao corpo de Cirilo. Eulina grita e recebe um tiro no peito, cambaleia e
cai no chão ao lado do corpo de Miliquito. Varanda do casarão.
Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão na varanda do
casarão. Sales invade a varanda do casarão e aponta o bacamarte para
eles. Sales atira em Ambrósio, Zé da Viúva e em Raimundo Sobreiro.
Sebastiana aparece na varanda trazendo uma cesta de quitutes. Um tiro
de bacamarte atinge o peito de Sebastiana. Ela cai morta no chão. Rede.
Dirceu está deitado na rede. Sales aproxima-se da rede e cutuca-a com
o seu bacamarte. Dirceu olha para Sales assustado. Sales atira em
Dirceu.
CORTA PARA
Madrugada. Quarto de Dirceu. Dirceu acorda assustado e senta-se
rapidamente na cama fazendo o sinal da cruz.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Meu Deus, meu Deus, ainda bem que só foi um sonho.
SEQUÊNCIA 186 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CURRAL.
Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu está no curral junto com
Hipólito, Cirilo, Miliquito e Ambrósio. Eles estão reparando as vacas e
513
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
algumas novilhas. Zé da Viúva chega montado em seu cavalo. Ele
encosta-se o cavalo na cerca do curral e observa Dirceu.
DIRCEU (VOICE OVER)
A partir dos dias seguintes, apenas restou-me alertar ao
pessoal da fazenda para que tomassem cuidado com pessoas
estranhas, caso aparecessem por cá. E de tanto alertá-los
sobre isso, que, certo dia Zé da Viúva apareceu esbaforido no
curral da fazenda gritando por mim.
ZÉ DA VIÚVA
Nhô Dirceu, nhô Dirceu!!!
CIRILO
É o Zé da Viúva, nhô Dirceu, parece que ele tá avexado,
gritando por inhô...
ZÉ DA VIÚVA
Nhô Dirceu, nhô Dirceu!!!
Dirceu observa pela fresta da cerca da cancela e vê Zé da Viúva gritando
por ele. Dirceu vai rápido ao encontro de Zé da Viúva. Dirceu encostase na cerca do curral, frente ao Zé da Viúva que está do lado de fora,
encostado na cerca do curral.
DIRCEU
Que foi Zé, que se sucedeu?
ZÉ DA VIÚVA
Inhô pediu para que todos da fazenda tomassem cuidado com
pessoas estranhas, caso aparecessem por cá, não foi?
DIRCEU
Sim. E daí?
514
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZÉ DA VIÚVA
E daí é que tem um homem estranho, sinhô, um homem
sentado lá na porta da frente da capela...
DIRCEU
Um homem estranho sentado na porta de frente da capela?
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir.
SEQUÊNCIA 135 – INT./ DIA/ FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA. SALA DE
VISITA DO CASARÃO.
FARIAS
Sinhozinho vai entender a partir do dia que os anjos
aparecerem. Um anjo é grande, outro maior, um ajuda,
outro engana. Os caminhos de sinhozinho vão ser iguais
a uma encruzilhada.
DIRCEU
Um desses anjos descerá do céu para entregar-me uma
chave?
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 186.1 – CONTINUAÇÃO - INT./EXT./DIA.
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CURRAL.
Dirceu larga tudo o que está fazendo, olha para Zé da Viúva e
demonstra-se surpreso e confuso.
515
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Há um homem estranho na porta da capela da fazenda?
Estranho como?
ZÉ DA VIÚVA
Sei lá um homem nunca visto por cá. Um mendigo talvez.
Como vossemecê pediu para que tenhamos cuidados com as
pessoas estranhas que por cá aparecerem, achei melhor avisar
o sinhozinho...
DIRCEU
Fez bem, Zé, fez bem em avisar-me. Vamos lá até a porta da
capela para ver do que ou de quem se trata...
(olha para Hipólito, Cirilo, Miliquito e Ambrósio)
Vós mercês continuam aí com o serviço que eu vou verificar
um negócio cá com o amigo Zé...
SEQUÊNCIA 187 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. FRENTE DA CAPELA DA FAZENDA. VÁRIOS.
Porta de frente da capela da fazenda. HOMEM MALTRAPILHO
sentado na porta de frente da capela da fazenda. O homem maltrapilho
chama-se JOAQUIM ALONSO, um padre português, alto, magro,
olhos claros e de aproximadamente 33 anos de idade. Joaquim Alonso
está sentado em cima de um saco com roupas. A roupa que ele está
vestido está suja e um pouco deplorável. Dirceu e Zé da Viúva chegam á
capela da fazenda em seus respectivos cavalos. Dirceu pula do cavalo e
dirige-se até Joaquim Alonso sentado na porta de frente da capela da
fazenda.
DIRCEU
Que fazes por cá, precisas de ajuda, senhor?
JOAQUIM ALONSO
(voz fraca e cansada)
516
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Há muito ando por estas bandas, sinto sede e fome, senhor...
DIRCEU
Zé,vai até a fazenda e traga comida e água para este mísero
homem...
ZÉ DA VIÚVA
Nhô vai ficar por cá, sozinho com esse homem?
JOAQUIM ALONSO
(olha para Zé da Viúva e para Dirceu com um olhar piedoso)
Carece preocupar não, senhor. Deus não desampara os
pobres, logo terei comida e água de sobra em minha mesa...
DIRCEU
(torna a olhar para Zé da Viúva que ainda continua montado
no cavalo)
Vai Zé, faça o que estou pedindo. É para um grande bem... E
não conte aos outros nada do que está se sucedendo por cá...
ZÉ DA VIÚVA
Inhozinho, sim, inhozinho vou e volto já.
Zé da Viúva chicoteia o cavalo e sai a galopes pegando a estradinha da
capela até a fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu pega o cavalo e amarra-o
no tronco de uma árvore próxima ao adro da capela da fazenda. Dirceu,
de longe, observa com os olhos o homem maltrapilho. Joaquim Alonso
cochila tranquilamente com cabeça encostada na porta de frente da
capela da fazenda. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Seria esse homem um anjo disfarçado em humano? Farias
havia me alertado sobre os anjos. Segundo ele, um anjo é
grande, outro mais grande, um ajuda, outro engana...
517
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
EFEITOS: Dirceu olha para a porta de frente da capela da fazenda e vê
apenas Farias, barba e bigodes bem aparados, vestindo o Rhinegrave
verde, sapatos de couro e meias brancas, com o manto azul bordado de
estrelas da cor do ouro, jogados pelas costas. Farias está de pé e olha
para Dirceu, sorrindo.
FARIAS
Os caminhos de sinhozinho vão ser igual a uma
encruzilhada... Sinhozinho vai entender tudo. Trate-se deste
homem, como se tratasse de mim ou de Jesus de Nazaré...
Dirceu fica imóvel olhando para a figura de Farias. A figura de Farias
desaparece. Dirceu esfrega os olhos e olha para a porta de frente da
capela onde está Joaquim Alonso. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Meu Deus, quem será aquele homem?
Zé da Viúva chega à frente da capela da fazenda em seu cavalo. Dirceu
apressa os passos e vai ao encontro de Zé da Viúva Zé da Viúva entrega
para Dirceu um prato de comida amarrado em um pano branco, um
copo e uma pequena botija de água. Dirceu caminha até Joaquim
Alonso, desamarra o pano branco envolto ao prato e o entrega para
Joaquim Alonso. Joaquim Alonso recebe o prato de comida, olha para
Dirceu agradecido e come-o cautelosamente. Dirceu coloca a botija de
água e o copo no chão ao lado de Joaquim Alonso.
DIRCEU (VOICE OVER)
Enquanto o homem maltrapilho comia, perquiri-o com
conversas. Descobri, finalmente, que não se tratava de um
anjo, mas sim de um homem comum chamado Joaquim
Alonso, dizendo ser um ex-minerador desempregado vagando
pelo mundo em busca de trabalho para matar a fome. Eu
sugeri que ele procurasse Vila Rica, onde, decerto, encontraria
trabalho em uma mina. Ele, infelizmente, dizia vir de lá.
Segundo ele os mineradores estavam dispensando os
518
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
trabalhadores, devido à escassez do ouro. Acreditei nele, pois
os tempos de fartura se escorriam das mãos dos mineradores,
atravessadores e compradores de ouro ou pedras preciosas.
Percebi que ele não era da região de Vila Rica e nem sequer de
nenhuma região ou capitania brasileira...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 188 - INT./EXT./DIA/NOITE. VÁRIOS.
Flash back – Relato de Joaquim Alonso
Legenda: "Portugal, 1785..."
Alentejo. Noite. Grande casa de madeira.Candeeiros acessos em um dos
cantos da sala da casa grande de madeira. Mesa na sala grande com uma
família sentada nela. Joaquim Alonso, com 25 anos de idade ao lado de
uma irmã loira, cabelos lisos, caídos na testa e olhos claros, de 14 anos;
um irmão de cabelos loiros encacheados, de 20 anos; o pai, gordo,
cabelos e olhos claros e a mãe, magra, de cabelos loiros cacheados e
olhos castanhos. TODOS se põem de pé. A MÃE faz uma oração.
Terminada a oração, a mãe senta-se primeira e depois os outros.
Vasilhas com comida, na mesa. Todos começam a se servir. HOMENS
ENCAPUZADOS, com tochas de fogo invadem a grande casa de
madeira, ateando fogo. Sala grande de jantar. HOMENS
ENCAPUZADOS entram na sala grande de jantar, sacam punhais das
cinturas e matam a família de Joaquim Alonso. Candeeiros acessos caem
da parede de um dos cantos da sala da grande casa. Grande casa
incendiada. Joaquim Alonso consegue escapar dos homens
encapuzados. Joaquim Alonso foge para um campo de pés de oliva.
Joaquim Alonso esconde-se atrás de um pé de oliveira. Lisboa. Mar.
Cais de Lisboa. Naus atracadas no cais de Lisboa. Joaquim Alonso no
cais de Lisboa mirando as naus atracadas no porto. Naus chegando e
naus partindo. Joaquim Alonso desce o cais. Naus. Guardas vigiando as
naus. Joaquim Alonso tenta entrar em uma das naus. Após várias
tentativas, Joaquim Alonso consegue entrar numa velha nau. Porão da
velha nau. Joaquim Alonso escondido no porão da velha nau. Velha
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Nau parte do cais de Lisboa. Porão. UM MARUJO entra no porão e
descobre Joaquim Alonso escondido em um canto sujo do porão da
nau. O marujo leva Joaquim Alonso para o capitão da nau. O capitão
olha para Joaquim Alonso e dá risadas.
JOAQUIM ALONSO (VOICE OVER)
A minha família descende do Alentejo, uma das maiores e
mais seca região de Portugal. Desde que eu perdi os meus
pais, no ano de 1785, devido a uma saga entre famílias rivais,
fugi para os Açores e em seguida para Lisboa, onde todos os
dias eu ficava no cais a mirar as grandes naus atracadas no
porto. Umas chegavam e outras partiam para além-mar, a
causar-me o desejo de aventuras. Certo dia, desci ao cais e
após várias tentativas consegui entrar numa velha caravela .
Não saí mais de dentro dela. Fiquei a aguardar noite e dia que
ela partisse para algum lugar, a fim de embarcar-me também
em uma grande aventura. Ouvi uns marujos dizerem que a
caravela iria às Índias, então, eu aguentei firme ali, até o início
da grande viagem. Depois da longa e sofrível viagem, fui
descoberto no porão da naus, por um dos marujos. Ele
entregou-me ao capitão da nau, que, invés de deportar-me
para Lisboa, em uma das paradas, fizeram-me escravo deles.
Eu pensei em chegar à Índia e acabei por desembarcar numa
pequena vila desta colônia, qual eles diziam chamar-se Brasil.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 187.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA./PORTA DE
FRENTE DA CAPELA DA FAZENDA.
Dirceu e Zé da Viúva estão sentados no chão próximo a porta de frente
da capela da fazenda ouvindo o relato de Joaquim Alonso. Prato vazio
nas mãos de Joaquim Alonso. Joaquim Alonso entrega o prato vazio
para Zé da Viúva. Joaquim Alonso pega a botija e despeja um pouco de
água no copo. Ele bebe a água, respira fundo e continua o seu relato.
520
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 188.1 - INT./EXT./DIA/NOITE. VÁRIOS.
Flash back – Relato de Joaquim Alonso
Brasil. Baia de Guanabara. Velha nau se atracando no porto da Baia de
Guanabara. Joaquim Alonso desembarca-se ao lado dos marujos. Visão
panorâmica da Baía de Guanabara, como paraíso terrestre, do tempo
medieval. Naus atracada á beira do porto na Baia de Guanabara.
Cozinha da nau. Joaquim Alonso servindo de ajudante na cozinha ao
lado de alguns cozinheiros. Joaquim Alonso limpando alguns cômodos
da nau. Madrugada. Porto da Baía de Guanabara. Joaquim Alonso e
outros homens pulam da nau no mar, nadando rapidamente.
JOAQUIM ALONSO (VOICE OVER)
Fiquei durante alguns meses na Baía de Guanabara. Lá passei
a fazer algumas tarefas como auxiliar de cozinha e a limpar as
naus, conforme os marujos exigiam. Tempos depois fugi de lá,
juntamente com outros homens que vinham para Vila Rica.
Estou nesta região desde o ano de 1789 e, agora, infelizmente,
encontro-me neste estado deplorável, a confundir-me com os
mendigos.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 187.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA./PORTA DE
FRENTE DA CAPELA DA FAZENDA.
Joaquim Alonso está sentado na porta da capela da fazenda ao lado de
Dirceu e de Zé da Viúva.
JOAQUIM ALONSO
Preciso de abrigo, por acaso vós mercês não necessitam de
alguém para qualquer tipo de trabalho?
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Sim, quem sabe não poderemos ajudá-lo a se desfazer desse
estado deplorável...
JOAQUIM ALONSO
Não somente ficarei agradecido, como Deus também há de
ajudá-lo por ter socorrido esta pobre e deplorável alma,
senhor, senhor...
ZÉ DA VIÚVA
Dirceu, o nome do inhozinho é Dirceu. E será se o moço já
consegue ficar de pé?
JOAQUIM ALONSO
Creio que sim, meu filho. Andei bem umas léguas até chegar
por cá. Antes de vós mercês ter-me descoberto cá eu já havia
dormido um pouco e descansado não só o meu espírito, como
também o meu corpo. Um é a luz do outro.
Dirceu e Zé da Viúva levantam-se do chão. Joaquim Alonso faz o
mesmo, levantando-se e pegando o saco com algumas peças de roupas,
no qual ele estava sentado. Zé da Viúva pega o seu cavalo pela rédea e
pede para que Joaquim Alonso o seguisse. Dirceu também pega o cavalo
dele pela rédea. Estrada da capela que vai até a fazenda. Dirceu e Zé da
Viúva puxam os seus cavalos pelas rédeas. Joaquim Alonso, com o saco
nas costas, segue Dirceu e Zé da Viúva puxando os cavalos deles.
SEQUÊNCIA 188.2 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
CLIPS FOTOGRÁFICOS DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO:
capela da fazenda, cancela, casarão, casas de Cirilo, Hipólito e Miliquito,
oficina de farinha de mandioca, oficina de queijo, engenho de cana,
curral, chiqueiro das cabras, ovelhas pastando, campinas, bois pastando
nas campinas, lagoa, riachos, etc.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
Varanda do casarão. Dirceu está na varanda do casarão, sentado em um
dos tamboretes observando Joaquim Alonso, todo bem vestido, com
uma varinha de marmelo riscando no chão as letras do alfabeto da
língua portuguesa. Miliquito, Cirilo e Ambrósio mostravam-se
encantados, observando as letras riscadas no chão. Joaquim Alonso
aponta as letras com a varinha de marmelo, ensinando Miliquito, Cirilo e
Ambrósio a decifrá-las. Inácia, Eulina e Quitéria também observam
Joaquim Alonso riscar letras no chão. Joaquim Alonso ensina também
para Inácia, Eulina e Quitéria a decifrar as letras. Capela da fazenda.
Grande mesa improvisada dentro da capela, pelo lado esquerdo. OS
ALUNOS, Miliquito, Cirilo, Ambrósio, Hipólito, Inácia, Quitéria e
Eulina sentados em dois grandes bancos expostos à direita e à esquerda
da grande mesa. Tinteiros, penas e papéis próximos aos alunos. Joaquim
Alonso todo entusiasmado ensina os alunos a escreverem os seus
nomes. Papéis. Mãos dos alunos nos papéis escrevendo os seus
respectivos nomes.
DIRCEU (VOICE OVER)
Joaquim Alonso logo se tornou o mais novo membro da
nossa família. Não demorou muitos dias e ele conquistou a
simpatia e a confiança de todos nós. Ele revelava-se um
homem letrado, disposto a ensinar a todos da fazenda a ler e a
escrever, durante os tempos de ociosidade. Não tínhamos
uma lousa na fazenda, ele, todavia, arrumara um meio
pedagógico para ensinar aos seus alunos, com uma varinha de
marmelo riscando o chão liso, preparado por ele, durante cada
lição. Eu chamava-o de Anchieta, principalmente ao vê-lo
recitar em latim, alguns poemas clássicos de Virgílio e de
Horácio. Não demorei a ceder-lhe a capela, transformando ali,
no final de semana em um ambiente escolar com tinteiros,
penas e papéis, pronto a atender quem quisesse aprender a ler
e a escrever...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 189 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
VÁRIOS.
Campos e colinas dos arredores da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu
cavalga pelos campos. Pássaros de várias espécies voam de uma árvore
para a outra. Dirceu sai do campo e entra na estrada do capoeirão. Ele
segura firme a rédea do cavalo e fecha os olhos, sentindo o vento fresco
bater em seu rosto.
CORTA PARA
EFEITO: Marília aparece vestida de camponesa, com uma bonita coroa
de flores na cabeça. Ela cavalga em um cavalo branco pelo alto da
colina. Dirceu, vestido de vaqueiro, cavalga rápido pela campina. O alto
da colina se ilumina com raios dourados. Dirceu frea o cavalo, olha para
o alto da colina e vê Marília radiantemente linda. Dirceu cavalga em
direção à Marília, indo para o alto da colina. Campina verde, cheia de
flores do campo. Marília e Dirceu se encontram na campina verde, cheia
de flores do campo. Riachos, quedas-d'água, borboletas voando em
círculos, abelhas, colibris dourados beijando as flores e os pássaros
voando pelo céu avermelhado. Marília e Dirceu deitam no relvado e
beijam-se.
CORTA PARA
Fazenda de dom Manuel. Estrada do capoeirão próxima a fazenda de
dom Manuel. Dirceu cavalga na estrada do capoeirão próxima a fazenda
de dom Manuel. Ele segura firme a rédea do cavalo, abre os olhos e leva
um susto. Ele fala por solilóquio.
DIRCEU
Marília, minha amada Marília, se soubesses o quanto eu
gostaria de tê-la, cá, comigo... Não somente galoparíamos pela
campina, mas também pelas colinas verdejantes. Seríamos
como os deuses no Olimpo. Ah, dona Maria, cá no meu peito
diz que não demorarei a tê-la para sempre em minha vida...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
Dirceu cavalga pela estrada do capoeirão, próxima a fazenda de dom
Manuel. Ele casualmente encontra-se com as duas filhas de Antenor,
uma de 16 e outra de 18 anos. Elas estão tendo dificuldades com um
cavalo. O cavalo delas empaca-se na estrada do capoeirão. Saco cheio de
mantimentos caído na estrada. As duas filhas de Antenor batem no
cavalo com um cipó. Dirceu frea o cavalo, tira o chapéu e cumprimenta
as duas filhas de Antenor. As duas filhas de Antenor alegram-se ao ver
Dirceu.
DIRCEU
O cavalo empacou no capoeirão, foi?
FILHA DE ANTENOR DE 18 ANOS
Ora, senhor Dirceu, Deus o enviou por cá, para nos
socorrer...
FILHA DE ANTENOR DE 16 ANOS
Fomos a um sítio logo ali, a pedido de mamãe para buscar
alguns mantimentos e não sabemos porque, cá na volta, o
cavalo está a teimar os trotes e, finalmente, empacar-se vez
nesta estrada...
DIRCEU
(pula do cavalo e observa as patas do cavalo)
Cobra não é...
(levanta o saco que está no chão e coloca-o na garupa do
cavalo)
Pesado não está... Uai, meninas, não há nada de errado com o
bicho...
FILHA DE ANTENOR DE 18 ANOS
Meu Deus, a tarde está caindo e logo a nossa mãe estará
preocupada com a nossa demora...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não se preocupem, cá estou para explicar a ela e ao Antenor o
que se sucedeu na viagem de vós mercês...
Dirceu coça a cabeça e olha para o cavalo empacado e depois para as
meninas. Ele aproxima-se do cavalo empacado e monta-lhe na sela.
Dirceu afrouxa a rédea e o cavalo se desempaca. Dirceu cavalga meia
volta com o cavalo, ajeita o saco na garupa e monta nela. O cavalo
empaca novamente na estrada do capoeirão. Dirceu dá risadas.
DIRCEU
O bichinho é tinhoso, ele não gosta de oferecer garupa. Ele se
permite andar apenas com uma pessoa montada na sela...
As duas filhas de Antenor dão risadas.
FILHA DE ANTENOR DE 16 ANOS
Não é que o danado empacou um monte de vez na vinda...
Nós duas estávamos pensando que fosse a areia do
capoeirão...
DIRCEU
Areia do capoeirão nada, o bicho pegou mania e foi só isso...
Vamos fazer o seguinte. A garota mais nova monta-se na sela
do cavalo, ajeitando-se com o saco de mantimentos. Quanto à
garota mais velha, esta venha comigo, na garupa do meu
cavalo...
As duas filhas de Antenor se assustam com a ideia de Dirceu.
FILHA DE ANTENOR DE 18 ANOS
Esta quase anoitecendo e esse cavalo dando trabalho a nós e
ao senhor...
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não se preocupem, confiem em mim. É melhor que eu
acompanhe vós mercês duas com segurança até o sítio do
Antenor. Darei um jeito...
Dirceu coloca a filha mais nova de Antenor montada na sela do cavalo
empacado e ajeita o saco de mantimentos na garupa do mesmo. Em
seguida ele coloca a filha mais velha de Antenor na garupa do cavalo
dele e monta na sela. Os cavalos saem troteando pelo capoeirão.
DIRCEU
Pronto! Creio que agora os nossos cavalos pegam a estrada do
capoeirão antes que anoiteça e preocupem os pais de vossas
senhororias...
Estrada da capoeira. Cavalos cavalgando pela estrada da capoeira.
Fazenda de dom Manuel. Cancela da fazenda de dom Manuel. Sales está
juntamente com alguns de seus homens negros na cancela da fazenda de
dom Manuel. Sales vê Dirceu carregando a filha mais velha de Antenor.
Sales fica um pouco sem graça. Dirceu cumprimenta Sales, tirando o
chapéu. O cavalo de Dirceu tropeça. A filha mais velha de Antenor
agarra a cintura de Dirceu. Sales vê quando a filha mais velha de
Antenor agarra na cintura de Dirceu.
CURVA. OS DOIS CAVALOS SE DESAPARECEM NA CURVA.
ANOITECE.
SEQUÊNCIA 190 – EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA
RICA. PORTÃO DA CASA DE DOM MANUEL. CHAFARIZ
Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Portão da casa de dom Manuel.
Dirceu pula-se do cavalo, ajeita a rédea do cavalo entre um dos braços e
chama-se no portão da casa de dom Manuel, batendo palmas. Portão.
Rosa aparece no portão e ver Dirceu demonstra-se assustada.
527
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ROSA
Sinhô Dirceu parece que perde o juízo de uma hora pra
outra...
DIRCEU
O que foi Rosa? Parece que está um pouco apreensiva. A
dona Marília andou ralhando com vós mercê, foi?
ROSA
Sei disso não. Vai até o chafariz que a dona Marília encontra
com vossemecê por lá...
Dirceu balança a cabeça sinalizando "sim". Rosa sai correndo e alcança a
porta para entrar na casa. Ela entra na casa.
CORTA PARA
Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila Rica. Igrejas.
Casario. Dirceu chega até o chafariz principal de Vila Rica. Ele olha para
todos os lugares procurando um local para amarrar o cavalo dele.
Dirceu arruma um poste de madeira um pouco distante do chafariz. Ele
amarra o cavalo no poste de madeira e volta para o chafariz. Chafariz
escorrendo água. Dirceu lava o rosto na água do chafariz. Rua. Marília
aparece em uma das ruas próxima ao chafariz. Dirceu vê Marília e sorri.
Marília e Dirceu se aproximam. Dirceu tenta dar um abraço em Marília,
mas ela foge apressadamente dos abraços de Dirceu. Dirceu olha para
Marília assustado e confuso. Marília discute com Dirceu virando-lhe
uma vez e outra as costas. Jogo de pantomima entre Dirceu e Marília.
DIRCEU (VOICE OVER)
Quando Marília chegou ao chafariz de Vila Rica, onde eu a
esperava, encontrei-a fria e ambígua. Ela não se atirou ao meu
pescoço e nem sequer beijou-me de saudade. Encontrei uma
Marília carrancuda, briguenta, a dizer-me que eu não mais
ligava para ela, inventando uma história suposta de que eu
namorava outra moça na fazenda, ou em outra freguesia.
528
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Tentei convencê-la de todas as formas de que eu enfrentava
problemas sérios na fazenda, e ninguém capaz de resolvê-las
para mim. Ela atinou a dizer que soubera eu estar namorando
uma moça, filha de um sitiante, próximo da minha fazenda.
Ela referia-se à filha de Antenor. Fi-la contar-me quem
inventara aquela história.
CORTA PARA
Maria olha para Dirceu com um olhar rancoroso e ao mesmo tempo
triste. Ela abaixa a cabeça e fala compassadamente desviado o olhar dos
olhos de Dirceu.
MARÍLIA
O Sales, o senhor meu cunhado contou-me que viu vossa
senhoria de galanteios com uma bonita rapariga, filha de um
sitiante próximo à sua fazenda...
DIRCEU
E ele contou para vós mercê que eu já estou quase noivo da
rapariga?
Chafariz. Marília empurra Dirceu para um dos cantos do chafariz e
fecha a cara. Enquanto Dirceu se ajeita do empurrão, Marília sai
correndo pela praça e senta-se em um dos banquinhos de madeira da
praça. Dirceu corre ao encontro de Marília. Ele ajoelha-se aos pés de
Marília.
DIRCEU
Tudo não passa de mentiras e brincadeiras, Marília. Sabes
muito bem que eu jamais a trocarei por outra mulher. Vós
mercê é a minha vida, minha fonte de inspiração, meu maior
presente dado por Deus...
MARÍLIA
(olha tristemente para Dirceu)
529
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Sente-se Dirceu, não fique ajoelhado perante mim, feito
homem arrependido. Sei muito bem que vós mercê não é
nenhum santinho... Todo homem é cópia de outro homem,
dentro do ser e do parecer, todos são sempre os mesmos...
DIRCEU
(senta-se no banco ao lado de Marília)
Preferes crer em teu cunhado, Marília?
MARÍLIA
(os olhos cheios de lágrimas)
Ultimamente eu tenho sofrido muitos aborrecimentos,
Dirceu. Quero livrar-me destes encargos. Não suporto mais o
peso de viver assim, nas mãos dos outros. Quando uma coisa
parece que vai dá certo, aparece outra que dá tudo errado...
DIRCEU
Marília, deixe-me explicar o mal desentendimento que houve
na suposta história contado a vós mercê por Sales...
MARÍLIA
(levanta-se do banco)
Deixaremos as histórias de lado, Dirceu. Quero a chance de
viver outras, outras histórias novas...
DIRCEU
(põe-se de pé ao lado de Marília)
E se eu disser a vós mercê que eu estava a socorrer duas
moças devido a um problema com o cavalo delas, acreditaria
em mim?
MARÍLIA
(senta-se novamente no banco)
Então vossemecê mesmo confirma que estava passeando com
a moça agarrada em sua sela?
530
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(senta-se também no banco ao lado de Marília)
É que...
MARÍLIA
Não quero explicações, Dirceu...
DIRCEU
Vós mercê conhece bem o seu cunhado, Sales, Marília? Sabia
que ele é cheio de intrigas? E se eu contar a vós mercê que o
diamante que Sales possui não pertence a ele e sim, pertence
ao filho dele, vós mercê acreditaria?
MARÍLIA
Diamante? O que tem a ver diamante com essa história,
Dirceu?
DIRCEU
O filho dele nasceu há poucos meses e eu o presenteei com
um diamante...
MARÍLIA
E vós mercê está falando que presenteou o garoto com um
diamante? Não entendi...
DIRCEU
Pois irás entender, Marília. Aquele diamante que o Sales
possui, nada mais é que um presente dado por mim, ao filho
dele. No dia em que a criança nasceu, eu não permiti que ele
viesse sozinho para Vila Rica, então ofereci vir com ele.
Trouxe-o pela mesma estrada que passamos quando o seu
finado pai faleceu. Ao chegar aqui, pedi a ele para levar um
presente ao recém-nascido. Tempos depois, quando estive
com ele na fazenda, ele sondou-me de várias formas para
saber onde eu havia encontrado o diamante, se eu possuía
ouros ou riquezas. Desde aquele dia, após o espetáculo na
531
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Casa da Ópera, quando vós mercê contou-me que ele possuía
um diamante, pela história inventada por ele, tornei-me
inseguro.
MARÍLIA
Inseguro, por quê?
DIRCEU
Eu tinha a certeza da ambição dele, porém, depois do que vós
mercê contou-me sobre o que ele dissera do diamante, percebi
que ele não era somente um homem ambicioso, como
também mentiroso. A ambição e a mentira estampadas nele
fizeram com que eu cuidasse mais da fazenda. Não me estou
referindo aos cuidados sobre os bens materiais, mas do
pessoal que vive lá, da segurança deles. Fiquei o tempo todo a
alertá-los de pessoas estranhas, sem poder contá-los sobre a
minha aflição. Além do mais, pediria que vós mercê fosse até
a sua fazenda e visse com os seus próprios olhos o que Sales
fez com a fonte de que vós mercê tanto apreciava.
MARÍLIA
(leva a mão direita ao peito)
A fonte?
DIRCEU
Sim, ele estragou a fonte, cavando-a em busca de ouro.
MARÍLIA
Mas lá não há ouro, há?
DIRCEU
O dia que vós mercê recusou a receber aquela pepita de ouro,
joguei-a na margem da fonte, acreditando ser vós mercê
minha pedra mais preciosa do mundo, quando Sales então...
532
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Sales então, o quê?
DIRCEU
Ora, o Sales encontrou a pepita de ouro na margem da fonte
do ribeirão e, movido pela ganância, ordenou que os escravos
da fazenda cavassem tudo ali para encontrar mais ouro. Além
de estragar a fonte, ainda perdeu dois escravos na empreita,
qual carrasco matou ao castigá-los...
MARÍLIA
Não creio que ele tenha feito isso, Dirceu! Creio que vós
mercê está querendo desviar assunto...
DIRCEU
Que assunto, Marília?
MARÍLIA
Da moça, por que Sales haveria de contar-me sobre a moça?
Praça. Pessoas passam pela praça. Marília morde os lábios e pensativa,
vira-se para Dirceu um pouco insegura.
DIRCEU
Porque ele de saber dos nossos encontros às escondidas...
MARÍLIA
Não dos nossos encontros, mas dos encontros entre vós
mercê e a tal rapariga, filha do sitiante...
DIRCEU
Então preferes crer na história contada pelo Sales? Não
queres ouvir a minha versão sobre...
533
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
(tapa os ouvidos com as mãos)
Não, não quero!
DIRCEU
(ficando tenso)
Tudo bem, se vossa senhoria prefere acreditar nele, quanto à
história de uma suposta namorada arranjada para mim, por
ele, passe bem, dona Marília.
Dirceu levanta-se do banco da praça e sai a passos largos indo em
direção onde está o cavalo dele. Marília põe-se de pé e fica reparando
Dirceu. Dirceu monta no cavalo e sai galopando até sumir em uma
esquina. Marília fica sozinha na praça, anda, vai até o chafariz e refresca
delicadamente o rosto. Um bando de andorinhas passa voando pela
praça.
SEQUÊNCIA 191 – EXT./INT./DIA./NOITE. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS.
Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Domingo. Capela da fazenda.
Poucos fiéis sentados no banco da capela. Antenor celebrando a missa
na capela da fazenda. Dirceu destaca-se na capela, sentado em um dos
bancos, comportando-se tristemente. Joaquim Alonso fica a reparar
Dirceu.
CORTA RÁPIDO PARA
Tarde. Campinas. Dirceu cavalgando pelas campinas, tristemente.
Joaquim Alonso, montado em um cavalo vai ao encontro de Dirceu
pelas campinas. Os dois cavalgam lado a lado, calados, apenas
observando as paisagens.
CORTA RÁPIDO PARA
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Pôr-do-sol. Chiqueiro das ovelhas. Grande pedra. Dirceu senta-se na
grande pedra e fica observando Trácio, Endimião e Alceu cuidando das
ovelhas. Joaquim Alonso, montado em um cavalo, ao longe, observa
Dirceu sentado na pedra.
CORTA RÁPIDO PARA
Manhã. Curral. Dirceu ajudando Cirilo, Miliquito, Ambrósio e Hipólito
a apartar as vacas para tirar o leite. Joaquim Alonso aproxima-se do
curral e fic olhando para Dirceu.
CORTA RÁPIDO PARA
Capela da fazenda. Dirceu na capela da fazenda observando o altar
principal. Olhar triste e perdido. Joaquim Alonso aparece na porta da
capela da fazenda e observa Dirceu.
CORTA RÁPIDO PARA
Madrugada. Candeeiro aceso no quarto de Dirceu. Dirceu deitado na
cama com os olhos arregalados para o telhado do casa2rão.
CORTA RÁPIDO PARA
Tarde. Grande cercado. Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro chamam a
atenção de todos da fazenda ao tentar amansar alguns cavalos e burros
bravos. Todos dão risadas com os pinotes dos cavalos, Dirceu, portanto
fica pensativo e triste. Joaquim Alonso, em um dos cantos do cercado,
observa Dirceu.
CORTA RÁPIDO PARA
Quarto de Dirceu. Dirceu no quarto, sentado na cama, encostado a
cabeça em alguns travesseiros.
DIRCEU (VOICE OVER)
535
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Passei a enfrentar os meus dias e meses sem Marília. Vila Rica
perdeu para mim o sentido, restando-me apenas a fazenda
para distrair e acostumar a viver os restos dos meus dias,
sozinho. Pensei em continuar a investigar o sumiço do anjo da
capela de Sant'Ana, porém desisti. Eu não tinha mais cabeça
para pensar em nada. Por mais que eu acordasse cedo,
trabalhasse o dia inteiro, à noite quase não conseguia dormir.
Eu pensava em Marília e entristecia ao imaginar ela ter dado
crédito à história contada pelo cunhado. A minha vontade era
ir até Sales, dizer-lhe umas verdades e resolver a minha vida
amorosa com Marília. Fiz-me truão. Alimentava em meu
espírito uma falsa ideia de que Marília não seria a minha
pastora. Eu, portanto, não seria o vaqueiro, pastor, senhor ou
vassalo dela. Eu pagaria qualquer preço para esquecê-la,
arrancá-la dos meus pensamentos.
SEQUÊNCIA 192 - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
VARANDA DO CASARÃO.
Fazenda Ribeirão do Meio. Varanda do casarão. Dirceu está sentado na
rede com um ar de tristeza. Joaquim Alonso aparece na varanda do
casarão, indo ao encontro de Dirceu. Joaquim Alonso puxa um
tamborete e senta-se ao lado da rede. Dirceu ajeita-se na rede e olha
para Joaquim Alonso meio surpreso.
JOAQUIM ALONSO
Ultimamente eu ando preocupado com o amigo, Dirceu...
DIRCEU
Preocupado comigo? Por que, Joaquim Alonso?
JOAQUIM ALONSO
Porque estou a ver o amigo com os olhares e os pensamentos
distantes, como se alguma coisa lhe abatecesse o espírito...
536
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não é nada, Joaquim Alonso, isso passa...
JOAQUIM ALONSO
Às vezes não passa, senhor Dirceu. Há coisas que nos
acontecem e se torne um fardo. Às vezes é preciso que nós
nos desabafemos com alguém. Quando dividimos os nossos
problemas com alguém, as experiências de um ajuda o outro...
DIRCEU
(olha atentamente para Joaquim Alonso)
Já amou alguém, capaz de se entregar de corpo e alma e
depois esse alguém, por motivo algum, não querer mais saber
de vós mercê...
JOAQUIM ALONSO
Não, nunca amei alguém particularmente e nunca passei por
essa experiência...
DIRCEU
Então como podes me ajudar?
JOAQUIM ALONSO
Posso ajudá-lo a encontrar a paz espiritual...
DIRCEU
Acho que este antídoto, nem os namorados mais experientes
poderiam dar a mim...
JOAQUIM ALONSO
Mas eu posso ajudá-lo a encontrar a paz espiritual...
DIRCEU
E creio também que nem os padres mais experientes poderão
me dar a paz que eu necessito, Joaquim Alonso...
537
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
Da forma de como falas, até parece que perdeu a fé em tudo...
DIRCEU
(para, fica um pouco pensativo e responde)
Talvez tenha acontecido isso...
JOAQUIM ALONSO
Se precisares de ajuda, Dirceu, por favor, conte comigo. Sei
que estou há pouco tempo cá, mas creio ser digno de receber
de vós mercê toda a confiança...
DIRCEU
Eu fico muito agradecido, Joaquim Alonso. Muito agradecido
mesmo...
JOAQUIM ALONSO
É para isso que serve os amigos...
SEQUÊNCIA 193 – EXT./DIA./ FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Fazenda Ribeirão do Meio. Campinas verdes. Dirceu cavalga pelas
campinas. Cenário bucólico: ovelhas pastando; fontes de águas
cristalinas; cascatas; aves cortando os ares, animais selvagens correndo
entre um canto e outro das matas. Sítios. Dirceu conversa com alguns
sitiantes em seus devidos sítios. Fazendas. Dirceu visita algumas
fazendas da região e conversa com os fazendeiros.
DIRCEU (VOICE OVER)
Para recolher-me das preocupações de Joaquim Alonso, passei
a cavalgar todas as tardes pelos sítios e fazendas vizinhas
efetivando e fazendo novas amizades. Meus passeios deram
certo, logo eu sentia um outro homem, apto a uma nova vida,
com o coração vazio, mas rodeado de bons amigos.
538
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
Quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Grande mesa com banquete farto,
no quintal da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu com alguns fazendeiros,
alguns sitiantes e todo o pessoal da fazenda Ribeirão do Meio sentados à
grande mesa com o farto banquete. Antenor levanta-se da mesa e
aproxima-se de Dirceu. Dirceu, ao ver Antenor em pé, próximo a ele,
também se põe de pé. Galinhas, galos, patos e marrecos andando pelo
quintal. Antenor e Dirceu saem andando pelo quintal da fazenda.
ANTENOR
Na semana que vem meus amigos e eu iremos fazer uma
viagem a um pequeno povoado próximo a Rio das Mortes,
conhecido como São José do Rio das Mortes, no sudeste de
Minas Gerais. Lá, próximo a um velho garimpo, vivem alguns
de nossos familiares. Eu visitarei um cunhado, recém-viúvo,
pobre e pai de três crianças; o meu amigo, Terêncio visitará o
pai, um velho índio solitário, cujo vive numa cabana contando
prosas interessantes sobre a região e a vida dele. Irá também
conosco o amigo Tibúrcio, para nos fazer companhia. Se vós
mercê aceitar o meu convite, iremos em quatro pessoas,
cavalgando estrada afora...
DIRCEU
(tira o chapéu da cabeça, coça a nuca e sem pensar muito olha
sorrindo para Antenor)
Sabe amigo Antenor, eu cá estou com alguns probleminhas
particulares e, até que uma viagem dessa pode me fazer bem?
Antenor e Dirceu saem andando pelo quintal do fundo da fazenda.
Ovelhas pastando na manga. Trácio, Alceu e endimiãi são vistos ao
fundo tocando as ovelhas.
539
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 194 – EXT./INT./DIA./NOITE. ESTRADA.
POVOADO DE SÃO JOSÉ DO RIO DAS MORTES. GARIMPO.
CASA DE ENCHIMENTO DO VELHO ÍNDIO.
Legenda: "Uma semana depois".
Madrugada. Estrada. Cavalos de Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio
na estrada. Eles cavalgam pareados, conversando alegremente.
ANTENOR
Eu prometi para a minha esposa que farei o possível para
trazer o irmão dela com as crianças para morar por cá,
conosco, no sítio. O irmão dela é um pouco truão, vive
tocado em São José do Rio das Mortes sonhando em ficar
rico de uma hora para outra, caso venha a encontrar
diamantes. Enquanto isso, só tem acontecido a ele
desgraceiras. Um filho de 14 anos morreu de malária e a
esposa de doença desconhecida, que ninguém soube explicar
até hoje...
TERÊNCIO
(cavalga e parea o cavalo dele entre Dirceu e Tibúrcio)
Eu também vou enfrentar o problema de tentar convencer o
meu velho pai a vir para morar com a minha família. O velho
é um índio meio tinhoso e vive de um pequeno plantio de
milho, banana e mandioca numas terras que ficam nas
margens dos rios destinados aos garimpos. Lá, ouvi falar que é
um problema, o velho senhor meu pai está sempre brigando
com os garimpeiros, a ponto de levar tiro de bacamarte a
qualquer hora...
Meio-dia. Relvado. Cavalos de Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio
amarrados em troncos de árvores, no relvado. Eles estão sentados no
relvado comendo paçocas tiradas de um grande alforje e bebendo água
de suas botijas.
FADE OUT/FADE IN.
540
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Tarde. Estrada. Cavalos de Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio na
estrada. Eles cavalgam pareados, conversando alegremente.
FADE OUT/FADE IN.
Noite. Relvado. Cavalos de Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio
desarreados, pastando no canto de uma mangueira. Redes armadas nos
troncos das árvores. Eles estão deitados em suas respectivas redes.
DIRCEU
Vida de tropeiros é assim. Viaja durante o decorrer do dia,
para uma ou duas vezes para descansar, mesmo sem saber
quem está mais cansado se são os seus burros com as
indumentárias nos lombos ou se são eles escanchados nos
lombos dos bichos. O certo é que chega a noite e aí sim. Os
burros descansam de suas indumentárias, ganhando os pastos
de uma mangueira e os tropeiros estendem as suas redes entre
as árvores e dormem tranquilos, aliviando o corpo do
cansaço...
CORTA PARA
Madrugada. Antenor, Dirceu, Tibúrcio e Terêncio desarmam as suas
redes, comem paçoca e tomam um café coado, feito em num fogão de
três pedras, improvisado por Terêncio. Antenor, Dirceu e Tibúrcio
arream os cavalos e, em seguida, todos cavalgam pela estrada.
TIBÚRCIO
E quando pensa que não os tropeiros acordam, desarmam
suas redes, toma um cafezinho com paçoca de carne seca e pé
na estrada, uns sabem que naquele dia chegam ao seu destino;
outros calculam dizendo que faltam alguns dias...
ANTENOR
Mas o amigo pode ter certeza que São José dos Rios da Morte
está logo ali, chegaremos antes do meio-dia...
541
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
UMA REVOADA DE ARARAS AZUÍS CORTA O CÉU
SAUDANDO A CHEGADA DO SOL.
SEQUÊNCIA 195 – EXT./INT./DIA. SÃO JOSÉ DO RIO DAS
MORTES. PEQUENA TRILHA. CASA DE ENCHIMENTO DO
VELHO ÍNDIO MESTIÇO.
São José do Rio das Mortes, pequeno lugarejo com algumas casinhas em
fileiras e algumas ruas planas e outras acidentadas. Antenor, Dirceu,
Terêncio e Tibúrcio cavalgam pelas ruelas de São José do Rio das
Mortes. Terêncio avista uma pequena trilha e cavalgando, assume a
frente. Antenor, Dirceu e Tibúrcio seguem Terêncio. Pequena trilha.
Eles cavalgam pela pequena trilha. Ouvem-se barulhos de pássaros; aves
coloridas voando por todos os lados, micos ou saguis e guaribas
pulando de galhos em galhos. Lobos guarás correndo pelo mato.
Árvores. Pés de buritis. Veredas. Rios. Riachos. Água caindo dos
penhascos. Cachoeiras. Trilha. Antenor, Dirceu, Terêncio e Tibúrcio
cavalgando pela trilha. Lugar descampado com uma casa de enchimento,
coberta de palhas secas de palmeiras e sem portas. Terêncio dá um sinal
para os amigos frearem os seus cavalos. Ele vai até a frente da casa de
enchimento, pula-se do cavalo e entra rapidamente nela. Grande sala da
casa de enchimento. Rede feita de folhas de palmeiras, estendida entre
dois paus dentro do interior da casa de enchimento. UM VELHO
ÍNDIO MESTIÇO, filho de índia da raça tupiniquim, com homem da
raça branca, de aproximadamente sessenta anos de idade, está dormindo
na rede. Terêncio aproxima-se da rede e vê o velho índio dormindo. Ele
estende as mãos para balançar a rede e acordar o velho índio, mas
afasta-se rapidamente e sai a passos lentos da casa de enchimento.
Terêncio aproxima-se de Antenor, Dirceu e Tibúrcio, quais continuam
montados em seus cavalos.
TERÊNCIO
O senhor meu pai não se encontra em casa. Vou, enquanto
isso, descer a carga do meu cavalo, desarreá-lo e, depois de
542
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
um descanso, ir ao encontro dele lá na roça, próxima a serra
do garimpo.
ANTENOR
Então vamos direto para a serra do garimpo, até a casa do
meu cunhado. Lá descansaremos e amanhã, daremos um jeito
de nos encontrar...
TERÊNCIO
Podem ficar tranquilos que assim que eu ver o senhor meu pai
e convencê-lo ou não a ir comigo para as bandas do ribeirão,
eu os procurarei lá na serra do garimpo...
ANTENOR, DIRCEU E TIBÚRCIO TIRAM OS CHAPÉUS E
CUMPRIMENTAM TERÊNCIO. TERÊNCIO FAZ A MESMA
COISA.
SEQUÊNCIA 196 – EXT./DIA. TRILHA. CAMPO DE ROCHA
DE CRISTAIS (UM ANTIGO GARIMPO).
Trilha. Antenor toma a frente cavalgando com Dirceu e Tibúrcio pela
trilha. Árvores. Pés de buritis. Veredas. Barulho de pássaros voando
entre as árvores. Água caindo de um grande penhasco e rolando entre as
pedras. A trilha dá-se com um largo rio raso, formado por cascalhos.
Antenor, Dirceu e Tibúrcio atravessam um largo rio raso, formado por
cascalho. Água caindo de um bicame de madeira. GARIMPEIROS de
várias idades, peles queimadas, com grandes chapéus de palhas nas
cabeças e com batéias e peneiras nas mãos. Antenor, Dirceu e Tibúrcio
tiram os chapéus e cumprimentam os garimpeiros que estão no largo rio
raso. Trilha. Antenor toma a frente novamente, cavalgando com Dirceu
e Tibúrcio pela trilha. Rio lajeado de pedras e cascalhos. Homens de
várias idades, queimados pelo sol, com bateias nas mãos garimpando
dentro do rio lajeado. Final da trilha. Grande lugar descampado. Rochas
de cristal. HOMENS, também queimados pelo sol, cavando as rochas
543
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
de cristais. Dirceu e Antenor comentam entre eles o que vêem no
grande lugar descampado.
DIRCEU
Meu Deus do céu, que tanta avareza. Estes homens, de certo,
vivem dia e noite sonhando em encontrar por cá, riquezas...
ANTENOR
E virão bichos ferozes, uns desconfiando dos outros. Já ouvi
dizer que ocorre até mortes, devido a ganância...
DIRCEU
Creio que isto tudo já foi abandonado por quem entende de
diamantes. Não vejo estrangeiros por cá, tudo não passa de
um abandono...
ANTENOR
E o meu cunhado vive bestamente por cá, sacrificando os
filhos em prol de um sonho mesquinho, de um diamante, que,
nem falso, brota do chão. Enquanto isso os filhos vivem
sofrendo às mínguas, pois cá, por estas bandas ninguém
planta nada e quem planta alguma coisa troca ou vende por
coisas caras...
DIRCEU
(frea o cavalo um pouco pensativo e olha para Antenor e
Tibúrcio)
Quando criança, no ano da graça de 1771, eu tinha dez anos
de idade e passei por isso no Arraial do Tijuco.
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir
com narração em voice over por Dirceu.
544
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 60 – EXT./DIA. ARRAIAL DO TIJUCO, 1771.
PEQUENA CASA DE ENCHIMENTO À BEIRA DE UMA
ESTRADA.
Legenda: "Arraial do Tijuco, 1771".
Tarde chuvosa. Barulho de trovões. Relâmpagos cortam o espaço.
Casa de enchimento. Interior da casa de enchimento. Chão
batido. Colchões amontoados em um canto, bruaca e caixa de
couro aberta com peças de roupa. Fogão de lenha. Fogo
crepitando no fogão de lenha. Caldeirão fechado cozinhando
feijão com carne. DIRCEU, menino, com aproximadamente dez
anos de idade, todo encolhido, com as mãos tapando os ouvidos,
sentado em um banquinho encostado na parede da casa de
enchimento. Dirceu está trêmulo, ao lado dele, sentado em um
velho tamborete de couro, TIZIU, menino negro, magro e alto,
com aproximadamente doze anos de idade. Raios, relâmpagos e
barulhos de trovões. Dirceu se encolhe a cada barulho. Dirceu
chora, devido ao mal tempo.
DIRCEU (VOICE OVER)
O senhor meu pai somente pensava em ficar rico. Todos os
dias, quando eu acordava, não o via, pois ele estava sempre
garimpando ou mergulhado nas grunas de uma gruta
procurando diamantes e pepitas de ouro. Até hoje eu assusto,
quando me lembro dos dias chuvosos e tempestuosos do
Arraial de Tijuco. Em casa, uma casa de enchimento, pronta a
desabar a qualquer momento, ficava um garoto chamado Tsiu
para cuidar de mim...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 196.1 – EXT./DIA. TRILHA. CAMPO DE ROCHA
DE CRISTAIS (ANTIGO GARIMPO). CASA DE VIVÊNCIO.
Antenor, Dirceu e Tibúrio continuam parados olhando para o campo de
rocha de cristais, onde há alguns homens procurando por diamantes.
545
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ANTENOR
Como sabes, Dirceu, sou lá do Arraial de Tejuco e, no tempo
em que o senhor seu pai garimpava por lá, havia ainda
diamantes. Creio que o senhor seu pai, assim como o senhor
meu pai, deram-se bem nas buscas...
DIRCEU
Sem dúvida e o diamante e o ouro estavam entrando-se em
extinção...
TIBÚRCIO
Nada dura para sempre!
ANTENOR
Nada, senão as palavras de Deus...
Antenor, Dirceu e Tibúrcio estão parados no campo de rocha de
cristais. Os homens que por lá estão garimpando deixam de cavar a
rocha do campo de cristal e olham para Antenor, Dirceu e Tibúrcio.
UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL, assim como os
outros, pele queimada pelo sol, ao ver Antenor, Dirceu e Tibúrcio em
seus cavalos parados no campo de rocha de cristais, grita.
UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL
Ei, onde pensam que podem ir? Se estão chegando com o
sonho de ficar ricos por cá, é lêdo engano... Há nada mais por
cá, não...
Homens que deixaram de cavar a rocha do campo de cristal e um dos
homens do campo de cristal aproximam e fecham um círculo em torno
de Antenor, Dirceu e Tibúrcio.
ANTENOR
Temos interesse em diamantes, não. Somos sitiantes e
fazendeiros. Estou cá para buscar um cunhado com os filhos
546
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
dele... Tivemos notícias de que ele e os filhos passam fome
por cá...
UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL
Como é sabido, senhores, primeiro vem a tempestade e
depois a bonança. A lei de cá nos ensina que é preciso sofrer,
pagar todos os pecados para depois merecer toda a graça que
vem do fundo da terra...
ANTENOR
Creio nisso não. Toda graça vem é de Deus! Os tempos hoje
são outros, o ouro e toda a riqueza deste sertão afora está na
lavoura. Nem cana-de-açúcar estão plantando mais. Agora é o
café trazido por Francisco de Melo Palheta, lá da Etiópia é
que está visando lucros na colônia...
UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL
Sabemos disso não... Aqui vivemos nossos sonhos e
esperanças que todos dias se renovam na fé de cada um...
ANTENOR
Os senhores podem ficar tranquilos, não estamos cá para
procurar nem ouro, nem prata ou diamante. Conforme falei,
estou cá para buscar o meu cunhado...
UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL
Está entre nós, quem vossemecê procura?
ANTENOR
Deveria estar, mas não o vejo cá...
UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL
E o nome do cunhado de vossemecê, qual é?
ANTENOR
Vivêncio, o nome dele é Vivêncio...
547
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Os homens que deixaram de cavar a rocha do campo de cristal e um dos
homens do campo de cristal desfazem-se o círculo dando risadas.
Antenor, Dirceu e Tibúrcio olham para eles assustados.
ANTENOR
Falei alguma coisa engraçada? Aconteceu alguma coisa ao meu
cunhado que vós mercês possam me contar?
UM DOS HOMENS DO CAMPO DE CRISTAL
Não aconteceu nada ao Vivêncio. É que o seu cunhado,
ultimamente tem tido alguns ataques de febre delirando
diamantes. Ele cismou que todas as montanhas dos arredores
de São José do Rio das Mortes são diamantes...
Homens que deixaram de cavar a rocha do campo de cristal e um dos
homens do campo de cristal tornam a dar risadas. Antenor olha para
Dirceu e Tibúrcio, afrouxa a rédea e sai galopando devagar.
ANTENOR
Coitado do Vivêncio, já começou a delirar os delírios dos
loucos...
DIRCEU
É preciso salvá-lo, antes que os filhos também fiquem loucos,
Antenor...
Dirceu e Tibúrcio afrouxam as rédeas dos seus cavalos e seguem
Antenor. Antenor, Dirceu e Tibúrcio passam cavalgando entre o campo
de cristal, seguem uma curta trilha e chegam na casa de Vivêncio. A casa
é feita de enchimento, coberta com palhas secas de palmeiras. Terreiro
da casa de Vivência. Três crianças brincando no terreiro da casa de
Vivêncio. UMA MENINA DE NOVE ANOS, UM MENINO DE
ONZE ANOS e UM OUTRO MENINO DE TREZE ANOS brincam
de correr no terreiro da casa de Vivêncio. Antenor, Dirceu e Tibúrcio
fream os cavalos e ficam observando a casa de Vivêncio e as crianças
brincando no terreiro da casa. Dirceu olha para Antenor.
548
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
São os filhos do senhor seu cunhado?
ANTENOR
Sim, são eles. Graças a Deus que eles parecem saudáveis...
As crianças correm pelo terreiro da casa de Vivêncio. A menina de nove
anos vê Antenor, Dirceu e Tibúrcio parados em seus respectivos
cavalos. Ela assusta-se e corre para dentro da casa de Vivêncio. Antenor,
Dirceu e Tibúrcio pulam-se dos cavalos. Dirceu vai até a porta da casa
de Vivêncio para chamar por alguém. Antes de Antenor se preparar
para chamar por alguém, VIVÊNCIO, 30 anos, baixo, magro, pele clara
e queimada pelo sol, cabelos encacheados e olhos azuis, vestindo roupas
remendadas, encardidas e sem cor, aparece na porta. Ao ver Antenor
com os comapnheiros de viagem, ele demonstra-se surpreso.
ANTENOR
Venho de longe com alguns companheiros para levar vós
mercê e filhos para junto aos nossos...
VIVÊNCIO
Cunhado Antenor, mas que surpresa. Não esperava jamais ser
lembrado por vossemecê e por minha irmã, senhora sua
esposa...
ANTENOR
Vivemos preocupados com vós mercê e seus filhos Vivêncio.
Desta vez não aceito que diga não à minha ajuda. Senão por
vós mercê, pelo menos pelos seus filhos...
VIVÊNCIO
(coça a cabeça, olha para Dirceu e olha para Tibúrcio, ainda
montados em seus cavalos)
São os seus companheiros?
ANTENOR
549
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Sim, meus companheiros e também companheiros de vós
mercê e de seus filhos se aceitarem a fazer a viagem...
Antenor dá um sinal para Dirceu e Tibúrcio. Os dois pulam dos cavalos
e vão ao encontro de Antenor e de Vivêncio, na porta da casa. Vivêncio,
timidamente, estende as mãos para Dirceu e Tibúrcio. O menino de
onze anos e o outro de treze anos passam correndo na frente do terreiro
da casa e vê o pai, Vivêncio, conversando com Antenor, Dirceu e
Tibúrcio. O menino de onze anos e o outro de treze anos fogem pela
lateral esquerda da casa.
DIRCEU
Convém ficar por cá não, Vivêncio. O povo ainda está
buscando nas entranhas da terra, o que já acabou há muito
tempo... Agora se inaugura uma nova era, qual está alicerçada
na agricultura. O ouro, o diamante, as pedras preciosas, estão
na colheita do café, da cana-de-açúcar e até de pequenos
plantios ensinados pelos padres, a horticultura...
ANTENOR
Vivo em pequeno sítio e tenho lá as minhas recompensas.
Crio dois ou três boizinhos, algumas vacas para o leite, queijos
e requeijões frescos, ovelhas para o tosquio da lã, um pequeno
plantio de mandioca, de cará e uma horta com legumes e
verduras... A gente vive com o que se produz, o que a gente
não tem e precisa, outro vizinho tendo, nos socorre e assim
vamos levando a vida...
VIVÊNCIO
Ultimamente eu tenho sonhado com uma grande pedra de
diamante, mas tão grande que parec5 uma montanha. Disse
que eu havia achado e ela não era só minha, mas de todo
mundo...
550
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
E vós mercê acredita no sonho?
VIVÊNCIO
Os mais antigos dizem que os sonhos servem para nos avisar
o que pode ou não acontecer...
ANTENOR
E vós mercê vai ficar sonhando com essa pedra de diamante
gigante, do tamanho de uma montanha?
VIVÊNCIO
Andei cavando por aí, encontrei não. Eu estava cá, pensando
em mudar para o povoado de São José do Rio das Mortes...
acho que é lá que o sonho está indicando ter a tal pedra...
DIRCEU
Que nada, Vivêncio, essa pedra significa a sua família. Todos
juntos para uma vida melhor. Não existe um ditado que até as
pedras se encontram? Está aí a razão do seu sonho... A sua
família está tentando encontrar soluções melhores para vós
mercê e seus filhos...
Vivêncio abaixa-se a cabeça. Antenor toca-lhe pelo ombro.
ANTENOR
Creio que estamos todos com fome, vamos procurar comer
alguma coisa...
TIBÚRCIO
Se precisar de mim, faço comida de tropeiro e das boas.
DIRCEU
Eu trouxe carne seca, inhames, mandioca, feijão verde, arroz e
toucinho, farinha de mandioca para todo mundo passar bem
551
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
por muitos dias. Agora temos de arranjar um panelão para
cozinhar tudo...
VIVÊNCIO
Cá pode não ter muito o quê comer mais temos panela
grande, sim senhor...
Poente. Visão panorâmica da serra, garimpos. Garimpeiros trabalhando
a céu aberto nas aluviões e nas rochas mineralizadas. Trilhas.
Garimpeiros andando pelas trilhas para as suas devidas casas. Casas
feitas de enchimento e telhados de folhas de palmeiras afastadas umas
das outras. Pessoas pobres parados frente às portas de suas casas.
FADE OUT/FADE IN
SEQUÊNCIA 197 – INT./DIA. CASA DE VIVÊNCIO. COZINHA
DA CASA DE VIVÊNCIO.
Manhã. Cozinha da casa de Vivêncio. Fogão de lenha. Grande bule de
café no fogão de lenha. Antenor, Dirceu, Tibúrcio e Vivêncio estão de
cócoras na pequena cozinha da casa de Vivêncio tomando café em
pequenas xícaras feitas de barro. No canto de uma das paredes tem um
pequeno banco. As três crianças estão sentadas no pequeno banco.
Antenor levanta-se e coloca a xícara em um dos cantos do fogão de
lenha.
ANTENOR
Agora vamos pensar na mudança. Estamos todos de cavalo.
Vivêncio não tem animal nenhum para a viagem e, além disso,
temos as crianças...
TIBÚRCIO
Não creio que seja difícil alugar por cá um carro-de-boi. Será
o suficiente para que as crianças viajem tranquilas...
552
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ANTENOR
A viagem vai ser demorada, em vez de levar dois dias, vão
levar de quatro a cinco dias...
DIRCEU
Chegando bem em nossas terras, isso é que nos importa...
VIVÊNCIO
Fazendeiros por cá, há alguns. Já ouvi falar em pessoas desta
região que alugam carros-de-boi para viagens. Não sei se
fazem viagens longas...
TIBÚRCIO
Vamos até o povoado, quem sabe lá não conseguimos
informações de onde alugar um carro-de-boi, principalmente
para uma viagem longa igual a nossa...
DIRCEU
Isso mesmo! Tibúrcio está certo. Vamos arrear os nossos
cavalos e cavalgar até São José do Rio das Mortes... Se o
amigo Antenor quiser vou até lá com o Tibúrcio...
ANTENOR
Eu ficaria muito agradecido se os amigos fizerem isso por
mim e pela minha família. Enquanto isso eu resolvo por cá
algumas pequenas coisas com o cunhado Vivêncio...
TIBÚRCIO
Pois o amigo Antenor pode ficar tranquilo. Dirceu e eu
iremos até o povoado para ver se conseguimos alugar o carrode-boi...
SEQUÊNCIA 198 – EXT./INT./DIA. SÃO JOSÉ DO RIO DAS
MORTES. RUAS. CASAS.
553
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Povoado de São José do Rio das Mortes. Dirceu e Tibúrcio cavalgam
pelas pequenas e estreitas ruas do povoado de São José do Rio das
Mortes. PASSANTES, homens de várias idades, ora morenos ou
brancos. Dirceu e Tibúrcio freiam os seus cavalos e pedem informações
aos passantes. Eles entram em uma casa e outra, conversam nas salas de
visitas com um homem e outro e saem em seguida cavalgando pelas
ruas do pequeno povoado. Tarde. Grande casa. Na porta da grande casa
há uma placa escrita "ESTALAGEM SÃO JOSÉ". Dirceu e Tibúrcio
estão na sala de recepção da estalagem conversando com um moço
moreno, de aproximadamente 40 anos de idade.
DIRCEU (VOICE OVER)
Em São José do Rio das Mortes, Tibúrcio e eu procuramos
alguns proprietários de carros-de-boi para que propuséssemos
o aluguel para a viagem. Todavia, nenhum deles seria capaz de
cumprir a tarefa de uma longa viagem. No final da tarde, do
segundo dia, quando pensávamos em desistir da busca, fomos
informados, na "Estalagem São José" sobre um velho senhor,
chamado Tonhim, morador de uma pequena e modesta
chácara, ali por perto, que estava vendendo um antigo e
conservado carro-de-boi. Interessei-me pelo negócio e
procurei o velho Tonhim.
SEQUÊNCIA 199 – EXT./INT./DIA. CHÁCARA DO VELHO
TONHIM. VARANDA DA CA9A.
Chácara do vSlho Tonhim. Casa do velho Tonhim, com varanda e
quintal do fundo com algumas árvores frutíferas. No lado lateral
esquerdo da casa do velho Tonhim há um carro-de-boi estacionado.
Portão da chácara do velho Tonhim. Dirceu e Tibúrcio chegam no
portão da chácara do velho Tonhim. Varanda da casa do velho Tonhim.
Dois cachorros saem latindo da varanda da casa do velho Tonhim indo
de encontro ao portão. Porta da casa do velho Tonhim abre-se. O
554
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VELHO TONHIM, magro, alto, moreno, cabelos brancos, olhos
escuros, de aproximadamente 70 anos, sai de dentro da casa. Varanda.
Ele acalma os dois cachorros e vai até o portão receber Dirceu e
Tibúrcio. O velho Tonhim tira o chapéu e cumprimenta Dirceu e
Tibúrcio. Varanda da casa do velho Tonhim. Dirceu, Tibúrcio e o Velho
Tonhim estão sentados em um banco, encostado em uma das paredes
da varanda, conversando. Carro-de-boi no lado lateral esquerdo da casa
do velho Tonhim. Tibúrcio e Dirceu avaliam o carro-de-boi estacionado
no lado lateral esquerdo da casa do velho Tonhim.
TIBÚRCIO
O carro-de-boi se encontra em bom estado, amigo Dirceu.
Ele foi feito com o pau d`arco, uma das melhores madeiras
para a confecção de um carro duradouro...
DIRCEU
Está condizente ao valor da oferta, Tibúrcio?
TIBÚRCIO
Sim, está. O velho Tonhim não errou no valor do carro-deboi.
Varanda da casa do velho Tonhim. O Velho Tonhim está na varanda da
pequena casa sentado no banco. Dirceu e Tibúrcio vêm andando pelo
quintal e entram na varanda da pequena casa. Dirceu senta-se ao lado do
velho Tonhim.
DIRCEU
Vou ficar com o carro-de-boi...
VELHO TONHIM
Vai ficar com os bois também? Tenho três parelhas prontas.
Cada parelha é para dois bois, que como vossemecê sabe
trabalham um ao lado do outro, unidos pela canga. Mais tarde
meus filhos estarão por cá e eu os pedirei para cangar os bois
555
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
no carro. Meus filhos são bons carreiros e podem levar para
vós mercê o carro até o arraial de São José...
DIRCEU
Então se vós mercê, senhor Tonhim, tem três parelhas
prontas para o carro ser tocado com seis bois, vou querer as
parelhas e os bois. Quanto a ajuda dos seus filhos, não vou
dispensar, pois creio que eu e o meu amigo não temos
experiência nenhuma em tocar carro-de-boi...
VELHO TONHIM
Então para que o negócio seja bem feito, vou mostrar para
vossemecês as parelhas e os seis bois que estão pastando logo
ali, numa mangueira de um velho amigo meu...
GALINHAS, GALOS, PATOS E LEITÕES ANDANDO PELO
TERREIRO DA CHÁCARA DO VELHO TONHIM.
Quintal lateral do lado direito da casa do velho Tonhim. O velho
Tonhim segue à frente. Dirceu e Tibúrcio seguem o velho Tonhim.
Parede de um dos cantos da casa do velho Tonhim. Há três parelhas de
bois encostadas na parede de um dos cantos da casa do velho Tonhim.
Dirceu e Tibúrcio avaliam as parelhas de bois Tibúrcio balança a cabeça
afirmando "sim" para Dirceu. Galinhas, galos e patos ciscando no
terreiro. Mangueira com seis bois pastando. Velho Tonhim, Dirceu e
Tibúrcio, na cerca, olhando os seis bois pastando na mangueira. Dirceu
olha encantado para os seis bois.
FADE OU/FADE IN
SEQUÊNCIA 199 – EXT./DIA. ESTRADA. POVOADO DE SÃO
JOSÉ DO RIO DAS MORTES. CACHOEIRA OU CORREDEIRA.
Estrada. Os dois filhos do velho Tonhim, dois rapazes morenos, altos e
olhos escuros, um de vinte três e outro de vinte cinco anos, tocam o
556
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
carro-de-boi. Dirceu e Tibúrcio seguem cavalgando pela lateral da
pequena estrada.
CORTA PARA
Povoado de São José do Rio das Mortes. Carro-de-boi guarnecido com
uma cobertura de esteira, sendo tocado por Vivêncio. Os três filhos de
Vivêncio e o velho índio, pai de Terêncio, estão sentados em um
acocheado macio, estendido no carro-de-boi. Dirceu, Tiburcio, Antenor
e Terêncio cavalgam pelas laterais esquerdas e direitas da estrada. O
velho índio pula do carro-de-boi e dá um sinal para que todos parem e
olhem para ele.
VELHO ÍNDIO
No quiero interrumpir el viaje de vós mercês. Yo sólo quiero
e tenho de despedir da corredeira de São José...
TERÊNCIO
(vendo o pai parado no meio da estrada empoeirada sorri e
tira o chapéu)
Vai sim, senhor meu pai. Vai e despeça da corredeira de São
José do Rio das Mortes. Lembre-se que temos de seguir
viagem logo, porque temos crianças também nesta
empreitada...
VELHO ÍNDIO
Índio no tomará mucho tiempo de vós mercês... Hijo de indio
bravo quer despedir da corredeira de San José. Lá, a alma do
viejo indio paira sobre os cuidados de deus Tupã.
VELHO ÍNDIO
(anda pela estrada, vai até o cavalo de Dirceu e olha para ele)
Hijo del Hombre Blanco viene con el hijo de Tupiniquim...
Dirceu olha assustado para o Velho ìndio. Terêncio olha para Dirceu,
tira o chapéu e coça a cabeça.
557
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
TERÊNCIO
O meu pai está misturando a nossa língua com a língua
espanhola. Ele disse o seguinte: "Filho de branco vem com
filho de tupiniquim..." Ele está pedindo para vós mercê seguilo...
CORTA PARA
Dirceu vai ao encontro do velho índio cavalgando em seu cavalo. O
velho índio bate as mãos no rosto do cavalo e dá um sinal para que
Dirceu pule do cavalo. Dirceu pula do cavalo e entrega a rédea do
cavalo para Terêncio. Pequena trilha. O velho índio olha para a pequena
trilha, dá um sinal para que Dirceu o seguisse e entra na pequena trilha.
O velho índio e Dirceu andam pela pequena trilha até chegarem numa
fonte. A água cai de um penhasco na fonte. O velho índio aproxima-se
da fonte, põe-se de cócoras na margem dela e, olhando para a água, fala
uma língua estranha. Dirceu. fica atentamente observando o velho índio.
Lágrimas escorrem dos olhos do velho índio e cai na água da fonte. O
velho índio olha para Dirceu.
VELHO ÍNDIO
Moço novo guarda segredo de homem velho, na fazenda. O
segredo é perigoso. Se homem ambicioso descobrir o segredo
de homem velho, a colônia se infestará de maldades.
DIRCEU
Vós mercê está a se referir a qual segredo?
VELHO ÍNDIO
Anjo mostrará ao moço branco um segredo guardado pela
negra velha. Mas é só o começo, porque o segredo haverá de
estar com aquela a quem moço branco casará.
DIRCEU
(coloca-se de cócoras ao lado do velho índio)
Marília?
558
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VELHO ÍNDIO
Os anjos do céu se incumbirão dessa tarefa.
Água da fonte. O velho índio toca as mãos na água da fonte. A imagem
de Marília aparece na água da fonte. Dirceu fica parado olhando para a
imagem de Marília, até que ela se desapareça da água da fonte.
VELHO ÍNDIO
Moça branca está com o coração ferido. Ela gosta muito de
vossemecê e tudo só depende de ela conhecer a verdade para
as suas almas tornarem em uma só. Não demorará muito.
Agora velho índio vai purificar moço branco. É preciso que
moço branco entre na água...
Água da fonte. Dirceu se despiu rapidamente, ficando apenas com a
roupa de baixo. O velho índio coloca as mãos na cabeça dele e balbucia
algumas palavras estranhas. Dirceu entrou na água da fonte.
VELHO ÍNDIO
Moço branco pode sair da água. Moço branco está purificado
contra qualquer mal... Vamos encontrar aos nossos...
Trilhas. O velho índio olha para outra trilha. Dirceu aponta a trilha em
que eles vieram para a fonte. O velho índio sorri e entra na outra trilha.
Dirceu segue o velho índio.
VELHO ÍNDIO
Índio velho é sábio. Índio não segue os mesmos caminhos.
Ida é diferente de volta. Em cada lugar que vou os caminhos
são diferentes. Vossemecê, jovem branco, um dia haverá de
escolher um, entre sete caminhos. Terá de agir com toda a
presteza do seu equilíbrio, raciocínio e emoção.
Trilha. O velho índio e Dirceu seguem pela trilha até chegar onde estão
os outros. As três crianças brincam em um relvado, enquanto Tibúrcio,
559
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Antenor, terêncio e Vivêncio assam uma grande caça em um braseiro
improvisado.
TODOS COMEM DA CAÇA ASSADA.
SEQUÊNCIA 200 – ESTRADA. VÁRIOS.
Estrada. Cavalos de Dirceu, Tibúrcio, Antenor e Terêncio. Carro-de-boi
tocado por Vivêncio, levando as crianças e o velho índio deitados no
acocheado macio, estendido no carro-de-boi. Vários fade in e fade out
denotando dias, tardes e noites, com diversas transições de imagens.
CORTA PARA
Estrada. Cavalo de Dirceu pareado com o cavalo de Terêncio. Terêncio
relata para Dirceu sobre o velho índio.
TERÊNCIO
O meu pai foi criado por um padre espanhol, desde quando
nasceu...
DIRCEU
E porque dizem que é um velho índio...
TERÊNCIO
Porque ele é um mestiço, ous seja, ele filho de um homem
branco, um europeu, com uma índia da tribo tupiniquim.
Acontece que...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 201. EXT./INT. DIA. VÁRIOS.
Flash back – Relato de Terêncio.
560
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Aldeia de índios tupiniquins. Rio próximo à aldeia dos tupiniquins. Índia
tupiniquim, de aproximadamente dezoito anos e um moço espanhol, de
vinte e cinco anos, nadando, nus, no rio próximo à aldeia dos
tupiniquins. A ÍNDIA TUPINIQUIM e O MOÇO espanhol beijam-se,
ora dentro do rio, ora na areia da margem do rio e de um bonito
relvado. Pequena vila. Casa do moço espanhol. Cama. Índia tupiniquim
e o moço espanhol estão deitados na cama transando. Índia tupiniquim
aparece grávida. O moço espanhol passa as mãos no ventre da índia
tupiniquim, dando risadas de alegria. Aldeia de índios tupiniquins. Índia
tupiniquim entra em trabalho de parto. A índia tupiniquim dá a luz ao
filho, estando de cócoras. A CRIANÇA chora ao nascer. A índia
tupiniquim acolhe-o, nu, nos braços. Pequena vila. Casa do moço
espanhol. A casa do moço espanhol está fechada. A índia tupiniquim,
com a criança no colo vai até a casa do moço espanhol, na pequena vila.
A índia tupiniquim, com a criança no colo, bate na porta da casa do
moço espanhol e não aparece ninguém. UMA SENHORA de uma casa
vizinha estranha ao ver a índia tupiniquim bater na porta e vai ao
encontro dela.
SENHORA
Sinto muito dizer para vossemecê que o moço espanhol foi
embora para a terra dele...
ÍNDIA TUPINIQUIM
Moço branco deixou índia e filho. Moço branco não queria
viver com índia tupiniquim e filho de índia e de branco...
A senhora apenas fica olhando para a índia tupiniquim e sai devagarinho
para a casa dela. A índia abraça o filho e olha para a casa vazia. A índia
tupiniquim mete o pé na porta da casa fechada. A porta da casa abre. A
índia tupiniquim entra na casa e corre até o quarto. A casa está vazia. O
quarto está sem a cama, vazio. A índia tupiniquim cai no canto do chão
chorando, agarrando o filho. Pôr-do-sol. Alto de um penhasco, a índia
tupiniquim tenta jogar a criança do alto do penhasco. DOIS PADRES
ESPANHÓIS aparecem por acaso e salva a criança, tirando-a dos
braços da índia. A índia tupiniquim se atira do alto do penhasco.
561
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Pequena Vila. Casa de um velho padre espanhol. A criança indígena,
com sete anos, vestido igual aos meninos brancos, sentado á mesa
almoçando com o velho padre espanhol.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 200.1 – ESTRADA. VÁRIOS.
Estrada. Cavalo de Dirceu pareado com o cavalo de Terêncio. Terêncio
continua relatando a história do velho índio.
TERÊNCIO
O meu velho pai, desde quando soubera que era índio, da
tribo tupiniquim, ele sentia-se infeliz de não viver a cultura
dele. Daí então, ele juntou-se com uma índia guarani, no
intuito de viver a cultura indígena, mas, infeelizmente, acabou
não sendo aceito na tribo dela. Ele, portanto, levou a índia
para morar com ele na vila de São José dos Rios das Mortes.
Lá, eles viveram felizes, até quando a índia morreu, meses
depois do meu nascimento.
DIRCEU
Então o amigo Terêncio é um índio legítimo...
TERÊNCIO
Nosso povo está sendo construído dessa forma, Dirceu, numa
mistura de índios, europeus e africanos... Sabe que nós vamos
ser uma colônia de povos felizes, diferentes de todo o povo
do mundo...
Estrada. Noite. Redes amarradas em troncos de árvores. Crianças,
Vivêncio e o velho índio dormem no carro-de-boi. Madrugada. Estrada.
Viagem. Carro-de-boi e cavalos de Dirceu, Terêncio, Antenor e
Tibúrcio na estrada.
562
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VISÃO GERAL DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
FOTOGRAFIAS DE ALGUNS LUGARES DA FAZENDA.
SEQUÊNCIA 202 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Véspera do pôr-do-sol. Cancela da fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu
calvaga rápido para chegar até a cancela da fazenda. Ele abre a cancela e
entra cavalgando rápido pelo quintal de frente da fazenda. Dirceu frea o
cavalo e olha para todos os lados do quintal da fazenda. Varanda do
casarão. lado lateral esquerdo do casarão. Casas de Cirilo, Hipólito e
Miliquito. Antigo aposento de Farias. NINGUÉM ali presente. Dirceu
fica preocupado.
DIRCEU
Meu Deus, será se aconteceu alguma coisa de mal com o
pessoal da minha fazenda? Onde estão todos?
Dirceu pula do cavalo, tira o chapéu da cabeça e entra na varanda,
empurra a porta e entra no casarão. Ele olha para a grande sala.
NINGUÉM na grande sala. Dirceu para e pensa no sonho que tivera.
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Sonho de Dirceu
SEQUÊNCIA 185 – INT./EXT. NOITE. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. ESTRADA PRÓXIMA À FAZENDA.
CANCELA DA FAZENDA. QUINTAL DE FRENTE DA
FAZENDA. VARANDA DO CASARÃO.
Fazenda Ribeirão do Meio. Estrada próxima à fazenda. UM
BANDO DE CAVALEIROS (homens brancos e negros) cavalga
pela estrada próxima á fazenda, ao comando de Sales. Cancela da
563
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
fazenda aberta. Sales dá ordem para que o bando de cavaleiros
entre pela cancela da fazenda. Bando de cavaleiros entra no
quintal de frente da fazenda. Miliquito e Cirilo estão no quintal de
frente da fazenda e vêem o bando de cavaleiros entrarem pela
cancela da fazenda. Cirilo e Miliquito correm em direção ao
bando de cavaleiros. Sales dá ordens para alguns cavaleiros
saquearem seus bacamartes e atirarem em Cirilo e Miliquito.
ALGUNS CAVALEIROS atiram em Cirilo e Miliquito. Cirilo e
Miliquito caem enrolando no chão e morrem. Inácia e Eulina
aparecem gritando em direção aos corpos dos maridos Cirilo e
Miliquito. DOIS HOMENS DO BANDO DE CAVALEIROS
atiram em Inácia e Eulina. Inácia recebe um tiro nas costas e
cambaleia-se caindo próxima ao corpo de Cirilo. Eulina grita e
recebe um tiro no peito, cambaleia e cai no chão ao lado do corpo
de Miliquito. Varanda do casarão. Ambrósio, Zé da Viúva e
Raimundo Sobreiro estão na varanda do casarão. Sales invade a
varanda do casarão e aponta o bacamarte para eles. Sales atira em
Ambrósio, Zé da Viúva e em Raimundo Sobreiro. Sebastiana
aparece na varanda trazendo uma cesta de quitutes. Um tiro de
bacamarte atinge o peito de Sebastiana. Ela cai morta no chão.
Rede. Dirceu está deitado na rede. Sales aproxima-se da rede e
cutuca-a com o seu bacamarte. Dirceu olha para Sales assustado.
Sales atira em Dirceu.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 202.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA.
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS.
DIRCEU
Meu Deus, meu Deus, ainda bem que tudo isso que passou
pelo meu pensamento agora, não passou de um sonho. Os
sonhos não podem ser verdadeiros... que os sonhos ruins
nunca sejam...
564
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FADE OUT/FADE IN
Dirceu vai até a cozinha. Panelas na beira do fogão. Mesa com chaleiras,
bules e algumas iguarias numa gamela coberta por pano branco de
rendas. NINGUÉM na cozinha, nem Sebastiana. Dirceu coça a cabeça e
volta ligeiramente para o quintal de frente da fazenda. Cavalo. Dirceu
coloca o chapéu na cabeça, desamarra o cavalo, monta e sai galopando
em direção ao chiqueiro das ovelhas. No chiqueiro das ovelhas Dirceu
procura por Alceu, Trácio e Endimião, mas também não vê ninguém.
Apenas as ovelhas pastando tranquilamente. Dirceu corre até a pequena
choça, mas os três pastores também não estão dentro dela. Dirceu fala
por solilóquio.
DIRCEU
Meu Deus, por que todos desapareceram? Até os meus
pastores que nunca arredam os pés deste lugar...
Cavalo. Dirceu monta novamente no cavalo e cavalga pelo terreiro da
fazenda. Terreiro de frente da fazenda. Ninguém. Dirceu frea o cavalo e
olha para todos os cantos um tanto confuso. Varanda do casarão.
Dirceu olha para a varanda do casarão e vê Farias, barba e bigodes bem
aparados, vestindo um Rhinegrave verde, sapatos de couro e meias
brancas, com um manto azul bordado de estrelas da cor do ouro,
jogados pelas costas.
FARIAS
O mistério está pedindo para ser revelado, senhor Dirceu...
Dirija-se para a capela. Vá depressa até lá...
Farias desaparece numa nuvem de luzes. Dirceu fica bobamente
olhando para a varanda do casarão. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Meu Deus, eu estaria ficando louco? O Farias morreu e eu
estou a vê-lo constantemente... Ele pediu para que eu fosse
565
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
até a capela. Quem sabe eu não encontraria na capela a
resposta para esse mistério?
CAPÍTULO 12
SEQUÊNCIAS 203-215
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Joaquim Alonso
Zé da Viúva
Raimundo Sobreiro
Sebastiana
Cirilo
Miliquito
Hipólito
Raimundo Sobreiro
Sebastiana
Vários sitiantes, fazendeiros e pessoas simples da região
Conceição (aos 20 anos)
Ambrósio
Alceu
Endimião
Trácio
Rosa
Marília
Joaquim Alonso (25 anos)
Pai de Joaquim Alonso
Homens, mulheres e crianças portuguesas
Famílias espanholas
Famílias portuguesas
Tios e dois irmãos de Joaquim Alonso
Homens encapuzados
Irmã de Joaquim Alonso e o marido dela
Jovens espanhóis (convento)
Padre espanhol, idoso (convento)
Jesus Cristo
566
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Multidão de Jerusalém
Discípulos de Jesus
Sacerdotes e escribas
Judas Iscariotes
Homem do cântaro de água
Guardas de Jerusalém
Dono do oleiro
Esposa e filhos do dono do oleiro
Sábia anciã
Homens judeus
Padre Fernandez
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 80
2. Sequência 156
SEQUÊNCIA 203 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CAPELA DA FAZENDA. ESTRADA.
Dirceu olha para a cancela aberta e cavalga em direção à capela da
fazenda. Estrada da capela da fazenda. Dirceu cavalgando rápido pela
estrada da capela da fazenda. Capela da fazenda. Dirceu apeou do cavalo
e correu para a porta de frente da capela da fazenda. Porta de frente da
capela aberta. Dirceu entra na capela da fazenda, dá alguns passos e fica
parado observando todos da fazenda ali, calados, prostrados diante de
uma bonita imagem do anjo São Miguel Arcanjo, qual está no principal
altar da capela da fazenda. Dirceu sorri ao ver todos da fazenda ali.
Dirceu anda devagar para não quebrar o silêncio. Joaquim Alonso
levanta-se de um dos bancos que está sentado e vai ao encontro de
Dirceu. Joaquim Alonso cumprimenta Dirceu tocando-lhe nos ombros.
Dirceu faz o mesmo.
JOAQUIM ALONSO
Finalmente, chegaste, senhor Dirceu.
567
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Finalmente, depois de uma viagem tão exaustiva...
Dirceu aproxima-se do altar principal da capela e fica a contemplar a
imagem do anjo São Miguel Arcanjo. Joaquim Alonso também
contempla a imagem do anjo e olha para Dirceu.
JOAQUIM ALONSO
Essa imagem chegou há pouco, senhor Dirceu. Dois rapazes
de Vila Rica trouxeram-na, dizendo tratar-se de uma
encomenda ao senhor...
DIRCEU
(sorri, olha para a imagem do santo anjo e fala por solilóquio)
Então a imagem do santo anjo estava em poder do senhor
Antônio Francisco Lisboa...
(olha para Joaquim Alonso)
Eu aguardava por essa imagem há muito tempo. Meu pai
comprara de um fazedor de imagens.
JOAQUIM ALONSO
O homem a que todos chamam de feio?
DIRCEU
Sim, o mestre Francisco Antônio Lisboa, conhece-o?
JOAQUIM ALONSO
Já ouvi falar dele. Mas não foi ele quem esculpiu essa imagem
de São Miguel Arcanjo, não, foi?
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Será se o Joaquim Alonso entende alguma coisa de arte? Por
que ele acha que não foi o mestre Francisco Antônio quem
esculpiu essa imagem?
568
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(olha para Joaquim Alonso sem denotar surpresa)
Não, simplesmente a imagem estava com ele e o meu pai
havia comprado nele para decorar a capela...
Joaquim Alonso sorri satisfeito, olha para a imagem de forma estranha e
sai da capela silenciosamente. Cirilo, Miliquito, Hipólito e suas
respectivas esposas levantam-se dos bancos, vão até Dirceu e
cumprimenta-o. Eles saem em seguida da capela da fazenda. Zé da
Viúva e Raimundo Sobreiro benzem-se com o sinal da cruz, vão até
Dirceu e cumprimenta-o.
ZÉ DA VIÚVA
Sinhozinho fez viagem boa?
DIRCEU
Sim, a viagem foi boa, vi homens garimpando nos rios e
cavando o solo duro em busca de riquezas que não existem
mais...
RAIMUNDO SOBREIRO
Depois de inhozinho descansar, inhozinho conta pra gente
sobre a viagem...
DIRCEU
Conto sim. Assim que nós tivermos juntos lá na fazenda...
Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro saem da capela da fazenda. Dirceu
aproxima-se mais do anjo e ajoelha-se. Sebastiana, ajoelhada, cochilavase. Dirceu põe-se de pé, faz o sinal da cruz e toca na imagem
procurando a pequena chave. Um bando de andorinhas invade o
interior da capela da fazenda. Dirceu assusta. Sebastiana também acorda
assustada. Sebastiana percebe a presença de Dirceu e levanta-se de
súbito.
569
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEBASTIANA
Sinhozinho chegou de viagem. Inhozinho deve está com
fome...
DIRCEU
(olha para Sebastiana e diz "sim" com a cabeça)
A viagem tem sido um pouco longa...
SEBASTIANA
Desculpe inhozinho é que o anjo chegou e é tão bonito que a
velha até cochilou agradecendo a Deus pela volta dele...
DIRCEU
Vós mercê lembra dessa imagem, não lembra, Sebastiana?
SEBASTIANA
Sim! Esse anjo foi embora daqui há muitos anos, ele num
chegou a esquentar o nicho feito pra ele. Num sei por que o
padre, antes de morrer, deu ele pra aquele povo de Vila Rica.
Foi um alvoroço danado no dia que ele foi embora. Todas as
pessoas desta região ficaram sentidas. Quando Conceição
morreu, o velho Farias fez eu lembrar desse anjo.
DIRCEU
Por quê?
SEBASTIANA
Por causa disso aqui.
Pescoço de Sebastiana. Ela mostra um velho colocar de sementes preso
em seu pescoço.
DIRCEU
E o que é isso?
570
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEBASTIANA
É um colar que o Farias tirou do pescoço da Conceição e
entregou para eu usar, até o dia que o anjo aparecesse aqui.
Ele disse que era para eu devolver para o anjo.
Sebastiana mostra para Dirceu um colar velho, feito de sementes
grotescas, pendurado no pescoço. Pescoço de Sebastiana. Sebastiana
tira o colar do pescoço e entrega-o para Dirceu. Dirceu examina o colar.
No meio do colar há algo luminoso. Dirceu percebe que é uma pequena
chave. Ele aperta a pequena chave com as mãos e fica a repará-la
fixamente. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Seria a chave que eu procurava para abrir a portinhola do
altar?
(olha para Sebastiana de ímpeto)
Como foi mesmo que o Farias disse ao entregar para a
senhora este colar?
SEBASTIANA
Ele contou para mim que esse colar foi um presente que
Conceição ganhou do anjo...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 204 - INT./DIA. CAPELA DA FAZENDA.
Flash back - Relato de Sebastiana.
Capela da fazenda Ribeirão do Meio. Altar da capela da fazenda. No
altar da capela da fazenda está um andor da imagem de São Miguel
Arcanjo, enfeitado e pronto para ser carregado em procissão. VÁRIOS
SITIANTES, FAZENDEIROS e PESSOAS SIMPLES DA REGIÃO
fazem uma fila para despedirem-se do andor da imagem de São Miguel
Arcanjo. CONCEIÇÃO, com apenas 21 anos de idade é a última que
está na fila para despedir-se do andor da imagem de São Miguel
571
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Arcanjo. UM PADRE DA COMPANHIA DE JESUS prepara-se para
celebrar uma missa. Conceição aproxima-se do andor da imagem de São
Miguel Arcanjo, mas UMA MULHER BRANCA, de aproximadamente
20 anos, traz um ramalhete de flores nos braços e passa na frente de
Sebastiana para colocar o ramalhete nos pés do anjo. A mulher branca
coloca o ramalhete de flores nos pés do andor da imagem de São Miguel
Arcanjo. Conceição aproxima-se dos pés do andor da imagem de São
Miguel Arcanjo para beijá-lo. Uma pequena chave cai nos pés de
Conceição. Conceição abaixa-se e pega a pequena chave. Conceição
beija os pés do andor da imagem de São Miguel Arcanjo e sai feliz,
olhando para a pequena chave...
SEBASTIANA
Farias contou para mim que esse colar foi um presente que
Conceição ganhou do anjo. Ele disse que a Conceição contou
para ele que no dia do andor sair daqui pra Vila Rica,
enquanto uma mulher arrumava o anjinho com flores para a
procissão de partida, ela veio despedir-se dele e essa chavinha
caiu nos pés dela. O velho Farias disse que Conceição jurava
de pé junto que essa chavinha brilhenta do colar dela caiu do
céu, a mando do anjo. Ela beijou os pezinhos do anjo e saiu
agradecida com o presentinho, dizendo que se ele algum dia
voltasse, devolveria para ele.
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Relato de Sebastiana conforme corte a seguir,
sobreposto em off.
SEQUÊNCIA 80 – EXT./INT./DIA/FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. VÁRIOS.
Quarto de Conceição. Conceição está deitada na cama. Sebastiana
entra no quarto de Conceição. Sebastiana tenta
acordar
572
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Conceição, tocando-lhe as mãos. Ela mexe com o corpo de
Conceição, mas Conceição está morta. Porta do quarto de
Conceição. Sebastiana aparece na porta do quarto de Conceição,
gritando por todos da fazenda. Miliquito, Josias, Ambrósio,
Hipólito, Eulina, Inácia, Quitéria e Farias correm até a porta do
quarto de Conceição. Farias aproxima-se do corpo de Conceição e
tira do pescoço dela um velho colar de sementes. Sebastiana está
com o olhar fixo no corpo de Conceição. Farias aproxima-se de
Sebastiana e coloca no pescoço dela o colar de sementes.
SEBASTIANA (OFF)
Inhozinho sabe que a pobre da Conceição morreu, então o
velho Farias tirou o colar do pescoço dela e colocou no meu
para eu cumprir a promessa da Conceição...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 203.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA.
CAPELA DA FAZENDA.
Sebastiana e Dirceu estão sentados em um dos bancos frente ao altar da
capela da fazenda. Colar nas mãos de Dirceu. Sebastiana está com os
olhos cheios de lágrimas. Ela tira o colar das mãos de Dirceu e olha
para a imagem de São Miguel Arcanjo, no altar. Ela quebra o colar ao
meio, tira a pequena chave e vai até o altar onde está a imagem de São
Miguel Arcanjo. Sebastiana deposita a pequena chave nos pés da
imagem de São Miguel Arcanjo.
SEBASTIANA
Está aqui anjinho, a promessa da Conceição, que no céu tá
com vossemecê, juntamente com o Josias e o Farias...
(faz o sinal da cruz e olha para Dirceu)
Tem comida na cozinha para inhozinho, preta velha vai pra
casa esquentar...
573
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Sebastiana anda devagar pelo corredor da capela até desaparecer na
porta de frente. Dirceu olha para a porta de frente da capela e vê
ninguém. Ele dirige-se até o altar onde está a imagem de São Miguel
Arcanjo. Pés da imagem de São Miguel Arcanjo. Pequena chave
brilhando nos pés da imagem de São Miguel Arcanjo. Dirceu pega a
pequena chave. Bolsos da calça de Dirceu. Ele enfia a chave em um dos
bolsos. Do lado de fora da capela começa uma forte ventania. O tempo
começa a ficar nublado. As portas e as janelas da capela abrem-se
devido a rajada de vento. Um imenso clarão invade todo o interior da
capela. Dirceu assusta-se. Ele sai correndo para fora da capela. Cavalo
de Dirceu. Ele monta no cavalo e pega a estrada para a fazenda.
SEQUÊNCIA 205 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VARANDA DO CASARÃO. QUARTO DE DIRCEU.
Trovões, relâmpagos e chuva grossa. Fazenda Ribeirão do Meio.
Varanda do casarão. Dirceu, Ambrósio, Raimundo Sobreiro e Zé da
Viúva estão na varanda do casarão apreciando a chuva. Quarto de
Dirceu. Janela aberta do quarto de Dirceu. Dirceu espia o lado de fora
da janela. Chuva grossa. Ele fica na janela observando a chuva.
DIRCEU (VOICE OVER)
Uma forte trovoada caiu durante sete dias, sem cessar. No
quarto, enquanto eu reparava a forte trovoada pela janela, eu
pensava na possibilidade de toda aquela chuva grossa estar
caindo devido ao mistério contido na capela. Coincidência ou
não, a trovoada começou quando peguei a pequena chave aos
pés do anjo. Algo dizia para mim, ora na voz do velho índio,
ora na voz do falecido Farias. "Sinhozinho, cuidado! O
mistério será capaz de mover todo o universo, principalmente
a nossa colônia".
FADE OUT/FADE IN
574
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Cozinha. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva sentados à mesa da
cozinha. Inácia serve para eles o café com bolos e pães de queijo.
Sebastiana está na janela da cozinha reparando a chuva fina.
SEBASTINA
O céu chora de alegria porque o anjo voltou para o lugar dele,
na capela. Conceição e o velho Farias, decerto, estão alegres,
porque eu cumpri a promessa...
DIRCEU
(olha para Sebastiana e fala por solilóquio)
Eu confesso que não vejo o momento de entrar na capela e
abrir a portinhola do altar para desvendar todo o mistério. Se
Marília estivesse comigo na fazenda, ela seria a única pessoa a
quem eu confiaria aquele segredo...
FOTOGRAFIAS DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO APÓS A
ESTIAGEM.
SEQUÊNCIA 206 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS
Fazenda Ribeirão do Meio. Dia. Terra molhada. Amanhecer do oitavo
dia, após sete dias de chuva. Dirceu, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro
cavalgam em seus respectivos cavalos vistoriando toda a fazenda.
Árvores, aves, animais, plantações, cercas, tudo se encontra em seus
devidos lugares, sem sofrer quaisquer tipos de agressão da natureza.
Ovelhas pastam aos cuidados dos três pastores, Alceu, Endimião e
Trácio. Pequena choça em pé. Dirceu olha para a pequena choça e sorri.
Curral. Cirilo, Miliquito e Ambrósio estão no curral apartando as vacas e
tirando o leite. Vasilhas com leite. Cavalo de Dirceu. Dirceu afrouxa a
rédea do cavalo e sai sozinho cavalgando. Ele vai até a capela da
fazenda. Porta de frente da capela da fazenda. Ele abre a porta de frente
575
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
da capela da fazenda. Porta de frente da capela da fazenda aberta.
Dirceu entra na capela da fazenda dando alguns passos. Ele para de
repente e olha todo o interior da capela da fazenda. Ele sente-se um leve
arrepio. Altar da capela da fazenda com a imagem do anjo São Miguel
Arcanjo. Dirceu olha para a imagem do anjo São Miguel Arcanjo e
rapidamente dirige-se até o altar onde ele está. Ele aproxima-se da
imagem e repara-a tranquilamente.
EFEITOS PARA AÇÃO DA NARRAÇÃO DE DIRCEU
SOBREPOSTA EM OFF: Detalhes da imagem de São Miguel Arcanjo:
armadura e espada em combate contra o dragão. Dirceu olha fixamente
para a imagem de São Gabriel Arcanjo. Antônio Francisco Lisboa
esculpindo uma imagem de São Miguel Arcanjo em pedra sabão. Várias
imagens de São Miguel Arcanjo, conforme a concepção de vários
artistas, desde o renascimento, até os nossos dias atuais.
DIRCEU (OFF)
Antônio Francisco descreveu-me a imagem de forma
absoluta, como se estivesse tocando nela. Eu imaginava que
em algum lugar dessa imagem estava escondida uma
pequenina chave, capaz de desvendar o grande mistério
possivelmente contido dentro do altar da capela. Agora eu
tenho a chave em minhas mãos e tudo o que tenho de fazer é
ter paciência e servir-me cautelosamente, a cada passo, até que
eu possa desvendar todo o mistério...
Altar. Imagem de São Miguel Arcanjo no altar. Dirceu ajoelha-se no
altar e faz o sinal da cruz. Bolsos da calça de Dirceu. Ele enfia a mão em
um dos bolsos da calça e tira a pequena chave. Ele põe-se de pé e vai até
a porta misteriosa do pequeno altar. Chave na mão de Dirceu. Ele
ajoelha-se, olha para a fechadura e sopra-a. Chave. Dirceu enfia a
pequena chave na fechadura. O vento toca forte. Uma das pequenas
janelas abre-se deixando que um raio de sol intenso invada todo o
interior da capela da fazenda. Dirceu fecha os olhos contra a claridade.
Ele tenta rodar a pequena chave na fechadura da pequena porta, mas a
576
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
forte luz o impede. Ele tira a chave da fechadura e aperta-a em uma das
mãos. Ele olha para todo o interior da capela e meio trêmulo, sai a
passos rápidos da capela da fazenda. Cavalo de Dirceu. Dirceu vai até o
cavalo para desamarrá-lo do tronco de uma árvore. Adro da capela da
fazenda. Joaquim Alonso está no adro da capela. Dirceu vê Joaquim
Alonso no adro da capela da fazenda. Joaquim Alonso vai ao encontro
de Dirceu. Dirceu desiste de desamarrar o cavalo e fica observando
Joaquim Alonso vindo ao seu encontro.
JOAQUIM ALONSO
O que foi que o senhor viu lá dentro da capela, senhor
Dirceu? O senhor está amarelo, pálido... parece assustado...
DIRCEU
Nada a não ser o que todos viram, a imagem do santo anjo,
no altar. Se estou amarelo, pálido, com a aparência de
assustado, creio que é porque o meu corpo ainda não se
restabeleceu da longa viagem, Joaquim Alonso...
JOAQUIM ALONSO
(sorri um pouco sem graça)
É verdade, senhor Dirceu. Dizem que a viagem até São José
do Rio das Mortes é um pouco difícil e muito longa para
quem vai de cá até lá...
Dirceu aperta as mãos e sente a pequena chave em uma delas. Ele enfia
uma das mãos no bolso e guarda a pequena chave. Joaquim Alonso fica
reparando Dirceu dos pés à cabeça.
JOAQUIM ALONSO
Eu vim até cá para avisá-lo que o Antenor mandou entregar,
cá na fazenda um carro cantador, dizem que foi o senhor
quem comprou em...
DIRCEU
(demonstra-se surpreso)
577
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Ah, sim, fui eu quem comprei o carro-de-boi lá em São José
do Rio das Mortes... Deixei-o com Antenor. Então ele já
mandou para cá? Quero ver o carro-de-boi... Vamos até a
fazenda.
Cavalo de Dirceu. Dirceu desamarra rapidamente o seu cavalo e monta
nele. Dirceu afrouxa a rédea e grita para Joaquim Alonso. Dirceu tentase animar.
DIRCEU
Como é, vamos ou não vamos para a fazenda?
Joaquim Alonso ainda fica parado olhando para Dirceu. Cavalo de
Joaquim Alonso em das laterais da capela da fazenda. Joaquim Alonso
anda rápido como se fosse até uma das laterais da capela da fazenda,
onde está o cavalo dele. Joaquim Alonso olha para o cavalo e para a
porta de frente da capela. Porta de frente da capela da fazenda aberta.
Ele caminha rápido até a porta de frente da capela da fazenda. Joaquim
Alonso entra na porta de frente da capela da fazenda. Dirceu olha
Joaquim Alonso entrando na capela da fazenda e franze a testa. Dirceu
sai cavalgando devagar pela estrada da capela até a fazenda Ribeirão do
Meio. Um bando de pássaros voa para a torre da capela da fazenda.
SEQUÊNCIA 207 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA.
Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu chega troteando devagar na fazenda
Ribeirão do Meio. Quintal de frente da fazenda. Hipólito, Cirilo,
Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro no quintal de frente da
fazenda contemplando o grande carro-de-boi ainda com os seis bois
amarrados nas cangas. Dirceu aproxima-se montado no cavalo dele.
Todos olham para Dirceu demonstrando-se alegres com o veículo.
578
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CIRILO
Nhô Dirceu fez bem comprar o carro. A fazenda bem que
carecia de um...
HIPÓLITO
Agora podemos carrear boi pelas estradas afora para trazer
mandiocas e canas para trabalhar na meia...
Dirceu pula-se do cavalo. Ambrósio dá alguns passos e pega a rédea do
cavalo de Dirceu.
DIRCEU
Desarreia não, Hipólito. Vou viajar agora para Vila Rica...
CIRILO
Nhozinho vai sozinho de novo?
DIRCEU
Sim, Cirilo. Voltarei logo, antes do anoitecer... Vós mercês
desatrelam os bois carreiros das cangas do carro e os solta nas
campinas para pastarem. Os boizinhos estão um pouco
magros devido à longa viagem...
AMBRÓSIO
Nhozinho pode viajar sossegado que nós fazemos tudo que é
preciso... Nhozinho pode ficar sossegado...
Carro-de-boi. Hipólito, Cirilo, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo
Sobreiro olham para o carro-de-boi. Dirceu anda até a varanda do
casarão. Porta de dentro do casarão. Dirceu entra pela porta e enfia
dentro do casarão.
SEQUÊNCIA 208 –INT./DIA. CASA DO PADRE ROCHA. SALA
DA CASA DO PADRE ROCHA.
579
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Casa do padre Rocha. Grande sala da casa do padre Rocha. Padre
Rocha e Dirceu estão sentados em confortáveis poltronas.
DIRCEU
Mas uma vez, padre Rocha, venho incomodá-lo com a mesma
história sobre a capela da minha fazenda. Eu somente quero
saber um pouco sobre a imagem do anjo São Miguel Arcanjo,
padre...
PADRE ROCHA
(sorri e pergunta para Dirceu em voz baixa)
Encontraste a imagem do santo anjo?
DIRCEU
Sim, encontrei-a Ela está no principal altar da capela da
fazenda e, como a capela não tem padroeiro, quero
informações sobre o anjo para homenageá-lo.
PADRE ROCHA
Encontraste-a por intermédio do fazedor de santo?
DIRCEU
Sim, padre Rocha, a imagem estava com ele.
PADRE ROCHA
Eu desconfiava de que a imagem estava com o Antônio
Francisco...
DIRCEU
Ele pegou a imagem do santo anjo na capela de Sant Ana,
devido a uma dívida.
PADRE ROCHA
Contaram-me essa história, embora eu não acreditasse...
Como conseguiu que ele lhe devolvesse a imagem do santo
anjo?
580
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Meu pai havia comprado dele uma imagem. Eu, portanto, não
sabia que era a do santo anjo.
PADRE ROCHA
(dá risadas)
Então o danado do fazedor de santo levou a imagem a leilão.
Contaram-me que ele saiu oferecendo a imagem a um e outro
e, decerto, o seu pai foi quem deu o melhor lance.
DIRCEU
Disso eu não sei...
PADRE ROCHA
(levanta-se da poltrona, caminha até a janela e volta
novamente a sentar-se na poltrona ao lado de Dirceu)
São Miguel Arcanjo! Sabias que esse anjo é o comandante das
hostes celestes?
DIRCEU
(faz "não" com a cabeça)
Das hostes celestiais?
PADRE ROCHA
(faz uma pausa, respira fundo e prossegue)
Sim, das hostes celestiais. Na Bíblia, ele é um dos poucos
anjos mencionados pelo nome. Isso se dá ao fato de o nome
dele em hebraico significar "quem é como Deus?" Ele é um
dos arcanjos mais importantes. Ele vive no céu ao lado de São
Gabriel e São Rafael, condecorado por Deus, como o "grande
príncipe". Ele é o anjo guerreiro, defensor dos filhos de Israel.
Foi ele quem falou a Moisés no monte Sinai, levou as sete
pragas ao Egito, dividiu as águas do mar Vermelho e guiou os
judeus através do deserto até a Terra Prometida...
581
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
É ele quem guarda a chave do céu, padre Rocha?
PADRE ROCHA
Não, não temos relato nas escrituras sagradas que falem sobre
isso. Segundo os judeus, São Miguel é um dos anjos que estão
diante do trono de Deus, enquanto a tradição cristã acredita
ser ele quem recolhe as almas dos santos e as leva ao céu. É
através da voz dele que os mortos ressuscitarão no dia do
juízo final.
DIRCEU
E qual é a concepção da Igreja Católica perante esse anjo,
padre?
PADRE ROCHA
A nossa igreja comemora a aparição de São Miguel que se deu
no dia 8 de maio, por volta do ano de 492, no monte
Gargano. Até hoje, dizem que muitos peregrinos ainda vão
nesse monte comemorar essa data. Engraçado, não sei se foi
coincidência ou não, mas foi na manhã do dia 8 de maio, que
celebramos a missa de inauguração da capela da fazenda de
vossa senhoria.
(tosse secamente e prossegue)
Isso mesmo, no dia 8 de maio de 1753, foi o dia e o ano da
inauguração da capela de sua fazenda.
Padre Rocha e Dirceu continuam conversando. O padre Rocha,
entusiasmado, às vezes faz alguns gestos com as mãos. Dirceu ouve o
atentamente.
DIRCEU (VOICE OVER)
Quem sabe aquele fenômeno não seria algo criado pela minha
cabeça? Eu ouvia o meu pai dizer que o medo não passava de
um sentimento tolo, capaz de fazer as pessoas criarem
fantasias e verem coisas que não existiam no mundo real.
582
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Todavia, quando o padre Rocha relatou-me sobre o anjo, algo
estranho passou pela minha cabeça. A minha vontade foi sair
dali correndo, ir para um lugar tranquilo e colocar as minhas
ideias em ordem. Se São Miguel Arcanjo era um anjo
comandante das hostes celestes, não foi à-toa que o padre
Fernandez fez questão de ele portar a chave. As informações
trazidas pelo padre bastavam para que eu tirasse todas as
conclusões. A missa foi rezada no dia 8 de maio, dia em que
se comemora a aparição do anjo no monte Gargano, na Itália;
a pregação da primeira missa rezada na capela pelo Padre
Rocha foi acerca da última ceia de Cristo, dando ênfase à
traição do Judas. Não restava eu fazer mais nada, senão voltar
para a fazenda e sanar a minha dúvida.
DIRCEU
Realmente havia algo misterioso por trás da pequena
portinhola do altar da capela. A mim cabia o dever e a
obrigação de investigá-lo...
SEQUÊNCIA 209 – INT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA
RICA.
Ruas de Vila Rica. Dirceu trotea em seu cavalo pelas ruas de Vila Rica.
Uma esquina de uma pequena rua. Aparece Rosa virando a esquina da
pequena rua. Dirceu vê Rosa virando pela esquina e galopa rápido ao
encontro dela. Dirceu frea o cavalo bruscamente ao aproximar-se de
Rosa. Ela assusta-se.
ROSA
Qualquer dia desses o senhor mata-me de susto...
DIRCEU
Desculpe-me, Rosa. É que eu preciso saber como está à dona
Marília...
583
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ROSA
(abaixa a cabeça tristemente)
Sinhá Marília não está bem não, senhor Dirceu.
DIRCEU
(olha desajeitosamente para Rosa)
Ah, é?
ROSA
(estala os dedos e se desabafa para Dirceu)
Sinhá Marília não come e nem bebe direito, só pensa no
sinhozinho dia e noite.
DIRCEU
Que pena! Diga a ela que continue acreditando nas façanhas
do cunhado Sales.
ROSA
Sinhazinha ouviu falar que o sinhozinho vai casar com outra
moça e ela está sofrendo muito com isso...
DIRCEU
(nervoso)
Invenção, pura invenção, Rosa. Não há outra moça mais
digna no mundo de casar-se comigo, senão a dona Marília. O
diabo é que o cunhado meteu-lhe ideias frouxas na cabeça e
tudo o que nos restou foi isso. Ela acreditou no cunhado e
acabou brigando comigo...
ROSA
(arregala os olhos para Dirceu e fala baixinho)
Sinhozinho não quer ver a dona Marília, hoje?
DIRCEU
(olha para um lado e outro, tira o chapéu e coça a cabeça)
584
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Não! Só quero ver a sua sinhazinha se ela largar a irmã, o
cunhado e ir morar comigo na minha fazenda. Caso contrário,
nada feito, Rosa.
Dirceu espora o cavalo e sai galopando rápido pelas ruas de Vila Rica.
Igrejas e casarios vão ficando para trás. Estrada da serra do Ita-corumi.
Dirceu cavalga pela estrada da serra do Ita-corumi.
DIRCEU (VOICE OVER)
Quanto à Marília, o meu coração, infelizmente, dizia que nós
dois éramos como Trácia e Abido, a quem esses dois amantes,
Cupido não deu o maior valor. Marília, a bela, necessitaria, a
partir de então, de todos os seus esforços para reconquistarme. Haveria ela de romper os mares, ir ao inferno e até subir
ao céu, porquanto os destinos impiedosos voltaram contra
nós a face irada. Eu, portanto, não faria outra coisa senão
dizer-lhe isso, no meu silêncio.
CORTA RÁPIDO PARA
SEQUÊNCIA 210 - Flash back – Imaginação de Dirceu.
Dirceu cavalga pela estrada da serra Ita-corumi. Ele fecha os olhos e
começa a sorrir.
Relvado. Grande cesta de piquinique no relvado. Dirceu e Marília estão
sentados no relvado. Dirceu olha tristemente para Marília.
DIRCEU
Ora, Marília, se o teu coração pende mais para a razão do que
para a emoção, saiba, desde agora, que a si mesma está a
roubar e a si própria a ferir-se à-toa.
UM SOL RADIANTE NO MONTE DO ITA-CORUMI COBRE A
IMAGEM DEDIRCEU E MARÍLIA SOB O RELVALDO. DIRCEU
SAI GALOPANDO PELAS COLINAS. IMAGEM NEGRA.
585
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 211 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. CAPELA DA
FAZENDA.
Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela. Cirilo abre a cancela para
Dirceu passar com o cavalo dele. Dirceu entra no quintal de frente da
fazenda. Cirilo fecha a cancela da fazenda e vai ao encontro de Dirceu.
Dirceu pula-se do cavalo. Cirilo aproxima-se de Dirceu.
CIRILO
Tenho um recado para nhozinho. Um dos rapazes da fazenda
lá de cima, do nhô Sales veio cá e pediu para avisar para
nhozinho ir até lá.
DIRCEU
Não tenho nada para conversar com o Sales. Se ele tiver
alguma coisa importante para falar comigo, que ele venha cá.
Pegue o meu cavalo, Cirilo, desarreia e solte na campina,
juntamente com os outros. Vou passear a pé, por aí, para
despistar um pouco os meus pensamentos. Se alguém
perguntar por mim, ainda não cheguei de Vila Rica...
CIRILO
Nhô sim, nhô sim...
Rédea do cavalo de Dirceu. Dirceu entrega a rédea do cavalo dele para
Cirilo. Cirilo sai levando o cavalo pela rédea. Dirceu fica observando
Cirilo carregar o cavalo. Cirilo desaparece do quintal. Dirceu sai
andando em direção a cancela da fazenda. Dirceu abre a cancela e sai
pela estrada que conduz até a capela da fazenda. Estrada. Dirceu anda
na estrada um pouco apressado. Capela da fazenda. Porta de frente da
capela da fazenda. Dirceu empurra a porta de frente da capela da
fazenda e entra. Ele dirige-se a passos rápidos até o altar da capela da
fazenda. Bolsos da calça de Dirceu. Ele tira a chave de um dos bolsos da
calça, aproxima-se do altar e ajoelha-se. Chave na mão de Dirceu.
Pequena porta do altar da capela da fazenda. Fechadura. Dirceu enfia a
586
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
chave na fechadura e abre a pequena porta. Pequena porta aberta. Olhar
de Dirceu observando o interior da porta aberta. Uma sombra aparece
por trás de Dirceu. Dirceu levanta-se assustado e olha para trás. Joaquim
Alonso parado, atrás de Dirceu. Dirceu assusta ao vê-lo. Joaquim
Alonso olha para Dirceu e para a pequena porta do altar da capela da
fazenda aberta.
JOAQUIM ALONSO
Então, chegaste de Vila Rica?
DIRCEU
Sim, e como sabes, Vila Rica não é tão longe daqui...
Dirceu aproxima-se do altar da capela da fazenda, fecha a pequena
porta, tira a pequena chave e coloca-a em um dos bolsos da calça.
JOAQUIM ALONSO
Foste mesmo à Vila Rica?
DIRCEU
Fui, por quê?
JOAQUIM ALONSO
Visitaste o padre Rocha?
DIRCEU
(olha para Joaquim Alonso assustado)
Por que o padre Rocha? Como sabes se eu o visitei ou não...
JOAQUIM ALONSO
Isso não interessa. Foste lá para que ele contasse para vós
mercê sobre o anjo...
DIRCEU
O que sabes?
587
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
(abaixa a cabeça)
Não muito. O padre pôde revelar-te alguma coisa?
DIRCEU
Não estou entendendo. Revelar-me o quê?
JOAQUIM ALONSO
Sobre o mistério denominado entre os padres como "Monetae
sicarii"...
DIRCEU
Monetae sicarii! O que é isso?
Joaquim Alonso aproximou-se do altar da capela da fazenda, agacha,
sopra a portinhola, bate-a com as pontas dos dedos e prossegue.
JOAQUIM ALONSO
Ora, senhor Dirceu, eu estou falando sobre "Monetae sicarii",
guardadas neste altar desde 1753.
DIRCEU
(franze a testa)
Então, vós mercê chegou à minha fazenda para verificar esse
mistério?
JOAQUIM ALONSO
Faz oito anos que estou a investigá-lo...
DIRCEU
E por que?
JOAQUIM ALONSO
Sou padre, conheci um que fazia parte da Companhia de
Jesus.
588
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Alguns minutos de silêncio. Dirceu olha para Joaquim Alonso e sorri
um pouco sem graça. Dirceu olha seriamente para Joaquim Alonso.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Onde eu podia imaginar que aquele homem infiltraria na
minha fazenda para uma investigação, sem que eu
desconfiasse de nada? Quem diria, aquele homem há pouco
era mendigo, dizia ter sido minerador e agora era um padre,
investigador de mistérios em capelas alheias...
JOAQUIM ALONSO
(toca-se as mãos no ombro de Dirceu, amigavelmente)
Vamos conversar lá fora, tenho informações preciosas sobre o
que contém aí dentro desse pequeno altar, antes de vós mercê
abrir a portinhola.
Dirceu e Joaquim Alonso afastam-se do altar da capela da fazenda a
passos rápidos. Porta de frente da capela. Dirceu e Joaquim Alonso
saem pela porta de frente da capela da fazenda. Adro da capela da
fazenda. Dirceu e Joaquim Alonso conversam no adro da capela da
fazenda.
DIRCEU
Vós mercê deve a mim outra história de sua vida. Creio que a
história contada, quando cá chegou, não foi a verdadeira...
JOAQUIM ALONSO
Sou padre e eu sei que a mentira é uma das maiores injúrias,
senhor Dirceu. Peço-te perdão. Eu precisava chegar aqui de
forma confiável, há muito procuro por esse miserável tesouro.
DIRCEU
Miserável tesouro? Como assim?
589
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
Vou colocá-lo a par de tudo, senhor Dirceu. Desde já não
pense que o que há dentro do altar seja um tesouro fantástico,
maravilhoso. Ele é, portanto, uma maldição...
DIRCEU
Uma maldição? Mas um padre iria...
JOAQUIM ALONSO
Ele somente cumpriu uma missão, assim como você está
cumprindo e eu também, ao querermos desvendar todo o
mistério...
DIRCEU
E a sua história, Joaquim Alonso?
JOAQUIM ALONSO
Contar-lhe-ei tudo, inclusive corrigindo algumas passagens da
primeira versão da minha história. Eu realmente sou do
Alentejo e perdi os meus pais em 1785, devido a uma família
rival...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 212 - INT./EXT./DIA. ALENTEJO, PORTUGAL.
GRANDE FAZENDA EM ALENTEJO. ESPANHA.
Flash back – Relato de Joaquim Alonso.
Alentejo. Grande fazenda em Alentejo. Terras da grande fazenda de
Alentejo com a plantação de Olivas. Joaquim Alonso, com 25 anos de
idade andando entre as plantações de olivas, juntamente com o pai,
gordo, cabelos e olhos claros. Cestas com olivas. HOMENS,
MULHERES e CRIANÇAS PORTUGUESAS colhendo olivas.
Mangueira. Gados pastando na mangueira. Campina. Joaquim Alonso e
o pai andando a cavalo pelas campinas.
590
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FADE OUT/FADE IN
Noite. Fazendas e campos sendo incendiados. FAMILIAS
ESPANHOLAS ocupam territórios portugueses. FAMÍLIAS DO
ALENTEJO são massacradas pelas famílias espanholas. Bacamartes.
Janelas e portas das casas de Alentejo são fechadas. Casas incendiadas.
AS FAMÍLIAS ESPANHOLAS tomam as propriedades dos povos de
Alentejo. FAMÍLIAS PORTUGUESAS fogem de Alentejo. Cavalos
com adultos, homens e mulheres fugindo aos galopes. Carroças
carregando crianças. Grande fazenda em Alentejo.
FADE OUT/FADE IN
A FAMÍLIA DE JOAQUIM ALONSO é atacada por uma família
espanhola. Sacada do casarão da grande fazenda. UM TIO e DOIS
IRMÃOS DE JOAQUIM ALONSO estão na sacada do casarão da
grande fazenda e recebem tiros de bacamarte no peito. A FAMÍLIA DE
JOAQUIM ALONSO chora a morte dos parentes. HOMENS
ENCAPUZADOS, com tochas de fogo, invadem a casa grande ateando
fogo. Sala grande de jantar. Homens encapuzados entram na sala grande
de jantar, sacam punhais das cinturas e matam a família de Joaquim
Alonso, uma irmã com o marido e depois os pais. Varanda do casarão.
Casa pegando fogo. Joaquim Alonso desce as escadas da varanda do
casarão, corre para os campos e esconde-se entre os pés de oliveira.
FADE OUT/FADE IN
Legenda: “Alguns meses depois...”
Espanha. Convento. Joaquim Alonso na varanda do convento. Enorme
banco de madeira. Joaquim Alonso lê a bíblia, sentado no enorme banco
de madeira.
CORTA PARA
Convento. Sala de aula. Vários jovens espanhóis sentados nas carteiras,
entre eles, Joaquim Alonso. UM PADRE ESPANHOL, IDOSO, dá
591
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
aula de retórica aos vários jovens. Mesa de refeição. Joaquim Alonso
está sentado na mesa de refeição, almoçando. O padre espanhol, idoso,
senta-se a mesa ao lado de Joaquim Alonso com um prato nas mãos.
Joaquim Alonso e o padre espanhol, idoso conversam enquanto
almoçam.
JOAQUIM ALONSO (VOICE OVER)
A minha família era muito rica, possuía mais de 800 hectares
de terra a leste quase com a fronteira da Espanha onde
produzíamos e criavámos gados caprinos. Portanto, quando se
deu a morte de D. José I, em 1777, várias mudanças
ocorreram na região. Quando D. Maria I assumiu o trono,
ocorreu a renúncia do marquês de Pombal ao cargo,
possibilitando o retorno dos jesuítas a Portugal e a paz entre a
Espanha selada pelo Tratado de Santo Ildefonso. Devido a
esse tratado,
várias famílias espanholas ocuparam os
territórios lusos, entre eles o Alentejo e o Algarve. Devido às
famílias lusas possuírem inúmeros hectares de terras, as
famílias espanholas começaram a invadi-las, iniciando
guerrilhas particulares entre invasores e proprietários. Numa
dessas confusões, a minha família viu-se metida numa rixa
com uma dessas famílias e se deu mal. Todos morreram,
restando apenas a mim. Perdi tio, irmãos e meus pais, quais
foram massacrados covardemente. Ao perder tudo, um padre
acolheu-me levando-me para um convento, na Espanha. Lá,
no convento conheci um velho padre, professor de retórica,
que me fez conhecer a história sobre "Monetae sicarii", uma
versão contrária ao Santo Graal, trazido para o Brasil, pelo
padre Fernandez.
VOLTA PARA
592
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 211.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. ADRO
DA CAPELA. ESTRADA ENTRE A CAPELA E A FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO.
Dirceu e Joaquim Alonso estão sentados em um tronco debaixo de uma
árvore, próximo ao adro da capela da fazenda.
JOAQUIM ALONSO
Ao ordenar-me padre, a minha missão seria na Catalunha,
porém, ao embarcar para essa região eu fugiu no porto
espanhol, indo para os Açores e em seguida para Lisboa,
onde, tempos depois, no cais, consegui entrar numa velha
naus e se desembarcar no Brasil. Vós mercê, Dirceu, pode não
acreditar, mas o padre espanhol, idoso, que nos dava aula de
retórica, conhecia esta fazenda. Ele fizera parte da comissão
do padre Fernandez, o que facilitou para mim todos os
indícios para chegar ao Brasil. Dessa forma, Dirceu, não fico
envergonhado em confessar-te de que tenho uma grande
vontade de me vingar da Espanha...
DIRCEU
Vontade de vingar da Espanha? o que isso tem a ver com o
mistério, Joaquim Alonso?
JOAQUIM ALONSO
Prometi encontrar as moedas do assassino e devolvê-las à
Espanha. Dessa forma eu vingarei a morte de toda a minha
família. Eu descobri, Dirceu, que os objetos escondidos no
altar da tua capela não passam de um lixo da humanidade, e
que a Igreja Católica procura lavar as mãos. Esse lixo, no
romper dos séculos estivera em alguns países. Em cada lugar
que ele permaneceu, aconteceram várias tragédias. Se tu
queres saber o que é, contar-te-ei, mas antes, porém, tenho de
relatar a ti uma longa história.
593
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(olha para o adro da capela da fazenda)
Estás a pé, não está?
JOAQUIM ALONSO
Sim! Também estás sem o teu cavalo, não é?
DIRCEU
Sim. Então podemos ir caminhando pela estrada da capela até
a fazenda, enquanto narras para mim a longa história...
Dirceu e Joaquim Alonso saem andando pela estrada entre a capela e a
fazenda Ribeirão do Meio. Enquanto andam, Joaquim Alonso narra
para Dirceu uma longa história.
JOAQUIM ALONSO
A história parece incrível, senhor Dirceu, pois o início dela se
dá com a última ceia de Jesus Cristo...
DIRCEU
Meu Deus, o que Jesus tem a ver com tudo isso...
JOAQUIM ALONSO
Faltavam dois dias para a páscoa e a festa dos pães ázimos e
os principais sacerdotes e escribas andavam buscando como
prender Jesus à traição, para matá-lo. Eles não queriam que
fosse durante a festa para que não houvesse tumulto entre o
povo.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA
212.1
–
CONTINUAÇÃO
EXT./INT./DIA/NOITE. JERUSALÉM.
594
-
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FLASH BACK – RELATO DE JOAQUIM ALONSO, CONFORME
OS LIVROS APÓCRIFOS SOBRE A MORTE DE JESUS CRISTO.
LEGENDA: “Jerusalém, Ano 34 DC”
Jerusalém. Jesus Cristo entra em Jerusalém montado no lombo de um
jumento. Jesus Cristo é recebido por uma multidão, que o aclama como
"filho de Davi". A MULTIDÃO balança nas mãos folhas verdes de
palmeiras. Os discípulos seguem Jesus, uns pelo lado da direita, outros
pelo lado da esquerda. Judas Iscaríotes é puxado pelo braço, no meio da
multidão, pelos sacerdotes e escribas. Judas Iscariotes sai do meio da
multidão acompanhando os sacerdotes e os escribas.
UM DOS SACERDOTES
Então, Iscariotes, vai ou não nos entregar o homem?
JUDAS ISCARIOTES
Claro. Daqui há dois dias, na noite em que Jesus celebrar a
páscoa conosco...
UM DOS ESCRIBAS
E como vós mercê o entregará, Iscariotes? Onde os guardas
pegarão o tal Jesus de Nazaré?
JUDAS ISCARIOTES
Após a comemoração da páscoa, Jesus estará em algum lugar
da sinagoga com os seus discípulos. Quando os guardas se
aproximarem, avise-os que aquele que eu beijar, é o
condenado...
UM DOS SACERDOTES
Fechado pelas trinta moedas de prata?
JUDAS ISCARIOTES
Pelas trinta moedas de prata...
UM DOS ESCRIBAS
595
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Entregamos as moedas depois que vós mercê nos entregar o
homem...
Praça ou ágora de Jerusalém. Jesus Cristo se encontra rodeado pelos
seus discípulos, sentados debaixo de uma das árvores da praça ou ágora.
Judas Iscariotes está entre os discípulos. Um dos discípulos de Jesus
Cristo levanta a mão e aproxima-se de Jesus Cristo.
UM DOS DISCÍPULOS DE JESUS CRISTO
Senhor, faltam dois dias para comemorar a páscoa e até agora
não sabemos em qual local iremos comemorá-la. Iremos, pois,
entrar em Jerusalém?
JESUS CRISTO
Juntem-se todos a mim...
Todos os discípulos de Jesus Cristo juntam-se para perto dele. Jesus
Cristo fecha os olhos e pega pelas mãos dois de seus discípulos. Jesus
Cristo dá um sinal e os restantes dos discípulos afastam-se. Jesus Cristo
mantém-se segurando as mãos dos seus dois discípulos escolhidos.
JESUS CRISTO
Vós mercês foram escolhidos para essa missão. Vós mercês
irão entrar em Jerusalém e lá encontrarão um homem
carregando um cântaro de água. Sigam-no e onde ele entrar,
digam ao dono da casa: "Onde está o meu aposento em que
hei de comer a páscoa com os meus discípulos? E ele vos
mostrará um grande cenáculo mobiliado e pronto; aí fazei-nos
os preparativos”.
Os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo saem andando pela colina
e pega uma pequena estrada de areia. Os dois discípulos escolhidos por
Jesus Cristo entram em Jerusalém. HOMEM carregando um cântaro de
água. Os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo seguem o homem
carregando o cântaro de água. Casa. Porta da casa. O homem
carregando o cântaro de água entra pela porta para dentro da casa. Os
596
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo chamam na porta da casa. O
mesmo homem que carregava o cântaro de água aparece na porta da
casa.
UM DOS DOIS DISCÍPULOS ESCOLHIDOS POR JESUS CRISTO
Onde está o meu aposento em que hei de comer a páscoa
com os meus discípulos?
O mesmo homem que carregava o cântaro olha alegre para os dois
discípulos escolhidos por Jesus Cristo. Ele sai calado da porta da casa e
dá um sinal para que os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo o
seguissem. Rua pedregosa. O mesmo homem que carregava o cântaro e
os dois discípulos escolhidos por Jesus Cristo atravessam a rua
pedregosa. Casa com grande porta. O mesmo homem que carregava o
cântaro abre a grande porta da casa. Ele e os dois discípulos escolhidos
por Jesus Cristo entram na sala da casa com grande cenáculo mobiliado
e pronto. Rápido fade out. Noite. Luz iluminando a mesa da Santa Ceia.
Jesus Cristo sentado á mesa do grande cenáculo mobiliado e pronto. Os
discípulos de Jesus estão sentados ao redor da mesa. Jesus Cristo
abençoa o pão e o vinho e reparte-os entre os seus discípulos. Jesus
Cristo olha para Judas Iscariotes. Os discípulos de Jesus Cristo comem
do pão e bebem do vinho. Jesus Cristo põe-se de pé e conversa com os
discípulos. Judas Iscariotes levanta-se da mesa e sai apressado do grande
cenáculo mobiliado e pronto. Monte das Oliveiras. Jesus Cristo está
ajoelhado orando numa grande pedra. Os discípulos de Jesus Cristo
estão dormindo no relvado. Tochas de fogo. Judas Iscariotes aparece no
Monte das Oliveiras juntamente com alguns guardas segurando tochas
de fogo nas mãos. Jesus Cristo põe-se de pé. Os discípulos de Jesus
Cristo acordam assustado. Judas Iscariotes beija a face de Jesus Cristo.
VOLTA RÁPIDO PARA
SEQUÊNCIA 211.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA.
ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO.
597
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a
fazenda.
JOAQUIM ALONSO
E assim fizeram os dois discípulos, encontrando tudo o que
Jesus lhes dissera. Prepararam, pois, a páscoa e, ao anoitecer,
Jesus ceou com os seus discípulos, abençoando o pão e o
vinho e repartindo-os entre os seus discípulos como remissão
dos pecados. No fim da ceia ele revelou que um entre os
discípulos haveria de traí-lo com um beijo. E esse discípulo,
possuído pelo demônio era o Iscariotes, que saiu do cenáculo,
entregando Jesus à multidão. Jesus, como toda a humanidade
sabe, foi julgado e crucificado indevidamente...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 212.2 – CONTINUAÇÃO – EXT./INT./NOITE.
JERUSALÉM. TEMPLO DOS ESCRIBAS E SACERDOTES.
Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros apócrifos
sobre a morte de Jesus Cristo.
Noite. Templo dos escribas e sacerdotes. Judas Iscariotes aparece no
templo dos escribas e dos sacerdotes. UM DOS ESCRIBAS E UM
DOS SACERDOTES vão ao encontro de Judas Iscariotes...
JUDAS ISCARIOTES
Não foi justo o que fiz. Entreguei a vida do filho de Deus
para ser julgado pelos homens. Nunca na fase da terra houve
homem tão justo quanto Jesus Cristo....
UM DOS ESCRIBAS
É tarde para se arrepender Iscariotes. Quer o quê, que
salvamos o tal Messias?
598
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JUDAS ISCARIOTES
(abre as mãos trêmulas com o saco de trinta moedas de prata)
As minhas mãos não param de tremer... Moedas malditas, de
sangue inocente...
O um dos escribas e o um dos sacerdotes olham para Judas Iscariotes e
dão risadas. Judas Iscariotes joga o saco de moedas nos pés de um dos
sacerdotes e sai correndo para fora do templo. Saco de moedas jogado
no chão. O um dos escribas pega o saco de moedas jogado no chão.
Árvore em algum lugar de Jerusalém. Judas Iscariotes enforcado em
uma árvore em algum lugar de Jerusalém.
VOLTA RÁPIDO PARA
SEQUÊNCIA 211.3 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA.
ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO.
Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a
fazenda.
JOAQUIM ALONSO
As moedas atiradas pelo assassino para dentro do santuário
foram recolhidas pelos principais sacerdotes que não ousaram
metê-las no cofre das ofertas devidas serem preço de sangue.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 212.3 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE.
JERUSALÉM. TEMPLO DOS ESCRIBAS E SACERDOTES.
Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros apócrifos
sobre a morte de Jesus Cristo.
599
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Noite. Templo dos escribas e sacerdotes. Grande sala. Mesa na grande
sala. Vários sacerdotes e escribas sentados à mesa na grande sala. Saco
com as moedas de pratas em cima da mesa. Um dos escribas pega o
saco de moedas nas mãos e olha para todos os escribas e sacerdotes que
estão sentados à mesa da grande sala.
UM DOS ESCRIBAS
O Iscariotes apareceu por cá arrependido e nos devolveu as
trinta moedas de pratas...
UM DOS SACERDOTES
Todos sabemos que essas moedas tornaram-se pactos de
sangue, portanto, não devemos voltá-las aos cofres do templo
e nem gastá-las com nada santo...
UM OUTRO DOS ESCRIBAS
Podemos comprar um campo de oleiro para servir de
cemitério aos estrangeiros. Dessa forma as moedas não
voltarão aos cofres do templo e acabará fazendo um grane
bem aos estrangeiros que morrerem em Jerusalém...
UM OUTRO DOS SACERDOTES
Vamos colocar em votação. Levante as mãos quem estiver de
acordo com a compra do campo de oleiro para que sirva de
cemitério aos estrangeiros.
MESA NA GRANDE SALA. TODOS OS ESCRIBAS E
SACERDOTES ERGUEM AS MÃOS.
SEQUÊNCIA 211.4 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA.
ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO.
Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a
fazenda. Dirceu para de repente frente a Joaquim Alonso.
600
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Os escribas e sacerdotes compraram o campo de oleiro para
fazerem o cemitério aos estrangeiros?
JOAQUIM ALONSO
Sim, compraram, mas as trinta moedas entregues ao
proprietário do campo do oleiro ganharam outro rumo...
DIRCEU
Ganharam outro rumo, como assim?
CORTA PARA
SEQUÊNCIA
212.4
–
CONTINUAÇÃO
EXT./INT./DIA/NOITE. JERUSALÉM. VÁRIOS.
Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros apócrifos
sobre a morte de Jesus Cristo acrescentando-se à ficção do enredo deste
roteiro.
Grande campo de oleiro. DOIS ESCRIBAS E DOIS SACERDOTES
negociam o campo de oleiro com o dono do oleiro. O dono do oleiro
recebe o saco com as trinta moedas de prata. Saco com as trinta
moedas de prata nas mãos do oleiro. Vários Fade out/Fade in
denotando dias. Oleiro brigando com a esposa; oleiro na cama com
febre rodeado pela esposa e três filhos. Oleiro tentando-se matar.
Pequena sala. Poltronas. Nas poltronas da pequena sala há uma mulher
conhecida como sábia anciã sentada ao lado da esposa do oleiro. Saco
com as trinta moedas nas mãos da velha anciã.
SÁBIA ANCIÃ
Não deveriam ter vendido o oleiro para servir-se de cemitério
aos estrangeiros. As moedas dos sacerdotes e dos escribas são
amaldiçoadas. Foram com estas moedas que o Judas Iscariotes
vendeu o Filho de Deus aos homens. Ele as devolveu aos
escribas e sacerdotes e acabou se enforcando. Por favor,
601
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
devolvam-se estas moedas aos escribas e sacerdotes e todo o
bem voltará à família de vós mercês...
Dia. Templo dos escribas e sacerdotes. Grande sala. Mesa na grande
sala. Vários sacerdotes e escribas sentados à mesa na grande sala. Saco
com as moedas de pratas em cima da mesa. UM DOS SACERDOTES
pega o saco de moedas nas mãos e olha para todos os escribas e
sacerdotes que estão sentados à mesa da grande sala.
UM DOS ESCRIBAS
Assim como o Iscariotes apareceu por cá arrependido e nos
devolveu as trinta moedas de pratas, o mesmo fez a esposa do
oleiro, a quem compramos as terras do oleiro para servir de
cemitério aos estrangeiros...
UM DOS SACERDOTES
Todos sabemos que essas moedas tornaram-se pactos de
sangue, portanto, não devemos voltá-las aos cofres do templo
e nem gastá-las com nada santo...
UM OUTRO DOS ESCRIBAS
Teremos que nos ver livres destas moedas. A minha sugestão
é que devemos volvê-las em um saco de pano e colocarmos
uma placa de bronze com os seguintes dizeres em latim
"monetaesicariiIudas", e as esconderem numa velha tumba
de uma família de judeus...
UM OUTRO DOS SACERDOTES
Vamos colocar em votação. Levante as mãos quem estiver de
acordo com a sugestão dada pelo nosso irmão em esconder as
moedas numa velha tumba...
MESA NA GRANDE SALA. TODOS OS ESCRIBAS E
SACERDOTES ERGUEM AS MÃOS.
602
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 211.5 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA.
ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO.
Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a
fazenda. Dirceu tira o chapéu, coça a cabeça e toca uma das mãos nos
ombros de Joaquim Alonso.
DIRCEU
Monetae sicarii Iudas? Isso em latim quer dizer o que Joaquim
Alonso?
JOAQUIM ALONSO
Quer dizer em latim "as moedas do assassino Judas".
DIRCEU
(decepcionado)
Pensei na possibilidade de o padre Fernandez ter escondido
em minha igreja o Santo Graal, ou seja, o gradalis, o cálice da
última ceia de Cristo, recolhido e guardado por José de
Arimatéia, por ser santificado pelo sangue de Cristo. Mas não,
trata-se das moedas do vil traidor...
JOAQUIM ALONSO
Sim, infelizmente, meu amigo. Trata-se das moedas do vil
traidor. Mas elas são ainda uma ameaça para a humanidade...
DIRCEU
Por quê?
JOAQUIM ALONSO
Conforme vimos, todos os escribas e sacerdotes aprovaram a
sugestão em enterrar as moedas do Iscariotes em uma velha
tumba. Assim fizeram.
CORTA PARA
603
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 212.5 - EXT./INT./DIA/NOITE. JERUSALÉM.
VÁRIOS.
Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros apócrifos
sobre a morte de Jesus Cristo acrescentando-se à ficção do enredo deste
roteiro.
Jerusalém. Monte das Oliveiras visto das muralhas de Jerusalém.
Cemitério. Antigas tumbas. HOMENS JUDEUS abrindo uma antiga
tumba. UM DOS HOMENS JUDEUS encontra o saco com as moedas
do Judas Iscariotes. Templo. Vários sacerdotes e escribas sentados à
mesa na grande sala do templo. Saco com as moedas de pratas do Judas
Iscariotes em cima da mesa. Vários sacerdotes e escribas sentados à
mesa na grande sala do templo olhando para o saco com as moedas de
pratas do Judas Iscariotes em cima da mesa. Imagens de grandes igrejas
construídas entre os séculos XVI e XVIII, na Inglaterra, na França, na
Itália, em Portugal, e finalmente na Espanha. Padre Fernandez coloca o
saco de moedas dentro da mala dele e fecha-a.
JOAQUIM ALONSO (OFF)
Mas anos depois essas moedas foram encontradas e
devolvidas aos sacerdotes e escribas, que sempre procuravam
escondê-las e, fatalmente, a tê-las de volta. Não se sabe como,
tempos depois essas moedas passaram a ser escondidas e
encontradas em outras partes do mundo, inclusive, em alguns
países da Europa: Inglaterra, França, Itália, Portugal e,
finalmente, Espanha. Foi da Espanha que o padre Fernandez
recebeu a missão de levá-las para um lugar onde ninguém
ousaria cobiçá-las...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 211.6 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA.
ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO.
604
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a
fazenda. Dirceu com o chapéu na cabeça ao lado de Joaquim Alonso.
DIRCEU
E esse lugar haveria de ser o Brasil, cá, na capela construída
próxima à minha fazenda...
JOAQUIM ALONSO
(balança a cabeça dizendo “sim”)
Como vós mercê bem sabe, o padre Fernandez fazia parte da
Companhia de Jesus e, sob o apoio do rei Fernando VI , que
assumiu o trono em 1746, trouxera "Monetaesicariiludas" para
cá, juntamente com alguns recursos para a construção da
capela. É de se saber também, Dirceu, que ao construírem
essa capela, a intenção não foi de designá-la aos cultos, mas
sim ao sepulcro das moedas...
DIRCEU
Então a capela da fazenda não é um templo para...
JOAQUIM ALONSO
Há de se ver que não. Toda a aparência dela é de uma
pequena igreja, portanto, se tu reparares bem, desde o
frontispício à torre, notarás que há diferenças entre as demais
igrejas de todos os lugarejos da colônia.
DIRCEU
Qual é essa diferença?
JOAQUIM ALONSO
Se olhares bem para a pequena torre, tu verás que as faces
laterais dela são triangulares, contendo um vértice comum,
como as pirâmides do Egito, construídas para servirem de
túmulos aos faraós. Nos riscos do frontispício há pequenas
marcas na lateralidade esquerda, que servirão de leitura aos
padres espanhóis que por aqui passarem.
605
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Então é no frontíficio da capela que
está todo o mistério?
JOAQUIM ALONSO
Não, no frontifício não está o mistério, mas a leitura para todo
o mistério. Se reparar bem, por exemplo, o altar da capela tem
a forma de um túmulo, cujos riscos foram copiados da tumba
de Artaxerxes II, da Pérsia. Nele há apenas marcas pagãs para
dizer aos padres espanhóis que "MonetaesicariiIudas" se
encontram nele.
DIRCEU
Certo dia apareceram na capela dois homens a cavalo para
investigá-la desde o frontispício, a pequena torre ao interior
dela...
JOAQUIM ALONSO
(mordendo os lábios)
E como eram os dois homens?
DIRCEU
Eram dois homens altos, magros e brancos que vez em
quando falavam uma língua estranha entre eles ao vistoriarem
a capela. O que chamou a minha atenção foi justamente o que
vós mercê acabou de confirmar, o frontifício e a pequena
torre da capela. Parecia que lá havia um texto escrito num
grande pergaminho capaz, de quem soubesse lê-lo, decifrar
imediatamente... Um dos homens olhou para o frontifício da
capela, sorriu e...
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back - Pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir.
606
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 156 – EXT./INT./DIA/ CAPELA DA FAZENDA.
Dirceu e os dois homens brancos vão até o frontifício da capela da
fazenda. Dirceu entrega a chave da capela da fazenda para
Miliquito. Miliquito entrega o pau para Cirilo e se apressa para
abrir a porta da frente da capela da fazenda. Ambrósio segue
Miliquito. Outro dos dois homens brancos olha para o frontifício
da capela da fazenda e sorri.
OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS
É aqui mesmo, descobri o principal indício, amigo...
UM DOS HOMENS BRANCOS
Eu também já havia percebido...
Os dois homens brancos olham para Dirceu.
OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS
Não precisamos entrar na capela, senhor...
DIRCEU
(meio desajeitado e confuso)
Logo que estamos cá. O rapaz abriu a capela...
OUTRO DOS DOIS HOMENS BRANCOS
Então não custa nada entrar...
UM DOS HOMENS BRANCOS
Então vamos vistoriar a capela. Bastamos olhar o santo
altar...
VOLTA PARA
607
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 211.7 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA.
ESTRADA ENTRE A CAPELA ATÉ A FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO.
Joaquim Alonso e Dirceu andando pela estrada entre a capela e a
fazenda.
JOAQUIM ALONSO
(um pouco assustado)
Sinal de que o perigo se espalha, pois Corre uma lenda em
torno dessas moedas, que aquele que encontrá-las e depositálas num cofre de qualquer igreja ficará muito rico. Dessa
forma, Judas, segundo a lenda, libertar-se-á do vale em que se
encontra preso e dominará o universo por trinta séculos,
conforme o número das moedas. Durante o reinado dele, de
3.000 anos, surgirão homens naturalmente ambiciosos,
capazes de promoverem guerras e grandes catástrofes em prol
de fortunas. Essas moedas, porém, jamais poderão cair em
mãos de pessoas leigas, inconsequentes. Elas devem ser
vigiadas, intocáveis, caso contrário, o mundo inteiro sofrerá
terríveis consequências.
DIRCEU
As moedas do traidor! Então são elas que estão escondidas
dentro do altar da capela fazenda?!
JOAQUIM ALONSO
Infelizmente são elas, senhor Dirceu. São as moedas do
Iscariotes que estão escondidas no altar ou sarcófago de sua
capela...
DIRCEU
Hoje eu não quero mais ouvir falar disso, Joaquim Alonso.
Vou dar um tempo. A partir de hoje vou parar para refletir
um pouco na história, até onde a tenho e depois, quem sabe
voltarei a tocar no assunto com vós mercê...
608
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
Quando quiseres conversar comigo, sou todo ouvidos, senhor
Dirceu...
SEQUÊNCIA 213 - INT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA.
Campinas. Dirceu cavalga pelas campinas. Árvores. Pássaros voam entre
as árvores. Rios. Penhascos. Água caindo pelo penhasco. Cachoeiras.
Bois pastando nas mangueiras. Ovelhas pastando nas mangueiras.
Colinas verdejantes. Dirceu cavalga lentamente pelas campinas.
DIRCEU (VOICE OVER)
Depois de ter ouvido a história de Joaquim Alonso, desperteime para os problemas da nossa colônia, principalmente da
trágica inconfidência, cujos resultados resumiram-se em
mortes e exílios. Eu fiz silêncio, retirei-me por alguns dias da
presença de Joaquim Alonso e andei por alguns lugares da
fazenda pensando o que fazer com aquele maldito tesouro.
Dias depois procurei por Joaquim Alonso e o encontrei feito
padre, sentado no carro-de-boi, no quintal da fazenda.
CORTA PARA
Fazenda Ribeirão do Meio. Árvore frondosa no quintal da fazenda.
Carro-de-boi debaixo da frondosa árvore da fazenda. Joaquim Alonso
está lendo a bíblia sentado no carro-de-boi. Dirceu aparece de repente
no quintal da fazenda e vai ao encontro de Joaquim Alonso. Carro-deboi. Joaquim Alonso sentado no carro-de-boi. Dirceu aproxima-se de
Joaquim Alonso. Joaquim Alonso percebe Dirceu se aproximar e fecha
a bíblia, mantendo-a segura nas mãos.
609
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
Refletiu sobre toda a história que sabes a respeito do mistério,
senhor Dirceu? Queres voltar a falar sobre o assunto? Se
quiseres sou todo ouvido...
DIRCEU
Quero sim, padre Joaquim Alonso. Quero ouvir o que vossa
senhoria aconselha-me a fazer com esse maldito tesouro...
JOAQUIM ALONSO
Quanto a mim, eu sei para onde devo levá-lo, pois tenho de
quem e por que vingar.
DIRCEU
Em nome da família espanhola que massacrou a sua família,
vossa reverência quer vingar de uma nação inteira?
JOAQUIM ALONSO
Sim, também pelos suplícios que eles impuseram a Portugal.
DIRCEU
Mas Portugal e Espanha, hoje, não são dois países amigos?
JOAQUIM ALONSO
Não! Portugal e Espanha apenas estão recuados devido às
guerras armadas pela França desde o ano passado. Temos
notícias de que desde o início deste ano a Áustria, Prússia,
Espanha, os Países Baixos e a Grã-Bretanha formaram a
primeira coalizão para enfrentar a França. Logo vejo que
Portugal não demorará muito a fazer parte dessa coalizão,
correndo o risco de tornar-se submisso ao reino de Napoleão
Bonaparte.
610
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(entusiasmado)
Então, agora que a história sobre as moedas do assassino foi
contada e passada a limpo, por que não vamos à capela
desvendar o mistério?
JOAQUIM ALONSO
(animado, aperta a bíblia entre os peitos)
Vamos! A história mais cedo ou mais tarde tem e deve ser
passada a limpo...
UM BANDO DE PERIQUITOS CORTA O AZUL DO CÉU.
SEQUÊNCIA 214 – INT./EXT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CAPELA DA FAZENDA.
Fazenda Ribeirão do Meio. Capela da fazenda. Frontifício da capela da
fazenda. Joquim alonso mostra para Dirceu a torre modestamente
piramidal e uns pequenos desenhos em alto relevo do lado esquerdo do
frontispício da capela da fazenda. Dirceu se interessa por todos os
detalhes do frontifício e da torre da capela da fazenda, apontados por
Joaquim Alonso. Interior da capela da fazenda. Dirceu e Joaquim
Alonso estão no altar da capela da fazenda. Imagem de São Miguel
Arcanjo. Joaquim Alonso aproxima-se da imagem e em seguida, Dirceu.
Detalhes da imagem de São Miguel Arcanjo.
JOAQUIM ALONSO
Vós mercê sabia que este arcanjo é o comandante das hostes
celestes? É ele quem detém o segredo da palavra pela qual
foram criados o céu e a terra. Ele é o grande príncipe, um dos
arcanjos mais importantes ao lado de Gabriel e Rafael.
DIRCEU
E o que vós mercê sabe sobre a história dessa imagem, padre?
611
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
(olha para Dirceu com um ar diferente, superior, respira e
enche o peito de ar)
Ela foi comprada numa feira de mercadores andaluzes, em
Oran, no ano de 1635, pelo avô paterno do padre Fernandez,
que a deu de presente a um tio dele, quando se ordenou
padre. Anos depois, esse tio deu a imagem ao padre
Fernandes, pouco antes de morrer em Valência. Tudo o que
eu sei, também, é que o padre Fernandez mandou abrir um
pequeno orifício no peito da imagem e guardou ali uma
minúscula chave, capaz de fazer alguém chegar ao segredo das
moedas guardadas, cá, na capela.
DIRCEU
Mas o propósito não seria que essas moedas ficassem
eternamente guardadas neste altar?
JOAQUIM ALONSO
Não! Infelizmente, não sei qual é o verdadeiro enigma, mas,
segundo constam das histórias orais, essas malignas relíquias
de Judas deverão cair em mãos de alguém dignamente
escolhido pelos anjos e guardiões de Deus. Parece algo
apocalíptico, embora nas Santas Escrituras não haja indício a
respeito disso.
JOAQUIM ALONSO
(põe-se de joelhos no altar e sopra o pequeno orifício da
fechadura)
Dê a mim a chave, senhor Dirceu. Vamos abrir a portinhola
do altar.
Bolsos da calça de Dirceu. Dirceu enfia a mãos em um dos bolsos e tira
a pequena chave. Joaquim Alonso olha para a chave e estende a mão.
Dirceu aproxima-se mais um pouco do altar, põe-se de joelhos e coloca
a chave no orifício da fechadura. Mão e dedos de Dirceu rodando a
pequena chave. Pequena porta do altar aberta. Dirceu e Joaquim Alonso
612
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
disputam o espaço com as cabeças para ver o interior do altar. Dirceu
enfia as mãos dentro do altar, apalpa o chão e não consegue tocar nada.
Joaquim Alonso investiga também a superfície e não vê nada. Joaquim
Alonso e Dirceu afastam-se do altar, olham e para o outro e dão risadas.
DIRCEU
Padre Rocha contou para mim que dois ou três anos após a
morte do padre Fernandez, apareceram uns padres espanhóis,
cá, na capela e levaram a ossada dele para a Espanha, será
senão levaram também as moedas do traidor?
JOAQUIM ALONSO
Não, não levaram. O velho padre contara isso para mim,
também. Segundo ele os padres espanhóis levaram somente a
ossada do padre Fernandez, sem perquirir ou tocar sobre o
assunto das moedas do traidor.
DIRCEU
Então o mistério encerra cá, neste exato momento...
JOAQUIM ALONSO
Eu bem desconfiava que o padre Fernandez, ao fazer a viasacra pelas igrejas de Vila Rica, depositou as relíquias em
algum canto de uma das igrejas. Tentei mapeá-las, portanto, o
meu velho professor de retórica não fez parte da comitiva.
Segundo ele, o padre Fernandez escolheu por critério próprio
os padres que o seguiriam. É sabido e confirmado de que
todos os padres que o acompanharam na via-sacra morreram.
Subentende-se que ele escolheu somente os padres mais
velhos para segui-lo. Vós mercê está certo, Dirceu, o mistério
encerra cá, neste exato momento...
DIRCEU
E a capela de Sant'Ana? Essa capela foi escolhida por ele para
manter a guarda da imagem do anjo. Será se...
613
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
Verifiquei não somente essa igreja, como outras três suspeitas.
Não há pista alguma. A minha esperança era encontrar
"monetae sicarii" nesta capela, conforme a minha pesquisa
apontava...
DIRCEU
Vós mercê vai continuar com a pesquisa, padre Joaquim
Alonso?
JOAQUIM ALONSO
Não, vou tomar outro rumo. Prometi a Deus que se essa
missão fracassasse, eu deixaria de lado a minha vingança com
a Espanha e perdoaria a família espanhola destruidora de
minha família.
Portinhola do altar aberto. Olhos tristes de Joaquim Alonso encarando
para a portinhola do altar aberto. Dirceu abaixa-se a cabeça e sai da
capela da fazenda, andando lentamente. Joaquim Alonso ajoelha-se
perto da portinhola do altar, procura ver se encontra dentro do altar
alguma coisa. Dirceu sai da capela da fazenda, pega o seu cavalo e sai
galopando pela estrada.
DIRCEU (VOICE OVER)
Respirei aliviado quando o padre Joaquim Alonso comentou
sobre o fim de sua vingança. Eu não queria mais pensar
naquelas relíquias ou no mistério que em tempos e outros
alguém comentava. Encararia a partir daquele dia que tudo
aquilo não passasse de um mito. Saí da capela e deixei
Joaquim Alonso vasculhando toda a parte interna do altar
para garantir a certeza de que a missão dele encerrava ali e que
realmente não havia nada de concreto em todos os seus anos
de pesquisa. Cavalguei, pois, direto para a fazenda.
CORTA PARA
614
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Fazenda Ribeirão do Meio. Tarde. Varanda do casarão. Tamboretes.
Dirceu e Joaquim Alonso estão sentados nos tamboretes conversando.
Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro aparecem no quintal de frente da
fazenda montados em seus cavalos. Cirilo, Hipólito Miliquito e
Ambrósio saem da varanda, colocam os seus chapéus nas cabeças e vão
para o quintal encontrarem com Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro.
Joaquim Alonso olha para Dirceu com um olhar meio triste.
JOAQUIM ALONSO
Desde a semana passada, quando constatamos a não
existência do tal mistério, deu-me na cabeça a loucura de fazer
uma longa viagem... Como vós mercê sabe, senhor Dirceu, só
tenho o dia e a noite que Deus me deu e mais nada. Eu estou
precisando de um cavalo emprestado para a viagem. Se vós
mercê puder emprestar-me, ficarei agradecido e prometo em
nome do Senhor Jesus Cristo, voltar assim que resolver
algumas coisas...
DIRCEU
Vossa senhoria é um homem livre, padre. Livre para cumprir
com as suas missões e a agir conforme o seu livre-arbítrio.
Ora padre Joaquim Alonso, não só emprestarei o cavalo,
como também darei para vós mercê algumas moedas...
JOAQUIM ALONSO
As moedas do vil traidor?
DIRCEU
Se eu tivesse encontrado as moedas do traidor, padre, eu não
deixaria vós mercê levá-las para a Espanha...
JOAQUIM ALONSO
Tenho orado muito. Deus dará a mim novas missões... Eu
preciso viajar para certificar-me disso... Quanto às moedas,
vós mercê pode ficar tranquilo que eu tenho, cá, algumas
economias...
615
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
E quando quiseres voltar, padre Joaquim Alonso, a casa e a
família estaremos todos de braços abertos para recebê-lo...
JOAQUIM ALONSO
Sei disso. Partirei amanhã e creio que jamais esquecerei dessa
família... Deus a cada dia abençoará mais a vós mercê e toda
essa gente de cá, não só da fazenda, mas de toda a região...
Madrugada. Estrada. Joaquim Alonso cavalgando pela estrada com
apetrechos de viagens na garupa do cavalo.
DIRCEU (OFF)
Somente eu sabia que Joaquim Alonso era um padre,
porquanto, o pessoal da fazenda chamava-o de mestre ou
“magister”, designação criada por ele mesmo aos seus
discipuli agri. Madrugada, do dia seguinte o homem que
acabava de virar padre, mediante as suas histórias deixou a
fazenda Ribeirão do Meio...
SEQUÊNCIA 215 - INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
CHIQUEIRO DAS OVELHAS.
Tarde. Chiqueiro das ovelhas. Grande rebanho pastando na mangueira.
Dirceu aproxima-se da cerca do chiqueiro das ovelhas e fica reparando
as ovelhas com as suas crias. Trácio, Alceu e Endimião cuidam das
ovelhas. Trácio, pendurado em uma cerca, toca algumas ovelhas com
uma pequena haste de madeira. Trácio olha para o outro lado da cerca e
vê Dirceu. Trácio pula-se da cerca e corre para a direção de Dirceu. Ele
aproxima-se de Dirceu, soltando de uma vez a respiração.
TRÁCIO
Inhozinho não sabe o que tenho para contar...
616
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
O quê?
TRÁCIO
A sinhá Marília está na fazenda dela...
DIRCEU
Como? Vós mercês a viram na fonte?
TRÁCIO
Na fonte, não. A pretinha veio ver Alceu e disse que a sinhá
Marília quer ver o sinhô, o recado ficou para Alceu dá para
sinhozinho...
Dirceu afasta-se de Trácio beirando a cerca do chiqueiro até encontrar
com Alceu. Alceu, preocupado com as cabras, não percebe a presença
de Dirceu.
DIRCEU
Olá, Alceu. Cá estou para receber um recado da boca de vós
mercê... Eu soube que até a Rosa teve por cá...
ALCEU
Nnhô Dirceu num instante sabe de tudo... Rosa teve cá,
mesmo e veio trazer um recado para nhozinho...
ALCEU
(dá um sinal para Endimião vigiar as cabras e olha para
Dirceu)
Rosa pediu para falar para sinhozinho que a sinhá Marília está na
fazenda e quer falar com o sinhô. Ela disse que é sobre um plano.
Sinhozinho sabe, diz ela.
617
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(ar de felicidade)
Meu Deus, será se as coisas melhoraram? Ultimamente parecia
que tudo estava contra mim...
DIRCEU
Eu creio que a dona Marília resolveu acreditar em mim, Alceu.
A dona Marília me ama, Alceu... Eu vou ao encontro dela,
mesmo que seja o fim de tudo... Cá, sinto o velho coração me
dizer que entre Marília e mim haverá um novo começo...
CAPÍTULO 13
SEQUÊNCIAS 216-230
Personagens deste capítulo:
Escravos da fazenda de dom Manuel
Dirceu
Sales
Amarílis
Marília
Zé da Viúva
Raimundo Sobreiro
Sebastiana
Miliquito
Eulina
Antenor
Vivêncio
Terêncio
Tibúrcio e vários homens da região
Pessoas de Vila Rica
Padre Rocha (morto)
Homens com roupas brancas (enterro)
Padres
Jovem seminarista
Carpindeiras
Crianças (praça “amarra cavalos”)
618
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Pessoas curiosas de Vila Rica (transeuntes)
Cocheiro (carruagem)
Vizinhos de Marília
Quitéria
Inácia
Amarílis
Sales
Hipólito
Cirilo
Ambrósio
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 189
2. Sequência 182 (adaptada à fantasia de Dirceu)
3. Sequência 94
4. Sequência 175.
SEQUÊNCIA 216 – EXT./INT./DIA. FAZENDA DE DOM
MANUEL. VÁRIOS.
Fazenda de dom Manuel. Escravos trabalhando no quintal da fazenda
de dom Manuel. Varanda da casa. Dirceu aproxima-se da varanda da
casa. Sales e Amarílis levantam-se das poltronas, saem da varanda e vão
ao encontro de Dirceu. Sales e Amarílis recebem Dirceu no quintal da
fazenda de dom Manuel, cumprimentando-o alegremente. Dirceu pulase do cavalo. UM DOS ESCRAVOS pega o cavalo de Dirceu pela rédea
e leva-o para o fundo do quintal da fazenda. Alameda do quintal.
Amarílis conduz Sales e Dirceu para debaixo da alameda do quintal.
Poltronas da varanda. ALGUNS ESCRAVOS DA FAZENDA pegam
as poltronas da varanda da casa e as levam para a alameda do quintal.
OS ESCRAVOS DA FAZENDA afastam-se do quintal de frente da
fazenda, indo para os fundos. Poltronas debaixo da alameda. Amarílis,
Sales e Dirceu sentam-se nas poltronas, debaixo da alameda.
619
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Ao chegar à fazenda de Sales, logo fui atendido por Sales e a
esposa dele, quais saíram da varanda e foram até o quintal. Eu
pulei do meu cavalo e, juntamente com o casal, rumamos para
uma enorme alameda. Os empregados da fazenda colocaram
as poltronas da varanda debaixo da alameda. Sales, a esposa
dele e eu sentamos nas poltronas e nos preparamos para
conversar. Eu não conhecia pessoalmente a irmã de Marília,
Amarílis. Ao conhecê-la, não sei porque, ela causara a mim
uma excelente impressão. Sales apresentou Amarílis para mim
e logo ela falou de forma despachada.
CORTA PARA
AMARILIS
Vós mercê é o senhor Dirceu, a quem tanto Marília e a Rosa
falam? Estou encantanda em conhecê-lo pessoalmente...
DIRCEU
Reconheça também, minha senhora, que eu estou também
encantado em conhecê-la. Sales fez boa escolha ao casar-se
com a senhora...
SALES
O destino, Dirceu, o destino que fez-me a escolha... Como já
disse anteriormente, conhecemos no dia do nosso casamento,
no altar da igreja...
AMARÍLIS
(Amarílis sorri, ajeita os longos cabelos a escorrer-lhe pelas
costas)
Está calor e foi uma escolha minha de ficarmos por cá,
debaixo desta alameda. Se os senhores quiserem, podemos
conversar na varanda ou dentro da casa...
620
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
Cá está um pouco fresco...
DIRCEU
A minha visita é breve. Eu passeava por estas bandas e resolvi
chegar até cá...
AMARILIS
A tua visita muito nos alegra senhor Dirceu... Eu sempre quis
conhecê-lo, pessoalmente...
Alameda. Dirceu, Amarílis e Sales sentados nas poltronas conversando
animadamente.
DIRCEU (VOICE OVER)
Entre um caso e outro, ao suscitarmos sobre fazendas,
cidades, vilas e povoados da região, Amarílis, não sei com qual
intenção, levantou-se da poltrona, ajeitou o decote do vestido
e consultou-me.
CORTA PARA
Alameda. Amarílis levanta-se da poltrona e ao ajeita o decote do vestido,
olha para Dirceu.
AMARILIS
Se o senhor não importa, gostaria de fazer-lhe uma pergunta.
DIRCEU
Pois não, dona Amarílis! Estou todo a respondê-la...
AMARILIS
É verdade que o senhor namora uma moça aqui da região?
621
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Se a senhora quer uma resposta sensata, afirmar-lhe-ei, desde
já, que até o devido momento não penso em namorar ou casar
com rapariga alguma desta região...
AMARÍLIS
(olha para Sales e solta um grito afinado)
Sales!
SALES
(um pouco desajeitado, olha para Amarílis, ri sem graça e
depois olha para Dirceu seriamente)
Não estas a mentir, senhor Dirceu?
DIRCEU
Eu?!
SALES
Sim. Numa bela tarde presenciei vós mercê passar naquela
estrada frente desta fazenda com uma moça.
DIRCEU
Com duas moças, duas irmãs, filhas do meu amigo Antenor,
por quê, Sales?
SALES
(um pouco confuso)
Por quê?! Ah, sim, isso mesmo e...
DIRCEU
(cortando Sales)
Vós mercê pensou que uma das raparigas fosse minha amante,
namorada ou noiva? Não, senhor Sales, creio equivocar-se.
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
622
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Flash back – pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir,
sobreposto à narração em voice over por Dirceu.
SEQUÊNCIA 189 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
VÁRIOS.
Estrada da capoeira. Cavalos cavalgando pela estrada da capoeira.
Fazenda de dom Manuel. Cancela da fazenda de dom Manuel. Sales está
juntamente com alguns de seus homens negros na cancela da fazenda de
dom Manuel. Sales vê Dirceu carregando a filha mais velha de Antenor.
Sales fica um pouco sem graça. Dirceu cumprimenta Sales, tirando o
chapéu. O cavalo de Dirceu tropeça. A filha mais velha de Antenor
agarra a cintura de Dirceu. Sales vê quando a filha mais velha de
Antenor agarra na cintura de Dirceu. Curva. Os dois cavalos se
desaparecem na curva. Anoitece.
DIRCEU (VOICE OVER)
As duas raparigas são filhas de um sitiante amigo, morador
próximo à minha fazenda. Naquele dia elas prestavam favores
à mãe, quando na volta o cavalo delas empacou na estrada. O
bicho não é de garupa e as coitadas enfrentavam a areia
pesada ao arrastá-lo pela estrada. Eu cavalgava pela capoeira
quando as encontrei em apuros e resolvi ajudá-las. Certo de
que o meu cavalo as entranharia, coloquei a rapariga mais
velha na minha garupa e a mais jovem para tocar o cavalo
delas. Creio que o senhor lembra, era tarde, bem tarde e a
noite não demoraria a cair.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 217 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA. FAZENDA
DE DOM MANUEL. ALAMEDA.
623
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
AMARÍLIS
(horrorizada)
O pai das moças, não o obrigou a casá-lo com a filha mais
velha?
DIRCEU
Não, o pai delas, o senhor Antenor é um ex-padre e creio
confiar em mim...
Uma das janelas da lateral da casa. Marília aparece numa das janelas
laterais da casa, como se quisesse ver Dirceu de longe. Dirceu vê Marília
na janela da lateral da casa. Ele finge não vê-la. Marília faz um sinal de
"psiu" com os dedos nos lábios, como se dissesse para Dirceu "me
aguarde!" e um toque de mão suspensa no ar significando "fique
calmo!". Ela desaparece da janela lateral da casa. Outra janela, frente da
casa, na varanda. Marília aparece na outra janela, frente da casa, na
varanda. Dirceu olha para Marília e levanta-se de ímpeto. Ele olha para a
janela da casa
DIRCEU
Aquela que está na janela é a dona Marília?
AMARILIS
Sim, é a dona Marília. Há uma série de dias, ela está calada,
quase sem querer conversar com ninguém...
DIRCEU
Por quê?
SALES
(abaixa a cabeça)
Ela quer fazer cumprir a promessa do pai, pedindo a mim e a
irmã, dia e noite, para providenciarmos o casamento dela com
o italiano, a quem ela é prometida.
DIRCEU
624
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Por que vós mercês não cumprem o desejo da rapariga?
SALES
O rapaz escreveu nos exigindo uma série de coisas para casarse com a dona Marília...
DIRCEU
Por que não fazem o gosto do mancebo?
SALES
Ele nos exige uma série de coisas...
DIRCEU
(olha para Amarílis e para Sales)
Ué! É só cumprir essa série de coisas. Ora, vós mercês sabem
que trato é trato, cada um deve cumprir conforme a
combinação feita.
AMARILIS
Mas o trato não seria esse; o trato seria ele vir ao Brasil, casarse com Marília e levá-la para a Itália...
DIRCEU
(tom irônico)
Vossemecês estão querendo se verem livre da moça,
mandando-a para outro país? Se querem ficar livre da rapariga
é só reverem se a promessa foi lavrada e assinada por
testemunhas. Desta forma, cada um deva arcar com o seu
trato.
AMARÍLIS
(olha para Sales e em seguida para Dirceu, impaciente)
Claro que não é nada disso...
625
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Então se é assim, nem Marília nem a família dela é obrigada a
cumprir promessa alguma...
AMARÍLIS
(ainda mais impaciente)
A promessa foi feita pelo finado senhor, meu pai. E até onde
sabemos, o finado senhor meu pai fazia gosto de ver Marília
casada com o tal rapaz da Itália...
DIRCEU
Fazia, enquanto vivo, mas...
SALES
Mas, o quê? Se está morto, devemos preservar-lhe a
memória...
DIRCEU
(tranquilo, passando as mãos na aba do chapéu)
Nada que uma boa missa não resolva. Sim, é isto. Peçam a um
padre que celebre uma missa de desagravo a uma promessa
impossível de cumprir...
AMARÍLIS
(põe-se de pé)
Mas isso é possível?
DIRCEU
Claro, caso contrário, façam o que tenham de fazer e case a
rapariga o mais rápido possível com o italiano, romano, sei lá
o que...
Sales levanta o braço, pedindo a palavra. Dirceu e Amarílis
olham para ele. Janela da frente da casa, na varanda. Marília se
recolhe para dentro da casa.
626
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
Quando viajamos juntos, vós mercê, Dirceu, referiu a uma
série de exigências que os rapazes italianos faziam para que
eles casassem com as moças da nossa colônia...
DIRCEU
Sim, eles acreditam que as moças da colônia são muitas e que
os pais temem de elas ficarem solteiras. Aproveitando-se
disso, eles oferecem casar-se com elas ganhando o direito legal
nas partilhas dos bens da família.
AMARÍLIS
Logo que é assim iremos mostrar aos jovens italianos que a
situação não é bem essa. A minha irmã não está a ficar solteira
e nem tampouco necessitando de homens estrangeiros para
casar-se... Além disso, eles blefam quando rezam que na nossa
colônia não há tantos homens. Há sim, muitos e bravos,
capazes de pô-los a correr daqui se eles estiverem exigindo
muito.
Dirceu, Sales e a própria Amarílis dão risadas. Uma das janelas laterais
da casa. Marília aparece em uma das janelas laterais da casa. Dirceu olha
para Marília e dá um sinal com a mão. Marília se recolhe novamente
para dentro da casa. Alameda. Minutos depois Marília aparece na
alameda e cumprimenta Dirceu friamente. UM ESCRAVO DA
FAZENDA traz uma poltrona para Marília e coloca-a perto de
Amarílis. Marília senta-se na poltrona. Amarílis prossegue a conversa.
AMARILIS
E Dirceu, não é da colônia? Ele casa com a minha irmã, sem
que ela tenha de pensar em estrangeiros...
MARÍLIA
Eu casar-me com esse mancebo? Nunca! Vocês mesmos
disseram que eu haveria de cumprir a promessa do meu
falecido pai. Quero, portanto, que o cunhado venda esta
627
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
fazenda e pague com a minha parte da herança a viagem do
rapaz da Itália ao Brasil. Quero casar o mais rápido possível e
fazer valer a promessa do meu finado pai.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Marília é danada, ela quer jogar um pouco mais devido o
plano preparado há tempos para o cunhado e a irmã.
DIRCEU
(olha para Sales e para Amarílis)
Se por acaso o amigo Sales e a digníssima esposa quiserem
vender a fazenda para o cumprimento do desejo da rapariga,
posso comprá-la com moedas, diamantes ou pepitas de ouro...
SALES
(olha assustado para Amarílis)
Mas a fazenda? Nós temos tantos planos, cá...
MARÍLIA
(olha para Sales e Amarílis e, em seguida, pisca para Dirceu)
Então vós mercê, cunhado Sales, pode se desfazer daquele
enorme diamante que herdara do seu tio-avô, pagar para mim
a parte da herança e lucrar está fazenda.
SALES
(olha para Dirceu e para Amarílis, confuso. Põe-se de pé, olha
para o quintal da fazenda e senta-se de novo na poltrona)
Quem disse que tenho ou herdei diamante de tio-avô, Marília?
MARÍLIA
Vós mercê mesmo disse, Sales. A minha irmã é eu somos
testemunhas de quando vós mercê não somente nos mostrou
a pedra de diamante, como também nos falou sobre os seus
planos em trabalhar no comércio...
628
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
AMARÍLIS
(com as faces coradas de vergonha, olha para Sales e depois
para Marília)
Eu?! Eu, Marília, nunca ouvi o Sales falar sobre qualquer
diamante. Vós mercê deve ter sonhado e está um pouco
confusa..
Marília olha para Amarílis furiosamente. Dirceu ajeita-se na poltrona e
olha para Sales.
DIRCEU
Ora, e por falar em diamante, por que vós mercê não vende
aquele que dei de presente ao seu filho, Sales?
AMARÍLIS
(olha para Dirceu surpresa)
Vós mercê deu um diamante de presente ao meu filho?
DIRCEU
Sim, creio que Sales não comentou devido ao valor da pedra.
É sempre perigoso alguém da vila saber que...
SALES
(tosse e olha para Dirceu um pouco animado)
Isso mesmo. Dirceu deu de presente ao pequeno um valioso
diamante, só que não pude mostrar a vós mercês devido ao
medo de que algum salteador soubesse e...
MARÍLIA
Então há dois diamantes...
SALES
O diamante é o próprio diamante, dona Marília...
MARÍLIA
O que vós mercê nos mostrou e que disse que iria negociá-lo?
629
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
AMARÍLIS
(olha e pisca para Sales)
Eu não vi nenhum diamante...
DIRCEU
(olha para Sales e Amarílis)
Se quiseres vender o diamante, farei gosto em comprá-lo e têlo. Desta forma o casamento de dona Marília com o tal
mancebo poderá ser realizado...
Sales olha para Amarílis. Marília olha para Sales e Amarílis, toda feliz.
MARÍLIA
Está aí, com o dinheiro da venda do diamante traremos da
Itália aquele a quem é prometido a mim...
SALES
Podemos pensar nesta possibilidade...
AMARÍLIS
(bate o pé firme no chão)
Mas se o diamante pertence ao nosso filho, não acho justo
desfazer-se dele. Trata-se de um valioso presente...
DIRCEU
(põe-se de pé)
Perdoem a mim, senhora Amarílis e dona Marília. Perdoe a
mim senhor Sales. Sei que intrometi em assuntos alheios, de
família. Eu, acreditem em mim ou não, eu só quis ajudá-los.
Marília deve agir conforme a sua consciência e quem somos
nós para interferir em seus assuntos amorosos. Basta o que
dom Manuel reservou a ela, qual, estamos vendo, algo gerador
de grande conflito.
(coloca o chapéu na cabeça)
Se me permitem, tenho que ir para casa cuidar dos meus...
630
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu anda pelo quintal da fazenda. Cavalo de Dirceu no fundo do
quintal da fazenda. UM DOS ESCRAVOS DA FAZENDA corre e
pega o cavalo para Dirceu. Dirceu recebe o cavalo e monta. Marília põese de pé.
DIRCEU
(olha para Marília com olhos devoradores)
Se a moça desistir de trazer o romano para casar-se, lembre
que estou em minha fazenda a esperá-la. Não tenho lá muitas
riquezas, mas pelo menos posso oferecer-lhe tranquilidade
para a vida inteira.
Amarílis e Sales põem-se de pé e olham para Dirceu e Marília. Marília,
Amarílis e Sales de pé, olham para Dirceu. Cavalo de Dirceu. Dirceu
afrouxa a rédea do cavalo e sai cavalgando pelo quintal de frente até a
cancela da fazenda. UM DOS ESCRAVOS DA FAZENDA abre a
cancela.
ESTRADA. DIRCEU CAVALGA PELA
SEQUÊNCIA 218 - INT./DIA CHUVOSO. FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. COZINHA DA FAZENDA.
Fazenda Ribeirão do Meio. Dia chuvoso. Janela aberta da cozinha do
casarão da fazenda. Cozinha do casarão da fazenda. Mesa da cozinha do
casarão da fazenda. Dirceu, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão
sentados à mesa da cozinha do casarão da fazenda tomando café.
Sebastiana vai até a janela e espia a chuva caindo lá fora.
SEBASTIANA
Que belezura é a primavera, logo os campos vão estar
floridos de flores. Esta época é a da fartura...
631
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Sebastiana está certa, mal chega a primavera e o céu começa a
desatar chuva. Esta chuva é mais inofensiva do ano, ela molha
a terra e faz a semente que desde o outro ano estava
adormecida, germinar...
RAIMUNDO SOBREIRO
É verdade, até dezembro os nossos campos estão cobertos de
rosas, girassóis, lágrimas-de-cristo, boca-de-leão, orquídeas,
damas-da-noite e tantas outras florzinhas que nos despertam
de uma hora a outra para a vida.
ZÉ DA VIÚVA
Faz gosto ver o pasto, o capim verde, molhado e farto. O
gado e as ovelhas gordas pastando pelas campinas. Rios
derramando de cheios e pássaros voando feito anjos no céu,
de um lado para o outro...
Todos se silenciam na mesa de café da cozinha da fazenda. Dirceu leva
o copo até a boca, toma um golinho do café, coloca o copo na mesa e
sorri ao se lembrar da ópera a que ele assistiu na Casa da Ópera, em Vila
Rica.
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
NOTA: as ações são adaptadas à fantasia de Dirceu.
SEQUÊNCIA 182 – INT./EXT./NOITE. VILA RICA. CASA DA
ÓPERA.
Vila Rica. Noite. A porta da Casa da Ópera abre-se e todos os
espectadores entram educamente. Sala da Casa da Ópera. Luzes de
lampiões acesos. Espectadores sentados nas cadeiras ansiosos para o
início do espetáculo. Dirceu está sentado na cadeira entre os
espectadores. Orquestra pronta. Palco. Atores entram-se no palco
632
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
encenando a música de Vivaldi, tocada pela maravilhosa orquestra:
Adargio-largo-Allegro. Corpo de baile dos atores. Marília aparece
dançando no corpo de baile entre os atores. Público. Dirceu no meio do
público põe-se de pé olhando bobamente para o palco. Atores saem do
palco. Marília fica dançando sozinha no palco. Dirceu corre em direção
ao palco. Marília dança no palco ao final da música. Dirceu sobe no
palco e abraça Marília. Dirceu e Marília beijam-se, romanticamente. Fim
da apresentação. Público de pé aplaude o grande espetáculo. Dirceu e
Marília agradecem o público abrando e beijando-se.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 218.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA CHUVOSO.
FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. COZINHA DA FAZENDA.
Todos estão silenciosos na cozinha, sentados à mesa, servindo-se do
café. Dirceu corta o silêncio fazendo um comentário.
DIRCEU
Contemplo cada uma das quatro estações do ano e fico
atônito ao imaginar em qual dessas estações da minha vida
estaria a mágica capaz de fazer-me unir eternamente à mulher
que eu amo...
RAIMUNDO SOBREIRO
A dona Marília?
DIRCEU
E não haverá outra, Raimundo Sobreiro...
CHUVA FINA. CAMPOS COBERTOS DE FLORES
SINGULARMENTE DA PRIMAVERA.
633
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 219 – INT. /EXT. NOITE CHUVOSA. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. QUARTO DE DIRCEU. VARANDA DO
CASARÃO.
Fazenda Ribeirão do Meio. Madrugada chuvosa. Quarto de Dirceu.
Dirceu está deitado na cama em seu quarto, dormindo. Porta do quarto
de Dirceu do lado de fora. Miliquito e Eulina, com um pequeno
candeeiro nas mãos, estão encostados na porta do quarto de Dirceu, do
lado de fora. Miliquito bate na porta do quarto de Dirceu, do lado de
fora. Dirceu, deitado na cama em seu quarto, acorda de súbito.
Candeeiro nas mãos de Eulina ilumina o corredor do casarão. Miliquito
bate na porta do quarto de Dirceu, do lado de fora. Cama de Dirceu.
Dirceu pula da cama assustado e, enrolado com a coberta vai até a porta
e abre-a. Miliquito e Eulina na porta do quarto do lado de fora. Eulina
ergue o candeeiro. Dirceu franze as sombracelhas devido à luz do
candeeiro. Dirceu, assustado, olha para Miliquito e Eulina.
DIRCEU
Aconteceu alguma coisa de urgente? A chuva causou algum
dano a vós mercês ou a alguém da fazenda?
MILIQUITO
(olha para Eulina e depois para Dirceu)
Inhô Antenor está na varanda querendo conversar com
nhozinho...
DIRCEU
(assustado)
O Antenor? Eta, será se aconteceu alguma coisa lá no sítio
dele? Ele adiantou alguma coisa para vós mercês? Ele não é de
aparecer por cá a essas horas da madrugada!
Miliquito e Eulina dizem "não" com a cabeça. Porta do quarto.
Miliquito e Eulina afastam-se da porta do quarto. Dirceu fecha a porta
do quarto. Varanda do casarão. Poltronas. Antenor está sentado em
uma das poltronas. Quarto de Dirceu. Dirceu olha para o espelho
634
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ajeitando a gola da camisa. Porta do quarto de Dirceu. Trocado de
roupa, Dirceu abre a porta do quarto e sai andando pelo corredor
semiescuro. Varanda do casarão. Antenor está sentado em das poltronas
observando a chuva fina caindo no quintal da fazenda. Dirceu aparece
na varanda do casarão. Antenor ao ver Dirceu põe-se de pé. Dirceu e
Antenor cumprimentam-se com apertos de mãos. Dirceu senta-se em
uma das poltronas. Antenor também se senta em seguida em uma das
poltronas ao lado de Dirceu.
ANTENOR
Desculpe-me senhor Dirceu, sei que é bem cedo para
incomodá-lo, mas nós viventes sabemos que as notícias ruins
correm e, portanto, cá estou para repassar a vós mercê a
notícia que recebemos nesta madrugada de Vila Rica...
DIRCEU
(esfrega os olhos e olha para Antenor demonstrando-se
preocupado)
Notícias ruins correm? Então qual é a notícia ruim vinda de
Vila Rica que vós mercê tem para repassar a mim, Antenor?
ANTENOR
O padre Rocha, o padre Rocha que esteve cá e fez o
casamento dos...
DIRCEU
O que aconteceu com o padre Rocha, Antenor?
ANTENOR
O padre Rocha morreu subitamente, ontem a noite em Vila
Rica...
DIRCEU
O padre Rocha morreu?
635
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ANTENOR
Ainda não preguei os olhos e, desde que eu soube da notícia
estou preparando uma caravana de homens para sair depois
do almoço. O enterro será a tarde, deste sábado, se vós mercê
interessar ir conosco.
DIRCEU
Vou sim, Antenor. vou sim. Devo prestar as últimas
homenagens ao bondoso pároco. Pegaremos a estrada da
serra do Ita-corumi para chegarmos a tempo de assistir ao
enterro do padre Rocha.
SEQUÊNCIA 220 – INT./EXT./MANHÃ. VILA RICA. RUAS DE
VILA RICA. IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS.
PEQUENO CEMITÉRIO DA IGREJA SÃO FRANCISCO DE
ASSIS. PRAÇA AMARRA-CAVALOS.
Vila Rica. Ruas de Vila Rica. Movimento de pessoas nas ruas de Vila
Rica. Antenor, Vivêncio, Dirceu, Terêncio, Tibúrcio e outros homens
da região cavalgam devagar pelas ruas de Vila Rica. Igreja de São
Francisco de Assis. PESSOAS na porta de frente da igreja de São
Francisco de Assis. Pessoas entram e saem da igreja de São Francisco de
Assis. Interior da igreja. Altar principal da igreja. Caixão aberto com o
padre Rocha, próximo ao principal altar da igreja. Dirceu e Antenor
aproximam-se do caixão do padre Rocha. Dirceu olha para o corpo do
padre Rocha e faz o sinal da cruz.
CORTA PARA
Repicar de sinos de algumas igrejas de Vila Rica. ALGUNS HOMENS
VESTIDOS COM ROUPAS BRANCAS aproximam-se do caixão do
padre Rocha, fecham-no se preparam para pegá-lo. Caixão do padre
Rocha sendo carregado pelos homens vestidos com roupas brancas.
Pessoas acompanham os homens vestidos com roupas brancas
carregando o caixão de padre Rocha. Porta da igreja de São Francisco de
636
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Assis. HOMENS VESTIDOS COM ROUPAS BRANCAS carregando
o caixão do padre Rocha e com pessoas seguindo-os por trás, saem da
porta da igreja de São Francisco de Assis.
CORTA PARA
Pequeno cemitério da Igreja de São Francisco de Assis. O enterro do
padre Rocha chega ao cemitério da igreja de São Francisco de Assis. AS
PESSOAS se espalham pelos cantos do pequeno cemitério da igreja.
Túmulo de dom Manuel. Marília está encostada no túmulo de dom
Manuel. Ela está triste e pensativa, reparando todo o movimento do
enterro do padre Rocha. Os homens vestidos com roupas brancas
colocam o caixão do padre Rocha no chão, ao lado do túmulo aberto,
onde ele vai ser sepultado. APARECEM ALGUNS PADRES vestidos
com batinas pretas e rodeiam o caixão do padre Rocha. UM DOS
PADRES faz a celebração do enterro.
UM DOS PADRES
Creio em um só DEUS, Pai todo-poderoso, Criador do céu e
da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um
só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do
Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado,
consubstancial ao Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. E
por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos céus. Ó,
Senhor, Nosso Deus, receba Senhor a alma do nosso irmão
Antônio Malveira Rocha, o padre Rocha, a quem o Senhor
confiou os ofícios de sua santa igreja. Cá, Senhor,
depositamos o corpo do nosso irmão para cumprir a Tua
promessa na criação do mundo, em Gênesis 3:19 "porquanto
és pó e em pó te tornarás".
OUTRO UM DOS PADRES
Irmãos vamos rezar a oração que o Senhor Deus nos ensinou
através do seu Filho e Nosso Salvador, Jesus Cristo: Pater
637
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
noster, qui es in caelis, sanctificétur nomen tuum, Advéniat
regnum tuum, Fiat volúntas tua, Sicut in caelo, et in terra.
PESSOAS QUE ESTÃO NO ENTERRO
Panem nostrum quotidiánum da nobis hódie. Et dimítte nobis
débita nostra, Sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris. Et
ne nos indúcas in tentatiónem.Sed líbera nos a malo. Amem.
UM JOVEM SEMINARISTA traz uma caldeira de água benta e
estende-a a um dos padres. O UM DOS PADRES faz a aspersão com a
água benta da caldeira, no caixão do Padre Rocha. Os homens vestidos
de brancos pegam o caixão do padre Rocha e leva-o para o
sepultamento.
CORTA PARA
Túmulo de dom Manuel. Marília está encostada no túmulo de dom
Manuel. Dirceu vê Marília encostada no túmulo de dom Manuel. Ele vai
ao encontro de Marília. Marília olha para Dirceu um pouco surpresa.
Marília e Dirceu olham para a direção do sepultamento do padre Rocha.
Mãos de Dirceu deslizam-se e tocam nas mãos de Marília. Dirceu e
Marília se entreolham, mas fogem os olhares em seguida. Fim do
sepultamento do padre Rocha. Túmulo do padre Rocha fechado.
ALGUMAS MULHERES vestidas de roupas pretas colocam flores e
coroas de flores no túmulo do padre Rocha.
DIRCEU (VOICE OVER)
Avistei Marília próxima ao túmulo do pai sentindo-se triste e
desamparada. Há tempos nós dois, a sós, não trocávamos
palavras. Aproximei-me dela, medi palavras para iniciar um
diálogo, mas optei pelo silêncio, deixando, aos poucos que as
nossas mãos se tocassem, nossos olhos falassem e nossas
bocas murmurassem à falta que um fazia ao outro. Ficamos
ali, frente ao túmulo de dom Manuel assistindo ao
sepultamento do amigo e santo padre. Após a cerimônia,
atrevi dizer-lhe uma pequena e sóbria frase.
638
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ALGUMAS PESSOAS estão saindo do cemitério. Dirceu e Marília se
entreolham fixamente.
DIRCEU
Jaz, aqui, hoje, neste sábado, o padre que eu esperava celebrar
o nosso casamento...
MARÍLIA
(sorri sobriamente, tocando as mãos nas mãos de Dirceu)
Ainda somos namorados?
DIRCEU
(Dirceu beija as mãos de Marília)
Eternos namorados.
CORTA RÁPIDO PARA
Pequeno cemitério da igreja de São Francisco. Túmulo do padre Rocha.
Carpindeiras em suas lamentações fúnebres e algumas irmandades
entoando hinos para homenagear o padre Rocha. PESSOAS DE VILA
RICA manifestavam de um jeito ou outro uma forma singela de
despedir-se do padre Rocha.
CORTA PARA
MARÍLIA
(olha para um lado e para o outro e depois olha para Dirceu)
Fujamos deste lugar triste, onde o destino marca o final da
vida e procuremos um lugar onde ele marca o início.
DIRCEU
(sorri esperançoso. Toca carinhosamente no queixo de Marília)
Este lugar a que pretendes que fujamos é para sempre,
Marília?
639
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Sim, para sempre! Não pensas, senhor Dirceu, que eu esteja
brincando...
DIRCEU
Por que não procuremos um padre e marquemos o nosso
casamento, Marília.
MARÍLIA
Se pareces louco, serei mais louca ainda, Dirceu. Subamos,
pois, no alto de uma montanha e confessamos a Deus o nosso
amor, pedindo a Ele a bênção de nossa união...
DIRCEU
Se quiseres, Marília, nós podemos fazer isso agora mesmo.
MARÍLIA
Vamos sair daqui. Ainda que não vamos hoje ao alto de uma
montanha, pelo menos vamos para um lugar tranquilo onde
podemos conversar e planejar as nossas vidas...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 221 – EXT./DIA. VILA RICA. PRAÇA AMARRACAVALOS.
Praça "Amarra-cavalos”. Alguns cavalos amarrados nos postes ao redor
da praça "Amarra-cavalos". Crianças correm brincando de um lado para
o outro. ´Marília e Dirceu sentados em um banco observam as crianças
brincando na praça.
MARÍLIA
Esses dias mesmo eu era uma menina danada e sapeca a
brincar também neste pátio.
640
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Engraçado, desde menino, quando eu vinha cá, em Vila Rica
com o meu pai, os meus olhos brilhavam ao ver a molecada
brincando. Eles corriam de um lado para o outro e deixavamme verve, bobo imaginando porque eles tanto corriam ... Um
dia contei isso a um amigo da fazenda, Ernestino, e ele
respondeu-me com os olhos bem arregalados, "Eles corriam
por que? Com medo do romãozinho da mão varada?”
MARÍLIA
Isso nos dá a certeza de que a vida passa tão rápida a ponto de
mudar tudo de um tempo ao outro. Se não fossem as
lembranças guardadas na memória...
Marília abraça Dirceu e beija-o romanticamente. Dirceu olha para um
lado e outro da praça "Amarra-cavalos" e, em seguida, ataca Marília aos
beijos e abraços. PESSOAS que passam pela praça a pé ou a cavalo
vêem Marília e Dirceu beijando-se. Marília pega firmemente na mão de
Dirceu.
MARÍLIA
Venha comigo, estou sozinha em casa e não quero perder a
chance de tê-lo comigo por todo o resto desta tarde...
DIRCEU
Não iremos escalar uma montanha, dona Marília?
MARÍLIA
O tempo promete brotar chuva. Depois escalaremos uma e
confessaremos os nossos pecados a Deus.
DIRCEU
Mas vós mercê não disse que lá confessaríamos a Deus o
nosso amor?
641
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Sim, mas se o amor for pecado, conforme demonstrou-nos a
humanidade, pecaremos ainda hoje. Procure a chácara de
Tônico Borba e deixe o seu cavalo no pasto de aluguel. Na
chácara do Tônico Borba tem lugares para guardar todos os
apetrechos dos animais, de quem os colocam lá. Vá, faça isso
e volte e fique comigo e tenha tudo de mim durante esta tarde
e durante toda a noite e madrugada...
DIRCEU
Farei tudo conforme a sinhazinha está pedindo...
MARÍLIA
Vou para casa e aguardo lá por vós mercê, ansiosa...
DIRCEU
Tudo bem, Marília. Vou avisar ao pessoal da caravana que não
me retornarei hoje para a minha fazenda, com eles, deixarei o
cavalo na chácara do Tônico e procurarei por ti em tua casa...
SEQUÊNCIA 222– INT./DIA. VILA RICA. CASA DE DOM
MANUEL. VÁRIOS.
Casa de dom Manuel. Grande relógio na sala de visita da casa de dom
Manuel. Sala de visitas da casa de dom Manuel. Marília divinamente
bem vestida aparece na sala de visita da casa de dom Manuel. Janelas
abertas da sala da casa de dom Manuel. Marília vai até uma das janelas
da sala da casa de dom Manuel e espia o lado de fora.
CORTA PARA
Ruas próximas à casa de dom Manuel. Dirceu vem andando rápido
pelas ruas próximas à casa de dom Manuel. Marília, em uma das janelas
da sala da casa de dom Manuel sorri ao ver Dirceu. Portão da casa de
dom Manuel. Dirceu encosta-se no portão da casa de dom Manuel.
642
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Marília aparece encantadora no portão da casa de dom Manuel e recebe
Dirceu com abraços e beijos. Marília e Dirceu entram na casa de dom
Manuel. Sala de jantar da casa de dom Manuel. Grande mesa com bules
e vasilhas cheias de quitutes. Dirceu e Marília estão na grande mesa
tomando café e comendo quitutes.
CORTA PARA
Noite. Ruas e praças de Vila Rica. Dirceu e Marília estão andando de
mãos dadas pelas ruas e praças de Vila Rica. Janelas abertas de algumas
casas. MULHERES nas janelas abertas de algumas casas observam
Marília e Dirceu passeando pela cidade. Chafariz principal de Vila Rica.
Marília e Dirceu aproximam-se do chafariz. Dirceu molha as mãos e
passa no rosto de Marília. Marília passa a língua nas mãos molhadas de
Dirceu. Marília e Dirceu dão risadas.
SEQUÊNCIA 223 – INT./ NOITE/DIA. CASA DE DOM
MANUEL. QUARTO DE CASAL.
Casa de dom Manuel. Bonito quarto de casal. Candeeiro aceso ao lado
de uma cama de casal. Dirceu está despido, deitado na cama. Marília se
despe e deita ao lado dele. Eles amam-se intensamente. Candeeiro
apaga-se. Amanhece. Janelas do quarto de casal. Pequenos raios do sol
entram pelas frestas das janelas do quarto de casal. Dirceu acorda, olha
para Marília despida, enrolada em um lençol branco de linho. Ele sorri
satisfeito.
DIRCEU (VOICE OVER)
Finalmente a vida proporcionava a Marília e a mim aquele
maravilhoso presente, a ponto de eu concluir de que a noite
não deveria ter fim aos eternos e sábios namorados. Marília
havia confessado a mim que desde o dia anterior estava
cansada de viver rodeada pelas pessoas da casa e como a irmã
estava na fazenda com o marido, ela também mandou Vívila e
Rosa para lá, dizendo que iria para Mariana passar uns dias
643
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
com a madrinha dela. Com a morte do padre Rocha,
acabamos nos encontrando e fazendo planos de um futuro
promissor...
Pequenos raios do sol entram pelas frestas das janelas do quarto de
casal. Dirceu senta-se na cama, encosta-se aos travesseiros e fica
admirando com os olhos o corpo de Marília. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Haveria em todo o universo, mulher mais bonita, quanto à
minha Marília?
Cama. Marília dormindo na cama. Dirceu viaja pelo corpo de Marília
usando as pontas dos dedos. Detalhes do corpo de Marília: cabelos
grandes loiros e finos; as faces graciosas; os olhos belos e os seus dentes
alvos ao sorrir dormindo. Dirceu fala por solilóquios.
DIRCEU
Queria Marília maiores graças que aquelas, cuja natureza deu a
ela?
(sorri e toca nos lábios de Marília, beijando-os)
Poderia eu, Dirceu, aventurar nas minas mais perigosas, nas
profundas entranhas da terra e mergulhar em caudalosos rios,
em busca de riqueza?
(sorri e toca nos seios de Marília, beijando-os)
Não, eu não haveria de fazer isso, pois a maior riqueza já
estava em minhas mãos, era Marília.
(sorri olhando para todo o corpo de Marília)
Assim, da mesma sorte em que vivia o rico gozando de suas
imensas fortunas, eu, Dirceu, um simples e pobre fazendeiro,
haveria de viver também gozando da minha riqueza, que,
embora mortal, contemplaria, enquanto durasse. Marília era
toda a minha riqueza...
Dirceu continua deitado na cama reparando Marília dormir. Lábios de
Marília com um sorriso. Os olhos de Marília abrem-se. Dirceu e Marília
644
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
permanecem calados olhando um para o outro sorrindo bobamente.
Dirceu e Marília abraçam e beijam-se.
MARÍLIA
Viajarei com vós mercê hoje mesmo para a tua fazenda. Lá há
um lugar para mim?
DIRCEU
Como? Queres morar comigo, na minha fazenda?
MARÍLIA
Sonhei estando contigo num lugar maravilhoso, corríamos
entre as colinas verdejantes a nos confundir com as ovelhas,
os rios e os pastos...
DIRCEU
Existiam lobos, no sonho?
MARÍLIA
Não! Creio que os deuses nos veneravam, porque o nosso
plano havia dado certo!
DIRCEU
E isso significa o quê?
MARÍLIA
Que ninguém mais me afastará de vós mercê, Dirceu. A praga
que vós mercê jogou em mim, pegou, Dirceu.
Dirceu e Marília beijam-se ardentemente.
DIRCEU
Aquela praga que eu joguei em vós mercê em Mariana? Eu
falei por falar...
MARÍLIA
Se falou por falar, se foi praga ou não, saiba que ela pegou em
mim...
645
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Ela pegou em nós dois, Marília, pelo nosso bem, pelo bem do
nosso amor.
Marília beija Dirceu. Dirceu encosta-se no travesseiro. Marília encosta-se
nos braços de Dirceu apoiados no travesseiro.
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir.
SEQUÊNCIA 94 – EXT./DIA. VILA MARIANA.
Laura olha para Dirceu, sorri e agarra Marília pelos braços para
levá-la para casa. Dirceu aproxima-se de Marília e segura-a pelo
outro braço um pouco nervoso.
DIRCEU
Quer saber de uma coisa, dona Marília? Eu sou do
campo e não troco a vida da fazenda por nada deste
mundo. Espero que a sinhazinha namore, case ou
concubine com um rapazote da cidade e viva com ele
todas as aventuras possíveis. Quem sabe, em minhas
andanças pelo campo não encontrarei a minha
verdadeira Marília? Deus haverá de mostrar-me outra,
capaz de aceitar o meu amor e as minhas condições para
nutri-lo.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 223.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. CASA DE D.
MANUEL. QUARTO DE CASAL.
Quarto de casal. Cama de casal. Dirceu encostado no travesseiro ao lado
de Marília. Ambos abraçam e beijam-se.
646
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Irás mesmo comigo para a minha fazenda, Marília?
MARÍLIA
Não pensarei duas vezes, Dirceu. Agora penso na minha felicidade
plena de realizar o que quero...
DIRCEU
E quanto a Sales e Amarílis?
MARÍLIA
Um tem ao outro para se apoiarem. Se amam ou não, se são
felizes ou não, o problema é deles. Eu conversei bastante com
eles e pedi que eles me deixassem livre, caso contrário...
DIRCEU
Ameaçou o cunhado e a irmã em fazer alguma bobeira?
MARÍLIA
Sim, prometi que se eu não for de vós mercê, eu serei de
todos os homens da cidade...
DIRCEU
Meu Deus,seria uma cortesã? Jogou pesado com eles, Marília...
MARÍLIA
E a praga que vós mercê jogou em mim, lembra?
DIRCEU
Sobre o concubinato?
MARÍLIA
Sim. Segundo vós mercês eu namoraria, casaria ou teria um
concubinato com um rapazote da cidade e viver com ele todas
as aventuras possíveis...
647
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
E pensas viver assim, Marília?
MARÍLIA
Não. Nós nos casaremos no cume de uma montanha,
conforme a sentença santa contida no livro de Gêneses, o que
Deus une o homem não separa...
DIRCEU
Seremos eternos, Marília...
Dirceu se joga em cima do corpo de Marília. Eles abraçam e beijam-se.
DIRCEU
E juntos, Marília, seremos uma só carne...
Janelas fechadas do quarto de casal. Sol intenso invade todas as frestas
das janelas.
SEQUÊNCIA 224 - EXT./INT./DIA. VILA RICA. RUAS DE VILA
RICA. PEQUENO E GRACIOSO EMPÓRIO.
Ruas de Vila Rica. Dirceu andando a cavalo pelas ruas de Vila Rica.
Igreja Nossa Senhora do Pilar. Dirceu atravessa uma rua próxima à
igreja Nossa Senhora do Pilar. Bonita carruagem com seis cavalos,
estacionada na porta de um pequeno e gracioso empório. PESSOAS
curiosamente aproximavam-se da carruagem para ver e apreciar-lhe o
luxo. Dirceu frea o cavalo e fica observando a carruagem. Dirceu tira o
chapéu, coça a cabeça e fala por solilóquio.
DIRCEU
Hora boa que apareceu esse carro. É carro de luxo, daqueles
que só rodam em capitais dos estrangeiros. Se eu conseguir
alugar ou comprar aquele carro, posso conduzir Marília
tranquilamente para a minha fazenda...
648
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Árvore próxima ao gracioso empório onde a carruagem está
estacionada. Dirceu pula-se do cavalo, segura-o pela rédea e vai até a
uma árvore próxima ao empório onde a carruagem está estacionada. Ele
amarra o cavalo no tronco da árvore. PESSOAS curiosamente
aproximavam-se da carruagem para ver e apreciar-lhe o luxo. Dirceu
também se aproxima da carruagem e aprecia-lhe o luxo. Portas do
empório abertas. Ele dirige-se até as portas do empório e espia para o
lado de dentro. Balcão do empório. ALGUNS HOMENS bebem
vinhos e comem petiscos no balcão do empório. Dirceu entra no
empório e olha para todos que ali estão presentes.
DIRCEU
Alguém de vós mercês poderiam me informar a quem
pertence o carro estacionado na porta deste comércio?
TODOS OS HOMENS presentes no empório olham para Dirceu. UM
DOS HOMENS, loiro, gordo e baixo, de aproximadamente 30 anos,
ergue as mãos e se apresenta para Dirceu. Ele é o COCHEIRO da
carruagem estacionada na porta do comércio.
COCHEIRO
O carro pertence a mim, senhor, algum problema?
DIRCEU
O carro está a venda, é de uso pessoal ou de aluguel?
COCHEIRO
O carro é de aluguel, sim. Veio de São Sebastião do Rio de
Janeiro a serviço da família do conde El-Sado, recém-chegada
de Portugal.
DIRCEU
Essa família veio a passeio?
649
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
COCHEIRO
Nada, nada, senhor. Vieram de mudança. Compraram uma
grande fazenda com mina de ouro e tudo. É meu o interesse
em perguntar, o senhor deseja fazer alguma viagem?
DIRCEU
Se vós mercê alugar o veículo, combinaremos.
COCHEIRO
Não, não estou a alugá-lo. Estou a serviço do conde e volto
daqui a três ou quatro dias para São Sebastião do Rio de
Janeiro, transportando o ex-proprietário da grandiosa
fazenda...
DIRCEU
Se pergunto muito, senhor, por acaso, quem será o feliz que
fará a grandiosa e confortável viagem neste carro até São
Sebastião do Rio de janeiro?
COCHEIRO
Chama-se dom Miguel. Ele vendeu a propriedade ao conde e,
em breve, partirá para Portugal. É uns chegando à colônia e
outros partindo...
Balcão do empório. Garrafão de vinho e petisco numa bandeja. O
Cocheiro aproxima-se do balcão do comércio e abastece o seu copo de
vinho, além de se abastecer com alguns petiscos. Portas abertas do
empório. Dirceu vai até uma das portas abertas do empório e olha para
a carruagem. Ainda há algumas pessoas curiosas aproximando-se da
carruagem para ver e apreciar-lhe o luxo. Dirceu olha fixamente para a
carruagem. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Outra parte da história de Josias que se cumpre. Agora estou
diante de um carro que levará o dom Miguel para São
650
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Sebastião do Rio de Janeiro, afim de ele embarcar para
Portugal...
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir.
SEQUÊNCIA 175 – EXT./NOITE. SERRA DE ITA-CORUMI.
CAMPOS DE CRISTAIS NO ALTO DA SERRA.
DIRCEU
Tudo isso é muito confuso. Não queres que eu entregue
ao seu filho a imagem e o ouro? Não conheço o seu filho,
mas posso procurá-lo pelas regiões de Vila Rica...
PAI DE DOM MIGUEL
Não. Em breve o meu filho venderá tudo o que adquiriu
na colônia e embarcará para Portugal.
DIRCEU
Como a um desertor?
PAI DE DOM MIGUEL
Não falei que somos todos desertores de Deus? Nada é
nada para o homem, apenas tudo é tudo para Deus. O
meu filho não mais poderá ficar no Brasil. Ele também
jamais poderá tomar posse dessa imagem que agora está
com vós mercê. Não se preocupe com esta missão. Nada
irá afetar vós mercê. Portanto, quando souberes da
partida do meu filho, para além-mar, leve a imagem de
Santa Ifigênia à igreja construída por Chico Rei e sua
tribo e coloque-a na entrada da igreja. Não deixe que
ninguém veja vós mercê fazendo isso. Ninguém também
jamais saberá o que se sucedeu cá. Quero que vós mercê
fique tranquilo, em nome de Deus.
651
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Amém!
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 224 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA. VILA
RICA. RUAS DE VILA RICA. PEQUENO E GRACIOSO
EMPÓRIO.
Carruagem estacionada em frente ao comércio. PESSOAS E OUTRAS
passam pela rua e, curiosamente, aproximam-se da carruagem para vê-la,
apreciando-lhe o luxo. Dirceu está em uma das portas abertas do
comércio. O cocheiro vem ao encontro de Dirceu e toca-lhe as mãos
nos ombros. Os dois conversam entusiasmados em forma de
pantomima.
DIRCEU (VOICE OVER)
Finalmente recebi a mensagem esperada. Eu estava defronte a
carruagem que levaria dom Miguel para o Rio de Janeiro, de
onde embarcaria para Portugal. Como se não bastasse, o
cocheiro inteirou-me sobre a venda da fazenda e da mina dele
ao conde El-Sado. Esse conde vivia em Lisboa com a família
e, segundo consta, gozava de uma extensa riqueza entre os
rios do baixo Tejo e Sado. É de se saber que desde 1792,
quando a França declarou guerra à Áustria, muitas famílias
européias mudavam-se para a nossa colônia. Entre elas a
família do conde El-Sado, que, felizmente, fazia-me apto a
cumprir a promessa feita ao pai de dom Miguel a respeito da
imagem de Santa lfigênia. Voltei a sondá-lo.
CORTA PARA
Dirceu está em uma das portas abertas do empório ao lado do cocheiro.
652
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Pretendo fazer ainda hoje uma viagem curta, até a minha
fazenda, qual levarei a minha futura esposa. Se por acaso vós
mercê puder nos levar pagarei a viagem...
COCHEIRO
O povo da nossa terra diz léguas em vez de quilômetros.
Aprendi essas medidas durante as minhas viagens. Qual a
distância de Vila Rica até a fazenda de vós mercê?
DIRCEU
A minha viagem é curta, a umas três léguas e pouco mais
daqui.
COCHEIRO
Pensei que fosse para mais longe. Vós mercê quer fazer a
viagem ainda hoje?
DIRCEU
Se o dia não for importuno. Aos cristãos, domingo é dia de
descanso...
COCHEIRO
Mas e este cristão, cá, domingo é dia de socorrer também as
pessoas. Para mim todo o tempo é tempo de ganhar dinheiro.
O patrão é quem manda...
DIRCEU
Mandamos todos, senhor...
Balcão do empório. HOMENS próximos ao balcão bebendo vinho e
comendo petiscos. Dirceu e o cocheiro sentam-se cada um em um
velho tamborete, frente a frente. Carruagem estacionada na porta do
empório. Dirceu e o cocheiro apertam-se as mãos.
653
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Trato feito. Vou até a uma chácara, cá perto, negociar com o
dono para que ele mande entregar na minha fazenda o meu
cavalo. Voltarei daqui a pouco para que possamos buscar a
minha princesa e levá-la para a fazenda nesse bonito carro...
COCHEIRO
Carro de grã-fino, senhor, digno de reis, rainhas, príncipes e
princesas...
SEQUÊNCIA 225 - EXT. VILA RICA. RUAS DE VILA RICA.
PORTÃO DA CASA DE DOM MANUEL.
Ruas próximas a casa de dom Manuel. A carruagem aparece de repente
nas ruas próximas a casa de dom Manuel. Janelas abertas de algumas
casas. PESSOAS nas janelas abertas de algumas casas se encantam ao
ver a carruagem passar perto de suas portas. Dirceu dentro da
carruagem. Cocheiro elegantemente tocando a carruagem. Casa de dom
Manuel. A carruagem estaciona-se no portão da casa de dom Manuel. O
cocheiro pula-se da carruagem. Dirceu olha para o portão da casa de
dom Manuel. O Cocheiro abre a porta lateral da carruagem para Dirceu.
Dirceu sai da carruagem e entra no portão da casa de dom Manuel. Sala
de visita da casa de dom Manuel. Marília está sentada em uma poltrona.
Porta de entrada da sala de visita da casa de dom Manuel. Dirceu
aparece na sala de visita da casa de dom Manuel. Marília põe-se pé.
Dirceu olha para Marília sorrindo.
DIRCEU
Estás pronta para a viagem, dona Marília?
MARÍLIA
Confesso que sim, senhor Dirceu, pois desde o dia em que eu
decidi tomar conta da minha vida eu já havia arrumado as
minhas coisas e postas todas em minhas malas.
654
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(passa as mãos na cintura de Marília)
Isso me deixa muito feliz...
MARÍLIA
Não sei se vós mercê sabe, o Tônico Borba tem lá na chácara
dele um velho coche, uma carruagem semelhante à calache,
mas com duas rodas e puxadas por quatro cavalos. O meu
senhor finado pai alugou várias vezes o coche de Tônico
Borba para nos levar até a fazenda... A viagem é pouco
demorada, mas torna-se segura, principalmente quando temos
malas para transportar.
DIRCEU
Se estás preparada Marília a mudar para a minha fazenda, cá,
na porta de sua casa está o carro preparado para nos levar...
MARÍLIA
E o teu cavalo, Dirceu...
DIRCEU
Pedi ao Tônico Borba que o mandasse entregá-lo na minha
fazenda. Eu viajarei com vós mercê no carro a fim de protegêla de qualquer desventura...
Quarto de casa da casa de dom Manuel. Duas pequenas malas
encostadas em um dos cantos da parede. Dirceu pega uma das malas e
sai do quarto de casal, levando-a. Marília aproxima-se de uma das janelas
do quarto de casa l olha para o lado de fora. Porta da casa de dom
Manuel. ALGUMAS PESSOAS observando de perto a carruagem.
Dirceu entregando a mala ao cocheiro. Marília olha para a carruagem e
sorri. Janelas do quarto de casal. Marília começa a fechar as janelas do
quarto de casal. Dirceu aparece no quarto de casal para pegar a outra
mala.
655
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
O que há de extraordinário na nossa rua?
DIRCEU
Nada, simplesmente um camponês apaixonado buscando a
sua princesa.
MARÍLIA
(corre em direção de Dirceu, abraça e beija-o))
Nossa, um conto de fadas acontecendo em Vila Rica?
DIRCEU
Sim, Marília. A nossa vida há de ser um conto de fadas, mas
verdadeiro... Como viste, há uma carruagem na porta da sua
casa aguardando por nós dois.
Marília torna abraçar Dirceu. Marília e Dirceu beijam-se, novamente.
Dirceu sai dos braços de Marília e vai até a um dos cantos da parede
onde está uma mala. Dirceu pega a mala e ao sair do quarto de casal,
olha para Marília.
DIRCEU
Eu esperarei por vós mercê lá no carro. Assim que estiveres
pronta, partiremos de Vila Rica.
MARÍLIA
Nada mais terei de fazer senão trancar a casa...
Portão da casa de dom Manuel. Dirceu parece no portão com a mala e
entrega-a ao cocheiro. Casas da vizinhança. Janelas abertas das casas da
vizinhança. ALGUMAS MULHERES e/ou HOMENS observando, de
suas janelas, a carruagem na porta da casa de dom Manuel. Marília
aparece no portão da casa de dom Manuel. Marília olha para a
carruagem, aproxima-se dela e fica maravilhada.
656
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Meu Deus, uma carruagem linda, como nos contos de fadas
narrados pela minha avó. Onde a conseguiu, Dirceu?
DIRCEU
Os deuses providenciaram-na para nós dois, Marília...
Carruagem. Marília e Dirceu próximos à carruagem. O cocheiro abre a
porta lateral da carruagem. Marília e Dirceu entram e se acomodam na
carruagem. VIZINHOS nas janelas aberta acenam as mãos para
Marília.
VIZINHA DE MARÍLIA
É a filha do dom Manuel que embarca à Itália. Casará com um
homem de posses por lá.
Carruagem. Marília olha para Dirceu e disfarça o sorriso.
MARÍLIA
(fala por solilóquio)
Se os meus vizinhos pudessem imaginar que eu, dona Marília,
encontrava naquele momento ao lado do meu futuro marido,
como a mulher mais feliz do mundo, decerto não
comentariam nada...
Ruas de Vila Rica. Cavalos da carruagem. O cocheiro comanda a
carruagem. A carruagem roda lentamente pelas ruas de Vila Rica. Marília
e Dirceu beijam-se felizes dentro da carruagem.
UM DOS VIZINHOS DE MARÍLIA
Dona Marília neste momento está se embarcando para a
Itália...
OUTRO UM DOS VIZINHOS DE MARÍLIA
Até que enfim a promessa do finado pai será cumprida...
657
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
OUTRO DOS OUTROS VIZINHOS DE MARÍLIA
Viram só? A dona Marília está sendo tratada como a uma
princesa, com carruagem nobre e tudo...
SEQUÊNCIA 226 - EXT./INT./DIA/ ESTRADA. INTERIOR DA
CARRUAGEM.
Estrada. Carruagem rodando pela estrada. Cocheiro tocando os seis
cavalos pelas rédeas. Marília e Dirceu felizes dentro da carruagem. Retas
e curvas da estrada. Lindas paisagens das margens da estrada a se
confundirem o verde das plantas com o azul do céu e a névoa cinza do
penhasco.
DIRCEU (VOICE OVER)
Durante a viagem Marília e eu fechávamos os olhos como se
sonhássemos com aquele momento maravilhoso das nossas
vidas. A carruagem macia e perfumada andava devagar
mostrando-nos as lindas paisagens das margens da estrada a se
confundirem o verde das plantas com o azul do céu e a névoa
cinza
do
penhasco.
Marília, por sua vez, contava-me em poucas palavras a sua
tomada de decisão perante o cunhado e a irmã Amarílis.
CORTA PARA
Estrada. Marília e Dirceu no interior da carruagem.
MARÍLIA
Tudo o que o meu cunhado quer é se apossar dos bens
deixados pelo meu finado pai. Se ele soubesse o quanto
importo com isso. A mim sempre importou a liberdade de
escolher o rumo a dar à minha vida. Por isso, aproveitei-me
do plano para não dar a ele nenhuma outra saída senão vender
a fazenda e fazer, mesmo que mentira, entregar a mim a
minha parte da herança para que eu pudesse casar com o
658
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
suposto italiano. Vós mercê, Dirceu, não sabe da missa a
metade.
DIRCEU
Então me conte a missa inteira sem rezar no latim, Marília...
MARÍLIA
Embora eu não conheça a missa rezada em outra língua,
Dirceu, vou relatar a vós mercês o quanto Sales tem interesse
de estragar o nosso namoro...
DIRCEU
(arregala os olhos para Marília)
É mesmo?
MARÍLIA
É mesmo! Conto a vós mercê o que se sucedeu no dia que
Sales contou-me sobre o suposto namoro seu com a filha do
sitiante...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 227 - INT./DIA. CASA DE DOM MANUEL. SALA
DE JANTAR.
Flash back – Relato de Marília.
Manhã. Casa de dom Manuel. Sala de jantar. Sales, Amarílis e Marília
estão na sala de jantar, sentados à mesa, tomando café. Sales olha para
Marília.
SALES
Eu tenho certeza de que a dona Marília ainda espera ser
correspondida pelo tal de Dirceu.
MARÍLIA
659
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
(assusta-se e quase derruba a xícara de café na mesa)
Como? Por que isso agora, senhor Sales
SALES
Espera ou não espera ser correspondida pelo camponês?
AMARÍLIS
Isso lá é hora de falar disso, Sales...
MARÍLIA
(olha para Sales e Amarílis)
Vós mercês sabem muito bem que eu já tenho um
pretendente. Tudo o que tens a fazer, senhor meu cunhado, é
vender a minha parte da fazenda e, quem sabe, até esta casa
para que o meu pretendente venha da Itália e se case comigo...
AMARÍLIS
Ainda insiste nessa bobeira, Marília? Não vê que o sujeito
pede o que não temos...
MARÍLIA
Papai daria um jeito, foi ele quem arrumou tudo isso. Todas as
pessoas de Vila Rica sabem deste compromisso. Querem o
quê? Que eu fique em maus lençóis?
SALES
É, em más lençóis mesmo. Se o tal italiano não der certo,
Dirceu muito menos...
MARÍLIA
Por que?
SALES
Imagina vós mercê Marília, que há poucos dias vi o Dirceu
passar na minha fazenda com uma bonita rapariga na garupa
do cavalo dele... Acho que a rapariga é a noiva dele...
660
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
(engolindo a seco)
Como? Vós mercês está insinuando que o Dirceu namora
outra moça?
SALES
Outra, não. A moça... A rapariga é filha de um sitiante vizinho
de nossas fazendas...
Mesa de café. Marília levanta-se da mesa de café e sai correndo para o
quarto dela. Quarto de Marília. Cama. Marília atira-se na cama
chorando.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 226.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA/
ESTRADA. INTERIOR DA CARRUAGEM.
Estrada. Interior da carruagem. Marília e Dirceu viajando na carruagem.
MARÍLIA
Quando Sales disse a mim que vistes vós mercê passeando de
cavalo com a rapariga pelo capoeirão da fazenda, aproveitei-me
disso para brigar com vós mercê, pois, dessa forma, eu o
manteria distante de mim para que o nosso plano facilitasse.
Daí por diante não dei sossego ao cunhado e nem à minha irmã.
Depois daquele dia em que vós mercê foi à fazenda, eles não
mais falaram em outra coisa senão em vossemecê, a fim de
convencer-me a namorá-lo.
DIRCEU
Meu Deus, então o casal fazia de tudo para manipular vós
mercê, Marília. Portanto, para que Sales se sentisse seguro de
que não perderia a fazenda, ele passou a sondar os meus bens...
661
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 227.1 – EXT./DIA. FAZENDA DE DOM
MANUEL. ALAMEDA DO QUINTAL DE FRENTE DA
FAZENDA DE DOM MANUEL.
Flash back – Relato de Marília.
Fazenda de dom Manuel. Alameda da fazenda de dom Manuel. Marília,
sentada na poltrona ao lado de Amarílis. Sales também sentado na
poltrona observa o quintal de frente da fazenda. Marília chama a
atenção de Amarílis e Sales.
MARÍLIA
Eu preciso tomar alguma decisão a respeito da minha vida.
Como todos sabem e eu nunca escondi do falecido senhor
meu pai, sempre prometi casar-me com o homem a quem eu
realmente apaixonasse e que fosse também correspondida. Eu
respeito a promessa do senhor meu pai, principalmente agora
que ele faleceu, mas como estou diante de algumas exigências
do tal sujeito arranjado pelo meu falecido pai, o meu coração
fica absorto, confuso...
AMARÍLIS
(aperta as mãos de Marília)
Ó, Marília, Marília querida, saiba que tanto o Sales, quanto eu,
queremos que vós mercê seja feliz...
MARÍLIA
Serei sim, desde que vós mercês me dêem uma chance de
respirar e colocar em dias as minhas ideias. Me encontro
confusa, a ponto de não saber mais nem quem eu sou...
SALES
A cunhada queres o que, afinal?
662
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Quero ir até Vila Rica e ficar um tempo a sós para pensar um
pouco na minha vida...
AMARÍLIS
Vai pensar na proposta de Dirceu?
MARÍLIA
Talvez pensarei em todas as propostas. Quem sabe até na
proposta de não ser uma mulher de um homem só...
SALES
(põe-se de pé)
Estás blefando, Marília? Isto não podes está saindo do teu
juízo...
AMARILIS
O que dizes é uma grande besteira, minha irmã.
MARÍLIA
Preciso viajar a Vila Rica, quero que providenciem a minha
viagem para amanhã cedo...
SALES
Sim, vós mercê poderá ir, mas claro, mandarei Rosa e Vívila...
MARÍLIA
Que seja assim...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 226.2 - CONTINUAÇÃO - EXT./INT./DIA/
ESTRADA. INTERIOR DA CARRUAGEM.
Estrada. Interior da carruagem. Marília e Dirceu viajando na
carruagem.
663
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Eles enviaram-me juntamente com Rosa e Vívila. Daí, pedi a
elas que arrumassem as minhas coisas nas malas dizendo que
eu partiria ou para a tua fazenda ou para a Itália a procura do
tal prometido... Depois disso pedi a Rosa e a Vívila que
voltassem para a fazenda pedindo-as para contar à minha irmã
que eu viajaria naquela tarde para Mariana, onde eu ficaria
alguns dias com a minha madrinha... Mas com a morte do
padre Rocha...
DIRCEU
Nossas vidas resolveram querer unirem-se por toda a vida.
Dirceu e Marília beijam-se ternamente.
MARÍLIA
Ninguém mais conseguirá nos separar, ninguém, exceto
Deus...
Estrada. A carruagem vira duas ou três curvas e logo se vê a cancela da
fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu abre um pouco mais a cortina da
janela da carruagem, espia para o lado de fora e sorri.
DIRCEU
Fazenda Ribeirão do Meio! Estamos chegando Marília na
nossa fazenda...
Sequência 228 – Int./Ext. /Dia. Fazenda Ribeirão do Meio. Visão
geral do casarão da fazenda. Varanda do casarão. Cancela da fazenda.
Fazenda Ribeirão do Meio. Varanda do casarão. Sebastiana, Inácia,
Quitéria e Eulina estão na varanda do casarão sentadas nos tamboretes
em círculo. Elas estão conversando animadamente. Cancela da fazenda.
A carruagem estaciona frente à cancela da fazenda. Sebastiana olha para
664
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
a cancela da fazenda e vê a carruagem. Sebastiana põe-se de pé. Inácia,
Quitéria e Eulina olham para Sebastiana. Inácia também olha para a
cancela e põe-se de pé. Inácia cutuca os braços de Quitéria e Eulália,
apontando para a cancela. Sebastiana, Inácia, Quitéria e Eulina em pé
olham para a cancela e vêem a carruagem. Inácia, Quitéria e Eulina
correm para as suas respectivas casas geminadas. Portas das três casas
geminadas abertas. Inácia, Quitéria e Eulina entram cada uma na porta
de sua casa. Portas abertas das três casas geminadas. Os casais Cirilo e
Inácia; Hipólito e Quitéria; Miliquito e Eulina saem das três portas das
casas geminadas para o quintal. Sebastiana está no quintal olhando para
a cancela.
SEBASTIANA
A porteira da fazenda, qualquer coisa chegou à porteira da
fazenda empurrada por uns cavalos...
Cirilo, Hipólito e Miliquito correm para a cancela da fazenda. Cancela da
fazenda. Cirilo, Hipólito e Miliquito param na cancela e ficam reparando
a carruagem. Hipólito abre a cancela e se aproxima da carruagem. O
cocheiro abre a porta lateral da carruagem. Dirceu sai da porta lateral da
carruagem. Hipólito olha para a carruagem e olha para Dirceu assustado.
Hipólito tira o chapéu e cumprimenta Dirceu por gestos.
HIPÓLITO
Nhô Dirceu?! Inhô Dirceu veio de onde dentro dessa
maravilha...
DIRCEU
É um carro, Hipólito, um carro que eu aluguei em Vila Rica
para trazer comigo a minha mulher adorável...
Cancela da fazenda aberta. Sebastiana, Inácia, Quitéria, Eulina, Cirilo,
Hipólito, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro estão
na cancela da fazenda admirando a bonita carruagem. Porta da
carruagem abre-se ao lateral. Dirceu aproxima-se da porta lateral da
carruagem, estende-se a mão para Marília. Marília desce elegantemente
665
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
da carruagem. Sebastiana, Inácia, Quitéria, Eulina, Cirilo, Hipólito,
Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro ficam olhando
atentamente para Marília. Marília olha para todos e sorri amavelmente.
DIRCEU
Esta é a dona Marília, minha eterna companheira e futura
esposa...
Sebastiana, Inácia, Quitéria, Eulina, Cirilo, Hipólito, Miliquito,
Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro ficam imóveis, olhando
para Marília.
CIRILO
A moça é bonita, sinhô Dirceu.
Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro olham para Marília. Ela aproxima-se
de Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro.
MARÍLIA
Zé e Raimundo Sobreiro, o destino está a nos colocar de novo
no mesmo caminho...
ZÉ DA VIÚVA
Não existe no céu nem na terra, sinhá Marília, criatura mais
boa e formosa igual a vossemecê.
MARÍLIA
Bondade sua, Zé, bondade sua...
SEBASTIANA
(estagnada com a surpresa, aproxima-se de Dirceu)
Sinhozinho há de ser feliz com a moça. Ela é bonita, educada
e parece gente da gente.
666
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 229 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
CASARÃO DA FAZENDA. COZINHA DO CASARÃO.
Fazenda Ribeirão do Meio. Cozinha da fazenda. Mesa da cozinha da
fazenda. Compotas de doces, bolos, assados, café e leite na mesa da
cozinha da fazenda. Café e cesta cheia de pães de queijo na mesa da
cozinha da fazenda. Dirceu, Marília, o cocheiro, Sebastiana, Inácia,
Quitéria, Eulina, Cirilo, Hipólito, Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e
Raimundo Sobreiro estão sentados à mesa da cozinha da fazenda
servindo-se do café com os pães de queijo e de outras iguarias. Todos
conversam animadamente enquanto servem-se da mesa farta.
DIRCEU
Eu pedi a um senhor em Vila Rica para mandar entregar cá,
na fazenda, o meu cavalo. Alguém pode me dar alguma
notícia?
AMBRÓSIO
(pondo-se de pé)
Carece nhozinho ficar tranquilo, porque o cavalo de
vossemecê já está solto no pasto com os outros...
DIRCEU
Obrigado, Ambrósio, obrigado. Eu agora, por enquanto,
quero preocupar-me apenas com a dona Marília...
MARÍLIA
E nós dois, Dirceu, nos preocuparemos com todos...
DIRCEU
(fala ao cocheiro)
Vós mercê pede os rapazes para ajudá-lo a destrelar os cavalos
do carro e soltá-los no pasto. Os bichinhos estão cansados...
667
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
COCHEIRO
Estou cá pensando se volto ainda hoje para Vila Rica...
DIRCEU
Não carece arriscar, durma cá, amanhã cedo atrelaremos os
seus cavalos novamente no carro e vós mercê pega a estrada
de volta...
COCHEIRO
Se vós mercê achar melhor assim. Eu nada conheço desta
região e, portanto não devo ser prudente... Cá ficarei e viajarei
amanhã pela manhã para Vila Rica...
DIRCEU
Pedirei para providenciar para vós mercê um aposento para o
seu repouso...
CORTA PARA
Noite. Candeeiro aceso na varanda do casarão. Dirceu e Marília
sentados lado a lado na varanda do casarão conversam alegremente.
FADE OUT/ FADE IN
Quarto de casal do casarão. Candeeiro aceso numa pequena mesa de
cabeceira da cama de casal. Marília está deitada na cama do quarto. Ela
fecha os olhos e sorri. Ela sorri pensando em Dirceu.
CORTA RÁPIDO PARA
Quarto de Dirceu. Candeeiro aceso próximo à cama dele. Dirceu está
deitado na cama. Ele sorri pensando em Marília.
CORTA PARA
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Porta do quarto de casal do casarão. Dirceu aparece na porta do quarto
e bate na porta.. Marília está deitada na cama. Ela olha para a porta e
sorri. Dirceu bate na porta novamente. Marília levanta-se da cama e vai
até a porta. Ela abre a porta do quarto. Dirceu aparece na porta. Dirceu
e Marília abraçam e beijam. Dirceu empurra com os pés a porta do
quarto, fechando-a. Os dois abraçam e beijam até cairem na cama de
casal. Os dois amam-se loucamente na cama de casal.
CORTA PARA
OLHOS BRILHANTES DE UMA AVE NOTURNA NO BEIRAL
DO TELHADO DA VARANDA DO CASARÃO DA FAZENDA.
SEQUÊNCIA 230 – EXT. /DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CANCELA DA FAZENDA. ESTRADA EM DIREÇÃO À
CAPELA DA FAZENDA.
Manhã. Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela da fazenda. Carruagem
estacionada próxima a cancela da fazenda. O cocheiro, Miliquito,
Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro acabam de trelar os seis
cavalos na carruagem. Dirceu e Marília saem da varanda do casarão e
vão até a cancela da fazenda. Cancela da fazenda. Dirceu e Marília
despedem-se do cocheiro. Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e
Raimundo Sobreiro afastam-se da carruagem, tiram os chapéus e
despedem-se do cocheiro. O Cocheiro sobe na carruagem, senta-se no
seu lugar e segura firme as rédeas dos cavalos. Pneus da carruagem.
Carruagem parte devagar pegando a estrada. Miliquito, Ambrósio, Zé da
Viúva e Raimundo Sobreiro dirigem-se para o quintal de frente da
fazenda. Ambrósio olha para Dirceu e Marília, depois olha para a
cancela da fazenda aberta. Dirceu olha para Ambrósio. Ambrósio fecha
a cancela.
DIRCEU
Pode fechar a cancela, Ambrósio. Dona Marília e eu iremos
andar um pouco para espairecer as nossas mentes...
669
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu pega pela mão de Marília e ambos saem andando pela estrada
que liga a fazenda até a capela. Um bando de pássaros corta o azul do
céu. Marília levanta-se a cabeça e olha para o bando de pássaros.
MARÍLIA
Espero que os homens não descubram meios de se
enriquecerem às custas dessas aves, pois, ao descobrirem
valores do ouro, da prata e de todas as pedras preciosas, veja
só no que se deu, esgotou-se tudo...
DIRCEU
Temos cá notícias de que muitas dessas aves são transportadas
para a europa. Se vivem lá, como cá, não sei...
MARÍLIA
Não sei porque Deus dá permissão ao homem de estar
modificando tudo...
DIRCEU
Mutatis mutandis! Já ouviste esta frase Marília?
MARÍLIA
Não! Uma expressão latina, não é?
DIRCEU
Sim, Marília e significa mudando o que tem de ser mudado.
Pode significar também com as mudanças necessárias...
MARÍLIA
Isso implica que...
DIRCEU
Que o homem vai mudando as coisas do jeito que ele achar
que deve mudar. No solo de Vila Rica existia ouro, hoje não
existe mais, assim também acontecerá um dia com os céus
670
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
desta fazenda e de outras mais, talvez, não existirá espécies
algumas de aves, voando sobre eles...
MARÍLIA
E o homem há de aprender a conviver com a tristeza, sem a
presença dessas aves que alegram a natureza... Não quero estar
viva, Dirceu, para ver isso acontecer...
BANDO DE AVES COLORIDAS CORTA O AZUL DO CÉU.
MARÍLIA FICA ENCANTADA, OBSERVANDO AS AVES
VOANDO PELO AZUL DO CÉU.
CAPÍTULO 14
SEQUÊNCIAS 231-239
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Marília
Sebastiana
Inácia
Raimundo Sobreiro
Zé da Viúva
Eulina
Quitéria
Sales
Amarílis
Padre Joaquim Alonso
Soldados da guarda dos reis católicos
Padre Rocha
Rei Fernando Aragão
Rainha Isabela de Castela
Dois homens serviçais
Padre espanhol (60 anos)
Padres espanhóis
Estela
Antenor
Fiéis
671
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Mulheres do coral
Miliquito
Crianças (filhos dos sitiantes e fazendeiros da região)
Ambrósio
Trácio
Alceu
Endimião
Dom Miguel
Hipólito
Cocheiro
Martinha (escrava)
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 133
SEQUÊNCIA 231 – EXT./INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CAPELA DA FAZENDA.
Capela da fazenda. Adro da capela da fazenda. Dirceu e Marília
passeiam pelo adro da capela da fazenda.
MARÍLIA
Quantas vezes eu desejei conhecer esta capela, Dirceu. Eu não
sabia que ela era tão conservada...
DIRCEU
Os rapazes e eu demos um trato nela. Nós pintamos todo o
frontifício e algumas partes do interior dela e as moças
lavaram-na devolvendo todo o brilho. Esta capela Marília tem
sido cobiça de muita gente estranha. Dizem que nela havia um
mistério...
672
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
(entusiamada)
Um mistério?
DIRCEU
Sim, havia... Não há mais...
MARÍLIA
Que pena! Alguém desvendou o mistério?
DIRCEU
Sim, mas não sabemos quem... Há pouco tempo um moço
que estava conosco na fazenda e eu descobrimos isso...
MARÍLIA
Por acaso, vós mercês ficaram sabendo de que se trata o
mistério?
DIRCEU
Segundo o moço que estava conosco na fazenda, qual era um
padre disfarçado em mendigo, o mistério era as moedas do
Iscariotes...
MARÍLIA
Moedas de que ou de quem?
DIRCEU
Do Judas Iscariotes! Ele me disse que as trinta moedas de
prata, qual Judas traiu Jedus Cristo vieram parar cá, no altar
desta capela...
MARÍLIA
(olha para a capela admirada)
Meu Deus! Como algo daquele tempo poderia parar cá, nesta
capela tão distante de tudo que é mundo...
673
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Isso nos dá a certeza de que todo lugar do mundo é o mundo,
Marília...
MARÍLIA
Perdõe-me a besteira que eu falei, Dirceu...
DIRCEU
Não, é porque às vezes somos condicionados a pensar que o
mundo é somente mundo onde há civilização.
MARÍLIA
E consoante ao nosso saber o conhecimento é um processo
de aquisição de valores sociais e culturais capazes de auxiliar
no desenvolvimento de uma sociedade.
DIRCEU
Isso lá é verdade, Marília. Creio que são os europeus que nos
fazem imaginar que o mundo somente existe onde há
civilização. Talvez isso se dê devido ao fato de esta colônia ter
índios e um tanto de padres tentando civilizá-los através da
doutrina cristã...
Marília e Dirceu dão risadas. Eles aproximam-se da porta de frente da
capela. Dirceu empurra a porta da capela e abre-a. Eles entram na capela
e observam todo o interior da capela viajando com os olhos. Dirceu
narra mimicamente para Marília a história da construção da capela e dos
mistérios que há nela. Marília demonstra-se impressionada. Detalhes do
altar e do púlpito da capela. Marília escorre as mãos em algumas partes
do altar da capela. Púlpito. O pequeno púlpito simples, contornado e
cheio de cores complexas. Afresco. O pequeno afresco com anjos,
tendo ao centro São Rafael e São Miguel Arcanjo. Adro da capela da
fazenda. Dirceu e Marília estão no adro da capela da fazenda. Frontifício
da capela da fazenda. Dirceu mostra para Marília a torre modestamente
piramidal e uns pequenos desenhos em alto relevo do lado esquerdo do
frontispício da capela da fazenda. Marília presta-se a todos os detalhes
674
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
do frontifício e da torre da capela da fazenda. Um bando de andorinhas
pousa na torre da capela.
DIRCEU
Ouviste, Marília, como a história desta capela é longa. Ainda
que resumi quase toda para não consumir todo o nosso
tempo.
MARÍLIA
Ainda que pareça mentira é uma história muito interessante,
Dirceu. Algo ainda me diz que esse mistério ainda não foi
concluído...
DIRCEU
Será? Sabia que eu já estava tranquilo só de pensar que toda a
história não passasse de um engano de padres e de
especuladores?
MARÍLIA
Todo mistério tem o seu tempo, Dirceu. Será se esse mistério
já teve o seu tempo para ser desmitificado? Creio que ainda
falta entrar algum personagem nesta história...
DIRCEU
E quem seria?
MARÍLIA
Talvez não somente um personagem, mas muitos...
DIRCEU
Por que afirmas isto, Marília?
675
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Porque trata-se de moedas e, até onde sei, Dirceu, as moedas
têm duplas fases, uma do bem, outra do mal...
DIRCEU
Então isso implicaria que pessoas tanto do bem, quanto do
mal ainda haveriam de aparecer na história...
MARÍLIA
Sim, Dirceu, assim como estou a partir de agora a fazer parte
também da sua história...
UM BANDO DE ANDORINHAS POUSA NA TORRE DA
CAPELA.
SEQUÊNCIA 232 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Meio dia. Fazenda Ribeirão do Meio. Casarão da fazenda. Cozinha do
casarão. Marília ajuda Sebastiana e Inácia a colocar a mesa do almoço.
Grande mesa. Marília arruma os talheres na grande mesa. Porta do lado
de fora da cozinha. Dirceu, Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva aparecem
na porta da cozinha. Eles entram na cozinha e sentam à grande mesa.
Marília senta-se na grande mesa ao lado de Dirceu. Dirceu, Marília,
Raimundo Sobreiro e Zé da Viúva almoçam na grande mesa,
conversando alegremente.
CORTA PARA
Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Casas geminadas dos três casais. Casa
de Inácia. Pequena sala da casa de Inácia. Roda de tear e flocos de
algodão espalhado em um canto da pequena sala de casa de Inácia.
Inácia está sentada em um pequeno tamborete, na roda de tear, fiando
algodão e transformando-o em linha ou cordão. Eulina, sentada no
chão, ao lado de Inácia, tece um manta com a linha de algodão, usando
676
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
uma agulha. Marília entra na pequena sala da casa de Inácia, vestindo-se
um vestido simples.
CORTA PARA
Tarde de outro dia. Inácia e Eulina cumprimentam Marília com gestos
amáveis. Marília senta-se no chão ao lado de Eulina para vê-la tecendo a
linha ou cordão. Varanda do casarão. Marília, Inácia, Eulina e Quitéria
estão sentadas nos tamboretes da varanda da fazenda, conversando.
Sebastiana aparece na varanda trazendo uma vasilha com pedaços de
doce e serve para Marília, Eulina e Quitéria. Quintal de frente da
fazenda. Dirceu no quintal de frente da fazenda observa Marília com
Eulina, Inácia e Quitéria conversando na varanda.
DIRCEU (VOICE OVER)
Com o passar dos dias, Marília entregava-se à amizade das
mulheres da fazenda, ora visitando Inácia, Eulina e Quitéria
em suas casinholas, ora proseando com elas na varanda da
casa. Eu ficava imensamente feliz ao ver Marília misturar-se à
minha gente e a revelar naturalmente a sua simplicidade, a
ponto de deixar as roupas bonitas de lado e a vestir-se das
mais simples possíveis. Aos poucos eu assistia o despertar do
espírito dela, a revestir-se em camponesa ou pastora, que eu
tanto sonhava. Foi observando isso que eu resolvi tornar-me
um mestre em montarias.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 233 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Pôr-do-sol. Cancela da fazenda. Cirilo abre a cancela da fazenda. Dirceu
e Marília saem cavalgando devagar pela estrada. Marília testa a rédea
observando o cavalo. Marília sorri satisfeita. Campinas. Marília e Dirceu
cavalgam pelas campinas. Cabelos de Marília, livres, voam ao vento.
677
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu cavalga na frente de Marília. Marília apressa o galope do cavalo e
passa na frente de Dirceu. Selvas. Rios. Fontes. Relvado. Dirceu e
Marília deitados nos relvado. Relvado. Dirceu e Marília beijam-se no
relvado. Pôr-do- sol. Dirceu e Marília chegam a cavalos em frente da
capela da fazenda.
DIRCEU (VOICE OVER)
Não demorou muito e Marília passou a seguir-me aos passeios
vesperais pelas verdes colinas. Todos os dias, durante os
nossos passeios, os olhos dela imensos e arregalados não
cansavam de mirar todos os feitios da natureza, buscando
respostas para as suas imensuráveis perguntas. E os cabelos
dela, sem flor e nem fitas, livres e soltos ao vento, não só
deixavam-me admirado, como também preocupado com a
inveja que causaria aos demais pastores de toda aquela
humilde região. Os nossos passeios, aos poucos,
ultrapassavam os limites postos por nós mesmos, durante as
nossas tênues cavalgaduras. Isso se dava devido as nossas
paragens na selva, quando defrontávamos com os rios, as
fontes, os desejos de deitarmos nas brandas relvas e a unirmos
mil coisas ternas, que só a nós dois pertenciam. A certeza da
nossa chegada à fazenda, antes ou depois do pôr-do-sol davase sempre na frente da capela. Em uma das nossas tardes de
passeio, voltamos à fonte do ribeirão.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 234 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. MARGENS DA FONTE DO RIBEIRÃO.
Outra tarde. Cavalos de Dirceu e de Marília amarrados em um mesmo
tronco de uma árvore. Margens da fonte do ribeirão toda destroçada,
com barrigas e cheias de buracos feitos por picaretas. Relvado quase
678
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
todo comprometido com um monte de barro seco espalhado sobre ele.
Marília fecha os olhos, respira fundo, abre os olhos, novamente, e olha
para a margem da fonte do ribeirão. Ela fica indignada ao ver a margem
da fonte toda destroçada. Marília coloca as mãos no peito e olha para
Dirceu.
MARÍLIA
Ó, céus! Como o Sales foi capaz de mandar fazer isto? Será se
não tem piedade alguma pela natureza...
DIRCEU
Viu só, Marília, como a ambição é a desgraça do homem? Por
causa daquela pepita que joguei cá, na margem da fonte, olha
só no que se deu...
MARÍLIA
Sentes culpado, Dirceu?
DIRCEU
Haveria eu, de sentir?
MARÍLIA
A tua loucura se estendeu a um mais louco ainda...
DIRCEU
Eu defendia naquele instante o valor do homem em tornar-se
livre da matéria. Joguei a pepita de ouro para discursar a vós
mercê, de que a riqueza nada valeria para mim, sem vós
mercê... Vós mercê, Marília é o meu maior tesouro...
MARÍLIA
Enquanto isso, o discurso do Sales, ao encontrar cá nas
margens da fonte a pepita de ouro, foi de mandar cavar tudo
isso para encontrar mais ouro e ele ficar homem rico...
679
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(aponta para Marília a fonte do ribeirão)
E olha só no que deu...
MARÍLIA
(olha para as árvores próximas à fonte do ribeirão)
Parece que nem os pássaros cantam mais por estas bandas...
DIRCEU
E tudo isso por um pedacinho de ouro. Agora que vós mercê
viu a fonte arrasada, acredita em mim? Viu o quanto Sales é
inconsequente?
MARÍLIA
Eu sei de toda a história de como Sales encontrou a pepita de
vós mercê na margem desta fonte.
DIRCEU
E como foi?
MARÍLIA
Vou contar para vós mercê, porque ele mesmo admitiu ser um
homem ambicioso...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 235 – EXT./DIA. FONTE DO RIBEIRÃO.
RELVADO.
Flash back - Relato de Marília
Fonte do ribeirão. Relvado. Botas de Sales andando e pisando pelo
relvado. Sales. Aproxima-se das margens da fonte do ribeirão. Ele
ajoelha-se nas margens da fonte do ribeirão. Água correndo
tranquilamente pela fonte do ribeirão. Mãos de Sales tocam a água do
ribeirão. Sales senta-se nas margens da fonte do ribeirão. Ele passa as
680
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
mãos sobre a areia das margens da fonte do ribeirão. Pepita de ouro nas
margens do ribeirão. Sales vê a pepita de ouro nas margens da fonte do
ribeirão. Ele pega a pepita de ouro e fica a repará-la.
SALES
Ouro, meu Deus é uma pepita de ouro. Nestas terras têm
riquezas, vou tornar-me um homem rico. Vou mandar cavar
isto tudo, nem que eu tenha de mudar o percurso desta fonte.
Ouro, agora que achei esta pepita, cá, à-toa, nas margens desta
fonte, quero encontrar mais pepitas. Quero ter muito ouro!
Relvado próximo à fonte do ribeirão, Marília, Amarílis e Rosa estão
sentadas no relvado. Rosa serve para Marília e Amarílis alguns lanches
tirando-os de uma grande cesta. Elas veem Salaes alegre abrindo e
fechando a mão direita.
MARÍLIA
O que está acontecendo com o Sales? Será se ele encontrou
alguma coisa interessante, ali?
AMARÍLIS
Nada,creio que ele está feliz porque está cheio de planos para
com a fazenda...
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 234.1 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. MARGENS DA FONTE DO RIBEIRÃO.
Dirceu e Marília estão parados olhando osestragos feitos na fonte por
sales.
681
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Era de se esperar por isso, onde o senhor meu pai ia permitir
uma coisa dessas. O que ele trazia na mão a que ele tanto
olhava Dirceu era nada mais que uma pepita de ouro
insignificante, jamais capaz de valer pelo estrago que ele fez
nesta fonte... Eu sempre briguei com ele, devido a ambição a
que ele sustenta, por nada...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 235.1 - INT./DIA. VILA RICA. CASA DE DOM.
MANUEL. SALA DE VISITA.
Flash back - Relato de Marília
Manhã. Vila Rica. Casa de dom Manuel. Sala de visita da casa de dom
Manuel. Sales está sentado em uma poltrona ao lado de Marília. Ele sorri
e dircursa bobamente.
SALES
Quis a vida pregar-me esta peça, Marília. Talvez quisesse
provar que eu fosse um homem ambicioso. Eu fui e sou sim
um homem ambicioso. E daí? Mesmo que eu morra e tudo
fique aí, pelo menos enquanto eu viver terei coisas para dizer
que são minhas. Tendo-as, também, depois de morrer, terei
alguém para dizer que todas as coisas foram minhas...
Ninguém haverá de dizer que fui um homem sem eira e sem
beira. Quero que digam que eu tive riquezas, muitas riquezas...
MARÍLIA
Ora Sales, tudo isso não passa de uma vaidade! A maior
doença do homem é a ambição! Ter e viver bem são a questão!
Sala de visita da casa de dom Manuel. Sales sentado na poltrona assusta
com a chegada repentina de Amarílis.
682
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 234.2 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO
DO MEIO. MARGENS DA FONTE DO RIBEIRÃO.
Fonte do ribeirão. Marília olha para as árvores, segura nas mãos de
Dirceu e sorri.
DIRCEU
Meu Deus, quase que o Sales poderia ter derrubado esta
floresta inteira...
MARÍLIA
E desviado o percurso do riacho que, sem dúvida secaria de
tristeza...
DIRCEU
Imagina se ele mandasse derrubar a nossa árvore...
MARÍLIA
A nossa árvore? Não ele não seria louco de fazer isso. E por
falar na nossa árvore, vamos Dirceu rever a nossa árvore. Será
se os nossos nomes ainda estão gravados nela...
DIRCEU
Haverá de estar, pois ela será eternamente vigiada por Júpiter...
MARÍLIA
Então ai de quem fazer mal à nossa árvore...
Marília e Dirceu, de mãos dadas, vão até a frondosa árvore de carvalho.
Frondosa árvore de carvalho. Nomes de Marília e de Dirceu gravados no
centro de um coração, desenhado na frondosa árvore de carvalho.
Marília larga a mãos de Dirceu e corre até a árvore frondosa de carvalho.
Nomes gravados dentro do coração. Marília fica olhando os nomes
683
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
gravados dentro do coração, na frondosa árvore de carvalho. Dirceu
aproxima-se da frondosa árvore de carvalho, agarra Marília pela cintura e
também fica observando o coração com o nome dele e de Marília ao
centro. Marília e Dirceu dão risadas. Dirceu beija o pescoço de Marília.
Marília e Dirceu beijam-se apaixonadamente.
DIRCEU
Ainda bem que não derrubaram a nossa árvore...
MARÍLIA
Embora tenha a minha irmã e o meu cunhado tentados contra
o nosso amor, nada foi capaz de nos abalar...
Tronco da frondosa árvore de carvalho. Marília abraça o tronco da
frondosa árvore de carvalho.
MARÍLIA
Também com esta força, quero ver quem será capaz de nos
abalar...
DIRCEU
Que sejamos eternamente um para o outro Marília, seja qual
for a aventura ou desventura na arte de viver...
CORTA PARA
Colinas verdejantes. Campinas. Marília e Dirceu cavalgando pelas
campinas. Lagoa. Margem da lagoa. Marília e Dirceu sentados na
margem da lagoa, com os pés dentro da água.
PATOS SELVAGENS NADAM NA LAGOA AZUL.
LEGENDA: "alguns meses depois".
Tarde. Campinas. Dirceu e Marília cavalgam pelas campinas. Marília está
vestida com uma roupa branca. Cavalos de Marília e de Dirceu se
684
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
emparelham. Relvado. Dirceu senta-se no relvado. Campo de flores
silvestres. Marília, no relvado, de pé, admira o campo cheio de flores
silvestres. Marília corre para o campo e colhe algumas flores silvestres.
Ramalhete de flores silvestres nos braços de Marília. Marília com o
ramalhete de flores silvestres nos braços corre para sentar-se no relvado.
Dirceu está deitado no relvado com o chapéu dele sobre o rosto. Flores
silvestres no colo de Marília. Mãos de Marília escolhendo as flores
silvestres. Marília tece uma bonita coroa de flores silvestres. Flores
silvestres ganhando a forma de coroa. Marília experimenta a coroa de
flores silvestre na cabeça. Ela ajeita alguns detalhes da coroa de flores
silvestres, tateando-a ligeiramente com as mãos. Ela coloca a coroa de
flores na cabeça. Dirceu senta-se no relvado, coloca o chapéu na cabeça
e olha para Marília com a coroa de flores silvestres na cabeça. Ele sorri.
Ambos abraçam e beijam-se.
DIRCEU
Meu Deus, como os sonhos podem-se tornar uma realidade de
uma hora para a outra...
MARÍLIA
(ajeita a coroa de flores na cabeça)
Gostou da minha coroa de flores?
DIRCEU
Marília, tu és a princesa mais linda do mundo...
MARÍLIA
Creio que a minha alma seja a de uma camponesa...
DIRCEU
Ou de uma bela pastora, ninfa dos campos e deusa de toda a
formosura...
MARÍLIA
Conte-me, Dirceu, como os sonhos podem-se tornar uma
realidade de uma hora para a outra?
685
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
É que eu sonhei com vós mercê vestida de branca e com uma
coroa de flores do campo na cabeça, como se fosse uma
princesa...
MARÍLIA
Eu também sonhei muitas vezes com vós mercê sendo o meu
príncipe, Dirceu. Vós mercê socorrendo-me dos augúrios
ruins, tirando-me de uma torre de um castelo e me levando
para uma colina verdejante onde havia montanhas, campos
floridos e pássaros de todas as espécies, lagos, rios, cachoeiras,
peixes e uma casa simples de varada, com curral de gados e
ovelhas...
Relvado. Dirceu senta-se no relvado e abraça e beija Marília. A coroa de
flores cai da cabeça de Marília. Marília dá risadas. Dirceu pega a coroa e
coloca-a na cabeça de Marília, beijando-a ternamente. Cavalos de Dirceu
e de Marília. Marília montada no cavalo ajeita-se a coroa de flores na
cabeça. Dirceu emparelha o cavalo dele com o de Marília. Eles saem
cavalgando pelas campinas. Pássaros voando aos bandos. Rios. Água
caindo dos Penhascos. Cachoeiras. Plantas altas e rasteiras. Pôr-do-sol.
CORTA PARA
Capela da fazenda vista ao longe. Joaquim Alonso, que a partir daqui será
conhecido como PADRE JOAQUIM ALONSO está vestido com uma
bonita batina, sentado na porta de frente da capela da fazenda. Dirceu vê
um homem sentado na porta de frente da capela da fazenda. Dirceu olha
para Marília. Dirceu e Marília afrouxam as rédeas dos cavalos e apressam
a cavalgadura em direção à capela da fazenda. Dirceu toma a dianteira.
Capela da fazenda. Padre Joaquim Alonso está sentado na porta de
frente da capela da fazenda. Dirceu aproxima-se freando o cavalo na
porta de frente da capela da fazenda. Dirceu olha para o padre Joaquim
Alonso, tira o chapéu e dá risadas. Marília aproxima-se de Dirceu
freando o cavalo. Marília também olha para o padre Joaquim Alonso. Ela
fica um pouco confusa e cochicha para Dirceu.
686
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Vós mercê conhece o homem?
DIRCEU
Sim. Um velho amigo. É um padre luso, ordenado em
Espanha...
DIRCEU
(olha admirado para o padre Joaquim Alonso)
Amigo Joaquim Alonso, de volta ao seio de nossa fazenda...
PADRE JOAQUIM ALONSO
(pondo-se de pé)
Estou de volta à terra onde mana o mel e o leite...
Cavalo de Dirceu. Dirceu pula-se do cavalo e vai ao encontro de
Joaquim Alonso. Dirceu e o padre Joaquim Alonso se abraçam.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Vós mercê não contava com o meu retorno, pois não?
DIRCEU
Juro que não. Depois daquela decepção sobre o mistério...
Dirceu olha para Marília. Marília tenta descer do cavalo. Dirceu corre
para ajudá-la, pegando-a nos braços. A coroa de flores cai no chão.
Dirceu pega a coroa de flores e entrega-a para Marília. O padre Joaquim
Alonso repara Marília e Dirceu.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Quem é a bonita rapariga?
687
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Dona Marília, padre Joaquim Alonso. Ela será a minha eterna
esposa.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Vejo que o senhor é um homem de muito bom gosto, senhor
Dirceu.
DIRCEU
(dá uma piscadela para Marília)
Obrigado, padre.
Marília aproxima-se de Joaquim Alonso e reverencia-o. Mão de Marília
estendida. Marília pede a bênção ao padre Joaquim Alonso.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Posso dar crédito a Deus de que já sou digno de abençoá-la e
também a abençoar a todos os fiéis de nossa Santa Madre
Igreja Católica Apostólica e Romana.
CORTA PARA
Matagal próximo à capela da fazenda. Cirilo e Hipólito aparecem
de repente cavalgando em seus respectivos cavalos em direção à
estrada entre a capela até a fazenda. Marília vê Cirilo e Hipólito
se aproximando da estrada entre a capela até a fazenda. Marília
puxa a rédea do cavalo dela e vai ao encontro de Cirilo e
Hipólito. Dirceu e o padre Joaquim Alonso olham para Marília.
Marília encontra-se com Cirilo e Hipólito. Cavalo de Marília.
Marília monta-se no cavalo dela e sai cavalgando em companhia
de Cirilo e Hipólito. Porta de frente da capela da fazenda. Dirceu
e padre Joaquim Alonso ficam a sós para conversarem na porta
de frente da capela.
DIRCEU
Então, padre, fala-me de suas andanças. Resolveu permanecer
na colônia?
688
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PADRE JOAQUIM ALONSO
Sim, Dirceu, isso foi devido algumas peregrinações que fiz
durante esse curto espaço de tempo. Fui ao encontro de alguns
padres para conversar e converter-me novamente à Santa
Igreja. Graças a um velho padre, em São Paulo de Piratininga,
chamado Jacó, eu encontrei as minhas respostas. Ninguém
deve vingar de ninguém. Deus é grande em misericórdia e, se
eu estava cego, a ponto de não enxergar isso, os meus olhos
agora estão bem abertos.
DIRCEU
E a pesquisa sobre "Monetae sicarii", continua ou continuará a
fazê-la?
PADRE JOAQUIM ALONSO
Não. É bom deixar as coisas como estão. Não acredito que
elas sejam amaldiçoadas. Segundo o padre Jacó a maldição está
na cabeça do homem. Tudo o que o padre Fernandez fez foi
cumprir a ordem do rei de Espanha ao querer ver-se livre das
moedas. Segundo o padre Jacó, o padre Fernandez apenas
aceitou a sugetão de uma vã superstição gerado em uma época
de tempos difíceis.
(respira tranquilamente, tosse duas os três vezes e prossegue)
As moedas foram encontradas na Espanha na metade do
século XV; quando ocorreu a unificação da península, graças
aos planos dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de
Castela, que ao conquistarem Granada expulsaram os mouros
e em seguida os judeus...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 236 – EXT./INT./DIA/NOITE. ESPANHA OU
REINO DA ESPANHA. VÁRIOS.
Flash back – Relato de Joaquim Alonso.
Legenda: "Espanha, 1492"
689
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Espanha ou Reino da Espanha. Cidade de Granada, 1492. Decreto de
Alhambra. A cidade de Granada é cercada pelos soldados da guarda dos
reis católicos, Fernando Aragão e Isabela de Castela com tochas de fogo.
OS SOLDADOS DA GUARDA DOS REIS CATÓLICOS ateiam fogo
numa pequena aldeia de judeus, na cidade de Granada. HOMENS
JUDEUS fogem de suas casas carregando esposas e filhos. Mar
Mediterrâneo e Oceano Atlântico. Fuga dos judeus com esposa e filhos
por esses dois mares. Barcos e navios carregando homens judeus,
esposas e filhos. Bandeira dos reis de Espanha erguida na mais alta torre
do Alhambra. Castelo. Trono. A RAINHA ISABEL DE CASTELA
sentada no trono. UM DOS SÚDITOS DO CASTELO, um senhor
baixo, gordo, pele clara e olhos escuros, de aproximadamente 50 anos de
idade, traz nas mãos uma bonita caixa de couro e desfila-se até o trono
da rainha Isabel de Castela. O um dos súditos do castelo aproxima-se do
trono e faz reverências à rainha Isabel de Castela. O um dos súditos do
castelo entrega a bonita caixa de couro à rainha Isabel de Castela. A
rainha Isabel de Castela recebe a caixa e fica a fitá-la. O um dos súditos
do castelo afasta-se do trono e sem olhar para o rosto da rainha, com a
cabeça baixa, para.
UM DOS SÚDITOS DO CASTELO
Pediram que eu a entregasse este presente, majestade. Disseram
vir da cidade de Granada.
RAINHA ISABEL DE CASTELA
Um presente? Mas Boabdil havia entregado a mim as chaves da
cidade de Granada e já até içamos a bandeira do nosso reino lá...
O um dos súditos do castelo afasta-se e sai andando devagar. A rainha
Isabel de Castela abre a bonita caixa de couro e tira dela o saco contendo
as trinta moedas de pratas do Judas Iscariotes. Ela segura nas mãos o
saco de pratas do Judas Iscaríotes.
RAINHA ISABEL DE CASTELA
Coisa mais estranha, quem teria enviado a mim tal presente? Eu
cá pensando que fosse algum feitio de Boabdil, mas não... Não
690
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
vou verificar isto sozinha, vou reunir-me depois com os meus
conselheiros...
VOLTA RÁPIDO PARA
SEQUÊNCIA 234.3 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA. PORTA DE
FRENTE DA CAPELA DA FAZENDA.
Dirceu e o padre Joaquim Alonso conversam na porta de frente da
capela da fazenda.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Dizem que quando a rainha Isabel de Castela descobriu que as
moedas pertenceram ao Judas Iscariotes, e eram pacto de sangue
da morte do Redentor, ela, imediatamente, procurou por alguns
padres moradores de uma pequena aldeia e os pediu para
abençoá-las. Os padres negaram, fazendo-a compreender que a
moedas eram amaldiçoadas. A jovem rainha deixou-as com os
padres.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 236.1. EXT./DIA. ESPANHA, MADRID. INTERIOR
DA IGREJA NOSSA SENHORA DE ALMUDENA.
Flash back – Relato de Joaquim Alonso.
Legenda: "Espanha, 1749".
Espanha, Madrid, 1749. Igreja Nossa Senhora de Almudena. Interior da
igreja Nossa Senhora de Almudena. Retábulo de Almudena. DOIS
HOMENS SERVIÇAIS fazendo uma limpeza no retábulo de Almudena.
Pequeno sarcófago em um dos cantos do retábulo de Almudena. UM
DOS HOMENS SERVIÇAIS encontra-se em um dos cantos do
retábulo de Almudena o pequeno sarcófago. Altar principal da igreja.
UM PADRE ESPANHOL, de aproximadamente 60 anos, ora no
691
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
principal altar da igreja de Nossa Senhora de Almudena. O um dos
homens, que achou o pequeno sarcófago, entrega-o ao padre espanhol
que está orando no principal altar da igreja de Nossa Senhora de
Almudena. O padre recebe o pequeno sarcófago com certa alegria.
PADRE ESPANHOL
Ora, ora, dai-me cá este presente. Deveras ser algum presente de
nossos fiéis a esta santa igreja... Deus o abençoe meu filho e
pode continuar com o seu trabalho.
CORTA PARA
Sacristia da igreja Nossa Senhora de Almudena. Pequeno sarcófago em
cima de uma mesa na sacristia da igreja Nossa Senhora de Almudena.
ALGUNS PADRES ESPANHÓIS estão reunidos em torno do pequeno
sarcófago em cima de uma mesa na sacristia da igreja Nossa Senhora de
Almudena.UM DOS PADRES ESPANHÓIS abre o sarcófago. Olhares
dos padres dentro para dentro do sarcófago. O padre espanhol que abriu
o sarcófago enfia a mãos dentro do pequeno sarcófago e pesca de dentro
o saco com as trinta moedas de pratas do Judas Iscariotes. TODOS OS
PADRES ESPANHÓIS olham para o saco com as trinta moedas de
pratas do Judas Iscariotes. Há um bilhete um dos padres espanhóis lê o
bilhete.
UM DOS PADRES ESPANHÓIS
Aqui jaz as trinta moedas de prata, do vil traidor do Filho de
Deus, Judas Iscariotes. Estas moedas contém o pacto de sangue,
quem as encontrá-las cuidado ao passá-las adiante. Estas moedas
foram remetidas à Espanha para a gloriosa rainha católica Dona
Isabel de Castela que as encaminhou para serem destruídas, mas
como não existe bula para ensinar sobre a destruição das
mesmas, elas deverão continuar intactas. Deus Nosso Senhor há
de saber o que fazer com elas...
692
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
OUTRO UM DOS PADRES ESPANHÓIS
As moedas do Judas? Meu Deus, como vieram parar na igreja
Nossa Senhora de Almudena? Maria santíssima!!! Ainda que
pareça superstição, não tocaremos nelas...
QUALQUER DOS UNS DOS PADRES ESPANHÓIS
Convém que entregamo-las ao rei Fernando VI, quem sabe ele
não tem o poder de expurgar esse lixo para bem longe...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 235.4. EXT./DIA. PORTA DE FRENTE DA
CAPELA DA FAZENDA.
Fim do pôr-do-sol. Quase escurecendo. Dirceu e Joaquim Alonso
sentados na porta da capela da fazenda.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Daí as moedas foram enviadas ao rei Fernando VI, que, talvez
por ser supersticioso, fez com que a reconhecida Companhia de
Jesus desse cabo delas. Como as moedas não podiam e nem
deveriam jamais ser destruídas, sugeriram levá-las para longe, de
preferência para um lugar onde o povo jamais desconfiaria.
Como uma das missões da Companhia de Jesus era a de enviar
padres para diversos lugares, logo um dos principados do rei
sugeriu que as moedas fossem trazidas para serem escondidas
nesta colônia.
DIRCEU
E justamente para esta capela da minha fazenda...
PADRE JOAQUIM ALONSO
Mas o fato de a capela existir é devido às moedas do traidor. A
missão do padre Fernandez, segundo o padre Jacó, não era na
693
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
verdade provinda de Deus, mas dos homens, como do rei ou da
própria Companhia que o incumbiu da tarefa.
DIRCEU
E se investirmos nesta pesquisa e as encontrarmos, padre.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Não faremos nada, senão transportá-las a um lugar seguro, onde
ninguém poderá imaginar que elas existam. As moedas viraram
uma espécie de passe adiante...
DIRCEU
Não as quer mais levá-las à Espanha?
PADRE JOAQUIM ALONSO
Não! Já pedi a Deus para livrar-me de todos os rancores. Creio
que fazendo o bem vingarei saudavelmente a morte dos meus
entes queridos. O padre Jacó fez-me entender que o mal se paga
com o bem. Que culpa tem as novas gerações de um terrível mal
cometido a uma geração passada? Não matamos Jesus Cristo e
não reinamos no mundo criado pelo Pai Dele? Pensando bem,
não nos aclamamos o Pai Dele, como nosso Pai Celestial,
também?
DIRCEU
Pretendes voltar para Portugal ou para a Espanha, padre
Joaquim Alonso?
PADRE JOAQUIM ALONSO
Não! Creio que posso ser útil nesta colônia. Se possível, gostaria
de tornar-me padre, cá, nesta humilde capela. Creio e todos
sabemos que ela não teve culpa de ser construída para tal fim.
Deus, assim como tem piedade dos homens, haverá de ter
piedade também, dela. Por isso estou cá, sentado nesta porta. É
694
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
justamente para redimir de todos os meus augúrios e pecados
ruins...
DIRCEU
Fico feliz em saber disso e convido-o também a voltar a morar
conosco na fazenda. Creio que vós mercê será o caminho para
tornar o povo dessa região mais religioso...
SEQUÊNCIA 237– INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
CAPELA DA FAZENDA. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO.
Capela da Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Altar da capela. Marília e
Estela reúnem se algumas mulheres num canto da capela para treinar
alguns hinos de louvores. Altar da fazenda. Antenor arruma o altar da
capela da fazenda. Há bastantes fiéis sentados nos bancos da capela da
fazenda. Sitiantes com as suas famílias; fazendeiros com as suas famílias;
Estela e os filhos; Dirceu, Marília e todo o pessoal da fazenda Ribeirão
do Meio sentados nos bancos da capela da fazenda. Marília e Estela dão
sinal para que o coral improvisado de mulheres comece a cantar. O
coral improvisado de mulheres começa a cantar. Porta da frente da
capela da fazenda. Padre Joaquim e Antenor entram cerimoniosamente
pela porta da frente da capela, alcançando o pequeno corredor do
centro até o altar. Padre Joaquim Alonso anda e abençoa a todos. Altar
da capela da fazenda. Padre Joaquim Alonso está no altar da capela
fazendo a celebração eucarística. Antenor ajuda o padre Joaquim Alonso
na eucaristia.
DIRCEU (VOICE OVER)
Joaquim Alonso se adaptou novamente com a vida de antes,
na fazenda. Havia agora uma importante diferença, todos
sabiam que ele era um padre. A cada segundo domingo de
cada mês, como sempre acontecia na capela da nossa fazenda,
ao invés de Antenor rezar as missas, agora quem as rezava era
ele. A presença do padre impôs respeito na capela, a modo de
695
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
atrair demais moradores da região, convertendo-os às tarefas
cristãs. Marília entusiasmava-se com as missas, ora ajudando o
padre na celebração, ora cantando com as mulheres as
entoadas cantigas e hinos cristãos.
CORTA PARA
Domingo. Manhã. Altar da capela da fazenda. Fiéis na capela. Padre
Joaquim Alonso termina de celebrar a eucaristia aos fiéis.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Dóminus vobíscum.
FIÉIS
Et cum spíritu tuo.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Benedícat vos omnípotens Deus, Pater, et Fílius, et Spíritus
Sanctus.
FIÉIS
Amen.
PADRE JOAQUIM ALONSO
Ite, missa est.
FIÉIS
Deo grátias.
Altar da capela da fazenda. Padre Joaquim Alonso beija o altar da capela
da fazenda em sinal de veneração e ao fazer a devida reverência, retirase do altar. O coral improvisado de mulheres canta um hino de
despedida.
FADE OUT / FADE IN
696
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Fazenda Ribeirão do Meio. Quintal de frente da fazenda. Mesas
improvisadas no quintal de frente da fazenda. Compotas de doces,
bolos, assados, café, leite e vinho nas mesas improvisadas no quintal de
frente da fazenda. Dirceu e Marília recebem os convidados,
educadamente. Sebastiana, Inácia, Quitéria, Eulina, Cirilo, Hipólito,
Miliquito, Ambrósio, Zé da Viúva e Raimundo Sobreiro ajudam a
acomodar as pessoas no quintal da fazenda. Alegria geral. Crianças
comem e correm brincando pelo quintal. Algumas mulheres dos
fazendeiros e dos sitiantes conversam em círculo, admirando a
espontaneidade de Marília. Padre Joaquim Alonso e Antenor sentados
um ao lado do outro, tomam vinho e conversam bastante. Hipólito toca
a sanfona de Farias e algumas mulheres cantam modinhas
animadamente. Pequena mesa improvisada. Marília está sentada sozinha
na pequena mesa improvisada. Dirceu aproxima-se da pequena mesa
improvisada e senta-se ao lado de Marília.
DIRCEU
A minha dona Marília está encantadora.
MARÍLIA
Obrigada, Dirceu, vós mercê é um eterno cavalheiro...
DIRCEU
Queres casar comigo, dona Marília? Esta festa poderia ter sido
a do nosso casamento...
MARÍLIA
Não demorará muito, Dirceu. Vamos aguardar o sinal!
DIRCEU
Sinal?! Qual sinal?
Marília faz um momento de silêncio observando o movimento no
quintal. Dirceu fica parado com o olhar perdido.
CORTA PARA
697
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – pensamento de Dirceu baseado no corte a seguir.
SEQUÊNCIA 133 – INT./ DIA/. CAPELA DA FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO.
Farias e Dirceu sentam-se em um dos bancos da capela.
DIRCEU
Não gosto mesmo, Farias, mas de vez em quando
aparece alguém não sei de onde para tirar a minha paz.
FARIAS
Inhozinho tá falando da visita que recebeu, não foi?
DIRCEU
Foi, Farias. O tal do coronel ou sei lá, o Sales, deixou-me
verve, confuso...
FARIAS
Carece sinhozinho preocupar com isso não. A dona
Marília faz parte do destino de nhozinho...
DIRCEU
Dona Marília? Como sabe disso Farias? Conte-me o que
sabe, alivia-me esta dor, cá no peito...
FARIAS
Tudo o que eu tenho para dizer a vós mercê é que sinhá
Marília guarda um grande segredo para o sinhozinho.
DIRCEU
(demonstra-se surpreso)
698
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Segredo? Ela guarda para mim um segredo? Qual é este
segredo, Farias?
FARIAS
(sorri)
Se é segredo, somente a dona Marília sabe. Na hora
certa, ela há de contar ao sinhozinho...
SEQUÊNCIA 237.1 – CONTINUAÇÃO - INT./DIA. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO.
Fazenda Ribeirão do Meio. Dirceu desperta-se com o movimento do
quintal da fazenda. As mulheres cantam uma modinha e Marília levantase da mesa e sai dançando até chegar perto das mulheres. Algumas
mulheres também dançam.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Qual seria o mistério? Ainda há pouco a dona Marília falou
em aguardar o sinal. Qual sinal? O que Marília tem a ver com
tudo isso? Eu não ousarei fazê-la revelar-me, forçosamente,
eu, assim como ela, aguardaria também pelo sinal.
MARÍLIA E VÁRIAS MULHERES DANÇAM NO QUINTAL DO
TERREIRO DA FAZENDA.
SEQUÊNCIA 238 – EXT./INT. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VÁRIOS.
Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Curral da fazenda Ribeirão do Meio.
Hipólito e Cirilo ordenham as vacas, enquanto Ambrósio e Zé da Viúva
tiram o leite delas. Leiteira com o leite. Miliquito carrega a leiteira com o
leite para fora do curral.
699
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
Colinas. Dirceu e padre Joaquim alonso cavalgam pela colina. Campina
verde. Gados pastando pela campina verde.
CORTA PARA
Chiqueiro das ovelhas. Ovelhas. Trácio, Alceu e Endimião estão
sentados na grande pedra olhando o rebanho de ovelhas.
CORTA PARA
Casa de oficina do queijo. Marília, Eulina e Quitéria fabricam queijos na
casa de oficina do queijo.
CORTA PARA
Cozinha do casarão. Fogão de lenha. Sebastiana mexe colher de pau
numa grande panela no fogão de lenha. Inácia sentada à mesa corta uma
abóbora. Vasilha com uma pequena manta de carne seca em cima da
mesa.
SEQUÊNCIA 239 – EXT./INT. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUARTO DE DIRCEU. VÁRIOS.
Fazenda Ribeirão do Meio. Tarde. Quarto de Dirceu. Dirceu está
sentado na cama dele com a cabeça enconstada no travesseiro. Dirceu
cochila.
Flash back – Sonho de Dirceu
Manhã. Dirceu está cavalgando pelas ruas de Vila Rica. Ele vê o padre
Rocha andando pelas ruas de Vila Rica. Ele cavalga em direção ao padre
Rocha. Ele aproxima-se do padre Rocha, mas o padre Rocha se
desintegra na presença dele. Dirceu, todo confuso, procura pelo padre
Rocha.
700
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Será se o padre Rocha aprendeu isso foi com os anjos? Ele
desapareceu como uma nuvem branca quando se desfaz ao
vento...
Igreja de Santa lfigênia. Escadaria da igreja de Santa lfigênia. Dirceu
desce a pé os degraus da escadaria da igreja de Santa lfigênia. Uma
carruagem estacionada no final da escadaria da igreja de Santa lfigênia. A
carruagem é a mesma que levou Dirceu e Marília para a fazenda
Ribeirão do Meio. Ele vê a carruagem.
DIRCEU
A carruagem, o carro que levou Marília e eu para a fazenda...
O que esta carruagem está fazenda cá, na porta da igreja de
Santa lfigênia...
Carruagem estacionada no final da escadaria da igreja de Santa lfigênia.
O cocheiro sai da carruagem. O cocheiro abre a porta lateral da
carruagem. Dom Miguel sai da carruagem com a imagem de Santa
Ifigênia nas mãos e sobe três degraus da escadaria até encontrar-se com
Dirceu. Dom Miguel encontra-se com Dirceu no terceiro degrau da
escadaria. Ele entrega para Dirceu a imagem de Santa Ifigênia. Dirceu
recebe a imagem com certo zelo.
DOM MIGUEL
Assim como o senhor meu pai o ordenou, cumpra o que tem
de ser cumprido...
Imagem de Santa Ifigênia nas mãos de Dirceu. Degraus da igreja de
Santa lfigênia. Dirceu segura a imagem com cuidado e sobe os degraus
da igreja de Santa lfigênia. Nos degraus surgem velas acesas iluminando
todos os arredores. A carruagem estacionada no final da escadaria da
igreja de Santa lfigênia sai puxada pelos seis belos cavalos. Porta de
frente da igreja de Santa lfigênia aberta. Dirceu entra na porta de frente
da igreja de Santa lfigênia. Um grande facho de luz toma conta de tudo.
701
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
Quarto de Dirceu. Dirceu acorda assustado. O travesseiro cai no chão.
Ele senta-se de qualquer jeito na cama.
DIRCEU
(pensativo e confuso)
Meu Deus, será se eu não vou ter paz nunca! São tantos
fantasmas entrando em meus sonhos...
Velho armário do quarto. Dirceu dirige-se até o velho armário do
quarto. Ele abre as portas do velho armário do quarto.
DIRCEU
A imagem de Santa Ifigênia. Amanhã bem cedo levarei-a para
a igreja dela em Vila Rica. Ninguém jamais saberá de nada,
nem de Josias, nem de Dom Miguel e nem tampouco de
mim...
Portas abertas do velho armário. Dirceu pega a pequena caixa de couro
e vai até a pequena mesa de canto. Ele senta-se à mesa, abre a pequena
caixa de couro e tira dela a imagem de Santa Ifigênia. Ele coloca a
imagem de Santa Ifigênia em cima da mesa.
DIRCEU
Chegou a hora, não chegou santa mãezinha? Dom Miguel
deve estar em São Sebastião do Rio de Janeiro para se
embarcar para Portugal. Amanhã antes de o dia amanhecer
vós mercê será deixada por mim na porta de sua sagrada casa
apostólica e romana.
(beija os pés da santa)
Obrigado pelo sonho, por mais estranho que pareça, os
sonhos nos servem de alerta e de sinais quando precisamos de
agir perante alguma coisa...
702
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Janela do quarto de Dirceu. O vento toca a janela. A janela abre e um
imenso raio de sol invade o quarto. Dirceu fica olhando para o imenso
raio de sol.
DIRCEU
Fenômeno algum me deixará impressionado...
SEQUÊNCIA 240 – EXT./INT./NOITE. VILA RICA. RUAS DE
VILA RICA. IGREJA DE SANTA IFIGÊNIA.
Madrugada escura. Vila Rica. Entrada de Vila Rica. Dirceu cavalga
devagar para chamar a atenção de ninguém. Ruas de Vila Rica. Igreja de
Santa Ifigênia. Dirceu pula-se do cavalo e amarra-o no tronco de uma
árvore. Sela do cavalo. Alforje na sela do cavalo. Dirceu tira do alforje a
imagem de Santa Ifigênia. Escadaria da igreja de Santa Ifigênia. Dirceu
sobe a escadaria da igreja de Santa Ifigênia. Porta de frente da igreja de
Santa Ifigênia. Dirceu ajoelha-se e beija os pés da imagem de Santa
Ifigênia. Ele coloca a imagem de Santa Ifigênia na porta da igreja de
Santa Ifigênia. Degraus da escadaria. Dirceu desce rápido os degraus.
Cavalo de Dirceu. Dirceu monta no cavalo e sai galopando pelas ruas de
Vila Rica.
SEQUÊNCIA 241 –EXT./INT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA. COZINHA DO
CASARÃO DA FAZENDA.
Fazenda Ribeirão do Meio. Cancela da fazenda. Dirceu atravessa a
cancela e fecha-a. Quintal de frente da fazenda. Hipólito está no quintal
de frente da fazenda e vê Dirceu entrar no quintal montado em seu
cavalo. Dirceu olha para Hipólito, tira o chapéu e o cumprimenta.
HIPÓLITO
Uai, onde nhô foi tão cedo hoje? Podia tá ainda dormindo...
703
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Eu lá sou homem de ficar até tarde na cama, Hipólito?
HIPÓLITO
Não! Mas parece que hoje vossemecê madrugou de verdade.
Até parece que vem de viagem...
DIRCEU
Ah, somente atrelei o meu cavalo e dei umas voltas por aí,
pelas campinas. De vez em quando é bom sentir o orvalho da
madrugada...
DIRCEU
(Dirceu pula-se do cavalo, tira o alforje da sela e olha para
Hipólito)
Dessarrea o meu cavalo, Hipólito. Vou lá para a cozinha vê se
a Sebastiana passou o café... Estou com uma fome danada,
logo cedo...
Galo canta no terreiro do quintal da fazenda. Porta do lado de dentro da
cozinha do casarão. Dirceu entra na cozinha pela porta do lado de
dentro. Mesa da cozinha. Marília está ajudando Sebastiana a arrumar a
mesa da cozinha. Dirceu se surpreende ao ver Marília ajudando
Sebastiana a arrumar a mesa da cozinha.
DIRCEU
Dona Marília, acordada, já tão cedo?!
SEBASTIANA
Parece que a dona Marília caiu da cama...
MARÍLIA
(arrumando os copos na mesa)
E o senhor Dirceu, parece que acordou mais cedo ainda...
704
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(senta-se à mesa)
Sim, já arriei o meu cavalo, cavalguei pelas colinas e senti todo
o frescor do orvalho e da neblina a bater-me no rosto...
MARÍLIA
E não convidaste a mim, para esta aventura...
DIRCEU
Cedo demais, Marília. Vós mercê estava dormindo tão
tanquilamente, feito um anjo...
SEBASTIANA
(enxuga o bule com um pano de prato e coloca-o na mesa)
Dona Marília sempre está acordando cedo, não sei por que
quer também cuidar das obrigações nossas...
MARILIA
(ajeitando algumas coisas na mesa)
Estou aprendendo por cá, Sebastiana, a viver em coletividade,
um ajudando o outro. Uma grande família para manter-se
unida é preciso que viva dessa forma. O pouco que um faz é
sempre muito para o outro que também faz um pouco...
DIRCEU
A coletividade é a soma de tudo!
Janela. Sebastiana olha para fora da janela e vê um porco fuçando um
grande canteiro de hortaliças. Sebastiana faz uma cara feia, deixa a janela
e vai até a porta que sai da cozinha para o terreiro do quintal de fundo.
Sebastiana sai para o quintal. Cozinha. Mesa da cozinha. Dirceu e
Marília ficam a sós sentados à mesa da cozinha. Dirceu beija a testa de
Marília.
DIRCEU
Cada dia que passa vós mercê está mais bonita, Marília...
705
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Enquanto os teus olhos puderem te enganar a respeito da
minha beleza, Dirceu, estarei grata aos deuses...
DIRCEU
Queres dizer com isso que eu não passo de um mentiroso,
Marília?
MARÍLIA
Quando amamos alguém, corremos o risco de nos contentar
apenas com a superfície de quem amamos, Dirceu...
DIRCEU
Não, não quero enxergar apenas a superfície de quem eu amo,
Marília. Quero sempre enxergar o que há de mais profundo
no fundo da alma de quem amo... Da tua alma, Marília.
MARÍLIA
Eu também, Dirceu... E por falar em beleza, amor e alma,
hoje, Dirceu, acordei-me de um sonho mágico...
DIRCEU
Acordaste de um sonho mágico? Como assim?
MARÍLIA
Deram-me o sinal!
DIRCEU
(CONFUSO)
Sinal? Que sinal? Deram a vós mercê? Quem deu e qual sinal?
706
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
(sorrindo,cochicha
Dirceu)
no
ouvido
de
Estou pronta para casar-me com vós mercê.
DIRCEU
(dá um beijo em Marília)
Então podemos marcar a data do nosso casamento, Marília?
MARÍLIA
Sim. O nosso casamento será no último domingo deste mês
de outubro...
DIRCEU
Daqui a duas semanas? E sobre o tal sinal que lhe foi dado,
por que não explicá-lo a mim?
MARÍLIA
(levanta-se da mesa e sorri olhando para Dirceu)
Não sei explicá-lo. É algo do coração, Dirceu...
Dirceu se põe também de pé. Marília abraça Dirceu e beija-o. Dirceu
fica um pouco zangado.
DIRCEU
Parece que tudo o que eu busco, não há explicações...
MARÍLIA
(dando risadas)
Haverá sim, Dirceu. Dê tempo ao tempo. Quanto ao nosso
casamento, se o último domingo deste mês fizer uma manhã
de sol maravilhosa, casar-nos-emos, caso contrário,
aguardaremos por outro domingo, cuja manhã for igual a que
eu imagino.
707
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(anima-se)
Vós mercê queres casar com a manhã de sol ou comigo?
MARÍLIA
Como vós mercê é bobo, Dirceu. Claro que eu quero casarme com o senhor. A manhã de sol é para nos dar sorte.
DIRCEU
A manhã de sol é capricho de vossa senhoria. Quer que eu
mande reformar a capela?
MARÍLIA
Para que?
DIRCEU
Para o nosso casamento...
MARÍLIA
Não casaremos na capela da fazenda, Dirceu. Eu falei para
vós mercê aquele dia, em Vila Rica, que o nosso casamento
seria na montanha, ou se bem entender, no alto do penhasco
da serra do ita-corumi.
DIRCEU
Isso mesmo. E como será a cerimônia?
MARÍLIA
Temos cá, na fazenda, um padre. Levá-lo-emos conosco e
pedimos para que ele nos una em nome de Deus.
DIRCEU
E vós mercê, então, Marília, será "osso do meu osso, e carne
da minha carne” e por mim será tomada como esposa.
708
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
E vós mercê e eu nos tornaremos numa só carne.
DIRCEU
E para celebrarmos tudo isso, Marília, precisamos de
organizar uma grande festa, convidar os nossos amigos e...
MARÍLIA
Não haverá nada disso. Após o nosso casamento, voltaremos,
contaremos a todos que estamos casados e pronto!
DIRCEU
Que tudo seja feito conforme a vossa vontade, dona Marília.
MARÍLIA E DIRCEU BEIJAM-SE.
SEQUÊNCIA 242 – EXT./INT./NOITE. SÍTIO DE ANTENOR.
QUINTAL DO SÍTIO DE ANTENOR.
Sítio de Antenor. Cancela do sítio de Antenor. Quintal do sítio de
Antenor iluminado com tochas de fogo e lampiões de azeite. Bancos e
mesas espalhados no quintal contendo guloseimas. Fumaça. Vivêncio e
alguns homens assam duas ovelhas em buracos cheios de brasas.
Cavalos amarrados nos troncos das árvores próximas ao sítio de
Antenor. Os convidados de Antenor e Estela vão chegando na cancela
do sítio, entre eles estão Marília, Dirceu e Joaquim Alonso, Cirilo,
Inácia, Hipólito, Quitéria, Miliquito e Eulina. ALGUMAS MULHERES
trazem terços nas mãos. Em um dos cantos do quintal do sítio de
Antenor há um altar feito com lençóis brancos, com vasos de flores,
castiçais com velas acesas em torno da imagem de Nossa Senhora do
Rosário. ALGUMAS MULHERES, HOMENS, JOVENS E
CRIANÇAS estão próximos do altar da imagem de Nossa Senhora do
Rosário. Estela e um grupo de mulheres, munidas de terços nas mãos,
finalizam uma ladainha cantada em latim a Nossa Senhora do Rosário.
709
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ESTELA E UM GRUPO DE MULHERES
Regína Angelórum,
Regína Patriarchárum,
Regína Prophetárum,
Regína Apostolórum,
Regína Mártirum,
Regína Confessórum,
Regína Vírginum,
Regína Sanctórum ómnium,
Regína Sine labe origináli concépta,
Regína in caelum assúmpta,
Regína sacratíssimi Rosárii,
Regína pacis,
Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi,
parce nobis, Dómine.
Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi,
exáudi nos, Dómine.
Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi,
miserére nobis.
A festa no sítio de Antenor torna-se animada com homens tocando e
dançando o lundú e violeiros cantando récitas de bois. ADULTOS,
JOVENS E CRIANÇAS servem-se com farturas. MULHERES cantam
modinhas e outras dançam animadas sozinhas ou em pares. Marília
mostra-se animada no meio das mulheres. Antenor senta-se em um
tamborete ao lado de Dirceu.
DIRCEU
Festa mais animada e animada, Antenor...
ANTENOR
É comprimento de promessa, senhor Dirceu. Foi devida
aquela viagem. A Estela fez promessa para Nossa Santa do
Rosário para que o Vivêncio, irmão dela, aceitasse vir morar
em nossa região...
710
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
E deu certo, não foi Antenor...
ANTENOR
Sim, graças a Deus e a Nossa Senhora do Rosário. O Vivêncio
e as crianças deles estão dando bem nestas terras. Aos poucos
Vivêncio está esquecendo o garimpo, curando aquela febre de
ficar rico de uma hora para outra e pensando na enxada, no
trato com as plantas, de onde vem comida para todo mundo.
DIRCEU
Isto é verdade, Antenor, lá se foi o tempo em que cavar terra
em busca de ouro e pedras preciosas, fossem lucros. Lá em
Vila Rica ainda tem gente sonhando com ouro, sabia?
ANTENOR
E por falar em Vila Rica, vós mercê tem ido lá ultimamente?
DIRCEU
Não, ultimamente não, por quê?
ANTENOR
Vós mercê ouviu falar do milagre que aconteceu na porta da
igreja de Santa Ifigênia?
DIRCEU
(olha para surpreso para Antenor)
Na porta da igreja de Santa Ifigênia, em Vila Rica? E que
milagre?
ANTENOR
Sim, na igreja de Santa Ifigênia, construída pelo Chico Rei. Lá
está a aumentar o número de fiéis que querem ver uma
imagem de Santa Ifigênia que apareceu lá de repente, numa
certa manhã dessas...
711
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Foi é? Me conte essa história, Antenor...
ANTENOR
Dizem que uma escrava com o nome de Martinha ganhou
uma enorme surra a mando de sua senhora e foi jogada à
noite numa barroca abaixo da igreja de Santa Ifigênia. Uns
moradores, do Alto da Cruz do Padre Faria, dizem que
escutaram os gritos da coitada, como se ela estivesse
agonizando para a morte. Durante a agonia, dizem que a
pobre escrava aclamava por Santa lfigênia...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 243 - EXT./INT. NOITE. VILA RICA. ESCADARIA
E INTERIOR DA IGREJA DE SANTA IFIGÊNIA.
Relato de Antenor.
Madrugada. Vila Rica. Igreja de Santa Ifigênia. Escadaria da igreja de
Santa Ifigênia. Luzes sobre a escadaria da igreja de Santa Ifigênia.
MARTINHA, uma escrava de aproximadamente 45 anos sobe, com
dificuldade, os degraus da escadaria da igreja de Santa Ifigênia, ora com
os pés, ora de joelhos. Porta de frente da igreja de Santa Ifigênia
iluminada com a imagem de Santa Ifigênia. Martinha cai de joelho perto
da santa Ifigênia e grita chorando de felicidade. ALGUNS PASSANTES
passam pela igreja de Nossa Senhora e escuta os gritos de Martinha.
Alguns passantes sobem os degraus da escadaria da igreja de Santa
Ifigênia e vê Martinha ajoelhada chorando ao lado da imagem da Santa
Ifigênia. Enorme facho de luz sai da cabeça de Martinha. Os alguns
passantes que estão próximos à Martinha ficam a fitá-la com olhares
assustadores. Corpo de Martinha sem machucado algum
ANTENOR (OFF)
Durante a agonia, dizem que a pobre escrava aclamava por quando
numa certa altura da madrugada ela enxergou um grande lume vindo do
712
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
céu a dar-lhe forças para subir todos os degraus da igreja, quase que só
de joelhos. Ao chegar à porta da igreja, ela deparou-se com a imagem da
Santa, ali, capaz de consolá-la das dores. Ela ficou tão feliz que soltou
um grito forte, atraindo os passantes lá embaixo. Quando as pessoas,
curiosamente, subiram os degraus para ver o que se sucedia, deram com
a pobre negra ajoelhada perto da imagem da Santa. As pessoas disseram
que viam, com os próprios olhos, um enorme facho de luz saindo da
cabeça da escrava. Não se sabe por que, mas a escrava Martinha não
tinha no corpo nenhum machucado da surra. Nem dor ela mais sentia.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 242.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE.
SÍTIO DE ANTENOR. QUINTAL DO SÍTIO DE ANTENOR.
Quintal do sítio de Antenor. Antenor e Dirceu sentados nos tamboretes
lado a lado.
DIRCEU
Meu Deus, aconteceu isso em Vila Rica. E a imagem da Santa
que apareceu na porta da igreja, o que fizeram com ela?
ANTENOR
Dizem que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário,
formada pelos negros, acolheram a Santa no nicho principal
da igreja.
DIRCEU
Isto é justo, muito justo...
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 243.1 – CONTINUAÇÃO -INT. NOITE. VILA
RICA. INTERIOR DA IGREJA DE SANTA IFIGÊNIA.
713
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Relato de Antenor.
Nicho ou altar principal da Igreja de Santa Ifigênia. Imagem de Santa
Ifigênia no altar. Velas acesas no altar, próximas à Santa Ifigênia.
Martinha está aos pés do altar, sentada, venerando a imagem de Santa
Ifigênia. Martinha está com um bonito terço nas mãos orando e
balbuciando palavras com os lábios. ALGUMAS PESSOAS estão ao
redor de Martinha.
ANTENOR (OFF)
A escrava, por sua vez, arranchara aos pés do nicho, rezando e
pronunciando palavras bonitas e difíceis, incapazes de saírem
da boca de uma escrava.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 242.2 – CONTINUAÇÃO - EXT./INT./NOITE.
SÍTIO DE ANTENOR. QUINTAL DO SÍTIO DE ANTENOR.
Sítio de Antenor. Antenor e Dirceu sentados nos tamboretes lado a
lado. Quintal do sítio. Homens tocando sanfonas e violas. Estela
aproxima-se de Antenor e o tira para dançar. Antenor acompanha
Estela. Antenor e Estela dançando. Dirceu fica sozinho olhando o
movimento da festa no quintal.
DIRCEU (VOICE OVER)
Achei a história muito interessante. Graças a essa
coincidência, ninguém jamais desconfiará de que aquela
imagem pertencia aos traficantes de ouro e que fora um
espírito que pedira a mim para depositá-la naquela igreja.
Quanto mais o povo contasse a história, aumentando os seus
pontos, mais isento eu me tornaria de tudo aquilo...
714
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Homens tocando sanfonas e violas. Marília aproxima-se de Dirceu e o
tira para dançar. Dirceu acompanha Marília e ambos saem dançando no
meio de outros casais.
SEQUÊNCIA 244 – INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
COZINHA DO CASARÃO.
Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Casarão da fazenda. Cozinha do
casarão. Mesa da cozinha. Dirceu e Marília acabando de tomar o café.
Dirceu parece um pouco apressado. Marília fica a repará-lo.
MARÍLIA
Parece apressado, Dirceu? Há muita tarefas na fazenda para
serem cumpridas ainda hoje?
DIRCEU
Não sei o que acontece Marília, estou tendo uma sensação
muito estranha...
MARÍLIA
Estranha? Que sensação estranha, meu amor...
DIRCEU
Que eu tenha muitas coisas para fazer, mas que estas coisas
não são por cá, na fazenda...
MARÍLIA
Logo entraremos em período de safras e como vós mercê me
disse que beneficia mantimentos à meia com os fazendeiros e
sitiantes deta região, pode ser que...
DIRCEU
Não é nada disso, Marília, nada disso.
(olha para Marília um pouco impaciente, pôe-se de pé e
prossegue)
715
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Creio que devo retirar-me para encontrar com os rapazes lá
no curral...
MARÍLIA
Será se vós mercê não está apreensivo devido ao nosso
casamento? Lembra, marquei-o para domingo próximo...
DIRCEU
Meu Deus, faltam quatro dias, Marília. Mas como não haverá
cerimonia com testemunhas, nem festa e nem nada, acho que
isso não me preocupa...
MARÍLIA
Ou talvez o preocupa, porque vós mercê queria que fosse
igual a tantos outros casamentos, não?
DIRCEU
Não! Vamos aguardar até o fim do dia, quem sabe terei uma
explicação para isso...
MARÍLIA
Vou está com Quitéria, Eulina e Inácia andando a cavalo no
campo. Nós iremos lavar algumas roupas numa fonte que elas
conhecem lá embaixo...
DIRCEU
Cuidado, Marília, não vai machucar essas graciosas e delicadas
mãozinhas, esfregando roupas...
MARÍLIA
As meninas vão me ensinar... Eu nunca fiz isso e sempre quis
aprender. Ainda mais numa fonte, carregando trouxas e tudo...
716
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu beija Marília e sai. Porta da cozinha para o fundo do quintal.
Dirceu sai pela porta da cozinha para o fundo do quintal. Marília coloca
mais um pouco de café na xícara e toma, comendo em seguida um
pedaço de bolo. Sebastiana aparece na cozinha. Marília olha para
Sebastiana.
MARÍLIA
Meu Deus, Sebastiana, os dias correm depressa. Por esses dias
mesmos conheci Dirceu, agora vivo com ele, respirando o
mesmo ar dele...
SEBASTIANA
A menina não me contou que não tem mãe e que não tem
pai? Um bom marido faz bem para toda a vida... Nhô Dirceu
é um bom homem e vai ser um bom companheiro para
sinhazinha...
CAPÍTULO 15
SEQUÊNCIAS 245-257
Personagens deste capítulo:
Marília
Quitéria
Inácia
Dirceu
Trácio
Endimião
Alceu
Homem alto e moreno
Zé Antônio (off)
Padre Joaquim Alonso
Sebastiana
Homem branco alto e magro
Ambrósio
Cirilo
717
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Miliquito
Hipólito
Sales
Zé Tomázio
Fregueses do empório de Zé Tomázio
Três homens morenos (dois pedreiros e um carpinteiro)
Homem magro e esquisito (anjo)
Tomás Antônio Gonzaga (off)
Voz estranha feito trovão(off)
Demônio (off)
Judas Iscariotes
Demônio transfigurado em Jesus Cristo
Demônio transfigurado em um terrível monstro
Demônio transfigurado em um anjo de asas pretas
Dirceu transfigurado em um menino (13 ou 14 anos)
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 212.2
SEQUÊNCIA 245 – EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. FONTE ABAIXO DA FONTE DO RIBEIRÃO.
Manhã. Fonte abaixo da fonte do ribeirão. Água cristalina da fonte.
Margem da fonte. Há uma grande pedra na margem da fonte. Marília e
Quitéria batem roupas com sabão na grande pedra. Fonte. Água
cristalina da fonte. Eulina e Inácia esfregam e enxaguam as roupas na
fonte. Grande relvado. Lençóis brancos estendidos para secar ao sol, no
grande relvado. Cardume de pequenos peixes no fundo da água da
fonte.
FADE OUT/FADE IN
Fazenda Ribeirão do Meio. Chiqueiro das ovelhas. Dirceu está sentado
na grande perdra ao lado de Alceu. Ovelhas no chiqueiro. Trácio e
718
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Endião tocam as ovelhas no chiqueiro, apartando-as dos filhotes.
Pequena trilha. Cirilo cavalga a pequena até chegar ao chiqueiro das
ovelhas. Alceu vê Cirilo aproximar-se com o cavalo e põe-se de pé.
ALCEU
O Cirilo vem lá montado no cavalo. Ele nunca vem cá, deve ser algum
assunto para nhozinho...
DIRCEU
(põe-se de pé e olha para a mesma direção em que Alceu está
olhando)
Uai, não é que é ele mesmo? Mas pelo galope não parece ser
nada urgente...
ALCEU
Aquela trilhinha por onde ele veio, nhô Dirceu faz muito mal
pro cavalo trotear...
Grande pedra. Alceu senta-se novamente na grande pedra.
Dirceu, portanto, desce da grande pedra e vai ao encontro de
Cirilo. Cirilo aproxima-se de Dirceu e apeta a rédea do cavalo.
CIRILO
Nnhô Dirceu,tem um homem procurando por vossemecê lá
na cancela da fazenda. Disse que é só com vossemecê mesmo
que ele tem de conversar...
SEQUÊNCIA 246 - EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CANCELA DA FAZENDA.
Cancela da fazenda. UM HOMEM ALTO E MORENO na cancela da
fazenda. Ele traz um burro puxado pela rédea, com duas bruacas
amarradas ao lombo. Cirilo e Dirceu estão no quintal de frente da
fazenda e vêem o homem alto e moreno estacionado na cancela da
fazenda. Dirceu e Cirilo vão até a cancela da fazenda. Cirilo abre a
cancela da fazenda. O homem alto e moreno montado no cavalo,
719
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
segurando um burro com duas bruacas amarradas ao lombo, olha para
Cirilo e Dirceu.
HOMEM ALTO E MORENO
Procuro pelo senhor Dirceu, por acaso os senhores o
conhecem?
DIRCEU
Sou eu, seu criado. Em que posso servi-lo?
HOMEM ALTO E MORENO
És, por acaso, o filho do senhor Zé Antonio? É esta a fazenda
Ribeirão do Meio?
DIRCEU
Sim, sou filho do senhor Zé Antônio e esta é a fazenda
ribeirão do Meio, por quê?
Dirceu olha para Cirilo. Cirilo se retira da cancela indo para o
quintal de frente da fazenda, onde se encontra com Hipólito.
Dirceu fica a sós com o homem alto e moreno.
HOMEM ALTO E MORENO
Venho em nome de dona Maria Antônia para entregar a
vossemecê uma encomenda do vosso falecido pai.
DIRCEU
(fica pálido e prende a respiração)
O senhor meu pai, faleceu?
HOMEM ALTO E MORENO
Lamento dizer isso, senhor, mas o senhor vosso pai morreu
há poucos meses.
DIRCEU
Vós mercê o conheceu?
720
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
HOMEM ALTO E MORENO
Prestei alguns serviços a ele. Trabalho com uma tropa
entregando encomendas por toda a colônia. Se vossemecê
quer saber mais sobre o vosso pai, tudo o que tenho a dizer é
que ele morreu de febre amarela, na fazenda que ele comprou
numa pequena província de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Isso aconteceu há cinco ou seis meses.
DIRCEU
E como passa Maria Antônia?
HOMEM ALTO E MORENO
Ela passa bem, mora na fazenda que o pai de vossemecê
deixou para ela.
DIRCEU
O meu pai deixou uma fazenda para Maria Antônia? Que
bom, ela bem que merecia...
HOMEM ALTO E MORENO
Estou cá, a pedido dela, qual mandou ao senhor uma
encomenda...
DIRCEU
Uma encomenda? Assim como o Farias, agora a Maria
Antônia está também a cumprir as tarefas impostas pelo
senhor meu pai?
O homem alto e moreno montado no cavalo, segurando o burro com
duas bruacas amarradas ao lombo, pula-se do cavalo, tira duas bolsas de
couro de uma das bruacas do burro e coloca-as no chão. Ele fecha a
bruaca de onde tirou as duas bolsas. Dirceu fica olhando para as duas
bolsas de couro no chão. O homem alto e moreno pega as duas bolsas
de couro no chão e entrega-as para Dirceu. Dirceu recebe as duas
bolsas de couro. Quintal de frente da fazenda. Dirceu vê Cirilo e
Hipólito no quintal de frente da fazenda. Ele faz um gesto com o
721
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
chapéu chamando Cirilo e Hipólito. Cirilo e Hipólito chegam à cancela.
Dirceu pede para Cirilo e Hipólito levarem as duas bolsas de couro para
dentro da casa. Cirilo e Hipólito saem levando as duas bolsas de couro
para dentro da casa. O homem alto e moreno sai cavalgando no cavalo e
puxando o burro com as duas bruacas. Estrada. O Homem alto e
moreno troteia pela estrada. Dirceu fica na cancela parado, triste,
olhando para o homem alto e moreno sumir no capoeirão.
DIRCEU (VOICE OVER)
O homem, que nem sequer apresentou-me o nome, pulou do
cavalo e tirou duas bolsas de couro de uma das bruacas do
burro e colocou-as no chão, entregando-me, em seguida.
Chamei por Cirilo e Hipólito e os pedi que levassem as duas
bolsas de couro para o meu quarto. O homem não quis entrar
na casa, tomar café ou água. Simplesmente saiu galopando,
empurrando o burrico pelo capoeirão afora. A notícia sobre a
morte do meu pai abateu-me um pouco. Eu não quis
compartilhar com ninguém a minha tristeza. Nem tampouco
incomodar Marília, que trancada no quarto sonhava com o dia
do nosso casamento.
SEQUÊNCIA 247 –INT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
QUARTO DE DIRCEU
Quarto de Dirceu. Porta do quarto de Dirceu vista do lado de fora, no
corredor do casarão. Dirceu empurra a porta do quarto. Ele entra no
quarto. As duas bolsas de couro estão em um dos cantos, encostadas na
parede do quarto de Dirceu. Dirceu pega as bolsas de couro. Cama de
Dirceu. Dirceu coloca as bolsas de couro em cima da cama. Ele senta-se
na cama. Bolsas de couro. Dirceu pega uma das bolsas de couro, ajeitase entre as pernas e abre-a. Dirceu enfia a mão dentro da bolsa e
encontra um pergaminho. Dirceu puxa a mão para fora trazendo o
pedaço de pergaminho. Ele abre o pedaço de pergaminho e lê com os
olhos.
722
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF)
Filho, eu preciso de sua ajuda nessa importante tarefa. Por
favor, siga os passos corretamente e tudo acabará bem.
Bolsa de couro aberta. Dirceu vira a bolsa de cabeça para baixo e
despeja todo o conteúdo dela na cama. Ele vê alguns pergaminhos
dobrados, desdobra-o e lê um a um, com atenção.
DIRCEU (VOICE OVER)
Em seguida encontrei alguns papéis dobrados e percebi que
era uma longa carta escrita pelo senhor meu pai em vários
dias, semanas, meses ou anos. A carta falava sobre um
mistério que ele guardara, e que pertencia à capela da fazenda.
O senhor meu pai pedia que eu fosse à casa onde morávamos
e cavasse o chão do meu quarto. Lá estaria uma caixa de
couro e dentro dela o enigma, que ele descrevia da seguinte
forma.
CORTA PARA
Cama do quarto de Dirceu. Dirceu sentado na cama lendo uma das
cartas.
ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF)
Filho, não se atreva fazer outra coisa com as pratas, senão
cumprir o que estou escrevendo nestas longas linhas. Quanto
à capela da fazenda, por favor, filho reforme-a conforme um
desenho gravado sobre um manto de couro, que está dentro
da outra bolsa de couro.
Outra bolsa de couro na cama. Dirceu pega a outra bolsa de couro na
cama, abre-a e enfia a mão dentro dela. Ele olha para dentro da bolsa e
vê a manta de couro dentro. Mãos de Dirceu com a manta de couro.
Dirceu abre a manta de couro. Na manta de couro há uma planta
arquitetônica da capela da fazenda, desde o frontifício até a parte
interior dela. Ele fica a reparar a planta detalhadamente.
723
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU (VOICE OVER)
Peguei a bolsa maior e mais pesada e abri-a. Encontrei a
manta de couro e vi impregnada nela o novo risco a ser dado
à capela. Observei que ela sofreria algumas mudanças, desde a
torre, o frontispício, o púlpito, até o altar. O desenho também
sugeria a construção do novo altar, um retábulo de pedra com
o desenho da última ceia de Cristo.
Dirceu deixa a planta arquitetônica da capela da fazenda em cima da
cama e pega novamente a carta. Ele lê um trecho da carta.
ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF)
Não deixe, filho, que a cobiça lhe corrompa. É devido a esse
vil metal que o mundo chora até hoje pelo cordeiro que foi
imolado...
Carta nas mãos de Dirceu. Ele larga a carta e olha para a outra bolsa de
couro. Dirceu fala por solióquio.
DIRCEU
Então estaria lá, na casa, sob o meu velho catre, as vis moedas
do traidor?!
Outra bolsa de couro aberta. Dirceu vira a bolsa de cabeça para baixo e
despeja todo o conteúdo dela na cama. Ele olha para a cama. Na cama
cai um saco cheio de pepitas de ouro. Mesa canto. Dirceu vai até a mesa
do canto. Gavetas da mesa do canto. Dirceu abre a gaveta superior.
Cinzel dentro da gaveta superior. Cinzel n mãos de Dirceu. Cama de
Dirceu. Dirceu vai até a cama, pega o saco com pepitas e abre com o
cinzel. Ele fica surpreso ao ver tantas pepitas de ouro e continua a falar
por solilóquio.
DIRCEU
Meu Deus, onde o meu pai encontrou tanta riqueza?
724
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu coloca o saco de pepitas na cama e pega novamente a carta. Ele
abre a carta e lê um trecho.
ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF)
Pode não querer acreditar, filho, mas todo esse ouro foi
extraído aí na fazenda, quando ainda havia índios. Eles
entregavam-no para mim dizendo que quem mandava era
Tupã, através de aracati, que na linguagem deles seria "Deus,
através dos bons ventos". Guardei essas pepitas comigo e
somente a vossemecê as confio.
Cama com duas caixas de couro, saco com pepitas nas mãos de Dirceu.
Dirceu olha as pepitas de ouro dentro do saco.
DIRCEU
(Fala por solilóquio)
Meu Deus esta riqueza toda deve ser para eu investir na
reforma da capela...
Cartas escritas em pergaminhos em cima da cama. Dirceu pega as cartas,
escolhe uma delas e lê com os olhos.
ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF)
Meu filho, procure o mestre Antônio Francisco Lisboa e
pegue com ele uma imagem de um anjo bíblico. É a imagem
de São Miguel Arcanjo, qual arrematei-a do mestre.
DIRCEU
(para de ler a carta e sorri satisfeito, prosseguindo o solilóquio)
A imagem de São Miguel Arcanjo, esta se encontra hoje na
capela da fazenda. Graças a Deus que o bendito Antônio
Francisco Lisboa havia mandado entregá-lo na capela da
fazenda...
Dirceu volta às cartas e continua a lê-las com os olhos.
725
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF)
Meu filho, por favor, peça também ao Farias para contar-lhe
sobre um velho segredo a respeito da capela da fazenda. Ele
há de falar para ti de forma misteriosa, mas não se
impressione muito com o relato dele...
Dirceu para de ler a carta novamente e sorri satisfeito.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Ó, meu pai, o Farias não mais existe, mas creio que o segredo,
também, fora silogicamente revelado a mim por ele. Ele
deixou-me impressionado sim, mas foi por pouco tempo...
Outra bolsa de couro na cama. Dirceu pega a outra bolsa de couro na
cama, novamente e olha para dentro dela. Couro de ovelha enrolado em
forma de canudo. Dirceu tira da bolsa o couro de ovelha enrolado em
forma de canudo. Ele ajeita-se na cama e abre o couro de ovelha
enrolado em forma de canudo. No couro de ovelha há outros riscos
gravados a fogo sugerindo uma planta de uma pequena cidade, gravado
abaixo a seguinte inscrição latina: "Urbs populi beati" (A cidade do povo
feliz). Os olhos de Dirceu viajam sobre a planta gravada no velho couro
de ovelha. Cartas em cima da cama. Dirceu pega novamente as cartas,
olha uma e outra e encontra alguma coisa escrita que o interessa. Olhos
de Dirceu lendo a carta.
ZÉ ANTÔNIO (LEITURA DA CARTA EM OFF)
Meu filho, conforme vós mercê deve ter percebido, esse mapa
gravado em couro de ovelha é um risco para a construção de
uma futura cidade, onde o povo possa viver feliz. Nesta terra
não haverá diferença entre os povos, todos terão os mesmos
direitos... Vós mercê pode até perder a sua fazenda, mas
ganhará muitos amigos.
Dirceu termina de ler as cartas. Cama. Bolsas de couro e alguns objetos
espalhados na cama, pega os objetos e guarda-os nas duas bolsas de
726
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
couro, ficando apenas o cinzel na cama. Ele levanta-se da cama com o
cinzel nas mãos. Mesa de canto. Dirceu abre a gaveta superior da mesa
de canto e guarda o cinzel. Grande armário do quarto. Dirceu abre o
grande armário do quarto. Cama com as duas bolsas de couro. Dirceu
dirige-se até a cama, pega as duas bolsas de couro e guarda-as no grande
armário do quarto. Dirceu o armário do quarto. Porta do quarto. Dirceu
dirige-se até a porta do quarto. Ele abre a porta do quarto e sai. Quarto.
Porta do quarto, fechada.
SEQUÊNCIA 248 –INT./EXT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CAMPINAS VERDES DA FAZENDA.
Fazenda Ribeirão do Meio. Tarde. Campinas verdes. Dirceu e Marília
cavalgam pela campinas verdes. Lagoa. Patos silvestres nadando na
lagoa. Relvado às margens da lagoa. Dirceu e Marília sentados no
relvado observam os patos silvestres nadando na lagoa. Dirceu e Marília
beijam-se.
MARÍLIA
Dirceu, quero que vós mercê peça ao padre Joaquim alonso
que faça amanhã cedo um passeio conosco na serra do itacorumi...
DIRCEU
(demonstra-se surpreso)
O padre Joaquim Alonso fará o nosso casamento, Marília?
MARÍLIA
Sim, mas eu não quero que vós mercê conte a ele isso. Ele
passeará conosco pela serra e lá ficará sabendo do que se
trata...
DIRCEU
Aí, então ele fará o nosso casamento...
727
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Sim, isto mesmo, aí ele fará o nosso casamento, unindo as
nossas almas e os nossos corpos em só, apenas...
RELVADO. DIRCEU PUXA MARÍLIA AO ENCONTRO DO
CORPO DELE. ELES ABRAÇAM E BEIJAM-SE.
SEQUÊNCIA 249 – INT./EXT. DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. CAPELA DA FAZENDA.
Fazenda Ribeirão do Meio. Capela da fazenda. Uma das portas laterais
da capela da fazenda. Dirceu tira o chapéu da cabeça e entra na capela
da fazenda por uma das portas laterais da capela da fazenda. Interior da
capela da fazenda. Altar, púlpito, bancos da capela da fazenda. Padre
Joaquim Alonso está lendo a bíblia, sentado em um dos bancos da
capela da fazenda. Dirceu vê o padre Joaquim Alonso sentado em um
dos bancos da capela da fazenda lendo a bíblia. Dirceu aproxima-se do
padre Joaquim Alonso. Padre Joaquim Alonso vê Dirceu e fecha a bíblia
colocando-a em cima do banco.
DIRCEU
Padre Joaquim Alonso, desculpe-me em incomodá-lo nesta
tarde, sei que aos sábados vós mercê sempre está ocupando
em seus estudos bíblicos, mas...
JOAQUIM ALONSO
Disponha-se, meu grande amigo, não se acanhe, cá estou para
ser incomodado. Não faço do sábado o meu grande dia,
Dirceu. Sei muito bem que "O sábado foi feito para o
homem, e não o homem para o sábado".
DIRCEU
E "O Filho do Homem é senhor também do sábado", não é
padre Joaquim Alonso?
728
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
Os fariseus, Dirceu, ao verem Jesus colhendo espigas, no
sábado, para comer, traduziram o fato como a um trabalho
normal de colheita. Mas Jesus superou todas as discussões,
quando usou esse fato em defesa da vida. Um médico deixaria
o seu paciente morrer, porque não trabalharia no sábado? Os
pais deixariam os filhos com fome, porque não trabalhariam
no sábado?
DIRCEU
Só sei, padre Joaquim Alonso, que Deus concluiu a sua obra
em seis dias, no sétimo descansou, mas nós mortais, quando
terminaremos de concluir as nossas obras? Nunca, não é
padre? Pois somos tão imperfeitos, que nada no mundo
consegue nos agradar integralmente...
JOAQUIM ALONSO
Isso é verdade, tudo que Deus fez, mesmo não conhecendo,
Deus achou bom: o firmamento, as trevas, as luzes, as noites,
os dias, os rios, os mares, os peixes, as aves do céu, os animais
e até o homem...
DIRCEU
E por falar em tudo isso, padre Joaquim Alonso, antes que eu
esqueça, vim até cá para fazer ao senhor um convite...
JOAQUIM ALONSO
Um convite?
DIRCEU
A sinhá Marília, minha dona e namorada, pediu para que eu
convidasse vós mercê para um passeio amanhã, pela manhã...
JOAQUIM ALONSO
Um passeio? Onde será esse passeio?
729
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
O passeio será no alto da serra do ita-corumi, padre, ela disse
que bem cedo, antes de o sol raiar.
JOAQUIM ALONSO
Um piquenique no alto da serra?!
DIRCEU
Decerto que sim, padre. Ela não me contou detalhes, apenas
pediu para que eu fizesse-lhe o convite e preparasse os cavalos
para sairmos amanhã bem cedo...
SEQUÊNCIA 249 – EXT./ DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI.
Nascer do sol no alto da serra do Ita-corumi. Alto da serra do Itacorumi. Grande descampado no alto da serra do Ita-corumi. Cavalos de
Dirceu, Marília e Padre Joaquim Alonso amarrados em troncos de
árvores do grande descampado no alto da serra do Ita-corumi. Plantas.
Vento soprando as plantas. Sol surgindo bonito no horizonte. Dirceu,
Marília e Padre Joaquim Alonso no grande descampado do alto da serra
do Ita-corumi. Marília segura a mão de Dirceu e olha para o padre
Joaquim Alonso, sorrindo.
MARÍLIA
Padre, o senhor é uma autoridade de Deus, cá na terra. Eu
quero e creio que Dirceu queira também que o senhor nos
una, matrimonialmente, neste exato momento, a um só corpo.
JOAQUIM ALONSO
(surpreso)
Como? O que está pedindo-me, dona Marília?!
730
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Isso mesmo. O meu coração e o de Dirceu estão pedindo a
vossa reverendíssima que una as nossas almas nesta linda
manhã de sol.
JOAQUIM ALONSO
(olha para Dirceu)
É verdade?
DIRCEU
Sim, padre. O desejo de Marília é o meu desejo.
MARÍLIA
O senhor pode ou não nos casar, cá, agora, padre Joaquim
Alonso?
JOAQUIM ALONSO
E por que, cá? Não haveria de ser na capela da fazenda ou
numa das belas igrejas de Vila Rica?
MARÍLIA
Porque pertencemos à natureza, padre. Nada mais justo que
unir as nossas almas, tendo-a como testemunha. Queremos
que o senhor abençoe, em nome de Deus, a nossa união.
JOAQUIM ALONSO
Se Jesus disse em Mateus no capítulo dezoito e versículo
vinte, que “Onde dois ou mais estiverem reunidos em seu
nome, ELE estaria entre eles", então, em nome DELE,
poderei fazer o que estão me pedindo...
Marília sorri e olha para Dirceu. Padre Joaquim Alonso, pacientemente,
olha para todos os arredores da serra do Ita-corumi e em seguida olha
para Dirceu e Marília.
731
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
Neste exato momento em que o Sol aparece no horizonte, na
direção Leste, peço a vós mercês Dirceu e Marília que, em
silêncio, olhem para toda a serra e contemplem a natureza cá
presente nesta manhã. Respirem, pois, o ar soprado pela brisa,
qual representa a vida trazida pelo Espírito Santo de Deus.
Dirceu e Marília contemplam com os olhos toda a serra. Plantas.
Pássaros voando aos bandos. Pedras do lugar descampado. O céu, as
nuvens do céu e o Sol ganhando aos poucos a sua intensidade.
JOAQUIM ALONSO
Assim como o sol está a apontar no horizonte e a fazer com
que possamos ver toda a criação feita pelas mãos de Deus,
quero também que vocês enxerguem o coração um do outro.
E lembrem-se, não basta apenas enxergar o coração um do
outro, como também senti-los e a socorrê-los, seja lá qual for
a situação. Se ambos tornarão, em nome de Deus, uma só
carne, um tornará responsável pelo outro.
(une as mãos de Dirceu e de Marília)
Quando um sentir dor, que encontre no outro o antídoto;
quando um sentir tristeza, que encontre no outro alegria;
quando um sentir ódio, que encontre no outro amor. Que
cada um de vós mercês saiba compreender um ao outro; que
vós mercês não sejam nunca contra as leis da natureza, porque
o que Deus une, o homem nunca separa.
(olha para Marília)
É de todo o coração e desejo do fundo da alma que vós
mercê, Marília, deseja aceitar Dirceu, como seu eterno esposo?
MARÍLIA
Sim, padre, é com todo o desejo do meu coração e da minha
alma que eu aceito Dirceu como meu eterno esposo.
732
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
(olha para Dirceu)
É de todo o coração e de toda a alma e de toda a
responsabilidade, Dirceu, o desejo de casar-se, perante Deus,
com Marília, fazendo-a sua esposa?
DIRCEU
Sim, padre. É de todo o meu coração, de toda a minha alma e
de toda a minha responsabilidade que eu aceito casar-me com
Marília.
JOAQUIM ALONSO
(olha novamente para Dirceu)
Dirceu, tu és, a partir de agora, esposo de Marília. A ela, tu
estás o dever de fidelidade e de todos os cuidados de um bom
esposo.
(olha novamente para Marília)
Marília, tu és, a partir de agora, esposa de Dirceu. A ele, tu
estás o dever de fidelidade e de todos os cuidados de uma boa
esposa.
(une novamente as mãos de Dirceu e Marília)
Em nome de Deus e de tudo o que ele consagrou no mundo,
eu os declaro casados. Vós mercês, em nome de Deus, terão a
partir de agora uma vida em comum.
O Sol brilha forte no grande descampado do alto da serra do Itacorumi. Padre Joaquim Alonso cumprimenta Dirceu e Marília.
JOAQUIM ALONSO
Sugiro a vós mercês que erguem neste descampado uma cruz
para mostrar ao mundo o amor que existe entre vós mercês.
DIRCEU
Como é padre Joaquim Alonso?
733
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
JOAQUIM ALONSO
Uma cruz, Senhor Dirceu, erguer uma cruz cá no alto da serra
para servir de lembrança do casamento de vós mercê com a
dona Marília.
MARÍLIA
Quem sabe não podemos erguer cá uma igreja, um pequeno
templo...
JOAQUIM ALONSO
Mas em Vila Rica há tantas igrejas Marília... Seria mais
interessante algo bem simples. Algo que possa deixar as
pessoas lá em baixo curiosas....
Padre Joaquim Alonso afasta-se de Dirceu e Marília, andando pelo
descampado da serra do Ita-corumi. Dirceu e Marília abraçam e beijamse emocionados. Lágrimas no olhos de Marília. Dirceu limpa as lágrimas
dos olhos de Marília com as mãos. Árvores próximas ao descampado da
serra. Dirceu olha para as árvores próximas ao descampado da serra.
Cinta de couro na calça de Dirceu com um cinzel. Dirceu tira o cinzel
da cinta de couro da calça. Árvores. Dirceu dirige até a uma das árvores
com o cinzel na mão e marca em uma das árvores as iniciais dos nomes
de Marília e dele. Tronco de árvore gravada os nomes de Dirceu e
Marília. Pequena trilha da serra do Ita-corumi. Dirceu, Marília e padre
Joaquim Alonso cavalgam pela pequena trilha da serra do Ita-corumi.
SEQUÊNCIA 250– EXT./ DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA.
Varanda do casarão. Todos da fazenda estão na varanda do casarão.
Dirceu, Marília e padre Joaquim Alonso aparecem no quintal de frente
da fazenda montados em seus cavalos. Padre Joaquim Alonso pula do
cavalo e vai até a varanda. Ele entra na varanda e dá a notícia sobre o
casamento de Dirceu e Marília.
734
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
PADRE JOAQUIM ALONSO
Peço a vós mercês que prestem atenção na boa nova que vós
darei: acabaram-se de casar, nesta manhã, o casal Dirceu e
Marília. Eu os casei no alto da serra do Ita-corumi...
Todos da fazenda olham para Dirceu e Marília. Eles batem palmas.
Sebastiana sai da varanda acompanhada por Eulina, Quitéria e Inácia.
Cozinha do casarão. Sebastiana, Eulina, Quitéria e Inácia preparam uma
comida especial na cozinha do casarão.
FADE OUT/FADE IN
Quintal de frente da fazenda. Grande mesa debaixo de uma árvore no
quintal de frente da fazenda. Pratos e talheres na mesa. Dirceu, Marília e
todos da fazenda estão sentados na grande mesa debaixo de uma árvore
do quintal da fazenda. Eulina, Quitéria e Inácia trazem a refeição e
colocam na grande mesa debaixo da árvore. Todos se servem da
refeição. Eulina, Quitéria e Inácia sentam ao lado de seus respectivos
maridos, Miliquito, Hipólito e Cirilo.
DIRCEU (VOICE OVER)
Sebastiana, entusiasmada com a notícia, chamou Eulina,
Quitéria e Inácia para a cozinha. Lá, elas prepararam-nos um
grande e delicioso banquete, qual foi servido debaixo de uma
das árvores do quintal da fazenda. Todos estavam presentes,
inclusive os meus três pastores Alceu, Endimião e Trácio, qual
fiz questão que os chamassem para a comemoração. Marília
estava radiante a ponto de no final da refeição fazer-me uma
surpresa.
DIRCEU
Gostaste da recepção, Marília?
735
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Gostei, foi uma surpresa e tanto. Não esperava que a
Sebastiana, Eulina, Quitéria e Inácia fossem tão ágeis a ponto
de fazer uma comida tão deliciosa para tanta gente...
DIRCEU
Esta família nossa, Marília, está sempre pronta para nos pregar
surpresas...
MARÍLIA
É bom fazer parte de uma família assim, Dirceu, onde a
coletividade faz parte e cada um respeita o limite do outro...
DIRCEU
E olha que cada um aprende com o outro na convivência do
dia a dia.
Seios de Marília. Marília enfia a mão dentro dos seios e um pequeno
objeto. Mão fechada de Marília. Marília abre a mão e mostra para Dirceu
o pequeno objeto, qual é uma pequena chave de ouro. Dirceu olha para
a pequena chave de ouro um pouco confuso. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Outra chave? Por que duas?
MARÍLIA
Tens outra chave, Dirceu?
Dirceu tosse e olha para Marília meio desajeitado, inventando qualquer
resposta.
DIRCEU
Não, não Marília. Perguntei por perguntar... é que além da
chave do meu coração, ainda existe essa...
MARÍLIA
736
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Serão as chaves que abrirão os nossos corações...
DIRCEU
Os nossos corações ainda estão fechados, Marília?
MARÍLIA
Não! Mas ouça a minha história...
DIRCEU
Sou todo ouvidos, Marília...
MARÍLIA
Depois daquele dia em que vós mercê esteve em Mariana, fui
à igreja Nossa Senhora da Assunção rezar e achei esta
pequena chave caída no chão.
DIRCEU
E isso significa o quê, Marília...
MARÍLIA
Preste atenção no que eu tenho para te contar...
Dirceu arregala os olhos para Marília. Pedaço de tronco debaixo de uma
das árvores do quintal da fazenda. Dirceu faz uma reverência para que
Marília o acompanhe até o pedaço de tronco debaixo de uma das
árvores do quintal da fazenda. Marília o acompanha e os dois sentam-se
no pedaço de tronco debaixo de uma das árvores do quintal da fazenda.
Marília entrega a pequena chave de ouro para Dirceu. Ele recebe a
pequena chave de ouro e, estando com ela na palma da mão, fica a fitála.
CORTA PARA
SEQUÊNCIA 251 - INT. /DIA. VILA MARIANA. IGREJA NOSSA
SENHORA DA ASSUNÇÃO.
737
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Flash back - Relato de Marília.·.
Mariana. Igreja Nossa Senhora da Assunção. Marília está ajoelhada perto
de um dos altares da igreja Nossa Senhora da Assunção. Ela levanta-se
para sair da igreja Nossa Senhora da Assunção. Interior da igreja. Há um
homem branco, alto, magro, pele clara, olhos azuis e muito bem vestido,
de aproximadamente sessenta anos, sentado em um dos bancos do
interior da igreja Nossa Senhora da Assunção. Porta de frente da igreja
Nossa Senhora da Assunção. Marília vai para sair na porta de frente da
igreja Nossa Senhora da Assunção. Pequena chave de ouro no chão,
próximo à porta de frente da igreja Nossa Senhora da Assunção. Marília
vê a pequena chave de ouro no chão, próximo a porta de frente da igreja
Nossa Senhora da Assunção. Ela abaixa rapidamente e pega a pequena
chave de ouro no chão, próximo a porta de frente da igreja Nossa
Senhora da Assunção. Pequena chave de ouro na mão de Marília.
Marília fica reparando a pequena chave de ouro. Ela olha para o interior
da igreja Nossa Senhora da Assunção e vê o homem branco, alto,
magro, sentado em um dos bancos da igreja Nossa Senhora da
Assunção. Ela vai ao encontro do homem branco, alto, magro, que está
sentado em um dos bancos da igreja Nossa Senhora da Assunção. Ela
aproxima-se do homem branco, alto, magro e mostra a pequena chave
de ouro para o homem branco, alto, magro.
MARÍLIA (VOICE OVER)
Depois daquele dia em que vós mercê e o Cirilo estiveram em
Mariana, eu fui à igreja Nossa Senhora da Assunção rezar e
achei esta chavinha caída no chão. Havia apenas um homem
branco, alto, magro e muito bem vestido sentado em um dos
bancos da igreja. Como só havia ele e eu na igreja, eu pensei
que a chave pertencesse a ele. Procurei-o para sondá-lo e
devolvê-lo a chave.
CORTA PARA
Marília e o homem branco, alto, magro sentados em um dos bancos da
igreja Nossa Senhora da Assunção. O homem branco, alto, magro
738
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
conversa de forma carinhosa com Marília. Marília mostra-se ora
surpresa, ora assustada, olhando fixamente para o homem branco, alto,
magro.
HOMEM BRANCO, ALTO, MAGRO
Ora, minha filha, esta chave não pertence a mim, ela, a partir
de agora, pertencerá a vós mercê. Escute bem o que vou dizêla, guarde estas palavras no seu coração, vós mercê haverá de
se casar com um fazendeiro e, quando isso acontecer, vós
mercê entregará a ele esta chave. Não duvide nunca do que
vou revelá-la. Essa chave é mágica e com ela o seu futuro e
companheiro marido abrirá o seu coração. Se vós mercê
realmente amá-lo, com toda a força do teu coração e do teu
pensamento, por favor, tenha paciência, pois, depois de
casada o seu marido fará uma longa viagem em prol de um
grande bem para a humanidade.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 250.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./ DIA. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA
Marília e Dirceu sentados no pedaço de tronco debaixo de uma das
árvores do quintal da fazenda. Dirceu olha para Marília meio apreensivo.
DIRCEU
Depois de casada, o seu marido fará uma longa viagem em
prol de um grande bem para a humanidade?
MARÍLIA
Sim, agora casada, vejo que vós mercê é o candidato a essa
viagem...
739
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Mas qual viagem seria essa? Em prol de um grande bem para a
humanidade? Qual seria esse bem?
MARÍLIA
De repente pode haver alguma relação com o tal mistério da
capela...
DIRCEU
Isso não, isso não, meu Deus! Afasta-se de mim esse cálice...
MARÍLIA
Creio que vós mercê haverá de beber desse cálice, Dirceu. E
se isso acontecer, por favor, lembre-se que estarei cá, feito
Penélope a espera do seu Ulisses, qual também foi para a
Guerra de Tróia...
DIRCEU
Casei contigo para tê-la em todos os momentos da minha
vida, Marília e não para viajar e tornar-me ausente de ti...
MARÍLIA
Parece bobeira dizer isso, Dirceu, mas às vezes a gente pode
estar longe dos olhos, mas perto do coração de quem
amamos.
Marília e Dirceu abraçam e beijam-se sentados no pedaço de
tronco debaixo de uma das árvores do quintal da fazenda.
Dirceu abre a mão e olha novamente para a pequena chave de
ouro na palma da mão.
DIRCEU
Longe dos olhos e perto do coração... E esta pequena chave, o
que tem haver com toda essa história, Marília? O que disse
mais, o tal homem da igreja Nossa Senhora da Assunção?
CORTA PARA
740
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 251.1 – CONTINUAÇÃO - INT. /DIA. VILA
MARIANA. IGREJA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO.
Flash back - Relato de Marília.
Igreja Nossa Senhora da Assunção. O homem branco, alto, magro põese de pé. Um terço de Marília cai no chão. Marília abaixa para pegar o
terço. O homem branco, alto, magro desaparece. Marília pega o terço e
quando levanta não mais vê o homem branco, alto, magro. Marília fica
procurando o homem branco, alto, magro com os olhos, pelo interior
da igreja de Nossa Senhora da Assunção.
MARÍLIA (VOICE OVER)
O meu terço caiu no chão, e, quando abaixei para apanhá-lo,
não mais avistei o homem. Assustei, Dirceu, pois de onde
estávamos até a porta de frente da igreja, era bem distante.
Não sei se ele saiu ou depareceu, tudo foi tão rápido.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 250.2- CONTINUAÇÃO EXT./ DIA. FAZENDA
RIBEIRÃO DO MEIO. QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA.
Marília e Dirceu estão sentados no pedaço de um tronco debaixo de
uma das árvores do quintal da fazenda.
DIRCEU
Coisa mais estranha, Marília. Havia ninguém na igreja, senão
vós mercê e o tal homem?
MARÍLIA
Ninguém, Dirceu. Ao chegar à casa da minha madrinha Berta,
eu contei para ela, mas ela disse que tudo não passasse de uma
grande besteira. Ela disse para que eu não impressionasse com
o tal fato...
741
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
A sua madrinha Berta está certa, Marília. É bom não se
impressionar com o tal fato. Tem coisa que acontecesse com a
gente, como se acontece nos sonhos, uma coisa efêmera de
um acontecimento bobo. E o homem, vós mercê nunca o
havia visto ou viu-o depois desse acontecimento?
MARÍLIA
Sei o que relatei a vós mercê, Dirceu. Eu não conhecia o
homem e nem sequer nunca o vi em Mariana, Vila Rica ou
qualquer lugar. Eu comentei isso também com a dindinha e
ela apostou ser o homem um cigano.
DIRCEU
Um cigano? Estranho, Marília. Dizem que os ciganos são
levados a falar sobre o futuro das pessoas. Creio que aqui na
nossa fazenda existia um. Ele era um velho e bondoso homem
que vivia inspirando-me grandes mistérios. No dia em que ele
morreu, Marília, ele revelou-me que vós mercê teria um
segredo para revelar-me.
DIRCEU
Revelado, mas ainda não cumprido...
MARÍLIA
Teme isso, Dirceu?
DIRCEU
Não, Marília. Isso apenas gera-me uma certa ansiedade...
MARÍLIA
Se havia algum segredo para revelar a vós mercê, o segredo é
este. Eu teria de entregar a vós mercê a chave do meu
coração, após contrairmos o casamento. Foi graças ao
homem, ou cigano, não sei, que o meu sentimento fez-se mais
forte em relação à vós mercê. Ele também disse que eu
742
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
haveria de casar com um fazendeiro, porque, ele e eu
nascemos um para o outro. Jamais poderíamos ignorar a nossa
união, porque, caso contrário, seríamos duas pessoas infelizes,
a vagar por horizontes perdidos, sem nunca chegarmos a lugar
nenhum.
DIRCEU
Isto talvez prova que tudo no céu e na terra está ligado,
Marília. Se desligarmos alguma coisa, padecemos até o fim dos
nossos dias.
MARÍLIA
Foi por isso que o padre Joaquim Alonso disse na cerimônia
de que a partir de agora, perante a lei de Deus, somos um só
corpo, uma só alma, um só espírito. Portanto, Dirceu, permito
a vós mercê que pegue essa chave, qual está contigo, abra o
meu coração e descubra que ele nunca pertenceu a ninguém,
exceto a vós mercê.
DIRCEU
(beija a pequena chave de ouro)
Eu sei disso, Marília. Eu também nunca amei ninguém, senão
vós mercê. Se vós mercê está a entregar-me esta chave, que o
homem da igreja diz ser do seu coração, ó, minha doce
Marília, guardá-la-ei, comigo. Creio, em nome de toda a sua
pureza, que não precisarei abrir o seu coração, porque há
muito o conheço.
Pescoço de Marília. Fino barbante de ouro no pescoço de Marília.
Marília tira o fino barbante de ouro do pescoço e pega a pequena chave
de ouro das mãos de Dirceu. Marília enfia a pequena chave de ouro no
fino barbante de ouro. Marília ajeita a blusa de Dirceu e coloca o fino
barbante de ouro com a pequena chave de ouro no pescoço de Dirceu.
743
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
É para vós mercê lembrar que a chave do meu coração está
junto ao seu coração, também.
DIRCEU
Prometo mantê-la comigo para sempre, Marília. Zelarei por
ela, com toda delicadeza, assim como também zelarei por vós
mercê...
Dirceu e Marília põem-se de pé, abraçam e beijam-se. Estrondoso
trovão a estourar pelo céu azul e ensolarado. Dirceu e Marília assustam
com o estrondoso trovão e dão risadas. Dirceu e Marília abraçam e
beijam-se, novamente.
DIRCEU
O tempo não está para chuva, Marília. Aceita cavalgar com
este pobre homem pelos campos verdes da fazenda...
MARÍLIA
Quero cavalgar para um lugar onde haja uma fonte secreta
para que vós mercê e eu possamos mergulhar gostosamente
em suas águas...
DIRCEU
Queres reinventar o pecado, Marília?
MARÍLIA
O mesmo de Adão e Eva, no jardim do Édem...
SEQUÊNCIA 252 – INT./EXT./DIA./NOITE.
RIBEIRÃO DO MEIO. VÁRIOS.
FAZENDA
Fazenda Ribeirão do Meio. Manhã. Curral. Bois berrando no curral.
Ambrósio e Cirilo apartando as vacas para tirar o leite. Leiteiras de leite.
744
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
CORTA PARA
Chiqueiro das ovelhas. Ovelhas. Alceu, Trácio e Endimião estão dentro
do chiqueiro cuidando das ovelhas.
CORTA PARA
Casa de oficina de queijos. Mãos de Eulina e Quitéria fabricando queijos
na casa de oficina de queijos. Prateleiras com queijos frescos.
CORTA PARA
Engenho de cana ou moita. Dois jumentos fazendo rodar as
engrenagens do engenho de cana de açucar. Engrenagens do engenho
de cana espremendo a cana de açúcar. Hipólito recebendo cana das
mãos de Miliquito. Mãos de Hipólito empurrando cana nas engrenagens
do engenho. Aparador do caldo de cana. Caldo de cana caindo em um
velho barril de madeira.
CORTA PARA
Casa de farinha de mandioca. Mandiocas descascadas em uma grande
gamela. Inácia pegando mandioca descascada na grande gamela. Ralo.
Mãos de Inácia ralando a mandioca de farinha.
CORTA PARA
Cozinha. Fogão de lenha da cozinha. Sebastiana na cozinha mexendo
comida em uma das panelas do fogão.
CORTA PARA
Campinas. Bois pastando nas campinas. Raimundo Sobreiro e Zé da
Viúva cavalgando pelas campinas tocando os bois.
CORTA PARA
745
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Capela da fazenda. Altar da capela da fazenda. Padre Joaquim Alonso
ajoelhado no altar da capela da fazenda.
CORTA PARA
Noite. Quarto de casal do casarão da fazenda. Candeeiro aceso. Dirceu
e Marília estão deitados na cama do quarto de casal do casarão da
fazenda. Eles se abraçam e se beijam. Apaga-se a luz do candeeiro.
CORTA PARA
Manhã. Ouve-se o barulho do cantar do galo. Cozinha do casarão da
fazenda. Sebastiana coloca um bule de café na mesa. Mesa da cozinha
com o bule do café. Mão de Marília pegando o bule. Xícara de
porcelana. Café sendo despejado na xícara de porcelana. Dirceu olha
para Marília e puxa a xícara de porcelana com o café para ele. Dirceu
toma um pouco do café. Marília coloca o café em outra xícara de
porcelana para ela e toma um pouco do café olhando para Dirceu.
MARÍLIA
(sorri docemente)
Creio que vós mercê deverá atender a sugestão do padre
Joaquim Alonso...
DIRCEU
Sugestão do padre Joaquim Alonso?
MARÍLIA
Sim! Ou vai dizer que também se esqueceu de ter casado
comigo...
DIRCEU
Ah, sim, a cruz do alto. A cruz que ele sugeriu que
erguêssemos lá no alto da serra do Ita-corumi...
746
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Sim, Dirceu. Quero vê-la cá da fazenda e sorrir lembrando-se
de nossa união...
DIRCEU
O padre Joaquim Alonso disse que a cruz dirá ao mundo
sobre nós dois...
MARÍLIA
E que diga ao mundo coisas maravilhosas, Dirceu! Por que o
amor como tema universal, nos livros, não deveria ser tão
trágico...
DIRCEU
Os autos de Shakespeare ainda a impressiona?
MARÍLIA
Romeu e Julieta, sim! Não haveria de ser tão trágico...
DIRCEU
Logo irei à Vila Rica e encomendarei o serviço a um senhor
de lá, Marília. Vou sugerir como quero que façam tudo e
somente irei ver o serviço depois de concluído...
MARÍLIA
Uma cruz, Dirceu, basta colocar no alto da serra, uma cruz...
DIRCEU
Acho que nós merecemos algo mais Marília. Quando alguém,
cá em baixo olhar para cima, verá uma cruz, mas se atrever ir
até lá, encontrar um pequeno templo...
MARÍLIA
Construirá uma capela no alto da serra?
747
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não! Não será uma capela. Mandarei apenas construir um
pequeno oratório, onde alguém possa abrigar-se para orar
tranquilamente...
MARÍLIA
E quem chegar ao alto do Ita-corumi, próximo ao pequeno
oratório, vai se sentir a um Moisés no Monte de Horebe, na
Península do Sinai.
DIRCEU
Entre todas as leis a que se encontrará ali, a principal, será a de
que o amor é eterno.
SEQUÊNCIA 253 – INT./EXT./DIA. VILA RICA. RUAS DE
VILA RICA. VENDA DE ZÉ TOMÁZIO.
Vila Rica. Manhã. Ruas de Vila Rica. Dirceu cavalga pelas ruas de Vila
Rica. Placa do "Empório de Zé Tomázio", vista ao longe. Dirceu
cavalga em direção ao empório de Zé Tomázio. Empório de Zé
Tomázio. Dirceu frea o cavalo na frente o empório de Zé Tomázio.
Cavalo de Dirceu amarrado em um poste de frente ao empório. Balcão
do empório de Zé Tomázio. Sales está no balcão da venda de Zé
Tomázio.
DIRCEU (VOICE OVER)
Duas semanas depois fui a Vila Rica em busca de um bom
carpinteiro e pedreiros para a realização do trabalho sugerido
pelo padre Joaquim Alonso. Nessa viagem eu encontraria
casualmente com Sales ao entrar na mercearia de Zé Tomázio.
Empório de Zé Tomázio. Portas do empório de Zé Tomázio. Dirceu
aparece em uma das portas do empório de Zé Tomázio. Dirceu vê
Sales. Dirceu tira o chapéu da cabeça, olha para o lado de fora da rua e
resolve entrar no empório de Zé Tomázio. Dirceu para um instante e
748
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
torna a olhara para Sales. Sales vai para sair do empório. Sales e Dirceu
encontram-se frente a frente próximos a uma das portas do empório.
SALES
Ora, que grande surpresa, encontrar-me cá, o amigo...
DIRCEU
Também me surpreende encontrá-lo por cá, ainda cedo...
SALES
Não apareceu mais na minha fazenda, senhor Dirceu? O que
houve?
DIRCEU
Nada. Simplesmente entreguei-me aos trabalhos com os
rapazes de casa e cada dia ficamos mais presos à fazenda...
SALES
Impressionante! Deverias encher aquela fazenda de bons
escravos. Mas não, quer tratá-los iguais aos brancos...
DIRCEU
Na minha fazenda a alforria é uma lei, senhor Sales...
SALES
Vós mercê esqueceu a dona Marília?
Dirceu olha para todos os lados do empório de Zé Tomázio. Balcão do
empório. Dirceu vê Zé Tomázio ocupado no balcão. Dirceu olha para
Sales um pouco confuso.
DIRCEU
A dona Marília? O que aconteceu com a dona Marília?
749
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SALES
Ora, então não sabe? Contaram para mim e para Amarílis que
a danada da Marília, desde a primavera passada, fugiu ou foi
para a Itália com o tal rapaz prometido. Ficamos sabendo
disso pelos nossos próprios vizinhos, quais testemunharam têla visto partir numa bonita carruagem.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Conto ou não conto ao Sales, que a bonita carruagem levou
Marília foi para a minha fazenda? Não! Creio que não devo
contar nada, sem antes consultar Marília...
SALES
A notícia o assustou Dirceu? Não era para menos. Amarílis e
eu ficamos assustados. Supomos que a danada da Marília
resolveu tudo com o rapaz por cartas... Quando pensou que
não, olha o danado vindo buscá-la...
DIRCEU
Ora, senhor Sales, que o destino se faça cumprir, o que tem de
ser cumprido. Espero que a dona Marília seja muito feliz...
SALES
Ora, ora, senhor Dirceu, sem dúvida de que deves estar. As
mulheres encontram a felicidade facilmente, basta saber fazêlas um bom agrado...
Dirceu olha para Sales, reverencia-o com a cabeça e vai até o balcão do
empório de Zé Tomázio. Sales coloca o chapéu na cabeça e sai do
empório. Zé Tomázio olha alegre para Dirceu.
ZÉ TOMÁZIO
E a cachopa, senhor Dirceu? O que arranjaste com a cachopa?
750
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Não soubeste, senhor Tomázio? A cachopa partiu de Vila
Rica numa bela carruagem...
ZÉ TOMÁZIO
Ficamos todos sabendo, senhor Dirceu. Dizem que a rapariga
foi para a Itália...
DIRCEU
(pisca um dos olhos para Zé Tomázio)
E a Itália está tão próxima, senhor Zé Tomázio, que acabo de
vir de lá, agora...
ZÉ TOMÁZIO
Deixe o povo comentar sobre a viagem de dona Marília para a
outra Itália, senhor Dirceu. Deixe! Enquanto isso a dona
Marília deita-se tranquila ao teu lado na Itália que vós mercê
inventou para ela...
Balcão do empório de Zé Tomázio. Dirceu e Zé Tomázio dão risadas
no balcão do empório.
SEQUÊNCIA 254 – INT./EXT./DIA. FAZENDA RIBEIRÃO DO
MEIO. VARANDA DO CASARÃO.
Fazenda Ribeirão do Meio. Varanda do casarão. Rede. Marília está
deitada na rede da varanda do casarão. Cavalo de Dirceu amarrado em
um tronco de uma das árvores do quintal de frente da fazenda. Varanda.
Rede balançando na varanda. Dirceu retira um saco cheio de
mantimentos da garupa do cavalo e leva-o até a varanda, colocando-o
no chão. Rede balançando. Dirceu tira o chapéu da cabeça e aproximase da rede e vê Marília deitada. Dirceu balança a rede vagarosamente.
Marília acorda assustada, abrindo os olhos.
751
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Quer matar-me de susto, Dirceu?
DIRCEU
Desculpe, Marília, não pensei que vós mercê estivesse
dormindo...
MARÍLIA
(senta-se na rede)
Eu estava apenas com um pouco de preguiça, Dirceu. Passei a
manhã toda na casa da Inácia, vendo-a, juntamente com a
Quitéria, a fabricarem rendas de bilro. Meu Deus, uma arte
complicada, mas que felizmente surte um efeito maravilhoso...
DIRCEU
Viu só, as moças da fazenda são prendadas, aprenderam não
sei com quem, tais ofícios...
MARÍLIA
E fazem com a alma, nunca vi tantas rendas maravilhosas...
DIRCEU
Sabe quem eu encontrei em Vila Rica, Marília?
MARÍLIA
A minha irmã, Amarílis? Ou, não. Talvez a Rosa?
DIRCEU
Antes fosse a Amarílis ou a Rosa. Encontrei com o Sales...
MARÍLIA
O Sales? Onde o encontrou, foi por acaso?
DIRCEU
Sim, casualmente ao entrar na venda do Zé Tomázio. Ele saia,
enquanto eu entrava. Foi um encontro inevitável...
752
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Inevitável, como assim? Falaste a ele sobre nós dois? Ele se
demonstrou alguma preocupação comigo? E a minha irmã e
sobrinho, o que ele disse...
DIRCEU
Não, ele não deu notícia alguma sobre ele ou da família,
Marília. Apenas contou-me que soube através dos vizinhos
que vós mercê havia fugido ou caprichosamente viajado para a
Itália com o tal prometido, numa bela carruagem...
MARÍLIA
Isso faz parte do nosso velho plano, Dirceu. Deixemos que a
minha irmã e o meu cunhado dêem como certas as notícias
dos vizinhos da casa de Vila Rica. O importante para mim é a
felicidade. Eu encontro-a vivendo ao lado de vós mercê, a
quem eu amo muito...
Rede. Marília tenta sair da rede. Dirceu segura as mãos de Marília e
ajuda-a sair da rede. Marília sai da rede. Dirceu e Marília abraçam e
beijam-se.
DIRCEU
Eu também a amo, Marília. Cada instante, dias e semanas, ao
teu lado, são como sonhos que nunca se esgotam.
MARÍLIA
E a nossa cruz do alto da serra, contratou alguém para fazê-la?
DIRCEU
Sim, Marília. Os homens contratados para erguer a enorme
cruz de cedro no alto da serra virão daqui a duas semanas para
realizar o nosso trabalho...
753
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
MARÍLIA
Os dias passam rápidos, Dirceu. Duas semanas passam em
um fechar de olhos.
DIRCEU E MARÍLIA ABRAÇAM E BEIJAM-SE NA VARANDA
DO CASARÃO.
SEQUÊNCIA 255 –EXT./DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO. CAMPINAS.
QUINTAL DE FRENTE DA FAZENDA RIBEIRÃO DO MEIO.
NOTA: Parte desta cena é composta por várias ações dividas por cortes
indicando internas/externas. Vários dias.
Nascer do sol no alto da serra do Ita-corumi. Alto da serra do Itacorumi. Grande descampado no alto da serra do Ita-corumi. TRÊS
HOMENS MORENOS trabalham na serra do Ita-corumi. Os dois
pedreiros medem a área do descampado, enquanto o carpinteiro escolhe
uma árvore de cedro para cortar e fazer a cruz.
CORTA PARA
Cavalo de Cirilo troteando pela serra do Ita-corumi. Cirilo chega ao alto
da serra do Ita-corumi. Cirilo solta o cavalo no descampado da serra e
entrega a cada um dos três homens morenos uma gamela com comida.
Árvore. Os três homens morenos almoçam sentados debaixo da árvore.
CORTA PARA
Descampado da serra. Monte de pedra no descampado da serra. OS
dois pedreiros morenos trabalham levantando as paredes do pequeno
oráculo. Machado. Árvore caída no chão. O CARPINTEIRO
MORENO corta com o machado uma das galhas da árvore caída no
chão.
CORTA PARA
754
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Nascer do sol no alto da serra do Ita-corumi. Os três homens morenos
chegam a cavalo no alto da serra do Ita-corumi. Descampado da serra.
Monte de pedras amontoados no descampado da serra. Parede média
do pequeno oratório. Os dois pedreiros morenos pegam pedras e
erguem a parede do pequeno oratório. O carpinteiro lavra o tronco do
galho da árvore, transformando-a em tábua.
CORTA PARA
Tarde. Fazenda Ribeirão do Meio. Campinas verdes. Dirceu e Marília
cavalgam emparelhados pela campina verde. Marília freia o cavalo e olha
para o alto da serra do Ita-corumi. Dirceu também freia o cavalo dele e
fica a observar Marília.
DIRCEU
O que foi Marília? Alguma coisa incomodando-a?
MARÍLIA
Não. Eu apenas parei o cavalo para olhar para o alto da serra...
DIRCEU
Só mesmo nós, da fazenda, sabemos que lá no alto há quase
uma semana estão um carpinteiro e dois pedreiros
trabalhando...
MARÍLIA
É verdade e não vejo a hora de ver de cá o resultado do
trabalho deles...
DIRCEU
Não demorará muito e logo veremos a cruz fincada no alto da
serra.
CORTA PARA
Legenda "Quatro semanas depois".
755
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Alto da serra do Ita-corumi. Os dois pedreiros morenos ajudam o
carpinteiro moreno a erguer a grande cruz, qual está amarrada em uma
corda. Buraco. Grande cruz sendo puxada pela corda pelos três homens
morenos. Os três homens morenos fazem forças segurando firme a
corda. O pé da grande cruz cai no buraco. Eles fazem força puxando a
corda. A grande cruz ergue-se firmemente pelo ar. Pedras Os três
homens morenos fazem a base de pedras para que a cruz fique ainda
mais firme.
CORTA PARA
Fazenda Ribeirão do Meio. Campinas verdes. Dirceu e Marília cavalgam
emparelhados pela campina verde. Marília freia o cavalo, olha para o
alto da serra e vê a grande cruz erguida. Marília solta um grito de
surpresa.
MARÍLIA
Olha, olha só para o alto da serra, Dirceu.
DIRCEU
(freia o cavalo e olha para o alto da serra também admirado)
A cruz! Ergueu-se a nossa santa cruz, Marília...
MARÍLIA
Meu Deus, se eu sei por que ela está ali e fico curiosa em vê-la
de perto, imagina os outros que nada sabem sobre ela...
DIRCEU
Vamos para casa Marília, vamos mostrar o pessoal da fazenda,
inclusive ao padre Joaquim Alonso, a nossa cruz erguida lá no
alto da serra.
Dirceu e Marília saem cavalgando pelas campinas verdes até chegar à
cancela da fazenda. Quintal de frente da fazenda. Inácia, Quitéria,
Eulina, Sebastiana, Hipólito, Cirilo, padre Joaquim Alonso, Miliquito
estão mirando o alto da serra para ver a cruz recém erguida. Marília e
756
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu, montados em seus cavalos, próximos à cancela da fazenda ficam
parados observando o pessoal da fazenda admirando a cruz fincada no
alto da serra.
FOTOGRAFIAS DO ALTO DA SERRA DO ITA-CORUMI COM A
CRUZ E O PEQUENO ORATÓRIO.
SEQUÊNCIA 256 –EXT./INT. DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. DENTRO DO PEQUENO ORÁCULO.
Manhã. Serra do Ita-corumi. Dirceu cavalga devagar subindo a serra do
Ita-corumi seguindo uma pequena trilha. Alto da serra do Ita-corumi.
Dirceu chega ao alto da serra do Ita-corumi e vê a cruz erguida no alto
da serra do Ita-corumi. Ele amarra o cavalo debaixo de uma árvore e
anda devagar até a grande cruz. Grande cruz. Olhos de Dirceu
admirando a grande cruz fincada no alto da serra do Ita-corumi.
Pequeno oráculo. Dirceu vai até ao pequeno oráculo e olha para dentro
dele. Escada de degraus de pedras na entrada do pequeno oráculo.
Dirceu observa a escada do pequeno oráculo. Ele vai até o primeiro
degrau da escada e observa a entrada do oráculo. Ele tira o chapéu da
cabeça e desce os degraus do oráculo. Vento forte e frio bate nas costas
de Dirceu. Dirceu para em um dos degraus da entrada do pequeno
oráculo. Sombra de uma pessoa. Dirceu vê a sombra de uma pessoa. Ele
olha para trás. A sombra da pessoa transforma-se em um HOMEM
MAGRO E ESQUIO olhando para Dirceu. Dirceu cumprimenta-o,
mas o homem magro e esquio não dá confiança para Dirceu. O homem
magro e esquio tem o olhar de um lobo faminto e perigoso.
DIRCEU (VOICE OVER)
Quando os pedreiros e o carpinteiro finalizaram o trabalho,
cavalguei para o alto da serra a fim de contemplar o pequeno
oráculo e o padrão cristão que nele se erguia. Ao chegar lá,
admirei o cruzeiro, amarrei o meu cavalo numa árvore e me
dirigi ao pequeno oráculo, pronto para descer os curtos
degraus e entrar-me nele. De repente, senti um vento forte e
757
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
frio bater-me pelas costas. Uma sombra chamou a minha
atenção. Olhei para trás e vi um homem magro e esquio
olhando para mim seriamente. Não assustei. Pensei tratar-se
de alguém que visitasse a recente cruz, que chamaria a atenção
das pessoas lá embaixo, principalmente de quem passasse pela
estrada que conduzia a Vila Rica. Cumprimentei-o e não
obtive resposta. Fitei-o. Ele encarava-me com o par de olhos,
como se fosse um lobo a cercar as ovelhinhas num lugar
totalmente descampado. Não medi o tempo para temer.
Dirigi-me até ele e perguntei.
VOLTA PARA
Dirceu está na escada do pequeno oráculo olhando para o homem
magro e esquio.
DIRCEU
Quem é vós mercê? Vinde cá para ver a cruz e o pequeno
oráculo de perto?
Escada do pequeno oráculo. O homem magro e esquio olha para
Dirceu com os olhos fosforescentes. Dirceu olha assustado para os
olhos do homem magro e esquio. O homem magro e esquio enche o
peito de ar e fala com uma voz igual a de um trovão.
O HOMEM MAGRO E ESQUIO
Tens contigo uma chave, não tem?
Dirceu responde "sim" com a cabeça. O homem magro e esquio enche
novamente o peito de ar e fala com uma voz igual a de um trovão.
O HOMEM MAGRO E ESQUIO
Então, tu foste o escolhido para esta missão. Se a ti foi
incumbida essa tarefa, meu jovem, tu terás, a partir de agora,
de enfrentar uma dura prova.
758
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Será se ele está falando é sobre as tarefas impostas pelo meu
pai, quanto às moedas assassinas do Judas e a transformação
da fazenda em um pequeno povoado?
DIRCEU
(dirige-se ao homem magro e esquio)
Sim. A mim não foi incumbido apenas uma tarefa, mas duas
ou muitas, talvez.
O HOMEM MAGRO E ESQUIO
A mim interessa que cumpra apenas uma...
DIRCEU
(assusta-se)
Uma promessa? Qual?
O HOMEM MAGRO E ESQUIO
A promessa que fizeste a uma pessoa, um dia.
DIRCEU
Ao meu pai? Mas eu não prometi nada a ele, apenas recebi
uma carta dele a pedir-me que...
O HOMEM MAGRO E ESQUIO
Se tu não lembras a quem deve a promessa, não há problema.
Tudo o que posso afirmar-te é que chegou o momento de
passares pelas provas. Sê, porém, prudente e sábio, para que
tudo possa começar e terminar bem.
O homem magro e esquio abre os braços. Os braços do
homem magro e esquio transformam-se em asas brancas. O
homem magro e esquio transforma-se em um anjo. Dirceu
fica bobamente olhando para o anjo.
759
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
São Miguel Arcanjo!
O homem magro e esquio, transformado em anjo aproxima-se de
Dirceu. Mão direita do homem magro e esquio, transformado em anjo.
O homem magro e esquio, transformado em anjo, coloca a mão direita
sobre os peitos de Dirceu e, magicamente arranca do pescoço dele a
pequena chave de ouro com corrente e tudo. O homem magro e esquio,
transformado em anjo, desintegra-se deixando uma poeira de névoa.
Dirceu passa as mãos no pescoço e fica procurando o homem magro e
esquio transformado em anjo. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Como eu explicarei à Marília a perda da pequena chave? Se
aquela chave era para abrir o coração dela, por que haveria de
servir àquele anjo?
SEQUÊNCIA 257 – INT./EXT./DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. PEQUENO ORÁCULO E LUGAR DESCAMPADO.
Degraus do pequeno oráculo. Dirceu, parado em um dos degraus do
pequeno oráculo, esfrega os olhos, abri-os e mira por todos os lados.
Escada do pequeno oráculo. Dirceu desce os degraus do pequeno
oráculo. Interior do pequeno oráculo. Dirceu ajoelha-se no interior do
pequeno oráculo. O vento sopra no interior do pequeno oráculo. Dirceu
escuta no sussurro do vento a voz de Tomás Antônio Gonzaga, em off.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA (OFF)
Tu és ainda muito jovem, viverás muito. Portanto, ouça o que
tenho para dizer-te. Por ceitil algum venda a tua liberdade.
Também não te arrisques, jamais, perdê-la em prol da
coletividade...
760
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Degraus do pequeno oráculo. Dirceu sobe correndo os degraus do
pequeno oráculo e sai. Descampado do alto da serra. Dirceu olha para
todo o descampado do alto da serra. Dirceu fala por solilóquio.
DIRCEU
Vender a minha liberdade? Eu jamais faria isso, seja lá por
ceitil que fosse.
OUTRA VOZ ESTRANHA FEITO A UM TROVÃO profere-se em
off através do vento, despertando a atenção de Dirceu.
OUTRA VOZ ESTRANHA FEITO A UM TROVÃO (OFF)
Dirceu, quando cumprires a tua tarefa, ouça o teu coração. Tu és um
homem bom. Por favor, não se esmoreça. Tu estás preparado a cumprir
essa missão. Seja, portanto, tenente perante a tudo o que vier a
acontecer-te. Não caias na tentação de pensar na coletividade. Pense
apenas em ti, a missão exigirá isso de vossa senhoria.
Dirceu corre pelo descampado, olha para um lado e outro e vê ninguém.
Dirceu tapa os ouvidos com as mãos.
DIRCEU
Não estou entendendo o que está acontecendo comigo. Que missão
terei de cumprir? Quem falava comigo por intermédio do vento?
OUTRA VOZ ESTRANHA FEITO A UM TROVÃO (OFF)
Tu entenderás tudo, no momento certo. Saberás qual é a missão que
terás de cumprir. Saiba, portanto, que a minha voz, nada mais é que a
manifestação da tua própria consciência. Lembra-te, meu jovem, o que
tenho a pedir-te: por ceitil algum venda a tua liberdade!
DIRCEU
Por ceitil algum venderei a minha liberdade.
A outra voz estranha perde-se no ar, cantando uma doce e leve melodia.
Há uma pausa de silêncio. Dirceu anda tranquilamente pelo descampado
761
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
do alto da serra. Cavalo de Dirceu amarrado no tronco de uma das
árvores. Dirceu anda em direção ao cavalo dele. Ouve-se, porém, no ar,
uma terrível gargalhada. Dirceu tapa os ouvidos, quase caindo no chão,
temendo a surdez. Após cessar a gargalhada, Dirceu ouve novamente
uma voz grave, provinda das entranhas da terra. Esta voz grave,
provinda do interior da terra é a do DEMÔNIO, qual se transfigurará
em várias imagens. A voz grave provinda das entranhas da terra é a do
demônio, qual está em off.
DEMÔNIO (OFF)
Dirceu, quando cumprires a missão, farei brotar para ti o ouro e a prata
do seio da terra e, como se isso não bastasse, darei a ti todos os ricos
tesouros escondidos entre o céu e a terra. Basta que cumpras a mim o
que tenho a revelar-te.
Dirceu fica a rodar com os braços abertos pelo descampado do alto da
serra, desorientado ou perdido, sentindo-se num lugar deserto e
distante.
DIRCEU
O que tens a revelar-me? O que queres de mim?
DEMÔNIO (OFF)
(Voz grave, provinda das entranhas da terra)
Pegue as trinta moedas que estão sob o teu poder e deposite-as num
cofre de ofertas da primeira igreja em que tu encontrares.
CORTA PARA
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
Flash back – Relato de Joaquim Alonso, conforme os livros
apócrifos sobre a morte de Jesus Cristo.
762
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
SEQUÊNCIA 212.2 – CONTINUAÇÃO – EXT./INT./NOITE.
JERUSALÉM. TEMPLO DOS ESCRIBAS E SACERDOTES.
Noite. Templo dos escribas e sacerdotes. Judas Iscariotes aparece
no templo dos escribas e dos sacerdotes. UM DOS ESCRIBAS E
UM DOS SACERDOTES vão ao encontro de Judas Iscariotes...
JUDAS ISCARIOTES
Não foi justo o que fiz. Entreguei a vida do filho de Deus para ser
julgado pelos homens. Nunca na fase da terra houve homem tão
justo quanto Jesus Cristo....
UM DOS ESCRIBAS
É tarde para se arrepender Iscariotes. Quer o quê, que salvamos o
tal Messias?
JUDAS ISCARIOTES
(abre as mãos trêmulas com o saco de trinta moedas de prata)
As minhas mãos não param de tremer... Moedas malditas, de
sangue inocente...
O um dos escribas e o um dos sacerdotes olham para Judas
Iscariotes e dão risadas. Judas Iscariotes joga o saco de moedas
nos pés de um dos sacerdotes e sai correndo para fora do templo.
Saco de moedas jogado no chão. O um dos escribas pega o saco
de moedas jogado no chão. Árvore em algum lugar de Jerusalém.
Judas Iscariotes enforcado em uma árvore em algum lugar de
Jerusalém.
VOLTA PARA
SEQUÊNCIA 257.1 – CONTINUAÇÃO - EXT./DIA. ALTO DA
SERRA DO ITA-CORUMI. LUGAR DESCAMPADO DA SERRA.
Dirceu no descampado da serra do Ita-corumi.
763
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Se ao devolver as pratas, os sacerdotes e os escribas não
quiseram depositá-las no cofre das ofertas, haveria eu de fazer
isso? Nunca!
Descampado da serra do Ita-corumi. O cavalo de Dirceu relincha.
Dirceu olha para a direção em que o cavalo dele está amarrado. Cavalo
amarrado no tronco de uma das árvores. Na árvore em que o cavalo de
Dirceu está amarrado, Dirceu vê, ilusoriamente, um corpo de um
homem suspenso com uma corda sobre o pescoço. Este homem é o
Judas Icariotes.
DIRCEU
Judas! É o Iscariotes que pede a mim este favor?
DEMÔNIO (OFF)
(voz grave, provinda das entranhas da terra)
Somente vossa senhoria poderá salvar esta pobre alma. Sabes
bem quem ela é. Precisamos de alguém com um bom coração
para absolvê-la do terrível pecado cometido. Basta atender o
nosso pedido e esta pobre alma se libertará para sempre.
DIRCEU
Se os sacerdotes rejeitaram devolver as moedas por elas serem
pacto de sangue, haveria, eu, de depositá-las num cofre santo?
Se eu assim fizer, darei ao Iscariotes 3.000 anos de reinado
sobre a terra despertando aos homens a vã cobiça.
DEMÔNIO (OFF)
(voz grave provinda das entranhas da terra)
Escutaste muito bem a voz da tua consciência pedindo-te a
não pensar na coletividade. Pense em vossa senhoria. Se tu
absolveres esta pobre alma, ganharás toda a riqueza que um
homem possa ter na terra. Tu terás ouro, prata, diamantes e...
764
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu fica a rodar novamente com os braços abertos pelo descampado
do alto da serra. Ele tapa os ouvidos com as mãos e grita.
DIRCEU
Não, não quero riqueza alguma. Afasta-te de mim, satanás.
O Demônio transforma-se em uma tocha de fogo brotando da terra e
vai em direção de Dirceu, como se fosse uma pesada corrente de água.
Ao chegar perto de Dirceu, o Demônio transformado em tocha de fogo
transfigura-se em forma humana de um homem. O HOMEM
transfigurado pelo Demônio parece com JESUS CRISTO. Dirceu fica
parado olhando para a forma humana de homem que parece com Jesus
Cristo. O homem transfigurado pelo Demônio que parece com Jesus
Cristo tem um olhar tranquilo e uma voz mansa.
DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM JESUS CRISTO
Não estás a crer em quem eu sou? Quero perdoar aquele que
me vendeu aos homens e, portanto, preciso de um bom
cristão que cumpra esta missão. Se as moedas estão sob o teu
poder, porque não as apanha e deposite-as num cofre santo
de uma igreja?
DIRCEU
(lábios trêmulos)
Tu és o salvador do mundo?
DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM JESUS CRISTO
Sou quem tu estás a dizer...
DIRCEU
Quem és, então?
DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM JESUS CRISTO
Sou quem tu estás pensando que sou...
765
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Se és quem estou querendo dizer quem tu és ou quem estou
pensando quem tu és, abra as tuas mãos e mostre a mim os
furos dos pregos cravados na santa cruz...
O homem transfigurado pelo Demônio que parece com Jesus Cristo
abaixa a cabeça e aperta as mãos fortemente. Dirceu cai de joelhos nos
pés do Homem transfigurado pelo Demônio que parece com Jesus
Cristo e risca no chão o sinal da cruz. O homem transfigurado pelo
Demônio que parece com Jesus Cristo transforma-se em um
TERRÍVEL MONSTRO. Dirceu cai no chão de susto ao ver o terrível
monstro.
DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM TERRÍVEL MONSTRO
Cumpra o que estou a pedir-te. Caso contrário, quando
desceres deste morro, tu não mais encontrarás a tua fazenda.
DIRCEU
Acabarás com tudo o que possuo?
DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM TERRÍVEL MONSTRO
Digamos que sim, inclusive com quem tu mais amas!
DIRCEU
(grita desesperado)
Marília. Não! Minha Marília, não!
DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM TERRÍVEL MONSTRO
Então cumpra a promessa.
DIRCEU
Eu não cumprirei, sem antes conhecer os mistérios dessa
missão, se pretendes arruinar-me, creio existir alguém capaz
de ajudar-me.
766
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Demônio transfigurado em um terrível monstro transforma-se, agora,
em UM ANJO DE ASAS PRETAS.
DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM ANJO DE ASAS
PRETAS
Alguém capaz de ajudar-te? Nunca. Tu seguirás um caminho
torto, capaz de perder-te o equilíbrio, ou seja, a razão e a
emoção.
DIRCEU
(faz o sinal da cruz)
Tu não conseguirás isso.
DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM ANJO DE ASAS
PRETAS
Veremos. Se não prometeres a cumprir-me a missão, voarei
sobre as tuas terras e espalharei nela uma cinza poderosa, a
qual impedirá que tu vejas nada ou ninguém que exista por lá.
Tu serás banido de tua própria terra, sem nunca saíres dela.
Tornarás um volteador, andarilho, até quando escolheres
entre sete caminhos, aquele que tu deverás seguir. Qual dos
caminhos seguirás? O caminho dos homens? O dos deuses ou
o dos anjos? Quem sabe não nos encontraremos em um deles.
DIRCEU
Terei de escolher um caminho, entre os sete?
DEMÔNIO TRANSFIGURADO EM UM ANJO DE ASAS
PRETAS
Sim! E se não tiveres equilíbrio, perecerás para sempre em um
deles.
Descampado do alto da serra. Cruz erguida no descampado
do alto da serra. Dirceu corre para perto da cruz erguida no
descampado do alto da serra. Dirceu fecha os olhos e
transfigura-se rapidamente em um menino de 14 ou 15 anos
de idade.
767
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU TRANSFIGURADO EM UM MENINO
Não cumprirei, não cumprirei, não cumprirei.
Dirceu abre os olhos e volta à forma normal de homem. Uma enorme
ave negra voa pela serra abaixo. Dirceu avista a enorme ave negra
voando pela serra abaixo.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Meu Deus, será se aquela ave negra vai causar danos à minha
fazenda e ao meu povo?
Cavalo de Dirceu amarrado no tronco de umas das árvores do
descampado do alto da serra. Dirceu corre até o cavalo dele. Serra.
Trilha da serra. Dirceu montado em seu cavalo cavalga descendo a serra
pela trilha.
DIRCEU
(fala por solilóquio descendo por uma pequena trilha da serra
do Ita-corumi)
Tenho de chegar urgente em minha fazenda, quem sabe o
padre Joaquim Alonso não me ajude a resolver esse problema.
A ave negra é o anjo decaído do céu, que há séculos vive
querendo ganhar almas cá, na terra...
CAPÍTULO 16
SEQUÊNCIAS 258-264
Personagens deste capítulo:
Dirceu
Marília
Velho pastor (Padre Joaquim Alonso)
Anjo Celestial
Oito ninfas
Deusa Vênus
768
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Júpiter
Prometeu
Deusa Réia
Vozes espaço (off)
As sete estrelas filhas de
Arlas
Imagem de Dirceu (vaqueiro)
Plateia
Vento (off)
Farias
São Miguel Arcanjo
Ancião (Tomás Antônio Gonzaga)
Escribas e sacerdotes
Anjos ensombrados
Anjo São Gabriel
Bando de abutres (anjos negros)
FLASH BACK – RETOMADA DE SEQUÊNCIA
1. Sequência 18
2. Sequência 114
3. Sequência 174
4. Sequência 21
5. Sequência 22
6. Sequência 23
7. Sequência 257.1
8. Sequência 24
SEQUÊNCIA 258 –EXT./DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI.
Serra do Ita-corumi. Patas do cavalo de Dirceu cavalgando na trilha da
serra do Ita-corumi. Dirceu montado no cavalo, segurando firme a
rédea. Várias trilhas vão surgindo. Dirceu freia o cavalo, para, olha para
769
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
as trilhas, tira o chapéu da cabeça, olha para um lado e para o outro
Dirceu escolhe uma das trilhas e sai cavalgando.
DIRCEU (VOICE OVER)
No início pareceu-me fácil a viagem, mas, tempos depois,
percebi que quanto mais eu descia a serra, mais eu me perdia
nela. Por mais que eu galopasse, eu não encontrava a minha
fazenda, a estrada que conduzia a Vila Rica e nem tampouco
as casas, fazendas ou sítios da vizinhança. Toda a paisagem era
familiar, somente não havia aonde e nem por onde andar para
encontrar qualquer ponto capaz de orientar-me. Inventei
gritar por Marília, pelos rapazes da fazenda e nada. Todos os
meus gritos, instantes depois, eram devolvidos a mim, pelos
ecos. Finalmente convenci de que o belzebu havia cumprido a
promessa de banir-me das minhas terras sem que eu realmente
saísse dela.
Serra do Ita-corumi. Pôr-do-sol. Dirceu cavalgando a serra do Itacorumi. Ele tem várias visagens, ele vê a fazenda Ribeirão do Meio, a
capela da fazenda e todos da fazenda esperando-o na cancela. Dirceu
cavalga rápido, mas não consegue chegar à fazenda e nem em lugar
algum de suas visagens. Ele começa a suar o rosto, vê Marília montada
em um cavalo branco, ao lado dele, dentro de um facho de luz.
MARÍLIA
Vá adiante, Dirceu, não desista. Esta viagem será em um
grande bem à humanidade. Fique tranquilo, cá, cuidarei de
tudo...
DIRCEU
Marília, minha Marília... Tenho sede, mata-me a sede com um
beijo teu...
Dirceu tenta emparelhar o cavalo dele com o cavalo de Marília, mas
Marília e o cavalo se desaparecem. Dirceu grita por Marília, a serra ecoa
770
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
os gritos de Dirceu. Anoitece. Dirceu cavalga durante toda a noite pelas
trilhas da serra.
SEQUÊNCIA 259 –EXT./DIA. ALTO DA SERRA DO ITACORUMI. CASA DE PAU A PIQUE.
Amanhece o dia. Dirceu aparece cavalgando em um lugar plano da serra
do Ita-corumi. Lago com água azul e cristalina. Há uma casa de pau a
pique á beira do lago. Dirceu freia o cavalo e olha para a casa de pau a
pique à beira do lago. Dirceu desapeia do cavalo e aproxima-se da casa
de pau a pique à beira do lago. Casa de pau a pique à beira do lago. A
porta da casa de pau a pique está aberta. Dirceu aproxima-se da porta e
chama por alguém, batendo palmas. Ninguém atende. Dirceu entra na
casa de pau a pique. Sala da casa de pau a pique. Enorme banco de
madeira na sala da casa de pau a pique. Dirceu senta-se no enorme
banco de madeira da sala da casa de pau a pique. Ele deita em seguida
no enorme banco e dorme tranquilamente. A imagem que se tem de
Dirceu dormindo no banco é que o banco é tão grande, que ele torna-se
uma imagem reduzida no banco.
DIRCEU (VOICE OVER)
Pela manhã, avistei uma pequena cabana à beira de um lago.
Dirigi-me até ela. A porta da cabana estava entreaberta e,
embora ousasse chamar pelos moradores, ninguém dela saía
para atender-me. Julgando ser uma casa abandonada, entrei e
sentei num enorme banco de madeira. O cansaço dominou o
meu corpo. Adormeci ali, profundamente.
Sala da casa de pau a pique. Enorme banco de madeira na sala. Dirceu
dormindo. A imagem de Dirceu está reduzida e aos poucos vai se
ampliando no banco até ele acordar. Dirceu acorda e senta-se no grande
banco. Aparece de repente um velho pastor, sentado no banco. O
VELHO PASTOR é o padre Joaquim Alonso de barbas e cabelos
brancos, magro e alto, de aproximadamente sessenta anos de idade.
771
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu assusta-se ao vê-lo, mas não o reconhece. Dirceu esfrega os
olhos olhando para o velho pastor.
DIRCEU
Meu Deus, onde estou?
VELHO PASTOR
(olha para Dirceu pacientemente e dá uma risadinha)
Ora, meu filho, vós mercê encontra-se numa humilde casa de um velho
pastor. Fizeste uma grande viagem e creio que ainda deva estar exausto.
DIRCEU
Desculpe-me, é que eu não o conheço e...
VELHO PASTOR
Não tem problema, meu filho, aqui vós mercê é todo bem-vindo. A
minha casa é pequena e humilde, mas o meu coração é grande. Como já
me apresentei, sou um velho pastor e vivo a apascentar o meu rebanho.
Se pensa que está perdido, não se preocupe, porque vós mercê não está.
VELHO PASTOR
(fica calado apenas olhando para o velho pastor)
Não demorará a achar o caminho de volta para a sua casa.
Dirceu, ainda calado sorri para o velho pastor. O velho pastor tira de
um alforje da cintura um pequeno saco de pano e mostra para Dirceu.
VELHO PASTOR
Pegue isso e siga o caminho que eu apontar-lhe. Ensinarei a
vós mercê como resolver todo esse enigma.
O velho pastor estende o braço para entregar para Dirceu o pequeno
saco de pano. Dirceu não pega o pequeno saco de pano, olhando para o
velho pastor meio desconfiado. O velho pastor fica com o saco de pano
na mão.
772
Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
O que é isso?
VELHO PASTOR
Não sabe? Neste saco contem trinta moedas de pratas, para
que vós mercê possa depositá-las num cofre da primeira igreja
que encontrar. Após cumprir essa missão, achará as suas
terras, estará de volta à sua fazenda, ao lado de sua esposa e
gozando de uma imensa riqueza.
Dirceu afasta-se do velho pastor. Ele sai da casa de pau a pique. O velho
pastor acompanha Dirceu. Margem do lago. Dirceu e o velho pastor
estão na margem do lado.
DIRCEU
Não, não aceitarei a fazer isso. Se o senhor é um lobo,
disfarçado em pele de ovelha, é melhor manter-se longe de
mim.
VELHO PASTOR
(atira o saco no chão, próximo à margem do lago)
Não, não se assuste, não sou quem vós mercê pensa. Vós
mercê acabou de demonstrar a sua virtude, quando rejeitou a
cumprir a missão imposta pelo espírito maligno, no alto da
serra. Ele quer dominar o mundo e acha possível comprar os
homens com as suas promessas de riquezas ilusórias.
Saco atirado no chão. O saco atirado no chão começa a se mover. De
dentro do saco evapora-se uma débil fumaça. Dirceu e o velho pastor
olham para o saco que está exalando a fumaça pelo ar.
VELHO PASTOR
Eis aí o resultado do seu prêmio. Ao demonstrar-se temente
ao exército de Deus, vós mercê ganhará do céu mais virtudes.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Saco exalando a fumaça pelo ar. A fumaça exalada pelo saco
transforma-se em um ANJO CELESTIAL.
VELHO PASTOR
Garanto a vós mercê que muitos homens desta colônia
atirariam contra esta virtude para possuir toda a riqueza da
terra.
DIRCEU
A maior riqueza do homem é a que ele carrega em sua alma.
O anjo celestial aproxima-se de Dirceu, abre as asas brancas e coloca as
mãos sobre a cabeça de Dirceu. Pequena chave de ouro com a corrente
na mão do anjo celestial. O anjo celestial coloca a pequena chave de
ouro no pescoço de Dirceu.
ANJO CELESTIAL
Devolvo a ti a chave que irá protegê-lo daqui por diante.
Somente um homem de brio, poderia ser escolhido para
cumprir essa missão. Há séculos esperávamos, sem a
intervenção de Deus, que fizesse surgir entre os homens
alguém capaz de nos ajudar nessa missão. Recorremos aos
espíritos dos reis, dos homens de guerras, dos pobres e
sofredores e, somente em vossa senhoria encontramos a
verdadeira virtude.
VELHO PASTOR
Dirceu, vós mercê, a partir de agora, passará pela prova dos
sete caminhos. Essa prova não dependerá somente de sua
inteligência, mas também da magnificência do seu coração.
Dirceu abaixa-se a cabeça e demonstra está preocupado. O anjo celestial
olha para ele sorrindo.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
ANJO CELESTIAL
Não temas, quando deparares com os sete caminhos, tudo o
que tens de fazer é buscar o equilíbrio do teu espírito entre a
luz da razão e a luz da emoção. Se tu escolheres o caminho
certo, ele te levará a tua real missão.
DIRCEU
A missão "monetae sicarii ludas"?
O anjo celestial responde "sim" balançando a cabeça e farfalhando as
asas. O velho pastor aproxima-se de Dirceu.
VELHO PASTOR
Se vós mercê escolher o caminho certo, receberá ordens a
cerca do que deverá fazer. Não tenha medo e não se aborreça,
pois, ao tocar no maldito tesouro, vós mercê terá direito a agir
conforme o seu livre-arbítrio.
Tanto o velho pastor, quanto o anjo celestial desaparecem. Dirceu fica
só diante do lago. Ele dirige-se até a margem próxima do lago e fica
reparando a imagem dele refletida no lago. Imagem de Dirceu refletida
no lago. A imagem de Dirceu parece está refletida em um grande
espelho. Dirceu senta-se à beira do lago e adormece.
SEQUÊNCIA 260 – EXT./DIA. MARGEM DO LAGO.
PORTUGAL. MARGEM DO RIO TEJO. GRÉCIA. MONTE
PARNASO. LUGAR PLANO E ARENOSO. RELVADO VERDE E
PLANO.
Flash back – Sonho de Dirceu.
Margem do lago. Surgem OITO NINFAS vestidas em túnicas
transparentes na margem do rio. As oito ninfas estendem-se um grande
lençol branco na margem do lago. Dirceu senta-se no grande lençol
branco estendido na margem do lago. As ninfas pegam as pontas do
grande lençol branco e voam mansamente pelo ar levando-o com
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
Dirceu. Visão panorâmica de Portugal. Dirceu sentado no lençol branco
sendo carregado pelas oito ninfas, voando sobre os ares de Portugal. Rio
Tejo. Dirceu é transportado para as margens do rio Tejo. As oito ninfas
colocam o lençol branco em um bonito relvado às margens do rio Tejo,
com Dirceu sentado sobre ele. Dirceu sentado no lençol branco às
margens do rio Tejo. UMA DAS OITO NINFAS coloca uma coroa de
folhas de oliveira na cabeça de Dirceu. Dirceu com a coroa de folhas de
oliveira na cabeça. OUTRAS QUATRO NINFAS servem vinho para
Dirceu em uma bonita taça de cristal. Dirceu bebe um gole do vinho.
Carro puxado por cisnes estaciona-se próximo de Dirceu. Ele olha
encantado para o carro puxado por cisnes. Uma bonita ninfa sedutora
sai de dentro do carro puxado por cisnes. A ninfa sedutora é a DEUSA
VÊNUS. Dirceu põe-se de pé. A deusa Vênus atira-se nos braços de
Dirceu, sedutoramente.
DEUSA VÊNUS
Eu sou a deusa Vênus e se tu seguires o meu caminho, viverás
fartamente as delícias do amor. Olhas para o Tejo, nele há
abundâncias; tu ganharás todas as riquezas para viveres
comigo na serra da Estrela. Lá, tu tornarás o meu vaqueiro e
cuidará de um farto rebanho, sem nunca preocupares com o
tempo que, para nós, será eterno.
Dirceu põe-se de pé e foge dos braços da deusa Vênus. A deusa Vênus
olha para Dirceu com os olhos quentes em brasas. Dirceu olha para os
olhos quentes em brasa da deusa Vênus. Dirceu fecha os olhos. As
ninfas dançam um bailado indo ao encontro da deusa Vênus. A deusa
Vênus entra no carro puxado por cisnes. As ninfas circulam o carro
puxado por cisnes. Carro, deusa Vênus e ninfas se desaparecem numa
poeira de fumaça colorida. Dirceu abre os olhos e se vê no alto do
monte Parnaso, o mais elevado dos montes Pindus, a noroeste do golfo
de Corinto. Trono feito de pedras preciosas. Júpiter está sentado no
trono de pedras preciosas. Dirceu é rapidamente transportado para
diante do trono de Júpiter. Mãos de Júpiter lançam tenebrosos raios de
fogo pelo ar. JÚPITER vê Dirceu e para de lançar os tenebrosos raios
de fogo pelo ar.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
Júpiter, tu és o deus Júpiter! Tu és o deus dos deuses, suprema
autoridade do Olimpio e patrono de Roma!
JÚPITER
(tom compassado)
O universo inteiro testemunhou a atitude da tua grandeza,
quando tu negastes a cumprir a tarefa imposta pelas forças do
mal, Dirceu. Não sei se tu sabes, sou conhecido como uma
grande divindade protetora. Os homens e todos aqueles que
são adeptos de mim, jamais se sentiram ou sentirão
desamparados. Portanto, quero que tu sigas o meu caminho.
Se segui-lo, verás que farei a ti um justo presente. Darei a ti
uma enorme e eterna floresta de carvalho e sobre cada árvore
gravarei nos troncos o teu nome e o de tua amada, Marília.
Ambos serão os deuses das florestas e as governarão com
retidão e justiça.
Dirceu tenta falar alguma coisa para Júpiter, mas ele é tirado
rapidamente da presença dele. Dirceu é colocado diante de um círculo
de fogo, num lugar plano e arenoso. No meio do círculo de fogo, do
lugar plano e arenoso, está PROMETEU. Dirceu olha para Prometeu.
DIRCEU
Prometeu, irmão de Epimeteu, cujas tarefa foi a de criar os
homens e todos os animais. Foi vós mercê quem roubou o
fogo dos deuses e o deu aos homens...
PROMETEU
Sou Prometeu, símbolo imortal da humanidade. Luto contra a
injustiça e a onipotência divina. Se tu, Dirceu, seguires o meu
caminho encontrarás nele a encarnação da liberdade humana,
que leva o homem a enfrentar com orgulho o seu destino.
Darei a ti como prêmio a capacidade de venceres grandes
lutas e capacidades de conquistares novas civilizações,
tornando-te rei delas.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
DIRCEU
(fala por solilóquio)
Quem disse que eu queria conquistar nações, dominar
civilizações ou ser rei delas?
Dirceu não está mais diante do círculo de fogo. Dirceu aparece de
repente em um relvado verde e plano, parecendo infinito. Vento bate no
rosto de Dirceu. Uma voz feminina responde o pensamento de Dirceu.
A voz feminina é da DEUSA REIA.
DEUSA REIA (OFF)
Eu diria que sim!
DIRCEU
Quem respondeu o meu pensamento?
A deusa Reia aparece no relvado verde e plano, parecendo infinito
dentro de uma linda carruagem puxada por cavalos brancos. Dirceu fica
mirando a carruagem e os cavalos brancos. UM COCHEIRO abre a
porta da carruagem. A deusa Reia vira-se de lado, sentada, sem sair da
carruagem. Ela olha para Dirceu.
DEUSA REIA
Sou a deusa Reia, cultuada em alguns pontos da Grécia. Sou
conhecida também, entre os romanos, como a deusa Cibele.
Se vossa senhoria escolher o meu caminho, eu o transformarei
num eterno e imortal poeta. Cantará a natureza e a vida
mística e sagrada de Creta, na Arcádia. Vossa senhoria não
viverá preso como Dedálo e o filho Ícaro, no labirinto do rei
Mino, ao contrário, darei a vossa senhoria um par de asas
seguras e a liberdade de voar como águia, deslumbrando-se
com as belezas, as mesmas que fascinaram o eterno e
memorando Ícaro. Vossa senhoria poderá voar pelo azul do
firmamento, aproximar-se do sol, sobrevoar o mar Egeu, de
forma que, ao relatar as suas experiências em suas poesias,
versejará aquilo que os poetas do mundo jamais conseguiram.
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Mistério Sob as Luzes da Arcádia, Francisco Rodrigues Júnior
VOLTA PARA
Margem do lago. Dirceu está sentado na margem do lago. Ele abre os
olhos e demonstra-se um pouco verve. O vento sopra o rosto dele. Ele
põe-se de pé, assustado. A IMAGEM DE DIRCEU reflete no lago
como se estivesse refletindo em um grande espelho. Dirceu anda pela
margem do lago, olhando assustado para todos os lados.
DIRCEU
(fala por solilóquio)
A troco de que os deuses do Olimpio estariam ali, no meu
sonho a oferecer-me tantas promessas e prêmios?
Lago. Água azul e cristalina. Imagem de Dirceu sentado, refletida no
lago. Beira do lago. Dirceu sentado à beira do lago. Dirceu olha para a
água azul e cristalina do lago. Dirceu vê a imagem de Marília refletida no
lago. Ele põe-se de pé. A margem do lago transforma-se numa praia
deserta de um mar. Dirceu vê Marília na praia deserta. Marília está linda
e encantadora, vestida com um manto azul e com uma estrela brilhando
intensamente sobre a testa. Junto a Marília está um pequeno rebanho de
ovelhas alvas e puras. Marília olha para Dirceu com candura. Ela abraça
Dirceu pela cintura.
MARÍLIA
Tu seguirás o meu caminho. Lembra-te, nele há o
compromisso que firmaste comigo sob a bênção do padre.
Seguirás comigo e nós, em nome do amor, brilharemos no céu
servindo de orientação a todos os homens da terra.
Mar. Ondas altas e espumantes do mar. Praia deserta. Dirceu tenta
beijar Marília. Marília desaparece dos braços de Dirceu. Todo o
pequeno rebanho de ovelhas alvas e puras também desaparece Dirceu
olha para um lado e outra da praia deserta. Ele vê a casa de pau a pique.
Ele está em pé na margem
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