REVISTA BRASILEIRA DE
ESTUDOS
URBANOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
ISSN 1517-4115
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS
Publicação semestral da Anpur
Volume 13, número 2, novembro de 2011
EDITOR RESPONSÁVEL
Sarah Feldman (IAU-USP/São Carlos)
EDITOR ASSISTENTE
Renato Cymbalista (FAU-USP)
COMISSÃO EDITORIAL
Ana Fernandes (UFBA), Carlos Antonio Brandão (IM/UFRRJ), Luciana Correa do Lago (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP)
CONSELHO EDITORIAL
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ) In Memoriam, Ananya Roy (University of California, Berkeley), Ângela Lúcia de Araújo
Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile),
Clara Irazabal (Columbia University, Nova York), Emilio Pradilla Cobos (Universidad Autonoma Metropolitana, Unidad
Xochimilco, México), Ermínia Maricato (USP), Geraldo Magela Costa (UFMG), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG),
Henri Acselrad (UFRJ), João Rovati (UFRGS), Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC),
Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Martin Smolka (Lincoln Institute of Land Policy),
Nadia Somekh (Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves (UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Paul Claval (Université ParisIV, Sorbonne), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ), Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP),
Victor Ramiro Fernández (Universidad Nacional del Litoral, Argentina), Wrana Maria Panizzi (UFRGS)
COLABORADORES
Alisson Flávio Barbieri (Cedeplar/UFMG); Ana Amélia Silva (PUC/SP); Ana Clara Mourão Moura (Geografia/UFMG);
Andrea de Lacerda Pessôa Borde (PROURB/UFRJ); Ângela Maria Gordilho Souza (FAU/UFBA); Carlos Walter Porto Gonçalves
(POSGEO/UFF); Cláudio Egler (PPGG/UFRJ); Cristovão Fernandes Duarte (PROURB/UFRJ); Eber Pires Marzulo (PROPUR/UFGRS);
Edna Castro (NAEA/UFPA); Fábio Duarte de Araújo (PUC/Paraná); Fania Fridman IPPUR/UFRJ); Fernanda Furtado (EAU/UFF);
Guiomar Inês Germani (Geografia/UFBA); Helion Póvoa Neto (IPPUR/UFRJ); Ivaldo Lima (POSGEO/UFF); João Sette Whitaker
Ferreira (FAU/USP); José Aldemir de Oliveira (UEAM); Jupira Gomes de Mendonça (FAU/UFMG); Lia Osório Machado (PPGG/
UFRJ); Márcio Moraes Valença (FAU/UFRN); Maria Teresa Franco Ribeiro (UFBA); Monica Arroyo (Geografia/USP);
Nádia Somekh (FAU/Mackenzie); Orlando Alves Júnior (IPPUR/UFRJ); Regina Bienenstein (EAU/UFF); Sylvia Fischer (FAU/
UNB); Tomás de Albuquerque Lapa (MDU/UFPE); Vera Rezende (PPGAU/UFF); Wagner Costa Ribeiro (Geografia/USP)
SECRETARIA
Raquel Cerqueira
PROJETO GRÁFICO
João Baptista da Costa Aguiar
CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO
Ana Basaglia
REVISÃO
Mônica Santos, Priscila Risso
Indexada na Library of Congress (EUA)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.13, n.2,
2011. – Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor
responsável Sarah Feldman : A Associação, 2011.
v.
Semestral.
ISSN 1517-4115
O nº 1 foi publicado em maio de 1999.
1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional). II. Feldman, Sarah
711.4(05) CDU (2.Ed.)
711.405 CDD (21.Ed.)
UFBA
BC-2001-098
REVISTA BRASILEIRA DE
ESTUDOS
URBANOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
S
U
M
TERRITÓRIOS, REGIÕES, FRONTEIRAS
11 Desenvolvimento, Região e Poder Regional – A Visão de Celso Furtado – Hermes
Magalhães Tavares
27
Novas Determinações Sobre as
Questões Regional e Urbana Após 1980 –
Wilson Cano
55 Estudos Recentes Sobre a Rede Urbana
Brasileira – Diferenças e Complementaridades – Alessandra d’Ávila Vieira, Liliane Janine Nizzola, Luana Miranda Esper Kallas, Manuelita Falcão
Brito, Benny Schvasberg e Rodrigo Santos de Faria
71 Os Usos da Informação Estratégica sobre
o Território – A Empresa de Consultoria
PricewaterhouseCoopers e o Planejamento
Territorial – Sérgio Henrique de Oliveira Teixeira
e Adriana Maria Bernardes Silva
87 Desenhando Territórios – A Cartografia de Cândido Mendes e o “Nordeste”
Brasileiro do Século XIX – George Alexandre
Ferreira Dantas, Angela Lúcia Ferreira e Yuri Simonini
Á
R
I
O
101 Território, Região e Fronteira – Análise Geográfica Integrada da Fronteira
Brasil/Paraguai – Edson Belo Clemente de Souza
e Vanderléia Gemelli
117 O Programa Calha Norte – Redefinição das Políticas de Segurança e Defesa
nas Fronteiras Internacionais da Amazônia
Brasileira – Licio Caetano do Rego Monteiro
135 Cidades Médias na Amazônia Oriental – Das Novas Centralidades à Fragmentação do Território – Saint-Clair Cordeiro da
Trindade Júnior
153 Agronegócio e Novas Regionalizações
no Brasil – Denise Elias
RE­SE­NHAS
171 Capitalismo globalizado e recursos territoriais:
fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo, vários autores – por Humberto Miranda do Nascimento
174 A New Philosophy of Society – Assemblage Theory
and Social Complexity, de Manuel DeLanda – por
Henri Acselrad e Gustavo Bezerra
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associação nacional de pós-graduação e pesquisa
em planejamento urbano e regional – anpur
Gestão 2011-2013
presidente
Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ) In Memoriam
secretária executiva
Ester Limonad (POSGEO/UFF)
secretário adjunto
Benny Schvasberg (PPGAU/FAU-UnB)
diretores
Lilian Fessler Vaz (PROURB/UFRJ)
Maria Ângela de Almeida Souza (PPDU/UFPE)
María Mónica Arroyo (PPGGE/USP)
Paola Berenstein Jacques (PPGAU/FAU-UFBA)
conselho fiscal (titulares)
Cibele Saliba Rizek (PPGAU/USP-SC)
Elson Manoel Pereira (PPGG/UFSC)
Paulo Pereira de Gusmão (PPGG/UFRJ)
conselho fiscal (suplentes)
Ângelo Serpa (PPGG/UFBA)
Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior (NAEA/UFPA)
Apoio
Editorial
Esta edição se organiza a partir das discussões do XIV Encontro Nacional da
Anpur. As questões centrais propostas para reflexão neste Encontro foram a crescente
relevância da esfera mundial na determinação de projetos para o futuro do país, a
identificação e reflexão sobre os agentes econômicos e os atores políticos que hoje
redesenham o território brasileiro, e a natureza projetiva do planejamento, envolvendo diferentes escalas de ação, interesses e estratégias. Os nove textos que compõem
esta edição constituem um recorte destas questões e têm como foco conceitos, ações,
agentes e estratégias na configuração e no planejamento de diferentes escalas: dos
territórios, das regiões e das fronteiras. Reunindo o olhar de diferentes campos disciplinares, oferecem elementos para o debate sobre o estágio atual do desenvolvimento
e de políticas urbanas e regionais no Brasil contemporâneo.
Uma problematização do desenvolvimento urbano e regional brasileiro é realizada nos dois primeiros textos. Em Desenvolvimento, região e poder regional – A visão de
Celso Furtado, Hermes Magalhães Tavares parte da visão macro-econômica e macroespacial de Celso Furtado para discutir o desenvolvimento regional e estabelecer um
contraponto à abordagem hoje dominante, ancorada no desenvolvimento local. Em
Novas determinações sobre as questões regional e urbana após 1980, Wilson Cano analisa
os principais efeitos das mudanças no padrão de crescimento após 1980 e as profundas
alterações sobre as determinações mais gerais que agem sobre os processos de desenvolvimento regional e de urbanização brasileiros. Para desvendar e entender os processos
das últimas três décadas, Cano propõe uma Agenda de Pesquisa para o período.
A questão do território é abordada a partir dos instrumentos de representação
para compreensão da ação sobre o problema das secas no Nordeste, das ferramentas
de gestão governamental, econômica e social, e dos usos da informação por empresas
de consultoria para o planejamento territorial nos três textos subseqüentes. Em Desenhando territórios – A cartografia de Cândido Mendes e o ‘Nordeste’ brasileiro do século
XIX, George Dantas, Angela Lúcia Ferreira e Yuri Simonini recuperam o debate de
meados do século XIX, quando a articulação sistematizada do território da nação brasileira é formulada como ponto chave para a estruturação da economia e da sociedade
modernas. Discutem pertinências e limites do uso das fontes cartográficas como documentos que permitem compreender as ações sistematizadas sobre o território. Tendo
como referência o “Atlas do Imperio do Brazil”, organizado por Cândido Mendes de
Almeida, em 1868, mostram seu papel na formação da cultura técnica moderna no
Brasil e, mais especificamente, nos processos que levam à definição da região Nordeste.
Em Estudos recentes sobre a rede urbana brasileira – Diferenças e complementaridades,
de autoria de um grupo composto por professores e alunos da Universidade de Brasilia,
três estudos recentes de classificações da rede urbana brasileira são analisados. Os autores
mostram a complementaridade entre os mesmos, as contribuições e avanços de cada um,
assim como a sua incorporação às políticas públicas, inserindo-os no processo de construção da política urbana nacional. A produção, a circulação e o poder articulador das informações no território brasileiro são discutidos por Sérgio Henrique de Oliveira Teixeira e
Adriana Maria Bernardes Silva em Os usos da informação estratégica sobre o território – A
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empresa de consultoria PricewaterhouseCoopers e o planejamento territorial. Os autores mostram como a estruturação da rede urbana brasileira foi central para a ramificação no território nacional de empresas internacionais de consultoria que atuam em áreas consideradas
estratégicas. Através de um estudo de caso, desvendam a participação de uma empresa
no processo de reestruturação produtiva das corporações, no processo de planejamento e
privatização do território, assim como do aparelho estatal brasileiro na década de 1990.
A questão das fronteiras é abordada em Território, região e fronteira – Análise
geográfica integrada da fronteira Brasil/Paraguai, de Edson Belo Clemente de Souza e
Vanderléia Gemelli e em O Programa Calha Norte – Redefinição das políticas de segurança e defesa brasileira nas fronteiras internacionais da Amazônia brasileira, de Licio
Caetano do Rego Monteiro. O primeiro texto analisa a fronteira com o Paraguai
no plano das relações econômicas, culturais e geopolíticas com o Mercosul, como
território de contradições e sob o efeito de dinâmicas locais e globais. No segundo,
são abordadas as políticas de segurança e defesa do Estado brasileiro nas fronteiras
internacionais da Amazônia nas últimas duas décadas. A partir de deslocamentos do
Programa, o autor mostra que, também na área de segurança e defesa, a aplicação
das políticas dirigidas pelo governo central dependem de mediações em escala local e
regional. São estas mediações que legitimam e dão forma aos resultados obtidos.
Os dois últimos textos analisam processos de reorganização do território brasileiro.
Em Cidades médias na Amazônia oriental – Das novas centralidades à fragmentação do
território, Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior discute a centralidade política da
cidade média na Amazônia em um contexto de rearranjo espacial, emergência de novos
interesses regionais e de propostas de divisão política do território. Os impactos sobre a
(re)organização do território brasileiro inerentes ao agronegócio globalizado, a partir das
transformações na atividade agropecuária brasileira, são o foco de Denise Elias em Agronegócio e novas regionalizações no Brasil. A autora propõe a discussão da noção de Regiões
Produtivas Agrícolas, onde as grandes corporações concernentes às redes agroindustriais
são os principais agentes produtores do espaço agrário, urbano e regional.
Com as duas resenhas que completam este volume, à discussão dos processos em
curso no Brasil no atual contexto econômico, político e social, acrescenta-se um debate teórico. Capitalismo globalizado e recursos territoriais: fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo, que reúne trabalhos de grupos de pesquisa brasileiros dedicados ao estudo e
à geração de conhecimento aplicado sobre a relação capitalismo e território, é comentado
por Humberto Miranda do Nascimento. Se nos trabalhos deste livro, como aponta Nascimento, destacam-se o enfoque estruturalista e perspectivas teóricas críticas oriundas de
autores fundamentais do marxismo, em A New Philosophy of Society – Assemblage Theory
and Social Complexity, de Manuel DeLanda, editado em Londres, e analisado por Henri
Acselrad e Gustavo Bezerra, uma outra perspectiva teórica é colocada. Procurando escapar
do território das teorias sociais que se baseiam na dialética e no construtivismo DeLanda
desenvolve a aplicação da teoria do agenciamento de Gilles Deleuze à realidade social.
Não podemos deixar de registrar um agradecimento póstumo à querida colega
Ana Clara Torres. O debate expresso nos textos aqui publicados tiveram por suporte a
consistente e instigante formulação do Encontro realizado no Rio de Janeiro, em maio
de 2011, no qual Ana Clara presidiu a Comissão Organizadora Acadêmica e foi eleita
presidente da Anpur. Sua inquietação intelectual está presente nesta edição.
Sarah Feldman
Edi­tora res­pon­sá­vel
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Ana Clara Torres Ribeiro
Somente na liberdade de falarmos uns com os outros é que surge, totalmente objetivo e visível desde todos os lados, o mundo sobre o qual se fala. Viver num mundo real e falar uns com os outros sobre ele são basicamente a mesma coisa (...).
Liberdade – liberdade de partir e começar algo novo e inaudito, liberdade de interagir oralmente com muitos outros e
experimentar a diversidade que é a totalidade do mundo, é a substância e o significado de tudo que é político.
ARENDT, H. A promessa da política. Rio de Janeiro: Difel, 2008. p.185
A
comunidade científica brasileira perdeu uma de
suas mais brilhantes pensadoras. Além da perda
intelectual e política, a presença generosa e o espírito
livre de Ana Clara Torres Ribeiro deixam saudades em
todos que a conheciam dos muitos lugares por onde ela
circulou. Formada em Harmonia pelo Conservatório
Brasileiro de Música, concluiu a graduação em Ciências
Políticas e Sociais na PUC do Rio de Janeiro em 1967,
o Mestrado em Sociologia no IUPERJ em 1977 e o
Doutorado em Sociologia na USP em 1988. Sua trajetória profissional foi marcada pela liberdade de partir
e começar algo novo sempre que condições precárias e
instáveis de trabalho – como em episódios de repressão
sob o regime ditatorial – ou seu olhar curioso sobre o
mundo lhe impusessem.
Conheci Ana Clara no final dos anos 1970 no
decorrer de uma pesquisa sobre a expansão da fronteira na Amazônia, coordenada pela professora Bertha
Becker. Poucos anos depois estivemos juntas em outro
projeto coordenado pelo professor Milton Santos
sobre o meio técnico-científico e a urbanização no
Brasil. Nesses anos de convivência no Departamento
de Geografia da UFRJ, onde ela também dava aulas de
Sociologia Urbana no Programa de Pós-Graduação,
éramos sempre surpreendidos pela agudeza de sua
reflexão metodológica. Ana Clara tinha uma cabeça
que, somente muitos anos depois eu aprendi, veio da
música. Harmonia e estrutura lógica se combinavam
para pensar totalidades complexas.
Em entrevista concedida à Revista Geosul em
novembro de 2010, Ana Clara reconhecia ser uma
socióloga, mas não fechada no campo da sociologia.
Reconhecia igualmente que o trabalho no Lastro –
Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia e terri-
tório – fundado no Instituto de Planejamento Urbano
e Regional da UFRJ em 1998, ao lado de orientandos
vindos de campos disciplinares tão diversos como a
engenharia, a geografia, a arquitetura e urbanismo
e as ciências sociais estava ancorado metodologicamente na problemática social, integrando tempo e
espaço e buscando compreender novas formas de
ação social: quem é que está nas ruas? Como isso está
acontecendo? Por que aquilo acontece naquele lugar
e não em outro? Interagindo com vários campos do
conhecimento através da mediação da cultura, ela desenvolvia uma pedagogia que se insubordinava diante
das fronteiras disciplinares.
Nas duas últimas décadas Ana Clara participou
ativamente da vida da Anpur, integrando sua diretoria
entre 1991 e 1993, época em que Milton Santos esteve na presidência. Dez anos depois, de 2003 a 2005,
assumiu outra vez suas funções na Associação, sob a
presidência de Heloisa Soares de Moura Costa, e em
2009 retornou ao cargo, permanecendo nele até 2011,
período em que presidimos a Associação na UFSC. Em
maio desse mesmo ano, ela foi eleita presidente da
Anpur na Assembleia do XIV Enanpur, realizado no Rio
de Janeiro. Atenta à realidade do país, curiosa e inovadora na escuta de múltiplas vozes, Ana Clara questionou e problematizou a crise societária contemporânea
no âmbito do pensamento e da ação do planejamento
urbano e regional no Brasil. Instigadores e livres para
interagir com muitos outros, seus escritos nos ajudam
a experimentar e apreender a diversidade do mundo.
Leila Christina Dias
Professora associada da UFSC
Presidente da Anpur (2009-2001)
Territórios,
Regiões,
Fronteiras
DESENVOLVIMENTO, REGIÃO
E PODER REGIONAL
A Visão de Celso Furtado
Hermes Magalhães Tavares
R e ­s u ­m o
Um dos mais importantes economistas brasileiros e o de maior projeção fora
do Brasil, Celso Furtado, deixou uma obra significativa sobre a economia brasileira e latinoamericana. Ocupou-se ao mesmo tempo da questão regional, especialmente do Nordeste brasileiro. O nosso objetivo é tratar da evolução da economia brasileira sob o prisma do desenvolvimento
das regiões do país, na visão de Furtado. Esse tema foi abordado pelo autor, principalmente em
duas de suas obras, que focamos particularmente: ‘Formação econômica do Brasil’ e ‘Uma política para o desenvolvimento do Nordeste’ (GTDN). Buscamos na obra desse autor e em sua visão
macroeconômica e macroespacial uma contribuição para que se possa estabelecer um contraponto
com a abordagem hoje prevalecente, ancorada no desenvolvimento local.
P a ­l a ­v r a s - c h a ­v e
Celso Furtado; desenvolvimento regional; poder re-
gional; Nordeste; Brasil.
INTRODUÇÃO
Há cerca de duas ou três décadas, a problemática regional vem sendo tratada, nos países centrais, segundo a abordagem do desenvolvimento local, prática que se difundiu a um
número crescente de países, inclusive o Brasil. Tal difusão ocorreu de forma rápida e avassaladora, fazendo surgir também nessa área do conhecimento uma espécie de discurso único.
Observa-se, contudo, que mesmo nos países de origem do novo modelo surgiram
críticas, que podem ser sintetizadas em expressões como “nova ortodoxia”, “localismo”,
“distritismo” etc.
Sabemos que o Brasil é um exemplo clássico de uma sociedade capitalista de desenvolvimento marcadamente desigual, o que se agrava com as enormes dimensões territoriais do país. Pensar, porém, que em tal contexto os desequilíbrios regionais possam ser
enfrentados com políticas que privilegiem abordagens do tipo microespacial é algo pouco
compreensível.
Mas o fato de que a visão localista tenda a se tornar hegemônica neste país não constitui indicativo seguro de que a redução das desigualdades possa ser conseguida a médio
ou longo prazo. Nesses termos, trazer de volta as ideias de Celso Furtado, cuja visão foi
sempre macroespacial, macroeconômica, parece bastante oportuno. O tratamento da
questão regional brasileira por esse autor surge a partir do estudo da evolução da economia brasileira em seu tempo histórico, do início da colonização até meados da década de
1950. E esse estudo foi instruído por uma ampla discussão a respeito do desenvolvimento
capitalista em sua estruturação global.
Este artigo está estruturado em três capítulos, cujas denominações dão uma
ideia aproximada de seus respectivos conteúdos. São eles, sequencialmente: “O tema
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do desenvolvimento econômico”, “A formação histórica dos espaços regionais” e “O
poder regional”.
O TEMA DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Sem dúvida o nome de Celso Furtado está ligado ao da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), de cuja teorização sofreu influência e para a qual
também contribuiu. De fato, a sua visão de desenvolvimento parte da de Raúl Prebisch,
primeiro dirigente da Cepal, mas, como veremos, mais à frente, apresenta conotação própria. Neste tópico, fazemos uma síntese das concepções de ambos separadamente.
A Relação Centro-Periferia
O entendimento de que o desenvolvimento econômico resulta da acumulação de
capital e que este é fruto do aumento da produtividade do trabalho constitui um legado
da economia clássica (Lange, 1966). Entretanto, preocupado com o possível estancamento da acumulação (estágio estacionário), Ricardo propôs que o sistema econômico
mundial se pautasse pela divisão internacional do trabalho, o que passou a acontecer
desde o terceiro decênio do século XIX. Essa política seria vantajosa não apenas para a
Inglaterra, mas também para todos os países que participassem do sistema econômico
mundial. O ponto de partida de Prebisch foi a crítica aos resultados da aplicação da
teoria ricardiana.
Decorrido mais de um século de vigência desse princípio nas relações econômicas
internacionais, Raúl Prebisch afirma, no Estudio económico de América Latina 1949, que
aquele postulado estava em desacordo com os dados da realidade. Escrito em tom de
manifesto, como observa Furtado, o Estudio começava por dizer:
La realidad está destruyendo en La América Latina aquel pretérito esquema de la división
internacional del trabajo que, después de haber adquirido gran vigor en el siglo XIX, seguía
prevaleciendo doctrinariamente hasta muy avanzado el presente.
Acrescentava em outra parte:
El movimiento se inicia en La Grande Bretaña, sigue con distintos grados de intensidad en
el continente europeo, adquiere un impulso extraordinario en Estados Unidos y abarca finalmente al Japón, cuando este país se empeña en asimilar rápidamente los modos occidentales
de producir. Fueron formándose así los grandes centros industriales del mundo, en torno
a los cuales, la periferia del nuevo sistema, vasta y heterogénea, tomaba escasa parte en el
mejoramiento de la productividad. (Cepal, 1949, apud Cepal, 1998, p.73). [Grifos nossos]
Prebisch busca comprovar empiricamente sua hipótese por meio das estatísticas de
exportação e importação da Inglaterra com os países exportadores de bens primários, que
mostravam que os termos de intercâmbio evoluíam desfavoravelmente aos países periféricos. Segundo essa óptica, os preços dos produtos industriais não decresciam relativamente
devido a uma maior organização dos trabalhadores e aos controles de preços pelas formas
de produção em monopólios nos países do centro.
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A estrutura centro-periferia não podia se alterar se os países da periferia não pudessem se industrializar. Industrialização e planejamento estatal passaram a se constituir nos
componentes principais da agenda da Cepal durante cerca de dez ou doze anos.
A Contribuição de Furtado
Em texto escrito em 1972, por solicitação da Unesco, para uma publicação dos perfis
de uma seleção de cientistas sociais do mundo todo, Celso Furtado citou autores e correntes de pensamento que influenciaram na sua formação. Nenhuma referência foi feita
então à obra de Prebisch, lacuna que, entretanto, deixa de existir na Fantasia organizada,
autobiografia intelectual de Furtado publicada inicialmente em 1985.
Nessa obra, Celso Furtado sintetiza os dois textos de 1949, fundadores da doutrina
da Cepal, e descreve o ambiente em que eles surgiram e foram divulgados. É também o
momento em que o autor integra-se à equipe do órgão recém-criado. Ele foi um dos primeiros a perceber a importância do estudo de Prebisch, substrato do pensamento cepalino
em sua origem, divulgado no Estudio económico de América Latina – 1949, cuja força
explicativa provocaria uma verdadeira reviravolta na compreensão dos problemas econômicos dessa região, segundo o próprio Furtado, e que poderia mudar a face da América
Latina, caso fosse aceito pelos governos dessa região (Furtado, 1985).
Compreende-se assim o empenho de Furtado em traduzir o Estudio e divulgá-lo
entre instituições influentes no Brasil, como a Fundação Getulio Vargas e a Confederação
Nacional da Indústria, esta representada por Rômulo Almeida, Evaldo Correia Lima e
Heitor Lima Rocha. Por este motivo, o Brasil acabou por funcionar, inicialmente, como
verdadeira caixa de ressonância das ideias cepalinas.
Dois anos depois do início da Cepal, durante os preparativos para a reunião de São
José da Costa Rica, havia fortes indícios de que os Estados Unidos vetariam a continuidade desse órgão. Furtado fez gestões junto ao governo do presidente Vargas, no sentido
de que este votasse pela permanência do órgão. Em suas memórias, Celso Furtado diz
que a posição favorável assumida por Vargas, em defesa da Cepal, foi fundamental para
a sua manutenção, pois o voto do Brasil contribuiu para que vários outros países latinoamericanos assumissem idêntica posição (Furtado, 1985).
Voltemos à questão teórica no contexto em que se estruturava o arcabouço teórico
da Cepal, centrado nas ideias de Prebisch e depois enriquecido por outros autores, entre
os quais Celso Furtado. Este se refere a uma diferença entre a abordagem de Prebisch e a
sua. Ele parte do pressuposto de que o atraso dos países periféricos não podia se explicar
pela degradação dos termos de intercâmbio, mas sim, pela condição colonial.
No caso do Brasil, apesar de a Independência ter ocorrido em 1822, o país continua
por mais de um século como mero exportador de produtos primários. Isso o leva a realizar
um estudo aprofundado da economia brasileira desde o início da colonização. Para Furtado,
somente na década de 1930, com a intensificação da produção industrial, é que termina a
sua condição colonial. Diz o autor que há uma diferença de métodos (abordagens) empregados. O método de Prebisch seria sincrônico, pois estuda o sistema centro-periferia em dois
cortes históricos: o primeiro, caracterizado pela hegemonia da Inglaterra e o segundo pela hegemonia dos Estados Unidos. Tendo estudado a economia brasileira em sua evolução histórica, a sua abordagem, empregada na Formação econômica do Brasil, seria, então, diacrônica.
Apesar desse reparo, em vários momentos, Furtado reconheceu o significado e a importância da contribuição teórica de Prebisch para o estudo do desenvolvimento como na
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seguinte passagem: “Nenhuma ideia teve tanto significado para a percepção do problema
do subdesenvolvimento quanto a da estrutura centro-periferia.” (Furtado, 1994, p.26).
Ou ainda:
A visão centro-periferia foi a primeira desenvolvida pelos economistas que implicava em
globalizar; e ao globalizarmos, percebíamos a desigualdade fundamental entre o centro e a
periferia. A lógica do centro era uma, a da periferia era outra. Isso nos armava para formular
uma teoria do imperialismo, que não necessitava desse nome, o qual afugentava por sua
conotação marxista (Furtado, 1997, p.27).
A FORMAÇÃO HISTÓRICA DOS ESPAÇOS REGIONAIS
A Formação econômica do Brasil (1959) é, sem dúvida, um grande clássico das Ciências Sociais no Brasil. As pesquisas econômica e histórica ali se conjugam para chegar
a um resultado que é o melhor quadro sintético da evolução econômica do Brasil. Mas
se na construção dessa panorâmica o tempo é fundamental, o elemento espaço não é
irrelevante. Basta dizer que a palavra região ou termos equivalentes aparecem no texto
em número incontável de vezes. A visão metodológica do autor teve aí sua completa
aplicação. E é a partir das “manchas econômicas”, futuras economias regionais, em seus
diversos momentos, que ele busca compreender a formação da economia brasileira em
uma perspectiva histórica que vai do começo da colonização portuguesa até a primeira
metade do século XIX.
O longo processo em que se dá o surgimento, a expansão e a decadência da economia açucareira do Nordeste é estudado nos primeiros capítulos da Formação econômica do
Brasil. Nela são distinguidos dois subsistemas: o de produção do açúcar e o de criatório,
que interagem. A região produtora de açúcar atinge o auge entre o final do século XVI e
o início do século XVII. Segue-se um período de decadência decorrente da concorrência
da cana-de-açúcar que passou a ser cultivada nas Antilhas.
O empobrecimento da colônia e da metrópole portuguesas, provocado pelo declínio
da economia do açúcar, leva à intensificação da busca de metais preciosos, que resultará
finalmente na descoberta do ouro de aluvião em Minas Gerais. A economia da região
aurífera, que se expande por várias décadas, estabelece articulações com as regiões Sul e
Nordeste, na compra de gado para a alimentação, e de muares para o transporte de carga.
O efeito de atração da economia mineira estendeu-se não apenas ao Sul e ao Nordeste,
mas também para São Paulo e para o Centro-Oeste. Ela tornou “interdependentes as diferentes regiões, especializadas, umas na criação, outras na engorda e distribuição, e outras
constituindo os principais mercados consumidores.” (Furtado, 1973, p.97).
Segue-se um longo período de três quartos de século de estagnação econômica. O
autor nos fala das economias regionais que se formam, de seus ciclos expansivos e também de seus largos períodos de declínio e letargia. Com o café, inicia-se um novo ciclo
econômico de maior duração e com maiores impactos econômicos sobre o conjunto do
país. Com a introdução do trabalho assalariado, a economia cafeeira de São Paulo amplia
o mercado interno e contribui para a industrialização. À altura, Furtado distingue no país
as seguintes regiões no final do século XIX: a região do açúcar e do algodão (Nordeste) e
a economia de subsistência a ela agregada; a região Sul, fundamentalmente de economia
de subsistência, a região cafeeira e a região amazônica.
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A região cafeeira em seu processo de expansão vai consolidar a articulação de todas as
regiões em torno dela e abrir caminho para a futura integração dos sistemas econômicos
regionais. Esse quadro se mantém nas três primeiras décadas do século XX.
A crise da economia cafeeira (crise do setor exportador), exacerbada pela depressão
mundial dos anos 30, e os mecanismos estatais de proteção das mesmas deram ensejo para
que o mercado interno se transformasse na principal fonte de dinamismo da economia
brasileira, substituindo o setor externo.
A explicação encontrada por Furtado para as mudanças que na década de 1930
impulsionam a industrialização no país tornou-se clássica. Sigamos o seu raciocínio. Segundo ele, a crise mundial marca o colapso da economia colonial no Brasil, fato que vai
se configurar efetivamente a médio e longo prazo. De imediato o governo revolucionário,
que assume o poder no Brasil em 1930, cuidou de garantir os interesses dos cafeicultores,
ao dar continuidade à política de defesa do café, o que o levou muito além da simples
estocagem do produto, passando a destruir parcela considerável da produção invendável
(80 milhões de sacas de 60 quilos em menos de dez anos). E o que parecia mais estranho
era que, na impossibilidade de recorrer ao financiamento externo, em decorrência da
crise, o governo Vargas lançara mão da emissão monetária, o que acabou por estimular a
retomada da economia. Esse paradoxo é assim explicado por Furtado:
À primeira vista parece um absurdo colher o produto para destruí-lo. Contudo, situações
como essa se repetem todos os dias nas economias de mercado. Para induzirem o produtor a
não colher, os preços teriam que baixar muito mais, particularmente se se tem em conta que
os efeitos da baixa de preços eram parcialmente anulados pela depreciação da moeda. Ora,
como o que se tinha em vista era evitar que continuasse a baixa de preços, compreende-se
que se retirasse do mercado parte do café colhido para destruí-lo. Obtinha-se, dessa forma, o
equilíbrio entre a oferta e a procura a nível mais elevado de preços (Furtado, 1973, p.199).
Diz, em outra parte, o autor:
O que importa ter em conta é que o valor do produto que se destruía era muito inferior ao
montante da renda que se criava. Estávamos, em verdade, construindo as famosas pirâmides
que anos depois preconizaria Keynes. Dessa forma, a política de defesa do setor cafeeiro nos
anos da grande depressão concretiza-se num verdadeiro programa de fomento da renda nacional. Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de maior amplitude
que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industrializados (Furtado,
1973, p.203).
A partir de 1933, a economia brasileira começa a se recuperar; nesse momento as
atividades mais dinâmicas deixam de ser as do setor exportador, que são substituídas por
aquelas voltadas para o mercado interno. E o impulso maior deriva das indústrias que
substituem bens que antes se importavam, ou seja, destinavam-se a atender uma demanda
preexistente. Esse momento, para Furtado, é significativo porque marca, de fato, o fim
da dependência colonial.
Voltemos à questão regional que estamos tratando neste item. O último capítulo
da Formação econômica brasileira traça um quadro das disparidades regionais no país na
primeira metade do século XX. O ponto de partida ali é o desenvolvimento contraditório
decorrente da industrialização que, naturalmente, ocorre na região cafeeira, transformada,
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por isso, em núcleo dinâmico, em torno do qual as demais regiões se articulam. O conjunto da economia se beneficia pelo fato de que esse núcleo se constitui; mas o reverso da
medalha são as disparidades regionais.
Furtado ressalta empiricamente as disparidades regionais por meio de dados da
produção industrial. As indústrias surgiram mais ou menos ao mesmo tempo em diversas
regiões do país, em meados do século XIX. Mas o censo de 1920 já mostra uma grande
concentração industrial em São Paulo, que continuará aumentando nas décadas seguintes.
Entre 1948 e 1955 a participação de São Paulo no PIB industrial passa de 39,6% para
45,3% enquanto a do Nordeste (da Bahia ao Ceará), no mesmo período, cai de 16,3%
para 9,6%. Por sua vez, a renda per capita de São Paulo era 4,7 vezes mais alta que a do
Nordeste (Furtado, 1968).
O núcleo cafeeiro-industrial passou a articular as demais regiões do país em torno de
si. A integração que se daria em tempo relativamente curto, segundo Furtado, implicaria
na ruptura das formas arcaicas de produção em certas regiões. Mas ele vislumbra também
outra hipótese em que a integração a partir daquele núcleo pudesse significar “o aproveitamento mais racional de recursos e fatores no conjunto da economia nacional”.
Sem dúvida, o último capítulo, o de número 36, da Formação econômica do Brasil
faz a ligação dessa obra ao conteúdo de Uma política de desenvolvimento econômico para o
Nordeste, escrito pouco tempo depois.
O Nordeste Como a Questão Regional Brasileira
Desde o final do século XIX, o Nordeste aparece como a questão regional brasileira,
por excelência. Sob o impacto da grande seca de 1877-79, o governo central (imperial, à
época) colocou em prática algumas medidas no campo da engenharia para acumular água
na região semiárida. Em 1909, já na República, iniciou-se uma política do Governo Federal destinada a construir açudes e estradas, com a intenção de resolver o que se considerava
então como o principal problema nordestino: a seca. No decênio de 1950, o equívoco
dessa política, a sua apropriação pelos grandes proprietários de terras e a malversação de
recursos públicos conduziram à necessidade de rediscussão do problema do Nordeste e de
suas soluções, no âmbito de uma nova política.
O sucesso norte-americano da Tennessee Valley Authority (TVA), a vitrine do New
Deal, de Roosevelt, tornou-se no Brasil tema bastante discutido no Congresso Nacional,
na segunda metade da década de 1940, em torno de projetos que aplicariam aquele
modelo às bacias dos rios Amazonas e São Francisco. Deles resultou a criação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) e da Companhia
de Valorização do São Francisco (CVSF), que, todavia, não passaram de arremedos do
modelo norte-americano.
Na década de 1950, ocorreram no Nordeste novos fatos que criaram condições propícias a novas ideias sobre a questão nordestina, e que levaram o Governo Federal a modificar a sua política para aquela região. Em seu segundo governo, Vargas, orientado por sua
assessoria econômica, criou o Banco do Nordeste Brasileiro (BNB) e acelerou a construção
da Hidrelétrica de Paulo Afonso. Na mesma assessoria começou-se a discutir um plano
econômico para o Nordeste e um estudo de Rômulo de Almeida concluíra que o atraso e a
pobreza da região não se deviam a fatores climáticos (a falta de chuvas) e sim à organização
econômica regional inadequada. Trabalhos realizados em 1953 pelo consultor da ONU
Hans Singer reforçaram o argumento de Rômulo de Almeida. Singer (1962) abordou
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ainda outros pontos como o fato de que a política de desenvolvimento econômico para
o país como um todo estava contribuindo para o empobrecimento relativo do Nordeste,
bem como a falta de uma política de incentivos financeiros e fiscais para a região, prática
que já era adotada em alguns países europeus. A tudo isso, se somaria a execução do Plano
de Metas do governo Kubitschek, iniciado em 1956, cujos investimentos se concentraram
nas regiões mais industrializadas do país, sem contar os enormes gastos com a construção
de Brasília, a chamada meta-síntese do Plano.
As organizações da sociedade civil, sobretudo no meio rural, cresceram rapidamente
no mesmo período e pressionaram o Governo Federal por medidas que iam da destinação
de investimentos públicos compensatórios para a região à reforma agrária.
É nesse contexto que as ideias de Celso Furtado sobre o Nordeste tornam-se conhecidas e vão ganhar força política ao serem adotadas, em 1959, pelo Presidente Kubitschek,
que buscava bases mais consistentes no sentido de uma nova ação governamental naquela
região, podendo assim responder às demandas sociais que se colocavam fortemente durante o seu governo. Essas ideias foram sistematizadas no relatório já mencionado, que
aborda vários temas como os desequilíbrios regionais e o seu agravamento devido, de um
lado, à política do Governo Federal para expandir a industrialização do país e, de outro,
à inadequação da estrutura agrária.
Os Desequilíbrios Regionais e o Nordeste
O estudo da economia brasileira sob o ângulo dos desequilíbrios regionais já aparece
no texto de Furtado, A perspectiva da economia brasileira, de 1957. Ali diz o autor que o
Brasil era “um imenso contínuo territorial, dotado de unidade política e cultural, mas descontínuo e heterogêneo do ponto de vista econômico”. Dois terços do território nacional
de 8,5 milhões de quilômetros quadrados seriam um imenso vazio demográfico (pouco
mais de 7 milhões de habitantes) e econômico. No terço restante do território ele identifica
dois subsistemas econômicos: o nordestino (da Bahia ao Ceará), com 18 milhões de habitantes e 1,3 milhões de km², e o sistema sulino (de Minas Gerais ao Rio Grande do Sul).
O sistema nordestino é caracterizado como uma economia de renda per capita de
100 dólares anuais, não integrada, composta de “manchas” econômicas que se articulavam escassamente, sendo a atividade comercial (capital mercantil) dominante. O sistema
sulino, com uma renda per capita de 340 dólares anuais, apesar de ainda possuir áreas de
economia de subsistência, encontrava-se em processo relativamente avançado de integração econômica.
Uma programação para desenvolver o Nordeste deveria levar em conta o fato de que
essa região poderia contar com a expansão do mercado do Sul do país em franca expansão. “No caso do Nordeste, observa-se a circunstância favorável de essa região ter acesso a
um mercado relativamente grande e em expansão: o Sul do país.” (Furtado, 1957, p.16).
O PODER REGIONAL
Há, portanto, um conjunto de elaborações que se expressam nas duas obras, a de
1957 e a de 1959, que se projetam no relatório do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) apresentado ao Presidente Kubitschek em março de
1959. Esse documento é, na verdade, um diagnóstico detalhado e bastante articulado da
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economia do Nordeste, acompanhado de um esboço de plano de ação. Portanto, uma
proposta de planejamento para aquela parte do país. Registre-se uma vez mais a importância do planejamento econômico estatal no contexto do pós-guerra e particularmente no
Brasil, cuja experiência nesse terreno foi das mais significativas. O conhecimento teórico
de Celso Furtado sobre o tema e a sua permanência de alguns anos na Europa devastada
pela guerra e em reconstrução certamente foram fundamentais para o resultado que seria
obtido. Quanto ao primeiro aspecto, é clara no relatório a influência do conceito de desenvolvimento na linha cepalina, bem como o enfoque dos processos sociais cumulativos
de Myrdal (1972), que, segundo este, eram responsáveis pelos desequilíbrios regionais.
O livro de Myrdal publicado a partir de conferências pronunciadas no Cairo em 1955
tratava de questões do desenvolvimento capitalista que haviam se tornado muito evidentes
com a depressão de 1930. Quanto ao segundo aspecto, na Europa do imediato pós-guerra,
as desigualdades sociais tanto quanto as desigualdades regionais constituíam questões
candentes. De uma forma geral, os governos europeus viram no planejamento o caminho
para solucionar essas questões. Experiências como a do Plano Marshall, para a Europa, e
o Planejamento Indicativo francês tiveram grande êxito.
As discussões em torno dos desequilíbrios regionais expressos na forma de grandes
concentrações econômicas nas metrópoles e empobrecimento de outras áreas, ao se tornarem conhecidas de parcelas crescentes de população, contribuíram para que os governos
adotassem políticas de desenvolvimento regional em escala nacional (Inglaterra, França e
Itália, sobretudo). Entre 1946 e 1948, Celso Furtado viveu de perto essa realidade. Em
1947, foi publicado o livro de François Gravier, Paris et le désert français, a partir do qual
houve um grande debate sobre os desequilíbrios regionais na França, que se desdobrou
por alguns anos e contribuiu para os primeiros passos do aménagement du territoire.
Agregue-se a isso o fato de que organização e planejamento foram sempre campos do
conhecimento que despertaram interesse particular para o nosso autor, desde a época de
seu curso de Direito e de Técnico de Administração do Departamento Administrativo do
Serviço Público (DASP).
No Brasil, as disparidades regionais aumentaram significativamente com a industrialização e não se poderia afirmar que elas diminuiriam espontaneamente com o passar
do tempo. Na contramão dos pressupostos liberais, Myrdal (1972) afirmava que os desequilíbrios econômicos tendiam a aumentar sob o efeito do “laissez faire”. No GTDN,
lê-se que as desigualdades econômicas muito acentuadas entre duas regiões (o Nordeste e
o Centro-Sul) corriam o risco de “institucionalizar-se”.
Outra ideia-chave derivava da tese cepalina da degradação dos termos de intercâmbio, que, aplicada à relação Nordeste/Centro-Sul, permitia concluir que a primeira região
tivera uma perda econômica importante, que o documento chega a estimar em 24 milhões
de dólares no período de 1948 a 1953.
A análise da região nordestina, por comparação com a região mais industrializada
do Centro-Sul, indicava, em primeiro lugar, que a sua renda per capita era de 100 dólares
anuais, correspondente a 1/3 da do Centro-Sul. O Nordeste aparecia, assim, como a mais
extensa e populosa área de pobreza do hemisfério ocidental. Daí a gravidade do problema
nordestino no contexto nacional.
Avançando na análise, o relatório indicava que o setor exportador, que até então
impulsionara a economia nordestina, enfrentava cada vez mais dificuldades em continuar
a cumprir tal papel, e deduzia que a industrialização constituía a única alternativa viável
de desenvolvimento para a região.
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Um dos capítulos de maior força do estudo é o que trata dos aspectos socioeconômicos das secas. Observa o documento que na perspectiva da economia da região nordestina,
“a seca é uma crise de produção de magnitude limitada”. Contudo, ela assume enorme
dimensão porque atinge precisamente a parte da população que depende da “economia
de subsistência”. Diz o relatório:
Analisando-se os efeitos da seca nas três camadas da economia das zonas semiáridas – a da
agricultura de subsistência, a do algodão mocó e a da criação – vemos que a gravidade do
fenômeno e seu prolongamento em crise social se devem ao fato de seus efeitos incidirem de
forma concentrada na primeira das referidas camadas. Em algumas zonas típicas, a seca acarretou a perda praticamente total da agricultura de subsistência, sendo menores seus efeitos,
porém, na produção de algodão (GTDN, 1959, p.66-7).
O relatório detém-se no significado da economia de subsistência: “a renda real de
grande parte da população encontra [nessa economia] a sua fonte primária, e as outras
atividades, na forma como estão organizadas, pressupõem a existência de mão de obra
barata”. Entende-se desse modo porque interessa ao fazendeiro dispor, na fazenda, do
máximo de trabalhadores.
Partindo do pressuposto de que era necessário evitar que os efeitos mais graves das
secas se concentrassem na camada da população menos resistente do sistema econômico,
coloca-se a ideia do deslocamento da fronteira agrícola nordestina. Assim, o relatório
propunha a colonização de terras úmidas em outros locais, para onde deveriam ser orientadas parcelas de camponesas do Semiárido, proposta essa que já se encontrava em outros
estudiosos do Nordeste, particularmente em Guimarães Duque e Ignácio Rangel. Essa
estratégia se tornaria viável com a incorporação do Estado do Maranhão, onde havia terras
públicas na pré-hileia amazônica, e o Estado do Piauí, à região-plano do novo órgão federal a ser criado. Surgia ali a ideia do projeto de colonização do Maranhão. A transferência
de nordestinos para outras regiões, espontânea ou estimulada por governos (notadamente
a migração para a Amazônia, na forma de uma política à época do Império) sempre foi
uma questão sensível no Nordeste. Assim, uma nova política econômica para a região que
propusesse a retirada de população encontraria fortes resistências. Daí a ideia (estratégica)
de incluir os Estados do Maranhão e do Piauí na região-plano da Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), o que efetivamente iria ser feito a partir da lei
que criou esse órgão em 1959.
A segunda estratégia agrícola consistia na irrigação das bacias dos açudes, mediante
uma política que possibilitasse a desapropriação daquelas áreas. A primeira grande tarefa
da nova política, ainda na fase do Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (Codeno),
foi a elaboração do projeto de lei de irrigação. A terceira estratégia era a reestruturação da
área de monocultura da cana-de-açúcar, na Zona da Mata, destinando-a, prioritariamente, à produção diversificada de alimentos.
A indústria regional, em sua quase totalidade, de bens de consumo não duráveis,
sobretudo têxteis e de alimentos, deveria ser modernizada, para ter condições de competir
com a moderna indústria do Centro-Sul. Ao Estado caberia investir em infraestrutura
(energia elétrica, transporte e saneamento) e em indústrias de base, como a siderúrgica.
Além do financiamento através de bancos do Estado, seriam criados mecanismos de estímulos fiscais e financeiros, nos moldes dos praticados nos países desenvolvidos e mesmo
no Centro-Sul do país.
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Tratava-se, portanto, de uma política de modernização, melhor dizendo, de desenvolvimento do capitalismo no Nordeste agrário e pobre. O movimento camponês organizado (Ligas Camponesas) discordava da política para o meio rural, que considerava conservadora, mas não se opunha à proposta de industrialização. A oposição concentrava-se
de fato no lado dos poderosos interesses agrários da região e na força de que dispunham
junto à imprensa regional e ao Congresso Nacional. O jornalista e escritor Antônio
Callado, em famosas reportagens do final dos anos 1950 para o jornal Correio da Manhã,
descreveu de forma vibrante o processo popularmente denominado “indústria das secas”,
isto é, as práticas espúrias de apropriação de recursos públicos destinados a ajudar os atingidos pelas secas (Callado, 1959).
Foi nesse contexto que, em 1959, Juscelino Kubitschek com a aprovação do Congresso Nacional, instituiu a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene)
para colocar em prática a política prevista no GTDN.
O plano foi bem aceito pelas principais forças sociais que, nos últimos anos da década de 1950, reivindicavam um tratamento diferenciado para o Nordeste, com as restrições
que já foram mencionadas. Em uma época em que se estava longe de ouvir falar em planejamento participativo, é indiscutível que o projeto da nova política de desenvolvimento
do Nordeste contou com grande apoio popular, o que concorreu em larga medida para
que essa proposta não fosse derrotada desde o início, diante da enorme pressão da direita,
majoritária no Congresso Nacional. Esse apoio ocorreu em vários momentos e situações,
como em uma greve que paralisou Recife por um dia, para cobrar do Congresso a aprovação do Primeiro Plano Diretor da Sudene. Uma manifestação popular desse tipo, com
aquele fim, seria um fato inédito no mundo, segundo Hirschman (1963).
O nosso propósito não é reexaminar a política de desenvolvimento do Nordeste
adotada a partir do GTDN, em sua totalidade e em seus diferentes momentos – tema, de
resto, bastante visitado na literatura especializada. O que pretendemos é colocar em evidência alguns pontos de maior destaque dessa política e que guardam relação direta com
as questões que abordamos neste texto.
A região-plano da Sudene – Há cerca de duas décadas, como já visto, as noções
predominantes de região privilegiam as escalas micro e mesorregional. A influência
neoliberal também aí está presente (“small is beautiful”). Vale lembrar que em Celso
Furtado a preocupação é sempre com a escala macrorregional; as grandes regiões
brasileiras e como essas se relacionam. Ou seja, o nível mais elevado da classificação de
Vidal de la Blache, que é adequada aos países de dimensão continental, como o Brasil, à
Rússia (Sibéria, Urais etc.) ou aos Estados Unidos (Apalaches, Colorado etc.).
No GTDN, Furtado estuda a dinâmica do Nordeste em relação ao Centro-Sul. De
acordo com as regionalizações adotadas no Brasil desde o início da década de 1940, o Nordeste compreendia os Estados da Bahia ao Ceará. Por um motivo estratégico (evitar o êxodo
de nordestinos para outras áreas do país), a região-plano da Sudene passou a incluir também
o Piauí e o Maranhão. Ela compreende, portanto, os seguintes estados: Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão. Já o CentroSul não corresponde a uma das macrorregiões definidas pelos geógrafos e economistas. É
uma noção um tanto vaga. Ela já aparece, embora apenas mencionada rapidamente, em
Caio Prado Júnior, em seu livro História econômica do Brasil, publicado pela primeira vez
em 1942. No GTDN, o Centro-Sul toma o lugar do Sul das obras anteriores de Furtado.
Desse modo, supõe-se uma divisão da economia do país em apenas dois subsistemas, o do
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Nordeste e o do Centro-Sul, abstração possível graças ao argumento de Furtado de que
dois terços do território nacional constituíam um vazio econômico e demográfico. Concretamente, o Centro-Sul do GTDN “compreende os Estados litorâneos do Espírito Santo
ao Rio Grande do Sul e os Estados mediterrâneos (Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás)”.
Observando bem, esse tratamento da dinâmica regional do país é próximo da abordagem dualista, nos moldes dos “dois Brasis”. A diferença é que enquanto os dualistas
viam o Nordeste como a região atrasada, tradicional e que, por isso, dificultava uma
maior expansão do Centro-Sul, industrial e moderno, Furtado defendia uma política de
desenvolvimento do Nordeste, para superar o atraso e a pobreza dessa região, e também
com o argumento de que o agravamento dos desequilíbrios regionais colocaria em risco
a unidade nacional. Esse conceito é central na visão do autor e explica também porque,
tendo em conta as dimensões territoriais do Brasil, fica difícil pensar a questão da unidade
nacional que não seja levando em conta a grande região.
O Conselho Deliberativo – A instituição do Conselho Deliberativo da Sudene foi,
sem dúvida, uma figura original na administração pública federal brasileira, pois apontava
na direção do fortalecimento dos Estados através de uma organização regional. A melhor
explicação desse instrumento é a seguinte:
O recorte da federação brasileira prejudica o Nordeste, que é dividido em pedaços relativamente pequenos. Estado importante é Rio Grande do Sul, é Minas Gerais, é São Paulo, é o
Rio de Janeiro. Portanto, era preciso compensar esse aspecto perverso da Constituição, mas
como uma reforma constitucional era coisa impossível de se fazer no Brasil, apelamos para
um truque, que consistiu em criar um mecanismo de discussão e votação entre o governo
federal e os governos estaduais da região: foi o Conselho Deliberativo da Sudene, que reúne
nove governadores para harmonizar pontos de vista sobre o que fazer na região. Assim, se
reivindica conjuntamente e quando se vai ao Parlamento e ao Presidente da República, o
Nordeste tem uma vontade só (Furtado, 2001, p.23).
Incentivos fiscais – A instituição de incentivos financeiros e fiscais, destinados às
empresas privadas para aplicação em regiões atrasadas, teve início durante a crise de 1930,
na Inglaterra, estendendo-se a praticamente todos os países centrais. No Brasil, tomou-se
por base, principalmente, o modelo italiano destinado ao Mezzogiorno, com adaptações
ao caso do Nordeste. Com o fim da isenção cambial, no governo Jânio Quadros (1961)
criou-se o sistema de incentivos que permitia às empresas de todo país deixarem de pagar
50% do Imposto de Renda para aplicá-los em projetos de investimentos no Nordeste. Isso
constituiu uma verdadeira inovação, graças à qual foi possível aumentar significativamente
a produção industrial no Nordeste (Moreira, 1982).
Medidas à la TVA – Duas outras medidas, inspiradas na TVA, foram também importantes no sentido de atribuir um maior poder de atuação e liderança e devem ser também
mencionadas. A primeira diz respeito à subordinação da nova autarquia diretamente ao
Presidente da República. A segunda foi a localização da sede do órgão no Nordeste (em
Recife) e não na capital da República.
Planejamento regional e participação – O modelo de administração pública levada
ao Nordeste com a implantação da Sudene, em 1959, pode ser considerado singular no
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Brasil dos anos 50/60. Para isso contribuíram as experiências de Furtado como Técnico
de Administração do DASP e como funcionário por muitos anos da Cepal/ONU. Rigor no
uso da coisa pública e formação de equipe de alto nível em um campo pouco desenvolvido
no Brasil foram, entre outros fatores, características que tornaram a experiência da Sudene
de suas origens conhecida em todo o Brasil. Há um depoimento de Francisco de Oliveira,
em 1975, no Congresso Nacional, que merece registro:
Um vasto sopro de esperança varreu a região. Uma convergência nunca antes vista de classes
e setores sociais, desde o campesinato, mobilizou-se para o que pensávamos ser a tarefa do
século, a mais ingente e espinhosa de quantas reclamavam solução para a construção de uma
Nação harmônica, sem gritantes disparidades que se constatavam e que, infelizmente, estes
20 anos não conseguiram desfazer. Minha geração jogou-se por inteiro naquele empreendimento, e tentamos converter nossa fraqueza em força: despreparados para tão grande cometimento, substituímos o conhecimento científico, de que não dispúnhamos, pelo ardor, pelo
vigor e, por que não dizê-lo, pelo desprendimento. Com o inteiro apoio da população, vale à
pena lembrar, sem que isso seja uma vanglória, que a Sudene inovava completamente o estilo
de desempenho dos poderes públicos, não apenas na escala regional, mas até mesmo medida
pela escala nacional [...] (Oliveira, 1978, apud Tavares, 2004, p.118).
Naturalmente, falamos da chamada Sudene “original”, de 1959-64, com sobrevida até os primeiros anos da década seguinte. Repercussão dessa experiência encontra-se
ainda nos primeiros anos da década de 1970, como se nota na fala do historiador Francisco Iglesias:
[...] a Sudene representa força significativa: é elemento renovador por pretender constituir
administração racional; era preciso recrutar gente para o trabalho, mas como não se pretendia
apenas fazer uma repartição a mais, sobre o obsoleto sistema administrativo, era indispensável
formar pessoal técnico. A essa tarefa Celso Furtado se entregou, organizando cursos para os
quais obteve direções eminentemente técnicas, especializadas, o que não lhe foi difícil pelos
muitos anos que passou na Cepal. Armou-se no Nordeste, notadamente na capital de Pernambuco, um sistema de pessoal qualificado que pode vir a representar papel importante no
país (Iglesias, 1971, p.67).
Esse é um quadro sucinto daquilo que foi o planejamento do Nordeste liderado pela
Sudene, em seus cinco primeiros anos.
Descentralização Territorial do Poder
As avaliações da política de desenvolvimento para o Nordeste, segundo o modelo
Sudene, quase sem exceção, pecam por não levar em conta as duas mudanças ocorridas
durante a ditadura militar: a primeira, que restringiu tal política a praticamente coordenar
a industrialização através dos incentivos fiscais e financeiros; a segunda, reduzindo fortemente os recursos dos incentivos fiscais, destinando parte importante deles para outras
finalidades (construção da rodovia Transamazônica, os chamados perímetros irrigados,
turismo, reflorestamento, Embraer etc.).
Nas décadas de 1980 e 1990, o sistema de planejamento regional do Nordeste
entrou em franco declínio. Inversamente à redução dos recursos dos incentivos fiscais,
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cresceram de forma considerável as práticas lesivas ao erário público, tanto na Sudene
quanto na Sudam. Nisso baseou-se Fernando Henrique Cardoso para extinguir os dois
órgãos em 2001.
O Presidente Luís Inácio Lula da Silva assinou ato que recriou as duas instituições
em julho de 2003, cumprindo promessa feita publicamente nesse sentido. O seu governo
tentou construir uma política regional de âmbito nacional. Mas os resultados foram bastante tímidos, do mesmo modo que a sua visibilidade junto ao público.
Os motivos principais para o ocorrido são: a) os dois ministros que ocuparam a pasta
do Ministério da Integração Nacional, respectivamente Ciro Gomes e Geddel Vieira,
foram nomeados exclusivamente por motivos políticos; b) o modelo adotado, que divide
o país em micro e mesorregiões, inspira-se no modelo da União Europeia; c) esta subdivide a Europa dos países-membros em mais de uma centena de regiões, muitas das quais
com áreas reduzidíssimas, e conta por outro lado com um enorme volume de recursos,
enquanto os recursos da política brasileira para os mesmos fins são escassos; d) a escolha,
pelo governo, da escala microrregional explica-se pela inspiração na política da União
Europeia, mas também por motivações políticas do governo, para o qual a opção pelo
local se torna bem mais cômoda.
Esse último ponto remete a um tema muito discutido na área de planejamento urbano e regional, no Brasil nos últimos anos, a saber, o tema das escalas. A visão de Celso
Furtado sobre região e poder regional, pouco explorada em nossa literatura especializada,
pode servir de contraponto valioso com a abordagem localista atual, filha dileta do neoliberalismo nas pesquisas atuais sobre território.
Os textos de Furtado de 1959 a 1964 sugerem dois tipos de preocupação: a) o receio
de que o crescimento excessivo das disparidades regionais colocasse em risco a unidade
nacional; b) o sistema federativo brasileiro levara ao aumento crescente do poder da União
em relação ao dos Estados; c) os Estados nordestinos em particular tornaram-se econômica e politicamente frágeis, sendo por isso reduzido o seu poder de barganha junto ao
Governo Federal.
Na montagem da estrutura da Sudene, em 1959, o Conselho Deliberativo tornou-se
peça-chave. Reunidos nesse órgão responsável pela política econômica e social da região,
os governadores, atuando de forma unificada, levariam as propostas econômicas ao governo central, em geral sob a forma de projetos aprovados coletivamente.
Entre 1959 e 1964, Furtado referiu-se muitas vezes à importância do Conselho Deliberativo, ao seu significado político (ou até estratégico). Mas é na Fantasia desfeita (1986)
que ele explicita, de fato, o objetivo de longo prazo, visado já em 1959: a instituição da
região como instância de poder territorial. Em reunião com Kubitschek, para explicarlhe o conteúdo da nova política, cujo objetivo era administrar os recursos da união por
consenso entre as autoridades federais e estaduais, e face ao interesse despertado pelo
interlocutor, disse Furtado: “Presidente [...] vamos criar um embrião de uma instância
regional de governo.” (Furtado, 1997, p.88).
O dispositivo efetivamente criado foi, como vimos, o Conselho Deliberativo da
Sudene. Este na visão de Furtado, ao mesmo tempo em que fortalecia os governadores
de Estado e difundia um espírito regional, libertaria “a aplicação dos recursos federais das
politicagens locais”.
Nos últimos anos da década de 1990, Furtado volta a esse tema. No opúsculo de
O longo amanhecer (1997), ele reafirma que, quando da criação da Sudene, discutira-se a
necessidade de instâncias decisórias entre os níveis de poder estadual e nacional. Em face
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da fraqueza dos Estados, somente tal instância “poderia exercer uma ação promocional
efetiva no campo do desenvolvimento econômico” (Furtado, 1999, p.55). Refere-se à
necessidade de uma regionalização do poder central, o qual não seria apenas delegado,
mas passaria a encarnar uma efetiva vontade regional. Na mesma página, ele diz de forma
categórica: “No caso de uma reformulação constitucional, não será fora de propósito
discutir a possibilidade de uma esfera regional de poder”. Para ele, esse poder regional, ao
mesmo tempo em que pressionaria os atuais Estados, buscaria “corrigir os aspectos mais
negativos das desigualdades demográficas e territoriais existentes” (Furtado, 1999, p.55).
Furtado refere-se também com frequência à identidade em seu aspecto econômico
e, sobretudo cultural, como elemento organizador de uma região. Em decorrência de seu
passado histórico, a identidade cultural marca fortemente o Nordeste, mais do que as
regiões Norte e Centro-Oeste, cujas formações são mais recentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hermes Magalhães Tavares é professor associado
do IPPUR/UFRJ; pesquisador
do CNPq. Email: smtavares
@uol.com.br
Ar­ti­go re­ce­bi­do em junho de
2011 e apro­va­do pa­ra pu­
bli­ca­ção em setembro de
2011.
Neste texto, buscamos recolocar a questão do desenvolvimento regional, na perspectiva macro (econômica e espacial). Com essa preocupação recorremos à obra de Celso
Furtado, autor que desenvolveu essa abordagem no Brasil, do ponto de vista teórico e
prático. O seu conceito teórico foi sendo construído à medida que avançou a sua pesquisa da evolução histórica da economia brasileira. Seguimos esse processo tal como ele se
mostra na Formação econômica do Brasil, obra publicada em 1959. As conclusões desse
livro servem de ligação para o estudo dos desequilíbrios espaciais do país nos anos 50 e a
política de desenvolvimento do Nordeste proposta no conhecido estudo Uma política de
desenvolvimento para o Nordeste (GTDN), também de autoria de Furtado.
Consciente dos problemas que acentuados desequilíbrios econômicos espaciais
podem colocar para a nação, Furtado sempre entendeu que a região, no Brasil, deve ser
pensada em primeiro lugar em sua dimensão ampla (a grande região). Essa posição foi
mantida pelo autor até o final. Nos últimos anos, ele procurou explicitar a sua defesa da
instituição de uma instância de poder regional, ideia colocada já em 1959, mas na época
de forma indireta, implícita.
Essa última proposição que, à primeira vista pode ser tida como irrealista, é, entretanto, considerada pelo autor como necessária para dar estabilidade ao sistema federativo
brasileiro, que convive com fortes contrastes econômicos entre os Estados da Federação.
Ao reavivar a lembrança das ideias de Celso Furtado no campo do desenvolvimento
regional, pensamos também em contribuir para a discussão desse tema, em um momento
em que tende a se firmar, entre nós, abordagem que se preocupa apenas com o recorte
microespacial (e também microeconômico), como se as dimensões dos países europeus
fossem equivalentes às do Brasil.
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IPPUR, 2004.
Abstract
One of the most important Brazilian economists and the most
proeminent outside the country, Celso Furtado left an expressive work about Brazilian and
Latin-American economy. He also emphasized the study of Regional issues, particularly
on the Northeast of Brazil. This paper adresses the relationship between the Brazilian
economic evolution and the development of the country’s different regions according to
Furtado’s ideas. This subject was approached by the author, especially in two of his works:
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“Formação econômica do Brasil (Brazilian economic Formation) and “Uma Política para
o desenvolvimento do Nordeste” (A policy for the Northeast development). We sought in his
works and macroeconomic and macrospatial’s vision a contribution to establish a counterpoint
to the local development current approach.
Keywords
Celso Furtado; regional development; regional power; Northeastern
Brazil.
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NOVAS DETERMINAÇÕES SOBRE
AS QUESTÕES REGIONAL E
URBANA APÓS 1980*
Wilson Cano
R e ­s u ­m o
Entre 1930 e 1980 as principais determinações sobre nossa urbanização,
integração do mercado nacional e desenvolvimento regional decorreram basicamente da industrialização, da política macroeconômica e de políticas de desenvolvimento regional. Após 1980,
com a “Década perdida” e as políticas neoliberais, aquelas determinações foram em grande
parte modificadas pelas novas formas de nossa inserção externa, pelo câmbio apreciado e juro
alto, e pela Guerra Fiscal. Assim, além dos determinantes anteriores – enfraquecidos –, há os
novos, de sentido nacional, sendo alguns específicos a cada região. Em que pese as mudanças,
os efeitos nocivos de nossa forma de crescer e de nossa urbanização se transmitiram a todo o
território nacional. O artigo se encerra com uma proposta de Agenda de Pesquisa sobre os
temas regional e urbano para o período 1980-2010, com intuito de entender melhor aquelas
determinações e efeitos desses processos.
P a ­l a ­v r a s - c h a ­v e
Questão regional; urbanização; novos determinantes;
guerra fiscal; fronteira agro-mineral; inserção externa.
Este texto visa um exame e reflexão sobre os principais efeitos das mudanças
mais relevantes sofridas pelo padrão de crescimento vigente após 1980, que causaram
profundas alterações sobre as determinações mais gerais que agem sobre os processos
de desenvolvimento regional e de urbanização brasileiros. Esse período de análise se
situa entre 1980, com a “Crise da Dívida” e a posterior adoção de políticas neoliberais,
estendendo-se até 2010.
No primeiro tópico, e para comparação com o restante do texto, farei breve síntese
sobre as anteriores determinações, as ocorridas entre 1930 e 1980, destacando, contudo o transcurso da década de 1970. No segundo tópico o objetivo central é desenhar
e justificar uma agenda de pesquisa para o período 1980-2010, indagando as novas
determinações mais gerais daqueles processos. Para tanto, se fará um esforço teórico e
metodológico que possa dar conta da realidade do período. Desde já tenho consciência
do tamanho da tarefa e que sua realização só será possível com um grande esforço coletivo de pesquisa.
Obviamente, ao longo de todo esse processo, a questão ambiental ganhou relevância
no debate nacional, face à degradação que ocorre, principalmente, no período pós 1980,
seja pela extensão do desmatamento ou pela contaminação das principais bacias hidrográficas, seja pelas várias formas degradantes que se multiplicam no processo de urbanização
(lixo, água, esgoto, ar, paisagem, enchentes etc.). Contudo, dada a dimensão e escopo deste artigo e, principalmente, a complexidade envolvida nesse tema, não tratarei do referido
processo, embora o entenda como uma das questões prioritárias a examinar nos temas da
questão regional e da urbanização.
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* Agradeço os comentários
e sugestões de meus colegas do IE, Professores Fernando M. Mota e Humberto
M. Nascimento, que me permitiram esclarecer melhor
algumas questões cruciais
que envolvem o momento
atual.
N O V A S
1 Para este tópico, apóiome basicamente em Cano
(2007a, b).
D E T E R M I N A Ç Õ E S
AS PRINCIPAIS DETERMINAÇÕES NO PADRÃO
ANTERIOR (1930 A 1970 E 1970 A 1980)1
A ruptura política e econômica desencadeada pela “Crise de 29” e pela Revolução
de 1930, fez a economia do Brasil transitar do antigo modelo “primário exportador” (de
crescimento para fora), para o da industrialização (crescimento para dentro), mudando o
“centro dinâmico da economia”, e alterando as bases do antigo padrão de acumulação,
que passa a ter no investimento autônomo sua principal determinação.
Isto reforçou a internalização de tomada de decisões, notadamente na órbita do
Estado, que implantou, gradativamente, uma Política Nacional de Desenvolvimento, ampliando sobremodo suas funções de estímulo, indução e ação diretas, com forte ampliação
do gasto e do investimento públicos.
A despeito da Depressão e da II Guerra, o novo padrão acelerou o crescimento do
PIB, cuja taxa média anual, entre 1930 e 1970, atingiu 6%, ou seja, bem acima dos 4,3%
da média 1900-1930. O PIB da indústria de transformação cresceu ainda mais, entre 1930
e 1970, a 8,2% com o que a participação desse setor no PIB saltou, de cerca de 12,5%
para 29,3% em 1970.
A política econômica reforçou sobremodo o inexorável processo de integração do
mercado nacional, que a industrialização desencadearia. Para isso muito colaboraram,
além de outras medidas, os investimentos públicos em infraestrutura, que estreitaram a
enorme dispersão territorial do país. Os investimentos industriais, públicos e privados,
além de elevar a capacidade produtiva do setor, diversificaram-na, com a implantação da
indústria de bens de produção e de consumo durável. A expansão regional, no período,
caracterizou-se por uma forma de complementaridade com a economia de São Paulo,
intensificando-se bastante o comércio inter-regional do país.
Embora tenha ocorrido enorme concentração da produção da indústria de transformação em São Paulo – que passa de 40,7% para 58,2% do total nacional entre 1939 e
1970 –, isso não causou qualquer perda absoluta a nenhuma das demais regiões do país.
Com efeito, enquanto esse setor cresceu, entre 1939 e 1970, à taxa média nacional de
8,1%, a de São Paulo foi de 9,3% e a do agregado Brasil-SP, de 6,9%. Mesmo o Nordeste,
a região que mais perdeu participação relativa, obteve a elevada taxa de 5,9%.
A produção agropecuária do país também cresceu satisfatoriamente, em torno de
3,7% anuais, intensificando-se também as trocas de várias regiões com São Paulo. Os
destaques maiores para esse setor, no período, foram:
• a profunda transformação, modernização e diversificação do agro paulista, reduzindo
a cafeicultura e expandindo, notadamente, a cana de açúcar e o algodão, que inibiriam, a longo prazo, essas culturas no NE. Isto provocou um grande fluxo de saída de
pequenos produtores e trabalhadores rurais que migrariam, fundamentalmente, para
a agricultura do Paraná e Centro-Oeste, e em parte, para a economia urbana de SP,
que crescia com a industrialização. A partir da “Crise de 29”, o agro paulista atraiu
importantes fluxos de trabalhadores rurais de Minas Gerais e do Nordeste. Entre 1940
e 1970, migraram para o estado de São Paulo, 2,5 milhões de brasileiros não paulistas
(81% dos quais, de MG e do NE), consolidando o Estado como principal receptor da
emigração nacional;
• a colonização do norte do Paraná e do oeste de Santa Catarina, que se estende até a
década de 1960, com base em agropecuária diversificada e caracterizada pela pequena
e média propriedade;
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C A N O
• fato semelhante, mas de menor impacto, ocorreu com o sul de Goiás e ainda em menor
escala no sul do atual Mato Grosso do Sul, para o que contribuiu a política federal da
“Marcha para o Oeste” e mais tarde a construção de Brasília e da Belém-Brasília.
Esses novos espaços – no CO, no PR e em SC – que constituíram uma “fronteira
exuberante”, com produção eficiente e melhor distribuição de renda, receberam grandes
fluxos migratórios de habitantes do NE, de MG, do Rio Grande do Sul e de São Paulo:
os que se dirigiram ao Sul somaram (em 1.000 pessoas), respectivamente, cerca de 400,
500, 450 e 700; os fluxos em direção ao CO foram ainda modestos, predominando os de
paulistas (cerca de 200).
• a grande ocupação no Maranhão e no norte de Goías (atual norte do Tocantins), e
mais ao fim deste período, no sudeste do Pará, que se pode caracterizar como uma
“fronteira de pobres”, dada a questão fundiária local, a precariedade de sua agricultura
e as perversas relações sociais de produção. Este espaço constituiu, claramente, uma
perversa manifestação do fenômeno da agricultura itinerante de que falou Furtado
(1972). Para esta fronteira acorreram grandes fluxos de nordestinos não residentes (cerca de 400.000) no MA. Com a continuidade da itinerância dessa agricultura, as levas
de nordestinos (maranhenses ou não) migraram também para o atual norte do TO e o
sudeste do PA; foram cerca de 100.000 pessoas.
Há que ter presente, no caso da agropecuária, que, à medida que ela se moderniza
e cresce, embora expulse parte de seu emprego direto, gera outros empregos indiretos
urbanos, seja na agroindustrialização ou na indústria que lhe fornece bens de produção,
seja em várias atividades produtoras de serviços. É isto que explica, por exemplo, a notável
rede urbana gerada pela cafeicultura paulista antes de 1929, e a do norte do PR, durante a
“colonização” agropecuária que ali se deu entre 1925 e fins da década de 1960.2 O oposto
disso se deu na ocupação do MA, do antigo norte de GO (atual TO) e do sudeste do PA,
no período posterior à década de 1940.
Em termos regionais, a demografia sofreu forte influência dos fluxos migratórios, cujo
total nacional passa de 2,7 milhões em 1940 para 11,9 milhões em 1970.3 Entre 1940 e
1970 (em 1.000 pessoas), as entradas acumuladas em São Paulo passaram de 726 para
3.185; no Paraná, passaram de 214 para 2.467 e no Rio de Janeiro, de 602 para 2009.
A população brasileira, que entre 1920 e 1940 crescera à modesta taxa média anual
de 1,5%, com as transformações econômicas e sociais que ocorreram após 1930, acelera
seu crescimento, para 2,3% em 1940-1950 e para cerca de 3% em 1950-1970. Mas a
população urbana cresceria muito mais: 3,8% em 1949-1950, 5,3% em 1950-1960 e
5,1% em 1960-1970.
Durante todo esse período, as taxas nacionais foram ligeiramente superadas pelas
paulistas. Contudo, a urbanização gerada pela cafeicultura em São Paulo – e sua notável
rede urbana – era relativamente maior do que a nacional: foi acelerada com o aumento
de seus fluxos imigratórios e com parte de seu próprio êxodo rural, com o que, em 1940,
as taxas de urbanização do Brasil e de São Paulo eram respectivamente 31% e 44%, distância que aumenta em 1970, para 56% e 80%. Cabe ainda apontar que, se excluirmos
São Paulo e o Rio de Janeiro, o restante do Brasil apresentaria, naqueles anos, as taxas de
25% e 45% apenas.
A estratificação das cidades, por tamanho, também é útil para examinarmos essa evolução. Em 1920, o país tinha apenas uma cidade com mais de um milhão de habitantes,
o Rio de Janeiro, e uma com mais de 500 mil, São Paulo, que só em 1940 figuraria com
mais de um milhão. Em meados dos anos 1950, São Paulo (e o aglomerado que viria a
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2 Sobre as redes urbanas do
Brasil até a década de 1950,
ver o excelente trabalho de
Geiger (1963).
3 Cifras calculadas com eliminação das migrações entre as UFs das regiões NO,
NE e CO.
N O V A S
D E T E R M I N A Ç Õ E S
ser sua região metropolitana) ultrapassavam o Rio de Janeiro e sua futura RM. Na escala
de 500 mil, só em 1950 teríamos uma – Recife –; em 1960 seriam cinco e seis em 1970,
com o surgimento de Brasília.
Se baixada a escala para cidades entre 250.000 e 500.000, também seria escasso seu
número: apenas Salvador em 1920; mais duas (Recife e Porto Alegre) em 1940; mas em
1970 já figuravam 14, das quais 9 sediadas em SP e no RJ. Tínhamos em 1920, na escala
de 100.000 a 250.000, 10 cidades (3 em São Paulo); em 1940, 18 (2 em São Paulo e 4
no Rio de Janeiro) e em 1970 elas seriam 66 (17 em São Paulo e 5 no Rio de Janeiro).
Assim, a maior concentração urbana no período se restringe a São Paulo, Rio de
Janeiro, Brasília e a algumas capitais estaduais. Nova Iguaçu, na baixada fluminense, município agrícola até meados da II Guerra e depois, predominantemente, cidade-dormitório
do Rio de Janeiro, fazia parte desse grupo, com seus 727.000 habitantes.
Contudo, o que predomina em todos os estados brasileiros é a grande presença de
cidades menores, notadamente abaixo de 100.000 habitantes. Mas isso, longe de representar uma identidade, oculta, na verdade, uma dura realidade de diferenciação regional
de crescimento, renda, ocupação e melhor nível de vida.
O exame da estrutura do emprego mostra o mesmo processo: em 1940, Brasil e São
Paulo empregavam, respectivamente, 67% e 58% da População Economicamente Ativa
(PEA), nas atividades primárias, 13% e 17% na indústria e os serviços ocupavam apenas
20% e 25%. Em 1970, os mesmos dados eram de 44% e 20%, 18% e 31% e 38% e
49%, mostrando o grande distanciamento entre aquelas estruturas ocupacionais. Contudo, o agregado Brasil – (São Paulo + Rio de Janeiro) em 1970 tinha ainda a seguinte
estrutura: 57% em primários, 12,5% no setor industrial e apenas 30,5% em serviços. O
país estava se transformando e urbanizando em “alta velocidade”, contudo, as reduzidas
bases periféricas de industrialização e urbanização impediam que a evolução regional
fosse tão avançada quanto a que se dava em São Paulo.
Concluindo este subperíodo, cabe dizer que, a despeito da velocidade do processo
de urbanização, notadamente nos estados mais industrializados, há que entendê-lo como de uma urbanização suportável, dada a existência de mecanismos de assentamento
e acomodação das camadas de baixa renda, em termos de possibilidade de uma periferização ainda próxima aos centros urbanos, acesso a lotes baratos ou ocupação de áreas
até então não disputadas com o capital mercantil, como morros, alagados e outras áreas
ruins ou inapropriadas.
Por outro lado, e a despeito dessa velocidade de crescimento, como o emprego urbano cresceu aceleradamente, a fiscalidade estadual e municipal também cresceu, não na
mesma proporção da expansão urbana, mas mesmo que de forma ainda parcial elevou o
gasto público urbano e a oferta de serviços sociais, amenizando o drama social que em
um futuro próximo surgiria.
4 Como base deste tópico
temos Cano (2008).
A Década de 19704
Contudo, a velocidade e o adensamento urbano – notadamente em São Paulo e no
Rio de Janeiro –, amplificaram as tensões sociais, desencadeando, no plano político, uma
crescente massa de reivindicações que se consubstanciaram nas chamadas “Reformas de
Base” (agrária, urbana, tributária, financeira, educacional, da saúde e outras), com fortes
conteúdos de justiça social e nacionalismo. Essa efervescência, entretanto, atemorizou suas
conservadoras elites, conduzindo esse caudal para o golpe militar de abril de 1964.
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C A N O
A ditadura fez algumas das reformas, não como as sonhávamos, e sim com um estrito
sentido capitalista praticamente desprovido do social. Destaquemos as duas principais
reformas econômicas:
• a tributária, que modernizou a estrutura fiscal ao mesmo tempo em que centralizou,
na órbita do governo federal, uma massa crescente de recursos diminuindo a participação dos estados e municípios, o que afetaria sobremodo seus potenciais de gastos e,
portanto, de atendimento das crescentes demandas sociais;
• a financeira, instituindo a correção monetária, ampliando os canais de financiamento
para os segmentos de bens de consumo duráveis e de capital e para a modernização da
agricultura de exportação.
Essas duas reformas ampliaram muito a capacidade federal de gasto e investimento
público, com o que a política macroeconômica, a partir de 1966-67 pode retomar e
acelerar o crescimento e a diversificação da economia. As novas bases de financiamento
de médio e longo prazos deram maior apoio ao investimento e à produção privada. O
investimento total, como porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB), atingiria no auge
do período (1970-74) cerca de 25%.
As políticas sociais foram em certa medida negligenciadas, principalmente, a do salário mínimo, que continuaria a sofrer maiores quedas reais. A agrária foi transformada em
um simulacro, para, justamente, não fazê-la. Exemplo notável foi a construção da Rodovia
Transamazônica, instrumento para agilizar as migrações nordestinas rumo ao Noroeste,
com o que se esvaziava a pressão fundiária no Nordeste. A política urbana limitou-se às
novas formas de financiamento de habitação e saneamento básico (Poupança, Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço e Banco Nacional de Habitação), com o que a política
habitacional expandiu sobremodo a construção residencial, e isto acomodava o problema
do emprego e cooptava politicamente a população beneficiada com esse programa.
A questão regional, para a qual havia sido implantada em 1960 uma Política de
Desenvolvimento Regional com incentivos econômicos para o Nordeste, teve, a partir
de 1967, seus recursos direcionados também para o Noroeste e, em seguida, dispersados
pelo surgimento de novos programas, a maior parte dos quais para todo o território nacional, como os investimentos em turismo, pesca, reflorestamento, mercado de capitais e
indústria aeronáutica.
A intensidade do crescimento entre 1967 e 1980 “compensou” esses constrangimentos: a queda do salário mínimo foi atenuada pelo excepcional crescimento do emprego
urbano, que elevou o salário médio e dispersou a estrutura salarial. A dispersão dos recursos financeiros regionais do Noroeste e Nordeste foi compensada pela desconcentração
regional do investimento, pois o aprofundamento e diversificação imprimidos à industrialização obrigavam a uma utilização mais intensa das bases regionais de recursos naturais
(terras, água e minérios).5 Isso também obrigou a uma forte desconcentração regional da
infraestrutura energética, de comunicações e de transporte.
A taxa média anual do PIB entre 1970-1980 foi de 8,7% para o Brasil (8,2% para
São Paulo). A agropecuária cresceu a 3,8%, alta, se confrontada com a demográfica, que
foi de 2,5%. Os serviços, impulsionados pela industrialização, cresceram a 8% e a indústria de transformação a 9% (8,1% em São Paulo e 10,2% no agregado Brasil-São Paulo).
A participação da periferia nacional aumentou a desconcentração industrial, passando de 0,8% para 2,4% no Noroeste, basicamente explicada pela implantação da Zona
Franca de Manaus; o Nordeste saltou de 5,7% para 8,1%, recuperando parte das perdas
sofridas no período anterior; Minas Gerais, foi de 6,5% para 6,7% e o Espírito Santo,
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31
5 Implantação ou expansão
de celulose e papel, metais
não ferrosos, química, álcool de cana, petroquímica
e outros.
N O V A S
D E T E R M I N A Ç Õ E S
de 0,5% para 0,9%, foram os principais beneficiados. Os maiores perdedores foram São
Paulo (cai de 58,1% para 53,4%) e o Rio de Janeiro (de 15,7% para 10,6%). A desconcentração industrial em São Paulo também teve um vetor interno: a participação da
Região Metropolitana de São Paulo no total nacional cai de 43,5% para 33,6% enquanto
a do interior sobe de 14,7% para 19,8%, desenvolvendo, também nesse espaço estadual,
a urbanização e a produção de serviços.
A modernização e expansão da agropecuária se concentraram mais em São Paulo e
região Sul, e em menor escala no Centro-Oeste. Seus principais produtos foram a soja, o
trigo, a laranja, a cana-de-açúcar e as carnes. Ressalte-se que a expansão no Paraná deu-se
nas áreas em que antes predominava a pequena e média propriedade, transformando as estruturas produtivas e da propriedade, resultando na expulsão, nessa década, de paranaenses
(predominantemente rurais), do equivalente a 22,8% de sua população de 1970. A ocupação do Noroeste se iniciava, notadamente no Pará, em pecuária e cultivos tradicionais.
Os fluxos migratórios inter-regionais saltaram de 12 milhões de pessoas em 1970
para 16,5 milhões em 1980. As maiores saídas continuaram a ser de nordestinos (2,3
milhões), paranaenses (1,6 milhões) e mineiros (800 mil). A principal área receptora foi
São Paulo, com o recorde de 2,8 milhões de pessoas (cerca de 1,5 de nordestinos, 0,6 de
mineiros e 0,55 de paranaenses, além de outros). O Rio de Janeiro diminuía sua recepção,
para cerca de 500 mil, mas aumentava sua própria expulsão, para cerca de 180 mil.
A fronteira Noroeste receberia 650 mil pessoas (260 mil do Nordeste; de Minas
Gerais, Paraná e Centro-Oeste-DF, 90 mil de cada e outros). A do Centro-Oeste-Distrito
Federal, recebeu 500 mil: 180 mil do Paraná; do Nordeste e de São Paulo, 100 mil de
cada, além de outros. Brasília continuou sendo importante receptor, acusando entrada de
380 mil pessoas.
A taxa média anual de crescimento demográfico caíra de 2,9% nos anos 1960 para
2,5% nos 1970, mas o acréscimo absoluto da população foi maior: (23 milhões contra
26). A da população rural, que já fora pequena nos anos 1960 (0,7%), torna-se negativa
nos 1970 (-0,5%). A taxa de crescimento da população urbana também caiu nos mesmos
períodos de 5,2% para 4,4%, mas o acréscimo absoluto foi ainda maior: 28 milhões nos
anos 1970 contra 21 nos anos 1960.
A taxa de urbanização para o total do Brasil sobe de 55,9 % em 1970 para 67,3%
em 1980, mas enquanto as áreas mais industrializadas (SP e RJ) apresentavam cifras que
ultrapassaram os 80% para cerca de 90%; o NO (51,7%), NE (50,6%) e CO-DF (pouco
mais de 60%) eram as áreas menos urbanizadas do país.
A aceleração do crescimento industrial, induzindo fortemente a expansão diversificada dos serviços fez com que, pela primeira vez na história recente do país, a taxa média
anual de crescimento do emprego da PEA não agrícola (6,16%, contra 4,62% na década
anterior) superasse a taxa de crescimento da população urbana (4,4% contra 5,2% da
década anterior). Isso certamente representou um enorme amortecedor de tensões sociais
e possibilitou ganhos reais nos salários médios, dada a grande pressão no mercado urbano
de trabalho.
A estrutura da PEA empregada mostra o positivo efeito da industrialização: para o
Brasil, o emprego agrícola cai de 44% para 30%, o industrial sobe de 18% para 25% e o
de serviços, de 38% para 44,5%; para SP, as cifras correspondentes foram de 20% para
11,5%, de 31% para 39% e de 49% para 49,5%. O agregado Brasil (SP+RJ) mostrava
ainda elevado emprego agrícola (41,3%) e baixo terciário (apenas 38,7%) embora tivesse
duplicado a participação do industrial que passa de 12,5% a 20%.
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W I L S O N
C A N O
Em termos de tamanho de cidades, a urbanização do período concentrou-se um pouco mais, embora com menor intensidade. Na década de 1960, a população total cresceu
33%, mas as 10 maiores cidades (7 delas com mais de 500 mil habitantes) cresceram em
média 54%, e o conjunto das demais cresceu apenas 29%, as quais perfaziam 84% da
população. Na década de 1970, enquanto a população total cresceu 27,8%, as 11 maiores
cidades (aquelas 10 mais Brasília), cresceram em média 39,5% e a média das demais 25%,
perfazendo agora 79% da população total.
De 2 cidades com mais de 1 milhão de habitantes em 1960, passamos a contar com
5 em 1970 e com 10 em 1980. Esse movimento intensificou ainda a conurbação com municípios vizinhos, que seria o processo de transmissão intermunicipal de todas as mazelas
e efeitos nocivos dessa descontrolada urbanização (a urbanização explosiva). O aumento
dessas aglomerações urbanas ensejou sua transformação em regiões metropolitanas, institucionalizadas a partir da década de 1970, mas sem contar com fiscalidade própria. Em
1970, as 9 RMs (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Fortaleza,
Belém, Porto Alegre e Curitiba) perfaziam 23,7 milhões de habitantes e em 1980, 34,4
milhões ou o equivalente a 28,8% da população total do país.
A urbanização acelerada gerou uma série de efeitos complexos. A periferização de
populações de média e baixa renda foi a tônica desse processo, para o que muito contribuiu a própria política habitacional do regime militar. Esse efeito estimulou o aumento da
especulação imobiliária, encareceu sobremodo os custos da infraestrutura urbana e piorou
a qualidade de vida urbana.6 Além disso, o elevado encarecimento da moradia e a omissão e corrupção política dos órgãos públicos amplificou também a ocupação de espaços
impróprios para assentamentos humanos, como morros, encostas, alagadiços e outros.
Por outro lado, conurbação, aglomeração e metropolização superdimensionaram
vários problemas de ordem municipal e de solução local, multiplicando seus tamanhos e
custos, tornando-os, assim, problemas regionais, estaduais ou mesmo federais. Isso agravaria ainda mais essa situação, diante da concentração de receita fiscal na órbita federal
e do aumento desses problemas. É o que passou a ocorrer com o tratamento do lixo, da
questão da água e do esgoto, do transporte coletivo etc.
O PERÍODO PÓS 1980: NOVAS DETERMINAÇÕES
SOBRE OS PROCESSOS DE DESENVOLVIMENTO
REGIONAL E DE URBANIZAÇÃO7
As principais mudanças, em seu patamar mais geral, ocorreram a partir das novas
bases da Política Econômica Nacional, resultando em alterações radicais no ritmo e na
forma de crescimento econômico do país, mudando significativamente nossas estruturas
produtivas, de emprego e de relações internacionais. Elas também impactaram sobre as
estruturas sociais e políticas, e causaram importantes alterações no processo de integração
e desenvolvimento regional e no próprio processo de urbanização.
Não tratarei aqui da questão macroeconômica nacional, já examinada pela ampla literatura atual, mas embora não vá tratar dela, adianto que sua análise geral está
hoje parcialmente comprometida pelas muitas mudanças espaciais que ocorreram na
economia. Dito de outra forma, essas mudanças mais gerais e de caráter nacional geraram efeitos espacialmente muito diferenciados. Corre-se hoje o risco de falarmos em
“Brasil”, tomando como dados para análise, simples médias estatísticas nacionais, que
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6 Sobre os efeitos da urbanização do período, ver Cano
(2011).
7 Para este tópico, no que
tange à questão regional no
período 1980-2003, usei largamente a pesquisa que fiz
para o período 1970-2003,
editada em Cano (2008).
Por isso, poupei o leitor com
reduzido número de notas
de rodapé.
N O V A S
D E T E R M I N A Ç Õ E S
encobrem movimentos e determinações espaciais muito mais diversos do que os que se
observavam antes de 1980.
Como primeiro ponto para essa Agenda de Pesquisa, cabe estabelecer uma periodização, de caráter nacional, que distinga as grandes linhas do período e suas maiores
modificações. Assim, o período como um todo será seccionado em três: o da década de
1980; o do período 1989-2003 e o de 2003-2010. Vejamos os principais fatos marcantes
de cada subperíodo.
1980-1989: A “Década Perdida”
A crise, que vinha desde 1976, se agrava a partir de 1979, devido à brutal elevação
internacional dos juros, tornando a dívida externa impagável, desestruturando as finanças
públicas, desencadeando um processo inflacionário e de estagnação. A crise só não foi pior
graças à forte expansão das exportações, que cresceram 71% entre 1980 e 1989, em que
pese a queda dos preços internacionais de produtos básicos.
A recessão conteve as importações, que cresceram apenas 24%, com o que geramos na
década, US$97 bilhões de saldos comerciais, incapazes, contudo – frente ao que remetemos
de juros (US$87 bilhões) além de outros pagamentos –, de evitar o aumento da dívida
externa, a qual, entre o início e o fim da década saltou de 64 para 115 bilhões de dólares.
O elevado impacto orçamentário dos juros da dívida pública contaminou também os
governos subnacionais, que exacerbaram suas dívidas e também sofreriam os percalços decorrentes de seu crescente serviço. Esse forte desequilíbrio financeiro do estado restringiu
suas ações no plano nacional e regional debilitando não só o gasto público, mas também
o investimento privado, notadamente o industrial, atingindo, principalmente, o núcleo
da dinâmica industrial – o parque produtivo de São Paulo –, que estagnou, diminuindo
os efeitos dinâmicos para a desconcentração industrial regional.
O crescimento médio anual do PIB foi medíocre, tanto para o Brasil (2,2%) como
para São Paulo (1,5%). O setor agropecuário continuou obtendo taxas (3,2%) de crescimento em torno de sua trajetória anterior, graças ao programa energético do álcool de
cana e à expansão das exportações agrícolas e agroindustriais, em parte decorrentes da
expansão da fronteira no CO.
A indústria de transformação, o setor antes mais dinâmico, teve desempenho ainda
pior, pífio, de 0,9% para o Brasil e ainda mais baixo para SP (0,2%), sendo de 1,6%
para o agregado Brasil-SP. A continuidade da diversificação industrial parou, com sua
estrutura regredindo, pois os segmentos de bens de produção e de consumo durável
foram mais afetados do que os de bens de consumo não durável. Demos um passo atrás
na evolução industrial, em um período em que o capitalismo mundial acelerava sua
reestruturação produtiva.
A crise industrial só não foi pior graças aos segmentos mais vinculados às exportações
agroindustriais, minerais e de insumos básicos, além dos vinculados à questão energética,
como álcool de cana-de-açúcar e petróleo, este decorrente da forte expansão da extração
na Bacia de Campos, no RJ.
A desconcentração industrial prosseguiu, com SP perdendo 3,2 pontos percentuais
na produção nacional do setor. Adverte-se, porém, que se no período 1980-1985, a participação paulista caiu de 53,4% para 51,9% isso se deu mais porque a taxa negativa de
crescimento de SP foi maior do que a do Brasil. Em 1989 a participação cairia um pouco
mais, para 50,2%, não por um crescimento satisfatório da periferia, mas sim porque a
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taxa positiva de crescimento de SP foi medíocre, e abaixo da reles taxa verificada para o
conjunto do país. Desconcentração espacial, em tempo de crise profunda, tem sentido
muito diverso da que ocorre quando se dá crescimento normal ou alto. No período, ela
foi espúria, um resultado meramente estatístico.
Até mesmo o setor de serviços cresceu pouco (médias anuais de 3,1% para o Brasil
e 2,2% para SP) e sua expansão nesse período decorre não só da continuidade da desconcentração dos outros setores produtivos. Uma explicação para isso é a de que o êxodo
rural cresceu muito, diminuindo a população rural, entre 1980 e 1991, em 2,8 milhões
de habitantes. Mas o fraco desempenho industrial fez com que seu emprego aumentasse
apenas 19%, enquanto a população urbana aumentava 38%, pressionando pelo aumento
da oferta de vários serviços.
O Censo de 1991 mostra que a diferença entre a PEA total e a ocupada atingiu 3,2
milhões de pessoas, cifra muito acima da verificada pelo Censo de 1980, no qual a não
ocupação era de 964 mil pessoas. Assim, além do aumento da desocupação aberta, também
aumentou o desemprego urbano oculto. A “válvula de escape” foi, como de costume, o
emprego do terciário, que passou de 18,8 milhões em 1980 para 29,7 milhões em 1991, já
dando mostras de precarização do mercado de trabalho e expansão da economia informal.
O setor de serviços, entre 1980 e 1991, foi responsável por 83% do aumento do
emprego, gerando 10,9 milhões de novas ocupações, das quais sobressaíam 1,2 milhões de
empregados domésticos remunerados e 1,7 milhões de outros empregos com predomínio de
autônomos e outros serviços precários e forte queda do rendimento médio do trabalhador.
A crise afetou profundamente o fluxo migratório inter-regional: a média anual entre
os Censos de 1980 e 1991 diminuiu 40% em relação à da década de 1970 e as entradas
médias em SP sofreram queda de 65%. O que atenuou esse movimento foi a continuidade da expansão da fronteira agrícola no NO e CO, o melhor desempenho da agricultura
nordestina e a forte expansão urbana ocorrida nessas três regiões.
A taxa média anual (1980-1991) do crescimento populacional caiu ainda mais, dos
2,48% da década anterior para 1,93%, mas as regiões NO e CO-DF apresentavam taxas
pouco acima de 3%, graças à atração da fronteira agropecuária. A da população urbana
também caiu de 4,44% para 2,97%, em proporção similar nas demais regiões, salvo no
NO (5,4%) e no CO-DF (4,8%). Mesmo assim, a taxa de urbanização subiu expressivamente, de 67,3% para 75,6%, com um grande diferencial entre o NO e NE (com cerca
de 60%) e SP, RJ e DF (acima de 93%).
O número de cidades acima de um milhão de habitantes passou de 10 para 12 (com
a inclusão de Belém e Manaus), enquanto o das acima de 500.000 e abaixo de um milhão
passaram de 8 para 13 (das quais 6 fora de SP e RJ), e as de mais de 250.000 e menos de
500.000, de 24 para 40 (das quais, 23 fora de SP e RJ).
Período 1989-2003
Na década de 1990, o receituário neoliberal implicou na submissão consentida
dos países subdesenvolvidos à Nova Ordem, representada pelos preceitos contidos no
chamado Consenso de Washington, com o que abdicamos de nossa soberania nacional, no
desenho, implementação e manejo da política econômica.8
Esse Consenso está assentado para atender a duas ordens de questões: a financeira e a
produtiva. A primeira, dada a crise financeira internacional, que explicitou a supremacia
do capital financeiro (financeirização da economia) sobre as outras formas de capital,
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8 Para uma descrição dessas reformas e a análise
de seus efeitos na América
Latina e Brasil, ver Cano
(2000), que apresenta, inclusive ampla bibliografia sobre
o tema nessa região.
N O V A S
9 Várias antigas estatais –
como a Companhia Vale do
Rio Doce – tinham positiva
ação sobre diversas partes
do território nacional, agindo
muitas vezes como verdadeiros agentes de desenvolvimento regional. Com a privatização essas atitudes foram
sumariamente reduzidas.
10 O gasto com juros passou a ser de cerca de 8%
a 9% do PIB, estrangulando
as finanças públicas e restringindo o crédito ao setor
privado, que se reduziu, até
2003, a um volume em torno
de apenas 22% do PIB.
D E T E R M I N A Ç Õ E S
impondo a quebra da soberania nacional de nossos países, para liberar seu movimento
internacional na busca incessante da valorização. A segunda, da reestruturação produtiva
e comercial feita pelas grandes empresas transnacionais (ETs), em suas bases localizadas
nos países desenvolvidos, que também exigiria, na década de 1990, reestruturações semelhantes em suas bases localizadas nos subdesenvolvidos. Isto foi reforçado pela voracidade
do capital estrangeiro na compra de empresas públicas e privadas nacionais, debilitando
ainda mais nossa já precária soberania nacional.
Destas duas ordens derivaram os objetivos para impor um conjunto de reformas
institucionais liberais, que constituem um todo articulado para permitir a funcionalidade
do modelo neoliberal. Elas, resumidamente, compreendem:
• desregulamentação dos fluxos financeiros internacionais, para adequar nossa economia
aos interesses do capital financeiro internacional;
• a reforma do sistema financeiro nacional para compatibilizá-lo com o sistema internacional;
• a abertura comercial, potenciada pela grande valorização do câmbio, reduziu fortemente os custos dos importados, debilitou as exportações, e gerou grandes deficits comerciais e de serviços. Constituiu ainda forte apoio à política anti-inflacionária;
• flexibilização das relações trabalho-capital, para diminuir ainda mais o custo do trabalho, adequar contratos ao novo timing da tecnologia e debilitar estruturas sindicais;
• reformas previdenciárias, para criar mais um importante segmento para o mercado
financeiro e abrir maior espaço no orçamento público para os juros das dívidas públicas
interna e externa;
• reforma do estado nacional, para desmantelar suas estruturas, diminuir seu tamanho
e sua ação, eliminar vários órgãos públicos, dispensar funcionários e reduzir seus salários reais, privatizar ativos públicos9 e desmantelar os sistemas de planejamento e de
regulamentação;
• os estados subnacionais (governos estaduais e prefeituras) que também estavam com
sua fiscalidade debilitada e fortemente endividados, foram obrigados a negociar suas
dívidas com o governo federal, entre 1996 e 1998, comprometendo por 30 anos parte
de suas receitas com o pagamento compulsório de amortizações e juros, reduzindo
fortemente suas capacidades de gasto, em especial de investimentos.
Esse quadro foi complementado pela nova política de estabilização, implantada entre fins de 1993 e junho de 1994, bem-sucedida, mas que teve como lastro uma elevada
valorização da moeda nacional ante o dólar e um ciclópico crescimento da dívida pública
interna, inflada por elevados juros reais.
Ocorre que a dinâmica de funcionamento desse novo “modelo”, à medida que o PIB
cresce, aumenta aceleradamente as importações e outros gastos externos, exigindo altos,
crescentes e persistentes fluxos de capital estrangeiro, forte aumento das dívidas externa e
interna, contaminando as contas públicas, dados os elevados juros.10
É fato que houve importante entrada de capitais como Investimento Direto Estrangeiro (IDE), mas a maior fração dele destinou-se a comprar empresas públicas e privadas
nacionais, predominantemente na área de serviços (distribuição de energia, transportes,
telecomunicações, instituições financeiras etc.). Com isso, tais empresas passaram a remeter juros e lucros ao exterior, tornando-se consumidoras líquidas de divisas e o país
ampliou sobremodo seus gastos com serviços importados.
Contudo, a provável deterioração do balanço de pagamentos e das contas públicas,
sensibiliza as finanças internacionais, freando a entrada de capital, e com isso gerando uma
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crise cambial e uma recessão.11 Com isto, o câmbio se desvaloriza, as importações se contraem e as exportações crescem. Porém, a taxa de crescimento do PIB cai, só retomando
patamares mais altos, quando a “festa” de gastos internacionais pôde ser reiniciada.
Dessa forma, o crescimento só pode ser ciclotímico e baixo, resultando em uma taxa
média anual tão medíocre quanto a observada na década anterior: entre 1989 e 2003 a
taxa do PIB foi 2,3% para o Brasil e 1,5% para SP. O investimento despencou, de cerca
de 25% no final da década de 1970, para cerca de 18%: 1) o público, porque não há
nem política de desenvolvimento, nem, muito menos, recursos no orçamento público;
2) o privado, dada a incerteza do movimento da economia e os elevados juros internos.
Também a estrutura do investimento mudou com predomínio do setor de serviços e de
construção civil, e em detrimento da indústria.
A estrutura produtiva também mostra fortes danos: diminuiu o peso da indústria de
transformação, que cai, para o Brasil, de 30,8% em 1989 para 18,1% e em SP de 40,9%
para 35,0%; a agropecuária passaria, para o Brasil, de 9,1% para 7,4% (em SP, subiria de
3,5% para 7,7%); o setor de serviços aumentaria, no Brasil, de 50,3% para 64,8% e em
SP, de 48,2% para 48,5%.12
Assim, as restrições externas e internas ao crescimento foram aumentando ao longo
do período inibindo o investimento, pelas razões já apontadas. É preciso também lembrar
que a crescente contaminação dos juros no orçamento público leva a novos e crescentes
cortes do gasto corrente, inclusive em áreas sociais.
Ainda assim, após 1999, graças à desvalorização cambial e ao início do “efeito China”
as exportações (principalmente de commodities) cresceram mais e as importações se contraíram, fazendo com que exportações e consumo liderassem o pífio crescimento do período.
Vale notar que em 2003, a despeito da negociação e em que pese o elevado comprometimento compulsório (de 9% a 13%) da receita corrente líquida, dos 27 estados, a
relação dívida líquida/receita líquida corrente era pouco menor que 1 em apenas três deles.
No entanto, em quinze deles, ela era superior a 1 e em oito, superior a 2, mostrando a
enorme dificuldade de sua liquidação na maioria das unidades federadas.
11 De 1995 a 2002, o deficit em transações correntes acumulou a fantástica
cifra de US$199 bilhões;
nossa dívida externa saltou
de US$150 bilhões para
US$235 bilhões e nosso
passivo externo atingiu cerca de US$400 bilhões. Isso
nos levou às crises cambiais
de 1999 e 2003.
12 Os dados de SP são os
das Contas Regionais, na
base de 1985. Se mudadas
para a nova metodologia
com a base em 2002, as
cifras resultantes para 2003
são simplesmente incompreensíveis, principalmente a da
agropecuária, que passa a
ser de apenas 2,2%, enquanto a da indústria de transformação passava a 23,9% e
os serviços a 65,9%.
A QUESTÃO REGIONAL NO PERÍODO
O período foi fértil em discussões sobre a questão regional brasileira, em especial
frente às vicissitudes da crise do Estado, da globalização e dos efeitos das políticas neoliberais.13 Com a deterioração fiscal e financeira dos entes públicos subnacionais, os investimentos públicos estaduais e municipais também caíram. Com a crise federal, feneceram as
políticas nacionais e regionais de desenvolvimento, crescendo então a famigerada Guerra
Fiscal envolvendo praticamente todas as UFs e muitos municípios de um mesmo estado,
com intuito de atrair investimentos de uma área para outra.14 Lembremos, porém, que a
Guerra Fiscal já se inicia em fins da década de 1970, sendo seus dois mais notáveis casos
a transferência de grande parte da produção de aparelhos de “som e imagem” para a Zona
Franca de Manaus (ZFM) e da implantação da Fiat em Minas Gerais.
Ao longo desse processo, aumentou também a deterioração técnica, política e econômica dos órgãos regionais de fomento (Sudam e Sudene) que acabaram por ser extintos
em 2001 e só recriados em 2007, porém em bases precárias.
Abandonando a opção de uma verdadeira Política de Desenvolvimento Regional,
o governo federal criou em 1995, a política dos Grandes Eixos,15 os quais seriam vetores
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13 Entre os principais trabalhos publicados sobre o
assunto, cabe citar: Affonso
e Silva (1995), Araújo (1999
e 2000), Cano (2007b) e
Diniz (2005). Nos aspectos
da inovação frente à questão
regional, Galvão (2004) faz
uma profícua discussão sobre as políticas regionais da
União Europeia.
14 Sobre a Guerra Fiscal,
ver Cavalcanti e Prado
(1998) e Silva (2001); e principalmente a pesquisa mais
atual, a tese de doutorado
de Cardoso (2010).
15 Para uma crítica à política dos Grandes Eixos, ver
Galvão e Brandão (2003).
Para a questão do Poder
Local, ver Brandão (2003).
N O V A S
16 Eles foram suspensos
pelas Constituições de 1937
e de 1967, ambas em períodos ditatoriais, que além
disso recentralizaram na
União a maior parte da receita fiscal do país.
17 Além da criação desses
Fundos, foi também incluída
na Carta, a obrigatoriedade
da distribuição regionalizada
dos recursos alocados no
Plano Plurianual de Investimentos.
18 Ver legislação específica
nos sites da Receita Federal
(IR) e do Ministério da Integração Nacional. Da ampla
bibliografia sobre a matéria,
ver: Bercovici (2003), Carvalho (2001), Mahar (1978) e
PIMES (1984, v. 3).
D E T E R M I N A Ç Õ E S
ligando zonas produtivas a portos de exportação, e receberiam grandes investimentos
para aumentar a eficiência e competitividade exportadora. Contudo, eles apenas ligariam
pontos de origem-destino, e pouco ou nada fariam em prol dos maiores espaços regionais
em que estivessem inseridos, e nem tratavam dos problemas urbanos e sociais das cidades
maiores por eles envolvidas. Mais de dois terços desses investimentos viriam do setor privado, mas, dados os juros escorchantes e a incerteza pelo pífio crescimento, “ficaram ao
largo”, retardados e aguardando dias melhores.
Esse esvaziamento das políticas e dos recursos para o desenvolvimento regional deu
azo à disseminação, junto à Academia e aos órgãos públicos que tratam da matéria, “novas
e modernas” ideias, como as do poder local, da região (ou cidade) competitiva, submetendose a verdadeiros leilões de localização industrial promovidos por empresas de grande
porte (geralmente transnacionais), transferindo dinheiro de pobres para milionários, e
fomentando a localização pelo subsídio e pelo trabalho periférico ainda mais precarizado
e mais barato. Cabe acrescentar que, nesse movimento, as antigas ideias de planejamento e desenvolvimento foram substituídas pelas políticas dos APLs (Arranjos Produtivos
Locais), nome inventado no Brasil, para substituir, com fragilidade, os de cluster ou dos
verdadeiros distritos industriais.
No que se refere aos recursos públicos constitucionais, eles foram restaurados pela
Constituição de 1988 (A 159), porém em outros níveis:16 3% não sobre a arrecadação
total, como antes, mas apenas sobre o Imposto de Renda (IR) e Imposto de Produtos Industrializados (IPI); criou, para isso, Fundos Constitucionais para as três regiões beneficiadas: Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), com 0,6%, Fundo
Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) com 0,6% e Fundo Constitucional
de Financiamento do Nordeste (FNE) com 1,8%.17 Essas dotações representavam muito
pouco, se comparadas com os respectivos PIBs regionais: em 2003, equivaliam a 0,5% para o CO e 0,8% para o NO e para o NE. Se tivesse sido mantido o que dizia a Constituição
de 1946, essas cifras seriam muito maiores, de 11,2% para o NO e de 5,4% para o NE.
Quanto aos incentivos fiscais, que consistem em isenções parciais de imposto de
renda, para aplicação em investimentos privados regionais aprovados pela Sudene ou pela
Sudam, exigiam uma contraparte de recursos pelo investidor privado. Esse subsídio perfazia cerca de 40% do investimento entre 1965 e 1970, baixando depois para cerca de 25%.
Para o NO, os incentivos representaram cerca de 5,7% do PIB médio regional do período
1963-1970, caindo para 4,8% na média de 1971-1975. Para o NE, embora os valores
absolutos tivessem sido em média o dobro dos alocados na região NO, as cifras representaram apenas 2,1% do PIB do NE para o período 1965-1970 e 1,8% para 1971-1975.
Além disso, os percentuais de incentivos foram sendo reduzidos, tanto em termos
de captação quanto de aplicação, com o que em 2000 seus repasses representavam, em
termos dos PIBs regionais, tão somente 1,2% para o NO e 0,3% para o NE.18 Em 1997
pela Lei 9532, os fundos de incentivos fiscais (Finam e Finor) tiveram sua permanência
limitada ao ano de 2013, com redução gradativa dos percentuais do incentivo.
Em 2001, foram criados dois novos Fundos de Desenvolvimento Regional (não
substitutivos dos existentes), o FDA e o FDNE, com recursos orçamentários que complementariam os demais fundos. Contudo, o FDA só começou a operar em 2007 e o FDNE
em 2009. O montante de recursos liberados em 2007 e 2008 para o FDA representou tão
somente 0,28% e 0,16% do PIB regional, e as cifras de 2009 e 2010 foram ainda mais
baixas. Para o FDNE, em 2009 e 2010 as cifras são também baixas e representariam algo
como 0,07% e 0,33% do PIB do NE. Essa demora decorreu de problemas burocráticos,
38
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W I L S O N
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de alto custo de seus financiamentos e dos drásticos contingenciamentos e cortes orçamentários, em parte hoje atenuados.
Entretanto, a diminuição dos prazos, dos percentuais e dos recursos desses fundos
foi em parte compensada graças às alterações constitucionais que reverteram parte da concentração fiscal exercida pela União. Na década de 1970, dos recursos fiscais, deduzidas
e somadas as transferências intergovernamentais, a União ficava com 69%, os estados
com 22% e os municípios com 9%; ao final da década de 1990, as cifras respectivas eram
de cerca de 56%, 27% e 17%. Mas boa parte desse acréscimo aos entes subnacionais
consiste em recursos vinculados (notadamente para a saúde e educação) e mais de caráter
corrente e redistributivo que, se bem sejam sumamente necessários, limitam a capacidade
de investimento.
Em termos regionais, o NO, que tinha receitas próprias mais transferências federais
líquidas de cerca de 21% de seu PIB em 1970, e que havia baixado para 8% em 1980,
obteria 18% em 2000; o NE, nas mesmas datas, passou de 11%, para 8% e saltou para
22% e o CO, de 30%, para 16% e para 21%. O Sul e o Sudeste são regiões perdedoras
líquidas, redistribuindo frações elevadas de suas rendas tributárias paras as demais. Entre
seus estados, SP é o campeão das perdas, com -17% em 1970, -11% em 1980 e -14%
em 2000.19 Contudo, a reformulação das dividas estaduais e municipais, imposta pelo
governo federal a partir de 1995, comprometeu cerca de 13% da receita líquida corrente
dos entes endividados, fazendo com que, mesmo as regiões ganhadoras tivessem diminuído seus ganhos, e as perdedoras aumentado suas perdas, com o pagamento anual de
amortizações e juros: o NO, que em 2000 recebera 17,7% do equivalente de seu PIB, tem
a cifra reduzida para 16,4%; o NE, de 22,2% para 20,5%; o CO, de 21% para 19,9%;
SP, de -14,3% para -15,2%.20
Há um complexo conjunto de fatos e ações que permitiram a continuidade da
desconcentração produtiva regional, como as políticas de incentivo às exportações, notadamente de commodities agropecuárias, agroindustriais e minerais; à Guerra Fiscal, principalmente em termos da indústria de transformação; a execução de alguns investimentos de
infraestrutura descentralizados; e os efeitos estatísticos da desconcentração industrial espúria, de que já tratei. Os resultados mais flagrantes desse processo foram, resumidamente:
• em termos de PIB total, embora todas as Unidades Federativas tenham tido taxas médias anuais positivas, o RJ (1,2%) foi o maior perdedor, seguido por SP (1,5%); NE,
MG e RS (os três com 2,2%) cresceram pouco abaixo da média nacional e os demais
estados acima, com as maiores taxas no NO, MS e MT (os três em torno de 5%);
• na indústria extrativa mineral, por sua especificidade, só cabe apontar os grandes ganhadores: com petróleo, o RJ, NE e ES ou com minérios metálicos, o NO;
• na agropecuária, o Sudeste perde pontos, principalmente, mais para o NO e CO-DF e
um pouco para o Sul;
• na indústria de transformação, embora todos crescessem, só perderam participação no
total nacional, PE, RJ e SP (a maior perda: cai de 50% para 41%). A dinâmica exportadora fez com que MG e ES transformassem suas estruturas produtivas predominantemente na produção de commodities industriais;
• nos serviços, tanto a desconcentração produtiva material quanto a crescente urbanização, somente RJ e SP perdem alguns pontos. Pela óptica da renda, a diversificação
estrutural do setor continuou, diminuindo o peso dos segmentos mais tradicionais,
como o comércio e domésticos remunerados. Contudo, pela óptica do emprego, estes
segmentos estão entre os que mais cresceram, e a queda de seus pesos se deve à grande
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39
19 Essas cifras e informações estão na Tese Doutoral
de Monteiro Neto (2005,
cap. 3). Ver ainda, Afonso
e Varsano (2004) e Prado
(2003). Sobre o endividamento estadual ver Lopreato
(2002), Pinto, Cintra e Cavalcanti (2006) e Cavalcanti,
Novais e Bonini (2007).
20 Ver o citado trabalho de
Monteiro Neto (2005).
N O V A S
21 Os absurdos incentivos
recentemente criados para
desconcentrar espacialmente a indústria automobilística são exemplo disso.
Essas plantas montadoras
foram beneficiadas pelas
Leis 9440/97 e 9826/99
que concediam isenção de
impostos federais ao setor.
Entre os casos mais conhecidos, instalaram-se, entre
1998 e 2002, as seguintes
plantas: Ford na BA; GM no
RS; Mitsubishi em GO; Mercedes-Benz em MG; PeugeotCitroen no RJ; e Peugeot,
Renault, Audi e Volvo no PR.
22 As principais discussões
sobre o tema são as de
Pacheco (1998, cap. 5) e
Guimarães Neto (1997).
D E T E R M I N A Ç Õ E S
precarização do trabalho no período e ao rebaixamento dos salários ocorridos nesses
segmentos. Aliás, o Brasil ostenta hoje uma das mais altas taxas de participação do emprego doméstico no total da PEA não agrícola, de 9,8% mas uma taxa de participação
na renda não agrícola, de irrisórios 0,57%!
Seria de esperar um aumento da desconcentração produtiva agropecuária e da mineração, dada a expansão territorial do uso de recursos naturais para aquela produção,
notadamente no NO e no CO-DF. Isto e mais a expansão territorial da urbanização, fez
também com que houvesse uma importante desconcentração dos serviços, pelo menos
dos mais comuns.
Contudo, no caso da indústria de transformação, a Guerra Fiscal, a abertura comercial e a valorização cambial enfraqueceram sobremodo a articulação da periferia com
SP, a despeito de que se criaram fluxos de comércio de insumos produzidos em SP, para
fornecimento às plantas desconcentradas. Mas também foram criados fluxos que substituíram a produção nacional (antes concentrada em SP) por importações, ampliando a
quebra de cadeias produtivas e debilitando importantes segmentos da indústria paulista,
notadamente nos setores automobilístico e no eletrônico.21
Esses fatos levaram alguns autores, em meados da década de 1990, a formularem
a hipótese de que estaria ocorrendo uma fragmentação da economia nacional tanto pela
quebra de alguns encadeamentos industriais intrassetoriais e intrarregionais, como pela sobredeterminação que as novas exportações causavam a grande parte da periferia nacional.22
Seria desnecessário dizer que a fragmentação, se continuada e aprofundada, causaria, a
longo prazo, um sério debilitamento na ordenação do desenvolvimento nacional e regional do país, constrangendo, inclusive, suas tomadas de decisões. Voltarei a esse assunto no
tópico referente ao período posterior a 2003.
A QUESTÃO URBANA NO PERÍODO
Entre 1991 e 2000, os Censos Demográficos mostram que a população cresceu
à média anual de 1,6%, menor do que a anterior, com o que o crescimento da renda
média por habitante (0,8%) só não foi pior do que o da década anterior. Em SP, (cuja
taxa demográfica caiu de 2,1% para 1,8%), o crescimento da renda por habitante, que
foi negativo no primeiro período passou a ser nulo no segundo. As taxas demográficas do
NO (2,8%) e do CO-DF (2,3%) continuaram sendo as mais altas, contendo assim parte
do crescimento de suas rendas médias por habitante.
As diferenças regionais de renda por habitante diminuíram, mas há que repetir a
forte influência da queda do crescimento demográfico regional, diferenciado, e do desempenho econômico pior de vários estados, como mostrei acima. Como a taxa demográfica
do NE (1,3%) foi ainda menor do que a do país, sua renda média ganhou alguns pontos,
atingindo o nível equivalente a 47% da renda média nacional.
Enfim, os dados mostram que o tema da convergência/divergência em termos regionais, não pode ser analisado apenas pelos dados da renda média, salvo quando a economia
cresce vigorosamente por todo o território nacional, e não como tem ocorrido nestas
últimas décadas de crise.
Quanto ao movimento migratório inter-regional, analisado entre 1991 e 2000, seus
dados são muito preocupantes. O fluxo do período somou 4 milhões de pessoas, média
anual 66% maior do que no período anterior. Por outro lado:
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• para a região NO rumaram apenas 255 mil, o que causou surpresa, contra 832 mil do
período anterior, e suas saídas aumentaram 50%, ameaçando converter a região, de
receptora em expulsora;
• no CO-DF, entraram 507 mil contra 636 mil no período anterior e suas saídas cresceram 10%;
• para SP, que se pensava como uma área que não permitiria maiores fluxos entraram 1,7
milhão, cuja média anual é o dobro da verificada no período anterior;
• o NE continuou a ser o maior expulsador, dele emigrando 2,3 milhões, 1,3 milhões
para SP, 246 mil para o NO e 232 mil para o CO-DF;
• o PR continuou a “limpeza” de seu campo, expulsando mais 232 mil pessoas e MG
126 mil.
Resultou assim que ao final do período, praticamente apenas SP – com todos os seus
graves problemas urbanos e sociais – permanecia como o grande receptor da migração nacional, e as demais regiões (além do NO e CO) ou se tornaram expulsadoras ou reduziram
drasticamente suas capacidades de recepção.
Enquanto a população rural diminuía (de 35,8 milhões para 31,9 milhões), a urbana
crescia à media anual de 2,44% abaixo da taxa da década anterior (2,97%). Cresceram
abaixo da média nacional: SP, RJ, RS, RN, PB e PE; o NO teve a mais alta (4,8%), seguido
pelo CO-DF (3,2%). Desconcentração produtiva, expansão da fronteira agro-mineral e
fluxos migratórios ampliaram e desconcentraram a urbanização. A taxa de urbanização do
Brasil passou a 81,2%, sendo as do NO e NE as menores, pouco acima de 69% e SP, RJ
e DF as maiores, acima de 93%. A do CO-DF foi a quarta maior (84,8%), resultado da
transformação de sua moderna agropecuária e da agroindustrialização.
A PEA total cresceu à média anual de 2,98% mas a PEA ocupada só de 1,92%,
mostrando cerca de 12 milhões de pessoas desocupadas. A PEA agrícola diminuiu de 12
milhões para 11,8 milhões e a não agrícola, aumentou de 43,3 milhões para 53,9 milhões.
Dados da PEA mostram a grave situação do emprego.23 Os censos de 1991 e 2000
mostram forte redução de 30% na PEA agrícola ocupada do Brasil; no NO e CO-DF, as
reduções respectivas foram de 22% e 20%, em que pese o forte aumento de seus PIBs
agrícolas (32%) e de suas áreas plantadas (53%). É óbvio que os efeitos mais perversos disso atingem mais os trabalhadores de baixa renda. Trabalho recente, abarcando as PNADs
de 1999 a 2003, mostra a continuidade do fenômeno: forte aumento da área plantada e
redução do emprego em 5,5%.24 É ainda mais grave que a proporção dos trabalhadores
rurais sem remuneração (mais de 15 horas semanais trabalhadas) na PEA, só diminuiu um
pouco para o agregado Brasil (de 3,2% para 3,1%), no Sul e CO-DF, aumentando nas
demais regiões. Em termos absolutos, essa categoria só diminuiu em SP e no Sul.
Na indústria não foi melhor: a criação de 575 mil empregos na construção civil não
pode compensar os 1.109 mil desempregados nos outros setores industriais, restringindose a criação de empregos urbanos praticamente ao setor de serviços. Porém, o que cresceu
mais no urbano foi o grupo dos sem remuneração (mais de 15 horas semanais trabalhadas),
em todas as regiões, crescendo 166% no Brasil; em segundo, o de empregado doméstico remunerado, com 36% e em terceiro os autônomos (onde predomina o trabalho precarizado
e informal) com 19%. Se “tudo ou mais ficasse constante”, a situação dos trabalhadores
de baixa renda teria piorado, em consequência do forte aumento da informalidade e precarização no trabalho urbano.
Mas os números mascaram um mero efeito estatístico de “melhoria distributiva”,
uma vez que grande parte desses novos empregos está na verdade substituindo outros
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41
23 Estou usando os dados
da chamada PEA restrita,
ou seja, estimada pela mesma metodologia do Censo
de 1991, dado que a PEA,
na metodologia do Censo
de 2000, não é diretamente comparável à de 1991.
Os dados foram gentilmente cedidos por meu colega
professor Cláudio Dedecca.
Para essa discussão metodológica. ver Dedecca e
Rosandiski (2003).
24 O texto é o de Balsadi
(2005). Ver também Belik e
outros (2003).
N O V A S
25 Cf. Pochmann (2006).
26 Dados contidos em matéria do jornalista Fernando
Dantas, publicada no Estado
de São Paulo, em 9-4-2007,
Caderno Metrópole.
27 Sobre o tema das cidades médias, ver Andrade e
Serra (2002).
D E T E R M I N A Ç Õ E S
tipos de trabalho (menos precários), anteriormente exercidos por essas pessoas, nos quais
seus rendimentos eram maiores. Baltar, em trabalho recente, já havia mostrado isso,
analisando as PNADs de 1989 e 1999. Nele se vê que os aumentos mais expressivos no
mercado de trabalho urbano foram os mais precarizados e informais, notadamente de
emprego domiciliar, limpeza, segurança e serviços auxiliares. O emprego urbano, naquele
período, cresceu apenas 16,8% ao passo que o dos autônomos aumentou 42,3% e dos
domésticos 37,7%.
O DIEESE confirma esses fatos. Entre 1991 e 2000, para a RMSP, a taxa de desemprego aberto saltou de 7,9% para 11% e a do desemprego total de 11,7% para 17,6%.
O rendimento real médio anual do total dos trabalhadores assalariados do setor privado
caiu 26,2%, o dos com carteira assinada caiu 25,3% mas o dos sem carteira caiu apenas
2,1%. Esta última cifra esconde o citado “efeito estatístico de melhoria”, que pode ser
melhor observado na relação entre o rendimento médio dos sem carteira e o dos com
carteira assinada: era de 48,4% em 1991, subindo para 70,7% em 2000. Em que pese
isso, entre 1980 e 2000, o número de famílias ricas no Estado de São Paulo passou de
192 mil para 674 mil, ou 58% do total nacional. Só na cidade de São Paulo residem 40%
do total estadual. Isso se deve, em grande medida, ao rentismo que crassa nas famílias de
alta renda no Brasil.25
Como essa dinâmica afetou mais seriamente RJ e SP, e dada a situação prévia em
que se encontrava o problema social nessas áreas, não é difícil entender as razões básicas
que explicam o extraordinário aumento da violência nesses dois estados, agora já não
mais radicada apenas em suas duas maiores cidades, mas já espraiada em quase todas as
cidades de médio e grande porte do país. Entre 1985 e 2005, o emprego formal ligado à
segurança pessoal e pública na cidade de São Paulo passou de 95,6 mil pessoas para 446
mil, ou seja, 366% de aumento, enquanto o dos professores aumentou apenas 38%. Na
cidade do Rio de Janeiro, os números passaram de 67,8 mil pessoas para 245 mil, ou
270% de aumento.26
Por tamanho de cidade, as maiores de 1 milhão de habitantes incorporam Guarulhos
(SP), passando a 13 e as maiores de 500 mil e menores de 1 milhão passam de 13 a 18,
das quais faziam parte 6 do NE, 6 de SP e 3 do RJ. As cidades médias, que já vinham
crescendo mais do que as RMs na década anterior, continuaram a fazê-lo, assimilando não
só os efeitos positivos da expansão urbana, mas, principalmente, os nocivos: conurbação,
periferização, favelização; insuficiência de recursos públicos, insegurança, degradação
ambiental e outros males.27
O Período 2003-2010
Neste tópico, as principais questões macroeconômicas nacionais serão tratadas mais
resumidamente do que nos anteriores. Os temas da questão regional e da urbanização, por
terem sido muito menos pesquisados, serão aqui apontados em suas linhas muito gerais, e
deverão, portanto, receber atenção mais detalhada nas proposições que faço para a pesquisa.
Nos dois mandatos do governo Lula, as linhas mais gerais da política macroeconômica seguiram praticamente a mesma orientação neoliberal do governo anterior: câmbio
valorizado, abertura comercial, maior desregulamentação financeira, juros reais elevados,
superávit fiscal primário, investimento público baixo e crédito (menos) contido.
No segundo mandato houve um abrandamento do crédito: seu provimento ao setor
privado passou de 25% para cerca de 45% do PIB; aumento de prazos de financiamento
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ao consumo e forte expansão dos limites do BNDES. As políticas sociais foram positivas,
com o Bolsa Família e recuperação parcial do salário mínimo e das aposentadorias. Isto
reativou o crescimento do consumo, mas a taxa de investimento, embora crescesse, oscilou entre os 18%-19% do PIB. A partir de 2003-2004 os estímulos internacionais da
elevada expansão da China (“efeito China”) e os decorrentes da aceleração da especulação
financeira internacional elevaram sobremodo os preços de quase todas as commodities,
beneficiando extraordinariamente nossas exportações primárias.
O dólar barato constrangeu as exportações de manufaturados e alargou o deficit comercial nesses bens, diminuindo nossa competitividade externa e a participação desses produtos
na pauta exportadora. Esse debilitamento e mais a guerra fiscal entre as UFs, tem desestruturado nosso parque industrial, avançando o processo de desindustrialização. A participação
da indústria de transformação no PIB caiu ainda mais, atingindo 15,7% em 2010!
Ao mesmo tempo o forte aumento dos gastos externos pessoais e de remessas de empresas privadas provocaram crescentes deficits em transações correntes. Dada a elevada taxa
real de juros e a situação internacional, o buraco de nossas contas externas foi coberto por
uma enxurrada de dólares, com grandes sobras, aumentando nossas reservas, diminuindo
a dívida externa pública e criando a ilusão de que “nossa vulnerabilidade externa agora é
baixa”. Os otimistas “esqueceram” de analisar com mais responsabilidade nossos passivos
externos, e mais precisamente, os enormes investimentos externos em carteira. Pior ainda,
que o dólar barato também estimula a saída de capital nacional, atitude que também tem
sido apoiada pelo crédito do BNDES.
A crise internacional também nos pegou em 2008-2009, mas graças às políticas
“anticíclicas” implementadas – principalmente as grandes isenções e os largos prazos de
financiamento ao setor automobilístico e a expansão do crédito público para o setor habitacional –, nos recuperamos a partir de fins de 2009.
O crescimento médio anual (2003-2010) do PIB foi de 4,4%, graças às taxas mais
altas da mineração (5,5%) e dos serviços (4,5%), dado que a agropecuária (2,2%) e a
indústria de transformação (2,8%) sentiram mais os efeitos da crise. Ainda assim, a expansão do consumo e das exportações primárias está criando a ilusão do crescimento, e da
hipótese de que a situação excepcional do mercado internacional perdure a longo prazo.
Chegamos, portanto, a um ponto de saturação desse modelo, mas “ninguém quer pôr o
guizo no gato”, ou “tirar o bode da sala”.
A boa média anual do crescimento do PIB entre 2003 e 2010 (salvo 2009) suscitou
no governo, nos economistas conservadores e nas elites, uma euforia, anunciando que a
“recuperação dos fundamentos” – o deficit público, o do comércio exterior e o menor nível de inflação –, nos levara ao crescimento “sustentado” (no sentido econômico, não no
ambiental). Que não teríamos mais nosso conhecido “voo da galinha”. Recusam-se a ver
que os “bons fundamentos” e os “maus e escorchantes juros” não recuperaram a estrutura
e o volume dos investimentos – notadamente do industrial –, e que nos mantemos em
crescimento, graças à excepcional situação do mercado internacional de commodities e à
ameaça de quebra de certos “fundamentos”, como o crédito contido e o gasto social e do
aumento do salário mínimo, do que às virtudes de nossa política econômica.
Não é preciso repisar os males sociais advindos da dinâmica do modelo neoliberal:
aumento do desemprego, queda dos salários reais, corte dos gastos sociais e aumento da
violência, hoje presentes em todas as nossas regiões e cidades. Assim, é inerente a essa
dinâmica, a corrosão (e não o equilíbrio) dos chamados fundamentos da economia, que,
fatalmente, a conduz a um desastre cambial e financeiro.
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N O V A S
28 Em Cano (2010) apresento as linhas gerais do que
seria um Projeto Alternativo
para o Brasil, com o vetor
principal do crescimento
voltado para a distribuição
de renda e de ativos e a expansão do mercado interno,
não descurando contudo de
retomar a atualização tecnológica imprescindível para
recuperarmos e ampliarmos
nossas exportações de manufaturados.
D E T E R M I N A Ç Õ E S
Existem alternativas a esse modelo.28 Mas é preciso que se entenda que é impossível,
imediatamente, fazermos a reestruturação produtiva e da infraestrutura, dada a enorme
massa de recursos para isso exigidos. Assim, é preciso estabelecer prioridades nacionais;
uma nova política de crescimento e um maior controle dos capitais e do comércio exterior,
e um radical enfrentamento da questão social do país.
Para tanto, necessitamos de muito tempo para fazê-lo, e de muita negociação política. Acima de tudo, necessitamos reconstruir o estado e dotá-lo de recursos compatíveis,
tanto para o saneamento estrutural fiscal quanto para a retomada do investimento público. Somente em uma alternativa como esta é que se pode pensar seriamente no trinômio
estabilidade, retomada do crescimento e resgate da dívida social. Somente com ela é que
se pode repensar a questão regional e a urbana em termos produtivos e sociais.
A Questão Regional no Período
29 Para uma síntese crítica
desses Planos, ver Guimarães (2006).
Em termos regionais, continuou a ausência de Políticas de Desenvolvimento Regional e os recursos públicos minguados, a despeito de que o principal órgão do desenvolvimento regional – o Ministério da Integração Nacional – tenha se empenhado desde
2004 na formulação de planos regionais de desenvolvimento, os quais, apesar de sua boa
qualidade, não têm sustentação do contexto macro nacional, pela ausência de uma política
nacional de desenvolvimento.29
Contrapondo-se a essa crescente omissão do Estado, aumentou em muito o efetivo
poder político e econômico de grandes grupos privados, nacionais ou não, sobre alguns
importantes espaços do território nacional, mormente no NO, CO-DF e em algumas partes do NE. Contudo, há que examinar o quanto suas ações se prendem fundamentalmente
ao objetivo de lucro e quanto delas resulta em benefícios para o desenvolvimento da região
em que atuam. O desmatamento do NO e do CO-DF, a precariedade do emprego urbano
e disseminação de centros urbanos de baixo padrão de qualidade, se não superam os efeitos positivos daquelas ações, é evidente que anulam boa parte deles.
Pelas Contas Regionais (CRs), o PIB do Brasil, entre 2003 e 2008 teria crescido à
média anual de 4,5% e o de SP 5,1%. Contudo, as mesmas CRs mostram que a participação de SP no total nacional cai de 33,8% para 32,0%. O mesmo ocorre na indústria de
transformação, em que a taxa do país foi de 3,8% e a de SP 4,7%, caindo de novo – sem
que se saiba a causa – a participação paulista, de 44,1% para 43,7%. Idêntico fato no
setor de serviços, com as respectivas taxas de crescimento de 4,8% e 5,5%, mas caindo a
participação paulista de 33,8% para 33,4%.
Um rápido exame das participações de cada região e Unidade da Federação (UF)
no total nacional mostra muitas outras contradições ou dados surpreendentes, como por
exemplo, o insignificante aumento da participação do CO-DF no PIB total (de 5,4% para
5,5%) e no da agropecuária (de 17,4% para 17,5%). Evidentemente há que examinar
cuidadosamente as CRs, comparar as mudanças entre as metodologias 1985 e 2002 e
compará-las com outras informações.
É evidente que a desconcentração produtiva continuou em todos os grandes setores: é a consolidação da fronteira agropecuária do NO e do CO-DF – e do aumento da
ocupação dos cerrados da BA, PI e MA pelas commodities exportáveis, da consolidação da
província mineral de Carajás, da grande expansão do petróleo no RJ, ES e RN. Mesmo
porque a guerra fiscal continuou a funcionar a todo vapor. É preciso advertir que essa
“nova economia” tem sido equivocadamente chamada de especializações regionais, quando
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na verdade se trata das conhecidas bases produtivas de recursos naturais. O termo especialização em economia tem um sentido claro como algo que decorre de um aprofundamento
da divisão social do trabalho, de algo não comum, como é uma commodity.
Por outro lado, precisamos entender que mesmo que venhamos a ter no futuro
longos períodos de firme crescimento, a expansão da periferia estará atrelada, em grande
medida, à região de São Paulo. Tanto porque não há sentido teórico nem prático em se
pensar em uma “industrialização autônoma” para o resto do Brasil. A exceção a esse processo reside na “autonomia” regional ganha por algumas áreas do país, com a expansão de
produção destinada a exportações (notadamente de commodities) e à produção energética,
como o álcool de cana, o petróleo e a hidroeletricidade.
Contudo, à medida que o mercado interno cresça espacialmente e possa ser amparado por uma infraestrutura adequada e dissemine economias de escala e externas – ambas
no sentido produtivo e tecnológico – para a industrialização, esta seguirá se desconcentrando. Pistas para essas possibilidades podem e devem ser buscadas por meio da análise
dos dados do comércio inter-regional e das estruturas produtivas regionais. Os últimos
dados que pude acessar sobre esse comércio são para 1999 e eles mostram que suas exportações para o restante do país equivaliam a 45% do PIB paulista e as importações a 34%,
afluxos que representavam o dobro de seus fluxos de comércio exterior.
Isto não elimina a necessidade de se discutir e implantar medidas específicas de
crescimento ou que possam atenuar ou corrigir os desequilíbrios regionais e sociais mais
gritantes existentes no país. É óbvio que esforços no sentido de alocação de projetos em
outras áreas do país devem e podem ser feitos por meio de programas e projetos de impacto detalhados de forma “mais fina”. Os de recursos privados, contudo, em sua busca
por maiores “vantagens locacionais”, ajudaram a aumentar a suicida “guerra fiscal” entre
estados brasileiros, promovendo verdadeiros leilões de localização.
A desconcentração no sentido São Paulo para o restante do país, se mantida a política
neoliberal, continuará tendo um alto componente espúrio, e padecerá, crescentemente,
dos efeitos perversos que a desestruturação industrial está causando. Tais efeitos não só
têm prejudicado ainda mais a economia paulista, como também afetam o parque industrial nacional, destruindo cadeias produtivas e inibindo economias de escala e externas.
A Questão Urbana no Período
A taxa de crescimento da população total caiu fortemente entre os períodos 19912000, quando foi 1,61% e o de 2000 e 2010, quando atingiu 1,18%. Redução ainda
mais drástica deu-se na taxa de crescimento da população urbana, caiu de 2,44% para
1,57%. Enquanto nossa população rural diminuía em 2 milhões, a urbana crescia mais 23
milhões. A redução daquelas taxas se deu em todas as regiões e UFs, sendo as taxas mais
altas, respectivamente a total e a urbana, as do NO (2% e 2,6%) e CO-DF (1,8% e 2,1%).
Por corte de tamanhos de cidades, Campinas-SP e São Luis-MA aumentam para 15
o número de cidades milionárias e o de cidades entre 500 mil e 1 milhão passa de 18
para 23, das quais estão 7 no NE e 6 em SP. Contudo, a expansão foi maior no número
de cidades médias e pequenas, pelo fato de seu crescimento demográfico continuar a ser
maior do que nas grandes, e ainda devido à criação de 58 municípios na década.
Cabe aqui repisar uma questão importante, mas que tem sido menos considerada
nos estudos propositivos para as cidades médias e pequenas, em termos de políticas sociais. Não se pode esquecer que suas dinâmicas de crescimento e a forma que ele assume
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decorrem de suas inserções nas redes urbanas principais ou mais relevantes de que fazem
parte. O que se pode ver nos dados existentes, é que as cidades de porte médio e grande
têm assimilado os efeitos perversos das maiores e das RMs, muitas vezes sem assimilar
seus principais efeitos positivos. Assim, o sentido dessas propostas de políticas públicas
é parcial, aparentemente esquecendo que a massa maior daqueles problemas se encontra
nas maiores.
A taxa de urbanização atingiu 84,4% para o Brasil, próxima à do Sul (84,9%). As
do NO e NE subiram, de cerca de 69% para 73% tornando territorialmente menos concentrado o processo de urbanização.
Até agora (junho de 2011) foram poucos os dados divulgados do Censo de 2011,
razão pela qual o tema urbano, neste tópico, será bem menos tratado. Para as migrações,
usei provisoriamente os dados de várias PNADs (de 1999 a 2009) apenas para ter algumas
informações que me possibilitassem conhecer pelo menos a “tendência” ao longo do período. Com esses dados, pude fazer o seguinte resumo, que deverá ser confrontado pelos
dados do Censo:
• as entradas no NO e no CO-DF devem ter se mantido em torno de, respectivamente,
300 mil e 500 mil pessoas, com pequena diminuição no NO. As saídas do CO-DF
tiveram pequeno aumento, mas as do NO aumentaram em 100 mil, diminuindo sua
capacidade receptora;
• as entradas em SP teriam sido fortemente reduzidas, de 1,7 milhões na década anterior,
para cerca de 650 mil nesta, também diminuindo a capacidade receptora. Os imigrantes do NE teriam somado 330 mil e os de MG, 200 mil;
• as saídas do NE tiveram forte redução, caindo de 2,3 milhões para 1,1 milhão nos
mesmos períodos. Esse fluxo teria um destino majoritário para o NO, CO-DF e SP,
distribuído em proporções semelhantes pelas três regiões;
• de MG, as saídas aumentaram muito, passando de 127 mil para 350 mil;
• as do PR caem, de 366 mil para 150 mil, dando a entender que sua reestruturação
agrícola e agrária tenha sido concluída.
Aparentemente, os fluxos neste período, teriam tido um destino muito mais urbano
do que rural, mas isto requer o exame aprofundado dos dados censitários de 2010, tanto
os migratórios quanto os de emprego. Vejamos dois fatos. O maior fluxo de emigrantes
nordestinos se dirigiu a SP, onde a população rural diminuiu em 760 mil pessoas, número
maior do que o total de imigrantes do estado e o dobro do de nordestinos. Em GO também diminuiu a população rural (menos 23 mil pessoas), mas o fluxo de nordestinos teria
sido em torno de 180 mil. Em MS e MT a população rural aumentou pouco mais de 6%
com números absolutos bem próximos aos dos imigrantes.
Já na região NO, em que a população rural aumentou 8% (309 mil pessoas) o fluxo
nordestino (cerca de 300 mil pessoas) distribuiu-se entre todos os estados que também
ampliaram a população rural, e se concentraram no PA (cerca de 180 mil). Neste estado,
fiz um teste sobre a região Sudeste, que foi a que mais cresceu – em termos econômicos
e demográficos – mas que se caracterizou pela forte presença da mineração em Carajás,
da pecuária latifundiária e da subsistência rural. Dado o pouco emprego gerado pela
mineração e pela pecuária, é surpreendente que 90% do crescimento da população total
foi urbano.
Estes fatos apontam para a grande diversidade das determinações regional e urbana
que ocorreu nos últimos períodos, tanto em termos econômicos, quanto ocupacionais e
demográficos, o que está exigindo uma série de pesquisas específicas para tentar explicar
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esses fatos e, quiçá, poder estimular a elaboração e posta em prática de políticas públicas
para enfrentar os graves problemas regionais e urbanos do país.
É sabido que vários indicadores sociais no Brasil têm melhorado, mas não se sabe o
quanto dessa melhora se deve à efetividade de políticas públicas e quanto ao fato de que
nossa estrutura etária mudou muito, diminuindo fortemente certas demandas sociais. Por
exemplo, quanto da “melhoria” do grau de atendimento educacional nos últimos 20 anos
se deve à política educacional e quanto se deve ao simples fato de que entre 1991 e 2010
o número de crianças com menos de 10 anos de idade se reduziu em 15%, ou seja, porque
temos hoje 5,2 milhões delas a menos.
Contudo, e pensando no futuro, já ingressamos, há vários anos, em um processo que
nos está conduzindo a um expressivo amadurecimento e envelhecimento da população brasileira, e isto nos traz a certeza de que no futuro teremos duas questões muito importantes
que deveriam, desde já, ser analisadas:
• as demandas sociais estão crescendo e vão crescer ainda mais, pois o grupo etário maior
de 60 anos dobrou, aumentando em 10 milhões de pessoas, e isto pressiona fortemente
os gastos com saúde, assistência social e previdência, muito mais do que se fossem 10
milhões de crianças;
• o grupo entre 14 e 65 anos cresceu 46% ou 39 milhões de pessoas em idade de trabalhar, e também crescerá ainda mais nos próximos anos, pressionando energicamente o
mercado de trabalho.
PROPOSTAS DE INVESTIGAÇÃO
As propostas de pesquisa que seguem terão a periodização aqui anunciada, ou, quando for o caso, terão uma periodização específica.
As Questões de Ordem Geral
Em termos macroeconômicos, há uma questão central que decorre da sustentabilidade econômica do atual modelo, à qual já me referi. Ou seja, é preciso fazer uma reflexão
crítica sobre as circunstâncias atuais da economia internacional e sobre as condições internas. A médio prazo, que desfecho ou que rumos poderão ter a crise financeira internacional? Qual a duração provável do extraordinário boom dos preços das commodities? Idem,
quanto ao chamado “efeito China”? Creio que enquanto essas questões não sofrerem
alterações profundas, tampouco será possível repensar sobre a integração sul-americana.
Não se trata aqui de fazer pesquisa propriamente dita, mas sim de refletir sobre os
caminhos e cenários mais prováveis e, daí, pesquisar os efeitos que deles emanariam sobre
as dinâmicas de crescimento nacional e regional e do processo de urbanização.
Arrisco um exercício de simulação: que diferenças substanciais teríamos naquelas
dinâmicas, se fizéssemos uma radical mudança em direção mais ao mercado interno e à
redistribuição de renda, e menos à manutenção da abertura comercial e financeira?
Mas há ainda pesquisas que tanto cabem em termos nacionais quanto regionais, por
exemplo, a da desindustrialização e a guerra fiscal, às quais voltarei no item seguinte. Será
útil um mapeamento das principais políticas públicas criadas ao longo dos períodos de
análise, em especial as de infraestrutura geral e urbana, as principais políticas sociais e as
poucas medidas de caráter regional ou urbano.
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Sobre a Questão Regional
30 Cano (2008).
31 A pesquisa referida é
a da Tese de Livre Docência de Fernando M. Mota
(2010) que mostra forte
elevação dos coeficientes
de exportação e de importação. Contudo, as mudanças
metodológicas das CRs, alterando valores e estruturas dos PIBs regionais e a
valorização cambial podem
distorcer muito os valores
desses coeficientes. Os dados anteriores a 1989 estão
contidos em antigas publicações do IBGE ou do Banco
Central, mas envolvem problemas metodológicos sobre
a origem estadual de várias
dessas exportações.
A pesquisa a que me referi30 e que estou usando largamente neste texto, informa
várias questões sobre as novas determinações, particularmente as emanadas do aparelho
produtivo, que vem sofrendo alterações estruturais ao longo do período 1970-2003. Contudo, é preciso examinar outras, que não foram objeto daquela pesquisa ou que, por suas
especificidades, foram tratadas de modo parcial ou pouco detalhado.
A guerra fiscal e a desindustrialização, embora já tenham sido objeto de vários estudos e pesquisas, se ressentem ainda da falta de dados concretos sobre seus efeitos. São
exemplos: que fins esses processos têm sobre os custos de inversão e de produção e da
rentabilidade privada? Eles seriam rentáveis e competitivos sem os incentivos recebidos?
Em que medida estes investimentos incentivados pela guerra fiscal são do tipo footloose,
e, portanto podem ter uma temporalidade mais curta? As destruições causadas por esse
processo e pela desindustrialização são reversíveis? Sob que condições? Lideranças empresariais desaparecidas, empresas falidas ou alienadas, elos eliminados de cadeias produtivas,
mercados externos perdidos, podem ser facilmente recriados?
Ainda, pode-se especular sobre a Zona Franca de Manaus, instituição peculiar, pois
que, como Zona Franca, deveria ser exportadora líquida para o exterior, mas que na
realidade é deficitária, desde sua origem. Se o modelo macroeconômico nacional fosse
alterado, diminuindo drasticamente a abertura e desvalorizando o câmbio, haveria condições para sua reversão?
Os dados do comércio interestadual depois de 1985 ficaram ainda mais precários
propositadamente ocultos ou de pobre informação, face aos problemas políticos gerados
por sua divulgação, frente à guerra fiscal. Os do comércio exterior de cada UF são fornecidos pelo Ministério do Desenvolvimento, para o período posterior a 1989 e foram
objeto de recente pesquisa que analisou seus impactos estruturais sobre a economia e a
urbanização das várias UFs, mas requerem ainda um aprofundamento analítico sobre o
emprego e a renda, e, no período posterior a 2003, sobre o efeito negativo do crescimento
desproporcional das importações.31
Essa pesquisa mostra, por exemplo, que as exportações do PA representam 90%
das do NO, mas as importações do Amazonas (ZFM) totalizam cerca de 90% da região,
mostrando impactos distintos nesses dois estados. Indica ainda que as exportações de produtos básicos em recursos naturais têm elevado peso no total exportado pelo NO (80%),
NE (60%) e CO-DF (905%). Já os produtos industriais predominam nas exportações do
Sul e SP, e as importações de manufaturados estão fortemente presentes em praticamente
todas as UFs.
Essas e as questões abaixo devem constituir uma pesquisa sobre as determinações do
crescimento regional:
• principalmente para o período mais recente, analisar as mudanças nas estruturas produtivas e de emprego das regiões;
• a expansão da produção nas áreas de fronteira agropecuária e mineral: regiões NO,
CO-DF e os cerrados da BA, PI e MA;
• a forma e os resultados da profunda reestruturação agrária e agrícola que se verificou
nos estados do PR e RS, com a implantação e expansão do complexo soja-trigo;
• surgimento ou expansão de novos pontos de concentração de atividades que não
existiam em seus respectivos novos espaços. São exemplos: a forte expansão da atividade petrolífera nas regiões norte fluminense, sul do ES, e litoral de SE e do RN; a
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•
•
•
•
•
•
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maturação da fábrica da Fiat em MG, os novos polos automobilísticos do RS, PR, BA
e GO; a fruticultura de Petrolina-Juazeiro; o polo calçadista do CE; perspectivas para
o polo de Suape (PE). Examinar ainda os investimentos no RN, CE e PE da ordem de
25 bilhões para energia eólica, aumentando a participação dela na matriz energética
de 1,3% para 5,3% até 2014;32
pesquisar a articulação de novos investimentos em minérios e para além dos minérios pela Vale na região Norte, provocando efeitos espacialmente diferenciados;
retomada dos grandes projetos hidrelétricos; expansão das usinas de biocombustíveis (etanol);
estudo especial deve ser feito sobre e Zona Franca de Manaus, implantada em 1967
e que vai amadurecendo a partir da década de 1980;
aprofundar estudo dos principais impactos espaciais da expansão do comércio exterior na década, notadamente de commodities (soja, carnes e minérios);
idem quanto ao comércio inter-regional, cujos dados são muito precários para esse
período;
principais efeitos da guerra fiscal sobre as estruturas de custos de produção e competitividade com empresas que não foram incentivadas. Sua continuidade será capaz de
confirmar as teses sobre fragmentação da economia nacional? ;
idem quanto à desindustrialização e principais efeitos destrutivos de cadeias produtivas,
mormente nos setores automobilísticos e de eletrônica.
32
Valor Econômico,
28/04/2011.
Sobre a Questão Urbana
Existem muitos trabalhos publicados sobre essas questões, mas é indispensável
a realização (ou aprofundamento) de análises de vários problemas que ocorreram no
período.33 As dificuldades com o necessário processamento dos Censos Demográficos
de 1980 e de 1991 constituem sérios obstáculos, alguns dos quais talvez possam ser
solucionados com o uso de fontes alternativas, usadas com muita cautela. Como principais fatos a pesquisar:
• a expansão, extensão e o aumento da densidade da urbanização foram espacialmente
diferenciados, e, portanto é preciso fazer um mapeamento dos principais focos de
expansão e tentar, com o auxílio das pesquisas aqui apontadas, esclarecer suas determinações. Como exemplos disto: a forte expansão e concentração urbana em Manaus;
a elevada expulsão de trabalhadores e pequenos proprietários rurais do PR; o início da
ocupação rural e mineral no Sudeste do PA, e outros;
• as principais mudanças na estrutura do emprego regional (se necessário, com recortes
sub-regionais) emanadas das transformações produtivas tratadas neste tópico;
• examinar as mudanças da estrutura espacial da distribuição de renda;
• aprofundar a análise do setor de serviços (via Censo Demográfico), e a interdependência direta e indireta deste fato com as mudanças produtivas. Em outras palavras:
indagar que mudanças no emprego – especialmente do urbano – e na oferta/demanda
de serviços, que foram geradas pela expansão da fronteira agropecuária ou pelos fatos
especiais ocorridos na década (Zona Franca de Manaus, petróleo no RJ, ES, SE e RN;
principais polos automobilísticos etc.);
• aprofundar os estudos das migrações inter-regionais para poder relacioná-las com as
grandes mudanças produtivas acima referidas. Em alguns estados – como no PA, examinar as migrações intrarregionais recentes;
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33 Dos trabalhos mais gerais cabe citar: IPEA-NESUR
(2001), IBGE (2008) e IPEA
(2011).
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• fazer um mapeamento dos assentamentos de reforma agrária para entendê-los como
novos componentes desses movimentos demográficos regionais;
• utilizar as pesquisas disponíveis sobre rede urbana, para localizar e separar, nas UFs, os
efeitos decorrentes de metropolização, aglomeração, conurbação e periferização;
• confrontar via Censos e outras fontes, indicadores sociais urbanos nos espaços das UFs
e em seus respectivos espaços realçados nestas pesquisas, em especial os indicadores
vinculados ao tema do saneamento básico (água, esgoto, lixo e meio ambiente);
• exame sumário da situação das finanças públicas municipais: capitais, RMs e cidades de
maior relevância para a urbanização do período;
• exame circunstanciado da expansão do setor imobiliário e estudos sobre a questão
habitacional (questão fundiária: produção e uso de solo urbano).
ALGUNS PROBLEMAS METODOLÓGICOS
34 Sempre que não existam,
naquele recorte espacial,
pelo menos três estabelecimentos do mesmo segmento produtivo.
Wilson Cano é professor titular do Centro de Estudos de
Desenvolvimento Econômico
do Instituto de Economia/Unicamp. Email: wcano@eco.
unicamp.br
Ar­ti­go re­ce­bi­do em agosto
de 2011 e apro­va­do pa­ra
pu­bli­ca­ção em outubro de
2011.
Por último, cabe advertir que existem vários problemas de ordem metodológica e de
informação, para os quais devemos estar alertas e tentar, na medida do possível, contornálos. Entre os principais, cabe destacar os seguintes:
• a difícil e, em alguns casos impossível compatibilização (não só de caráter espacial)
entre as PNADs e os Censos Demográficos;
• idem, quanto às Contas Regionais e os Censos Agrícolas, as PIAs e as PINPFs no período pós 1985, que comumente apresentam dados controvertidos entre essas fontes,
especialmente com relação à desconcentração produtiva regional;
• o fato de que as PNADs só a partir de 2004 apresentam dados sobre a zona rural da
região Norte;
• o fato de que os dados do comércio inter-regional têm divulgação precária e muito
interrupta, embora os dados primários estejam centralizados no Confaz;
• para o movimento e estrutura do emprego, embora a RAIS seja anual, só abarca o
emprego formal; para o emprego total praticamente só contamos com os Censos Demográficos (decenais), dados os problemas de compatibilidade já apontados para com
as PNADs;
• as Contas Nacionais e as Regionais têm sofrido recentemente várias mudanças metodológicas que muitas vezes alteram fortemente dados passados já divulgados e analisados.
Por outro lado, a forte valorização cambial que padecemos desde 1994 certamente
alterou muitos preços relativos e os próprios coeficientes de comércio exterior;
• com relação às PIAs, embora o IBGE proporcione tabulações especiais (nacionais ou
regionais) detalhando os dados a 3 ou mais dígitos, ele não evita o problema do sigilo
estatístico,34 tornando, em muitos casos, inviável o uso daqueles dados.
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Mestrado, Campinas, 2001.
Abstract
Between 1930 and 1980, urbanization process, domestic market integration and regional development in Brazil were basically determined by the combination
of industrialization process, macroeconomic and regional development policies. After 1980,
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as a result of the so called “Lost decade” and the implementation of neoliberal policies, those
determinants were significantly modified by the new paths of external insertion, overvalued
exchange rate, high interest rates, and “fiscal war” between regions. Beyond those weakened
previous determinants, new ones have aroused; some are national and others specific to each
region. Despite the changes in the determinants mentioned above, the harmful side-effects of
the economic growth and urbanization processes have affected the whole national territory. As
a conclusion, the article proposes a Research Agenda focused on regional and urban subjects
for the period 1980-2010 in order to better understand how those determinants have affected
these processes.
Keywords
Regional development; urbanization; new determinants; fiscal war;
Brazil’s international position.
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ESTUDOS RECENTES SOBRE
A REDE URBANA BRASILEIRA
Diferenças e Complementaridades
Alessandra d’Ávila Vieira
Liliane Janine Nizzola
Luana Miranda Esper Kallas
Manuelita Falcão Brito
Benny Schvasberg
Rodrigo Santos de Faria
R e ­s u ­m o
A classificação da rede urbana brasileira é importante ferramenta de
gestão governamental, econômica e social, pois possibilita um direcionamento mais acertado
de investimentos urbanos. Partindo-se da análise de três estudos recentes que elaboraram
classificações para a Rede Urbana – o primeiro, Configuração Atual e Tendências da Rede
Urbana, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas juntamente com o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística; o segundo, Política Nacional de Desenvolvimento
Regional, do Ministério da Integração Nacional, e o terceiro, Tipologia das Cidades Brasileiras, elaborado pelo Observatório das Metrópoles, – percebe-se a permeabilidade e complementaridade entre eles, as grandes contribuições trazidas e o desafio que é produzir uma
classificação condizente com a diversidade das cidades brasileiras. Destaca-se ainda como
as diferentes leituras da rede urbana incorporam-se às políticas públicas, sendo os estudos
realizados parte do processo de construção da política urbana nacional. Assim, acredita-se
que grandes desafios foram vencidos.
P a ­l a ­v r a s - c h a ­v e
Cidades; desenvolvimento urbano; gestão governamental; políticas públicas; rede urbana brasileira.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A partir dos anos 1930, registra-se uma produção institucional mais abrangente de
estudos de geografia urbana destinados a subsidiar o planejamento regional, embora este
já fosse adotado no Brasil desde o século XIX. Mas é só a partir da primeira metade do
século XX que a vinculação entre geografia, desenvolvimento econômico e redes urbanas
torna-se mais presente. Almeida (2004), ao resgatar as etapas do “pensamento geográfico
do IBGE”, registra que nos anos 40:
A demanda governamental para o estudo dos processos de ocupação do território via mecanismos de colonização, de certa forma, deu o tom das principais orientações da pesquisa,
como os estudos do habitat rural, e as novas interpretações dos processos geomorfológicos.
Paralelamente, os estudos urbanos também já tinham um desenvolvimento, principalmente com os trabalhos de Deffontaines no Rio e Mombeig em São Paulo (Almeida, 2004,
p.411).
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De acordo com o mesmo autor, nos anos 1960, as linhas de pesquisa da geografia
passaram por uma transição significativa, orientando-se de forma mais expressiva para a
questão dos estudos urbanos e das redes urbanas. Data de 1963 o trabalho considerado
como “a primeira obra completa sobre o processo de organização urbana do Brasil”, intitulado Evolução da Rede Urbana Brasileira, de Pedro Geiger:
Classificando cidades, definindo metrópoles nacionais e delimitando hierarquicamente suas
respectivas redes, correlacionando explicitamente as relações entre industrialização e urbanização, que começavam a se delinear no Brasil no final dos anos 50 e início dos 60 (Almeida,
2004, p. 412).
O período militar marcou uma forte vinculação da geografia com as demandas
desenvolvimentistas do país, ampliando os estudos sobre planejamento regional e o uso
sistemático de estatísticas pelos órgãos oficiais de planejamento. Constata-se, portanto,
que não são recentes as análises críticas e propositivas baseadas em leitura e cruzamento
de dados estatísticos contemplando dinâmicas demográficas, econômicas e sociais. Não
obstante, cada documento parte de uma ou de múltiplas necessidades e, via de regra, são
produzidos para atender uma demanda específica, sobretudo de entidades públicas. Em
outras vezes, surgem como forma de contrapor-se ou desfazer um senso comum, mas em
todos os casos, partem de premissas e utilizam técnicas que, desde a origem, trazem a
marca de quem as produziu e de quem as encomendou.
Este artigo resgata três propostas de classificação da rede urbana brasileira e uma política pública apoiada na última delas. O objetivo é identificar, em um primeiro momento,
complementaridades e diferenças entre as abordagens e, adicionalmente, identificar algumas implicações ou consequências que tais contribuições geraram no desenho das políticas
urbanas e de desenvolvimento regional.
O primeiro objeto de análise é o trabalho intitulado Configuração Atual e Tendências da Rede Urbana, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA) com o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concluído em 1999 e publicado em 2001. A leitura do território adotou
a escala macrorregional e envolveu um conjunto amplo de indicadores, análises regionais
e informações qualitativas, estabelecendo correlações entre eles.
O segundo estudo sob análise é a Política Nacional de Desenvolvimento Regional
(PNDR), cuja elaboração demandou a construção de uma tipologia própria que pudesse
atender uma das suas principais premissas, qual seja, abordar o problema das desigualdades regionais em múltiplas escalas (nacional, macrorregional, sub-regional e intraurbana).
A elaboração da PNDR foi conduzida pelo Ministério da Integração Nacional e o recorte
adotado neste artigo foca mais o esforço teórico de classificação e menos na política em si.
A Tipologia das Cidades Brasileiras (Fernandes, Bitoun, Araújo, 2009), publicado
pelo Observatório das Metrópoles, é o terceiro estudo analisado. Neste trabalho, os autores desenvolveram uma metodologia que reuniu parâmetros e propostas oriundas dos
dois estudos mencionados anteriormente, além do trabalho desenvolvido pelo Centro de
Desenvolvimento e Planejamento Regional de Minas Gerais (Cedeplar), “A nova geografia econômica do Brasil: uma proposta de regionalização com base nos polos econômicos
e suas áreas de influência” (2000). Dentre os objetivos do estudo de Fernandes, Bitoun,
Araújo (2009) busca-se categorizar as unidades regionais a partir da identificação e classificação dos municípios brasileiros, com vistas a subsidiar uma ação efetiva do Estado na
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rede urbana brasileira por meio da indicação de um conjunto de ações específicas para
cada situação.
A política pública apresentada baseia-se no Caderno 1 do Ministério das Cidades,
que trata da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, de 2004. Ressalta-se, desde
já, que o foco da análise são as diretrizes e eixos da política e não as ações efetivas do Governo para a sua implementação.
Os estudos analisados estão divididos em três tópicos: um breve contexto, destaques
da metodologia e um resumo da classificação proposta (no caso dos três primeiros documentos). Quando relevante, foi incluída uma síntese com as principais conclusões. Na
parte final, são tecidos comentários que buscam correlacionar as diferentes abordagens e
apresentar contribuições para o debate.
CONFIGURAÇÃO ATUAL E TENDÊNCIAS DA
REDE URBANA
O estudo do IPEA apresenta as transformações da rede urbana no Brasil durante as
décadas de 1980 e 1990, e apoia-se em três linhas principais de análise: i) os processos
econômicos gerais; ii) os processos econômicos regionais e; iii) a manifestação de processos característicos da hierarquia da rede urbana. Visa identificar as transformações então
recentes da rede urbana, partindo da observação das macrorregiões e analisando uma série
de variáveis que possibilitaram a classificação das cidades por classes de tamanho, reunindo um conjunto de fatores além da população. Considera-se ali que a urbanização, assim
como o sistema urbano, faz parte de um longo processo de mudança territorial no Brasil,
fruto de uma atividade econômica bem localizada e dinâmica e que a urbanização não
é um resultado dessa atividade e sim parte constitutiva desse processo. O estudo pontua
alguns eventos relevantes em cada uma das décadas analisadas e tenta suprir uma lacuna
de aproximadamente 15 anos sem avaliações da espécie.
Neste sentido, a contextualização do estudo do IPEA (2001) destaca que os anos
1980 foram marcados por crises e instabilidade econômica causadas pela dívida externa,
pelas elevadas taxas de inflação e por uma profunda crise do Estado, que contribuiu para a
paralisação do investimento industrial e permitiu um maior grau de abertura da economia
brasileira, estimulando de forma distinta a articulação das economias regionais, refletindo
sobre a urbanização e o sistema de cidades no Brasil. Adicionalmente, a heterogeneidade
da produção e as novas organizações espaciais propiciadas pelo deslocamento das indústrias
para regiões fora das áreas metropolitanas e o crescimento das áreas de fronteira resultante
do desempenho da agricultura e dos grandes complexos minerais aumentou a exportação
ao longo da década de 1980, resultando no surgimento das chamadas ilhas de produtividade. Esse novo dinamismo das economias regionais estimulou uma distinção interna da
estrutura produtiva e aprofundou as desigualdades inter e intrarregionais do país.
Além disso, o contexto da crise econômica também abriu alternativas para cidades de
menor porte, com saldos migratórios negativos (migração de retorno), ou a periferização
dos centros urbanos, diminuindo o crescimento das áreas metropolitanas e fazendo surgir
novos espaços economicamente dinâmicos que alteraram o comportamento do emprego
urbano, da dinâmica migratória e das exportações.
O início dos anos 1990, por sua vez, marcou um momento diferente em relação à
década anterior em função do crescimento da agroindústria, da urbanização na fronteira,
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da agricultura irrigada, de maiores empreendimentos para exploração dos recursos naturais e do maior desempenho e participação econômica das cidades de pequeno e médio
porte. Por fim, a desconcentração industrial nas regiões metropolitanas foi concomitante
ao crescimento das cidades do interior de São Paulo, das capitais regionais, como as do
Norte, Nordeste e Centro-Oeste, as cidades médias e as aglomerações não metropolitanas,
áreas de fronteira agrícola e de expansão da agricultura. Este movimento resulta, segundo
o documento sob análise, em uma forte desconcentração da economia e consequente
desaceleração do crescimento metropolitano.
Metodologia
A realização do estudo do IPEA aconteceu em quatro etapas, sendo que a primeira
procurou estabelecer uma classificação dos centros urbanos das regiões, incluindo tipologia de tamanhos; funcional (grau de centralidade) considerando dados como: posição
dos centros urbanos na Região de Influência das Cidades (REGIC); porcentagem da
População Economicamente Ativa (PEA) urbana; total da população em 1980, 1991 e
1996; taxa de crescimento da população no período 1991-96; porcentagem de acréscimo
da população (1980-91/ 1991-96); densidade demográfica dos centros urbanos em 1996
e análise de agrupamento dos centros urbanos nas regiões.
A segunda etapa consistiu na montagem de um quadro de classificação da rede urbana do Brasil, identificando centros decisórios e escalas de urbanização, incorporando, para
tanto, critérios de discriminação da posição hierárquica ocupada pelos centros urbanos na
rede. Para tanto, foram utilizados dados relativos à: localização das sedes das 500 maiores
empresas do Brasil; número de passageiros domésticos e internacionais e volume de cargas
nos aeroportos da Infraero; localização de agências bancárias e valor total dos depósitos;
indicadores populacionais e estrutura ocupacional.
A terceira etapa resultou na definição da estrutura urbana e dos sistemas urbanoregionais, por meio da caracterização e análise da dinâmica espacial da rede urbana, considerando informações como: identificação de espaços territoriais submetidos à influência
dos centros urbanos; identificação de sistemas urbano-regionais definidos com base em
critérios de contiguidade espacial e dependência funcional; diferenciação das estruturas
urbanas, segundo o ritmo de urbanização, o nível de adensamento da rede de cidades e o
grau de complementaridade entre núcleos componentes.
Por fim, a quarta etapa focou na identificação de presença de processo de conurbação
entre centros urbanos e considerou as seguintes leituras: identificação de espaços urbanos
descontínuos com presença de centros urbanos com articulação econômica e urbana;
porte populacional dos centros urbanos (1991 e 1996); densidade populacional em 1991;
taxa de crescimento do núcleo (1980-91 e 1991-96); taxa de crescimento da periferia
(1980-91 e 1991-96); e indicadores de peculiaridades regionais indicativas de articulação
entre centros urbanos.
Classificação Proposta
Considerando que a caracterização e a análise da dinâmica espacial da rede urbana
nacional são os principais objetivos do estudo em análise e que o processo acelerado de
urbanização do país requeria leituras até então inexistentes, foi necessário definir novos
procedimentos que resultaram em diferentes possibilidades de leitura da rede urbana
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brasileira. Uma das categorias utilizadas é a Região de Influência das Cidades (REGIC), que
são porções do espaço submetidas à influência de centros urbanos, cujos fluxos de pessoas,
mercadorias e informações permitem a conformação de estruturas territoriais relativamente estáveis no decorrer do tempo.
Figura 1 – Estruturas urbanas. Fonte: IPEA, IBGE, Unicamp, 2001.
Segundo o IBGE existem 33 regiões de influência das cidades, sendo duas na região
Norte (Manaus e Belém), nove na região Nordeste (São Luis, Teresina, Fortaleza, Recife,
João Pessoa, Campina Grande, Caruaru, Salvador e Feira de Santana), doze no Sudeste
(Belo Horizonte, Juiz de Fora, Uberlândia, Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas, Bauru, Ribeirão Preto, Marília, São José do Rio Preto e Presidente Prudente), oito
na região Sul (Curitiba, Londrina, Maringá, Florianópolis, Porto Alegre, Santa Maria,
Pelotas e Passo Fundo) e duas no Centro-Oeste (Brasília e Goiânia). Os Sistemas UrbanoRegionais, por sua vez, são definidos com base na REGIC e agrupados segundo critérios
de contiguidade espacial e de dependência funcional. Foram identificados 12 sistemas
urbano-regionais no Brasil, sendo um no Norte, dois no Centro-Oeste, quatro no Nordeste, três no Sudeste e dois no Sul.
Outra categoria adotada são as Estruturas Urbanas, que formam a armadura da rede
urbana brasileira, mas não constituem uma região ou qualquer outra dimensão territorial
em si. Foram definidas em três grandes estruturas urbanas articuladas e diferenciadas: o
Centro-Sul; o Nordeste e o Centro-Norte, que agrupam os seguintes lugares:
• Centro-Sul (5) – Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte;
• Nordeste (4) – Salvador, Recife, Fortaleza e Meio Norte;
• Centro-Norte (3) – Norte, Cuiabá e Brasília-Goiânia.
Por fim, a Rede Urbana Nacional é o resultado dessas três porções e “compreende
o conjunto das cidades que polarizam o território nacional e os fluxos de bens, pessoas e
serviços que se estabelecem entre elas com as respectivas áreas rurais” (IPEA, 2001). Este
conjunto é composto por 111 centros urbanos, 440 municípios e o Distrito Federal e
totalizam pouco mais de 55% da população.
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Síntese
Uma análise sintética do estudo do IPEA permite concluir que a dinâmica da rede
urbana nacional apresenta aspectos importantes para a proposição de políticas públicas,
tais como:
• Diferenciação na configuração espacial e no ritmo de desenvolvimento entre os sistemas urbanos;
• Disparidades entre os sistemas urbanos no que tange às condições de vida e de acesso
aos serviços públicos;
• Adensamento no entorno dos núcleos metropolitanos ou centros urbanos de grande
porte e que encabeçam a expansão e suas áreas de influência;
• Metropolização presente em quase todo o território nacional, mas diferente entre os
sistemas urbanos com características regionais distintas;
• Dispersão espacial de pequenos centros urbanos se opondo ao processo de metropolização que se considerava importante na dinâmica dos sistemas urbanos brasileiros.
O estudo em questão (IPEA, 2001) também resume em três tópicos os problemas
fundamentais da configuração da rede urbana do Brasil, a saber:
1. O agravamento entre as disparidades inter e intrarregionais do país e das disparidades
sociais nas cidades, ampliando a escala dos problemas e carências sociais e urbanas;
2. O aumento das demandas associadas à urbanização, envolvendo os três níveis de governo, contribuindo para a deterioração das condições de vida;
3. O padrão de intervenção do poder público, em especial nas aglomerações urbanas e
nos centros urbanos de grande e médio porte, em relação ao aumento das demandas e
à crise fiscal-financeira do setor público.
Por fim, o estudo (IPEA, 2001) apresenta algumas recomendações servindo de subsídios para formulação de políticas públicas, dentre as quais se sobressaem:
• Elaborar planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano a partir do planejamento regional, a fim de beneficiar centros urbanos articulados em uma sub-região;
• Desenvolver políticas dirigidas prioritariamente à gestão das aglomerações urbanas
metropolitanas e centros de grande e médio porte;
• Criar e fortalecer os mecanismos de gestão compartilhada, incentivando a parceria
público-privada e a comunidade envolvida, visando à convergência de ações, cooperação, participação comunitária e atuação de longo prazo;
• Aumentar a eficiência dos centros urbanos tornando-os mais competitivos, por meio
de estratégias de desenvolvimento que incentivem novas atividades focalizadas no perfil
econômico e na atração de investimentos;
• Adotar políticas compensatórias para municípios periféricos;
• Desenvolver um processo de planejamento que defina prioridades setoriais e locais para
grandes investimentos envolvendo agentes do governo e da sociedade;
• Desenvolver áreas de baixo dinamismo e reduzir as heterogeneidades inter e intrarregionais.
POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO
REGIONAL – PNDR
Concebida e formulada pelo Ministério da Integração Nacional, a PNDR vem no
bojo da (re)criação das Agências Regionais de Desenvolvimento – Superintendência do
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Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (Sudene) e Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco)
–, da reorientação dos fundos constitucionais de financiamento – Fundo Constitucional
de Financiamento do Norte (FNO) e Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) – e dos fundos de desenvolvimento regional – Fundo de Desenvolvimento da
Amazônia (FDA) e Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FDNE), além dos programas
de desenvolvimento regional e demais instrumentos e mecanismos de apoio à sua implementação. Depois de formulada, em 2004, foi instituído o marco legal que a orienta, que
é o Decreto 6.047/2007.
De acordo com o Sumário Executivo da PNDR:
A Política Nacional de Desenvolvimento Regional é parte indissociável da estratégia de
desenvolvimento do país e expressão da prioridade que é dada ao tema na agenda nacional
de desenvolvimento. A Constituição de 1988 já determinava a redução das desigualdades
regionais como um dos eixos da estratégia de desenvolvimento nacional, fato esse que se
consolida no enunciado do PPA 2004-2007, que eleva o tema da redução das desigualdades
regionais brasileiras a um dos mega-objetivos do Plano Plurianual (Ministério da Integração,
2004, p.11 e 12).
O mesmo documento esclarece que o objeto da PNDR não é estritamente o combate
à pobreza, que a faria privilegiar a periferia das grandes metrópoles, como acontece com
a política urbana e as políticas sociais, mas sim a coincidência espacial entre pobreza individual e regional. Em outras palavras, ela focaliza a causa da desigualdade e da pobreza
no território e se concentra nas regiões estagnadas, origem dos fluxos migratórios. Nesse
sentido, é necessariamente uma política redistributiva, o que torna a participação direta
da União imprescindível, em virtude da sua legitimidade, capacidade de convergência de
ações e disponibilidade de recursos para sua implementação.
Metodologia
A PNDR enfatiza as diversidades territoriais e econômicas que caracterizam o território, mensurando-as através do estoque de riquezas acumuladas e da dinâmica da criação
de novas riquezas. Uma das principais diferenças em relação ao estudo anterior é que a
PNDR adota a escala microrregional para identificar o território, visando possibilitar uma
percepção mais detalhada das desigualdades que nem sempre são percebidas nas escala
macro ou mesorregional. Todavia, o estudo não aborda as especificidades de cada município individualmente, o que tornaria o resultado final pouco compreensível em função
da grande quantidade de municípios brasileiros.
A tipologia estabelecida procura exprimir padrões e dinâmicas então recentes da
distribuição da população no território, bem como características da população quanto ao
rendimento médio; local de residência (rural ou urbano) e nível de educação, além do dinamismo econômico captado pela variação do PIB per capita. Os dados básicos do estudo
foram obtidos a partir dos Censos Demográficos do IBGE (1991 e 2000) e das estimativas
do PIB municipal (elaboradas pelo IPEA). Observe-se, portanto, que as fontes são muitas
vezes coincidentes, o que não significa resultados semelhantes.
No caso do rendimento, os dados foram ajustados à paridade do poder de compra,
agregando os dados por microrregião. Já os indicadores de dinamismo foram obtidos pela
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média geométrica do crescimento do PIB per capita no período 1990–1993 e 1999–2002
de cada município, agregando-os em microrregiões. A combinação de técnicas para distribuição das variáveis e o conjunto de dados obtidos possibilitaram a geração de diversos
cartogramas que, quando combinados, permitiram leituras espacializadas.
Classificação Proposta
O resultado da PNDR foi a divisão do território brasileiro em quatro grupos, a saber:
1. Microrregiões de alta renda: com alto rendimento domiciliar por habitante, independente do dinamismo observado, não são prioritárias para a PNDR. Predominam nas
regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, sendo praticamente insignificantes no Norte e
Nordeste. Respondem por 76% do PIB e concentram 53,7% da população;
2. Microrregiões dinâmicas: rendimentos médios e baixos, mas com dinâmica econômica
significativa. Possuem baixo grau de urbanização e são mais frequentes no Centro-Oeste e Nordeste. O grau de urbanização é inferior a 60%, concentram 9% da população
e respondem por apenas 4% do PIB;
3. Microrregiões estagnadas: com rendimento domiciliar médio, mas com baixo crescimento econômico. Possuem estrutura econômica e capital social relevantes, e grau
de urbanização relativamente elevado (mais de 75%). Concentram cerca de 29% da
população e participam com 18% do PIB, mas apesar de dispersas em todo o território
nacional, predominam nas regiões Sul e Sudeste;
4. Microrregiões de baixa renda: baixo rendimento domiciliar e baixo dinamismo. Combinam pobreza e base econômica frágil. É o mais baixo grau de urbanização e de nível
de educação. Concentram-se no Norte e Nordeste, reúnem cerca de 8,4% da população mas respondem por apenas 1,7% do PIB.
Figura 2 – Níveis de Renda Domiciliar/hab 2000 e Níveis de Variação do PIB/hab 90/98
Fonte: Ministério da Integração – PNDR 2004
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Síntese
As leituras obtidas a partir dos cartogramas resultaram em um conjunto de diretrizes
que orientam a PNDR e esclarecem os seus principais objetivos, expressos da seguinte forma:
A desigualdade regional é resultado da dinâmica assimétrica do crescimento capitalista, que
se concentra em alguns espaços, enquanto condena outros à estagnação e ao desperdício de
fatores produtivos. A PNDR atua no sentido de contrabalançar a lógica centrípeta das forças
de mercado, por meio da promoção e valorização da diversidade regional, conciliando, assim, competitividade e expressão produtiva de valores socioculturais diversos (Ministério da
Integração, 2004, p. 12).
O material produzido revelou dois contrastes marcantes. O primeiro refere-se à já
conhecida concentração no litoral, sobretudo no entorno das regiões metropolitanas,
em contraposição às regiões de baixa densidade, em especial em porções da Amazônia,
Centro-Oeste e semiárido nordestino. Apesar disso, o documento afirma que os indicadores das últimas décadas apontam para uma interiorização constante (ainda que
lenta), coincidindo em certa medida com movimentos já sinalizados pelo estudo do
IPEA (2001).
O segundo contraste exposto pelos cartogramas refere-se às diferenças norte/sul,
sobretudo no que tange à educação, ao rendimento domiciliar e à urbanização. Na contraparte, segundo o estudo em tela, não se registra o mesmo dinamismo econômico entre
as áreas predominantemente agrícolas e os grandes centros urbanos.
Assim, de forma resumida, o documento aponta o seguinte:
1. A coexistência, em todas as macrorregiões do país, de sub-regiões dinâmicas e com elevados rendimentos médios com sub-regiões estagnadas com precárias condições de vida;
2. Dinâmicas microrregionais demográficas e de crescimento do PIB com perfil territorial
disperso;
3. Padrão macrorregional expressivo de diferenciação das principais variáveis;
4. Grande distância de níveis de rendimento e outras variáveis na Amazônia e semiárido
nordestino.
Destaque-se ainda que a PNDR apresenta também os mecanismos de promoção da
articulação intra e intergovernamental e de acordo com as escalas de intervenção são definidas as competências das instâncias de articulação, formulação e operação das iniciativas
destinadas a reduzir as desigualdades intra e inter-regionais.
TIPOLOGIA DAS CIDADES BRASILEIRAS
Elaborado para subsidiar o Plano Nacional das Cidades, em 2004, e publicado
pelo Observatório das Metrópoles, em 2009, o estudo Tipologia das Cidades Brasileiras
(Fernandes, Bitoun, Araújo, 2009) toma como base para a classificação o processo de urbanização brasileira a partir da institucionalização das regiões metropolitanas no Brasil, a
partir dos anos 70, e cita que as diferentes legislações criaram unidades regionais distintas,
dificultando comparações devido à ausência de critérios para as novas categorias espaciais
instituídas. Além disso, a maior autonomia adquirida para promover a regionalização teria
induzido a distorções no âmbito da hierarquização dessas categorias, o que ilustraria a
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falta de um marco legal nacional que regulasse as relações entre os governos das diferentes
esferas e uniformizasse a hierarquização e classificação das unidades.
É, portanto, à luz do panorama metropolitano que o estudo de Fernandes; Bitoun;
Araújo (2009) objetiva:
1. Organizar uma base de indicadores para a classificação e a identificação dos espaços
metropolitanos brasileiros;
2. Desenvolver uma tipologia de espaços segundo a forma e o conteúdo, ordenados em
escala de acordo com seu grau de importância na rede urbana brasileira;
3. Identificar os territórios socialmente vulneráveis no interior das áreas metropolitanas e
seu diagnóstico;
4. Avaliar a capacidade das unidades municipais, inseridas nas regiões metropolitanas, de
responder à implementação de políticas públicas de desenvolvimento urbano.
Como premissas considera-se que uma proposta de tipologia deveria fundamentar-se
em duas abordagens: partindo do território (enfatizando as diversidades territoriais e econômicas que o caracterizam, mensuradas por meio do estoque de riquezas acumuladas e
da dinâmica da criação de novas riquezas); e partindo da rede de cidades e sua capacidade
de estruturar o território em regiões polarizadas. A primeira abordagem norteou a já citada proposta para discussão da Política Nacional de Desenvolvimento Regional – PNDR
(2004) e a segunda originou os estudos elaborados pelo Cedeplar/UFMG (2000) e pelo
IPEA/IBGE/Unicamp (2001), este último também já comentado.
Adicionalmente, Fernandes; Bitoun; Araújo (2009) considera que não poderiam ser
ignoradas situações tanto de concentração como do urbano não metropolitano, mais isolado ou rural, adequando-se as estratégias às situações encontradas, por meio da observação
da totalidade, almejando o desenvolvimento do país como um todo.
Metodologia
Conforme mencionado, a metodologia adotada na construção do estudo (Fernandes,
Bitoun, Araújo, 2009) buscou associar a visão territorial da PNDR à visão da rede urbana.
Em uma primeira etapa, o objetivo foi elaborar uma tipologia dos municípios brasileiros
no âmbito de cada um dos quatro conjuntos microrregionais definidos na PNDR (2004).
Para tanto, foram realizados sucessivamente:
» Uma avaliação da densidade econômica característica de cada uma das 84 mesorregiões
polarizadas, por meio da identificação dos pesos, no total da população residente da mesorregião, das populações residentes em microrregiões de tipo 1 (alto estoque), 3 (médio estoque),
2 (baixo estoque com PIB crescente) e 4 (baixo estoque e baixo crescimento do PIB);
» Um levantamento de variáveis concernentes a todos os municípios sob a forma de um
banco de dados;
» Uma observação da distribuição dos municípios por faixas de tamanhos populacionais em
cada um dos quatro conjuntos microrregionais;
» Uma série de análises multivariadas, com base em variáveis selecionadas no banco de dados,
seguidas por identificações de clusters correspondendo a classes de municípios, levando em
conta faixas de tamanho populacional e posição em conjuntos microrregionais;
» Uma primeira caracterização das classes de municípios identificados visando sugerir o
papel que exercem no território e, consequentemente, quais diretrizes de política urbana
poderiam ser concebidas num âmbito de uma ação integrada dos diversos ministérios
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encarregados do desenvolvimento urbano e territorial do país (Fernandes, Bitoun, Araújo,
2009, p.22-3).
Salienta-se que as análises não levaram em consideração dados de crescimento populacional devido à criação de grande quantidade de municípios no período intercensos 1991
–2000, pois tal comparação extrapolaria o limite de tempo para a conclusão do trabalho.
As classes criadas (A, B, C e D) em cada um dos universos analisados foram subdivididas pelo valor dos fatores encontrados, sendo que o fator 1 indica o padrão de riqueza
(quanto maior o seu valor, maior o padrão de riqueza) e o fator 2 indica o padrão de
pobreza (quanto maior o seu valor, maior o padrão de pobreza). De modo simplificado,
pode-se dizer que a classe A apresentaria alto fator 1 e baixo fator 2; a classe B apresentaria
fator 1 mais baixo que a classe A e fator 2 mais alto; a classe C apresentaria valores muito
baixos nos fatores 1 e 2; e a classe D apresentaria valores muito baixos no fator 1 e altos
no fator 2.
Classificação Proposta
Os dados encontrados e a classificação proposta possibilitam uma leitura dos municípios e regiões brasileiras, bem como uma correlação da situação econômico-social
com a posição geográfica e a dimensão populacional, obtendo-se assim uma visualização
dos principais problemas urbanos a serem resolvidos e onde estão localizados. Tais dados
também permitem constatar as prioridades e os tipos de investimentos demandados pelas
regiões e municípios, possibilitando o emprego mais eficiente dos recursos.
POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO
URBANO – PNDU
Buscar-se-á aqui ilustrar como as diferentes leituras sobre a rede urbana são incorporadas às políticas nacionais, tomando como objeto de análise a PNDU, que foi construída
na 1ª Conferência Nacional das Cidades, por meio dos delegados eleitos em todo o país.
O processo, que pressupôs a participação de diversos atores governamentais e da
sociedade, veio do entendimento da necessidade de construção de alguns consensos que
orientassem as ações dos diversos níveis de governo, sem as quais não seria possível um
efetivo impacto urbano. As propostas estruturantes têm natureza intraurbana e o documento somente tange as questões de desigualdade regional. Sendo assim, se relaciona com
a Tipologia das Cidades Brasileiras, encomendada pelo Ministério das Cidades, conforme
já citado, e que olha para as questões intra e inter-municípios.
A PNDU define o desenvolvimento urbano como “melhoria das condições materiais
e subjetivas de vida nas cidades, com diminuição da desigualdade social e garantia de
sustentabilidade ambiental, social e econômica” (Ministério das Cidades, 2004, p. 8), e
entende que a cidade não é neutra, mas uma força ativa capaz de produzir desenvolvimento econômico, gerando emprego e renda. Nessa lógica, se propõe a não encarar as políticas
urbanas no âmbito das políticas sociais, ou seja, no sentido de operar somente nos efeitos
das desigualdades, mas sim em suas causas.
Quando discute a desigualdade regional e as cidades, a PNDU reconhece que as tendências locacionais das atividades econômicas influenciam e são influenciadas pela rede
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urbana, e destaca quatro grandes movimentos do ponto de vista industrial, que reorientam
parte dos fluxos migratórios e contribuem para o crescimento da rede de cidades:
1. Ampliação da área metropolitana de São Paulo e sua integração com a região de Campinas, São José dos Campos, Sorocaba e Santos;
2. Aglomeração macroespacial da indústria entre a região central de Minas Gerais e o
Nordeste do Rio Grande do Sul;
3. Retomada da indústria da região Nordeste com o setor têxtil, confecções, calçados e
alimentos, devido aos incentivos fiscais e à mão de obra mais barata;
4. Avanço da produção agrícola no Centro-Oeste (cerrado) e exploração mineral no Norte.
Pela premissa e dinâmica territorial das aglomerações apresentadas, o documento
mostra a clara influência do estudo sobre a rede urbana elaborado pelo IPEA, bem como
da tipologia de microrregiões da PNDR, ambos já citados.
Antes de explicitar os eixos e ações da PNDU, o documento aponta hipóteses para a
reconfiguração da rede urbana. A primeira seria a criação de novas centralidades urbanas,
como suporte de desenvolvimento econômico de seus entornos e para reorientação de
fluxos migratórios e freio do crescimento demográfico das grandes metrópoles. A PNDU
ressalta que, para tanto, são necessários dois elementos centrais: os sistemas de transportes
inter e intrarregionais e a concentração de equipamentos urbanos.
A segunda hipótese parte da definição de políticas públicas específicas segundo a
diversidade da rede urbana, mas com a priorização de investimentos e ações nas regiões
metropolitanas, pois “o desperdício da força produtiva concentrada nas metrópoles e os
constrangimentos advindos da metropolização da vida social inviabilizariam qualquer
projeto de desenvolvimento e coesão nacional” (Ministério das Cidades, 2004, p. 39).
Ao apontar a segunda hipótese (priorização das regiões metropolitanas) como áreas
de investimento prioritário, a PNDU explicita sua opção por atuar no passivo urbano (nos
deficits acumulados especialmente nos setores de saneamento, habitação e regularização
fundiária).
Abaixo, estão destacadas as propostas estruturantes da PNDU e que refletem este
direcionamento.
Implementação dos Instrumentos Fundiários do Estatuto da Cidade
Visando combater a apropriação privada dos investimentos públicos na cidade, a
aplicação desses instrumentos persegue a função social da cidade e da propriedade. Apesar
de ambas serem de competência constitucional municipal, por meio do Plano Diretor, o
Governo Federal tem papel fundamental por concentrar recursos financeiros e técnicos,
especialmente se comparado à fragilidade institucional de boa parte dos municípios.
Para alcançar o objetivo de promover a inclusão territorial (Ministério das Cidades,
2004, p. 56), foi desenvolvida a Política de Apoio à Elaboração e Revisão de Planos Diretores que, para além do financiamento, buscou orientar conceitual, programática e metodologicamente os municípios, sobretudo para a promoção da habitação de interesse social.
Estrutura do Sistema Nacional de Habitação
No sentido da reestruturação institucional e legal do setor, a Política Nacional de Habitação, aprovada pelo Conselho das Cidades (ConCidades) e instituída a partir de 2004,
apontou medidas políticas, legais e administrativas visando efetivar o exercício do direito
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social à moradia e previu a organização de um Sistema Nacional de Habitação (SNH), o
qual organiza os agentes que atuam na área de habitação e reúne os esforços dos três níveis
de governo e do mercado, além de cooperativas, associações e movimentos sociais.
O Sistema está subdividido em dois sistemas que operam com diferentes fontes de
recursos, formas, condições de financiamento e, de forma complementar, estabelecem mecanismos para a provisão de moradias em todos os segmentos sociais: o Sistema Nacional
de Habitação de Mercado (SNHM) e o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social
(SNHIS). Este último, instituído pela Lei Federal 11.124/2005,1 é voltado exclusivamente
para a faixa de interesse social, definindo um modelo de gestão descentralizado e com
instâncias de participação, que busca compatibilizar as políticas habitacionais federal, estadual, do Distrito Federal e municipal, e as demais políticas setoriais de desenvolvimento
urbano, ambientais e sociais. A adesão dos entes subnacionais ao SNHIS caracteriza-se
como voluntária, mas é condição necessária para que o FNHIS seja operado.
Promoção da Mobilidade Urbana Sustentável e Cidadania no Trânsito
Os principais objetivos da Política Nacional de Mobilidade Urbana são a integração
entre transporte e controle territorial, redução das deseconomias de circulação e a oferta
de transporte público eficiente e de qualidade, além do uso equânime do espaço urbano,
melhoria da qualidade do ar e a valorização da acessibilidade universal e dos deslocamentos de pedestres e ciclistas.
Para promover uma mobilidade urbana sustentável, a PNDU considera a necessidade
de um planejamento integrado de transporte e uso do solo, a atualização da regulação e
gestão do transporte coletivo urbano e a promoção da circulação não motorizada.
Marco Legal para o Saneamento Ambiental
A Política Nacional de Saneamento Ambiental considerou fundamental a retomada
da capacidade orientadora do Estado na condução da política pública de saneamento
básico visando à universalização do acesso a esses serviços como um direito social. Para
tanto, propôs a revisão do marco regulatório para o setor, concretizado na Lei Federal
11.445/2007, assim como a cooperação entre os entes, especialmente metropolitanos,
que também contou com a Lei dos Consórcios Públicos – Lei Federal 11.107/2005.
Recentemente, as diretrizes para a Política Nacional de Resíduos Sólidos foi consolidada
na Lei Federal 12.305/2010. Tais providências foram acompanhadas pela retomada dos
investimentos na área, destinadas a enfrentar a imensa carência de infraestrutura no Brasil, sobretudo no Norte e Nordeste.
Capacitar e Informar As Cidades
A PNDU estabeleceu como público prioritário do Programa Nacional de Capacitação das Cidades (PNCC) (executado essencialmente por meio de parcerias) os
técnicos das administrações públicas municipais, os atores sociais envolvidos com a
implementação da política urbana e os técnicos das Gerências de Desenvolvimento
Urbano – GIDUR/Caixa.
Outra ferramenta designada como fundamental para a gestão das cidades foi o
Sistema Nacional de Informações das Cidades – SNIC, que consiste na sistematização,
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1 O projeto de lei para o
SNHIS foi apresentado ao
Congresso Nacional em
1991 por organizações e
movimentos populares urbanos filiados ao Fórum Nacional de Reforma Urbana, assinado por mais de um milhão
de pessoas e tramitou por
13 anos. Assim, sua aprovação é considerada uma
conquista dos movimentos
sociais.
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digitalização e georreferenciamento de informações e indicadores e sua disponibilização
não só para os municípios, mas para toda sociedade.
Cabe destacar que algumas políticas setoriais tiveram mais prioridade política, especialmente com a disponibilização de recursos, por parte da Presidência da República,
causando certo desequilíbrio em termos das metas e objetivos almejados pela PNDU, sobretudo quando se comparam às iniciativas incluídas ou não no Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC). É o caso das ações de saneamento ambiental em relação às ações
de desenvolvimento institucional previstas na PNDU, não priorizadas.
Apesar de obras fundamentais para a garantia de condições mínimas de qualidade
de vida urbana, o descasamento entre o vultoso investimento em infraestrutura face às
iniciativas de desenvolvimento institucional e capacitação na gestão urbana tendem a gerar
externalidades indesejáveis ao processo, tais como valorização imobiliária ou a “expulsão
branca” de moradores de áreas que receberam investimentos públicos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Destaca-se, inicialmente, a complementaridade entre os estudos, dado que o estudo
do IPEA (2001) – que traz uma abordagem macrorregional e extrapola o uso das variáveis
populacionais – foi utilizado ou serviu de subsídio para os demais estudos analisados. Sua
contribuição é significativa, entre outras razões, por suprir a defasagem de quase duas
décadas na produção de uma leitura mais ampla da rede urbana do Brasil de final do
século XX.
O IPEA (2001) aponta evidências observadas em estudos antecedentes (como o
agravamento das disparidades e as diferenciações nas configurações espaciais e ritmos
de desenvolvimento, presentes em planos desde a década de 1970), antecipa tendências
ratificadas pelos estudos posteriores (como a dinâmica das cidades médias e áreas de
fronteira) e traz sugestões também aperfeiçoadas pelos trabalhos que lhe seguiram (como
a necessidade de elaboração de planos específicos e o fortalecimento dos mecanismos de
gestão). Naturalmente, o estudo do IPEA não conseguiu antecipar movimentos que só
surgiriam a partir de análises mais focadas e, principalmente, das políticas públicas e do
contexto econômico que caracterizam esses dez anos desde a sua publicação, limitando o
uso das suas conclusões nos dias atuais.
Ainda avaliando a complementaridade, constata-se que a PNDR adota fontes próximas ou semelhantes ao IPEA (2001), mas opta por um recorte microrregional, coerente
com o seu objetivo de identificação e atuação em áreas mais deprimidas. E mais: como
a PNDR surge no bojo da retomada do planejamento nacional e regional (ignorados nas
duas décadas anteriores), ela visa não apenas ler, mas extrair evidências que orientem um
conjunto de políticas públicas destinadas a reduzir as disparidades regionais e, neste sentido, realiza uma leitura mais eficiente na identificação de áreas vulneráveis.
Fernandes; Bitoun; Araújo (2009), por sua vez, reúne contribuições do IPEA (2001),
da PNDR (2004) e dos estudos do Cedeplar (2000), orientando o seu olhar para as áreas
metropolitanas (ainda que não desconsidere as demais). Tal escolha evidencia a opção
do órgão demandante (o Ministério das Cidades) no sentido de atuar em áreas de maior
concentração populacional e representa uma proposta bastante instrumental, na medida
em que sobrepõe e relaciona visões múltiplas sobre os territórios, possibilitando escolhas
mais ponderadas.
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Constata-se também a forte correlação entre a PNDR e o PNDU, uma vez que a
primeira opta exatamente pela alternativa rejeitada pelo segundo, ou seja, busca mecanismos que, ao final, estimulem o desenvolvimento de novas centralidades, fora das
áreas mais pressionadas. Naturalmente, este movimento não representa a intersetorialidade almejada pela Administração Pública nem significa uma estratégia suficientemente
abrangente, mas pode sugerir avanços, dado que escolhas isoladas tenderiam a agravar
problemas já instalados. Ainda assim, é fundamental avaliar em que medida estas políticas têm sido efetivamente complementares ou se ainda restam vazios conceituais não
alcançados por nenhuma delas, por exemplo, no caso de territórios nem tão vulneráveis
nem tão pressionados – como talvez seja o caso das cidades com população entre 20 e
50 mil habitantes.
Outra evidência é o papel determinante das variáveis econômicas na construção das
análises, mas, sobre este assunto, a questão que merece atenção especial é o que determinou a escolha do método, que começa com a definição e coleta das variáveis; avança
no tratamento dos dados e nos pesos atribuídos às variáveis escolhidas; consolida-se nas
leituras extraídas, no uso dados às informações e, sobretudo, nas propostas e políticas que
se originam a partir dali. Tais escolhas refletem, em grande medida, a própria concepção
de desenvolvimento das instituições responsáveis e dos órgãos demandantes e reforça a
preocupação com as ideologias subjetivas que interferem no resultado final.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, R. S. O pensamento geográfico do IBGE no contexto do planejamento estatal brasileiro. In: MARTINS, R. A.; MARTINS, L. A. C. P.; SILVA, C. C.; FERREIRA,
J. M. H. (Eds.). Filosofia e história da ciência no cone sul: 3º encontro. Campinas: AFHIC,
2004. p.410-5. Disponível em: <http://ghtc.ifi.unicamp.br/AFHIC3/Trabalhos/55Roberto-Schmidt-Almeida.pdf>. Acesso em: 06 out. 2010.
BRASIL. Ministério das Cidades. Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Brasília,
DF, 2004.
BRASIL. Ministério da Integração. Política Nacional de Desenvolvimento Regional. Brasília, DF, 2004. Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/desenvolvimentoregional/
pndr/>. Acesso em: 08 out. 2010.
FERNANDES, A. C., BITOUN, J., ARAÚJO, T. B. Tipologia das cidades brasileiras
(Vol. 2) BITOUN, J., MIRANDA, L. (Orgs.). Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2009. Disponível em: <http://www.observatoriodasmetropoles.
ufrj.br/Vol2_tipologia_cidades_brasileiras.pdf>. Acesso em: 30 set. 2010.
IPEA, IBGE e UNICAMP. Configuração Atual e Tendências da Rede Urbana (Vol. 1),
Série Caracterização e Tendências da Rede Urbana do Brasil, IPEA, IBGE, NESUR,
Universidade Estadual de Campinas, Brasília, 2001.
A b s t r a c t The Brazilian urban network classification is an important tool
of political, economic and social management, since it allows a more accurate direction for
urban investments. Analyzing three recent studies that have developed ratings for Urban
Network – Configuração Atual e Tendências da Rede Urbana, developed by Instituto de
Pesquisas Aplicadas and Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Política Nacional
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Alessandra d’Ávila Vieira é arquiteta e urbanista
do Ministério das Cidades;
doutoranda do Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UNB.
Email: alessandra.vieira@
cidades.gov.br
Liliane Janine Nizzola é
arquiteta e urbanista do Instituto de Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional; mestre
em Arquitetura e Urbanismo pela UFSC. Email: liliane.
[email protected]
Luana Miranda Esper
Kallas é arquiteta e urbanista; doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da
UNB. Email: luanakallas@uol.
com.br
Manuelita Falcão Brito é
gestora pública do Ministério da Educação; mestre em
Políticas Públicas pela Fundação Joaquim Nabuco; doutoranda do Programa de PósGraduação em Arquitetura e
Urbanismo da UnB. Email:
[email protected]
Benny Schvasberg é mestre em Planejamento Urbano
e Regional (IPPUR/UFRJ);
doutor em Sociologia Urbana
(UnB); Professor Associado II
da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo e do Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UnB.
Email: [email protected]
Rodrigo Santos de Faria é
mestre e doutor em História
(IFCH-UNICAMP); Professor
Adjunto II da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo e do
Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo
da UnB. Email: rodrigof@
unb.br
Ar­ti­go re­ce­bi­do em junho de
2011 e apro­va­do pa­ra pu­
bli­ca­ção em setembro de
2011.
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de Desenvolvimento Regional, by Ministério da Integração Nacional, and, Tipologia das
Cidades Brasileiras, by Observatório das Metrópoles – we can detect the permeability and
complementarity between them, their contributions of them and the challenge to produce a
consistent classification with the diversity of Brazilian cities. We highlight how the different
interpretations of the urban network are incorporated into public policies, showing that the
studies are part of the construction of a national urban policy. In this way, we believe that
major challenges have been overcome.
Keywords
Cities; urban development; public management; public policies;
Brazilian urban network.
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OS USOS DA INFORMAÇÃO
ESTRATÉGICA SOBRE
O TERRITÓRIO
A Empresa de Consultoria PricewaterhouseCoopers
e o Planejamento Territorial
Sérgio Henrique de Oliveira Teixeira
Adriana Maria Bernardes Silva
R e ­s u ­m o
O presente trabalho busca contribuir para a investigação da produção, da
circulação e do poder articulador das informações no território brasileiro. Para tanto, partimos
da investigação das empresas de consultoria em geral e da empresa de consultoria transnacional
PricewaterhouseCoopers em particular. São analisadas a topologia da empresa, a tipologia das
informações produzidas e a articulação de seus escritórios com a rede de cidades brasileiras. A
estruturação da rede urbana brasileira foi central para a ramificação da empresa no território
nacional. Trata-se de uma grande empresa de consultoria com importante participação no
processo de reestruturação produtiva das corporações, bem como no processo de planejamento
e privatização do território, assim como do aparelho estatal brasileiro na década de 1990.
Analisamos, por fim, como esse planejamento foi colocado em contraposição ao planejamento
participativo e democrático, voltado à totalidade da sociedade e do território.
P a ­l a ­v r a s - c h a ­v e
Uso do território; círculos de cooperação; PricewaterhouseCoopers; empresas de consultoria; planejamento; privatização.
A INFORMAÇÃO, A REORGANIZAÇÃO E O USO
DO TERRITÓRIO BRASILEIRO
A informação está no centro de vários debates contemporâneos. Quem controla a informação, quem a difunde, seus usos e seu papel na reestruturação da economia e do espaço têm sido constantemente debatidos. No entanto, poucas são as análises que conseguem
sair do senso comum e depurar o que seria a informação e seu estatuto. Nossa intenção é
enfocar a informação organizacional produzida por poucas empresas especializadas, exatamente por serem estratégicas à acumulação, ao poder e ao controle do uso do território.
Conforme assinalou Benko (1996) foi em busca de uma mais valia cada vez mais
sequiosa de agilidade que no último quartel do século XX o capitalismo foi marcado
por uma ampla reestruturação da produção. A divisão social e territorial do trabalho foi
aprofundada e a organização mundial passa a se dar de forma mais complexa e interdependente, conformando e destruindo, criando e reproduzindo, novas articulações e redes.
Neste contexto, a informação ascende como uma de suas forças motrizes trazendo consigo
a possibilidade (e a imposição) de um comando ágil, Just in Time. O menor tempo de
circulação, distribuição e consumo torna-se central para a reprodução do capital (Harvey,
2005). A nova divisão do trabalho, portanto, também está sustentada na emergência e
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difusão das tecnologias da informação (TI), uma vez que a informação estratégica tornouse também elemento estruturador do território.
Parte da informação nascente nesse período é sigilosa e preenchida de valor de troca,
pois, em um período em que a base do sistema capitalista globalizado é a especulação
financeira, as incertezas e riscos gerados pelo sistema econômico exigem informações cada
vez mais trabalhadas. Tais informações, diga-se de passagem, são fundadas em práticas
científicas e utilizadas para orientar análises de conjuntura e criar vantagens competitivas.
Não deve nos surpreender, portanto, o fato de a informação tornar-se cada vez mais
necessária ao processo de acumulação – para conhecer, organizar e planejar a produção a
partir de um trabalho imaterial. Como assinalou Castillho (1999, p.34):
A informação assume características de conhecimento, controle e comando do território,
sendo agora mais hierárquica e corporativa, uma vez mediada pelas novas tecnologias informacionais.
Essa é, portanto, a característica fundamental do período atual em que a associação
intrínseca entre produção, técnica e ciência, com a informação, assumem papel central.
Passa-se, assim, de um meio técnico a um meio ambiente técnico-científico-informacional
(Santos, 1999 [1996]). É o período da grande indústria transnacional, das grandes corporações, da internacionalização excessiva, da rapidez, da difusão (seletiva) das inovações e
da indiferença dos sistemas técnicos em relação ao lugar em que se instalam.
Segundo Santos (1999 [1996], p.191), hoje “a informação não apenas está presente
nas coisas, nos objetos técnicos que formam o espaço, como ela é necessária à ação realizada sobre essas coisas”. Portanto, ao analisarmos as mudanças constituídas e constituintes
do território, após o advento da “revolução informacional” (Lojkine, 1995), veremos que
o território foi (e é) moldado para se adaptar ao capital informatizado, a partir de uma
intencionalidade verticalizada dos atores globais.
AS CONSULTORIAS E A EMPRESA
PRICEWATERHOOSECOOPERS
Nas últimas décadas, configurou-se no mundo um grupo de empresas de consultoria, constituindo uma rede planetária de informação e incluindo nessa arquitetura os
países subdesenvolvidos. Essas empresas ganharam relevância, principalmente, após a revolução informacional da década de 1970, que possibilitou o uso da informação aplicada
a modelos de gestão e à reestruturação industrial, responsável por uma nova organização
empresarial.
As empresas de consultoria nasceram no final do século XIX, mas só tomaram a
forma das atuais empresas depois de um longo processo de fusões e aquisições. Em sua
origem, estão ligadas ao processo de desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos
e na Inglaterra. Segundo Donadone (2003, p.4), das dez maiores empresas de consultoria
no mundo, nove têm origem nesses países e apenas uma na França.
A enorme complexidade que assumiu a produção nesses dois países trouxe a necessidade de organizar a indústria com informações mais precisas. No início, seus maiores
clientes eram bancos. Estes buscavam assessoria para questões específicas de engenharia,
contabilidade e direito, a fim de avaliar as transações de fusões e aquisições que passam a
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S. H. OLIVEIRA TEIXEIRA, A. M. BERNARDES SILVA
ser cada vez mais demandadas, principalmente a partir dos anos 1920. Note-se que, desde
o princípio, as empresas de auditoria (posteriormente também de consultoria) lidam com
a informação organizacional e estão ligadas com o desenvolvimento territorial e industrial
dos países centrais. Por isso, concordamos com Lojkine (1995, p.115) quando o autor
afirma que “não se pode separar a transformação de natureza material do grande desenvolvimento das funções informacionais”.
Um novo impulso a essas empresas se deu na década de 1930; após a quebra da
bolsa de Nova York, as empresas de auditoria/consultoria foram requisitadas para estabelecer planos de salvamento das grandes empresas. De fato, nesse momento os Estados
nacionais também passam a requisitar serviços de tais empresas, no contexto de origem
e disseminação do planejamento moderno do século XX. Como evidenciou Santos
(2003), o planejamento, que até agora vivemos, é fruto de um processo desencadeado a
partir da crise mundial da década de 30, que teria colocado a necessidade cada vez mais
premente de um planejamento que não deixasse a “rédea solta” do mercado. Segundo
Donadone (2003, p.4), “entre as décadas de 1930 e 1940, o número de empresas de
consultoria cresceu a uma taxa de 15% ao ano, passando de 100 empresas, em 1930,
para 400, em 1940”. Outro momento de fortalecimento dessas empresas é verificado
nos anos de 1940. Desta vez, a relação entre empresas de consultoria e Estado terá
como finalidade a organização da guerra e a reconstrução da Europa. Como exemplo,
podemos identificar a contratação pelo governo estadunidense de inúmeras consultoras.
Os estudos da Booz Allen & Hamilton para a reorganização do exército e da marinha,
e a transferência de seu principal escritório para Washington, evidenciam esse processo
(Manzoni Neto, 2007).
Como vemos, o uso da informação é cada vez mais presente para a organização do
Estado e das empresas. Tal processo ganhará novo impulso, mas dessa vez decisivo, a
partir das décadas de 1970 e 1980, por conta da reestruturação produtiva. Muitas plantas
fordistas são substituídas por uma produção flexível dispersa pelos territórios, especializando cada setor aos lugares, formando-se verdadeiros circuitos espaciais de produção em
escala planetária.
Nesses circuitos, ganha destaque a função gerenciadora. Tendo seu papel cada vez
mais destacado, ela permite a descentralização da produção e a concentração do comando.
Autonomia e interdependência é um par que se aprofunda, já que para o bom funcionamento dos circuitos espaciais produtivos é necessária uma rede articulada em círculos de
cooperação.1 É também neste processo que a terceirização é aprofundada e gestada.
É, portanto, a partir do desenvolvimento das tecnologias de informação, tributárias
da guerra, que vêm à tona novas possibilidades de organização calcadas em novos sistemas
técnicos. Há um aprofundamento na divisão social e territorial do trabalho, que especializa ainda mais cada parte do processo produtivo, complexificando o que Marx (1983,
p.259) chama de “cooperação”. A ascendência das tecnologias da informação muda a
forma de organização e planejamento das empresas, atesta Donadone (2003, p.7),
O incremento da informatização de aspectos administrativos e da produção com o intuito de
ganhos de produtividade e utilização de softwares voltados à gestão de aspectos organizacionais possibilitaram um importante mercado para as consultorias.
As empresas de consultoria são requisitadas para a venda de planos de gestão e avaliação estratégica. Auditorias e relatórios de fusões e aquisições começam a ser produzidos
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1 Circuitos espaciais de
produção “são definidos
pela circulação de bens e
produtos e, por isso, oferecem uma visão dinâmica,
apontando a maneira como
os fluxos perpassam o território” (Santos & Silveira,
2001, p.143). Os círculos
de cooperação, tratam da
comunicação, presentes na
transferência de capitais,
ordens e informações (fluxos imateriais), garantindo
a organização de agentes
dispersos geograficamente.
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em grande quantidade por essas empresas, principalmente no contexto dos anos 1990 por
conta dos macro processos de fusões.
Destaca-se que as próprias empresas de consultoria passarão por esse processo de
fusões. Trata-se de empresas que levaram o nome, segundo Donadone (2002), de accouting Firms, empresas de informação relacionadas a auditorias e consultorias tais como as
“big Five” – PricewaterhouseCoopers, Accenture Consulting, KPMG, Ernst & Young e
Delloitte Touche Tohmatsu – que controlam a maior parte do mercado de consultoria e
auditoria no mundo. Estas empresas controlam boa parte do mercado mundial e latinoamericano de consultoria, que tiveram, nas últimas décadas, um crescimento vertiginoso.
Como atesta Medeiros (2005, p.15),
Em 1977, Price e Peat cindiram suas atividades. Em 1987, nasceu a atual KPMG, união
das empresas Peat Marwick & Mitchel, Robert Dreyfuss e Klynveld Main Goerdeler. A
Price Waterhouse realizou, em 1998, fusão com a empresa Coopers & Librand, surgindo a
PricewaterhouseCoopers.
Vemos, portanto, que a reestruturação produtiva associada às mudanças gerenciais
posicionaram essas empresas como grandes agentes de organização da produção em escala
mundial. As mudanças decorrentes da ascendência do meio técnico-científico-informacional, por sua vez, tornaram possível a difusão dessas empresas em nível global.
As grandes empresas de consultoria ganham papel ainda mais relevante no mercado
capitalista nas últimas décadas, pois, preparadas e organizadas com base em um vasto conhecimento sobre os mercados e os territórios (incluindo suas normas), dão suporte às corporações na nova política neoliberal de privatizações. Segundo Manzoni Neto (2007, p.40),
Uma vez que elas detêm um conjunto de informações estratégicas e valiosas sobre os lugares,
seus serviços tornam-se insumos fundamentais nas estratégias corporativas, na busca pela
fluidez mediante novos marcos normativos nacionais.
O desenvolvimento do capitalismo monopolista também vai favorecer o crescimento
das consultorias, uma vez que a competitividade das empresas tornará as informações
guardadas nos bancos de dados das consultorias ainda mais valiosas. Como assinalaram
Farias & Silva (2008, p.8),
Os imperativos da globalização – com a busca desenfreada pela competitividade entre os
grupos empresariais e, inclusive, entre territórios – fortalecem a atuação das empresas de
consultoria, uma vez que elas especializaram-se no conhecimento de métodos e de modelos
administrativos e gerenciais, sendo, portanto, detentoras de um “know-how” que escapa a
especialização produtiva das corporações.
Esse mercado das consultorias se expande rapidamente, obtendo um ganho de escala
vertiginoso. A tabela a seguir demonstra isso.
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S. H. OLIVEIRA TEIXEIRA, A. M. BERNARDES SILVA
Tabela 1 – Comparativo de receitas das quatro principais consultorias do mundo em
1996/2009
Consultorias em 1996
Empresas
Consultorias em 2009
Receitas
Funcionários
Andersen Consulting
$5.3bl
45000
Ernst & Young
$3.5bl
Coopers & Lybrand
Mckinsei & Co
Empresas
Receitas
Funcionários
PricewaterhouseCoopers
$26.2bl
163000
11200
Delloitte Touche
$26.bl
169000
$2.9bl
9000
Ernst & Young
$21.4bl
144441
$2.9bl
3900
KPMG
$22.7bl
135000
Fonte: Elaborado a partir de Donadone (2003) e PWC Global Anual Review (2009)
Nota-se que, em 14 anos, os números mudam vultosamente. As empresas atingem
um crescimento acima de 300% em renda e em número de funcionários.
Dentre as empresas de consultoria no mundo, destaca-se o fato de todas terem escritórios no Brasil. Nos chama ainda a atenção a vasta história de atuação no país. É o que
atesta Medeiros (2005, p.15),
Em razão da chegada dos investidores estrangeiros [...] as firmas de auditoria provenientes
dos países onde as bases do capitalismo já estavam sedimentadas (Estados Unidos da América
do Norte e Inglaterra), abriram filiais no Brasil, logo nas primeiras décadas do século XX.
Assim, a firma antecessora da atual multinacional Deloitte Touche Tohmatsu abriu seu primeiro escritório em solo brasileiro em 1911, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), e um segundo
na cidade de Recife (PE), em 1917. A Price Waterhouse & Peat Marwick chegou ao Brasil
em 1915. Anos depois, ingressaram no país, a Arthur Andersen (1957) e a Artur & Young
(1959), antecessora da atual Ernst & Young.
No Brasil, a atuação das empresas de consultoria não é recente. Entretanto, somente nas últimas décadas elas ganharam peso nas articulações do mercado nacionalinternacional, visto que tal processo também acompanhou e subsidiou a financeirização
da economia e as privatizações.
É sabido que a partir da década de 1990, aprofunda-se no Brasil o processo de
privatização dos setores estratégicos do Estado, em consonância com uma concorrência
cada vez maior entre as transnacionais, que passam a ocupar maiores espaços no território
nacional. Para isso, as empresas de consultoria foram chamadas a gerenciar e administrar
os processos de fusão, aquisição e privatização. E é neste contexto que surgirá a gigante
PricewaterhouseCoopers, fruto de uma mega fusão. Segundo Donadone (2001, p.37), essa
empresa já nasce como a segunda maior consultoria mundial, contando com um faturamento que superava 9 bilhões de dólares, e tendo escritórios espalhados por 149 países,
com um corpo de 140 mil funcionários.
A Pricewaterhouse e a Coopers & Lybrand, grandes empresas com atuação no Brasil
desde a década de 1980, foram responsáveis por importantes contratos no país. Em 1993,
a Coopers & Lyabrand foi contratada pelo BNDES como empresa responsável para organizar a auditoria e o processo de privatização do setor de energia elétrica no Brasil (Plano
RE-SEB – Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro2).
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2 O projeto foi o responsável
por concretizar a privatização do setor em 1997 sob
uma lógica clara: “implementar a concorrência em um
setor monopolizado pelo
Estado e controlado pela
holding (estatal) Eletrobrás”
(Antas Jr., 2005, p.210).
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Em 1998, após a fusão das empresas, a PricewaterhouseCoopers (PWC) chegará a ser
a primeira do setor em faturamento, no mundo e no Brasil. Segundo a Bovespa, a PWC
situa-se sempre entre as cinco primeiras empresas em número de clientes no Brasil.
Entre os clientes da PWC estão quase todas as maiores empresas em atividade no
globo – Ford Motor Company, Chevron Texaco e IBM. A seguir, sintetizamos todos os
clientes da PWC no Brasil, a partir de dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Note-se que as empresas clientes foram agrupadas por setores de atuação da PWC.
Tabela 2 – Empresas clientes da PWC no Brasil em 2010
Agrobusiness
Brasilagro Cia Bras. de Prop. Agrícolas, Fertilizantes Fosfatados S.A., Fosfertil –
Fertilizantes Heringer S.A., Cia Bras de Agropec – Cobrape
Automotivo/Aéreo
e Logística
Marcopolo S.A., Trip Linhas Aéreas S.A., Tam S.A., Concessionária Rota das
Bandeiras S.A., Tegma Gestão Logística S.A.
Celulose
Araucária Participações S.A., Santher Fab. de Papel Santa Therezinha S.A.
Comunicação
e Informação
Telemar Participações S.A., 202 Participações S.A., Agv Holding S.A.
Consumo e Varejo
Iguatemi Empresa de Shopping Centers S.A., Ind Azulejos Bahia S.A.,
Lojas Renner S.A., Shopping Center Tacaruna S.A., Sdv Adm. de Shopping
Centers S.A., Souza Cruz S.A., Br Malls Participações S.A, Csu Cardsystem S.A.,
Gbarbosa Holding S.A., Kroton Educacional S.A., Multiplus S.A.,
Paramount Têxteis Indústria e Comércio S.A., Companhia de Fiação e Tecidos
Santo Antônio
Engenharia de
Construção
CP Cimento e Participações S.A., Even Construtora e Incorporadora S.A.
João Fortes Engenharia S.A., Mills Estruturas e Serviços de Engenharia S.A.,
Duratex S.A.
Farmacêutico
Drogasil S.A., Lab. Americano de Farmacoterapia S.A., Lab. Americano de
Farmacoterapia S.A., Raia S.A., Hypermarcas S.A.
Financeiro
Banco Bradesco S.A., Banco Indusval S.A., Banco Mercantil Brasil S.A.,
Bco Mercantil Invs Sabm&F Bovespa S.A. – Bolsa de Valores, Mercadorias e
Futuros, Bradesco Leasing S.A., BRB Banco de Brasília S.A., Brazilian Finance &
Real Estate S.A., Itaú Unibanco Holding S.A., Itaúsa – Investimentos Itaú S.A.,
Itauseg Participações S.A., Itautec S.A. – Grupo Itautec, Redecard S.A.,
BFB Leasing S.A. Arrendamento Mercantil, Bmg Leasing S.A. Arrend. Mercantil,
Brz Investimentos S.A., Dhb Ind. e Comércio S.A., Dibens Leasing S.A., Grv
Solutions S.A., Habitasec Securitizadora, Investimentos Bemge S.A, Mercantil do
Br Finc S.A. Cfi, Mercantil Do Brasil Leasing S.A., Multichem Trust S.A., Porto
Seguro S.A., Prolan Soluções Integradas S.A., Safra Companhia Securitizadora de
Créditos Imobiliários, Safra Leasing S.A. Arrendamento Mercantil, Safra Leasing
S.A. Arrendamento Mercantil, Serasa S.A.
Governo
Não há dados de serviços governamentais na CVM
Mineração e Metais
Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais S.A., Vale S.A., Litel Participações S.A.,
Magnesita Refratários S.A.
Petróleo e gás
Quattor Petroquímica S.A., Petroquímicas S.A., White Martins Gases Industriais
do Norte S.A., Gec Participações S.A., Unipar – União de Indústrias Petroquímicas
Químico
Companhia Providência Ind. e Comércio, Dixie Toga S.A., Millennium
Inorganic Chemicals do Brasil
Elétrico e Utilidade
Pública
Duke Energy Int Geração Paranapanema S.A., Eletrobrás Participações S.A. –
Eletropar, Energipar Captação S.A., Centrais Elétricas Brasileiras S.A.,
Cia Hidro Elétrica Do São Francisco, Cia Saneamento Básico Estado São Paulo,
Ita Energética S.A., Machadinho Energética S.A., Serra do Facão Participações
S.A., Tempo Participações S.A.
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S. H. OLIVEIRA TEIXEIRA, A. M. BERNARDES SILVA
O faturamento líquido global da PricewaterhouseCoopers foi de US$ 17,6 bilhões no
ano fiscal de 2004. Em 2009, essa cifra atingiu US$ 26,2 bilhões, tornando-a a maior
empresa de consultoria do mundo depois que a consultoria líder até então, a Arthur Andersen, quebrou devido ao escândalo envolvendo a empresa Enron.4
Tabela 3 – Receitas e funcionários das “Big For” (2009)
Empresas
Receitas
Funcionários
PricewaterhouseCoopers
$26.2bl
163.000
Deloitte Touche Tohmatsu
$26.1bl
169.000
Ernst & Young
$21.4bl
144.441
KPMG
$22.7bl
135.000
Fonte: Elaborado a partir de PWC Global Anual Review (2009)
A partir dos usos do território, ou seja, da dinâmica social associada aos seus desdobramentos espaciais, buscamos uma aproximação da dinâmica dessas empresas. Partindo
da análise das redes de cidades da atual urbanização brasileira e de seus centros de polarização, vemos a sobreposição do mapa dos escritórios da PricewaterhouseCoopers no Brasil
com as regiões de influência de cidades.
4 “Em decorrência do caso
Enron, a Arthur Andersen,
em 07/03/2002, foi acusada formalmente por obstrução à Justiça, pelo fato de
funcionários da referida firma
de auditoria terem procedido
à destruição de documentos
e provas de sua conivência com as irregularidades
provocadas por sua cliente.
Tal fato gerou um colapso na empresa, não só em
nível local (mercado norteamericano), como em nível
mundial. Em 31/08/2002,
a Arthur Andersen encerrou
suas atividades como empresa de auditoria externa
nos EUA. Nos demais países
em que atuava, seus escritórios e profissionais foram
absorvidos por firmas concorrentes, acabando assim a
história da quase centenária
grife “Arthur Andersen” (Medeiros, 2005, p. 47).
PRICEWATERHOUSECOOPERS:
ARTICULAÇÃO DOS ESCRITÓRIOS NAS
CIDADES POLARIZADORAS DA REDE URBANA
BRASILEIRA – SÃO PAULO
No Brasil, a empresa PWC conta com uma rede de 16 escritórios. São 2.800 funcionários atuando em diversas áreas consideradas estratégicas (agrobusiness, automotivo,
celulose, comunicação e informação, consumo e varejo, elétrico e serviços de utilidade
pública, entretenimento e mídia, engenharia de construção, farmacêutico, financeiro,
governo, metais, mineração, petróleo e gás, químico e tecnológico). Seus escritórios se
distribuem pelas principais cidades do país, sendo 12 deles na Região Concentrada e cinco
localizados no Estado de São Paulo. Para Santos (1994), a região concentrada coincide com
a área contínua de manifestação do meio técnico-científico-informacional, ao passo que
nas demais regiões do país tal manifestação ocorre de maneira seletiva e pontual.4 Em São
Paulo, os escritórios da empresa encontram-se em nós dinâmicos da rede urbana paulista:
São Paulo, Campinas, Ribeirão Preto, Sorocaba e São José dos Campos.
Todas são cidades preparadas para receber o aporte informacional da empresa. Cidades com universidades de ponta, setor de serviços diversificado e modernizado e setor
produtivo de alta tecnologia.
Levantamos a hipótese de uma relação estreita, e não casual, entre a localização dos
escritórios da empresa e os nós mais dinâmicos (e articuladores) da rede urbana. Isso
porque estes lugares configurar-se-iam como espaços privilegiados para conformação e comando dos círculos de cooperação no território: um espaço de fluxos reguladores. A própria
empresa ressalta essa estratégia em seu site
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4 Escritórios na Região Concentrada: São Paulo, Rio de
Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Curitiba, Joinville,
Porto Alegre, Caxias do Sul,
Ribeirão Preto, Campinas,
São José dos Campos, Sorocaba, Vitória; Norte: Manaus;
Nordeste: Recife, Salvador.
www.pwc.com página Brasil,
14/04/2009.
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O alcance geográfico da PwC Brasil permite a seus profissionais conhecer as vocações
econômicas de cada região brasileira, compreender as particularidades culturais e absorver
experiências próprias de cada localidade, o que garante ainda maior eficiência na prestação
de serviços (<http://www.pwc.com/>, 2010).
No intuito de aprofundar essas questões, e demonstrar como as empresas de consultoria escolhem, criteriosamente, os lugares onde se instalam, tomaremos por base a análise
das Regiões de Influências de Cidades (REGIC) do IBGE de 2007.
Usaremos, também, aquilo que acreditamos ser as variáveis-chave escolhidas pela
empresa para a instalação de seus escritórios na rede, quais sejam: a densidade, a topologia
e a configuração hierárquica da rede de cidades. E, nesse sentido, os estudos e contribuições
de Egler (2001) e Moreira (2004) são fundamentais. De acordo com os autores, a densidade expressa a relação entre o número de núcleos urbanos e o território definido pelo
sistema urbano-regional. Como indicador simples da topologia, utiliza-se a relação entre
o número de ligações e o número de cidades que formam o sistema urbano-regional analisado, melhor caracterizando o sistema em questão. Por fim, é através da hierarquia que
vemos como o ordenamento espacial se adequa às funções urbanas, e vice-versa.
Do ponto de vista da dinâmica espacial, o principal aspecto é o potencial de desenvolvimento da cidade, isto é, a sua capacidade de adensamento e expansão futura. Isso
porque, este critério ajuda-nos a entender como se conformam as metrópoles globais e
nacionais, bem como as capitais regionais. Tem-se, assim, um esboço sobre a Rede Urbana Brasileira, como demonstra o mapa da rede urbana.
Note-se que das 12 cidades polarizadoras como metrópoles nacionais da rede 9 têm
escritórios da PWC (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba,
Manaus, Brasília, Recife e Salvador) além de outras 7 capitais regionais (Campinas, Caxias
do Sul, Vitória, Ribeirão Preto, Joinville, Sorocaba e São José dos Campos).
Nessa verdadeira arquitetura informacional chama a atenção o papel de São Paulo. A
região metropolitana de São Paulo passa, assim, por um processo de expansão de sua indústria e, posteriormente, em um período mais recente, a uma desconcentração industrial,
no sentido de uma expansão do dinamismo da cidade de São Paulo para outras cidades da
região metropolitana. Ao mesmo tempo, o que se verifica é uma concentração dos serviços
avançados ou quaternário na capital paulista.
Figura 1 – Rede Urbana do Brasil
Fonte: IBGE, Regic 2007
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S. H. OLIVEIRA TEIXEIRA, A. M. BERNARDES SILVA
Figura 2 – Rede de escritórios da PricewaterhouseCoopers no Brasil, 2010
Fonte: elaboração própria, a partir de www.pwc.com
Concordamos com Lencioni (2004, p.70), quando a autora afirma:
Trata-se de um processo de expansão da concentração, de um processo de desconcentração
territorial da indústria da região metropolitana, no qual a cidade de São Paulo afirma e
desenvolve sua centralidade, se inserindo como um nó da rede mundial de cidades globais.
Tanto que os serviços especializados relativos às finanças, à propaganda, ao marketing, ao
planejamento e à consultoria tendem a se concentrarem na Capital.
Mantendo as atividades mais avançadas, a cidade de São Paulo desenvolverá sua
centralidade,5 abrigando a indústria em setores de vanguarda e os serviços mais avançados
ligados à informação (finanças, propaganda, marketing, planejamento e consultoria) tornando-se nó da rede mundial de cidades. Assim, a cidade, por suas rugosidades,6 seu dinamismo econômico e sua complexa divisão do trabalho, recebeu as atividades relacionadas
ao circuito superior da economia urbana da fase atual de mundialização do capitalismo.
Ela concentrou as atividades do setor quaternário da economia dando início à formação
da metrópole informacional.
As grandes empresas de consultoria, configuradas dentro desses circuitos informacionais, têm em São Paulo abrigo para se desenvolverem. Como já destacamos, o setor
quaternário da economia se espacializa em lugares onde as rugosidades, materializadas em
uma base técnica, uma tecnosfera, apresentam maior desenvolvimento.
O rompimento das múltiplas ordens locais com a mundialização do capitalismo, forjou um planeta em reconstrução permanente. Plásticas, as redes globais seguem sua trama
em busca de lucro e a custas de uma quantidade infinita de informações. Os territórios
onde se instalam são objetos de eximia avaliação sendo, em seguida, convidados a uma
informatização na forma de novos objetos e novas ações.
Frise-se que este processo se dá de forma vertical, é hierárquico. Portanto, a concentração dos serviços superiores da economia urbana, das grandes empresas de consultoria,
na cidade de São Paulo é fruto do papel de comando da cidade na rede de cidades do
território brasileiro. É por meio da concentração técnica, situada na capital paulista, que
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5 “A principal contribuição
do conceito de centralização
para a interpretação do urbano é que a gestão empresarial dos grupos econômicos
e das grandes empresas em
rede priorizam a metrópole
e, no caso brasileiro, prioriza
a metrópole de São Paulo.
É no exercício da função
central da metrópole, que é
de controle do capital, que
se adensam os serviços produtivos, os serviços voltados
às empresas, muitas vezes
denominados de serviços
avançados” (Lencioni, 2008,
p.14).
6 “Ainda que sem tradução
imediata, as rugosidades
nos trazem os restos da divisão do trabalho já passadas
(todas as escalas da divisão social do trabalho), os
restos dos tipos de capital
utilizados e suas combinações técnicas e sociais com
o trabalho (Santos, 2004,
p.140).
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as ordens se dão para o restante do território. Isso porque, o meio técnico-científicoinformacional não se instala em todos os lugares, ainda que comande todo o território.
Os fluxos de informação, com seu poder articulador, acabam por moldar as áreas de influências das cidades. Ao analisarmos os dados sobre as empresas de consultoria e os serviços
superiores da economia, podemos notar sua tendência à concentração em alguns pontos
do território. E a cidade de São Paulo, ponto de comando, destaca-se notavelmente como
abrigo desses setores.
Tabela 4 – Número de ocupações envolvendo as atividades de consultoria
Ano
1995
2000
2005
Brasil
282.135
362.031
365.477
São Paulo
131.277
163.099
155.384
Região Metropolitana de São Paulo
94.158
126.614
123.259
Região Metropolitana de Campinas
5.191
6.224
5.978
Fonte: RAIS
A análise dos dados é salutar como exemplo da polarização em relação às atividades
informacionais. Se excluirmos a cidade de São Paulo, a RMSP concentra cerca de 30%
de ocupações envolvendo atividades de consultoria no Brasil e a região metropolitana
de Campinas cerca de 15%. No entanto, ao levarmos em consideração a cidade de São
Paulo, o número é surpreendente: por volta de 50% destas atividades estão na cidade
de São Paulo. Não é, portanto, coincidência que seja exatamente nessa cidade a sede da
PWC no território brasileiro. Mais exatamente na região da Marginal Pinheiros, centro
informacional que concentra a densidade técnico-científica-informacional necessária à
atual articulação mundial da empresa.
A informação e as empresas de consultoria impulsionam mudanças substanciais na
divisão técnica, social e territorial do trabalho contemporâneo, contribuindo para transformar as regiões em que atuam em pontos luminosos das redes corporativas globalizadas.
EMPRESAS DE CONSULTORIA, PLANEJAMENTO
E PRIVATIZAÇÕES
7 Ficou a cargo do BNDES
a contratação das empresas
de consultoria para conferir
credibilidade as empresas
privatizadas no âmbito do
mercado mundial. “O BNDES
é um dos principais atores
no processo de privatização
no Brasil pois é, ao mesmo
tempo, mentor, administrador e financiador do Programa Nacional de Desestatização” (Silva, 2001, p.219).
A dinâmica e os desdobramentos desse novo espaço de fluxos reguladores articulado
pelas grandes empresas globais e nacionais de consultoria podem ser apreendidos por meio
da aprovação e implantação do Programa Nacional de Desestatização, bem como por
meio da institucionalização e operacionalização do novo planejamento territorial. Problematizamos, conforme Vainer (2007, p.5), que “a privatização dos setores responsáveis pela
infraestrutura acabou tendo como corolário a privatização dos processos de planejamento
e controle territorial que são intrínsecos aos grandes projetos”. Ora, as empresas de consultoria entram nesse processo com o aval do Estado através
do BNDES,7 pois ficou a cargo deste banco, gerenciar, acompanhar e realizar a venda das
empresas incluídas no PND (Programa Nacional de Desnacionalização). Nesse sentido
é que Antas Jr. (2005), aponta o PND como uma das mais radicais transformações na
estrutura territorial na história da formação socioespacial brasileira: ao privatizar grandes
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S. H. OLIVEIRA TEIXEIRA, A. M. BERNARDES SILVA
sistemas técnicos incrustados no território, entrega-se também a gestão e a regulação territorial à iniciativa privada, sobretudo às empresas de consultoria.
No mesmo período, a Secretaria Nacional de Energia do Ministério das Minas e
Energia por meio do BNDES encarregou a empresa inglesa Coopers & Lybrand de propor um novo formato para o SEB (Sistema Elétrico Brasileiro) que contemplasse a livre
concorrência entre os agentes. O relatório final da consultoria foi entregue em meados de
1997 e conformou-se como balizador das decisões governamentais a respeito da reestruturação e privatização do setor. Os consultores confirmaram algumas medidas que já tinham
sido tomadas e propuseram novas.
Segundo Pedroso Neto (2006, p.126)
Em termos de mudanças institucionais as principais foram: a regulamentação do papel do
produtor independente de energia; a regulamentação do mercado Atacadista de Energia,
onde se negocia energia elétrica dos sistemas interligados; a criação do Comitê Coordenador
da Expansão de Sistemas Elétricos, também vinculados ao Ministério das Minas e Energia,
para planejar e coordenar a expansão do sistema em longo prazo (antes a atividade estava a
cargo da Eletrobrás via o Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos), e,
por fim, a criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico, no lugar do Sistema Nacional
de Transmissão de Energia Elétrica.
Os produtores independentes passam a multiplicar-se, são entidades de direito
privado cuja propriedade é compartilhada pelos agentes do setor. Eles têm por função
garantir o suprimento de energia nas redes de transmissão a tarifas equitativas e otimizar e
coordenar a operação do sistema (antes a coordenação e operação estavam sob responsabilidade da Eletrobrás via o Grupo de Operações Interligadas). O setor passa a ser regulado
pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) e é supervisionado pelo Ministério
de Minas e Energia.
Mais especificamente em relação às empresas do setor, os consultores recomendaram
a desverticalização das atividades (antes realizadas em conjunto por cada empresa) e a privatização das empresas que se originariam. Da desverticalização resultou a separação das
atividades de geração, transmissão, distribuição e comercialização. As empresas de geração
deveriam ser privatizadas; a atividade de transmissão deveria ficar por conta de uma empresa
de capital aberto, mas controlada pelo governo; as empresas de distribuição deveriam ser
privatizadas, mas suas redes, como a da empresa de transmissão, poderiam ser utilizadas
livremente por outros fornecedores de energia, mediante uma tarifa equânime. Para isso,
em todas elas, sem exceção, deveria ocorrer a separação contábil das atividades de operação e
desenvolvimento das redes de distribuição. O objetivo era viabilizar a criação de uma tarifa
para o uso das redes de distribuição, e assim fomentar a concorrência nas vendas no varejo.
Antes do relatório Coopers & Lybrand, o governo federal tinha vendido duas subsidiárias da Eletrobrás: a Escelsa e a Light. Após, ele promoveu a reestruturação da holding
federal e de suas subsidiárias regionais, segundo as recomendações dos consultores. E, na
sequência, foram leiloados os ativos de geração da Eletrosul (1998) que, desde então, ficou
encarregada somente da transmissão de energia. As outras subsidiárias da Eletrobrás foram
reestruturadas em parte, mas não foram leiloadas. O objetivo proposto pela consultoria
foi o de privatizar, principalmente, a distribuição, setor de melhor lucro em relação aos
investimentos, e privatizar parcialmente a geração de energia, parte mais custosa que deveria em sua maioria provir do Estado.
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Assim, o Estado sustentava a lógica global no território: uma lógica fragmentada
dentro dos aspectos da reestruturação organizacional. O problema então é que a partir
dessa lógica as usinas hidroelétricas passam a existir apenas como forma rentável e não a
de suprir a demanda como pode ser visto na análise de Ramalho (2006) sobre o projeto
da Coopers & Lybrand,
umas das propostas da consultoria avaliava que dentro de um contexto de uma análise baseada em mercado, o critério de risco de déficit é um fator de menor importância […]. A usina
só deveria ser adicionada ao sistema uma vez comprovada a eficiência disto, do ponto de vista
econômico. Seria o caso então de basear-se em critérios econômicos para o planejamento da
geração e não na probabilidade de déficit, assim uma nova usina deve ser incorporada ao
sistema apenas se for economicamente interessante.
9 Não temos condições de
tratar da crise do setor nesse artigo, no entanto, ressaltamos que a crise energética teve seu centro na
administração do Estado que
ao priorizar a construção de
usinas sob a lógica do lucro
deixou para segundo plano a
questão do déficit que estourou no Apagão de 2002.
Até 2002 o governo federal procurou instalar um modelo de relacionamento entre
os agentes do SEB que permitisse a concorrência tanto entre os produtores de energia,
como entre os comercializadores de energia no atacado e no varejo buscando a energia
não mais como um direito, mas como mercadoria. Ao mesmo tempo, criou um novo
aparato institucional para regular e arbitrar os relacionamentos entre o conjunto dos
agentes envolvidos. De modo geral, iniciativas do mesmo gênero ocorreram nos estados,
em maior ou menor grau.
Podemos dizer que a empresa de consultoria cumpriu com as mudanças anunciadas: o papel de organizador do sistema com vistas a facilitar o lucro das empresas e para
isso se utilizou do território como controle do aparato energético. O planejamento, ou
melhor, a gestão do lucro se sobrepôs ao planejamento o que levou a uma crise energética9 gigantesca no país quando se escancarou que o sistema não dava mais conta das
necessidades da população. É essa, pois, em termos gerais, a consequência da gerência
do território pautado nessa lógica verticalizada pelas empresas de consultoria em que
o Estado concede espaço de atuação para as empresas privadas, de modo que a ideia
de competitividade se sobrepõe a de desenvolvimento da nação, uma vez que as firmas
entendem o território como espaço econômico, a partir do potencial de receita e de
valorização do capital.
O PLANEJAMENTO POSSÍVEL
Discutimos que as empresas de consultoria são as detentoras de racionalidades da
globalização que se aplicam ao território de forma vertical, hierárquica. No entanto, essa
lógica de planejamento se sobrepõe a outra, a do planejamento democrático e participativo que existiu parcialmente no final da década de 1980 em algumas cidades brasileiras
(notadamente ressalta-se a experiência de Belém do Pará e Porto Alegre, ambas em 1989).
Esse planejamento foi abandonado, na medida em que se recriou e se reforçou a áurea do
planejamento neutro e estratégico.
O planejamento territorial tem servido historicamente e exclusivamente à reprodução do capital para garantir “dentro da lei e da ordem” o desenvolvimento da acumulação.
Para tanto, o planejamento ganhou status de ciência já que assim pode se afirmar como
“neutro”. Em verdade, troca-se hoje a noção de Planejamento pela de Gestão. Acreditamos
que planejamento e gestão não são práticas contraditórias em si, pois o planejamento
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S. H. OLIVEIRA TEIXEIRA, A. M. BERNARDES SILVA
cumpre uma função norteadora para a gestão, enquanto esta cumpre a função de efetivar
o futuro que se planeja. Claro que entre essas determinações, para nós, existe o ponto de
partida que deve ser o planejamento já que esse é o futuro; e, ao contrário, quando se
escolhe a gestão como ponto de partida busca-se uma típica ilusão do capitalismo: projetar
o presente como se esse fosse o futuro imanente.
Assim, uma lição histórica importante é que não devemos aceitar o planejamento
como produto exclusivo de uma razão técnica e neutra, mas temos que identificá-lo como
fruto do interesse de quem o promove. Dessa forma, entende-se que o planejamento ao
abarcar tais dimensões pode ser instrumento político de controle ou libertação (Monteiro,
2001). Ao contrário de um “discurso competente” da gestão – preconizado pelas elites
como planejamento técnico – deve-se construir uma práxis planejadora que se norteie
pela construção de conjunto com os atores sociais envolvidos no planejamento. O planejamento visto enquanto técnica, logo, com roupagem de neutro, só serve aos interesses
dominantes. Foi o que vimos ao analisar o setor elétrico sob tutela dos consultores:
Por exemplo, mesmo em um contexto de crise de abastecimento eminente, eles não tiveram
o porque investir no sistema uma vez que o retorno econômico de sua ação não se mostrava
atraente, o que se traduziu em um pesado racionamento de energia imposto à nação (Ramalho, 2006, p.163).
Devemos então, a luz do que vimos, tentar superar esse planejamento e nesse sentido cabe a pergunta: seria possível uma neutralidade do planejamento dos territórios?
Obviamente que não, por isso o planejamento deve ser encarado no que ele realmente
é: um instrumento político de dominação de uma classe sobre a outra. Esta nos parece a
problemática central diante do avanço da racionalidade global corporativa, sobretudo em
territórios periféricos como o brasileiro.
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Sérgio Henrique de Oliveira Teixeira é mestrando do
Programa de Pós-Graduação
em Geografia (Unicamp).
E-mail: sergiothot@yahoo.
com.br
Adriana Maria Bernardes
Silva é professora assistente do Departamento de Geografia do IG/Unicamp; pesquisadora do CNPq. Email:
[email protected]
Ar­ti­go re­ce­bi­do em julho de
2011 e apro­va­do pa­ra pu­
bli­ca­ção em setembro de
2011.
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A b s t r a c t This article seeks to contribute to the investigation of the information
as the articulating power concerning production and circulation in the Brazilian territory.
The consulting companies, and more specifically the transnational PricewaterhouseCoopers are
analyzed. The article considers the company’s topology as well as the information typology that
it produces and also the link between the PricewaterhouseCoopers’ offices and Brazilian cities
network. The structure of such network was an important factor to the company scattering
throughout the territory. This company plays an important role in the corporations’ productive
restructuring as well as in the territory planning and privatization. It is also relevant the
influence it had in the state apparatus in the 1990s. Finally, the article analyzes the opposition
between the planning headed by the company and the participatory and democratic planning,
which focuses on the entire territory and society.
K e y w o r d s Used territory; cooperation circles; PricewaterhouseCoopers;
consulting companies; planning; privatization.
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DESENHANDO TERRITÓRIOS
A Cartografia de Cândido Mendes
e o “Nordeste” Brasileiro do Século XIX
George Alexandre Ferreira Dantas
Angela Lúcia Ferreira
Yuri Simonini
R e ­s u ­m o
Em meados do século XIX, a articulação sistematizada do território
da nação brasileira foi formulada como ponto-chave para a estruturação da economia e da
sociedade modernas. Esse intento ultrapassava as antigas demandas de controle geopolítico e
encontrou nas estiagens prolongadas nas “províncias do norte” um sério problema. Falar de
nova estrutura territorial pressupõe indagar: que conhecimentos e informações iconográficas
sobre o território em reorganização tinham aqueles que adentraram no “Brasil desconhecido”?
Discutir pertinências e limites do uso das fontes cartográficas como documentos que permitam
compreender as ações sistematizadas sobre o território nordestino é o objetivo deste artigo. Para
tanto, privilegiar-se-á o “Atlas do Império do Brazil”, organizado por Cândido Mendes de
Almeida, em 1868, com ênfase nas províncias mais atingidas pelas secas: CE, RN, PE e PB.
O Atlas é lido assim dentro da trama de relações da formação da cultura técnica moderna
no Brasil e, mais especificamente, dos processos que levariam à definição da região Nordeste.
P a ­l a ­v r a s - c h a ­v e
Atlas; Cândido Mendes; cultura técnica; Império;
reconfiguração territorial; Nordeste/Brasil.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O processo de superação da estrutura e do estatuto coloniais levou décadas para se
completar no Brasil – em grande medida alterados, como dimensão física e de maior visibilidade, com as reformas urbanas realizadas, grosso modo, entre 1890 e 1920. Contudo,
além das formulações e ações políticas e econômicas que secundaram essas reformas, as
propostas para transformação da dimensão material foram fundamentais para estabelecer
o suporte às novas demandas de produção e de circulação de mercadorias e pessoas. Mais
ainda, exigiu uma reestruturação da rede urbana que apontava para novas configurações
territoriais que teriam desdobramentos em grande parte do país.
Os esforços para pensar o território ultrapassaram os processos de fundação de
núcleos urbanos – de resto, elemento fundamental da política de colonização portuguesa
– como bem o demonstraram Roberta Delson (1979) e Nestor Goulart Reis (2000), de
maneira decisiva a partir do final do século XVII. Em linhas gerais, a partir de meados
do século XIX, no Brasil, a articulação eficiente do território – da Nação, da região e ou
da cidade – seria formulada como uma questão-chave para a estruturação da economia e
da sociedade modernas, para além das exigências geopolíticas coloniais. Articulação que
implicou necessariamente uma nova estruturação ou mesmo a construção de um sistema
– suporte físico, burocracia, maquinismos, administração, entre outros – de circulação
e de comunicação. Ademais, demandou a produção de conhecimento sobre os objetos a
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D E S E N H A N D O
1 É certo que, como o demonstram o relato de vários
cronistas do período colonial
ou mesmo o de um viajante do início do século XIX,
como Henry Koster, que as
secas eram problematizadas havia tempos; contudo,
dentro de outra lógica e
ordem de valores, como os
morais e familiares – porque,
por exemplo, ao quebrar as
possibilidades de produção
autossuficiente do latifúndio
por longos períodos, forçava
o deslocamento das famílias
e seu séquito de agregados
do mundo rural para o mundo urbano.
2 O projeto aponta para a
possibilidade de investigar
a dimensão técnica que secundou o processo histórico
de construção do território
brasileiro – com ênfase
para a porção do território
que, depois, no início do
século XX, seria denominada Nordeste. Para possibilitar o entendimento dessa
dimensão – e em especial
o seu rebatimento sobre o
espaço físico e cultural do
Nordeste do Brasil –, a pesquisa contempla as matrizes
ideológicas e culturais que
a fundamentaram, os saberes que a compuseram e
justificaram as práticas dela
originadas, os profissionais
e instituições que foram protagonistas dessa trajetória e
as intervenções a ela relacionadas e que transformaram
e estruturaram territórios e
cidades, ocupando uma posição central no processo
de configuração do Nordeste moderno dentro da Nação
que se formava em fins do
século XIX e início do XX.
3 Para este artigo, foi consultado o exemplar original
do Atlas que se encontra
na Seção de Obras Raras
da Biblioteca Central da
UNICAMP, além das cópias
digitalizadas disponibilizadas pelo site Domínio Público [http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
DetalheObraForm.do?select_
action=&co_obra=28870] e
pela Biblioteca do Congresso (Geography and Map Division) dos Estados Unidos,
Washington, DC, coligido pelo projeto American Memory
[http://memory.loc.gov/
cgi-bin/query/h?ammem/
gmd:@field%28NUMBER+@
T E R R I T Ó R I O S
serem controlados e mesmo transformados – paisagens, acidentes, relevos, bacias e cursos
d’água etc.
O fenômeno climático de irregularidade das chuvas, principalmente no que se refere à estiagem, foi erigido como um dos problemas centrais para pensar as articulações das
partes do Brasil, como formulariam muitos técnicos, políticos, intelectuais e publicistas
de maneira geral, na segunda metade do século XIX. Tornou-se um tema privilegiado,
portanto, e não apenas pelo recorte crítico do pesquisador atual, para investigar e problematizar a delimitação de um campo disciplinar e institucional de discussão – a esfera
pública da cultura técnica moderna – e ao mesmo tempo a delimitação de um espaço
geográfico e econômico, social e cultural (no caso, a região que, no início do século XX,
seria denominada “Nordeste”). Afinal, as secas, “lidas como problema, mobilizaram
consciências e esforços para a sua superação”, processo pelo qual se permite, direta ou
indiretamente, “mapear e discutir algumas das ideias-chave, das visões, dos projetos
articulados para a modernização do Brasil assim como as representações que os fundamentaram” (Ferreira, Dantas, Farias; 2008; 2006).
As discussões sobre a problemática das estiagens periódicas implicaram abordar
a reestruturação do território que se urgia realizar a partir, sobretudo, de meados do
século XIX. As secas foram transformadas em problema para se pensar a integração do
território da nascente Nação1 no contexto das transformações gerais do mundo ocidental no período, de amadurecimento das relações capitalistas, da lógica de reprodução da
força de trabalho, das necessidades de produção, circulação e comunicação. Isso exigia
outra estrutura territorial, diversa daquela oriunda do período colonial e para a qual –
diante das necessidades de novos arranjos – as prolongadas estiagens constituíram-se
um entrave.
Mas, falar em nova estrutura territorial pressupõe estabelecer, pelo menos, um marco
comparativo: que território estava sendo transformado? Quais suas características físicas
e como era representado graficamente? Que conhecimento e informações cartográficas
tinham aqueles que adentraram os sertões? Enfim, qual(is) a(s) referência(s) a partir de que
se pôde articular um conjunto de conhecimentos – aqui referidos como cultura técnica
moderna – que embasaria desde o entendimento e ações de enfrentamento contra as secas
aos projetos de construção da Nação e as perspectivas de integração?
Essas questões apontam para um tema mais específico, dentro do escopo do projeto
de pesquisa, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do
Urbanismo (HCUrb, do Departamento de Arquitetura da UFRN), ao qual os autores estão
vinculados, intitulado “Cultura técnica, projetos e reconfigurações urbanas e territoriais
(Nordeste/Brasil, 1850-1930).2 Além disso, conformam também o objetivo deste artigo,
a dizer – ainda como uma primeira aproximação para análises –, discutir as pertinências e
os limites do uso das fontes cartográficas como documentos que permitam compreender
as ações sistematizadas sobre o território nordestino a partir de dois aspectos: primeiro, os
instrumentos e suportes intelectivos utilizados e construídos no âmbito de formação de
uma cultura técnica moderna no século XIX; e, segundo, a própria realidade geográfica
para os quais se construíam estratégias de investigação e, sobremodo, transformação pela
ação planejada sobre o território.
Para tanto, toma-se aqui como objeto privilegiado o “Atlas do Império do Brazil”,3
organizado e publicado pelo professor e jurista Cândido Mendes de Almeida, em 1868.
Destinado originalmente aos estudantes do Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro –
local de formação secundarista de parte da elite do país e daqueles que iriam compor a
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G .
A .
F.
D A N TA S ,
A .
L .
F E R R E I R A ,
Y.
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burocracia e os corpos técnicos de vários órgãos estatais4 –, o Atlas buscava suprir o que
considerava as imensas lacunas do saber e do ensino da geografia do país, disciplina fundamental para a formação do estadista, do legislador, do administrador (Almeida, 1868,
p.7, col. 1-3).
Para desenvolver as ideias aqui colocadas de forma sintética se apresenta inicialmente
a dimensão política da cartografia e, em seguida, se comenta acerca da trajetória do profissional Cândido Mendes e de sua obra, detalhada no momento posterior para dar conta
de sua contribuição na leitura específica das províncias do Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba e Pernambuco.
UMA CARTOGRAFIA DO PODER
Ao se debruçar sobre um mapa, o leitor tem à sua disposição uma representação
cartográfica de um determinado espaço geográfico. Os dados ali registrados fornecem
uma série de informações de acordo com a necessidade daquele que o produziu e daqueles que o leem.
Em um primeiro momento, ressalta-se o seu apelo imagético que se reveste com
uma “linguagem poética na medida em que os versos não são feitos de rimas sonoras,
mas de rigor técnico e plasticidade visual” (Lassalle, 1990 apud Teixeira Neto, 2006,
p.54). Seu papel principal, contudo, sempre esteve atrelado ao poder, seja para delimitar
e administrar a extensão dos territórios dominados seja para fins de estratégia – afinal, se,
para Yves Lacoste (1998), a Geografia serve para fazer a guerra, pode-se dizer que então
os mapas são os seus generais. Essa estreita relação entre a cartografia e o poder político
resultou na produção de mapas que possuíam certas funções específicas, que vão “[...]
da construção de um Império Mundial à manutenção do Estado-Nação e à afirmação
local dos direitos de propriedade individuais” (Harley, 2009, p.5). Nesse sentido, Brian
Harley (2009, p.5) conclui que “[...] as dimensões do regime político e do território são
compiladas em imagens que, assim como o ordenamento jurídico, fazem parte do arsenal
intelectual do poder”.
Inclusive, a própria definição dos mapas que ilustraram o Atlas de Cândido Mendes
foi sopesada e marcada pela discussão sobre as disputas territoriais e sobre os tratados
internacionais (desde o de Utrecht, de 1713, até os mais recentes, como o de Viena, de
1815, e os específicos para delimitação das fronteiras com a Venezuela, com o Equador e
com a Colômbia, e.g.). Em especial, os mapas gerais do Atlas – II, III e IV, com as divisões
administrativas, a marcação das ilhas e lagos e demais acidentes geográficos – são antes
de tudo peças de afirmação do Império, tanto para seus limites internos quanto, e principalmente, nesse momento, para os limites com os demais países (incluindo aí também os
domínios sobre o Atlântico Sul).
Isso significa que o mapa ou o seu conjunto – o atlas – não podem ser tratados como
uma fonte isenta de subjetividade sob o aparente manto tecnicista da sua forma de produção.5 E a sua análise como um texto, afirma Harley (2009, p.5), carece de maiores estudos,
apesar de reconhecer que “os cartógrafos e historiadores de mapas têm consciência, há
bastante tempo, que o conteúdo dos mapas tem uma tendência a criar o que eles chamam
de desvios, distorções ou de abusos em relação à realidade”. Dentro dessa perspectiva, as
atuais pesquisas sobre a história da cartografia reforçam a postura metodológica de que,
como apontam Hector Mendoza Vargas e Carla Lois, (2009, p.10) “el mapa no puede
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89
band%28g5400m+gbr0000
1%29%29]. Sempre que
possível, indicamos, além da
página, a coluna onde se
encontra a informação ou
passagem citada.
4 Convém destacar que,
segundo Fernando de Azevedo (1976 apud Zotti, 2005,
p.36) “o Colégio D. Pedro
II, [...] consagra um ensino
secundário do tipo clássico, muito mais atrelado à
tradição intelectual do país
(diga-se da elite), de tradição europeizante, do que
propriamente adaptado as
condições do meio, portanto
estudos de caráter desinteressado. Estes estudos
são dirigidos aos filhos da
classe abastada e cumpre a
função de estudos preparatórios ao curso superior”. As
reestruturações curriculares
no período imperial tiveram
como consequência “[...] a
formação diferenciada das
classes sociais: a formação
do trabalhador, como reflexo
das novas necessidades do
país diante da tendência de
uma sociedade urbano-agrícola-comercial; a formação
da elite, visando ao ingresso nos cursos superiores,
representa a continuidade
da formação clássico-humanista, historicamente patrimônio cultural desta classe”
(Zotti, 2005, p.37).
5 Sobre a questão tecnicista, Antônio Teixeira Neto
(2006, p.55) expõe que “diferentemente de uma obra
de arte, que exige talento
de quem a executa, o mapa
não é uma construção livre,
pois está submetido ao mais
rigoroso respeito às leis de
percepção visual, ou melhor,
à gramática gráfica”.
D E S E N H A N D O
6 O autor se refere aos fatos ocorridos no século XIX,
quando diversos territórios
pertencentes ao Brasil foram
questionados por diferentes
países europeus. Graças a
ação do Barão do Rio Branco
e dos mapas coloniais referentes ao Tratado de Madrid
(1750), a nação brasileira
assegurou a sua soberania
nacional.
T E R R I T Ó R I O S
ser abordado como si hubiera sido pensado, diseñado, producido y circulado dentro de
uma burbuja”.
Para tanto, se faz necessário que as análises desse produto cartográfico enfatizem que a
sua seletividade das informações e a representatividade nele constante se constituem como
meios de se entender as relações humanas. Afinal, trata-se de uma “[...] imagem do mundo
do mesmo modo que somos a imagem de nós mesmos” (Teixeira Neto, 2006, p.67) e
deve-se analisá-lo sob ângulos: 1. “a universalidade dos contextos políticos na história da
cartografia”; 2. “a maneira pela qual o exercício do poder estrutura o conteúdo dos mapas;
e 3. “a maneira pela qual a comunicação cartográfica, em um nível simbólico, pode reforçar
este poder por intermédio do conhecimento cartográfico” (Harley, 2009, p.4).
No que se refere ao Brasil, a utilização dos mapas manteve um forte viés político – tal
qual nos países europeus. Se, em um primeiro momento, os mapas do período colonial foram mantidos em segredo em decorrência de possíveis invasões estrangeiras, no Império, o
mesmo foi amplamente utilizado para justificar a incorporação e a manutenção territorial,
como aponta Antonio Teixeira Neto (2006, p.55): “não creio que exista no planeta uma
nação [a brasileira] cujos domínios territoriais foram garantidos e mantidos à custa de um
general que jamais disparou uma única arma sequer contra o inimigo: o mapa”.6 Ademais,
No período imperial, verifica-se a preocupação com a formação cartográfica de profissionais
no Brasil. Em 1810, foi criada a primeira escola de formação de Engenheiros Geógrafos Militares na Academia Real Militar, [...] na qual a formação profissional em cartografia se dava
num período de oito anos (Archela, 2007, p.215).
Não seria coincidência, portanto, nesse período, a criação de diversas instituições
oficiais com o intuito de mapear o território brasileiro. Rosely Sampaio Archela (2007)
destaca alguns desses órgãos: a Comissão do Império do Brasil – 1825 – e da carta Geral do Império – 1830-1878 –; a Imperial Comissão Geológica – 1874 –; a Repartição
Hidrográfica do Ministério da Marinha – 1876 –; e a Comissão Geográfica e Geológica
de São Paulo – 1886 (Archela, 2007). E dentre as fases da cartografia brasileira, uma em
particular tratou da elaboração de mapas em escalas pequenas, na qual inclui os levantamentos feitos no Nordeste, pela Inspetoria de Obras Contra a Seca, já no início do
século XX (Archela, 2007).
Neste contexto, o “Brasil desconhecido” – como será tratado no item seguinte – vai
ganhando contornos mais nítidos. E a relevância do Atlas de Cândido Mendes se insere
em um momento em que o conhecimento cartográfico brasileiro ultrapassa os círculos
militares e institucionais para ganhar maior visibilidade.
CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDA E O ATLAS
IMPERIAL
A imagem do Brasil como um arquipélago é um tema corrente nas discussões e na
historiografia que considera as estruturas econômicas, sociais e culturais daquele imenso
território que assoma o século XIX atravessado pelas injunções da crise do sistema colonial
e pelo avanço e aprofundamento de novas lógicas produtivas e das novas relações de poder
daí decorrentes. Imagem que diz respeito tanto às estruturas do empreendimento colonial,
cujas porções do território – as ilhas socioeconômicas – guardavam relações mais estreitas
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com a Metrópole portuguesa do que entre si; quanto ao (des)conhecimento do próprio
suporte físico da colônia.7
Figura 1 – Frontispício do Atlas Imperial, elaborado por Cândido Mendes, 1868
Fonte: <http://memory.loc.gov/cgi-bin/query/h?ammem/gmd:@field(NUMBER+@band(g5400m+gbr
00001))>
Trata-se, portanto, de um conjunto de retalhos que comportam uma série de ilhas
mapeadas, vastidões ignoradas ou parcamente conhecidas, invariavelmente com muitas
distorções no registro cartográfico. Se essa poderia ser uma síntese da cartografia do Brasil
colonial, não é incorreto apontar a persistência dessa condição (de precariedade e irregularidade do conhecimento da geografia do Brasil) ao longo da primeira metade do século XIX.
Condição que se expressaria na produção leiga, e mesmo na erudita, como bem exemplificam as gravuras de Henry Koster (ilustração que abre o seu livro, Travels to Brazil, de 1816),
de John Luffman (intitulado Brazil, or trans-atlantic Portugal, publicado em Londres, 1808)
e de Henry Charles Carey (Brazil, publicado em Londres, por H. C. Carey, 1823).
Essa condição – sobretudo em relação ao vasto interior do país (e.g., ver Figura 2)
– seria problematizada cada vez mais no contexto pós-independência como um entrave
às possibilidades de constituição efetiva do Império, enfim, do Brasil como um EstadoNação moderno.
É nesse contexto, aqui rapidamente sumarizado, que se entende o esforço e a importância da elaboração e da publicação do “Atlas do Império do Brazil”. Nascido em 1818,
na província do Maranhão, Cândido Mendes de Almeida se tornou bacharel em Direito
pela Faculdade de Olinda, em 1839. Um ano depois, de volta à sua cidade natal, tornouse promotor e professor de Geografia e de História no Lyceu de São Luiz. Exerceu o cargo
de deputado geral por cinco legislaturas e em 1871 seria eleito para o cargo de senador.
No campo acadêmico, embora tenha abandonado o cargo de lente em 1850, manteve estreitos laços com diversas sociedades científicas. Um dos seus possíveis primeiros trabalhos cartográficos consistiu na elaboração de um mapa sobre a questão de limites entre
a província do Maranhão e Goiás (Borges, 2007). É possível que a feitura desse mapa o
tenha capacitado a dar início à realização do Atlas Imperial. Ao contrário dos cartógrafos
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7 Mesmo a noção de arquipélago deve ser matizada,
pois “havia fluxo interno de
mercadorias e de linhas de
comunicação”, embora não
abrangesse toda a colônia e
tivesse pouca expressão na
composição da base do sistema econômico (Carvalho,
1981, p.19-20); ainda assim, a metáfora é operativa
para discutir e compreender
o que estava em jogo nas
discussões e nos projetos
de construção do Brasil
como nação independente,
como se percebe em vários
autores (Cf., e.g., Moraes,
2003 e 2005; Pechman,
2002).
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europeus – que possuíam a tradição de fundamentar suas obras com argumentos de autoridade –, Cândido Mendes buscou se apoiar em diferentes fontes documentais, como
relatórios provinciais, mapas anteriores e fontes orais. Ou seja, para Maria Elisa Linhares
Borges (2007, p.381),
A julgar pelos mapas presentes em seu atlas, [...] muito provavelmente Cândido Mendes
aproveitou informações contidas em memórias, corografias, nos dicionários topográficos e
nos relatos de viagem, produzidos pelos membros da Comissão Estatística da Corte instituída
pela Corte em 25 de novembro de 1829.
Todo esse material coletado servia para dotar a obra de Cândido Mendes de uma
legitimação e aceitação do público-alvo do atlas – alunos secundaristas, a “‘mocidade
letrada brasileira’ de onde certamente sairia os quadros da vida pública e burocrática do
Brasil do futuro” (Borges, 2007, p.383), enfim, esperava-se, os futuros estadistas, legisladores, administradores –, a partir de dados considerados cientificamente comprovados
provenientes de fontes documentais. Aos mapas constantes foram acrescidos textos complementares de História e de Geografia para cada província, enfatizando principalmente
as questões limítrofes.
Seja como for, o Atlas, como introduziu o seu próprio autor (1868, p.7, col. 1-3),
buscava sistematizar um conjunto crescente de informações com o intuito de melhorar as
bases do ensino de geografia do país. E, mais ainda, como corolário, estabelecia um marco
comum para fixar os novos dados (como aqueles provenientes do novo mapa do Brasil
utilizado por William Scully, editor do Anglo-Brazilian Times, publicado em New York,
compilando os trabalhos mais recentes do governo brasileiro), para mediar e comparar
informações, permitir novas investigações e, enfim, sustentar estratégias e políticas de
controle do território.
Figura 2 – Brazil, or trans-atlantic Portugal, publicado por J. Luffman, Londres, 1808.
Atente-se para a advertência: “interior of the country very imperfectly known”
Fonte: <http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5400.br000016>
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Em suas entrelinhas, percebe-se um claro projeto político a orientar a normalização
do conjunto de informações e de mapas, “antigos e modernos”, que, construindo-se província a província, reduzidas a uma escala comum, comporiam uma visão integrada do
Império. Projeto que levaria o autor a propor até mesmo a criação de uma nova província,
Pinsonia, rearranjando parte da porção extrema do norte, o que incluía as negociações
com as Guianas, a francesa em especial, e partes da província do Grão-Pará. Buscava-se
valorizar a cidade de Macapá, cuja comarca seria o centro provincial, como um nó comercial e portuário para articular o comércio e a circulação entre o Amazonas e Belém.
Com isso – e a consequente criação de uma estrutura administrativa própria –, poder-se-ia
reverter o quadro de quase abandono que marcara aquela região, a despeito dos mais de
três séculos de “descobrimento” (Almeida, 1868, p.32, col.4-5, p.33, col.1).8
E o que os mapas de Cândido Mendes de Almeida podem apontar para compreender
o “Nordeste”? A pergunta, aqui, tem ao menos dupla face: implica questionar o território
representado então pela delimitação que seria construído a posteriori e, como corolário,
implica relacionar o conjunto documental do Atlas à trama de relações, saberes e ações
que levariam, no início do século XX, à primeira definição mais precisa do que seria o
Nordeste como entidade regional específica, com singularidades que a permitiram ser
distinguida e reclamar políticas e investimentos específicos.
8 Antes, em julho de 1853,
como deputado da Assembleia Legislativa Federal,
Mendes de Almeida apresentou projeto semelhante
para criação da Província
de Oyapockia, cujas bases
territoriais, centradas na Comarca de Macapá, seriam
aproveitadas na elaboração
do Atlas, quinze anos depois
(Almeida, 1868, p.33, col.
1 e 2).
AS PROVÍNCIAS DAS SECAS: CEARÁ, RIO
GRANDE DO NORTE, PARAÍBA E PERNAMBUCO
Deve-se, inicialmente, enfatizar que não há Nordeste no Atlas. De fato, comumente
usava-se falar então – como se percebe em registros literários de um Joaquim Manuel de
Macedo, de José de Alencar ou de Machado de Assis – de maneira genérica em Províncias
do Norte e do Sul, cujo ponto mediador era a Corte. Cândido Mendes, de certo modo,
mantém essa perspectiva, ao mesmo tempo em que consolida a reorganização das províncias
que se processara na primeira metade do século XIX:9 propôs então sistematizar a divisão
administrativa do Império entre províncias setentrionais e meridionais, orientais e ocidentais.
As províncias do Norte ficaram então abarcadas nas setentrionais, que iriam da Província do
Amazonas até a do Espírito Santo; as meridionais, do Município Neutro – a Corte – e da
Província do Rio de Janeiro até a de São Pedro do Sul; as ocidentais eram compostas pelas
províncias de Minas Gerais, de Goiás e de Mato Grosso (Almeida, 1868, p.8, col.1; p.10-32).
Reiterava-se no Atlas essa indistinção que, na verdade, apenas reforçava a centralidade política e econômica da Corte. Há aí vários movimentos contraditórios, mas que revelam parte das disputas e da complexidade de como se figurava e se desdobrava a questão
nacional no período: reafirmava-se e legitimava-se uma imagem de unidade nacional, mais
ainda, de nacionalidade (Süssekind, 1990, p.17), por meio da normalização dos mapas; ao
mesmo tempo, tal unidade fundava-se na estratégia política primeira de manutenção da
unidade pós-independência, com um Estado cada vez mais forte e voraz em relação aos recursos necessários – que deveriam ser e eram de fato remetidos pelas províncias – para sua
consolidação e expansão (Dias, 1972; Carvalho, 1981). Essa estratégia não contemplava,
como apontaram muitos da geração romântica, a tarefa de construção e ocupação efetiva
do território de um Estado-Nação moderno como pretendiam – o que exigia reestruturação territorial e um novo sistema de circulação e comunicação, cujo paroxismo seria o
desejo de construção de uma nova capital nacional no interior do país, expresso em vários
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9 A província do Amazonas,
e.g., foi desmembrada da do
Pará em 1850; antes disso,
a do Pará fazia parte do Estado do Maranhão até 1775;
a do Paraná desmembrou-se
da de São Paulo apenas em
1853 (Cf. Carvalho, 1981,
p.17).
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e avultados projetos, como o do historiador e diplomata Francisco Varnhagen (Vidal,
2009, p.81-101). Não é à toa que Cândido Mendes diria que a permanência do Rio de
Janeiro como Corte, território do Município Neutro com administração independente,
deveria ser provisória, “enquanto não se fundar a verdadeira e permanente Capital do
Império” (Almeida, 1868, p.8, col. 2).
Figura 3 – A Província do Ceará, 1864
Fonte: Almeida, 1868
10 Quando o IBGE estabelece a primeira delimitação
oficial das regiões do Brasil,
em 1938, os Estados da
Bahia, de Sergipe, do Maranhão e do Piauí não faziam
parte do Nordeste; estes
seriam incluídos apenas em
1969 (Cf. Avelar Jr., 1994,
p.6-10).
Em meio aos projetos que se expressam no Atlas como peça, antes de mais nada,
política, percebem-se as dificuldades que estavam postas para consecução dos intentos
de modernização do Brasil. Neste sentido, propõe-se aqui analisar – vinculando-se dessa
maneira ao projeto maior de pesquisa que secunda este artigo – com mais atenção à documentação das províncias do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba e de Pernambuco. Elas foram as províncias que primeiro, sobretudo a do Ceará, se tornaram objeto de
investigação sistemática para enfrentamento do fenômeno climático das secas; ademais,
compõem desde o início as delimitações oficiais da região Nordeste.10
Figura 4 – A Província do Rio Grande, 1864
Fonte: Almeida, 1868
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É recorrente o registro, e não somente para essas quatro províncias, sobre a imprecisão dos limites. A precariedade da cartografia e de documentos confiáveis levaria, e.g.,
Cândido Mendes a anotar sobre a província do Rio Grande do Norte que “é muito deficiente em trabalhos topográficos”. As fronteiras com o Ceará e com a Paraíba que pôde
desenhar “são os que no geral são conhecidos; mas nem suas divisas são claras, naturais e
incontestadas, como nunca foram demarcadas” (Almeida, 1868, p.12, col. 1-2). O problema da demarcação atingia inclusive a província de Pernambuco, para a qual havia farta
documentação (proveniente de fontes diversas, incluindo peças técnicas mais acuradas,
como os levantamentos topo-hidrográficos do porto de Recife).
Figura 5 – A Província de Pernambuco, 1864
Fonte: Almeida, 1868
Diante de tamanha precariedade, não parece forçoso afirmar que o projeto do Atlas
só não se inviabilizou pela contribuição decisiva do engenheiro militar Beaurepaire Rohan:
O nosso credor é o Exm. Sr. Conselheiro Henrique de Beaurepaire Rohan, que quando
Ministro da Guerra dignou-se de expedir o Aviso de 21 de dezembro de 1864, a fim de que
nos fosse franqueado o Arquivo Militar, que é um tesouro em documentos cartográficos da
Geografia pátria, para que pudéssemos fazer os estudos e investigações de que necessitávamos
(Almeida, 1868, p.36, col.3-4).
Nascido em 1812, em Niterói, formou-se engenheiro militar, tornou-se membro do
IHGB e ocupou cargos públicos importantes na estrutura política do Segundo Reinado,
dentre os quais se deve nominar o governo das províncias do Paraná (como vice-presidente), entre 1855-56, e (como presidente) do Pará (1856-57) e da Paraíba (1857-59).
Rohan não apenas franqueou o acesso aos arquivos; a sua própria produção, em relatórios,
pareceres e memórias técnicas, embasariam várias decisões sobre os desenhos dos mapas
de Cândido Mendes. A “Carta Corográfica” da Paraíba, então ainda em elaboração pelos
engenheiros Carlos Bless e David Polemann, sob supervisão de Rohan, serviria para definir com mais precisão os limites dos municípios e as próprias fronteiras interprovinciais.
A citação do documento de Rohan é lapidar: “Para dissolver todas as dúvidas que
existem sobre os limites e extensão do território [...], não temos uma só carta corográfica
que nos possa guiar. As que existem estão inçadas de erros tais, que nenhum crédito merecem” (apud Almeida, 1868, p.13, col.5).
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Além da contribuição do engenheiro Beaurepaire Rohan e dos muitos manuscritos
cedidos por Antônio José de Mello Moraes – médico, político e autor de vasta bibliografia,
na qual se destaca “A Independência e o Império do Brasil”, de 1877 –, a organização das
informações do Atlas baseou-se largamente na produção dos viajantes, intelectuais e cientistas estrangeiros. Para a província do Ceará, as “Memórias Históricas”, do Monsenhor
Pizarro, a “História do Brazil”, de Francisco Solano Constancio e a “Viagem ao Interior
do Brazil”, de George Gardner, e.g., seriam colocadas junto à documentação oficial dos
relatórios dos presidentes de província. O padrão de documentação é recorrente para as
demais províncias, acrescentando uma ou outra publicação mais específica. Para a província do Rio Grande do Norte, Cândido Mendes faz uso dos relatos de Henry Koster, autor
que seria útil também para compor a normalização referente às províncias de Pernambuco
e da Paraíba.
As dificuldades recorrentes para composição da cartografia do Atlas, que se explicitam nos textos de cada província, expõem os limites do conhecimento do território do
Império. A observação dos mapas das províncias (Figuras 3 a 6) revela que sua lógica de
composição gráfica estava muito mais vinculada, de fato, à montagem de um grande mapa
do Império, permitindo que fosse difundida uma imagem integrada de país, de Estado,
de Nação. Era esse o objetivo primeiro do Atlas, não se pode esquecer, afinal. Olhar com
detalhes para a representação do relevo da província do Rio Grande do Norte, e.g., ilustra
as limitações dos dados disponíveis e a impossibilidade do material tornar-se base para
estudos técnicos.
Não havia possibilidade, diante dessa peça gráfica, de detalhes para esquadrinhamento, mensuração precisa e quantificação. Na verdade, há alguns trechos imprecisos
na representação da topografia no sentido de penetração para o interior, de leste a oeste.
As áreas costeiras eram bem representadas, de maneira geral, afinal, havia um acúmulo
significativo de informações detalhadas voltadas para a navegação.
Figura 6 – A Província da Parahyba do Norte, 1864.
Fonte: Almeida, 1868
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O problema que avultava, ao fim, assentava-se no que implicavam tantas dificuldades e limitações para composição do Atlas. Como reconheceria Cândido Mendes,
O levantamento de cartas topográficas de cada Província, definindo os seus limites, seria de
interesse incalculável tanto para o bom regime administrativo, judicial e eclesiástico, como
para as relações comerciais, que teriam por certo outro desenvolvimento se tais territórios fossem
melhor conhecidos. (Almeida, 1868, p.13, col. 4, grifos nossos)
Era imperativo conhecer o território para transformá-lo. Essa seria uma tarefa na
qual se lançariam muitos profissionais nas décadas seguintes e que teriam papel decisivo
nos processos e projetos de modernização urbana e territorial na virada para o século XX.
As imprecisões, a falta de um melhor detalhamento e o uso de fontes secundárias não
impediram que este trabalho cartográfico se tornasse público em um conjunto de conhecimentos sobre o Brasil ainda desconhecido e que contribuiu, posteriormente – pode-se
inferir –, para a delimitação do que seria denominado Nordeste.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para além do caráter meramente representativo, os mapas permitiam o seu uso, ao
mesmo tempo, como instrumento pedagógico e ferramenta política. Ainda assim, uma
das questões que permanece volta-se para a difícil tarefa de pensar o lugar do Atlas de
Cândido Mendes dentro da trama de relações da formação da cultura técnica moderna
no Brasil e, mais especificamente, com os processos que levariam à definição da região
Nordeste. Há aqui indícios e possíveis inferências. Utilizado no principal centro de ensino secundário do Império, o colégio Pedro II, e enviado a associações profissionais e
instituições, sobremaneira os Institutos Históricos e Geográficos, é de se supor que tenha
cumprido, ainda que parcialmente, seu objetivo de informar e materializar em mapas a
imagem de um Império, mais ainda, de uma Nação em formação – para uma parcela
privilegiada que tinha acesso à educação formal. Não se pode esquecer, ademais, que o
Pedro II era um dos caminhos principais para o ensino superior.
É significativo também que, dentre as interlocuções e fontes principais utilizadas
para composição do Atlas, estejam Beaurepaire Rohan, já citado, e o senador Thomaz
Pompeu de Souza Brasil, cujo “Dicionário topographico e estatístico da Província do Ceará” seria diversas vezes citado. Ambos teriam participação destacada, apresentando teses e
contribuindo largamente para o debate que se seguiu, em um dos momentos cruciais para
consolidação da dimensão técnica das secas:11 a sessão do Instituto Politécnico do Rio de
Janeiro, reunida em 1877 para discutir teorias e propostas para enfrentamento de um novo
ciclo das secas que iria recrudescer e se tornar o pior do século XIX. Os dois profissionais
seriam, assim, algumas das possíveis pontes de conhecimento entre as gerações de intelectuais e profissionais que marcariam a formação da cultura técnica moderna no Brasil – e
que teria como uma das primeiras e mais duradouras tarefas a chamada questão das secas.
Não se pode esperar, contudo, uma relação direta entre as representações cartográficas do Atlas e possíveis formulações de políticas de controle ou transformação do território. Ou em relação aos estudos que começariam a se avolumar e se aperfeiçoar em relação
ao território das províncias setentrionais e, em especial, daquela que se definiria a partir
das ações de combate ao fenômeno das secas.
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11 Entende-se a dimensão
técnica das secas como
“1) a delimitação das secas
como um problema científico que, por conseguinte,
implicou 2) a constituição
de um campo disciplinar de
embates técnicos e políticos
e 3) a formulação de propostas e o desenvolvimento
de ações para enfrentar e,
pretendia-se, solucionar esse problema” (Ferreira, Dantas, Farias, 2008, p.45).
D E S E N H A N D O
George Alexandre Ferreira Dantas é professor do
Departamento de Arquitetura e do Programa de PósGraduação em Arquitetura e
Urbanismo da UFRN; doutor
em Arquitetura e Urbanismo
pela EESC/USP; pesquisador do HCUrb. Email: george
[email protected]
Angela Lúcia Ferreira é
professora do Departamento
de Arquitetura e dos Programas de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo e
em Estudos Urbanos e Regionais da UFRN; doutora em
Geografia pela Universitat de
Barcelona/Espanha; coordenadora do HCUrb; pesquisadora do CNPq. Email: angela.
[email protected]
T E R R I T Ó R I O S
O conjunto de informações não estava voltado, de fato, para embasar estudos técnicos que subsidiariam projetos. Era muito mais parte de um esforço para dar a conhecer o
Brasil aos brasileiros. O Atlas fazia parte de um ambiente técnico e cultural que se esforçava por superar a noção corrente de que o Brasil não conhecia a si mesmo – um correlato
que pode ser citado, dentre vários, no campo da produção historiográfica, é o “Compêndio de História do Brasil”, do militar e professor de matemática José de Abreu e Lima,
publicado em 1843 para a “mocidade brasileira” (Mattos, 2007). O brasileiro formava
um povo “antigeográfico”, diria Cândido Mendes, que mal conhecia o Atlântico e, muito
menos, os rios do país – i.e., pouco conhecia do seu interior. O Atlas buscava assim ajudar
a montar um repertório básico e abrangente imagético sobre o território para os jovens
– a “mocidade” que comporia, esperava-se, a elite política, técnica e burocrática do país.
AGRADECIMENTOS
Yuri Simonini é historiador
e pesquisador do HCUrb;
mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFRN. Email:
[email protected]
Gostaríamos de agradecer ao CNPq, pelas bolsas e recursos financeiros concedidos;
ao professor Hector Mendoza Vargas, da Universidade Autônoma do México, pelas instigantes observações e contribuições teóricas; ao HCUrb/DArq/UFRN pelo apoio e pelo
material disponibilizado para este artigo.
Ar­ti­go re­ce­bi­do em junho de
2011 e apro­va­do pa­ra pu­
bli­ca­ção em setembro de
2011.
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administrativas, ecclesiasticas, eleitoraes e judiciárias. Dedicado a sua Magestade o Imperador Senhor D. Pedro II, destinado a Instrucção Publica no Império com especialidade
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A b s t r a c t In the mid-nineteenth century, the systematic articulation of Brazilian
territory was formulated as an essential issue to forge modern economy and society. This attempt
overcame old geopolitical control demands and delineated long-term droughts in “northern
provinces” as one of the major problems. Thus, it is fundamental to investigate which knowledge
and cartographical information were handled by those who went upon “unknown Brazil”. This
article aims to analyze the limits of cartographical sources as historical documents to comprehend
planned and systematic actions on the territory of Brazilian Northeast. For this analysis, we focus
on the “Atlas do Império do Brazil” [Atlas of Brazilian Empire], edited by Cândido Mendes de
Almeida, in 1868, emphasizing the provinces of Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco and
Paraíba, the most affected by the climate phenomena. The Atlas may be understood, therefore, as
part of the arena of relationships which developed modern technical culture in Brazil and, more
specifically, as part of the processes that lead to the definition of Northeast as an official region.
Keywords
Atlas; Cândido Mendes; technical culture; Empire; territorial
reconfiguration, Northeast/Brazil.
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TERRITÓRIO,
REGIÃO E FRONTEIRA
Análise Geográfica Integrada
da Fronteira Brasil/Paraguai
Edson Belo Clemente de Souza
Vanderléia Gemelli
R e ­s u ­m o
O presente artigo busca interpretar a região de fronteira entre Brasil e Paraguai por meio de uma análise geográfica integrada, envolvendo território, região e fronteira.
Compreende-se essa fronteira como um espaço com características contrastantes que constituem
uma realidade contígua, mas também reticular, que está tanto sob os efeitos de uma dinâmica
local como também global. Trata-se de um território dotado de contradições, com espaços que
compartilham de alguns problemas e de algumas características em comum ou completamente
diversas. Como procedimento metodológico foram utilizados levantamento bibliográfico, trabalho de campo, dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
e do Dirección General de Estadísticas, Encuestas y Censos (DGEEC), que permitiram, no
conjunto, interpretar uma região de territórios transfronteiriços.
P a ­l a ­v r a s - c h a ­v e
Fronteira; Brasil/Paraguai; território; região.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo analisar a região fronteiriça entre Brasil e Paraguai como
um espaço com características contrastantes que constituem uma realidade contígua e reticular, o que demanda uma análise geográfica integrada, envolvendo o território, a região
e a fronteira, enquanto conceitos indissociáveis.
Com o advento do que alguns autores chamam globalização, o espaço se torna
cada vez mais fluido, constituindo-se no meio-técnico-científico-informacional (Santos,
1996; 2000), interligado por redes e por densas relações entre seus atores, sobrepondo ou
conectando os territórios em um processo em constante movimento de territorializaçãodesterritorialização-reterritorialização, movimento conhecido pela sigla t-d-r (Haesbaert,
2006; 2004).
Não obstante, tal fluidez não ocorre de maneira contínua e uniforme por todo o
espaço e, consequentemente, pelo território, uma vez que o espaço é dotado de diferenciações advindas das diversas apropriações que se fazem dele. Sob esse viés, como nos ensina
Milton Santos, as relações entre os objetos e as ações existentes variam conforme o lugar
em vista de suas diferentes condições históricas, apropriações do espaço e acessos disponíveis em relação ao meio-técnico-científico-informacional, entre outros fatores.
Com base nessa premissa é possível justificar as diferenças socioespaciais verificadas
nos dois lados da região de fronteira entre Brasil e Paraguai. O processo histórico de formação desses dois países se deu em condições diferenciadas, apesar da proximidade entre eles
e de similaridades latino-americanas existentes, como a condição de subdesenvolvimento.
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Para uma efetiva compreensão dessa região de fronteira, é necessária uma análise
geográfica integrada do território, da região e da fronteira, haja vista que, embora as realidades apresentem condições reticulares, elas são influenciadas também por componentes
de espaços contíguos, como a proximidade do Lago de Itaipu.
Para o desenvolvimento deste trabalho foram utilizados os seguintes procedimentos
metodológicos: levantamento bibliográfico de teóricos que contribuem para a elucidação
dos objetivos e do objeto investigado; trabalho de campo com entrevistas a agentes relevantes da realidade fronteiriça como o vice-cônsul do Brasil no Paraguai e o vice-cônsul
do Paraguai no Brasil, moradores brasileiros e paraguaios, policiais militares, motoristas
de vans, moto-taxistas; fotografias que evidenciaram a paisagem da fronteira com representações do uso do território; e dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) e da Direción General de Estatísticas, Encuestas y Censos (DGEEC),
que permitiram, no conjunto, interpretar uma região de territórios transfronteiriços.
O texto está alinhavado no seguinte sentido: além desta breve introdução, a discussão
do território, da região e da fronteira busca dar base teórica para subsidiar o que vem a
seguir, a saber: a caracterização da fronteira do Brasil com o Paraguai, inserindo o turismo
como indutor do desenvolvimento regional, pois esta é uma das diversas manifestações
da dinâmica territorial. As considerações finais tratam de demonstrar alguns resultados
alcançados na pesquisa, bem como encaminhar ações vistas como necessárias para que a
fronteira entre Brasil e Paraguai seja mais integrada.
TERRITÓRIO, REGIÃO E FRONTEIRA
A globalização configura lugares, tornando-os cada vez mais heterogêneos, dotados
de uma diferenciação espacial caracterizada pelo surgimento de múltiplos territórios (Haesbaert & Porto Gonçalves, 2006), que, ao mesmo tempo em que se distinguem pelas suas
diferenças identitárias, também se conectam e se sobrepõem no emaranhado complexo
das redes que constituem o espaço geográfico atual. Segundo Moreira (1997), assim como
ontem era a contiguidade que integrava em uma mesma regionalidade pessoas diferentes,
hoje a acessibilidade à informação é o dado integrador dos homens na rede, estando ou
não próximos.
Para Santos (1996), os lugares se expressam pelas horizontalidades e pelas verticalidades. As relações de horizontalidades podem ser lidas nos serviços que a cidade presta em seu
entorno e que exigem deslocamentos periódicos da população: saúde, educação, comércio
especializado, serviços públicos e bancários, dentre outros. Já a verticalidade insere os espaços em graus e em formas variadas nesse contexto global, os quais se utilizam dos benefícios
da informação, haja vista a capacidade que possuem de unir em redes os diferentes espaços.
Território e região, enquanto categorias de análise geográfica, são indissociáveis,
não podendo ser analisadas separadamente, uma vez que possuem estreita relação devido
ao fato de que o movimento do território, que implica t-d-r, está intimamente ligado ao
movimento de construção, de desconstrução e de reconstrução de novas regiões.
A região é assim uma realidade que se concretiza por meio da ação de atores sociais,
evidenciada a partir do momento em que se definem similaridades e relações internas comuns, capazes de delimitá-las: “A região é, portanto, uma dimensão real da vivência dos
indivíduos e dos grupos, e é a partir dela que se cria uma base territorial comum para um
dado quadro de referência de pertencimento e identidades” (Haesbaert, 2004).
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A partir do momento em que há a construção do espaço geográfico por determinada
sociedade, se dá também a formação do território, que nada mais é do que a expressão
da apropriação e das relações (abstratas) que ocorrem no espaço geográfico entre os indivíduos, envolvendo poder. O espaço é, portanto, anterior ao território, como preconiza
Raffestin (1993).
Sob esse aspecto, Santos (1994, p.78) sublinha que o território “[...] significa objetos,
ações e a constituição de redes, podendo ser compreendido como sinônimo de espaço
geográfico socialmente organizado [...]”.
Uma vez que o território se constitui na organização espaço-social, ele se transforma
e se redefine constantemente, tendo em vista que a sociedade sempre está em movimento,
o que também indica uma centralidade na relação espaço-tempo na constante redefinição
do espaço e, consequentemente, do território.
Raffestin (1993) compreende o território como sendo constituído a partir da apropriação do espaço, ou seja, “[...] é o espaço transformado historicamente pelas sociedades” (Raffestin, 1993 apud Saquet, 2009, p.78). A diferenciação entre Milton Santos e
Claude Raffestin na concepção de espaço e de território é que, para o primeiro, o espaço
geográfico é o conceito principal, e, para o segundo, o território é a categoria principal de
análise geográfica. Embora distintos, espaço e território não podem ser separados, pois um
é condição para a existência do outro.
Cada território possui uma identidade que o caracteriza no espaço, o que implica
ser essa sua territorialidade, podendo assim haver, em uma determinada porção do espaço
geográfico, vários territórios sobrepostos, com suas respectivas territorialidades. “A territorialidade é compreendida como relacional e dinâmica, mudando no tempo e no espaço,
conforme as características de cada sociedade” (Raffestin, 1978 apud Saquet, 2009, p.78).
Assim, o território pode ser interpretado como um espaço social, historicamente
produzido e organizado, permeado por relações de poder, por redes e por identidades, que
estão em constante transformação no tempo.
O arranjo espacial e suas transformações são diretamente influenciados pela ação de
alguns agentes principais, como o capital e o Estado, os quais intervêm na organização da
sociedade. Sob esse aspecto, Corrêa (1998, p.60-1) afirma:
A organização espacial é o resultado do trabalho humano acumulado ao longo do tempo.
No capitalismo, este trabalho realiza-se sob o comando do capital, quer dizer, dos diferentes
proprietários dos diversos tipos de capital. Também é realizado através da ação do Estado
capitalista. Isto quer dizer que o capital e seu Estado são os agentes da organização do espaço.
Daí falar-se em espaço do capital.
A região de fronteira brasileira foi estabelecida com o nome de Faixa de Fronteira em
1974, delimitada a 150 km a partir do limite internacional, respeitando o recorte municipal. A criação desse território foi feita sob a óptica da segurança nacional, sendo até hoje
um espaço carente de políticas públicas consistentes que promovam o desenvolvimento
econômico (Machado, 2005).
Pensar a fronteira como forma diferenciada de organização territorial daquela da lógica
capitalista também é necessário, pois a fronteira constitui um recorte analítico e espacial de
diversas realidades sociais, políticas, econômicas e culturais. Enquanto categoria de análise
espacial, ela envolve a problemática da volatilidade do capital e das relações de produção
pelo território. Além disso, a fronteira é palco para conflitos transculturais e identitários.
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Em função do modo de produção e das representações simbólicas, ideológicas e culturais, esses elementos se transformam e se condicionam mutuamente, sempre de maneira
singular. Singularidade, todavia, não significa ausência de diferenciações internas e conflitantes. Logo, é pertinente pensar a fronteira como forma diferenciada de organização
territorial no bojo da ordem territorial capitalista.
A questão das relações bilaterais e multilaterais com o país vizinho – isto é, os temas
transfronteiriços – também faz parte da pauta de uma política de ordenamento territorial
no âmbito nacional, pois possui importantes repercussões nos fluxos e mesmo em regiões
às vezes distantes das fronteiras.
Para Corrêa (2004), a existência da fronteira internacional está associada a diferenças entre os dois lados. Descrevendo tipologias de posição geográfica de cidades, o autor
comenta as características de cidades de fronteiras:
Diferenças de padrão monetário, regime político, etnias, língua e religião levam a que, em certos
pontos da fronteira, estabeleçam-se postos de controle daquilo que atravessa de um lado para o outro. Nesses postos estabelece-se um conjunto de atividades em torno das quais se desenvolve uma
cidade. Ela pode agregar outras funções, mas a de posto fronteiriço tende a ser muito importante.
Sua área de influência tende a ser ampla, incluindo pelo menos dois países. E de modo corrente,
há uma outra cidade do outro lado da fronteira que, de certo modo, cumpre papel semelhante.
Exemplos: Foz do Iguaçu (Brasil) e Ciudad del Este (Paraguai) (Corrêa, 2004, p.319).
É na lógica capitalista que se nega a fronteira, conforme Gonçalves (2004), o qual
afirma que o capital quer fluir pelo mundo sem fronteiras. Segundo Smith (1988), o capital não somente produz o espaço em geral, mas também produz as reais escalas espaciais
que dão ao desenvolvimento desigual sua coerência, pois aprimorou sua capacidade de ser
transescalar em seu próprio benefício, isto é, o do ganho rápido e sem constrangimentos
escalares. Conforme Vitte (2007), as escalas são produzidas e não dadas ontologicamente
a priori, pois são conteúdos e relações fluidas, contestadas e perpetuamente transgredidas.
Apesar de fluidas e interpostas entre si, a autora acrescenta que toda escala é central e
decisiva, material e politicamente, para estruturar os processos dialéticos da acumulação.
De acordo com Gonçalves (2004), a fronteira deriva do front, expressão militar
que designa aquele espaço onde a guerra está sendo travada exatamente pelo controle do
espaço. Definida a vitória pelo controle do espaço, o front transforma-se em fronteira e o
espaço, em território. A fronteira substantiva tende a esconder o front que a fez.
Não obstante a etimologia da palavra fronteira, não há território sem sujeitos,
portanto, todo o território se faz por meio dos sujeitos sociais. É preciso identificar as
territorialidades que subjazem aos territórios.
Martins (1997, p.150) nos ajuda a compreender a fronteira como:
[...] essencialmente o lugar da alteridade. É isso que faz dela um lugar singular. À primeira
vista é o lugar de encontro dos que, por diferentes razões, são diferentes entre si, como o índio
de um lado e os civilizados do outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado e
os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente,
a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro.
Para José de Souza Martins, a fronteira é uma linha de separação, seja concreta ou
abstrata, não necessariamente rígida, como bem observa Haesbaert (2004). Para esse
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autor, há duas “lógicas espaciais” de fronteira. Uma é a “lógica territorial tradicional” e a
outra é a “lógica reticular”. Ambas são distintas, porém articuladas.
A “lógica territorial tradicional” é o modelo de ordenamento territorial por excelência dos Estados nacionais modernos, expressa por áreas onde as relações sociais estão
delimitadas e reguladas de forma a serem estabelecidos recortes espaciais contínuos e contíguos que servem como quadro de referência para a ação dos agentes sociais. A identidade
territorial tende a legitimar ou a ser legitimada pelas fronteiras político-territoriais.
A outra lógica, “espacial”, é o padrão reticular de organização do território que
envolve outras relações. Conforme observa Souza (2009a), a lógica da vida dos povos
em áreas transfronteiriças questiona aqueles pressupostos, no vai e vem de brasileiros e
de paraguaios na fronteira de Foz do Iguaçu com a Ciudad del Leste, como também no
entrelaçamento de brasileiros e paraguaios vistos em território brasileiro e paraguaio. Essa
realidade é uma demonstração do cotidiano da fronteira, com aspectos contraditórios,
complexos e de complementaridade, seja pelos fluxos de serviços, de informações e de
mercadorias ou pelas relações das culturas que os unem e os desunem.
As comunidades de fronteira, especialmente o estudo de caso de brasileiros e paraguaios, sejam migrantes ou não, vivenciam a ambiguidade dessas duas lógicas territoriais:
ao mesmo tempo em que se deparam com o controle rígido das barreiras fronteiriças
internacionais, convivem com múltiplas redes de solidariedade, de trocas comerciais,
culturais e até mesmo políticas, de caráter transfronteiriço.
Nesses espaços o local e o internacional se articulam, estabelecendo vínculos e dinâmicas próprias, construídas e reforçadas pelos povos fronteiriços. Neles estão presentes as
identidades e as culturas nacionais de cada um dos países envolvidos, que constroem, reelaboram e constituem outra cultura e identidade diferenciada, capaz de criar um novo lugar, com aspectos regionais. São regiões que não “respeitam” as barreiras existentes, já que
há ação e interação dos agentes fronteiriços, estimulando dinâmicas fronteiriças informais.
CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DE FRONTEIRA
ENTRE BRASIL E PARAGUAI
A região em estudo se destaca no plano de relações internacionais. A exemplo das
relações econômicas, culturais e geopolíticas com o Mercosul, a mobilidade populacional
constante para o Paraguai influencia, no cotidiano da fronteira, outras identidades socioculturais. São territorialidades1 expressas nos costumes, nos ritmos, nos ritos e nos valores
desses povos.
A área analisada compreende os municípios brasileiros e distritos paraguaios limítrofes ao Lago de Itaipu, pertencentes às faixas de fronteira de ambos os países. Os municípios brasileiros lindeiros ao Lago de Itaipu, que fazem fronteira com o Paraguai, estão
inseridos na Mesorregião Oeste Paranaense, de acordo com a divisão regional proposta
pelo IBGE.
Ao longo do tempo, essa região passou por mudanças e por transformações do espaço
geográfico, as quais caracterizam o movimento da sociedade no processo de territorialização-desterritorialização-reterritorialização (t-d-r).
A construção da Hidrelétrica de Itaipu e, consequentemente, a formação do Lago
em 1982 constituem um dos acontecimentos que ocasionaram significativas mudanças no
arranjo espacial da região em estudo, visto que a formação do Lago propiciou uma nova
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1 De acordo com Guiseppe
Dematteis (apud Saquet,
2007), a territorialidade não
é o resultado do comportamento humano sobre o
território, mas o processo
de construção de tais comportamentos, o conjunto das
práticas e dos conhecimentos dos homens em relação
à realidade material, a soma
das relações estabelecidas
por um sujeito com o território (a exterioridade) e com
outros sujeitos (a alteridade).
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2 Guaíra, Terra Roxa, Mal.
Cândido Rondon, Santa Helena, Matelândia, Medianeira,
São Miguel do Iguaçu e Foz
do Iguaçu.
3 Diamante do Oeste, Foz
do Iguaçu, Entre Rios do
Oeste, Guaíra, Itaipulândia,
Marechal Cândido Rondon,
Medianeira, Mercedes, Missal, Pato Bragado, Santa
Helena, Santa Terezinha de
Itaipu, São José das Palmeiras, São Miguel do Iguaçu
e Terra Roxa. Todos esses
municípios, que compõem
a região Costa Oeste do Paraná, estão localizados em
uma linha de fronteira ou
em uma faixa de fronteira,
ou são cidades-gêmeas (Foz
do Iguaçu com Ciudad del
Este e Guaíra com Salto Del
Guairá), de acordo com a
classificação do Programa
de Desenvolvimento da Faixa
de Fronteira (PDFF). Disponível em: <http:/www.integracao.gov.br/programas/
programasregionais/faixa/
municipios.asp?area=spr_
fronteira>. Acesso em: 15
fev. 2010.
4 Segundo os Censos do
IBGE de 1990, de 2000 e
de 2010, a população de
Foz do Iguaçu é de, respectivamente, 190.123 hab., de
258.543 hab. e de 256.081
(diminuiu nos últimos dez
anos em 0,95%).
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feição à região Oeste do Paraná (Souza, 2009a). Assim, as inundações proporcionadas
pelo represamento culminaram em novos limites de extensões territoriais aos municípios
impactados, bem como reconfiguraram a paisagem e as características dos municípios que
tiveram parte de suas terras alagadas. No momento da formação do lago, em 1982, oito
municípios2 foram atingidos do lado brasileiro, e hoje, após alguns desmembramentos e
emancipações distritais, a região é composta por quinze municípios.3
Nesse contexto, de acordo com o IBGE, entre 1970 e 1996, a mesorregião Oeste do
Paraná passou por intenso processo de urbanização. Tal ocorrência se deve, principalmente, ao fato de essa região ser a última fronteira de ocupação do Paraná, aliado ao processo
de expansão da modernização da agricultura e à atração de mão de obra para trabalhar na
construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
A construção da hidrelétrica causou fortes impactos em toda região extremo-oeste
do Paraná. Em Foz do Iguaçu, por exemplo, um dos principais impactos foi o grande
aumento, em um curto espaço de tempo, da população: saltou de 33.966 habitantes em
1970, para 136.321 em 1980, de acordo com o IBGE.4 Tal fato traz consigo outras consequências, como a necessidade de maior atendimento nos postos de saúde, mais moradias e
toda a infraestrutura que necessitam, como saneamento básico, educação, lazer etc.
A partir de 1982 iniciou-se uma nova fase de desenvolvimento para a região dos
municípios impactados pela construção da Hidrelétrica de Itaipu. Nesse período, formulou-se uma visão de região, uma vez que as mudanças proporcionadas pela hidrelétrica
fizeram (e fazem) com que os municípios que se situam em torno do lago se encontrem
inseridos em um mesmo contexto regional. Assim, por meio da relação entre tecnologia
e sociedade, responsável pela transformação da realidade com a construção de um grande
empreendimento, o espaço se reconfigurou e adquiriu um novo sentido.
Ocorre que a formação do Lago de Itaipu não modificou apenas a estrutura territorial, mas também as relações no território. De acordo com Souza (2009b, p.126), “[...] a
formação do lago não mudou apenas o aspecto geográfico da região, alterou sua própria
essência. A agricultura, base da economia regional, começou a ceder lugar à atividade
turística [...]”.
Esse novo empreendimento, portanto, culminou em grandes transformações sociais,
econômicas e políticas, que constantemente se reorganizam. De acordo com Lima (2004,
p.305):
[...] além do impacto favorável à economia capitalista, outros se sucederam, surpreendendo
a população, especialmente a mais próxima das obras. Novos rumos foram tomados para
a história regional, que foi reconstruída, mediante os desejos e necessidades emergentes da
geração de energia para o provimento do progresso.
Esse novo cenário regional conferiu a possibilidade e a necessidade de novos projetos/programas e políticas para desenvolver a região de acordo com a nova realidade.
Destacam-se, principalmente, as políticas voltadas para o desenvolvimento do turismo,
haja vista a possibilidade de exploração dessa atividade pela criação, principalmente, de
pequenas praias artificiais nas águas do Lago de Itaipu.
Segundo Souza (2009b, p.131): “Toda a infraestrutura turística começou a ser montada a partir de 1982[...]”, momento de formação do Lago da Hidrelétrica, uma vez que
o apoio técnico e financeiro inicial para alavancar o turismo partiu da própria Itaipu. O
autor considera ainda “[...] que a criação do Lago de Itaipu definiu uma nova ‘paisagem’,
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uma ‘nova regionalização’, que está sendo apropriada para alavancar a atividade turística”
(Souza, 2009b, p.131).
A partir disso, a construção de Itaipu culminou em uma reterritorialização do espaço, ou seja, em uma mudança na estrutura social existente, fazendo com que a sociedade
se adequasse ao impacto do alagamento, no sentido de superá-lo, bem como criasse novas
formas de produção econômica, como a atividade turística. Sob esse viés, Lima (2004,
p.307) sublinha: “A nova configuração espacial fora proporcionada não simplesmente pela
inundação, mas por um novo agente modelador, o turismo”.
Desse modo, a atividade turística constitui um elemento novo para essa região, que
culmina em transformações na organização do espaço e abre caminhos para novas ações,
caracterizadas pelas políticas públicas estatais.
Não obstante, notam-se diferenças entre Brasil e Paraguai na região de fronteira,
pois, tratando-se de economia, o segundo apresenta o menor crescimento nos últimos
vinte anos em relação aos países pertencentes ao Mercosul (Mercado Comum do Sul).
Como explica Masi (2006, p.23), a economia paraguaia:
É a mais atrasada do Mercosul não por ser a menor, mas por ter se desenvolvido dentro de
um modelo econômico com características adversas [...] caracterizou-se pela exportação de
matérias-primas, pela triangulação comercial, com alta dose de informalidade e pela especulação financeira.
Nesse panorama econômico paraguaio, o Brasil desenvolve grande interferência
devido à intensificação da relação comercial entre os dois países, principalmente a partir
de 1970, período em que ocorreram muitas mudanças relacionadas à intensificação do
processo de modernização da agricultura no Brasil e também no Paraguai. Vale ressaltar
que a modernização da agricultura paraguaia foi alavancada pelo General Alfredo Stroessner, o qual pretendia, com esta modernização, a inserção do país no mercado externo; essa
inserção coincide com o início da construção da Hidrelétrica de Itaipu.
É nesse período que inicia a migração de brasileiros para o Paraguai. Este fenômeno
se deu em virtude da expulsão do campo brasileiro decorrente do processo de modernização e também pelo incentivo à ocupação da região leste paraguaia, até então esparsamente
habitada. Para a modernização dessa região, eram necessárias pessoas que ocupassem a
terra e nela trabalhassem. No intuito de seguir em seu projeto de modernização da agricultura, Stroessner iniciou um processo de incentivo à colonização da região por brasileiros,
tarefa confiada a grandes colonizadoras. Forte propaganda foi feita no Brasil quanto às
terras paraguaias, baratas e praticamente inabitadas, o que representava uma solução para
aqueles que estavam sendo “expulsos” do campo brasileiro:
A mecanização da agricultura e a concentração fundiária na sociedade brasileira foram os
principais fatores de “expulsão” de arrendatários, posseiros e pequenos agricultores brasileiros, enquanto que o preço baixo da terra e dos impostos e as facilidades de créditos agrícolas
no Paraguai foram alguns dos mecanismos de atração (Albuquerque, 2008, p.3).
Mas mesmo com o incentivo à modernização, o Paraguai:
[…] caracterizou-se por ser um país mais comercial do que produtivo, com uma economia
aberta (principalmente em razão do comércio ilegal ou contrabando) e, portanto, não proR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 3 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 1 1
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tecionista, com um escasso desenvolvimento industrial e agroindustrial, e especializado na
exportação de duas ou três matérias-primas (soja, algodão e carne) (Masi, 2006, p.23).
5 Conforme o depoimento
do vice-cônsul do Brasil no
Paraguai, em Salto del Guairá, Sr. José Lima.
A introdução do cultivo da soja no Paraguai se deve aos brasileiros que migraram
para lá a partir da década de 1970. Mesmo se destacando no comércio, legal ou ilegal, a
produção de soja no Paraguai tem sua expressividade: atualmente, ainda de acordo com
Masi (2006), esse produto é responsável por 50% das exportações do país.
Um dos tipos de comercialização mais comuns verificado no Paraguai é o comércio de
triangulação pela re-exportação. Ou seja, produtos são importados de países como Brasil e
Argentina, que formam um triângulo com o Paraguai, e depois retornam a esses países pela
re-exportação ou contrabando, livrando-se do pagamento de impostos. Ou, conforme Masi
(2006, p.24), muitos produtos são “[...] provenientes, principalmente, dos Estados Unidos
e dos países asiáticos em direção aos mercados altamente protegidos do Brasil e da Argentina, majoritariamente através de canais ilegais.”. Ocorre, porém, que esse tipo de comércio
de re-exportação não garantiu ao Paraguai um crescimento considerável de sua economia.
Em trabalhos de campo realizados em 17/4/2010 e 18/10/2010, no distrito de Marangatu, no Paraguai, pertencente ao departamento de Canindeyú, que faz fronteira com
Pato Bragado, no Brasil, e em Salto del Guairá, também pertencente ao departamento
de Canindeyú, em fronteira com Guaíra-PR, pode-se perceber uma série de aspectos que
distinguem os respectivos países analisados.
Percebeu-se, do ponto de vista da infraestrutura básica (estradas pavimentadas, transporte, educação, saúde), do acesso a serviços e a produtos, dentre outros, que se trata de
uma realidade oposta, “distante” da vivida no Brasil, pois se constitui em um espaço com
grande carência de ações e de investimentos por parte do Estado.
Na localidade visitada durante trabalho de campo há o Puerto de Marangatu, do
lado paraguaio, em precárias condições, responsável pela travessia somente de pessoas pelo
Lago de Itaipu até o Porto de Pato Bragado do lado brasileiro. É por esse porto que muitos brasileiros residentes no Paraguai vêm até o Brasil para utilizar serviços (como saúde,
assistência social e jurídica, aposentadoria, educação etc.).
Atualmente, existem 112 mil brasileiros (chamados de brasiguaios) residentes no
Paraguai, segundo estatísticas oficiais. Já as estatísticas extraoficiais5 apontam para mais
de 1 milhão de brasileiros, concentrados principalmente na porção leste paraguaia, região
de fronteira com o Brasil, nos departamentos paraguaios de Alto Paraná, Canindeyú,
Amambay, Itapua, Caaguazu e Caazapá.
No caso da fronteira entre Brasil e Paraguai, a oscilação cambial interfere diretamente nas
relações de compra e venda de mercadorias. Ciudad del Este (cidade que faz fronteira com Foz
do Iguaçu-PR) e Salto del Guairá (localizada na fronteira com Guaíra-PR) são duas cidades
de compristas brasileiros por mercadorias de preço baixo, em relação aos similares brasileiros.
A fronteira apresenta-se como espaço de complementaridade (na medida em que
convivem em uma mesma realidade diferentes territorialidades) e, ao mesmo tempo, espaço de diferenciações (visto que há uma seletividade espacial que tende a favorecer grupos
dominantes). Tal seletividade pode ser empregada tanto pelo capital, como pelo Estado,
dotando determinados lugares com uma maior infraestrutura de acordo com as condições
de organização socioespacial que apresentem e com o interesse do capital e do Estado.
Na fronteira Brasil/Paraguai entende-se que essa seletividade espacial se aplica aos
diferentes tratamentos direcionados aos dois lados da fronteira quanto à implantação de
políticas públicas por parte dos Estados paraguaio e brasileiro.
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A atuação do Estado é diferencial em ambos os lados da fronteira. No Paraguai, o
sistema político-administrativo possui autonomia centralizada, enquanto que, no Brasil,
essa autonomia é descentralizada em cada Estado da Federação. Desse modo, há, no Brasil, uma atuação maior do Estado pelo território que no Paraguai. Esse é um dos fatores
que contribuem para a diferenciação ligada à infraestrutura turística existente na faixa de
fronteira entre os dois países.
A atividade turística6 é o exemplo emblemático da compreensão desse estudo, pois,
por possibilitar a integração dos povos e dinamicidade pela inerente prática social e econômica, a implantação de alguns programas turísticos brasileiros7 tem se reproduzido na
fronteira paraguaia. A Itaipu Binacional representa um grande elo entre os dois países,
haja vista suas atuações na região fronteiriça.8
No Brasil, além de o turismo receber maiores investimentos que no Paraguai, sua
economia estatal favorece as potencialidades locais, em contraposição ao outro país, onde,
em muitas cidades, a presença estatal é restrita, como é o caso da Ciudad del Este e de
Marangatu. Por outro lado, observou-se que no Paraguai há uma grande atuação do capital na transformação do espaço geográfico, e o turismo de compras é bastante evidente
na Ciudad del Este e em Salto del Guairá, por exemplo.
Nesse sentido, os atores que protagonizam as transformações do espaço geográfico
são, principalmente, o Estado (instituições públicas), o capital (iniciativa privada) e a
própria sociedade civil organizada.
De acordo com Corrêa (1998, p.48), “[...] o Estado, surgido dentro do modo de
produção dominante, é o agente da regionalização”. Assim, também a iniciativa privada e
a sociedade civil organizada, muitas vezes agindo em conjunto com o Estado, ou na própria mobilização da sociedade, atuam no sentido de criar uma mesma realidade específica,
contribuindo para a regionalização do espaço.
Todas essas transformações, inseridas no processo de globalização, criam múltiplos
territórios, tornando o espaço geográfico complexo, que, longe de ser aniquilado pelo
tempo, como defendem alguns estudiosos,9 torna-se cada vez mais heterogêneo e diferenciado, conectado, no entanto, pelo advento das redes. Torna-se imperativa, assim, a
“multiterritorialidade”, conforme Haesbaert (2004), em um complexo espaço global, ao
mesmo tempo em ordem e em desordem com os territórios-redes.
Nesse contexto, assim como os territórios e as regiões, também as fronteiras estão
longe de se dissolverem nesse emaranhado complexo de relações que caracteriza o mundo globalizado. O que ocorre é uma afirmação ainda maior dessas categorias de análise
geográfica, tornadas ainda mais complexas e que vêm caracterizar a multiplicidade de
tempos-espaços concretizados e em constante movimento pelo processo de t-d-r. Haesbert
(2004, p.178) enfatiza:
Sintetizando, a chamada desterritorialização, ou melhor, des-reterritorialização, e, consequentemente, os atuais processos de regionalização, estão fortemente vinculados ao fenômeno da compressão tempo-espaço – não no sentido de uma “superação do espaço pelo tempo”
ou de um “fim das distâncias”, mas de um emaranhado complexo de “geometrias de poder”
de um espaço social profundamente desigual e diferenciado.
Dentro dessa dinâmica atual, também as fronteiras por vezes mudam de sentido,
passando a significar muito mais do que simples limites político-organizacionais dos
territórios institucionais. Em consonância com o Brasil, por meio do Ministério da
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109
6 Estudos sobre turismo e
fronteira estão se efetivando
nos seminários internacionais de turismo de fronteiras,
sendo que no ano de 2010
foi realizado o VII Seminário
Internacional de Turismo de
Fronteiras – Frontur 2010,
em Assunção-Paraguai, cujo
tema foi “La integración se
hace más concreta”.
7 No sentido de atender ao
desenvolvimento da atividade e procurar dar-lhe um
caráter mais relevante na
agenda de governo, foram
formuladas políticas, planos
e programas que atualmente
estão sob a coordenação
do Ministério do Turismo –
MTur. A ação de maior expressividade do MTur no que
diz respeito ao planejamento
e à organização do território
nacional para o turismo é
o Programa de Regionalização do Turismo – Roteiro
do Brasil.
8 Alguns dos projetos e
programas da Itaipu implantados no Brasil e com perspectivas de implantação no
Paraguai: Cultivando Água
Boa, Desenvolvimento Rural
Sustentável, Plantas Medicinais, Coleta Solidária, Jovem
Jardineiro, Produção de Peixes em Nossas Águas etc.
9 Segundo Virilio (1994
apud Araújo, 1998): “[...]
este tempo único, universal,
astronômico, se transformou
no tempo do mundo rápido.
Existe assim uma desqualificação do tempo local, mas
também do espaço local, em
proveito do tempo mundial
e de um não-lugar […] que
diz respeito ao fim do hic et
nunc (grifo do autor) ao fim
do aqui e agora. (p. 130-1)”.
Para Virilio (1994), a corrida da sociedade é sempre
em proveito da redução das
distâncias, onde os espaços
são eliminados.
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Integração (2005), as novas condições técnico-tecnológicas, como o sistema global de
telecomunicações, tornam imperativas as mudanças no tratamento da fronteira. Muitas
fronteiras da atualidade se constituem em espaços onde há uma mescla entre os dois lados, com interação constante pelo contínuo movimento dos fixos e dos fluxos, como é o
caso da fronteira entre Brasil e Paraguai. São costumes, identidades, cotidianos próprios
da fronteira e realidades que não veem a fronteira como uma linha rígida, intransponível,
mas, sim, como uma região onde o lado de lá e o lado de cá se mesclam, se interpõem
e convivem em uma só realidade. Não obstante, existe um quadro de diferenças sociais,
políticas, infraestruturais e culturais, entre outras, que forma uma realidade complexa.
Vários fatores corroboram o panorama apresentado, como o fluxo contínuo de
pessoas, de informações, de mercadorias, de ideias etc., para que a fronteira represente,
principalmente para quem nela vive, uma realidade única, a qual pode ser percebida/
constatada na fronteira entre Brasil e Paraguai.
Desse modo, a partir do momento em que há um espaço construído e, consequentemente, uma sociedade nele instalada, dá-se a formação do território. Este último é a
expressão da organização que há em uma determinada porção do espaço, pelas relações
que existem de dominação, de controle e de poder. Dessa perspectiva, o território é o
[...] produto de processos de controle, dominação e/ou apropriação do espaço físico por
agentes estatais e não estatais. Os processos de controle (jurídico/político/administrativo),
dominação (econômico-social) e apropriação (cultural-simbólica) do espaço geográfico nem
sempre são coincidentes em seus limites e propósitos. (Brasil – Ministério da Integração,
2005, p.21).
Sob essa lógica, a territorialização pode ser resultante tanto das ações do Estado por
meio de políticas públicas, como também pelas empresas e ou pelas práticas das comunidades, através das identidades e das significações do espaço vivido.
Nesse sentido, as territorialidades nem sempre coincidem com os limites de um
território formalmente instituído, como é o caso da fronteira entre Brasil e Paraguai. Na
região de fronteira desses países existem territorialidades que ultrapassam seus limites
territoriais e institucionais como a territorialidade dos brasiguaios, do narcotráfico, dos
indígenas, do capital, entre outros. Sobretudo, “[...] o território é compreendido como um
espaço de organização e luta, de vivência da cidadania e do caráter participativo da gestão
do diferente e do desigual” (Saquet, 2007, p.91).
A fronteira entre Brasil e Paraguai constitui-se, portanto, em um espaço que possui a
sobreposição de diversos territórios que apresentam semelhanças, mas também diferenças
oriundas da seletividade espacial e econômica, pois, conforme Dias (2007, p.3):
A localização geográfica torna-se [...] portadora de um valor estratégico ainda mais seletivo.
As vantagens locacionais são fortalecidas e os lugares passam a ser cada vez mais diferenciados
pelo seu conteúdo – recursos naturais, mão de obra, infraestrutura de transportes, energia ou
telecomunicações, etc.
Dias se reporta a uma diferença de atratividade dos lugares para o capital, de acordo
com a incorporação da técnica e da informação que apresentam. Assim, essa incorporação
é desigualmente distribuída pelo território: aqueles que apresentam uma incorporação
maior são mais atrativos ao capital. Dias (2007), assim como Haesbaert (2004), discorda
110
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de Virilio (1994 apud Araújo, 1998) em relação à aniquilação do espaço, uma vez que a
instantaneidade, a rapidez da informação e a incorporação de novas técnicas se distribuem
desigualmente pelo espaço, dotando-o de um valor estratégico diferencial e seletivo. Para
a autora, “[...] associar contração de distâncias à negação do espaço situa-se no plano da
utopia [...]” (Dias, 2007, p.3).
Por meio da análise da região de fronteira entre Brasil e Paraguai percebe-se que a
seletividade dos lugares é o diferencial dos dois lados da fronteira. Na faixa de fronteira
brasileira, o Estado atua enquanto criador de políticas públicas ligadas ao turismo, que
contribuem para uma singularidade regional, caracterizando também uma seletividade
espacial, o que não ocorre no Paraguai.
Nesse contexto, a regionalização enquanto processo de classificação de regiões, institucionais ou não, é forjada também, de acordo com Brasil – Ministério da Integração
(2005, p.20-1):
[...] na própria ação dos indivíduos e comunidades que, conjugando múltiplos interesses, econômicos e políticos, e produzindo identificações sócio-culturais diversificadas, redesenham
constantemente seus espaços.
Outro elemento de diferenciação entre os dois países que deve ser destacado é a
infraestrutura para o turismo existente no Brasil e no Paraguai. O primeiro possui uma
estrutura forte e mais consolidada se comparada à do Paraguai, que, praticamente, não
possui ou é muito incipiente. Isso, em parte, pode ser explicado pelo seguinte fator: no
que diz respeito à Itaipu, os recursos liberados para Brasil e Paraguai são igualmente
divididos, porém os direcionamentos dados a esses recursos são diferentes. O Paraguai,
por exemplo, direciona os recursos recebidos para investimentos em obras sociais, ou em
ajuda aos distritos, enquanto que muitos dos investimentos no Brasil são dirigidos para o
turismo. Assim, também, o governo central paraguaio não oferece autonomia aos departamentos, atuando apenas nas áreas consideradas prioritárias, tendo por base as condições
e os problemas sociais do país; o turismo não constitui uma delas.
Embora incipientes, os investimentos ligados ao turismo no Paraguai não são, no
entanto, inexistentes. Exemplo disso é a recente criação da Polícia de Turismo, em 2009,
que atua em Ciudad del Este e em Salto del Guairá, cidades que se destacam no turismo
de compras. A Polícia está ligada à Comandancia de la Policía Nacional e atua no sentido
de orientar e de defender os turistas. Para tanto, são promovidas medidas de proteção, de
apoio e de assistência aos turistas que visitam essas cidades e, de acordo com esse órgão:
“La División de Seguridad Turística contribuye al mejoramiento de la calidad de la información, protección y seguridad en la entrada al país, en las rutas, caminos y centros de
concentración de turistas”.10 A criação da Polícia de Turismo destaca a vocação turística
paraguaia, ligada ao turismo de compras provindo do Brasil.
Por outro lado, do ponto de vista do processo de urbanização, de acordo com dados
do IBGE, no Brasil, e da DGEEC, no Paraguai, pode-se constatar que do lado brasileiro da
faixa de fronteira o grau de urbanização é maior, e na fronteira paraguaia, na maioria dos
distritos possui população rural superior à urbana. As Tabelas 1 e 2 caracterizam cada um
dos municípios e distritos da região, do Brasil e do Paraguai, com dados referentes à área
territorial, ao número de habitantes e ao total de população rural e urbana:
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111
10 “A Divisão de Segurança Turística contribui o
melhoramento da qualidade
da informação, proteção e
segurança na entrada ao
país, nas estradas, caminhos
e centros de concentração
de turistas”. Disponível em:
<www.seguridadurbanayturistica.gov.py>. Acesso em
06 dez. 2011.
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Tabela 1 – População e área territorial dos municípios lindeiros ao Lago de Itaipu no
Brasil – 2010
Município
Nº de
habitantes
(Censo 2010)
Foz do Iguaçu
População
urbana
(Censo 2010)
População
rural
(Censo 2010)
Área territorial
(km2)
256.081
253.950
2.131
610,209
Santa Terezinha de Itaipu
20.834
18.832
2.002
267,49
São Miguel do Iguaçu
25.755
16.476
9.279
848,67
Itaipulândia
9.027
4.742
4.285
332,32
Medianeira
41.830
37.403
4.427
325,17
Missal
10.474
5.420
5.054
232,04
Santa Helena
23.425
12.596
10.829
759,12
Diamante D’Oeste
5.027
2.561
2.466
309,147
São José das Palmeiras
3.831
2.412
1.419
183,28
Mal. Cândido Rondon
46.799
39.134
7.665
748,28
Mercedes
5.046
2.439
2.607
199,08
Pato Bragado
4.823
2.991
1.832
539,03
Entre Rios do Oeste
3.922
2.641
1.281
120,33
Terra Roxa
16.763
12.802
3.961
803,48
Guaíra
30.669
28.176
2.493
568,845
Total
508.110
445.011
63.099
6.937,491
Fonte: IBGE, <www.ibge.gov.br>.
11 Estudo mais detalhado
sobre a urbanização da região Costa Oeste do Paraná pode ser visto em Graff
(2010).
Quanto aos municípios lindeiros ao Lago de Itaipu, pertencentes à faixa de fronteira
brasileira, pode-se constatar, de acordo com a Tabela 1, que se trata de municípios com
grande parte da população vivendo na zona urbana. Os municípios de Foz do Iguaçu,
Santa Terezinha de Itaipu, Medianeira, Marechal Cândido Rondon, Terra Roxa e Guaíra
são os que apresentam maior diferença entre população urbana e rural. O único município com população rural superior à urbana é Mercedes, mas a diferença é pequena.11
Segundo Limonad (2008), para entender a urbanização brasileira hoje é necessário
perceber as diferenças e as diversidades das transformações. A urbanização está ligada à
estruturação do território, compreendendo a reprodução dos meios de produção, a reprodução da força de trabalho e da família, e, por conseguinte, a distribuição espacial da
população e das atividades produtivas.
Na Tabela 2, referente aos distritos do Paraguai, percebe-se que os dados da população são relativamente diferentes dos do Brasil:
112
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Tabela 2 – População e área territorial dos distritos lindeiros ao Lago de Itaipu no
Paraguai
Distrito
Salto del Guairá
Nº de
habitantes
(Censo 2002)
População
urbana
(Censo 2002)
População
rural
(Censo 2002)
Área territorial
(km2)
11.298
6.653
4.645
1382,48
La Paloma
6.373
3.929
2.444
728,76
Gral. Francisco C. Alvarez
8.884
2.692
6.192
1043,91
Nueva Esperanza
9.951
3.018
6.933
1342,44
San Alberto
11.523
4.221
7.302
1046,8
Minga Porá
11.180
1.393
9.787
881,25
Mbaracayú
8.337
449
7.888
1174,43
63.248
47.266
15.982
1519,27
130.794
69.621
61.173
9.119,34
Hernandárias
Total
Fonte: DGEEC, Censo Nacional de Población y Vivienda, 2002.
De acordo com a Tabela 2, ocorre o oposto em relação ao lado brasileiro, uma vez
que, no Paraguai, os distritos apresentam menor grau de urbanização. Dos oito distritos,
apenas três (Salto del Guairá, La Paloma e Hernandárias) possuem maior contingente de
população vivendo na zona urbana. Os demais (Gral. Francisco Caballero Alvarez, Nueva
Esperanza, San Alberto, Minga Porá e Mbaracayú) possuem maior população rural. Além
disso, em alguns desses distritos, a diferença entre população rural e população urbana
é bastante representativa, como é o caso do distrito de Minga Porá, onde a população
urbana soma 1.393 habitantes e a rural 9.787 habitantes.
A urbanização representa a estruturação do território que é condicionada pelos aspectos sociais, econômicos e políticos de determinados momentos da sociedade, que se
diferenciam de acordo com as possibilidades e as características de cada lugar: “O urbano
é o modo como a reprodução do espaço se realiza na contemporaneidade, como realidade
e possibilidade” (Carlos, 2008, p.183). Essa autora geógrafa e muitos outros, inclusive não
geógrafos,12 balizam suas análises na relação espaço-tempo, contextualizando as características de cada período e em determinado lugar com as singularidades que o identificam.
Assim, compreende-se que a distribuição da população e a análise das bases produtivas são instrumentos valiosos para entender o fenômeno urbano nas diferentes regiões
e em diferentes esferas, capaz de traduzir informações importantes sobre a organização
social, cultural e política, demonstrando aspectos peculiares de cada região e o grau de
envolvimento na expansão do sistema capitalista.
Essa caracterização permite ter uma visão geral da região de fronteira entre Brasil e Paraguai e constatar que, ao mesmo tempo em que a fronteira possui situações e
preocupações em comum, ligadas à segurança, à saúde, à educação e demais serviços, as
condições de cada lado são diferentes, visto que no Brasil a qualidade e a quantidade dos
serviços ofertados são em maior proporção que no país vizinho. Esse é um fato que explica
a grande quantidade de pessoas (brasileiros ou paraguaios) que vivem na faixa de fronteira
paraguaia e procuram o atendimento no Brasil. Essa é uma das características marcantes
da fronteira, pois se reflete no fluxo constante de pessoas, de mercadorias e de serviços.
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12 Bergmann (1986); Lefebre (1991); Castells (1983);
Gottdiener (1993) e outros.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
13 Gemelli & Souza (2010);
Guimarães (2010).
Edson Belo Clemente de
Souza é geógrafo; Profes­
sor Associado da Unioeste;
membro do Grupo de Es­
tudos Fronteiriços (GEF) e
coordenador do Laboratório
de Estudos Regionais (LA­
BER); pesquisador do CNPq
e Fundação Araucária. Email:
[email protected].
Vanderléia Gemelli é mes­
tranda em Geografia (Unio­
este/Campus de Francisco
Beltrão); pesquisadora do
GEF e do LABER. Email: leia
[email protected]
Ar­ti­go re­ce­bi­do em julho de
2011 e apro­va­do pa­ra pu­
bli­ca­ção em setembro de
2011.
A fronteira entre Brasil e Paraguai constitui-se em local privilegiado para o estudo do
território e da região, pois se concretiza em campos de força, de conflitos, de solidariedade
e de contradições onde se dá a sobreposição de vários territórios,13 destacando-se determinadas características peculiares que diferenciam esse espaço dos demais.
A organização da estrutura socioespacial entre os dois lados da fronteira Brasil/Paraguai abriga espaços contíguos, mas as populações vivem em realidades distintas, oriundas
de um processo histórico diferencial de ambas as sociedades. Apesar da contiguidade, o
território, a região e a fronteira estão permeados por realidades contrastantes.
As informações obtidas demonstram diferentes dinâmicas socioespaciais entre esses
lugares da fronteira. Os municípios do lado brasileiro, considerados de forte projeção
agrícola, tiveram alteração em sua base econômica com a construção da Hidroelétrica de
Itaipu, quando perderam parte de suas terras produtivas, fator principal que resultou na
reestruturação de seu território e mudanças na paisagem.
A Itaipu é um “divisor de águas” na história do desenvolvimento urbano desses
municípios, pois promoveu significativas alterações sob o ponto de vista urbano e econômico, implicando em transformações espaciais, configurando na região uma nova realidade e um novo cenário pelo incentivo da atividade turística como forma de produção
desse espaço.
Para uma efetiva compreensão desse espaço fronteiriço, é necessário que a análise
seja integrada, permitindo compreender a complexidade espacial de lógicas contíguas e
reticulares. Assim, a interpretação dessa região de fronteira perpassa pela análise integrada
de questões referentes ao território, à região e à fronteira, na medida em que esses fatores
fazem parte do cotidiano desse lugar, estando sobrepostos em um emaranhado de relações
complexas, característico do mundo globalizado atual.
A localização dos municípios dessa região pressupõe uma lógica de relações econômicas, políticas, sociais e culturais, articulando-os através de um sistema de objetos e de
ações. O estudo dessa região revela alguns eixos transversais representados pela viabilidade
de algumas reflexões que constituem a região de fronteira.
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A b s t r a c t This article seeks to examine the border between Brazil and Paraguay
through an integrated geographical analysis, which involves territory, region and border. This
border is understood as an area with contrasting characteristics that constitute a contiguous but
also a reticulated reality, which is under the effects of both local and global dynamics. It is a
territory endowed with contradictions, with areas that share some problems and characteristics
that are similar or completely diverse. Literature review, fieldwork, statistical data from
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (Brazilian Institute of Geography and
Statistics) and from Dirección General de Estadísticas, Encuestas y Censos – DGEEC (General
Directorate of Statistics, Surveys and Censuses of Paraguay) were used as methodology. These
procedures allowed to interpret a region of cross-border territories.
Keywords
116
Border; Brazil/Paraguay; territory; region.
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O PROGRAMA CALHA NORTE
Redefinição das Políticas de Segurança e Defesa nas
Fronteiras Internacionais da Amazônia Brasileira
Licio Caetano do Rego Monteiro
R e ­s u ­m o O Programa Calha Norte (PCN) foi concebido na década de 1980, mas
assumiu novas configurações após sua retomada em 2003. Neste artigo, analisamos o PCN a
partir da diferença entre os momentos inicial e atual, considerando a redefinição das políticas
de segurança e defesa do Estado brasileiro nas fronteiras internacionais da Amazônia nas últimas duas décadas. O argumento principal é o de que as mudanças de concepção do PCN entre
esses dois períodos demonstram como a aplicação das políticas dirigidas pelo governo central,
mesmo na área de segurança e defesa, depende das mediações em escalas local e regional que
legitimam e dão forma aos resultados obtidos. Para isso, analisamos os documentos relativos
ao PCN, a relação entre o PCN e as demais políticas de controle territorial na Amazônia e o
mapeamento das verbas aplicadas pelo PCN nos municípios de sua área de abrangência, entre
2003 e 2007.
P a ­l a ­v r a s - c h a ­v e
Programa Calha Norte; segurança; Amazônia bra-
sileira; fronteiras; Forças Armadas.
COMPARAÇÃO ENTRE DOIS MOMENTOS
DO PROGRAMA CALHA NORTE
Três argumentos principais orientam a construção de nossa abordagem sobre o
Programa Calha Norte (PCN).
Em primeiro lugar, o Programa, apesar de possuir o mesmo nome desde sua concepção na década de 1980, não manteve uma mesma configuração em mais de duas décadas
de existência. Podemos demarcar pelo menos três períodos distintos em seu funcionamento, que serão explicitados ao longo de nossa análise. Particularmente, ressaltamos a
diferença acentuada de motivações e formato entre os anos finais da década de 1980 e o
período de retomada do PCN, a partir de 2003.
Em segundo lugar, uma das características que singularizam o período de retomada
do Programa Calha Norte na década de 2000 é a relação estabelecida entre o comando
definido desde cima pelo Estado central e as mediações efetuadas pelos poderes municipais e estaduais.
Por fim, a retomada do Calha Norte apresenta uma versão atualizada do binômio
segurança e desenvolvimento na Amazônia brasileira, em um contexto bastante diferente
daquele marcado pela doutrina de segurança nacional dos anos 1970.
Apesar da permanência do nome e de vários aspectos formais, o Programa Calha
Norte apresenta diversas diferenças entre o momento inicial na década de 1980 e o momento atual de retomada, dentre as quais podemos destacar as motivações geopolíticas,
a área de abrangência, a obtenção e o direcionamento dos recursos, o órgão de comando
e o nível de centralização.
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O Programa Calha Norte começou a ser concebido em 1985, no momento de abertura democrática e de transição do papel das Forças Armadas na política nacional. Novas
questões eram apresentadas naquele momento como problemáticas para a administração
da fronteira norte, entre elas, a proteção das comunidades indígenas, a garimpagem de
metais preciosos e o tráfico de drogas (Mattos, 1990, p. 106), principalmente em Roraima, com o conflito entre garimpeiros e indígenas.
O contexto da Guerra Fria ainda vigorava como uma preocupação geopolítica para o
Estado brasileiro. Uma das principais justificativas para o PCN apresentadas pelo Conselho de Segurança Nacional em 1985 era a possível “projeção do antagonismo Leste-Oeste
na parte norte da América do Sul” (Exposição de Motivos 018 apud Oliveira, 1990, p.19),
por meio das disputas fronteiriças envolvendo Venezuela, Guiana e Suriname, da emergência de lideranças personalistas nos governos da Guiana e do Suriname, da projeção
dos movimentos revolucionários do Caribe e da influência cubana (Oliveira, 1990, p.
19). Durbens Nascimento (2006, p. 100) acrescenta ainda a permanência de reflexos do
combate à guerrilha do Araguaia como um dos motivos que mobilizavam as iniciativas
das Forças Armadas na Amazônia.
O projeto assumiu três objetivos principais desde o seu início: colonização e desenvolvimento, controle territorial e defesa nacional, e relações bilaterais com os países
vizinhos, embora este último objetivo tenha sido relegado para o segundo plano. Ao longo
dos anos, algumas mudanças ocorreram em suas justificativas e em sua forma de apresentação. A página do Ministério da Defesa assim apresenta o programa:
O Programa Calha Norte (PCN) tem como objetivo principal contribuir com a manutenção
da soberania na Amazônia e contribuir com a promoção do seu desenvolvimento ordenado.
Foi criado em 1985 pelo Governo Federal e atualmente é subordinado ao Ministério da
Defesa. Visa aumentar a presença do poder público na sua área de atuação e contribuir para
a Defesa Nacional.
Na sua etapa de implantação era chamado Projeto Calha Norte e tinha uma atuação limitada,
prioritariamente, na área de fronteira. Hoje, o Programa foi expandido e ganhou importância em vista do agravamento de alguns fatores. Entre eles, o esvaziamento demográfico das
áreas mais remotas e a intensificação das práticas ilícitas na região. Nesse contexto, cresce a
necessidade de vigilância de fronteira e proteção da população. Ao proporcionar assistência às
populações, as ações do Programa pretendem fixar o homem na região amazônica.
O PCN busca desenvolver ações de desenvolvimento que sejam socialmente justas e ecologicamente sustentáveis. Para isso, é indispensável respeitar as características regionais e os
interesses da Nação (Ministério da Defesa, 2009, grifos nossos).
Nessa apresentação podemos identificar algumas ideias que orientam a formulação
do programa. Em primeiro lugar, a soberania e o desenvolvimento ordenado estão associados à maior presença do Estado, que possibilita, por meio da assistência às populações,
“fixar o homem na região” – ideia que permanece como elemento simbólico do controle
combinado sobre o território e a população na Amazônia. Em segundo lugar, existe a
percepção de que os problemas que deram origem ao PCN se agravaram, o que justifica
a ampliação de sua área de abrangência para além da faixa de fronteira da Calha Norte,
definida inicialmente. Enquanto o “esvaziamento demográfico” permanece como preocupação seguindo uma visão tradicional das concepções de segurança e defesa, a “intensificação das práticas ilícitas” assume uma importância cada vez maior como elemento de
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insegurança. Em terceiro lugar, pode-se notar a incorporação de um discurso que valoriza
questões ambientais, justiça social e características regionais, o que pode ser interpretado
como uma tentativa de renovação da imagem conservadora tradicionalmente vinculada
às Forças Armadas.
A atual área de abrangência do PCN cobre 194 municípios, que correspondem à
totalidade dos municípios dos Estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá e ao entorno da Ilha de Marajó na porção norte do Estado do Pará. Inicialmente, a
área do PCN circunscrevia-se aos municípios da faixa de fronteira situados entre o rio
Solimões (município de Tabatinga-AM) e a foz do rio Amazonas, nas proximidades da
Ilha de Marajó. A ampliação da área de atuação do PCN ocorreu em dezembro de 2003,
concomitantemente à reestruturação e ao aumento das verbas direcionadas ao programa.
Atualmente, o PCN cobre 32% do território nacional. Dos 194 municípios atendidos, 96
estão situados na faixa de fronteira.
A gestão do PCN está vinculada ao Ministério da Defesa, depois de já ter passado
por diversos órgãos diretamente vinculados à Presidência da República.1 São duas dimensões de atuação do PCN: a “vertente militar”, que corresponde à “Manutenção da
Soberania e Integridade Territorial”, e a “vertente civil”, que corresponde ao “Apoio às
Ações de Governo na Promoção do Desenvolvimento Regional” (Ministério da Defesa,
2007, p. 8). A vertente civil, vinculada ao desenvolvimento local, tem sido realizada por
meio dos convênios municipais, que são parcerias com as prefeituras municipais da área
de atuação do PCN. São sete áreas temáticas de atuação dos convênios: 1) infraestrutura
social; 2) infraestrutura de transportes; 3) infraestrutura econômica; 4) viaturas, máquinas e equipamentos; 5) esportes; 6) educação e saúde e 7) segurança e defesa (Roppa,
2007, p. 45).
Na vertente civil, os parlamentares do Congresso Nacional apresentam emendas ao
Programa para que os convênios sejam estabelecidos. Essa opção fica facultada também
aos governos municipal e estadual, bem como a entidades civis. Até 1997, foram 90
municípios atendidos pelos convênios com o PCN. As Diretrizes Estratégicas para o Programa Calha Norte e o manual Convênios: Normas e Instruções estão disponíveis no site
do Ministério da Defesa para orientarem a relação entre os proponentes e os concedentes
dos recursos destinados às ações. As ações propostas pelos convênios têm de estar enquadradas dentro dos objetivos do Programa, mas não há algum direcionamento explícito
sobre regiões ou locais prioritários dentro da área do PCN.
Em 1990, o PCN sofreu uma acentuada redução de verbas e ficou limitado a ações
internas às Forças Armadas, como apoio à melhoria e à implantação de infraestrutura
militar na região amazônica, que ganhava cada vez maior importância nas políticas de
segurança e defesa. Os recursos destinados ao PCN se mantiveram escassos até 2004,
quando o programa se reestrutura, já com verbas ampliadas para a efetivação de seus
objetivos.
O Gráfico 1 indica os recursos aplicados no PCN desde sua criação até o ano
de 2007. Percebe-se um crescimento dos valores entre 1986 e 1989, seguido de um
acentuado decréscimo em 1990 e da permanência de baixos valores até o ponto mais
baixo em 1999. Entre 2000 e 2004, o Programa recupera um patamar pouco acima
dos US$ 10 milhões (com exceção de 2003) para retomar um acentuado crescimento
entre 2005 e 2007.
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1 Originalmente, o PCN
esteve sob coordenação
da SEPLAN (1986-1988),
da Saden (1988-1990), da
SAE, (1990-1998), do MEPE
(1999), quando finalmente
passou a estar vinculado ao
Departamento de Política e
Estratégia da Secretaria de
Política, Estratégia e Assuntos Internacionais, no âmbito do Ministério da Defesa
(cf. Nascimento, 2006, p.
104-5).
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Gráfico 1 – Recursos do PCN (1986-2007)
Fonte: Ministério da Defesa, 2007
A periodização proposta nesta pesquisa diferencia três momentos do PCN: 1) entre
1985 e 1989, período marcado pela concepção inicial do Programa, pela transição do contexto político interno e externo, cujos marcos foram a redemocratização e o fim da Guerra
Fria, e pelo patamar relativamente elevado dos investimentos; 2) entre 1990 e 2002,
período de recursos escassos para as Forças Armadas como um todo e especificamente
para o PCN, quando a relação civil-militar foi redefinida em novas bases, com destaque
para o lançamento da Política de Defesa Nacional (1996) e a criação do Ministério da
Defesa (1998); e 3) a partir de 2003, período de retomada, principalmente em relação
aos recursos e à ampliação da área de abrangência. Nossa análise focaliza sobretudo esse
terceiro período.
As perspectivas do Calha Norte no primeiro e no segundo períodos podem ser ilustradas por duas abordagens contrastantes, escritas em 1990 e 2003. Meira Mattos (1990)
enfatiza, principalmente, o aspecto de presença institucional na fronteira amazônica,
concebida como a ação direta dos agentes do governo central, em particular das Forças
Armadas. O Calha Norte, analisado ainda em seu início, demonstrava a atualização da
perspectiva de que as Forças Armadas e a diplomacia eram as únicas instituições que
mantinham uma preocupação permanente com as fronteiras ao longo da história do Brasil. A segurança e o desenvolvimento da região seriam obtidos por meio do povoamento
em torno das unidades militares instaladas e as Forças Armadas dariam suporte às populações locais por meio de sua infraestrutura.
O entusiasmo de Meira Mattos em 1990 contrasta com a cautela de Lourenção em
2003. A pergunta inicial de sua tese é: “levando-se em conta que a Amazônia já é assistida
militarmente através do projeto Calha Norte, qual a necessidade estratégica de mais um
projeto de defesa como o Sivam?” (Lourenção, 2003, p. 10). A resposta encontrada aponta as limitações do PCN e as inovações tecnológicas propiciadas pelo Sivam. Lourenção
se refere às limitações tanto de ordem orçamentária, visto que, diferentemente da expectativa de Meira Mattos em 1990, o PCN teve suas verbas drasticamente reduzidas entre
1990 e 2003; quanto de ordem política e operacional, pois o PCN ficou estigmatizado
como um projeto de militarização da Amazônia, visto que cerca de 80% das verbas eram
direcionadas para os ministérios militares e os projetos eram tratados em caráter sigiloso.
Apesar disso, Lourenção critica, tanto no PCN quanto no Sivam, a ausência de um foro
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definido para as tomadas de decisão, o que resulta em uma centralização que está sempre
submetida, em última instância, ao Presidente da República (Lourenção, 2003, p. 52).
Seguindo um viés diferente dos autores citados, analisaremos o programa a partir
do papel do governo local e a relação entre segurança e desenvolvimento. Em nossa abordagem chamamos atenção para os efeitos paralelos e os objetivos emergentes do Calha
Norte, reconhecendo a importância da dinâmica local na redefinição e na reorientação
das ações concebidas de cima para baixo. Embora a estrutura do programa ainda permaneça centralizada, as formas de obtenção de recursos e de escolha dos investimentos têm
proporcionado uma dinâmica que favorece uma gestão menos hierárquica em termos de
interação entre os entes federativos.
CONTEXTO GEOPOLÍTICO
Os diferentes momentos do Programa Calha Norte podem ser confrontados com
as mudanças no contexto geopolítico interno e externo entre 1985 e a década atual. Os
três momentos em que se divide o PCN estão inseridos dentro de um contexto geral pósGuerra Fria e pós-Ditadura Militar, que se demarca da geopolítica vigente na década de
1970. O período inicial do programa está situado justamente em uma transição entre
dois modelos e guardava ainda aspectos fortemente relacionados ao modelo geopolítico
anterior. Essa transição é verificada em diferentes escalas de análise.
Em primeiro lugar, no plano global, o fim da Guerra Fria deu lugar a um sistema
internacional marcado pela supremacia militar dos Estados Unidos, pela expectativa de
uma governança global mais harmoniosa e multilateral e pela emergência de novos temas
na agenda global de segurança. A perspectiva de conflito internacional era pouco presente
na sociedade e o neoliberalismo e a ideia de governo mundial eram os paradigmas dominantes nas relações internacionais.
Durante a década de 1990, crises humanitárias, problemas ambientais globais,
tráfico de drogas, criminalidade transnacional, imigração ilegal, estados falidos e proliferação de armas nucleares se tornaram novas fontes de preocupação e motivos para o
engajamento dos Estados e das organizações internacionais em conflitos e intervenções.
Com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, houve uma reorientação da
política internacional, dentro de uma condução unilateral norte-americana, para inserir
os conflitos emergentes dentro de um paradigma de “guerra global contra o terrorismo”.
Para o Brasil, essa nova agenda global foi assimilada por meio das iniciativas de
proteção ambiental da floresta amazônica, da adesão aos regimes internacionais de combate ao tráfico de drogas e não proliferação de armas nucleares. Em relação ao terrorismo
internacional, o envolvimento do Brasil foi relativamente distante.
No plano regional sul-americano, a década de 1990 foi marcada pela emergência
da Guerra às Drogas (War on Drugs). Os países do norte andino – principalmente
Peru, Colômbia e Bolívia, maiores produtores de coca e cocaína – passaram a realizar,
sob os auspícios dos EUA, políticas de repressão com o objetivo de erradicar os cultivos
ilícitos e combater a produção de cocaína. A Iniciativa Andina, iniciada pelo Governo
Bush I buscava comprometer as forças armadas dos países sul-americanos com a luta
antidrogas (Vargas, 2005). A Guerra às Drogas foi o resultado da difusão do discurso
jurídico-político transnacional em relação ao tráfico de drogas (Del Omo, 1990, p. 68) a
partir da experiência norte-americana, que se consolida como modelo dominante com a
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Convenção da ONU em Viena, 1988. Além de ratificar a Convenção de Viena, o Brasil
estabelece nesse período diversos acordos bilaterais para “prevenção, controle, fiscalização
e repressão ao uso indevido e ao tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas” (MRE, 2009).
O direcionamento dos militares para a região amazônica ocorreu simultaneamente
ao processo de integração Brasil-Argentina. Enquanto a Argentina era tida como um
potencial inimigo, a preocupação geopolítica militar estava centrada na questão platina.
Nesse período, a questão amazônica permanecia em segundo plano, do ponto de vista
internacional, apesar das medidas de impacto aplicadas na década de 1970 com os Planos
Nacionais de Desenvolvimento I e II (Miyamoto, 1990, p. 54).
No plano nacional, a segunda metade da década de 1980 foi marcada pela abertura
política e pela descentralização do Estado, principalmente a partir da Constituição de 1988.
O encerramento do ciclo militar no comando do Estado brasileiro teve implicações
diretas na redefinição da atuação das Forças Armadas, principalmente nos anos 1990.
A neutralização da influência política dos militares no Estado brasileiro correspondeu à
subordinação do poder militar ao poder civil e teve como marcos a definição da Política
de Defesa Nacional (1996) e a criação do Ministério da Defesa (1998). Diferentemente
do que ocorreu em outros países da América Latina, os militares brasileiros resistiram
à pressão norte-americana para que assumissem o papel de polícia contra o tráfico de
drogas. No entanto, o Brasil assimilou de forma adaptada as prescrições globais para o
combate ao tráfico de drogas e aos crimes conexos. Nesse contexto podemos enquadrar as
medidas empreendidas em dois momentos: no início da década de 1990 – como a criação
do Sivam e acordos bilaterais para o controle do tráfico de drogas (entre 1987 e 1991) – e
a partir da segunda metade da década de 1990 – como o controle de precursores químicos
para a fabricação de cocaína (1995), a aprovação da Lei do Abate (1998) e a criação do
Sistema Nacional Antidrogas (1998).
A descentralização do Estado e a valorização da esfera local a partir da Constituição
de 1988 aumentou o poder de negociação dos governos subnacionais em relação às políticas do Estado central. O desconforto com as relações hierárquicas entre centro e periferia
tem levado à crítica às decisões tomadas em esfera federal com desconhecimento de seus
efeitos nas esferas subnacionais (Machado et al, 2007, p. 88).
Aqui cabe abrir uma observação para avaliar os impactos específicos da mudança
ocorrida na geopolítica da Amazônia entre as décadas de 1970 e 1990. A instabilidade
econômica da região amazônica foi objeto de preocupação do governo central, que ao
longo do século XX orientou esforços coordenados de integração e desenvolvimento.
Tais esforços tiveram como objetivo, do ponto de vista do governo central, a garantia de
soberania interna e externa sobre a Amazônia brasileira e o aproveitamento econômico
da região. Daí a convergência entre as políticas de segurança e de desenvolvimento, com
diferentes formas de articulação em cada período.
O processo de expansão da fronteira, sob a orientação do Estado central, se deparou
com o duplo desafio de atrair população para as terras devolutas e fixá-la como força
de trabalho sem dar-lhe a propriedade da terra (Machado, 1990, p. 109). A solução em
tempos autoritários foi a manipulação do espaço, por meio de políticas de distribuição
controlada de terras e seletiva de créditos agrícolas, somada à política de desenvolvimento
urbano (Machado, 1990, p. 109). O viés de desenvolvimento centralizado e autoritário
teve como ator principal o Estado. No caso da Amazônia, a ocupação dirigida favoreceu
a apropriação privada da terra pelos agentes monopolistas, principalmente empresas agro122
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pecuárias e fazendeiros individuais (Becker, 2001, p. 25). Em 1980, a preocupação do
Conselho de Segurança Nacional com a escalada de conflitos de terra e resistências em
escala local resultou à delegação de plenos poderes às Forças Armadas para intervirem na
região amazônica, militarizando a política regional (Becker, 2001, p. 40-2).
O sistema de povoamento regional da Amazônia sofreu uma retração dos investimentos do governo federal, principalmente após 1984 (Machado, 1999, p.123). Apesar
disso, a população na região continuou crescendo, principalmente a população urbana,
processo que esteve mais relacionado com o crescimento urbano das cidades já existentes
do que com a criação de novos municípios (Machado, 1999, p. 124). Após a Constituição
de 1988, que retirou da União e restituiu aos Estados a prerrogativa de conceder autonomia municipal, houve um aumento explosivo no número de municípios na Amazônia
(Machado, 1999, p. 130). A questão então passou a ser como garantir as condições
econômicas necessárias para o desenvolvimento local e para uma gestão autônoma dos
municípios amazônicos.
O rearranjo do federalismo brasileiro promovido com a descentralização política
pós 1988 inaugurou novas relações entre as esferas de poder, nas quais os municípios
buscaram ampliar o espectro de possibilidades de arrecadação para que se tornassem mais
autônomos financeiramente e menos dependentes da União. Exemplo disso é a tributação
do ICMS para a comercialização de produtos minero-metalúrgicos e a Compensação Financeira sobre a Exploração Mineral (Coelho et al., 2003, p. 667), com benefícios diretos
aos municípios, principalmente na Amazônia Oriental.
Por fim, destacamos mudanças no nível operativo das políticas de segurança e defesa. As relações hierárquicas e a capacidade de centralização e comando do Estado central
em relação às regiões e lugares foram alteradas, não só pela incorporação de novas modalidades de controle, mas também pelas práticas interativas e adaptativas dos diferentes
agentes envolvidos na aplicação das políticas.
Alguns elementos característicos das novas modalidades apontam para a redefinição
dos papéis das agências e suas jurisdições, as interações interagências para o compartilhamento de informações, sistemas de vigilância e procedimentos normativos e a cooperação
internacional em matéria de segurança e defesa. As atuais lógicas de controle territorial
são redefinidas frente aos desafios à soberania estatal, tais como a maior autonomia dos
poderes locais em relação ao Estado central, a “proliferação de atores no sistema internacional acima, abaixo, ao lado e no interior do Estado” (Slaughter, 2002, p. 13) e a securitização de questões como criminalidade transnacional, direitos indígenas e meio ambiente.
Muitas vezes a dinâmica cooperativa de abertura das fronteiras para os fluxos econômicos é pensada em oposição aos mecanismos de fechamento para a garantia da segurança nacional. Para além dessa visão dicotômica, as iniciativas de cooperação internacional
para a segurança e controle de uma fronteira compartilhada contra ameaças comuns a
mais de um Estado podem abrir uma nova possibilidade de integração. Por outro lado,
a necessidade de combinar segurança e desenvolvimento tende a originar formas de controle que pressupõem espaços seguros, abertos e conectados, nos quais a ação do Estado
interage com outros importantes agentes econômicos interessados mais em oportunidades
do que em defesa e proteção.
A delimitação tradicional entre esferas de atuação dos agentes estatais no controle
do território tende a ser substituída pela imbricação de agências que operam de forma
combinada sobre temas transversais e muitas vezes combinam esferas públicas e privadas/
não governamentais. Essa tendência ocorre também na cooperação internacional: agentes
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de diferentes países podem atuar de formas combinadas através de conexões que não percorrem todos os níveis hierárquicos do Estado. É o que Didier Bigo (2005, p. 63) caracteriza como “arquipélagos institucionais” em um estudo sobre a transnacionalização dos
agentes de segurança. Em todos esses casos, existe uma oposição entre hierarquia e rede
que acaba por se expressar no interior do próprio Estado, visto que algumas iniciativas de
incorporar a lógica das redes nas instituições do Estado se defrontam com as estruturas
hierárquicas já estabelecidas.
“É preciso redes para enfrentar redes” – reconhecem Arquilla e Ronfeldt (2001,
p. 15) – e o lado que melhor dimensionar a forma rede obtém vantagem em relação ao
adversário. Isso não significa somente o uso de novas tecnologias em rede, mas sim a
capacidade de inovar nos modos de organização, com a formação de novos mecanismos
interagências, interserviços, multijurisdicionais e de cooperação transnacional (Ronfeldt,
2003, p. XVII). Apesar da supervalorização da dimensão cibernética e tecnológica, é o
aspecto organizacional das redes que determina sua operabilidade, por meio da comunicação e da coordenação dos agentes, desde o compartilhar de informações até operações
táticas conjuntas.
Junto desse processo, podemos destacar que a relação entre comando e controle
é alterada pela consideração de dinâmicas adaptativas e complexas que inviabilizam as
operações unidirecionais de cima para baixo.
Mais do que pensar que “comando” e “controle” operam ambos de cima para baixo nas organizações, nós devemos pensá-los como um processo adaptativo no qual o “comando” é gerido
de cima para baixo e o “controle” é a resposta de baixo para cima. […] Comando e controle
são desse modo fundamentalmente uma atividade de influência recíproca envolvendo trocas
entre todas as parte de cima para baixo e lado a lado” (Schmitt, 1997, p. 108-109).
A sincronização não é efetuada por meio de operações centralizadas de comando
e controle, mas da cooperação entre múltiplos agentes que atuam independentes um do
outro em resposta às condições locais (Schmitt, 1997, p. 110). A distância entre “a geoestratégia elaborada linearmente de cima para baixo pelos governos centrais e as atuações
efetivas dos diversos agentes no terreno” reforça o quadro de incerteza em que se operam
as negociações internas e externas do espaço soberano (Machado, 2007, p. 27).
CONTROLE ESTATAL E MEDIAÇÕES LOCAIS
O Programa Calha Norte oferece um ponto de vista privilegiado para explicitar as
novas configurações de comando e controle, por meio da negociação entre governo central e esferas locais e regionais para a aplicação de políticas de controle estatal. A questão
a ser demonstrada nesse tópico é o modo como o envolvimento dos municípios e unidades
da federação interfere nos direcionamentos do Programa Calha Norte conferindo-lhe
legitimidade local.
No período de retomada do PCN verificamos mudanças simultâneas ocorridas
na forma de captação de recursos e na relação entre as Forças Armadas e os governos
subnacionais. A justificativa social do PCN passa a incorporar interesses locais, fazendo
com que agentes dos governos municipais e estaduais se mobilizem para obter verbas
que possam ser incorporadas ao Programa. É o que se pode ver através do montante dos
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recursos do PCN levantados pelas bancadas estaduais no Congresso Nacional. Em 2007,
foram R$ 136,5 milhões liberados por emendas individuais, R$ 13 milhões por comissões
e R$ 271,5 milhões pelas bancadas dos estados cobertos pelo PCN (Ministério da Defesa,
2007, p. 2).
O aumento das verbas recebidas pelo Programa Calha Norte está diretamente relacionado à ampliação do número de convênios e a ampliação da vertente civil das ações
do programa. A partir de 2005, as verbas são discriminadas entre “recursos do MD” e
“emendas parlamentares”, sendo que esta última representa a maioria do montante destinado ao PCN. A introdução de “emendas parlamentares” no orçamento do programa
explica o boom de recursos disponíveis nos últimos três anos.
Gráfico 2 – Verbas do PCN, vertente civil e militar (2003-2007)
Fonte: Ministério da Defesa, 2011
A mudança fica evidente se compararmos à centralização característica de programas federais nas décadas de 1970 e 1980. Se antes a relação vertical se estabelecia como
uma via única – de cima para baixo –, atualmente o desenvolvimento institucional local
e a perda de influência política das Forças Armadas na política nacional propiciam situações de negociação entre as partes. Ao mesmo tempo, a condição especial de estar situado
em áreas pretensamente vulneráveis a ameaças externas favorece a obtenção de recursos
para os municípios, pois os benefícios proporcionados pela maior segurança do Estado são
apresentados como compartilhados por todas as unidades da federação.
A leitura dos Relatórios de Situação (2003-2007) permite verificar essa mudança,
embora sua quantificação seja difícil de estabelecer. Segundo os Relatórios, existe um
montante total destinado pela Lei Orçamentária Anual (LOA) que inclui uma parte das
verbas alocadas diretamente ao Ministério da Defesa e outra parte alocada a partir de
Emendas Parlamentares. Somente uma porcentagem dos créditos alocados pela LOA é
liberada pelo Ministério da Defesa, sendo distribuídos entre as ações do programa referentes ao próprio ano e os restos a pagar dos anos anteriores. Portanto, a definição do
valor total destinado a cada ação ou vertente é variável, embora seja notável o aumento
dos recursos destinados à vertente civil, bem como sua importância em relação aos recursos da vertente militar (ver Gráfico 2 e Tabela 1). Entre as Forças Armadas, o Exército é
o que recebe o maior montante.
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Tabela 1 – Valores destinados ao PCN pela LOA e parte destinada a cada Força (R$)
2003
LOA
Gastos Efetivados
Vertente civil
Exército
Marinha
Aeronáutica
42.445.611
14.330.430
6.295.955
5.102.359
2.207.916
724.200
2004
2005
2006
2007
67.327.280 235.694.311 191.531.197 455.021.000
41.606.205 132.802.582 163.802.582 273.298.120
23.658.516 115.242.367 147.967.707 250.637.781
12.876.183 11.359.784 15.589.636 13.596.432
2.526.506
4.150.500
3.829.739
5.580.800
2.545.000
2.148.716
1.765.500
3.483.108
Fonte: Ministério da Defesa. Relatórios de Situação do PCN (2003 a 2007)
O número de convênios e de municípios envolvidos aumentou consideravelmente
entre 2003 e 2007, saindo de um patamar de 9 para 63 municípios, entre 2003 e 2006.
Nesse período, nenhum estado concentrou fortemente a maioria dos convênios, havendo
alternância ao longo dos anos. Os estados do Amapá e de Roraima possuem convênios em
todos os municípios. O valor total empenhado nos convênios é superior em Roraima e no
Acre, enquanto o Pará é o menos favorecido tanto em número de municípios conveniados
quanto em valores totais (ver Gráficos 3 e 4).
Gráfico 3 – Participação dos municípios no PCN, por UF (2003-2007)
Fonte: Ministério da Defesa (2003 a 2007)
Gráfico 4 – Verbas destinadas aos municípios, por UF (2003-2007)
Fonte: Ministério da Defesa (2003 a 2007)
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Embora o montante destinado a cada município não seja tão expressivo nas contas
municipais, as verbas do PCN são muito requisitadas devido à maior facilidade dos trâmites necessários para sua obtenção. Segundo informações do trabalho de campo realizado
no Acre em 2006, a representante da Associação dos Municípios do Estado do Acre destacou a eficiência do Programa em disponibilizar as verbas pedidas. Os investimentos do
PCN nos municípios do Acre podiam ser notados em diversas placas de obra (Fotos 1 e 2).
Fotos 1 e 2 – Placas indicam os investimentos do Programa Calha Norte em conjunto
com a Prefeitura Municipal e o Ministério das Cidades, em Epitaciolândia-AC.
Fonte: Ribeiro e Monteiro (2006). Fotos: Licio Monteiro
Ao analisarmos as verbas destinadas a cada vertente do Programa Calha Norte,
verificamos que as ações da vertente militar se referem, principalmente, à infraestrutura
das Organizações Militares (OM) presentes na região, podendo também servir às atividades de assistência às populações locais. As Organizações Militares são responsáveis pela
execução das ações, que podem ocorrer em seus municípios de localização ou em outros
municípios, o que dificulta o entendimento sobre a área de abrangência de cada ação.
Por conta disso, as Organizações Militares situadas em Manaus-AM e Belém-PA, que
possuem o maior número de OM da região amazônica, recebem grande parte das verbas,
apesar de as ações estarem localizadas em outros municípios.
Comparando-se com a vertente civil, notamos que Manaus-AM e Belém-PA não
aparecem entre os municípios favorecidos por convênios.2 Já as capitais estaduais Boa
Vista-RR e Rio Branco-AC receberam quase um terço dos recursos totais empenhados
em convênios entre 2003 e 2007.
Na vertente militar, a presença das Forças Armadas nos municípios e localidades
justifica os investimentos. As verbas são destinadas à manutenção de aerovias, rodovias,
embarcações, portos e pequenas centrais elétricas, implantação de unidades militares,
infraestrutura dos Pelotões Especiais de Fronteira e infraestrutura básica local. O apoio
às comunidades do Calha Norte é realizado por meio de Ações Cívico Sociais, apoio às
comunidades indígenas e às comunidades dos municípios mais carentes da região.
As capitais estaduais assumem papel de comando na hierarquia das Organizações
Militares, principalmente Manaus (AM) e Belém (PA), e também nos convênios municipais, principalmente Boa Vista (RR) e Rio Branco (AC).
Capitais estaduais:
• Manaus (AM) e Belém (PA) que receberam recursos somente na vertente militar, principalmente para equipamentos e infraestrutura das OM situadas nesses municípios;
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2 Belém-PA não está na área
coberta pelo PCN e só recebe recursos direcionados à
vertente militar por estarem
localizadas na cidade diversas Organizações Militares
que executam suas ações
em municípios cobertos pelo PCN, principalmente na
localidade de Tiriós, onde
foi implantado um Pelotão
Especial de Fronteira.
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• Boa Vista (RR) e Rio Branco (AC), grandes receptores de verbas dos convênios municipais (acima de R$ 10 milhões), estabelecidos na vertente civil do PCN e receptores
de recursos da vertente militar, em valor muito menor;
• Porto Velho (RO) e Macapá (AP) receberam recursos dos convênios municipais entre
R$ 1 milhão e R$ 2 milhões e recursos da vertente militar em valor aproximado.
Os municípios e localidades que aparecem entre os receptores dos investimentos executados pelas Organizações Militares se distinguem entre aqueles que possuem unidades
militares e aqueles que são identificados como carentes de infraestrutura. A partir dessa
diferenciação podemos classificar alguns tipos de investimento feitos pelo PCN.
Municípios:
• grandes receptores de recursos via convênio municipal, sem qualquer recurso advindo
da vertente militar. Ex: Alto Alegre (RR), Rurainópolis (RR), São Luiz (RR), Iracema
(RR), Sena Madureira (AC), Cantá (RR) e Santana (AP);
• grandes receptores de recursos via convênio municipal, com recebimento de recursos
da vertente militar, para infraestrutura militar. Ex: Cruzeiro do Sul (AC), Bonfim
(RR) e Tabatinga (AM);
• grandes receptores de recursos via convênio municipal, com recebimento de recursos
da vertente militar, como apoio à infraestrutura local e assistência social. Ex: Caracaraí
(RR), Uiramutã (RR) e Mâncio Lima (AC);
• pequenos receptores de recursos via convênio municipal, com recebimento de recursos
da vertente militar, para infraestrutura militar. Ex: Pacaraima (RR), Normandia (RR),
São Gabriel da Cachoeira (AM), Barcelos (AM) e Assis Brasil (AC);
• pequenos receptores de recursos via convênio municipal, com recebimento de recursos
da vertente militar, como apoio à infraestrutura local e assistência social. Ex: Laranjal
do Jari (AP), Rio Preto da Eva (AM);
• receptores de recursos da vertente militar, para infraestrutura militar, sem qualquer
convênio estabelecido. Ex: Santarém (PA) e Tefé (AM);
• receptores de recursos da vertente militar, como apoio à infraestrutura local e assistência social, sem qualquer convênio estabelecido. Ex: Santa Rosa do Purus (AC), Porto
Walter (AC) e Jordão (AC).
Quadro 1 – Caracterização dos municípios do PCN, por tipo de recurso
Vertente civil
Vertente militar
Infra militar
Infra civil
Exemplo
XXX
Alto Alegre (RR)
XXX
X
X
Tabatinga (AM)
XXX
X
Cruzeiro do Sul (AC)
XXX
X
Caracaraí (RR)
X
XXX
X
São Gabriel da Cachoeira (AM)
X
X
Pacaraima (RR)
X
X
Laranjal do Jari (AP)
X
Cabixi (RO)
X
X
Santa Rosa do Purús (AC)
X
Santarém (PA) e Tefé (AM)
X
Jordão (AC)
Legenda: XXX: acima de R$ 2 milhões. X: valor qualquer. Monteiro (2009)
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Finalizada a categorização dos municípios pelo montante, fonte e finalidade dos
recursos recebidos, buscamos interpretar a distribuição espacial dos recursos do PCN por
meio do mapeamento dos recursos, diferenciados pelas vertentes civil e militar. Os mapas
indicam uma dissociação das áreas de investimento dos recursos para as duas vertentes.
Na vertente civil, os municípios do estado de Roraima aparecem como os principais receptores, seguidos pelo Acre. Na vertente militar, os principais receptores são as capitais
estaduais Manaus-AM e Belém-PA, sedes dos comandos das Forças Armadas.
Os ganhos das Organizações Militares de Tabatinga-AM (R$ 2 milhões) e São
Gabriel da Cachoeira-AM (R$ 9 milhões) se destacam em relação aos demais municípios
situados na faixa de fronteira, inclusive capitais estaduais como Porto Velho-RO, Rio
Branco-AC e Macapá-AP. Outra característica específica desses dois municípios, situados
no segmento da faixa de fronteira Brasil-Colômbia, é que eles apresentam ganhos na
vertente civil e nas duas modalidades da vertente militar (infraestrutura militar e civil).
Essa situação demonstra uma tentativa de estabelecer uma redundância de vínculos institucionais entre Forças Armadas, municípios e comunidades locais para operar as políticas
de segurança no segmento fronteiriço Brasil-Colômbia (Monteiro, 2010, p. 199). A fronteira Brasil-Colômbia foi foco de diversas outras políticas de controle territorial, como as
Operações Combinadas das Forças Armadas, desde 2002, a Operação Cobra, iniciada
em 2000, a transferência e a instalação de bases militares do Exército e da Aeronáutica e
acordos bilaterais de cooperação em segurança e defesa (Monteiro, 2009).
Mapa 1 – Programa Calha Norte – Vertente civil (2003-2007)
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Mapa 2 – Programa Calha Norte – Vertente militar (2003-2007)
3 União doa 6 milhões de
hectares de terra a Roraima,
O Globo, 29/01/2009.
A hipótese sobre a relação entre gastos civis e militares é de que as ações de apoio
à infraestrutura civil executadas diretamente pelas Organizações Militares ocorrem em
municípios com pouca capacidade de captação de recursos por outras vias institucionais.
Em alguns casos, as comunidades mais isoladas acabam dependendo das ações sociais das
Forças Armadas, um dos poucos agentes estatais com capacidade logística de atendê-las.
Por outro lado, reforça a ideia de poder tutelar exercido pelos militares como agente do
Estado responsável pela assistência às populações locais. Essa hipótese é reforçada ainda
pelo papel desempenhado pelos militares junto às populações indígenas.
Outra ideia recorrente é a necessidade de atuação do Estado nos vazios demográficos
da Amazônia. Entre os municípios atendidos pelas OM, seis estão entre os 20 municípios
de menor densidade demográfica da área do PCN.
O peso do estado de Roraima no direcionamento das verbas destinadas à vertente
civil do PCN pode ser explicado pelo papel dos militares na disputa, vigente nos últimos
anos, em torno da demarcação em área contínua da Reserva Indígena Raposa/Serra do
Sol. Vários setores das Forças Armadas se manifestaram contrariamente à demarcação
em área contínua, com o argumento de que a reserva indígena na faixa de fronteira
poderia representar uma ameaça à soberania brasileira. As negociações políticas para a
concretização da demarcação em área contínua dependem das contrapartidas do governo
brasileiro para atender aos interesses das partes envolvidas. Recentemente, o Governo
Federal transferiu cerca de seis milhões de hectares da União para o estado de Roraima,
como forma de compensar as perdas territoriais com a demarcação das terras indígenas.
No caso dos militares, a garantia da permanência das unidades militares e a ampliação do
número de Pelotões Especiais de Fronteira nas terras indígenas neutralizaram as posições
radicalmente contrárias.3
O pertencimento à faixa de fronteira também influi no direcionamento dos recursos, visto que dos 194 municípios, 98 estão situados na faixa de fronteira (50,5%) e dos
107 municípios que firmaram convênios, 78 estão situados na faixa de fronteira (72,9%).
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Com o lançamento da Estratégia de Defesa Nacional (2008), houve uma orientação
para combinar esforços entre o Programa Calha Norte e o Programa de Desenvolvimento
da Faixa de Fronteira (PDFF) na Amazônia, o que poderia ampliar o papel dos municípios
situados na faixa de fronteira dentro do PCN. O apoio às interações transfronteiriças, aspecto com pouca importância no PCN até então, poderia representar um novo vetor de investimento. Em 2009, a iniciativa de integrar a gestão do PCN ao PDFF no âmbito do Ministério
da Integração não avançou, devido à dificuldade de ajuste gerencial entre os programas.
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Licio Caetano do Rego
Monteiro é geógrafo; mestre e doutorando em Geografia (UFRJ); pesquisador
vinculado ao Grupo RETIS/
UFRJ; bolsista CNPq. Email:
[email protected]
Ar­ti­go re­ce­bi­do em agosto
de 2011 e apro­va­do pa­ra
pu­bli­ca­ção em outubro de
2011.
O
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C A L H A
N O R T E
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was designed in the 1980s but took on new configurations after its resumption in 2003.
This article analyzes the differences between the former and the later moments at the PCN,
considering the redefinition of Brazilian security and defense policies for the Amazon
international borders in the last two decades. The main argument is that changes in the PCN
between these two periods show how the implementation of policies directed by the central
government, even in security and defense, depends on the mediation of local and regional scale
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that legitimize and shape the results. For this argumentation the documents relating to the
PCN, the relationship between the PCN and other policies of territorial control in Amazônia
and the mapping of the funds applied by the PCN in the municipalities of their coverage area,
between 2003 and 2007, are analysed.
Keywords
Calha Norte Programme; security; Brazilian Amazon; borders;
military.
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CIDADES MÉDIAS
NA AMAZÔNIA ORIENTAL
Das Novas Centralidades
à Fragmentação do Território
Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior
R e ­s u ­m o
O artigo apresenta elementos da centralidade urbano-regional de cidades
médias na Amazônia brasileira e discute o papel desse tipo de cidade em um contexto de reestruturação territorial. Para efeitos de análise considera a diferença conceitual entre “centro” e
“centralidade”, assim como entre “fluxos” e “fixos”. As referências empíricas da análise são duas
cidades situadas na Amazônia Oriental – Marabá e Santarém. O estudo faz uma abordagem
a propósito da importância dessas cidades para a produção do espaço regional e considera elementos históricos da formação territorial da Amazônia brasileira, assim como dados estatísticos
e informações documentais sobre essa região e seu processo de urbanização. Ao final é destacado
o papel da centralidade política desempenhado pela cidade média na Amazônia em um contexto regional de rearranjo espacial, de emergência de novos interesses regionais e de propostas
de divisão política do território.
P a ­l a ­v r a s - c h a ­v e
Cidades médias; Amazônia Oriental; centralidade;
divisão territorial.
INTRODUÇÃO
O quadro regional da Amazônia brasileira das últimas décadas nos faz concluir pela
existência de uma nova dinâmica de urbanização que toma forma difusa e diversa na região. Há uma mudança no padrão de organização do espaço que desemboca, igualmente,
em uma maior complexidade relacionada não só às formas das cidades, como também aos
seus conteúdos, confirmando o processo diferenciado de produção do espaço.
Evidentemente que não se tratam de tipos isolados, mas, sobretudo, de expressões da
urbanização que se combinam dentro de um mesmo subespaço, ou que acabam por revelar,
em um mesmo ambiente urbano, faces diferenciadas da dinâmica econômica, política e
cultural em curso no plano regional. Tal complexidade é fruto de um processo de transformação recente, que provocou profundas alterações na paisagem urbana, mas que também
nos revela resíduos de uma urbanização anterior que não foi definitivamente aniquilada.
A reestruturação da rede urbana e os novos papéis conferidos às cidades confirmam o
perfil de uma nova estrutura produtiva, do mercado de trabalho e da importância política
desses núcleos urbanos na Amazônia, o que implica, necessariamente, na ruptura de antigos padrões de organização espacial. Isso ocorre pelo caráter disseminado e pulverizado
em que ocorreram os investimentos econômicos e as ações governamentais na região com
a abertura da fronteira econômica desde a segunda metade do século XX.
Em que pese o grau elevado de urbanização da população, acima de 70% do contingente total de habitantes da região, as políticas de desenvolvimento parecem ter assumido
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1 O presente trabalho contou com o apoio financeiro
do CNPq (Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), através
dos projetos de pesquisa
“Cidades médias na Amazônia: novos agentes econômicos e novas centralidades
urbano-regionais no sudeste
paraense” e “A cidade e o rio
na Amazônia: mudanças e
permanências face às transformações sub-regionais”.
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um perfil notadamente não urbano. Ou, quando se preocupam com essa dimensão da realidade regional, tratam-na como se fosse de uma natureza notadamente metropolitana. De
maneira geral, entretanto, é recorrente a leitura da realidade regional como se as cidades
não assumissem tanta importância, ou ainda, como se diferentes tipos e níveis de cidades
não compusessem a urbanodiversidade regional, termo aqui utilizado para identificar as
diferentes e plurais realidades urbanas da região.
De forma diferenciada, busca-se aqui trilhar um caminho em que seja possível falar
de uma Amazônia urbana e, mais do que isso, de uma Amazônia onde a diversidade de
pequenas e médias cidades desperte atenção na compreensão do atual quadro regional.
Particularmente, na presente análise,1 pretende-se contribuir com conhecimentos a respeito deste último perfil de cidades, as cidades médias, que passaram a ter importância mais
recentemente, inclusive do ponto de vista político, dentro da estrutura urbana regional.
Esse empreendimento tem como base de reflexão as cidades de Marabá e Santarém, localizadas no Estado do Pará, na Amazônia Oriental brasileira, discutindo-se elementos da
centralidade urbana nelas presentes.
A noção de centralidade aqui tratada busca ultrapassar a dimensão econômica dos
fluxos que definem a importância das cidades médias. Nessa perspectiva, alcança também
a noção de centralidade política, que, na presente discussão, sugere-se fazer parte da caracterização dessas cidades, quando as mesmas assumem a condição de centros urbanos
sub-regionais em face do processo de reestruturação da rede urbana amazônica.
A PRODUÇÃO DO ESPAÇO REGIONAL
AMAZÔNICO E A IMPORTÂNCIA
DAS CIDADES MÉDIAS
Para o estudo das cidades médias, a relação das mesmas com a região se coloca como
de extrema importância dado o seu caráter definidor da dinâmica urbana e do padrão de
organização interna por elas apresentado. Nesse aspecto, acompanhando o raciocínio de
Villaça (1998), diferentemente dos estudos metropolitanos, em que o deslocamento e a
localização da força de trabalho no interior do espaço urbano definem, em sua maior parte, a dinâmica urbana, nas cidades médias essa importância possui um menor peso quando
comparada à circulação de mercadorias em geral (capital constante, energia, informações
etc.) no contexto regional; daí o estudo da cidade média ser também e, ao mesmo tempo,
um estudo de uma dada dinâmica sub-regional. Os exemplos de Marabá e de Santarém,
no Estado do Pará, tendem a ratificar essa proposição.
A abordagem sugere também como pressuposto de análise a diferenciação entre cidade de porte médio, cidade intermediária e cidade média. No primeiro caso, considera-se
o patamar populacional para reconhecer tão simplesmente o tamanho demográfico das
cidades. As cidades intermediárias, por sua vez, são definidas tendo em vista sua posição
relativa e intermediária (entre as pequenas cidades e as metrópoles regionais), independentemente de sua expressividade político-econômica no contexto hierárquico de uma
rede urbana. São noções, portanto, que se diferenciam daquela que identifica o que seja
a cidade média. Esta última leva em conta a importância sub-regional apresentada por
uma dada cidade intermediária, ipso facto, pelas fortes centralidades que aí se materializam
por meio de fluxos, a ponto de contribuírem significativamente para o ordenamento do
espaço regional em que se inserem.
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Em consequência, são consideradas cidades médias aquelas que assumem um determinado papel na estrutura urbana regional como centro sub-regional, não sendo simplesmente centros locais, mas núcleos urbanos com capacidade de polarizar e influenciar um
número significativo de cidades menores e articular relações de toda ordem. Funcionam,
assim, como anteparos e suportes às metrópoles regionais, não compondo junto com estas
uma unidade funcional contínua e/ou contígua (Sposito, 2001b).
Com inspiração também no raciocínio da mesma autora, consideramos que, não
obstante as cidades médias possam ser reconhecidas como intermediárias, tais definições
não são intercambiáveis. As cidades intermediárias são aquelas que se colocam em um
intervalo da hierarquia urbana entre as principais cidades regionais e as cidades locais,
podendo ou não assumir importância regional. Da mesma forma, existem centros urbanos de porte médio que não são cidades médias por integrarem áreas metropolitanas. Há,
ainda, cidades que, mesmo não atingindo o porte médio, assumem o papel de centros
urbanos regionais, alçando-se, portanto, à condição de cidade média (Trindade Jr.; Pereira, 2007).
Como cidades médias, Marabá e Santarém, na Amazônia Oriental, chamam atenção
pelo fato de desempenharem funções que servem de mediação entre as pequenas cidades
da região e as metrópoles regionais e extrarregionais. Nessa condição, definem seus dinamismos em função da forte centralidade exercida em determinado contexto sub-regional,
fato este que nos leva à compreensão da noção de centralidade. Para Sposito (2001a),
é preciso estabelecer a diferença entre centro e centralidade, sendo o primeiro definido
por aquilo que Santos (1996) considerou como sistema de fixos (o que se localiza) e o
segundo, também denominado por Santos (1996), como sistema de fluxos (o que circula).
Assim, a localização, sob a forma de concentração de atividades comerciais e de serviços, e,
portanto, de fixos, revela o que se considera como central, ao passo que o movimento, ou
seja, os fluxos, institui o que se mostra como centralidade. Tratam-se, na verdade, de duas
experiências da realidade urbana que articulam, respectivamente, com pesos diferenciados,
a dimensão espacial e temporal desses espaços (Sposito, 2001a).
Para a realidade aqui tratada, a referência ao sistema de fixos se faz importante, mas
é na definição dos fluxos que se pode reconhecer o perfil de cidades médias assumidas
por Marabá e Santarém ao longo da formação territorial amazônica. Portanto, não é exatamente a densidade dos fixos que define a importância dessas cidades nos últimos anos
na região, mas principalmente a centralidade – os fluxos –, que muitas vezes intensifica o
uso dos fixos disponíveis. Neste caso, a centralidade passa a ser compreendida pela convergência de fluxos e pelo caráter centrípeto por eles exercido em direção a um determinado ponto da rede urbana, devido a uma dada disponibilidade de infraestrutura e a uma
relativa densidade técnica, de atividades econômicas, sociais e políticas que nesse ponto se
concentram (Trindade Jr.; Ribeiro, 2008).
No caso amazônico, a urbanização guarda, em grande parte, profunda relação com
uma lógica intencional do Estado (Machado, 2000), principalmente a partir da década
de 1960, quando o índice anual de urbanização se intensificou. O controle da terra, a
política de migração induzida e financiada pelo poder público e o incentivo a grandes
empreendimentos, asseguraram o desenvolvimento da fronteira urbana.2 Esta última,
segundo Becker (1990) e Machado (2000), funcionou como recurso estratégico para a
rápida ocupação da região, antes mesmo da implantação de projetos de produção agrícola, pecuarista, energética, mineral e/ou industrial. É uma realidade, assim, que reproduz
características de fronteira econômica, representando, para as empresas e investidores
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2 Base logística para o
projeto de rápida ocupação
da região, implicando em
proliferação e crescimento
de cidades, bem como em
difusão do modo de vida
urbano (Becker, 1990).
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capitalistas, um espaço de valor onde se podem implantar rapidamente novas estruturas
produtivas e de circulação, servindo, ainda, como reserva mundial de matérias-primas.
Desse modo, as cidades tornaram-se bases logísticas para as políticas de desenvolvimento pensadas para a região e para a ressocialização da população migrante (Becker,
1990). Essas políticas definiram um conjunto de elementos novos na urbanização da
região, cujas características, para as décadas de 1970 e 1980, podem ser elencadas da
seguinte forma: a valorização dos centros localizados às margens das rodovias; a reprodução de pequenos núcleos dispersos vinculados à mobilidade do trabalho; a retração
de núcleos antigos, que ficaram isolados à margem das novas formas de circulação; a
implantação de franjas urbanas avançadas, correspondentes às cidades das companhias;
e a concentração nas capitais estaduais (Becker, 1990; Corrêa, 1987; Vicentini, 1994).
Esses elementos definiram uma urbanização polimorfa e desarticulada, atribuída a diferentes formas de interações socioespaciais e a diversas formações microssociais híbridas
(Browder; Godfrey, 1997).
Outros estudos indicam novas tendências, não presentes no passado (Quadro 1). De
um lado, o reforço da metrópole dispersa como parte do processo de “metropolização”,
de outro, a proliferação de pequenas cidades e o crescimento dinâmico de novos núcleos
urbanos – as “cidades médias” – que, na Amazônia, cumprem o papel de centros regionais (Ribeiro, 1998; Machado, 2000). São exemplos desse nível de cidades, as capitais de
alguns estados, como Rio Branco (no Estado do Acre), Porto Velho (no Estado de Rondônia), Boa Vista (no Estado de Roraima), e outras cidades, que não são capitais, mas que
se alçam à categoria de cidades médias dada à importância na nova dinâmica econômica
regional. É o caso, por exemplo, de Marabá, Santarém e Castanhal, no Estado do Pará,
e de Imperatriz, no Estado do Maranhão; todas integrantes da Amazônia Oriental, onde
a expansão do fenômeno urbano no território é mais intenso e bastante diferenciado,
quando comparado à Amazônia Ocidental.
Quadro 1 – Amazônia: a rede urbana em dois momentos
Forma Dendrítica (Antes de 1960)
Forma Anastomosada (Após 1960)
Atividades econômicas tradicionais
Frentes econômicas e de modernização
Circulação fluvial e ferroviária
Circulação multimodal: destaque às rodovias
Cidades dos notáveis: pequenas e semelhantes
Cidades híbridas: dos “notáveis” e econômicas
Cidade primaz
Difusão do fenômeno de metropolização
Concentração econômica
Desconcentração econômica
Pouco destaque às cidades intermediárias
Importância das cidades médias
Elaboração: Saint-Clair C. da Trindade Júnior.
Tanto as médias quanto as pequenas cidades apresentaram interessantes índices de
crescimento populacional nas últimas décadas, algumas delas, inclusive, superiores aos
grandes centros urbanos. Tais cidades detêm, segundo dados oficiais, grande parte da
população regional. Entretanto, a expansão da fronteira econômica não se deu de maneira
igual quando consideramos a especificidade das sub-regiões. A Amazônia Oriental, em
particular, tende a acompanhar um processo que já vem sendo verificado há algum tempo no restante do território brasileiro. Conforme nos mostra Santos (1993), as grandes
cidades já apresentam taxas de crescimento econômico menores do que suas respectivas
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regiões, repercutindo no maior dinamismo e importância dos outros níveis de cidades,
como as cidades médias, conforme também acontece na Amazônia Oriental.
FLUXOS ECONÔMICOS E NOVAS
CENTRALIDADES
As cidades selecionadas como exemplos para a presente análise, assumidas aqui como
representativas de suas respectivas sub-regiões, são classificadas, para efeitos de discussão,
como centros urbanos regionais. No caso de Marabá, trata-se de uma cidade que vem
sendo lócus de grandes investimentos na região, pela importância produtiva, comercial,
distribuição de serviços e liderança política no sul/sudeste paraense, tornando-se, com
isso, uma das mais importantes no ranking econômico do Estado do Pará. Constitui-se
também um importante nó da rede urbana, viária e elétrica da Amazônia Oriental, e com
destaque para a sua base produtiva assentada na agropecuária, na indústria mínerometalúrgica e no extrativismo vegetal e mineral (Tavares, 1999).
Há, nesse caso, uma trajetória histórica a ser considerada no seu processo de formação e de dinamização, que se deu a partir de frentes pioneiras de atividades extrativas, minerais e vegetais, responsável pela formação de oligarquias tradicionais ligadas a atividades
como a exploração da castanha-do-pará (Emmi, 1987). Mesmo o declínio da atividade
gomífera na Amazônia afetou apenas parcialmente a sub-região onde se localiza Marabá.
A exploração de produtos como a castanha-do-pará no vale do Tocantins-Itacaiúnas,
possibilitou certo dinamismo a essa cidade, reafirmando seu papel como sub-centro com
o processo de integração da região, que se consolidou a partir da década de 1960, quando
se tornou o principal centro urbano de apoio à colonização agrária. Nesse contexto, foi
definida, pelas políticas territoriais do governo federal, como rurópolis, o nível mais elevado de cidade, pensado a partir do modelo de urbanismo rural do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), que orientava o processo de ocupação ao longo
das rodovias, como no caso da Transamazônica,
Hoje, além de sua importância econômica para o sul/sudeste paraense, é notável
seu papel como entroncamento aeroviário e rodoferroviário para as cidades menores de
sua sub-região. Ademais, a articulação de Marabá com regiões vizinhas, inclusive fora da
Amazônia, por meio das novas vias de circulação, fez da mesma uma das principais cidades
da Amazônia brasileira, após os maiores centros urbanos regionais. Assumem importância,
nesse caso, as rodovias Transamazônica, PA-150, BR-222 e a Estrada de Ferro Carajás,
que articulam a Amazônia brasileira a diversos municípios considerados espaços de novas
oportunidades econômicas e de investimentos capitalistas.
Nesse contexto, de novas redes de circulação, o rio Tocantins, de fundamental importância na formação da sub-região e da cidade de Marabá, tem seu papel econômico
relativizado em face das novas estratégias de ordenamento territorial. O modelo de ocupação assentado no tripé “rodovia - terra-firme – subsolo” (Porto-Gonçalves, 2005) parece
confirmar a importância dessa cidade para a nova configuração sub-regional e para uma
tendência de “negação do rio” face às novas frentes de expansão econômica.
Para o caso de Santarém, conforme os estudos de Pereira (2004), os fluxos de mercadoria e pessoas das capitais estaduais, notadamente Belém e Manaus, como também de
outros centros urbanos da região, têm naquela cidade uma referência nodal. Tal importância se projeta, seja do ponto de vista da circulação aérea – o aeroporto de Santarém é o
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segundo maior em movimento de passageiros do Estado do Pará –, seja do ponto de vista
da circulação rodoviária (rodovia Cuiabá-Santarém articulada à Transamazônica) e fluvial
(rio Amazonas e Tapajós). Neste caso, circulação rodoviária, aeroviária e hidroviária parece se complementar, em uma forma de organização do espaço um pouco diferenciada
daquela verificada no sul/sudeste do Pará.
A articulação da cidade de Santarém se dá tanto com o Baixo Amazonas como também com o sudoeste paraense, consideradas aqui como parte de uma sub-região maior,
o oeste do Pará, e, ainda, com a parte oriental do Estado do Amazonas. Esse papel foi
construído ao longo de sua trajetória de formação territorial, como pode ser observado
por seus antecedentes históricos. Desde o início do processo de colonização da região no
século XVII, Santarém assumiu um importante papel na consolidação do novo povoamento regional. Isso se reafirma no século XIX, com a economia gomífera, e se ratifica com
as políticas de integração regional e, mais recentemente, com a expansão da produção da
soja em direção à rodovia Cuiabá-Santarém.
A exemplo de Marabá, e diferentemente de outras cidades ligadas à economia da
borracha e que passaram por um período de estagnação com a queda dos preços do
produto no mercado mundial, a existência de outras atividades na área de polarização de
Santarém, como a produção de juta, praticada nas várzeas dos rios, fizeram com que essa
cidade mantivesse um relativo dinamismo econômico, conferindo-lhe certo destaque na
economia regional no período imediato pós-borracha (Corrêa, 1987) e mantendo esse
destaque até os dias atuais.
Ainda de acordo com Pereira (2004), na divisão territorial do trabalho, o Município
de Santarém é um dos mais novos polos produtores de soja da Amazônia, principalmente
ao longo da BR-163 (Cuiabá-Santarém), e a sede municipal cumpre um importante papel
no corredor de escoamento da produção de grãos da região central do Brasil, que do porto
local de Santarém parte em direção aos Estados Unidos e Europa, devido à localização
estratégica desta cidade em relação aos grandes centros consumidores de grãos exportados
pelo Brasil. A farta disponibilidade de recursos naturais constitui outro fator de atração do
grande capital. As grandes reservas florestais também têm sido alvos da ação de madeireiros, devido ao alto valor comercial e da variedade de espécies existentes, como já acontece
em outros estados da Amazônia (Pereira, 2004).
A importância dessas duas cidades reflete, portanto, a dinâmica da sub-região nas
quais se localizam, constituindo-se dentro desse quadro sub-regional (Quadro 2) os principais centros urbanos de dinamismo econômico.
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Quadro 2 – Marabá e Santarém e suas unidades sub-regionais
Unidades
Sub-Regionais
Sudeste do Pará
Baixo Amazonas
Principal cidade
(População)
Marabá (176.834 habitantes)
Santarém (134.258 habitantes)
Localização
Sul e sudeste do estado do Pará, vales do rio
Araguaia e do Tocantins e afluentes
Baixo Amazonas e parte da área de
influência da rodovia BR-163 (CuiabáSantarém)
Principais elementos
relacionados à formação
socioespacial
Ocupada de forma mais intensa a partir da
exploração das drogas do sertão, teve sua dinâmica
reforçada posteriormente com a exploração do
caucho e da castanha, que contribuíram para
desterritorializar populações tradicionais e formar
uma forte oligarquia da castanha, que perdurou
até a primeira metade da década de 1970.
Com a expansão de frentes econômicas diversas
(madeireiras, agrícolas pecuaristas, minerais etc.)
novos agentes se fizeram presentes a partir da
década de 1960, formando uma região dinâmica do
ponto de vista econômico e de intensos conflitos
pela apropriação do território e de seus recursos.
Grande presença do Estado através da implantação
de infraestrutura, políticas migratórias e incentivos
fiscais.
Área de antiga colonização com importância
na extração de produtos da floresta e na
agricultura, especialmente a juta, e de
expansão recente de frentes econômicas que
provocaram a reorganização capitalista do
espaço de caráter pontual e linear.
Presença de frentes de modernização
recente que incluem grandes projetos de
exploração mineral, rodovias, hidrelétrica
e infraestrutura portuária definiram uma
nova ordem territorial que combina ações
estatais com ordenamento espontâneo com
a presença de agentes econômicos diversos.
Papel na divisão
territorial do trabalho
A importância do diamante e da castanha no
passado cede lugar nos dias atuais à forte presença
de atividades mais modernas como a agricultura, a
pecuária leiteira e de corte, e a exploração mineral;
atividades estas praticadas por agentes de pequeno,
médio e grande porte.
Área com a presença de grandes projetos,
de atividades tradicionais e de atividades
recentes em expansão e consolidação, a
exemplo da agropecuária, notadamente a
expansão da soja, e da produção extrativa
vegetal e mineral.
Agentes
econômicopolíticos e
territorialidades
Grande disputa pelo espaço, com conflitos de
territorialidade de caráter pontual ou ao longo
de linhas, decorrentes da expansão capitalista.
Movimento de criação do Estado de Carajás,
comandado especialmente por novos agentes
econômicos que referendam uma nova identidade
política, econômica e cultural em consolidação e
que vem sendo utilizada pelos diversos atores como
demarcatória de uma nova unidade territorial com
intenções separatistas.
Presença de elite tradicional e de espaço de
conflitos entre formas novas de apropriação
do território decorrente de novos agentes
(grandes empresas, colonos e migrantes
sem capital, Estado etc.) e de formas
tradicionais de apropriação do território e
de seus recursos (oligarquias, populações
tradicionais etc.). Presença de relativa
identidade territorial que sustenta a criação
de um novo estado da federação a partir da
fragmentação do território paraense.
Fontes: GUERRA, G. A. D. “Apropriação, uso da terra e desenvolvimento territorial na Amazônia”. In: ROCHA, G. M.; MAGALHÃES, S. B; TELSSERENC, P. Territórios de desenvolvimento e ações públicas. Belém:
Edufpa, 2009. p.185-205; MAGNANO, A. “A estrutura do espaço regional”. In: IBGE. Geografia do Brasil:
região norte. Rio de Janeiro, 1989, v. 3, p.275-307.
A importância quanto ao repasse na arrecadação de impostos, ainda que inferior ao
aglomerado metropolitano do qual fazem parte Belém e Ananindeua, colocam Santarém
e Marabá entre os 10 (dez) municípios com maiores arrecadações no conjunto de 144
(cento e quarenta e quatro) municípios de todo o Estado do Pará.
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Tabela 1 – Pará: Repasse em Reais da arrecadação do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) aos principais municípios – 2º Semestre de 2007
Municípios
Total do Semestre
Quota-Parte (%)
Altamira
1.331.831,89
1,65
Ananindeua
3.438.547,78
4,26
Barcarena
4.988.315,80
6,18
Belém
16.409.783,20
20,33
Canaã dos Carajás
1.234.971,39
1,53
Marabá
4.407.152,79
5,46
Oriximiná
2.421.512,52
3,0
Parauapebas
7.522.832,24
9,32
Santarém
2.025.998,81
2,51
Tucuruí
3.858.276,62
4,78
Fonte: Governo do Estado do Pará. Secretaria de Estado de Planejamento, Orçamento e Finanças, Diretoria
do Tesouro Estadual, 2007. Obs.: Deduzidos 15% de contribuição ao FUNDEF.
Tabela 2 – Pará – Repasse em Reais de Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI) aos
principais municípios – 1º Semestre de 2008
Municípios
Total do Semestre
Quota-Parte (%)
Altamira
189.048,52
1,62
Ananindeua
506.463,31
4,34
Barcarena
750.359,23
6,43
2.405.117,23
20,61
Canaã dos Carajás
210.053,91
1,80
Marabá
682.675,20
5,85
Belém
Oriximiná
316.247,83
2,71
1.051.436,50
9,01
Santarém
268.402,21
2,30
Tucuruí
547.307,12
4,69
Parauapebas
Fonte: Governo do Estado do Pará. Secretaria de Estado da Fazenda, Diretoria do Tesouro Estadual, 2008.
Poder-se-ia questionar se as outras cidades que apresentam melhor desempenho
na arrecadação também não se caracterizariam como cidades médias, tal a importância
econômica que possuem no espaço paraense. Na verdade, os municípios que apresentam
melhores arrecadações no conjunto do Estado, ou integram a Região Metropolitana de
Belém – caso de Belém e Ananindeua –, ou são sedes de importantes projetos econômicos. Diferentemente, Marabá, Santarém e Altamira justificam seu desempenho na
arrecadação pela importância como centros urbanos sub-regionais, definindo significativos fluxos de pessoas, mercadorias e informações no contexto do espaço paraense e da
Amazônia Oriental.
Daquelas cidades cujo papel da arrecadação está associado a um grande projeto,
provavelmente apenas Tucuruí possa ser considerada uma cidade média, pelo papel que
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assume do ponto de vista econômico, notadamente da distribuição de bens e serviços, para
um conjunto de municípios direta ou indiretamente afetados pelo grande empreendimento hidrelétrico ali construído.
As demais cidades, mesmo com forte dinamismo econômico assentado no grande
empreendimento instalado, são de pequeno porte e/ou com bases logísticas urbanas bem
definidas, que estabelecem relações mais verticais (extrarregionais) que horizontais (dentro
da própria região), e articulações muito mais organizacionais (corporativas) que orgânicas
(relacionadas a vivências cotidianas) (Santos, 1996) com o restante do espaço paraense.
Não são, portanto, centros regionais, mas verdadeiros enclaves urbanos no conjunto da
rede urbana. Assim, mesmo com status econômico e equipamentos urbanos que as potencializam à condição de cidades médias, não definem polarizações regionais significativas e
não se constituem propriamente como centros de distribuição e oferta de bens e serviços,
apresentando, portanto, frágeis centralidades econômicas. Isso mostra, inclusive, a insuficiência de considerarmos o dinamismo econômico como critério isolado para definir as
cidades médias.
Em que pese a tendência, no Brasil, de associar as cidades médias à modernização
econômica e à melhoria da qualidade de vida da população, é preciso considerar que determinados critérios relacionados diretamente ao padrão de vida da população residente não
ajudam muito a reconhecer a centralidade dessas cidades e a identificá-las como centros
urbanos regionais. Assim, associar a importância das cidades médias à melhoria da qualidade de vida parece induzir a equívocos, principalmente se considerarmos a diversidade
territorial brasileira e amazônica e as especificidades dos centros urbanos regionais dentro
dos diferentes contextos territoriais. É o que podemos concluir, por exemplo, se cotejarmos a situação de pobreza e renda (Tabela 3) e de saneamento básico (Tabela 4) das duas
cidades amazônicas aqui exemplificadas com outras cidades de sub-regiões mais dinâmicas
e consolidadas economicamente, como as do estado de São Paulo.
Tabela 3 – Pobreza e renda em municípios com sedes porte médio nos estados do Pará e
de São Paulo – 2001
Renda Média – Resp.
p/ Dom. (R$)
Proporção de
pobres (%)
Renda Per Capita
(R$)
Marabá
614
44,0
188,6
Santarém
451
54,0
139,9
Presidente Prudente
1.073
12,0
482,6
Sorocaba
1.089
10,6
448,2
Marília
979
11,5
421,2
Franca
854
8,3
359,6
Municípios
PARAENSES
PAULISTAS
Fonte: IPEA, FJP e PNUD apud Trindade Jr. e Pereira (2007)
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Tabela 4 – Acesso aos serviços de saneamento em municípios com sedes de porte médio
nos estados do Pará e de São Paulo – 2000
Municípios
Saneamento Adequado (%)
Saneamento Inadequado (%)
Marabá
15,6
29,4
Santarém
20,0
28,5
Marília
93,4
1,8
Franca
97,3
1,3
Presidente Prudente
94,6
1,5
Sorocaba
96,1
0,3
PARAENSES
PAULISTAS
Fonte: Indicadores Sociais Municipais 2000 – Brasil apud Trindade Jr. e Pereira (2007)
Muito mais que definir a cidade média pelo seu patamar demográfico ou pelo seu
grau de modernização, parece ser importante considerar o seu papel enquanto espaço relacional no contexto regional em que se insere. Nesse sentido, o papel das cidades médias
na Amazônia sugere levar em conta a relação das mesmas em face dos novos processos
que se desdobram no plano regional. Considerando Marabá e Santarém, constata-se que
o perfil desse nível de cidades é bem diferenciado quanto às demais cidades de outras
regiões brasileiras. Tal diferenciação não se confirma apenas quanto ao patamar populacional, que nas cidades do centro-sul brasileiro é bem superior, mas igualmente no que
diz respeito à capacidade de acumulação e de canalização de riquezas em comparação ao
espaço metropolitano.
Assim, muito mais que definir um perfil de cidade moderna, que se caracteriza por
melhor qualidade de vida, faz-se necessário reconhecer a centralidade dessas mesmas cidades. Isso se coloca, pois nem sempre tais cidades revelam uma possível incorporação dos
processos de acumulação de capitais decorrentes dos investimentos realizados no contexto
regional em que se inserem. Essa constatação nos induz a pensar, de fato, o que seja a cidade média na região amazônica. A nosso ver tais cidades são marcadas menos pela presença
de fixos modernos, que pela presença de fluxos de mesma ordem.
Com essa preocupação, o estudo de Ribeiro (1998) arrolou importantes centros
regionais no espaço amazônico que incluem as cidades aqui referenciadas. No tocante à
distribuição de bens e serviços, Ribeiro (1998) identificou cinco níveis de centralidade.
Dentre esses níveis, destacam-se as cidades de nível intermediário, que ocupam a segunda
posição hierárquica em sua região e são representados por quinze centros que refletem a
desigualdade socioespacial regional, subordinando-se, em sua maioria, àquelas cidades de
primeiro nível (Belém, São Luís, Cuiabá e Manaus).
Tais cidades constituem importantes “nós” de distribuição de bens e serviços e
podem ser identificadas por suas características distintas e particulares em: centros que
apresentam traço da frente pioneira agropastoril e mineral; centros que estão situados
nas bordas nordestinas no Estado do Maranhão; centros que fazem parte da Amazônia
tradicional e seu sistema dendrítico–ribeirinho, geralmente antigos e revitalizados, aqui
incluindo Santarém; e centros que margeiam as estradas, como é o caso de Marabá (Ribeiro, 1998).
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Na verdade, são os fluxos os responsáveis por garantir uma rede de relações horizontais e verticais que dão um novo sentido aos subespaços regionais como “nós”
importantes de circulação de capitais, mercadorias, informações e pessoas em contextos
de fronteiras de expansão econômicas e tecno-ecológicas (Becker, 2004), ou como centros difusores de “manchas pioneiras”,3 conforme prefere denominar Huertas (2009),
que reconhece dez centros que cumprem esse papel na Amazônia, dentre eles Marabá e
Santarém (Quadro 3).
No caso de Santarém e Marabá, tratam-se de cidades mais antigas que passaram por
um processo de revigoramento oriundo da valorização econômica de produtos econômicos locais e da abertura de rodovias de penetração. Por isso são núcleos mais consolidados
e irradiadores de dinamismo econômico, que reafirmam a centralidade regional. Esta, por
sua vez, está ancorada em fluxos centrípetos, fortemente definidos pela presença de funções terciárias ampliadas que incluem: abastecimento regular de combustível, comércio de
insumos e máquinas agrícolas, empresas de geoprocessamento e licenciamento ambiental,
linhas aéreas regionais, agências bancárias, recrutamento de mão de obra qualificada e representações de órgãos públicos relevantes (Huertas, 2009). Essa centralidade econômica
aqui considerada, todavia, repercute também em outras dimensões da dinâmica regional,
como as relações de poder, definindo o papel político que passa a ser assumido por essas
cidades médias no conjunto da rede urbana regional.
3 Para Huertas (2009), no
período atual, constatam-se
novas frentes de expansão
que são comandadas por
frentes antigas, onde algumas cidades se tornaram
centros regionais relevantes ao longo das últimas
quatro décadas. O autor
denomina essas cidades
de centros difusores, nas
quais estão os centros subregionais, identificados aqui
como cidades médias, que
apresentam, no contexto
regional, alta capacidade
de fornecimento de ordens
e serviços para os pequenos municípios que gravitam ao seu redor.
Quadro 3 – Amazônia: centros difusores da “mancha pioneira”
População
PIB(2) (em mil R$)
Estrutura Financeira(3)
Municípios(1)
Total
Urbana
VAA
VAI
VAS
IMP
NOM
(%)
Santarém (PA)
1661
Itaituba (PA)
1935
Altamira (PA)
1911
Marabá (PA)
1913
Humaitá (AM)
1890
Vilhena (RO)
1977
Sinop (MT)
1979
Alta Floresta
(MT) 1914
Barra do Garças
(MT) 1914
Redenção (PA)
1982
Total das
Agências operações
bancárias de créditos
(em mil R$)
262.538
70,96
94.786
177.552
858.027
136.173
1.266.535
10
142.426
94.750
68,06
39.871
68.813
250.013
31.331
390.028
05
43.745
77.439
80,43
47.813
47.956
242.629
29.845
368.243
06
83.260
168.020
79,98
68.144
711.182
1.041.289
259.224
2.079.838
10
193.821
32.796
73,15
23.725
10.413
82.426
8.763
125.326
03
11.280
53.598
94,41
113.889
157.943
415.710
109.738
797.280
06
101.510
74.831
90,48
114.233
261.460
611.400
141.430
1.128.523
09
401.025
46.982
79,36
78.227
75.879
197.899
35.702
387.707
05
125.609
52.092
91,12
46.002
135.119
285.935
52.871
519.927
06
277.533
63.251
94,25
43.158
97.352
235.276
35.385
411.171
06
102.096
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apud Huertas (2009)
Obs.: (1) Nome do município, estado da federação onde se localiza e ano de criação. (2) Valor adicionado
da agropecuária (VAA), indústria (VAI), serviços (VAS), impostos (IMP) e valor nominal (NOM) – Dados
de 2005. (3) Dados de 2007
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PARA ALÉM DO ECONÔMICO, A CENTRALIDADE
POLÍTICA
Nos últimos anos, devido à expansão das frentes econômicas e ao intenso processo
de urbanização, notadamente na Amazônia Oriental, várias cidades que apresentaram um
novo dinamismo econômico alçaram-se à condição de novas sedes municipais, contribuindo para o processo de fragmentação política do território. O Pará, o Estado de maior
dinamismo econômico e populacional da Amazônia Oriental, destaca-se entre aqueles
onde esse processo redefiniu a geografia política regional.
Mas não é apenas na escala municipal que a fragmentação política do território se
manifesta. Fruto da diferenciação verificada no plano econômico vislumbram-se também
recortes e emancipações no sentido de surgimento de novas unidades da federação em
nível estadual a partir do território paraense. A diferenciação espacial e territorial tem
suscitado propostas de emancipação, do ponto de vista político, por parte de algumas
sub-regiões do estado do Pará. Bem recentemente (ano de 2004) um Projeto de Decreto
Legislativo (PDC), o de número 1.217, foi apresentado no Congresso Nacional. Segundo
esse projeto, a partir do Estado do Pará surgiriam outros como o do Tapajós e o de Carajás
(Quadro 4).
Quadro 4 – Dados socioeconômicos e territoriais de novos estados propostos a partir do
território paraense – 2004
Estado
Carajás
Tapajós
PIB
(R$ MIL)
8.204.007
3.743.117
População
907.270
844.687
Nº de
Área km2 municípios
228.347
392.947
Municípios Integrantes
29
Água Azul do Norte, Bannach,
Bom Jesus do Tocantins, Brejo
Grande do Araguaia, Canaã dos
Carajás, C. do Araguaia, Cumaru
do Norte, Curionópolis, Eldorado
dos Carajás, Floresta do Araguaia,
Itupiranga, Marabá, Nova
Ipixuna, Ourilândia do Norte,
Palestina do Pará, Parauapebas,
Pau D’Arco, Piçarra, Redenção,
Rio Maria, Santa Ma. Das
Barreiras, Santana do Araguaia,
São Domingos do Araguaia, São
Félix do Xingu, São Geraldo do
Araguaia, São João do Araguaia
Sapucaia, Tucumã, Xinguara
20
Alenquer, Almerim, Aveiro,
Belterra, Brasil Novo, Curuá,
Faro, Juruti, Medicilândia, Monte
Alegre, Óbidos, Oriximiná,
Placas, Porto de Moz, Prainha,
Rurópolis, Santarém, Terra Santa,
Uruará, Vitória do Xingu
Fonte: BOUERI, R. “Custos de funcionamento das unidades federativas brasileiras e suas implicações sobre a
criação de novos estados”. Textos para discussão nº. 1367, Rio de Janeiro, IPEA, dez. 2008
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Os estados sugeridos possuem grande extensão territorial e uma população relativamente reduzida. As cidades propostas como sedes estaduais são as mesmas que nas últimas
décadas têm assumido a centralidade no contexto regional. Trata-se de uma mediação, do
ponto de vista político, dada à importância e centralidade daquelas cidades tendo em vista
a descentralização econômica no território estadual. Suas condições de fóruns regionais de
decisões políticas e debates em torno de questões que afetam diretamente a sub-região em
que se inserem (Pereira, 2004), tornam essas cidades importantes espaços de centralidades
econômicas e políticas em face da projeção dessas sub-regiões, que se alçam à condição de
novos estados da federação.
As elites locais não se resumem mais às oligarquias tradicionais, mas incluem novos
agentes, que chegaram com as novas frentes de expansão, inclusive grandes empresários,
pecuaristas etc., como no caso sudeste paraense (Emmi, 1987), ou dos sojeiros, como no
caso do oeste paraense. Esses novos agentes têm comandado a proposta de emancipação e
difundido a propaganda de criação desses mesmos estados, com sedes em Marabá (Estado
de Carajás), no sul/sudeste do Pará, e Santarém (Estado do Tapajós), no oeste paraense.
Nesses casos busca-se associar uma identidade regionalista na escala sub-regional a
um discurso de melhor distribuição das arrecadações e de um possível redirecionamento
do desenvolvimento econômico regional. Trata-se, entretanto, muito mais da formalização política de novas territorialidades já desenhadas, responsável por dar apoio ao poder
local que se redefiniu nas últimas décadas e que exerce uma grande influência política no
interior do território paraense (Trindade Jr.; Pereira, 2007).
Ademais, a presença de grandes projetos econômicos ou de importantes atividades
econômicas em expansão sob sua área de influência revelam uma relativização do papel de
Belém, uma das metrópoles regionais, frente às cidades médias, especialmente Marabá e
Santarém, que definem novos papéis no contexto da participação econômica da Amazônia
oriental, e especialmente do Estado do Pará.
Associada a isto está a situação de perda da condição de Belém de ser a única porta
de entrada da região, que foi dominante até a abertura de rodovias na Amazônia, responsável por fragilizar a função portuária e a importância dos rios como principais vias de
circulação na região. As tentativas de emancipação política, notadamente do sul/sudeste
e do oeste paraense revelariam, portanto, essa situação de “fragilidade” de Belém também
do ponto de vista político.
Nesse caso, as novas lideranças políticas do Estado do Pará, localizadas fora da área
de influência imediata de Belém e fortalecidas economicamente pelas frentes de modernização recentes no interior da Amazônia, conforme acontece no caso das sub-regiões aqui
consideradas, postulam a formação de novos estados da federação; portanto, com maior
autonomia dentro do território nacional e sem subordinação política a Belém.
Esse processo resulta de uma espécie de balcanização política dentro do território
paraense, já definida em termos não formais, e de uma estratégia de afirmação dos poderes
locais em nível sub-regional. Tais forças políticas se reforçam pela importância assumida
pelas cidades médias; daí a recorrente mobilização para fins de autonomia estadual assentadas nessas bases territoriais sub-regionais e com referência de centralidade em cidades
médias, que, nas últimas décadas, passaram a expressar importante destaque do ponto de
vista da centralidade econômica, conforme já mencionado.
Ideias de que “Belém explora Marabá” ou de que as arrecadações de Santarém não
são devidamente repassadas e investidas no plano local devido ao controle metropolitano,
definem um sentimento de perda, de exploração e de exclusão, que acaba por caracterizar
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uma dada identidade territorial de base sub-regional, responsável por mobilizar ações
emancipatórias. O discurso apresentado nesse nível leva a crer que é na instância territorial
almejada – um novo estado da federação – que os problemas apresentados na escala mais
imediata serão resolvidos. Trata-se, como nos diz Sack (1986), de designar a solução desses problemas para a escala errada, pois é sabido que, no caso amazônico, é na produção
do espaço regional e de sua articulação com outras escalas externas que eles se constituem.
Ademais, a apropriação dos movimentos de emancipação por parte das lideranças políticas
e projetados a partir das cidades que lhes servem de base – as cidades médias – associa-se,
igualmente, ao potencial eleitoral dessas localidades, definido pela dinâmica mais recente
de produção do espaço regional amazônico.
Presencia-se, com isso, a emergência ou fortalecimento de forças políticas setorizadas e balcanizadas no interior do espaço amazônico, configurando propostas de partilhas
territoriais na geografia eleitoral regional. Isso acontece na medida em que passa a existir
um maior crescimento relativo dos eleitores nos novos espaços de povoamento induzidos
por novas dinâmicas econômicas. Por outro lado, faz-se interessante analisar quais têm
sido as respostas a essas intenções, de uso político do território, por parte do próprio
Estado. Tomando como exemplo essa escala sub-regional, várias têm sido as estratégias
que se têm procurado usar diante das perspectivas de fragmentação do território definidas
pelos novos agentes estabelecidos na Amazônia Oriental, e mais especificamente ainda no
território paraense.
Uma delas aconteceu quando então, tendo em vista a possibilidade de construção da
Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, foi sugerida a transferência da capital de
Belém para aquela localidade. Tratava-se da construção de uma nova capital, nos moldes
da estratégia geopolítica de construção de Brasília. Essa parecia ser uma resposta das elites
políticas sediadas em Belém no sentido de definição de um novo pacto de base territorial
visando à recuperação do controle político em sub-regiões que foram fortemente afetadas
pelas frentes de expansão econômica, a exemplo daquelas cortadas e/ou influenciadas pela
rodovia Transamazônica, como é o caso de Marabá e Santarém.
Buscava-se, com isso, arrefecer os ânimos em relação a três propostas de emancipação política, a do estado de Carajás (com capital em Marabá), a do estado do Tapajós
(com capital em Santarém) e a do estado do Xingu (com capital em Altamira), dado o
potencial dessas cidades e de suas respectivas regiões, responsáveis por colocar em xeque
as forças políticas sediadas em Belém. Assim sendo, a construção de uma nova capital,
mais centralizada do ponto de vista da disposição física do território, passou a representar
o enfrentamento do discurso de canalização dos recursos econômicos originados nessas
sub-regiões para Belém, sob o pretexto da descentralização política das decisões. A importância histórico-cultural de Belém e a força política ainda sediada nessa cidade, entretanto,
fizeram abortar essa ideia.
Outra estratégia foi assumida mais recentemente pelo governo estadual na gestão do
Partido dos Trabalhadores (2007-2010), dizendo respeito a um novo formato de pacto
territorial que pressupunha a discussão participativa da distribuição dos recursos e dos investimentos territoriais e sociais. Esse formato, denominado de Planejamento Territorial
Participativo do Estado do Pará (PTP-PA), consistiu em uma espécie de “orçamento participativo” em nível estadual, que primava pela participação social e pela descentralização
da tomada de decisão por parte do governo estadual. Neste caso, a contra-ação se colocava
a partir de uma nova estratégia de gestão que desconstruía o discurso da centralização
das decisões e da canalização de recursos e investimentos em direção à capital. O recorte
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territorial proposto, nesse caso, estava baseado em uma estratégia que buscava levar em
conta a nova dinâmica espacial e os graus de urbanização do território e de distribuição populacional no espaço, sugerindo, portanto, a não necessidade de novos recortes
político-administrativos.
Tanto em uma quanto em outra proposta, a centralidade política das cidades parece
estar presente no processo de gestão do território e faz essas mesmas cidades tornarem-se,
do ponto de vista territorial, protagonistas de projetos políticos, como espaços relacionais
que são, das proposições de emancipação em curso. Revelam-se, portanto, correlações de
forças que têm em vista o controle de tributos, de recursos e de eleitores, cuja mediação é
dada a partir da dimensão territorial, como uma forma de rearranjo de antigas estruturas
sociopolíticas e espaciais que foram alteradas pela presença de novos agentes econômicos
e pelo incremento de novas atividades econômicas no interior da Amazônia Oriental.
Essa é a razão pela qual a gestão do território passa a estar no jogo das estratégias do
Estado, dos grupos sociais, das instituições e dos agentes econômicos, pressupondo ações
que objetivam a criação e o controle da organização do espaço e, por meio disso, viabilizar
a existência e a reprodução das novas relações que se fazem presentes nessas sub-regiões
da Amazônia, caracterizadas pelo dinamismo econômico, pela alteridade e pelas tensões
de base territorial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na Amazônia, a cidade média pode ser considerada como um elemento relativamente recente na rede urbana regional. O sentido dado a essas cidades na análise aqui
realizada as coloca como centros urbanos regionais e, portanto, como espaços relacionais,
no sentido de que só podem ser compreendidos a partir dos contextos em que se inserem
(Harvey, 1980). Não se confundem, portanto, nem com as cidades intermediárias, que
sempre estiveram presentes na estrutura da rede urbana, e nem com as cidades de porte
médio, caracterizadas a partir de um patamar demográfico mínimo.
Como centros urbanos regionais, assumem importantes centralidades, devido ao
conjunto de fluxos que definem um caráter centrípeto a determinados pontos do território, relativamente bem articulados pelas novas vias de circulação, mas igualmente pela
capacidade de oferecer infraestrutura, serviços, mão de obra e mercadorias de um modo
geral; fatores estes que são fundamentais à reprodução econômica em nível territorial.
Normalmente associadas à modernização econômica e à boa qualidade de vida, na
Amazônia, as cidades médias tendem a se diferenciar daquelas outras onde as relações capitalistas já se mostram mais consolidadas e não se apresentam como espaços de expansão
das novas relações capitalistas. É nesse sentido que os fixos modernos, no caso de cidades
amazônicas como Santarém e Marabá, parecem assumir menos importância que a capacidade de gerar e de possibilitar a dinâmica dos fluxos; elementos cruciais na definição
das centralidades urbano-regionais aqui consideradas. Para além da dimensão econômica,
entretanto, outras centralidades se fazem presentes, como aquelas que evidenciam novas
relações de poder no espaço regional, denominadas, para efeitos de nossa análise, de centralidades políticas.
Estas reflexões buscam contribuir para pensar as cidades médias no espaço brasileiro
contemporâneo, considerando particularidades regionais e possibilidades de reconhecer
formas urbanas diversas, tendo em vista a produção desigual e diferenciada do espaço
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Saint-Clair Cordeiro da
Trindade Júnior é Profes­
sor Associado III da UFPA;
pesquisador do CNPq. Email:
[email protected]
Ar­ti­go re­ce­bi­do em junho de
2011 e apro­va­do pa­ra pu­bli­
ca­ção em agosto de 2011.
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geográfico. Mais importante ainda para a reflexão teórica, e pouco importando a denominação que se queira dar a esse nível de cidade, são os processos que podem ser evidenciados
na análise dessas dinâmicas regionais, associando-os à importância assumida por esses
expressivos núcleos urbanos de destaque regional.
Conforme já demonstrado, tais cidades não podem ser definidas somente pelo
patamar demográfico – o que parece ser consenso nas discussões mais atuais. Da mesma
forma, parece pouco esclarecedor associá-las mecanicamente à modernização do território,
que decorre em grande parte dos processos de desconcentração econômica. Insistir nesse
empreendimento sugere caminhar para uma teorização sobre essas cidades com base em
referências espaciais etnocêntricas. Além disso, outras dimensões da centralidade devem
ser levadas em conta, no sentido de ultrapassar o perfil econômico normalmente mobilizado para compreender os papéis dessas cidades. Aqui a dimensão política foi discutida e
articulada à dimensão econômica para tratar a condição de Marabá e Santarém como cidades médias da Amazônia Oriental brasileira, mas mesmo outras dimensões da realidade
espacial e territorial podem ser consideradas, a exemplo daquelas que envolvem elementos
da cultura e da formação histórico-social dessas cidades, que revelam, igualmente, novas
expressões do regionalismo, responsáveis por alimentar os pactos territoriais que dão sentido às propostas de fragmentação política.
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S A I N T- C L A I R
C O R D E I R O
D A T R I N D A D E
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Abstract
This paper presents elements of the urban-regional centrality of
middle-size cities in the Brazilian Amazonia and discusses the role of these cities in a context
of territorial restructuring. For that analysis it is considered conceptual differences between
“center” and “centrality”, as well as between “flux” and “fix” are considered. The empirical
references of the analysis are two cities located in the eastern Amazonia – Marabá and
Santarém. The study approaches the importance of these cities for the regional production of
space and considers historical elements of the territorial formation of Brazilian Amazonia, as
well as statistical data and documental information about that region and its urbanization
process. The analysis finishes whith the discussion of the role played by middle cities in the
Amazon region and its political centrality in a context of spatial re-arrangement, of emergence
of new political interests and of political territory division intentions.
Keywords
Middle-size cities; Eastern Amazon; centrality; territorial division.
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AGRONEGÓCIO E NOVAS
REGIONALIZAÇÕES NO BRASIL
Denise Elias
R e ­s u ­m o
As transformações ocorridas na atividade agropecuária brasileira nas
últimas cinco décadas têm profundos impactos sobre a (re)organização do território brasileiro,
resultando em novos arranjos territoriais. Entre esses, destacam-se os inerentes ao agronegócio
globalizado, áreas escolhidas para receber os mais expressivos investimentos produtivos do
setor, representando suas áreas mais competitivas, as quais denominamos Regiões Produtivas
Agrícolas (RPAs). Os principais objetivos desse texto são: debater a noção de RPA; apresentar
os elementos de identificação e caracterização da mencionada região; aperfeiçoar o caminho
analítico que vem sendo trilhado e incrementar a noção no contexto dos estudos geográficos, na
perspectiva de uma possível consolidação conceitual dessa ideia.
P a ­l a ­v r a s - c h a ­v e
Agronegócio; urbanização dispersa; reestruturação
urbana e regional.
INTRODUÇÃO1
O presente texto faz parte da linha de pesquisa Agronegócio e Novas Dinâmicas
Socioespaciais, com a qual tenho trabalhado desde o início da década de 1990, processo
reforçado com a criação do Grupo de Pesquisa Globalização, Agricultura e Urbanização
(GLOBAU), certificado pelo CNPq. Essa linha de pesquisa tem como objetivo central
a análise das dinâmicas de produção e reprodução dos espaços agrícolas e urbanos associados ao processo de reestruturação produtiva da agropecuária brasileira. Sua meta
principal é avançar na compreensão da (re)estruturação urbana e regional resultante
da difusão do modelo econômico e social de produção agropecuária preconizado com
a globalização.
Como tenho defendido, as transformações ocorridas na atividade agropecuária no
Brasil, nas últimas cinco décadas, têm profundos impactos sobre a (re)organização do
território brasileiro, resultando em novos arranjos territoriais. Entre esses, destacarei aqui
o que tenho chamado, nos últimos anos, de Regiões Produtivas Agrícolas (RPAs).
As RPAs são os novos arranjos territoriais produtivos agrícolas, os territórios das redes agroindustriais, escolhidos para receber os mais expressivos investimentos produtivos
inerentes ao agronegócio globalizado, representando suas áreas mais competitivas. Nelas
encontram-se partes dos circuitos espaciais da produção e círculos de cooperação de importantes commodities agrícolas, evidenciando a dinâmica territorial do agronegócio.
Nas RPAs, as grandes corporações concernentes às redes agroindustriais são os maiores agentes produtores do espaço agrário e urbano. Como consequência de tais processos,
intensificam-se as relações campo-cidade e a urbanização, uma vez que as redes agroindustriais necessitam também de processos que se dão no espaço urbano próximo às áreas de
produção agrícola e agroindustrial, incrementando o crescimento de cidades totalmente
funcionais ao agronegócio, as quais passam a ter novas funções, tal como a de gestão desse
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1 Agradeço ao CNPq pelo
financiamento de algumas
das minhas pesquisas nos
últimos anos. Agradeço,
também, ao professor Dr.
Renato Pequeno, do Departamento de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade
Federal do Ceará (UFC),
pela leitura cuidadosa e
sugestões. Não lhe cabe,
no entanto, nenhuma responsabilidade por qualquer
equívoco aqui encontrado ou
por alguns caminhos teóricoconceituais adotados.
A G R O N E G Ó C I O
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agronegócio globalizado. Processa-se, em última instância, a produção de territórios especializados e corporativos inerentes a esse agronegócio.
O estudo das Regiões Produtivas Agrícolas não se limita a um campo de estudo
da Geografia, mas demanda e perpassa vários campos, tais como da Geografia Agrária,
da Geografia Econômica, da Geografia Urbana, da Geografia Regional, Economia
Política, assim como da Economia Espacial, Sociologia Rural, entre outros. Consequentemente, a realização de estudos e pesquisas sobre as RPAs torna-se bastante complexa.
Assim, há muito trabalho pela frente para podermos, de fato, avançar no caminho da
construção teórico-conceitual para a elaboração do conceito e, especialmente, da metodologia visando à operacionalização de pesquisas com tais objetivos.
Para finalizar esta introdução, destaco que para o estudo das Regiões Produtivas
Agrícolas valorizo, de um lado, o diálogo com aqueles que estudam o espaço agrário brasileiro, e também com aqueles que estudam os espaços urbanos não metropolitanos e os
processos de (re)estruturação urbana e regional, reconhecendo as respectivas contribuições
para o desenvolvimento de noções, teorias e conceitos sobre os processos e dinâmicas
socioespaciais emergentes no território brasileiro.
Por outro lado, é importante reconhecer a existência de especificidades nas formas
de produção e apropriação do espaço agrícola e urbano nas diferentes Regiões Produtivas
Agrícolas, importantes nós, pontos ou manchas de redes agroindustriais com circuitos
espaciais de produção globalizados, com poder de promover significativas (re)estruturações urbanas e regionais. Todas merecem atenção em um país de grandes dimensões e
diversidade regional como o Brasil.
Dessa maneira, os estudos que alicerçam este texto refletem um caminho que vem
sendo trilhado e, ao mesmo tempo, mostra haver muito ainda a ser feito para podermos,
efetivamente, conhecer melhor as mudanças em curso nos papéis desempenhados pelos
espaços agrícolas, urbanos e regionais componentes das redes agroindustriais, à medida
que se amplia o movimento de ocupação do território brasileiro de forma mais articulada
à economia internacional.
A utilização desse recorte espacial baseado nas Regiões Produtivas Agrícolas para
o estudo do território nacional pode auxiliar a melhor entender a divisão territorial do
trabalho hoje vigente no país, pois leva em conta o impacto da reestruturação produtiva
da agropecuária e a organização das redes agroindustriais. Portanto, considera a base da
organização de uma parte significativa do território brasileiro atual, resultado da herança
histórica e das metamorfoses do presente, marcado pela velocidade das inovações.
2 Sobre o tema pode ser
visto, em especial, Elias
(2006a, b, 2008, 2010).
REGIÕES PRODUTIVAS AGRÍCOLAS:2
CARACTERÍSTICAS E ELEMENTOS DE
ARGUMENTAÇÃO
Como tese central, segundo tenho defendido, as transformações ocorridas na atividade agropecuária no Brasil, nas últimas cinco décadas, exercem profundos impactos sobre
a (re)organização do território brasileiro, resultando em novos arranjos territoriais, entre
os quais o ora denominado Regiões Produtivas Agrícolas (RPAs).
A reestruturação produtiva da agropecuária, entendida como processo promotor de
transformações nos elementos técnicos e sociais da estrutura agrária (especialmente alterando a base técnica da produção, as relações sociais de produção e a estrutura fundiária),
que atinge tanto a base técnica quanto a econômica e social do setor, tem profundos
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impactos sobre os espaços agrícolas e urbanos. Estes passam, então, por um processo acelerado de reorganização, com incremento da urbanização e de processos de (re)estruturação
urbana e regional, com a formação ou consolidação de Regiões Produtivas Agrícolas, por
todo o Brasil.
As RPAs são os novos arranjos territoriais produtivos totalmente associados ao
agronegócio globalizado e, assim, inerentes às redes agroindustriais.3 Dessa forma, são
compostas tanto pelos espaços agrícolas como pelos urbanos escolhidos para receber os
mais sólidos investimentos privados, formando os focos dinâmicos da economia agrária,
ou seja, são áreas de difusão de vários ramos do agronegócio, palco de circuitos superiores
do agronegócio globalizado.
As RPAs compõem lugares propícios ao exercício dos capitais hegemônicos porquanto apresentam muitas novas possibilidades para a acumulação ampliada no setor, cada vez
menos resistente às ingerências exógenas e aos novos signos do período histórico atual.
Nas RPAs estão partes dos circuitos espaciais da produção e círculos de cooperação (Santos, 1988) de importantes commodities. Logo, encontram-se sob o comando de grandes
empresas, nacionais e multinacionais, as mesmas que estão à frente das redes agroindustriais globalizadas, representando lugares funcionais dessas.
Como o agronegócio globalizado se realiza totalmente a partir da dialética entre a
ordem global e a ordem local, as RPAs estão conectadas diretamente aos centros de poder
e consumo em nível mundial e, assim, as escalas locais e regionais articulam-se permanentemente com a internacional e o território organiza-se com base em imposições do mercado, comandado por grandes empresas nacionais e multinacionais. Isso significa que nas
RPAs temos novos espaços de fluxos rápidos inerentes às redes agroindustriais, nas quais
as verticalidades têm predominância sobre as horizontalidades.4 Mas, em contrapartida, as
horizontalidades são extremamente difundidas, como evidenciado pela expansão das atividades econômicas, pelo aumento da população e do mercado de trabalho, pela chegada
dos novos agentes econômicos representativos das atividades modernas etc.
Nas RPAs a solidariedade organizacional imposta pelas empresas hegemônicas do
agronegócio é preponderante sobre a solidariedade orgânica,5 localmente e historicamente tecida, que fica extremamente comprometida. Processa-se, dessa forma e em última
instância, a produção de territórios especializados e corporativos inerentes aos diversos
circuitos da economia agrária e agroindustrial, notadamente relacionados ao circuito
superior do agronegócio globalizado. Adaptando noções elaboradas por Milton Santos,
aqui no caso de pontos luminosos, diria que as RPAs são os pontos luminosos do espaço
agrário brasileiro.
Contudo, o fato de os circuitos superiores do agronegócio serem hegemônicos nas
RPAs não elimina a existência de superposições de divisões territoriais do trabalho particulares, responsáveis pela formação de vários circuitos da economia agrária, tais como os
formados a partir da agricultura camponesa não integrada ao agronegócio. O que nos dá
que as RPAs são também o lugar de conflitos de várias naturezas.
Diante das demandas da produção agropecuária globalizada, as RPAs compõem-se
tanto por modernos espaços agrícolas, extremamente racionalizados, quanto por espaços
urbanos não metropolitanos (especialmente cidades pequenas, mas também cidades de
porte médio). Esses formam nós, pontos ou manchas de redes agroindustriais e são perpassados pelos circuitos espaciais locais e regionais daquelas. Isso ocorre seja nos lugares
de reserva,6 inseridos mais recentemente à agropecuária globalizada, passíveis de serem
exemplificados, principalmente, a partir de casos nas Regiões Norte, Nordeste e CentroR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 3 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 1 1
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3 As redes agroindustriais
associam todas as atividades inerentes ao agronegócio, seja a agropecuária
propriamente dita, sejam
as atividades que antecedem essa produção e lhe
são fundamentais (pesquisa
agropecuária, produção de
máquinas agrícolas, sementes selecionadas, fertilizantes etc.), sejam as atividades
de transformação industrial
cuja matéria-prima provém
da atividade agropecuária,
seja de distribuição dos alimentos prontos etc.
4 Sobre verticalidades e
horizontalidades ver Santos
(1996).
5 Sobre solidariedades orgânica e organizacional ver
Santos (1996).
6 Mais comumente chamados de fronteira agrícola,
aos quais preferimos chamar
de lugares de reserva, baseando-nos na noção utilizada
por Santos (1993).
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Oeste, seja nas regiões agrícolas que há mais tempo participam do circuito superior da
economia agrária, fortemente concentradas nas Regiões Sudeste e Sul.
Entre os resultados da formação das RPAs, surge um aumento da dialética na organização do espaço brasileiro, denotando significativas fragmentações deste espaço, com
permanentes processos de (re)estruturação urbana e regional. Dessa maneira, a reestruturação produtiva da agropecuária tem profundos impactos sobre os espaços agrícolas e
urbanos não metropolitanos, ainda em processo acelerado de reorganização, compondo
novos arranjos territoriais fortemente alicerçados no agronegócio globalizado. Tal realidade acirra a refuncionalização desses arranjos e leva à difusão de especializações territoriais
produtivas, denotando-se inúmeras seletividades, seja da organização da produção, seja
da dinâmica dos respectivos espaços. Do mesmo modo, as RPAs são os novos espaços de
exclusão e de toda sorte de desigualdades socioespaciais.
É fundamental, nesse ponto, destacar o seguinte: as RPAs em nada lembram a forma
mais clássica inerente ao conceito de região, à forma como foi por longo período entendida e trabalhada pela Geografia. A RPA em nada lembra a categoria de região que foi
dominante na Geografia por longo tempo, ou seja, não se assemelha à categoria região
de fases históricas precedentes. Na noção clássica de região essa parecia dotada de certa
autonomia, independente das relações do país como um todo e com o sistema mundial,
assim como marcada por certa imobilidade dos fatores de produção, muito fechada em si
mesma. Tais características em nada lembram as RPAs.
Portanto, as RPAs devem ser estudadas como lugares funcionais de circuitos espaciais
da produção e círculos de cooperação da produção de importantes commodities, cada vez
menos resistente às ingerências exógenas e aos novos signos do período histórico atual,
comandado por algumas empresas hegemônicas do setor, tornando-se lugares do fazer do
agronegócio globalizado. Assim, na definição das RPAs, estamos longe daquela solidariedade orgânica que era o próprio cerne da definição do fenômeno regional.
As mencionadas regiões são frações do espaço total das redes agroindustriais globalizadas, cada vez mais abertas às influências exógenas e aos novos signos do período
atual. Existem porque sobre elas se impõem arranjos organizacionais, criadores de coesão
organizacional baseada em racionalidades de origens distantes, mas que se tornam o fundamento da existência e da definição desses subespaços. Diante disso, a RPA é resultado
do impacto das forças externas/modernizantes e a capacidade de suas virtualidades, lugar
funcional das redes agroindustriais globalizadas. Como objeto e sujeito da economia globalizada, é um espaço que nada mais tem de autônomo, não se fechando sobre si mesmo,
de forma independente do restante do mundo, com o qual interage permanentemente
para a renovação tecnológica, para a complementação da produção e, em última instância, para a acumulação ampliada do capital do agronegócio.
Como já evidenciei em outros momentos, com o advento da globalização, inúmeros pesquisadores têm afirmado que as características desse novo período histórico
apagaram o espaço e que a expansão do capital e da tecnologia teria eliminado as diferenciações regionais e, até mesmo, proibido se prosseguir pensando que a região existe.
Vou em sentido inverso a essa compreensão. Concordo com Santos (1994b; 1988),
para quem, muito ao contrário, nunca os lugares foram tão distintos uns dos outros,
porquanto, o tempo acelerado, ao acentuar a diferenciação dos eventos, aumenta a diferenciação dos lugares.
Diria, então, que as RPAs ajudam a pensar sobre essas questões, pois também
apresentam muitas diferenças entre si, sobretudo porque cada commodity possui suas
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próprias exigências de insumos químicos, serviços, força de trabalho, tecnologia, capital,
maquinário etc. o que resulta em arranjos territoriais produtivos distintos. Por exemplo,
nas RPAs comandadas pela produção e transformação da soja, o mercado de trabalho
agrícola formal não tem o mesmo crescimento das RPAs comandadas pela produção de
frutas tropicais: a primeira tem seu processo produtivo quase totalmente mecanizado, a
segunda demanda maior quantidade de mão de obra, especialmente em alguns momentos
do processo de produção.
Delimitação das RPAs
Para chegar à delimitação espacial precisa de uma RPA é necessário cuidado, até
porque, em fase da dinâmica dos processos adjacentes, essa delimitação sofre mudanças permanentemente. Mesmo que assim não fosse, é sempre difícil, no início de uma
pesquisa sobre as RPAs, saber exatamente quais os limites a serem considerados para ela,
até porque só os estudos e pesquisas sobre as regiões é que efetivamente mostrarão seu
desenho preciso. Nesse ponto, destaco: a configuração das RPAs não respeita os limites
político-administrativos oficiais e, assim, é bastante comum uma mesma RPA ser formada
por municípios de diferentes Estados. Algumas dessas delimitações, muito embora não
existam oficialmente, são reconhecidas pelas populações locais e empresas atuantes nas
respectivas áreas.
Como exemplo desse processo, mencionamos uma pesquisa desenvolvida na Região
Nordeste, relacionada ao estudo das áreas de difusão do agronegócio de soja e de fruticultura tropical. Essa pesquisa nos levou à conclusão de estarmos lidando com três principais RPAs. Uma composta, grosso modo, pelas microrregiões do Baixo Jaguaribe (CE),
Mossoró e Vale do Açu (ambas no RN),7 destaca-se pela produção de frutas tropicais,
especialmente melão, banana e abacaxi, tem seu espaço comandado a partir de Mossoró,
cidade de porte médio, a segunda mais importante do Estado do Rio Grande do Norte; 8
uma segunda RPA formada pelas microrregiões de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE) , nacionalmente conhecida por ser um dos primeiros vales úmidos do Nordeste ocupado pela produção intensiva de frutas tropicais, especialmente uva, é uma região comandada a partir da
cidade de Petrolina; uma terceira Região Produtiva Agrícola composta pelas microrregiões
com destacada produção de soja, Alto Parnaíba Piauiense (PI), Barreiras (BA) e Gerais
de Balsas (MA), comandadas, especialmente, por Barreiras, uma cidade de porte médio.9
Naturalmente, as RPAs abarcam somente uma parte dos circuitos espaciais da produção e dos círculos de cooperação, os circuitos locais e regionais. Os demais só podem
ser visualizados ao se considerar todas as etapas do processo produtivo da commodity a ser
estudada, pois muitos deles não se dão na RPA ou mesmo no país. Basta lembrarmos, por
exemplo, que a maior parte das commodities tem como destino o mercado internacional.
Portanto, as RPAs são um lugar funcional do agronegócio globalizado, meras regiões do
fazer,10 com pouquíssima ou nenhuma ingerência efetiva sobre as respectivas produções
agrícolas e agroindustriais nelas ocorridas.
Processos Inerentes à Difusão do Agronegócio
São muitos os processos associados ao rearranjo do território nas áreas de difusão do
agronegócio globalizado. Elencá-los é fundamental para a tarefa de melhor compreender
a ocorrência do fenômeno principal em foco. Cito alguns dos mais importantes: a intensa
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7 As microrregiões do IBGE
não compõem, necessariamente, a melhor forma de
delimitação das RPAs. Mas
são, indubitavelmente, um
bom começo para os estudos com tal objetivo. Uma
referência também importante para iniciar uma pesquisa sobre uma RPA são os
estudos da Regic, do IBGE
(1993, 2009).
8 Sobre a cidade de Mossoró e sua respectiva região de
influência de maneira geral,
assim como sobre os papéis
desempenhados por Mossoró inerentes ao consumo
produtivo agrícola ver Elias e
Pequeno (2010).
9 Somadas a terras em
Tocantins, comporia o que
alguns vêm chamando de
Mapitoba, região a qual abarcaria terras no Maranhão,
Piauí, Tocantins e Bahia. Sobre a referida pesquisa ver
Elias e Pequeno (2006).
10 Sobre regiões do fazer e
regiões do gerir ver Santos
(1996, 2000).
A G R O N E G Ó C I O
11 Em entrevistas durante
trabalho de campo no oeste
da Bahia e demais áreas dos
cerrados nordestinos, conforme mencionado, a terra
ficou muito cara e chegou a
aumentar até setenta vezes
desde a década de 1970
até meados da década de
2010. Da mesma forma, em
algumas áreas o processo
de regularização fundiária é
bem mais recente. Merecem
destaque as áreas do sul do
Maranhão e do Piauí, onde
a violência é a regra. No
tocante a estas áreas, as
narrativas quanto aos conflitos de terra e processos de
grilagem foram recorrentes.
E
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R E G I O N A L I Z A Ç Õ E S
substituição dos sistemas técnicos agrícolas, que passam a ter alta densidade de capital e
tecnologia; a significativa mudança das formas de uso e ocupação do espaço agrícola, com
forte substituição da produção de alimentos pela produção de commodities, com a implantação de monoculturas, substituindo vocações naturais pelas imposições econômicas,
difundindo especializações produtivas.
Os processos supracitados estão entre os que ajudam a evidenciar a refuncionalização do espaço agrícola, por meio do aumento da racionalização deste, uma vez que passa
a ter forte densidade técnica e normativa, e já evidencia outro processo também bastante
significativo associado, qual seja, o de destruição de saberes e fazeres historicamente construídos, porquanto, como a difusão do agronegócio não se dá sobre espaços desocupados,
inviabiliza a atividade para milhares de pequenos agricultores, que viviam da subsistência
ou da produção simples de mercadorias. Esses são expropriados ou expulsos, em grande
parte, gerando muitos conflitos sociais.
A partir desse ponto, podemos destacar os processos incluídos entre os mais devastadores da reestruturação produtiva da agropecuária e da organização das redes agroindustriais, qual seja, o acirramento da privatização do acesso à terra e à água, dois dos fatores
principais de produção para a agropecuária, não passíveis de serem reproduzidos ao livre
arbítrio do homem, como outros. Naturalmente, tal processo está vinculado à territorialização do grande capital e à monopolização do território.
Ainda hoje o baixo preço da terra é um dos fatores atrativos das novas Regiões Produtivas Agrícolas. Entretanto, a intensificação do valor de troca em detrimento do valor de uso
vem promovendo um crescimento geométrico do preço desta. Atualmente, embora tenha
se instalado uma nova dinâmica do mercado de terras no que considero sejam os pontos
luminosos do espaço agrário brasileiro, nos quais já se observa claramente a forte presença
de especuladores, brasileiros e estrangeiros, algumas dessas áreas ainda possuem preços mais
baixos do que as áreas onde a capitalização do campo é mais antiga e complexa.11
Esses processos levam ao aumento da concentração fundiária e êxodo rural, motivado
pela expulsão e expropriação de uma série de pequenos agricultores, de parceiros, posseiros
que não detinham a propriedade da terra. Imbricada a essa realidade, há a significativa
mudança de parte das relações sociais de produção, com o incremento da formação de
um mercado de trabalho agrícola formal, em parte composto por pequenos agricultores
expulsos ou expropriados pela difusão do agronegócio. Dessa forma, parcela expressiva das
relações de trabalho no espaço agrícola nas RPAs é dominada por relações assalariadas.
Ao mesmo tempo, observam-se movimentos migratórios descendentes (da cidade
maior para a cidade menor) advindos de profissionais especializados para o agronegócio.
Observa-se, também, o aumento da divisão social e territorial do trabalho agropecuário.
Outro processo bastante expressivo para compreendermos a organização das RPAs
associa-se ao incremento das trocas verificadas entre os diferentes ramos do agronegócio e
os demais setores da economia. Isso acontece pelo fato de o agronegócio globalizado não se
dar sem uma série de diferentes insumos e implementos, assim como de inúmeros serviços
especializados. Igualmente, as relações com o setor industrial são bastante incrementadas,
seja porque esses fornecem uma série de máquinas e insumos demandados pela agropecuária,
seja porque os frutos dessa atividade sofrem, em grande parte, algum processamento industrial, com vistas à produção de mercadorias padronizadas, com objetivo de agregar valor.
Alguns outros processos serão ressaltados nas seções a seguir, tais como o da intensificação de novas relações campo-cidade; do aumento da urbanização; da reestruturação
urbana e regional.
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NOVAS RELAÇÕES CAMPO-CIDADE E
(RE)ESTRUTURAÇÃO URBANA E REGIONAL
A reestruturação produtiva da agropecuária cria demandas até então inexistentes nas
áreas de difusão do agronegócio. Tais demandas incrementam o crescimento de uma série
de atividades comerciais e de serviços especializados. Dessa forma, a difusão do agronegócio não apenas amplia e reorganiza a produção material (agropecuária e industrial), como
é determinante para a expansão quantitativa e qualitativa do comércio e dos serviços, especialmente dos ramos associados ao circuito superior da economia agrária. O crescimento
do terciário se deve ainda ao crescimento da população e à revolução do consumo, este
último erigido sob os auspícios do consumo de massa associado à existência individual e
das famílias.
Assim, a produção agrícola e agroindustrial intensiva exige que os espaços urbanos
próximos ao espaço agrícola racionalizado se adaptem para atender às suas principais
demandas, em virtude de fornecerem parte dos aportes técnicos, financeiros, jurídicos, de
mão de obra e de todos os demais produtos e serviços necessários à sua realização.
Nesse âmbito, citaria as casas de comércio de implementos agrícolas, sementes, grãos
e fertilizantes; os escritórios de marketing e de consultoria contábil; os centros de pesquisa
biotecnológica; as empresas de assistência técnica e de transportes de cargas; os serviços de
especialista em engenharia genética, veterinária, administração, meteorologia, agronomia,
economia, administração pública; os cursos técnicos de nível médio e os cursos superiores
voltados ao agronegócio, entre tantas outras atividades.
Conforme evidenciado, os espaços urbanos próximos às áreas de difusão do agronegócio passam a ter novas funções inerentes às demandas desse. Essas podem ser observadas
pela expansão do consumo produtivo agrícola (Santos, 1988; Elias, 2003a, b), aquele
associado diretamente às demandas da produção. Como resultado, temos o crescimento
da economia urbana, a revelar que os circuitos espaciais da produção e os círculos de cooperação do agronegócio se realizam totalmente em uníssono com o espaço urbano. Isso
denota que a materialização das condições gerais de reprodução do capital do agronegócio
também se dá no espaço urbano, próximo e distante (Elias, 2006a, b, c, d). Dessa forma,
os espaços urbanos das RPAs passam a se constituir como nós fundamentais na rede de
relações desse agronegócio, seja em termos demográficos, econômicos ou espaciais.12
Em virtude de cada commodity ter diferentes demandas de produtos e serviços, esses
espaços urbanos são cada vez mais especializados. O consumo produtivo do agronegócio
ressalta demandas heterogêneas segundo as necessidades de produção (agrícola ou agroindustrial) de cada produto, nas diferentes etapas do processo produtivo, diferenciando,
muitas vezes, os ramos dos comércios e dos serviços associados à expansão desse consumo.
Tal situação acontece, principalmente, porque o agronegócio tem o poder de impor especializações territoriais cada vez mais profundas e, assim, criar muitos novos fluxos, materiais e de informação, próximos ou não, cujos circuitos espaciais da produção e círculos
de cooperação buscam nexos distantes.
As diferentes especializações e funções exercidas por cada um desses espaços urbanos
não metropolitanos podem mais facilmente ser percebidas durante as diferentes etapas do
processo produtivo, como na safra e na entressafra. É no período de safra das principais
culturas que podemos distinguir com maior nitidez a especialização das áreas de difusão
do agronegócio. Esse é o momento mais dinâmico nas várias Regiões Produtivas Agrícolas, afetando todos os setores econômicos. Um exemplo marcante é o funcionamento
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12 Já realizamos alguns
estudos sobre o consumo
produtivo agrícola. Ver, por
exemplo, Elias (2003) e Elias
e Pequeno (2010).
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ininterrupto, durante vinte e quatro horas, de muitas das agroindústrias cuja manutenção
se dá apenas durante a entressafra. É também no período da colheita que aumenta o número de empregos agrícolas temporários, especialmente para a colheita das culturas nas
quais ainda não predomina a mecanização na realização desta etapa do processo produtivo, como a produção de frutas (uva, banana, melão, entre outras).
O incremento das relações entre os diferentes setores econômicos associados à organização das redes agroindustriais é um importante caminho para a compreensão de como
se processa uma série de novas relações entre o campo e a cidade. Quanto mais dinâmica
a reestruturação produtiva da agropecuária, quanto mais complexa a formação das redes
agroindustriais e quanto mais globalizados seus circuitos espaciais de produção e seus
círculos de cooperação, mais complexas se tornam as relações campo-cidade. Consequentemente, cria-se uma gama de novas relações sobre o território. Essas relações ajudam a
transformar radicalmente as clássicas relações campo-cidade e levam esses dois espaços a
emitir e a receber larga quantidade de fluxos de matéria e informação, de várias naturezas
e magnitudes. O resultado é uma total reorganização do território brasileiro, agrícola,
urbano e regional.
Nas RPAs a oposição clássica entre a cidade e o campo torna-se bastante relativizada
e a noção de complementaridade ganha mais força e importância. Tudo isso nos leva a
dizer que as próprias contradições do desenvolvimento do capitalismo estão soldando a
união contraditória que separou no início da sua expansão: a indústria e a agricultura, a
cidade e o campo.
Essas dinâmicas socioespaciais culminam, entre outros, em processos de (re)estruturação urbana e regional, com a organização de novos arranjos territoriais, entre os quais os
ora denominados de Regiões Produtivas Agrícolas. Em resumo: o agronegócio globalizado
exerce papel fundamental para a expansão da urbanização e para a reestruturação urbana
e regional, sendo a formação das RPAs um exemplo dessa reestruturação. É mesmo bastante visível no Brasil a existência de uma série de espaços urbanos não metropolitanos na
confluência do padrão agrário atual, ajudando a soldar as RPAs.
Conforme tenho defendido (Elias, 2003a, 2006a, b, c, d, 2007a, b, 2008, 2009a, b,
2010), é possível identificar no Brasil agrícola moderno, seja nos espaços de reserva, seja
nas áreas já há mais tempo inseridas na produção moderna, vários municípios cuja urbanização se deve diretamente à consecução e à expansão do agronegócio globalizado e cuja
função principal claramente se associa às demandas produtivas dos setores relacionados à
organização das redes agroindustriais.
Paralelamente à intensificação do capitalismo no campo com a difusão do agronegócio, processou-se um crescimento de áreas urbanizadas, porquanto, entre outras coisas,
a gestão da agropecuária moderna necessita da sociabilidade e dos espaços urbanos. Tal
fato colabora para o Brasil chegar ao século XXI com uma generalização do fenômeno
da urbanização da sociedade e do território. Assim, ao lado da metropolização, principal
característica da urbanização brasileira nas décadas de 1960 e 1970, Milton Santos (1993)
advertia para o fato de o Brasil ter passado por verdadeira revolução urbana, a partir da década de 1980, com a expansão do fenômeno da involução metropolitana, quando crescem
também as cidades médias e locais. Outros preferem usar os termos urbanização difusa,
urbanização extensiva, e outros, ainda, cidade difusa e urbanização dispersa.
Sem dúvida, o impacto de todas essas transformações técnicas, econômicas e sociais
na dinâmica populacional e na estrutura demográfica é intenso. Concomitantemente
a uma verdadeira revolução tecnológica da produção agropecuária e agroindustrial e às
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transformações nas relações de trabalho, ocorreu uma revolução demográfica e urbana,
marcada por grande crescimento populacional, particularmente nas cidades. Dessa forma, compreender como se processa a organização das RPAs contribui, também, para a
compreensão de algumas das mais marcantes características e tendências da urbanização
brasileira das últimas décadas.
Com a fluidez possível graças à construção dos sistemas de engenharia dos transportes e das comunicações que passam a se instalar nas áreas de difusão do agronegócio,
intensificam-se as trocas de várias naturezas, muitas delas antes não existentes, com
grandes impactos na vida social e no território, reformulando o sistema urbano antigo. A
expansão das redes agroindustriais não apenas repercutiu na estrutura técnica das suas respectivas atividades econômicas como causou profundos reflexos nas relações de trabalho,
transformando o conjunto de normas e padrões que as regulam. Como resultado, há uma
nova divisão social e territorial do trabalho, com consequências na estrutura demográfica
e do emprego, que também ajudam a melhor compreender o acelerado processo de urbanização, o qual se realiza sobre novas bases, e gera novas práticas socioespaciais.
Cada vez que o território brasileiro é reelaborado para atender à produção das redes
agroindustriais, novos fixos artificiais se sobrepõem à natureza, e, desse modo, amplia-se
a complexidade dos sistemas técnicos do espaço agrário. Diante disso, o território do
agronegócio globalizado torna-se cada vez mais rígido, mais rugoso, promovendo uma
urbanização corporativa (Santos, 1993; Elias, 2003a), empreendida sob o comando dos
interesses das holdings hegemônicas do sistema agroalimentar.
Tudo isso fez da (re)estruturação urbana e regional fenômeno bastante complexo,
dada a multiplicidade de variáveis que nela passam a interferir, como: a reestruturação
produtiva da agropecuária; a organização das redes agroindustriais; a crescente especialização dessas produções; o crescimento da produção não material seja associado ao consumo
produtivo do agronegócio ou ao consumo consultivo dos mais banais; o aumento da quantidade e da qualidade de trabalho intelectual associado ao agronegócio; o intenso processo
de êxodo rural; a existência do agrícola não rural (trabalhador agrícola que mora na cidade);
a migração descendente etc. É inviável, assim, considerar apenas as noções, conceitos e
categorias que até então davam conta das análises na Geografia de maneira geral e, especialmente, na Geografia Agrária, Econômica, Urbana ou Regional e Economia Espacial.
Cidades do Agronegócio
Uma das consequências da reestruturação produtiva da agropecuária no Brasil é o
processo acelerado de urbanização e crescimento urbano promovido, entre outras, pelas
novas relações entre o campo e a cidade, desencadeadas pelas novas necessidades de consumo produtivo (Santos, 1988) das redes agroindustriais, as quais crescem mais rapidamente
do que o consumo consultivo. Isso denota o que Santos (1988, 1993, 1994, 1996, 2000)
chamou de cidade do campo, noção que utilizei por cerca de uma década (Elias, 2003a,
b), embora, há alguns anos, a tenha substituído por cidade do agronegócio (Elias, 2006a,
b, c, d, 2007a, b, 2008, 2009a, b, 2010), visando uma possível consolidação conceitual
dessa ideia.
A utilização de tal noção vem causando algumas celeumas e precisa ser mais bem
compreendida e, principalmente, estudada e debatida. O que chamo de cidades do agronegócio seriam os espaços urbanos inseridos em RPAs nos quais se dá a gestão local ou
regional do agronegócio globalizado, que desempenham muitas novas funções urbanas,
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diretamente inerentes a esse. Transformam-se, então, em lugares de todas as formas de
cooperação erigidas pelo agronegócio e resultam em muitas novas territorialidades. Se,
como diz Carlos (2004), a cidade é a materialização das condições gerais de reprodução
do capital, a cidade do agronegócio é aquela cujas funções de atendimento às demandas do
agronegócio globalizado são hegemônicas sobre as demais funções, assim como de resto
ocorre nas RPAs nas quais estão inseridas. Nessas, é nítida a dependência da economia
urbana de alguma importante produção agrícola e/ou de sua transformação industrial.
Diria que a cidade do agronegócio é uma nova tipologia de cidade. Essa seria mais
perceptível especialmente nos lugares de reserva recentemente inseridos à produção e ao
consumo modernos, nos quais se realiza uma gama complexa de fluxos associados ao circuito superior da economia agrária. Seriam cidades em regiões agrárias que vêm enriquecendo, que conhecem uma dinâmica econômica recente que gera nova riqueza. A cidade
do agronegócio polariza amplo espaço agrário dinâmico, é um centro urbano que organiza
esse espaço. Em outras palavras, a cidade do agronegócio está inserida em Regiões Produtivas Agrícolas na confluência do agrário moderno com espaços urbanos não metropolitanos, e configura um lugar central de uma Região Produtiva Agrícola, parte integrante das
redes agroindustriais, reflexo, meio e condição para o funcionamento dessas.
A especialização da cidade pode ser captada mediante a leitura de suas funções
urbanas. Dado que as cidades do agronegócio apresentam uma especialização funcional,
não basta a cidade estar inserida em uma RPA para poder ser classificada como uma
cidade do agronegócio. O que a caracterizaria e a distinguiria de outro espaço urbano
seria justamente uma hegemonia das funções inerentes às redes agroindustriais sobre as
demais funções urbanas.
É possível identificar várias cidades, em diferentes partes do país, cuja existência,
crescimento econômico e aumento da urbanização se devem diretamente à consecução
do agronegócio globalizado: Luis Eduardo Magalhães (BA), Balsas (MA), Uruçuí (PI),
Sorriso, Lucas do Rio Verde, Rondonópolis, Primavera do Leste (MT), Dourados (MS),
Rio Verde (GO), Limoeiro do Norte (CE), Açu (RN), Petrolina (PE) e Juazeiro (BA),
entre outras.
Algumas cidades que poderiam ser classificadas como do agronegócio são cidades
refuncionalizadas com a difusão das redes agroindustriais. Mas outras se compõem de
núcleos urbanos recentes. Entre esses últimos, alguns exemplos poderiam ser dados. Citaria a cidade de Luis Eduardo Magalhães, sede de município criado no ano de 2.000, a
partir de desmembramento de Barreiras, conhecido como a capital do oeste baiano. Esse
principal centro urbano dos cerrados nordestinos foi o primeiro a despontar com sua
economia atrelada ao agronegócio da soja nesse bioma.
Luis Eduardo Magalhães é um dos lugares de reserva recentemente tomado pelas
grandes empresas associadas às redes agroindustriais hegemônicas do complexo carnesgrãos (especialmente a multinacional Bunge Fertilizantes e Bunge Alimentos, instaladas
na década de 1980).
Estudos realizados sobre a expansão da produção de grãos (principalmente soja,
algodão e café) nos cerrados nordestinos, faz-me arriscar a dizer que o desmembramento
de Luis Eduardo Magalhães, a cerca de mil quilômetros de Salvador, já é resultado da
luta política desencadeada pelos grupos hegemônicos, reunindo capitais extra locais (pessoa jurídica e pessoa física), que se associam para buscar consolidar o próprio território,
independente de outras forças políticas e econômicas locais, consideradas conservadoras
pelos primeiros.
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Um visitante desavisado vai se surpreender ao chegar à cidade e se deparar com as
grandes lojas de tratores, colheitadeiras, insumos químicos etc. que se perfilam pela entrada principal de Luis Eduardo Magalhães. O espanto continua quando, logo em seguida, o
visitante se depara com as plantas industriais da Bunge, com seus portentosos silos, dentro
do perímetro urbano da cidade, junto à área residencial.
A dinâmica populacional de Luis Eduardo serve de exemplo para seu dinamismo
econômico, uma vez que o ritmo de seu crescimento populacional supera de longe a
média nacional: seu contingente populacional somava cerca de 10 mil habitantes no ano
de 2000, atingiu os cerca de 40 mil quatro anos mais tarde, e soma pouco mais de 50 mil
nos dias atuais, cerca de dez anos após sua emancipação.
Outro exemplo da especialização funcional dessa cidade é que a mesma é uma das
quatro cidades que recebem a Agrishow,13 Feira Internacional de Tecnologia Agrícola em
Ação, um dos principais signos de feira comercial inerente ao agronegócio, sem dúvida
uma das principais vitrines do que há de mais moderno para ser utilizado em toda a cadeia
produtiva no agronegócio. A primeira versão local da feira ocorreu em 2004.
Para uma cidade do agronegócio, a mais importante característica é a especialização
funcional. Por vezes, uma cidade que, inicialmente, pudesse ser classificada como do
agronegócio, aumenta seu papel multifuncional com o crescimento, o que naturalmente
faz com que a mesma perca uma das características principais das cidades do agronegócio.
Isso não significa obrigatoriamente que o agronegócio deixe de ter importância econômica
de determinada cidade ou Região Produtiva Agrícola, mas que outras atividades passam a
ser determinantes estabelecendo-se novas dinâmicas socioeconômicas.
13 As outras são Ribeirão
Preto (SP), onde se iniciou
a feira e onde ela apresenta
versão de maior dinamismo;
Rio Verde (GO) e Rondonópolis (MT).
PENSANDO A OPERACIONALIZAÇÃO DA
PESQUISA SOBRE AS RPAS
Como estratégia de ação, com vistas ao desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre
as Regiões Produtivas Agrícolas, é fundamental selecionarmos alguns grupos de variáveis
representativas para a realidade a ser estudada, tomando em conta o papel destas para a
compreensão da produção das mencionadas regiões. As ideias arroladas nesta seção resultam de um esforço empreendido no intuito de aperfeiçoar a metodologia para o estudo
das áreas de organização das redes agroindustriais.14
Conforme entendo, a compreensão do âmago da produção do território das RPAs
passa, necessariamente, pelo conhecimento empírico dos processos emergentes apresentados nas seções anteriores, da mesma forma que o contato direto com a realidade pesquisada contribui, indubitavelmente, para uma construção teórica mais consistente.
Nesse momento surge um ponto de inflexão importante. Se a revisão bibliográfica é
tarefa difícil, o estudo do objeto a partir dessa é bem mais complexo, exige do pesquisador
ou candidato a sê-lo, competência para operacionalizar a pesquisa, transpor a teoria para
a prática, reconstruir o todo a partir do objeto.
No caso presente, a quantidade e complexidade dos campos teóricos exigidos para o
estudo das RPAs, como já citado na introdução, é um agravante. O problema de conhecer
e definir Regiões Produtivas Agrícolas é o de saber o que são hoje; como evolui a liga
regional produtiva ao longo do tempo; os abalos a essa liga regional, como resultado de
processos produtivos novos e, finalmente, os novos arranjos territoriais resultantes. Nesse
sentido, para apreender a realidade das RPAs teremos, necessariamente, de reconhecer o
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14 Esta tarefa vem sendo
particularmente implementada desde as pesquisas associadas à minha tese de
doutorado e incrementada
nos últimos anos.
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processo produtivo inerente às redes agroindustriais em sua evolução; o funcionamento
da economia em nível mundial e seu rebatimento na formação econômica e social brasileira, com a devida compreensão da intermediação do Estado e do conjunto de agentes
econômicos hegemônicos.
A chegada de novos agentes econômicos associados às redes agroindustriais, muitas
vezes grupos de capital multinacional, requer a ampliação e modernização das infraestruturas e equipamentos que darão suporte ao desenvolvimento das atividades e ampliarão
a fluidez espacial, no campo e na cidade, expandindo as redes de relações nas quais se
inserem as modernas regiões agrícolas.
Há uma série de variáveis que são interdependentes e que devem fazer parte das preocupações para estudar as RPAs, porém foram privilegiados os aspectos que refletem mais
fortemente as condições da modernidade atual, aqui entendida como “[...] os processos e
situações sociais que incorporem ou mostrem tendência a introduzir algo de novo, isto é,
a inovar” (Sánchez, 1993, p.293).
A escolha de conduzir as análises tendo como pressupostos os temas e processos já
citados nas seções anteriores somados às variáveis reunidas segundo eixos de operacionalização da pesquisa, a seguir mencionados, propiciarão: conhecer as dinâmicas de uso e
ocupação do espaço agrícola; as dinâmicas de estruturação urbana dos espaços urbanos
nelas inseridas e, ao mesmo tempo, compará-las entre si; avaliar os níveis diferentes de
determinações decorrentes da atuação de novos agentes econômicos inerentes às redes
agroindustriais; elaborar o pensamento com base não apenas em recortes territoriais,
mas também a partir das articulações de diferentes unidades espaciais (escala geográfica),
verificando os fluxos que articulam as RPAs, seja nos espaços agrícolas, seja nos espaços
urbanos não metropolitanos. Dessa forma, devem ser levantados também dados relativos
à presença ou não das infraestruturas e equipamentos associados às redes agroindustrias
nas cidades e no campo, assim como dados sobre a dinâmica populacional e o mercado
de trabalho etc.
Não será possível aqui abordar em profundidade todas as questões inerentes à metodologia. Privilegiarei a apresentação dos eixos que sirvam para operacionalizar a pesquisa
sobre uma RPA.
Parece-me importante, como norte metodológico, a escolha de variáveis com as
quais seja possível reconhecer a especificidade atual da racionalização do espaço agrícola,
das relações campo-cidade e a produção dos espaços urbanos não metropolitanos, assim
como a reestruturação regional. Como estratégia de ação, julgo adequado agrupar algumas
variáveis imprescindíveis para análise, segundo eixos, quais sejam: Eixo 1 – uso e ocupação
do espaço agrário; Eixo 2 – ramos industriais representativos das redes agroindustriais;
Eixo 3 – economia urbana; Eixo 4 – mercado de trabalho e dinâmica populacional; Eixo
5 – infraestrutura e equipamentos urbanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o exposto, a partir das RPAs teríamos um recorte espacial para análise
de algumas das mudanças ocorridas no território brasileiro, aumentando nossa capacidade
de interpretar e de reconhecer os recortes atuais para melhor reconhecer o território. Uma
vez que a globalização só se realiza com a fragmentação do território, a RPA ganha força
como uma das possibilidades para percepção de tais processos.
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Estudar a Região Produtiva Agrícola significa, diante do citado, a possibilidade de
apreender o conjunto das relações fundamentais que lhes dão os contornos duradouros em
sua gênese e desenvolvimento, lembrando, porém: a outra “cara” do processo de análise é
um processo de síntese, sendo essa “a visão de conjunto que permite ao homem descobrir
a estrutura significativa da realidade com que se defronta, em uma situação dada. E é essa
estrutura significativa que a visão de conjunto proporciona que é chamada de totalidade”
(Konder, 1982, p.37).
Quando da eclosão do atual sistema temporal, que tem na globalização uma das
suas principais marcas (Santos, 2000; Ianni, 1996; Hirst e Thompson, 1998), os espaços
agrícolas se mostravam extremamente abertos à expansão dos sistemas de objetos e dos
sistemas de ação (Santos, 1996) característicos do período. Portanto, os espaços agrários
também se mecanizam e, onde a atividade agropecuária se dá baseada na utilização intensiva de capital, tecnologia e informação, principais forças produtivas do presente período
histórico, é visível a expansão do meio técnico-científico-informacional (Santos, 1985,
1993, 1996, 2000), com o incremento da urbanização, do número e do tamanho das cidades e a organização de Regiões Produtivas Agrícolas. Com a aceleração contemporânea
(Santos, 1996) ou compressão tempo-espaço (Harvey, 1996), o campo apresentava-se
como um espaço com menos rugosidades (Santos, 1985), possuidor de uma flexibilidade
muito superior à apresentada pelas cidades e, assim sendo, como um lócus preferencial de
expansão dos capitais industriais e financeiros.
Com a expansão dos sistemas de objetos voltados a dotar o território de fluidez
para os investimentos produtivos, os fatores locacionais clássicos são redimensionados.
Ocorre, assim, uma verdadeira dispersão espacial da produção, acirrando a divisão social
e territorial do trabalho e as trocas intersetoriais, a resultar em diferentes arranjos territoriais produtivos agrícolas, entre os quais as Regiões Produtivas Agrícolas em todo o
país, compostas também por espaços urbanos, especialmente cidades locais e mesmo por
cidades de porte médio.
Várias áreas foram plenamente incorporadas à produção, transformação e às trocas
globalizadas de produtos agropecuários industrializados, ocupando um lugar privilegiado
dentro da nova divisão do trabalho agropecuário e agroindustrial do Brasil, compondo nós
ou manchas de modernas redes agroindustriais.
Podemos concluir ser impossível continuar simplesmente dividindo o Brasil entre
urbano e rural. Os antigos esquemas adotados para classificar sua rede urbana, as divisões
regionais encontram-se, em parte, ultrapassados. Requerem, portanto, urgente revisão
capaz de dar conta da complexidade e da dinâmica da realidade atual. Uma das vias para
essa revisão é, indubitavelmente, a compreensão de como se processa a (re)produção das
Regiões Produtivas Agrícolas. Essas são formadas seja por espaços agrícolas altamente
racionalizados, seja por espaços urbanos não metropolitanos, cidades de porte médio e
cidades menores. Avançar na compreensão das novas dinâmicas socioespaciais promovidas
com a reestruturação produtiva da agropecuária encontra-se no âmago de qualquer análise destinada a melhor compreender as tendências da urbanização brasileira, das últimas
quatro décadas de forma especial.
Compreender toda sorte de fluxos implicados nas RPAs, notadamente por meio
das categorias de análise basilares representadas pelos circuitos espaciais de produção e
dos círculos de cooperação, sobretudo os associados ao circuito superior da economia do
agronegócio globalizado, é um exercício de análise. Tal exercício permite, de um lado,
a síntese das estratégias de ação e processos inerentes às principais empresas associadas
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Denise Elias é professora
adjunta do Programa de Pós
Graduação em Geografia da
UECE; coordenadora do
grupo de pesquisa Globalização, Agricultura e Urbanização (GLOBAU); membro
da Rede de Pesquisadores
sobre Cidades Médias (ReCiMe); pesquisadora do
CNPq. Email: deniselias@
uol.com.br
Ar­ti­go re­ce­bi­do em setembro de 2011 e apro­va­do
pa­ra pu­bli­ca­ção em outubro
de 2011.
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aos conglomerados atuantes no agronegócio e, de outro lado, a dinâmica do território
resultante dessas estratégias, ou seja, das novas especializações territoriais produtivas, evidenciando como se processam as dinâmicas territoriais inerentes ao setor. Logo, o estudo
das Regiões Produtivas Agrícolas compõe um dos caminhos possíveis de interpretação da
produção do espaço de numerosas áreas do território brasileiro que têm em seu âmago a
difusão do agronegócio e a organização das redes agroindustriais.
Como um dos objetivos maiores do presente texto é promover o debate do seu
conteúdo e, especialmente, aperfeiçoar os caminhos possíveis para o estudo do território
brasileiro do presente, em particular nas áreas de expansão das redes agroindustriais, ouso
afirmar que a noção de Região Produtiva Agrícola compõe, um dos caminhos de conhecimento e interpretação da sociedade e do território brasileiros atuais.
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A b s t r a c t The changes in the agricultural activity in the last five decades
have profound impacts on the (re) organization of the Brazilian territory, resulting in new
territorial arrangements. Among them, we highlight those related to agribusiness globalized
areas chosen to receive the most significant productive investments in the sector, that represent
its most competitive areas, which we are calling Productive Agricultural Regions (RPA). The
main objectives of this paper are: to discuss the concept of Productive Agricultural Region
(RPA); to present evidences for the identification and characterization of the mentioned region;
to improve the analytical path that has been trodden in the context of geographic studies, in
order to consolidate this conceptual idea.
Keywords
Agribusiness; disperse urbanization; urban and regional
restructuring.
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Resenhas
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CAPITALISMO GLOBALIZADO
E RECURSOS TERRITORIAIS:
FRONTEIRAS DA
ACUMULAÇÃO NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
A. W. B. Almeida, A. Zhouri, A. A. R. Ioris, C. Brandão, C. Bermann, F. M. Hernández, G. N. Bezerra, H.
Acselrad, J. A. Paula, K. Laschefski, M. C. N. Coelho,
M. A. Monteiro, L. F. N. Garzon, L. H. Cunha e L.
J. Wanderley
Rio de Janeiro: Lamparina, 2010
Humberto Miranda do Nascimento
Professor do Instituto de Economia
e coordenador do CEDE – Centro de Estudos do
Desenvolvimento Econômico da Unicamp
O livro conta com a participação de autores
vinculados a cinco grupos de pesquisa brasileiros dedicados ao estudo e à geração de conhecimento aplicado
sobre a relação capitalismo e território, desdobrando-a
em nove temas que vão desde o amparo teórico necessário e permanente da crítica ao capital, como também
aos novos desafios políticos colocados à sociedade pelas
frentes de expansão do capital vis-à-vis aos crescentes
conflitos pelo território. Os pesquisadores do EtternUFRJ, do Gesta-UFMG, do Gapta-UFRJ, do NesurUnicamp e do PNCSA-UEA/UFAM proporcionam,
assim, ao leitor uma visão crítica enriquecedora do
debate acadêmico.
No primeiro tema, Crise econômica e reiteração
do capitalismo dependente no Brasil, de João Antônio
de Almeida, a crise econômica atual é discutida à luz
do enfoque estruturalista, chamando atenção para a
distinção entre aquilo que chama de “crise financeira
neoliberal” e a crise mais geral do capitalismo, uma
“crise sistêmica, mundial e de hegemonia”. Trata-se
da distinção entre seus elementos conjunturais e mais
estruturais. Nesse sentido, o autor, além de retomar o
que foi a crise de 1930 até o neoliberalismo, volta-se ao
cenário da crise de 2007-2008 buscando entender as
razões que reforçam o capitalismo dependente.
Acumulação primitiva permanente e desenvolvimento capitalista no Brasil contemporâneo, de Carlos
Brandão, é o segundo tema e traz relevante discussão
a respeito do caráter expropriador-(re)apropriador de
recursos territoriais no capitalismo brasileiro. Apresenta uma fecunda fusão de perspectivas teóricas críticas
oriundas de autores fundamentais do marxismo (Marx,
Lênin e Luxemburgo), passando por autores como David Harvey e Roman Rosdolsky e contextualizando a
abordagem brasileira a partir de Wilson Cano, Conceição Tavares, Chico de Oliveira, Lúcio Kowarick, entre
outros, retomando e sofisticando o conceito de acumulação primitiva, agora, permanente. Vai chamar a
atenção para “a lógica econômica da valorização fácil e
rápida... de natureza imediatista, rentista e patrimonialista” (p.49) que se estabelece na “estrutura genética”
do capitalismo no Brasil ao articular as várias frações do
capital, nacional e internacional, que operam (sobre) a
“plataforma territorial-econômica” do país. Através da
lógica mercantil, rentista, parasitária e financeira forjase o descompromisso com o projeto nacional de desenvolvimento, gerando/gerindo verdadeiras “máquinas
de produção de múltiplas desigualdades”.
No terceiro tema, Financiamento público ao desenvolvimento: enclave político e enclaves econômicos, de Luis
Fernando Novoa Garzon, o autor analisa o papel do financiamento público dos investimentos em infraestrutura no Brasil nos últimos anos, chamando a atenção
para um importante agente, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. Aqui, o
autor destaca o project finance do banco, amparado pela
Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei 11.196/2005),
como instrumento central para viabilizar as garantias
oferecidas. A observação importante está no fato de o
Estado passar a negociar com o setor privado não mais
por meio de vetores econômicos equivalentes e socialmente convalidados, mas tornando-se mero canal de
negociação privada, impermeável às demandas sociais.
O capital privado encontra, assim, um subsidiador
franco da drenagem da base de recursos naturais do
país, arrastando consigo uma sociobiodiversidade (portadora de valores de uso) que deveria servir de potencial
de desenvolvimento das populações tradicionais, para
commoditizar o território e seus frutos (criando valores
de troca). Além de descrever a mudança na forma de
atuação do banco, dentro daquilo que chama de “etapa
superior do capitalismo brasileiro”, nas reflexões sobre
o papel do BNDES, o autor sintetiza de forma pertinente na expressão “O BNDES que temos e o país que
não temos” aquilo que deveria ser o verdadeiro papel
do banco público de investimento, o seu “S” , especial-
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mente no que se refere à garantia de investimento em
infraestrutura social (urbana e rural).
Em Agroestratégias de desterritorialização: direitos
territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios, de Alfredo Wagner Berno de Almeida, o quarto
tema, discutem-se as estratégias do agronegócio nos
territórios que constituem suas fronteiras de expansão,
a expensas do direito ao território das populações tradicionais. As agroestratégias, apoiadas pelas agências
multilaterais (Bird, FMI e OMC), são conduzidas no
Brasil pelos blocos ruralistas, suas entidades (CNA) e
representantes no parlamento, para influenciar as políticas governamentais e capturar dos planos, programas
e projetos. O ataque frontal à legislação ambiental, à
demarcação do território quilombola e indígena e ao
processo de titulação definitiva de suas terras deve-se à
redefinição do mercado de terras (a terra e seus recursos), o que remete às formas de remercantilização do
espaço agrário/rural que comandam tais agroestratégias.
No quinto, A expansão da fronteira de expansão
petrolífera: consequências sobre territórios e populações
e populações tradicionais, de Francisco Del Moral
Hernández e Clélio Bermann, a questão do petróleo
é abordada dentro da perspectiva de integração da
infraestrutura física sul-americana, especialmente a
partir do eixo amazônico da Iniciativa para a Integração da Infraestrutra Regional Sul-Americana – IRSA. A
possibilidade de exploração de petróleo em território
amazônico e da construção de gasoduto da Venezuela
ao sul do continente é o foco de análise. A questão
explorada pelos autores é como os novos interesses do
capital na região amazônica continental podem revelar
e aprofundar os conflitos de uso-ocupação do espaço,
relacionados aos interesses das populações tradicionais.
Após uma contextualização histórica dos conflitos em
torno dos interesses petrolíferos no mundo, passando
pela formação da indústria de petróleo no Brasil, o
autor volta-se ao caso do petróleo na Amazônia e os
gasodutos Urucu-Porto Velho e Coari-Manaus. É importante destacar, além da exploração hidrelétrica e mineral, a constituição de mais uma fronteira de expansão
do capital, a da exploração da Amazônia petrolífera,
dentro do contexto de integração sul-americana.
Encontramos no sexto tema, Desregulação, deslocalização e conflito ambiental: considerações sobre o
controle das demandas sociais, de Henri Acserald e Gustavo das Neves Bezerra, a investigação das demandas
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sociais sob a óptica de sua (in)capacidade de resistir
à nova mobilidade do capital no espaço. Os autores
utilizam o conceito de “acumulação por espoliação”,
de David Harvey, para chamar a atenção para a ação
dos “portadores do poder de investir” que “recebem”
a custo zero ou baixo um conjunto de ativos presentes
no território (mão de obra farta, recursos genéticos,
bens públicos, bens culturais etc.) para fins lucrativos.
A acumulação por espoliação libera tais recursos cumprindo a mesma função que a acumulação primitiva
cumpria na óptica de Marx. O artigo, entretanto, tem
a virtude de apresentar um conceito mediador chave, o
de chantagem de localização/deslocalização, como uma
nova etapa do capitalismo através da qual se exprime
a maneira pela qual os grandes investimentos funcionam como “quase sujeitos” das políticas de regulação
do território, sujeitando a população local ao que os
autores chamam “alternativas infernais”: ou ela aceita
docilmente os imperativos do progresso ou sofre a ameaça de ser preterida por outra população ou localidade.
A população tenderia a submeter-se à “chantagem”
por ter um poder de barganha restringido pelas condições econômico-sociais débeis em que vive, ficando,
assim, cada vez mais sujeita aos riscos socioambientais
dos empreendimentos. Estaria em vigor, segundo os
autores, uma “divisão socioespacial da degradação
ambiental” reduzindo o potencial socioprodutivo de
várias comunidades e, consequentemente, o bem-estar
socioambiental das mesmas. O próprio poder público
estaria legitimando a atração locacional chantagista de
investimentos oferecendo uma série de benefícios, seja
em recursos físicos ou fiscais, e estimulando inclusive
uma “guerra predatória regional”. Os autores descrevem algumas evidências empíricas da chantagem de
localização/deslocalização para o caso brasileiro e o da
fronteira de investimentos siderúrgicos na fronteira
Brasil-Bolívia. A questão central, portanto, é qual de
fato o poder dos atores locais (ribeirinhos, quilombolas, indígenas, camponeses...) de resistir à chantagem
locacional dos investimentos? Recusar ou consentir?
Em seguida, no sétimo tema apresentado, Da foz
às nascentes: análise histórica e apropriação econômica dos
recursos hídricos no Brasil, de Antonio Augusto Rossotto Ioris, o autor traça um quadro histórico-evolutivo da
apropriação econômica dos recursos hídricos no Brasil,
chamando a atenção para o uso direto e indireto da
água como mecanismo de acumulação. Seu mote é a
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relação entre a questão da água e o desenvolvimento
nacional. Separa a discussão em duas fases históricas,
a desenvolvimentista (anterior) e a neoliberal (mais
recente). A diferença básica entre as duas fases, segundo
o autor, é que, na primeira, a água foi utilizada como
fonte indireta de acumulação (matéria-prima) e, na
segunda, como fonte indireta (insumo) e direta, considerando também que a própria gestão da água torna-se
objeto de transação econômica. A abordagem chama a
atenção, no fundo, para as formas de apropriação dos
recursos hídricos que aprofundam o caráter desigual e
excludente do desenvolvimento, especialmente quando
convivemos com crescentes problemas de uso das águas
urbanas e rurais, o precário enfrentamento das enchentes nas cidades e ao mesmo tempo o incentivo ao uso/
acesso privado das melhores fontes levando à produção
permanente de escassez para fins de suprimento da coletividade, além da própria degradação a que as águas
são submetidas pelo modo mais extensivo/intensivo
como se dá a apropriação/expropriação capitalista deste
recurso ao longo do tempo.
Já no oitavo tema, Conflitos ambientais Norte-Sul:
agrocombustíveis para quem?, de Klemens Laschefski
e Andréa Zhouri, faz-se uma interessante exposição
acerca das dimensões ambientais e territoriais do conflito Norte-Sul sujeito às novas determinações do crescimento do mercado da economia agro-green-business.
Chama-se a atenção para o fato de que a deslocalização
das atividades causadoras de impactos ambientais cria
de uma só vez um exército de atingidos por contaminação, o que desafia o movimento por justiça ambiental a trabalhar em um projeto menos localizado
e mais amplo de transformação da sociedade. Após
tecer uma série de considerações técnicas/tecnológicas
relativas aos agrobiocombustíveis e o discurso oficial
em torno da sua matriz energética ambientalmente
limpa, os autores vão ao cerne do problema ao associar
a expansão dos agrobiocombustíveis aos efeitos sociais
perversos que pode gerar. Explora a temática tanto do
ponto de vista da organização desse mercado afeita aos
interesses do agronegócio nacional e internacional, do
tratamento dos países periféricos como “sumidouros
de carbono”, a falta de garantia de que seja solução
energética em um cenário de mudança climática, enfim, de que prosperem em vez de evitar as tensões renovadas entre expansão da fronteira agrícola e preservação de recursos naturais. Promove-se, desse modo,
uma segregação territorial entre áreas degradas versus
áreas ecologicamente modernizadas (certificadas). As
novas territorialidades incentivadas pelos interesses da
indústria de combustíveis e do latifúndio estruturam
uma relação de poder sobre o espaço desafiando os
movimentos sociais a criarem estratégias mais amplas
de enfrentamento, dado o potencial de conflitos ambientais explícito-implícitos.
Por fim, no nono tema, Mineração de bauxita,
industrialização de alumínio e territórios na Amazônia,
de Maria Célia Nunes Coelho, Maurílio de Abreu
Monteiro, Luis Henrique Cunha e Luiz Jardim Wanderley, a Amazônia ganha foco através da mineração e
seus impactos associados ao avanço da fronteira mineral na Amazônia oriental brasileira, produzindo novos
processos de territorialização e de luta pelo território.
Os autores situam a abordagem nos projetos voltados à
produção de bauxita, alumina e alumínio naquela parte
da Amazônia, considerando o contexto de crescimento
da demanda externa. Acentuam o caráter conflitual
que perpassa a implantação desses projetos de exploração mineral à medida que levam “à superposição e
à convivência de diferentes economias ou territórios
em construção”. Ao mesmo tempo, mudanças sociais decorrentes do processo de territorialização ou
do dinamismo territorial, em função das formas de
sujeição ou resistências ativas, acabam estruturando
novas relações de poder e de disputas pelo território.
Os autores percorrem vários momentos históricos em
que a relação tensionada entre territórios de empresas
e territórios dos moradores/atores locais modula as
formas de resistência e dominação (controle efetivo do
território pelo agente empresarial, por exemplo), sendo
que nesse processo o papel do Estado tem de ser mais
ativo, instituindo normas, restringindo comportamentos e regulando o destino nos territórios-palcos-de-lutapelo-poder.
Finalmente, o que se pode dizer dos nove temas
que compõem o livro é que eles não têm a pretensão
de resultar em uma unicidade forçada de questões, mas
de propor uma multiplicidade aberta e crítica de subsídios à reflexão-intervenção ou reflexão interferente
sobre o atual processo de capitalista em que os recursos
territoriais estão em jogo. Todavia, a nova forma que
o processo de acumulação assume exige mais que uma
retomada do papel regulador do Estado, compensando
a materialização do poder dos interesses do capital pri-
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vado sobre o território, exige a constituição de novas
bases sociais sobre as quais se poderá mover à ação
reguladora do Estado, ou seja, é preciso reconhecer
a necessidade de maior controle social por parte da
sociedade e garantir um novo conteúdo social àquela
ação reguladora, a fim de contra-arrestar a mobilidade
dos capitais com as novas habilidades das lutas sociais.
Este é, talvez, o grande sentido do livro.
A NEW PHILOSOPHY OF
SOCIETY – ASSEMBLAGE
THEORY AND SOCIAL
COMPLEXITY
Manuel DeLanda
London: Continuum, 2006
Henri Acselrad
Professor Associado do IPPUR/UFRJ,
pesquisador CNPq
Gustavo Bezerra
UFF Volta Redonda
Este livro de Manuel DeLanda reflete um esforço
de pensar diferentemente ou, de acordo com a fórmula
de Montaigne, pensar “ailleurs” – em outro lugar – isto
é, dedicar-se a mudar de posição para experimentar
um redirecionamento de pontos de vista.1 Trata-se,
no caso, de procurar escapar do território das teorias
sociais que se baseiam na dialética e no construtivismo
em favor da aplicação da teoria do agenciamento de
Gilles Deleuze à realidade social. Ainda que reconheça
tratar-se de “rudimentos de uma teoria”, DeLanda busca usar diferentes recursos conceituais para propor uma
“nova teoria do agenciamento”, vendo a complexidade
social como composta por uma variedade de todos que
emergem de partes heterogêneas. O problema da conexão entre os níveis micro e macro da realidade social é
enfrentado por meio de uma síntese não dialética das
propriedades de um todo que não é redutível às suas
partes. Com essa solução, DeLanda almeja conceituar
um estado ontológico de múltiplos níveis intermediá1 Lapierre, N. Penser Ailleurs. Paris: Folio Essais/Gallimard, 2004,
p.12.
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rios situados entre o micro e o macro – exemplificados
pelas interações sociais de Erwin Goffman e pelas
instituições de Max Weber – nos quais as propriedades
do todo supostamente emergem da interação entre
suas partes.
Contrariamente aos sociólogos influenciados pela
fenomenologia, DeLanda adota uma ontologia social
“neorrealista”, considerando a existência da realidade
social de forma independente das mentes. Para ele,
as organizações institucionais, redes interpessoais e
outras entidades sociais existentes deveriam ser tratadas
como independentes de suas respectivas conceituações,
resultando de processos objetivos de agenciamento.
As entidades sociais são, pois, para ele, agenciamentos
construídos por meio de processos históricos bem
específicos, nos quais a linguagem exerce um papel
importante, mas não constitutivo. A tarefa filosófica de
clarificação ontológica deve, para DeLanda, contribuir
para o trabalho de cientistas sociais naquilo em que seu
esquema ontológico pode ser aplicado a diferentes entidades sociais através de movimentos ascendentes que
vão desde a escala pessoal até Estados territoriais. A sua
noção de ontologia plana refere-se à “univocidade do
ser”, uma tese medieval reciclada por Deleuze segundo
a qual “a univocidade é a síntese imediata do múltiplo:
a unidade não diz nada além do múltiplo, cabendo
substituir a concepção de que este último subordina-se
ao anterior [ou seja, o múltiplo ao um] como a uma espécie comum e superior capaz de incluí-lo”.2 DeLanda
busca aplicar o esquema do agenciamento de Deleuze
e Guattari a objetos tais como classes, organizações,
cidades e Estados-nação.
Em um eixo horizontal inicial, eles consideram
esses agenciamentos como possuidores de dois segmentos: conteúdo e expressão; de um lado, um agenciamento mecânico dos corpos, ações e paixões, uma
mistura de corpos reagindo uns aos outros; de outro,
um agenciamento coletivo da enunciação que age e
enuncia transformações incorpóreas que são atribuídas
aos corpos. No segundo eixo, vertical, o agenciamento
tem, por um lado, faces territoriais ou reterritoriali-
2 Zourabichvili, F. Le vocabulaire de Deleuze. Paris: Ellipses, 2003,
p.82. Tradução por Taylor Adkins. Disponível em <http://fractalontology.wordpress.com/2007/11/03/two-entries-from-francois-zourabichvilis-book-on-deleuzes-vocabulary-univocity-and-pre-individual-singularities/>. Em português, ver <http://pt.scribd.com/doc/50483460/12/
UNIVOCIDADE-DO-SER-univocite-de-I-etre>. Acesso em outubro 2011.
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zadas que o estabilizam e, por outro lado, picos de
desterritorialização que o dissipam. O que interessa a
DeLanda é, nos seus termos, “todo tipo de fenômeno
de auto-organização, desde os padrões de vento que
têm regulado a vida humana por longo tempo, como
a monção, até padrões de auto-organização presentes
dentro de nossos corpos, processos de auto-organização
na economia e o processo de auto-organização que
criou a Internet”.3 Esses padrões de conexão entre diferentes elementos diferem de sistemas centralizados na
medida em que levam as operações a se coordenarem a
si mesmas e o resultado final a se sincronizar, independentemente de uma agência central. Esse é um modo
de coordenação horizontal, sem intervenção de uma
agência hierárquica, no qual os agenciamentos são uma
articulação de elementos discursivos e não discursivos
de objetos e ações.
Em décadas recentes, a presença de conceitos
deleuzianos (e deleuzianos-guattarianos) em inúmeras
disciplinas ou campos de investigação contemporâneos tem se manifestado por meio de amplos efeitos no
ambiente cultural. Relações entre a antropologia e a
filosofia deleuziana, por exemplo, têm se intensificado,
confirmando o papel de Deleuze no estabelecimento do que Viveiros de Castro chama de “uma certa
estética conceitual contemporânea”.4 A legitimidade
da antiga premissa da descontinuidade ontológica
entre signo e referente ou entre linguagem e mundo é
contestada; a proposta, em vez disso, é a de promover
o fracionário-fractal e o diferencial mais do que o
unitário e o combinatório, a conexão de elementos
heterogêneos em lugar da correspondência entre séries
homogêneas, a continuidade de forças mais do que a
descontinuidade da forma.5 A pressuposição de indistinguibilidade entre epistemologia e ontologia justifica
o entendimento de que conhecer não é mais um meio
de representar o (des)conhecido mas um meio de interagir com ele e de criar mais do que de contemplar,
refletir ou comunicar.6
3 Entrevista com Konrad Becker e Miss M., Virtual Futures, Warwick 96.
Disponível em <http://www.t0.or.at/delanda/intdelanda.htm>. Acesso
em: 24 jun. 2008.
4 Castro, E. V. “Filiação intensiva e aliança demoníaca”. Novos Estudos
do CEBRAP, São Paulo, n. 77, 2007.
5 ibid.
6 Castro, E. V. Ibid Deleuze, G. Qu’est-ce que la philosophie? Paris:
Minuit, 1991.
Vale a pena considerar em que medida a proposta de DeLanda realiza esse novo desafio intelectual de interagir com o mundo. Nas discussões
provocadas pelo livro A New Philosophy of Society
(Uma Nova Filosofia da Sociedade), algumas reações
o veem como filosoficamente perspicaz e sociologicamente problemático. Alguns críticos destacam que
DeLanda toma como dado o rearranjo em curso entre o Estado e as esferas pública e privada, bem como
a reformulação das instituições da sociedade civil.
Assim, ele demonstra pouco interesse em explorar o
diagrama do presente, as condições de sua efetivação
em andamento ou as condições de sua mudança,7
ignorando categorias como poder, dominação, dissimetria e antagonismo enquanto fatores cruciais para
se entender as disputas.
As implicações sociológicas da intenção de DeLanda apresentar uma nova filosofia da sociedade deveriam certamente ser examinadas e problematizadas.
Primeiramente, a tradução de conceitos – como é o
caso do agenciamento (agencement em francês, traduzido para assemblage em inglês) – implica no risco de
que algo da força expressiva que tais conceitos acumularam historicamente através de seu uso seja perdida.
Assinalou-se, por exemplo, que o uso de assemblage
como tradução para agencement pode perder o sentido
de tornar-se que Spinoza atribui a composições feitas
de dois ou mais corpos que têm alguma coisa em
comum.8 Em segundo lugar, vale a pena considerar as
diferentes formas pelas quais os conceitos são correntemente mobilizados. Um modo possível, por exemplo,
é o de se referir a seus conteúdos históricos empiricamente observados; outro modo é o de vê-los como
categorias heurísticas ou analíticas que visam organizar
evidências históricas com bem pouca correspondência
direta.9 Em particular, cabe notar que quando conteúdos migram de um domínio para outro, eles adquirem
“uma realidade que eles não tinham no ponto de
7 Clough, P.; Han, S.; Schiff, R. “Book Review: A New Philosophy of
Society: Assemblage Theory and Social Complexity by Manuel DeLanda
London and New York: Continuum, 2006”. Theory, Culture & Society,
Nottingham, 2007, 24 (7-8): 389.
8 Phillips, J. “Agencement/Assemblage”. Theory, Culture & Society,
Nottingham, 2006; 23 (2-3): 108-109.
9 Thompson, E. P. “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência’ ” In: Thompson, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros
artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2002 (originalmente publicado em
Quaderni Storici, nº 36, 1977).
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partida”.10 Consequentemente, a migração de conceitos, como sugere Stengers,11 exige que questionemos
a capacidade desses conceitos organizarem o estudo
em um campo fenomênico, e também que reflitamos
sobre as condições socioculturais dessa operação, posto
que a formação e a difusão de conceitos são atravessadas por dinâmicas distintas: de um lado, a história
das batalhas simbólicas envolvendo sua criação e reconfiguração; de outro, a tendência a se naturalizar a
objetivação que o conceito adquire em suas sucessivas
migrações entre campos do conhecimento. Quando
um conceito é reconhecido como capaz de organizar
o estudo de um campo fenomênico, a história tende a
naturalizar seu processo de propagação. É, portanto, a
“produtividade” do conceito – sua adaptabilidade, sua
fertilidade, sua capacidade de anular o sentimento de
que contém um caráter relativamente arbitrário, e seu
poder intrínseco de organização ou, em uma perspectiva Deleuziana, de interação com o real – o que explica seu sucesso. Uma reflexão metódica é, portanto,
necessária sobre os limites e condições de validade dos
instrumentos conceituais ou, em outras palavras, da
pertinência de sua aplicação à teoria do objeto, dado
que “para cada objeto construído, uma teoria”12 – em
nosso caso, o objeto de uma filosofia “do social”.
DeLanda pretende reinterpelar a sociologia, assim como o fez Deleuze – nos termos do posfácio de
Jacques Donzelot ao Anti-Édipo, por uma “antissociologia” que então tentava escapar das dicotomias que
caracterizaram o surgimento da sociologia tais como:
a alternativa entre funcionalismo e estruturalismo, a
distinção entre infra e superestrutura, e a percepção do
Estado como a secreção instrumental de uma vontade
partidária ou coletiva.13 Para DeLanda, a questão hoje é
a de enfrentar a dialética e o construtivismo. Mas o que
a noção de “social” realmente significa aqui? O autor
não apresenta uma definição sistematizada para isso.
Fica para o leitor a tarefa de juntar as pistas deixadas
10 Goriely, G. “Les Cadres Sociaux de la Pensée Biologique”. Cahiers
Internationaux de Sociologie, v. XXVII, 1959, p.166.
11 Stengers, I. “La propagation des concepts”. D’une science à l’autre:
des concepts nomades. Paris: Seuil, 1987, p.17.
12 Delaporte, Y. “De la distance à la distanciation. Enquête dans un
milieu scientifique”. In. Gurwirth, J.; Pétonnet, C. (eds) Chemins de la
Ville. Enquêtes Ethnologiques. Paris: Ed. du CTHS, 1987, p.229.
13 Donzelot, J. “Uma Anti-sociologia”. In. Capitalismo e esquizofrenia
– dossier Anti-Édipo, Cadernos Peninsulares, Nova Série, Ensaio 20,
Lisboa: Ed. Assírio e Alvim, 1976, p.172-3.
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pelo autor – uma solução que não é de modo algum casual, dado que o que vigora é a suposição de que todas
as entidades e relações, sejam elas sociais ou não sociais,
são ontologicamente indistintas, por se constituírem
por meio de agenciamentos. Não é incomum encontrarmos no texto exemplos de agenciamentos sociais
junto a exemplos de agenciamentos orgânicos. O autor
reivindica, porém, que as diferenças entre “o não social
e o não biológico” existem: enquanto os agenciamentos
biológicos seriam basicamente engendrados por processos causais (multivariados e não lineares), os agenciamentos sociais seriam largamente afetados também por
mecanismos subjetivos como “razões e motivos”. Nisso, a menção a Weber revela uma afinidade maior com
a tradição sociológica alemã, que define o “social” pela
presença da subjetividade – o espírito – do que com a
tradição francesa, que define o social pela oposição a
uma suposta rigidez e a historicidade do mundo natural – a tradição intelectual que fala em “desnaturalizar”
o social. Outro modo de se entender a distinção entre
social e biológico seria pelo modo de expressão/codificação – o modo de constituir a identidade/estabilidade
de um agenciamento, ao lado de seus processos de territorialização: a codificação dos agenciamentos sociais
ocorreria pela linguagem e não pelos genes. Assim,
parece que linguagem e subjetividade são os diferenciais do “social” para DeLanda. Ele insistirá, porém, na
lógica da continuidade entre o social e o não social ao
afirmar que a dimensão expressiva dos agenciamentos é
em larga medida “material” e não discursiva: apoiandose em Goffman, ele argumenta que os entes materiais
(roupas, gestos etc.) presentes em um agenciamento
seriam igualmente – ou de forma mais forte – “expressivos”, e, portanto, codificadores das relações entre
os humanos. Assim, considera que no mundo social,
como no mundo não social, a expressão também se dá
pela matéria, só que de um modo menos intenso do
que no mundo dos seres não humanos. Ao adotar esta
perspectiva, o autor aproxima sua abordagem daquela
de outros pensadores que se apropriam de Deleuze para
empreender uma crítica da sociologia. Em Latour, por
exemplo, a “antissociologia” de inspiração deleuzeana
seria mais radical, visto sua substituição de intersubjetividade por interobjetividade – rejeitando assim não
só a definição de tradição francesa a respeito da especificidade do “social”, mas a própria hermenêutica que
marcou boa parte da sociologia alemã e a antropologia
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norte-americana. De um modo geral, tais críticas da
sociologia apoiam-se na recusa do “esquematismo” que
caracterizaria esta disciplina. DeLanda busca então os
agenciamentos como alternativas ao recurso a totalidades descritivas – do tipo “a sociedade como um todo”,
assim como a visões essencialistas de entes sociais.
Entretanto, é difícil não considerar que, ao fazêlo, o autor tenha, por sua vez, recorrido a outros tipos
de esquematismo. Seu texto é construído sobre um esforço sistemático de adaptar a empiria à teoria, visando
mostrar que a forma do social é a mesma – relações de
exterioridade, materialidade/expressividade e territorialização/deterritorialização – independentemente de
se estar falando de pessoas e redes, organizações e governos, ou cidades e nações. Imerso em uma discussão
basicamente formal, o autor lança mão de exemplos
concretos retirados dos estudos empíricos, empreendendo as correções que acha necessárias em cada caso
para que nele seja identificado um agenciamento ao
invés de uma “ilusão” sociológica. Os exemplos não
acumulam, porém, uma reflexão de conteúdo e, por
isso, tanto faz que eles sejam referidos ao mercantilismo
descrito por Fernand Braudel, aos movimentos por
justiça social na Inglaterra nos séculos XVII e XVIII,
descritos por Charles Tilly, ou às formas de dominação
definidas por Weber.
Sem empreender uma reflexão original acerca da
historicidade e dos “problemas públicos” que envolvem
os seres/relações que busca evidenciar, este trabalho
DeLanda não se aproxima das questões provocativas
levantadas por Deleuze em suas reflexões sobre “Capitalismo e Esquizofrenia”, estas mesmas questões
que estiveram na raiz da emergência dos conceitos
que DeLanda utiliza, como os de territorialização e
desterritorialização. Fica assim no leitor a impressão
de que o “A New Philosophy of Society” é uma versão
desencarnada – e, de certo modo, domesticada – do
pensamento deleuzeano sobre o social. Se, para Jacques
Donzelot, o essencial da reflexão de Deleuze sobre o
Estado consistiria em retirar “o véu mais ou menos
pudico lançado sobre o problema do Estado” quando
se constata a sua “aptidão para subordinar movimentos
revolucionários”,14 DeLanda, por sua vez, vê o Estado
como um agenciamento sem centro. Por conseguinte,
sua preocupação em fazer migrar o conceito de agencia14 Donzelot, J. ibid., p.173.
mento para a filosofia do social parece não responder
suficientemente às demandas contemporâneas por conceitos que favoreçam o nosso entendimento do novo
socius, como visto, por exemplo, nas áreas de indistinção na qual hoje o legal se funde com o ilegal, o público
com o privado, o político com o econômico, a norma
com a exceção. Esta demanda por conceituação nos
lembra Walter Benjamin, para quem as palavras são
como velas de um barco que, conforme sejam tecidas,
podem tornar-se conceitos que, sob a ação dos ventos
da história, nos ajudam a pensar o mundo.15
15 Benjamin, W. “Das Passagen-werk”. In: Gesammelte Schriften, vol.
1, Suhrkamp, Frankfort-am-Main, 1972, apud Vandenberghe, F. Reconfiguration et rédemption des acteurs em réseaux – critique humaniste
de la sociologie actancielle de Bruno Latour, Revue du MAUSS, n. 17,
2001, p.117.
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Volume 13- nº2