UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL
ANALICE BARRETO DE MOURA COSTA
ENQUANTO A SOCIEDADE DORME ETERNAMENTE EM BERÇO ESPLÊNDIDO, A
JUVENTUDE BRASILEIRA SE QUEDA À MARGEM PLÁCIDA: UMA ANÁLISE DA
EFETIVIDADE DA MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA NA ÓTICA DOS PROFISSIONAIS
DO CEDUC PITIMBÚ
NATAL-RN
2012
ANALICE BARRETO DE MOURA COSTA
ENQUANTO A SOCIEDADE DORME ETERNAMENTE EM BERÇO ESPLÊNDIDO, A
JUVENTUDE BRASILEIRA SE QUEDA À MARGEM PLÁCIDA: UMA ANÁLISE DA
EFETIVIDADE DA MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA NA ÓTICA DOS PROFISSIONAIS
DO CEDUC PITIMBÚ
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Departamento de
Serviço Social, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como
exigência parcial para obtenção do
título de bacharel em Serviço Social.
Orientadora: Profª. Josivânia Estelita
Gomes de Sousa
NATAL/RN
2012
ANALICE BARRETO DE MOURA COSTA
ENQUANTO A SOCIEDADE DORME ETERNAMENTE EM BERÇO ESPLÊNDIDO, A
JUVENTUDE BRASILEIRA SE QUEDA À MARGEM PLÁCIDA: UMA ANÁLISE DA
EFETIVIDADE DA MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA NA ÓTICA DOS PROFISSIONAIS
DO CEDUC PITIMBÚ
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora, como exigência
parcial para obtenção do título de Graduação do Curso de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Aprovado em: _____/_____/_____.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Profª. Josivânia Estelita Gomes de Sousa
Orientadora – UFRN/DESSO
________________________________________________
Profª. Dra. Maria Regina de Ávila Moreira
Membro - UFRN/DESSO
________________________________________________
Profª. Ms. Tássia Rejane Monte Santos
Membro – UFRN/DESSO
Ao meu vô Geraldo;
jamais perdoarei o tempo
por ter tirado de nós,
esse momento.
AGRADECIMENTOS
De todo o corpo do trabalho, é essa a parte mais difícil. De certa forma,
acredito que tudo interfere na nossa vida, desde a grama que deixamos de pisar, o
caminho das formigas que decidimos não interferir até o amigo que resolveu aparecer
trazendo uma xícara de café para a madrugada intensa de escrita monográfica. As
pessoas, no geral, sabem que são especiais para gente, mas a oportunidade de citálas num trabalho científico é única, e por isso já peço desculpas aos leitores pela lista
demasiadamente longa – mas não me desculpo por gostar de tanta gente, de forma
alguma. Agradeço à força, em que eu tenho fé, que independente do nome, tem me
guiado sempre e me mantido de pé nos momentos escuros. À minha vó Consuelo, por
ter decidido aos 15 anos fugir para casar com meu avô querido e ter começado essa
família tão essencial quanto o ar que respiro. Obrigada vovó, pela fé, pelo investimento
não só monetário na minha educação desde sempre, mas de amor e compaixão. Você
é mais que avó e amiga, é anjo da guarda.
Agradecimento aos pais jamais serão suficientes, mas gostaria de agradecer à
minha mãe por ter suportado as dores do parto, das idas e vindas, do meu nariz
empinado e por nunca ter desistido de mim. Obrigada mamãe querida, por todos os
momentos em que foi minha amiga e principalmente, os momentos em que disse
“não”, sendo antes de tudo o que uma mãe deve ser: mãe. Obrigada papai, por nunca
ter soltado a bicicleta, pelas longas horas de trabalho, pelas palhaçadas e por ter sido,
de todos os “joão’s” da minha vida, o primeiro e indivisível amor. A parte mais difícil:
agradecer aos meus irmãos. Irmãos estes que são minhas caras/metades, paixões
desenfreadas, meus melhores amigos e meus orgulhos. Obrigada ao Lula (e não me
mate por isso), por ter sido desde sempre meu ponto referencial, meu super herói e
meu jedi preferido. Ao João, por me dar mais humanidade do que nunca e por ter sido,
em tempos de tempestade, a minha calmaria.
Com o meu feminismo radical à parte, gostaria de agradecer às mulheres de
minha vida, essas que fazem da lama que se encontra em fundos de poços,
hidratantes, rainhas que não caem nos xeques-mates e que me apoiaram durante toda
a minha caminhada como pessoa: Obrigada tia Virgínia e tia Lucinha, pelos sorrisos,
abraços e ouvidos; às minhas primas, agradeço pela infância sadia e em especial,
pela amizade em que tenho encontrado a irmandade vulgo Lê. Agradeço à Mogra e
Sogrão, pelo baluarte no momento acadêmico mais importante desses 4 anos –
obrigada pela adoção também.
Às minhas companheiras, no sentido mais intenso da palavra, por
compartilharem comigo a vida, as lutas e por terem me engrandecido como pessoa
política, social e ser pensante; em ordem alfabética: Rol, Babi, Mica, Quel e Rê.
Gostaria de frisar a senhorita Bárbara, por ter enxergado em mim, toda a
potencialidade ético-política que poderia adquirir, e dona Raquel por ter compartilhado
os mesmos problemas de vida e as mesmas soluções também. Á minha orientadora
“Josi”, pelos risos, por direcionar o caminho, pelas correções e por ter me escutado
quando ninguém mais podia.
Por fim, mas não menos importante, gostaria de agradecer ao meu futuro
marido, pela correção, pela paciência, pelo amor e carinho, mas principalmente, por
ser meu. À todos os outros amigos, pessoas e animais que me influenciaram de
alguma maneira, obrigada e que vocês tenham uma “vida longa e próspera”!
Analice Barreto.
Tá relampiano
Cadê neném?
Tá vendendo drops
No sinal prá alguém
E tá vendendo drops
No sinal...
Todo dia é dia
Toda hora é hora
Neném não demora
Prá se levantar...
Mãe lavando roupa
Pai já foi embora
E o caçula chora
Prá se acostumar
Com a vida lá de fora
Do barraco...
Hai que endurecer
Um coração tão fraco
Prá vencer o medo
Do trovão
Sua vida aponta
A contramão...
Tudo é tão normal
Todo tal e qual
Neném não tem hora
Prá ir se deitar...
Mãe passando roupa
Do pai de agora
De um outro caçula
Que ainda vai chegar...
É mais uma boca
Dentro do barraco
Mais um quilo de farinha
Do mesmo saco
Para alimentar
Um novo João Ninguém
A cidade cresce junto
Com neném...
(Lenine e Paulinho Moska)
RESUMO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso possui como objeto de estudo avaliar a
efetividade da medida socioeducativa, no âmbito do Centro Educacional Pitimbúlocalizado em Natal (RN), responsável por fazer cumprir a medida de internamento.
Destarte, o debate possui como pontos referenciais básicos o histórico das políticas
voltadas para criança e adolescente, a problematização da visão dos profissionais
inseridos nessa instituição sobre a medida, e, a reflexão da prática e importância do
Serviço Social nesse contexto. Foi utilizado, portanto, a apropriação de aporte teórico,
articulado com a pesquisa de campo. O instrumental para a coleta de dados
empíricos, se materializou por meio de entrevistas semi-estruturadas, objetivando
delimitar a existência da eficácia da socioeducação das medidas, a partir das
perscrutações da visão dos profissionais inseridos nesse campo laboral. Diante desse
contexto, os resultados possibilitaram identificar a não efetivação da medida
socioeducativa, por diversas e complexas limitações, passando pela estrutura física
imprópria, descaso por parte do Estado e sociedade civil e precariedade da
compreensão da dimensão política dos profissionais sobre o espaço ocupado dentro
da instituição. Inserido nesse cenário, o Serviço Social se depara com as dificuldades
do cotidiano, que quando não encaradas com as balizas do Projeto Ético Político da
profissão e as normativas legais, podem desaguar numa postura fatalista no Serviço
Social e barreiras terminais para a ação socioeducativa.
PALAVRAS-CHAVES: Efetividade da medida socioeducativa, dimensão política dos
espaços sociocupacionais, Serviço Social.
ABSTRACT
The present work of course completion has as its object of study the effectiveness of
the social-educational measure within the Centro Educacional Pitimbú – located in
Natal (RN), responsible for enforcing the internment. Thus, the debate has as basic
reference
points
the
history
of
policies
for
children
and
adolescents,
the
problematization of the opinion from the professional inserted in this institution about
the measure, and, the reflexion of practice and importance of the Social Work in this
context. It was used, therefore, the appropriation of theoretical, articulated with the field
research, through semi-structured interviews, aiming to delimit the existence of
effectiveness of the social-education of the measure, from the thinking of the
standpoint of the professionals inserted in this field of work. In this context, the results
made possible the identification of the non-realization of the social-educational
measure, through several and complex limitations, passing through the improper
physical structure, neglect by the state and civil society and precariousness of
understanding of the political dimension of the professionals about the space occupied
within the institution.
KEY WORDS: Effectiveness of the social-educational measure, political dimension,
Social Work.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 01 – Grau de Escolaridade..............................................................................30
Gráfico 02 – Experiência Profissional...........................................................................31
Gráfico 03 – Faixa Etária..............................................................................................32
Gráfico 04 – Concepção de Medida Socioeducativa....................................................34
Gráfico 05 – Configuração da Medida Socioeducativa................................................38
LISTA DE SIGLAS
ASSEAF – Associação de Ex-Alunos da FEBEM
CEDUC Caicó - Centro Educacional Caicó
CEDUC Esperança - Centro Educacional Esperança
CEDUC Mossoró - Centro Educacional Mossoró
CEDUC Nazaré - Centro Educacional Nazaré
CEDUC Pe. João Maria - Centro Educacional Pe. João Maria
CEDUC Pitimbú - Centro Educacional Pitimbu
CEDUC Santa Catarina - Centro Educacional Santa Catarina
CEDUC Santa Delmira - Centro Educacional Santa Delmira
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social
CIAD - Centro Integrado de Atendimento aos Adolescentes
CONSEC – Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente
CRAS – Centro de Referência de Assistência Social
CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
FEBEM – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor
FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
FUNDAC – Fundação Estadual da Criança e do Adolescente
LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social
LOS - Lei Orgânica da Saúde
MNMMR – Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
NOB-SUAS - Norma de Operação Básica do Sistema Único de Assistência Social
NOB-SUS - Norma de Operação Básica do Sistema Único de Saúde
ONG – Organização Não-Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
PIA – Plano Individual de Atendimento
PNBEM – Política Nacional do Bem-Estar do Menor
RN – Rio Grande do Norte
SAM - Serviço de Assistência ao Menor
SETHAS – Secretaria de Estado do Trabalho, da Habitação e da Assistência Social
SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12
2 OS DIREITOS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE BRASILEIRA A PARTIR DE UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA........................................................................................14
2.1 A TRAJETÓRIA INFANTO-JUVENIL PRÉ-AUTOCRÁTICA.................................14
2.2 PERSPECTIVAS SOBRE A INFÂNCIA E JUVENTUDE A PARTIR DA DITADURA
MILITAR E O ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE (ECA) ..........................23
3
A
(NÃO)EFETIVAÇÃO
DA
MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA
NO
CEDUC
PITIMBU........................................................................................................................29
3.1 O PERFIL DOS PROFISSIONAIS DO CEDUC PITIMBU.....................................29
3.2
A
EFETIVIDADE
DA
MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA
NA
ÓTICA
DOS
PROFISSIONAIS NO CEDUC PITIMBU.......................................................................33
4 O LUGAR DO SERVIÇO SOCIAL NO CUMPRIMENTO DA MEDIDA DE
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE........................................................................................45
4.1 O SERVIÇO SOCIAL ENQUANTO PROFISSÃO INSERIDA NA DIVISÃO SOCIOTÉCNICA DO TRABALHO............................................................................................45
4.2 O FAZER PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO CEDUC-PITIMBU...51
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................59
REFERÊNCIAS.............................................................................................................61
APÊNDICES..................................................................................................................66
12 1 INTRODUÇÃO
O debate acerca da efetivação da medida socioeducativa se encontra cada vez
mais latente e necessária nos tempos atuais. Com mais de 10 anos de existência do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os direitos humanos ainda continuam
sendo infringidos, índice de reincidência do ato infracional continua alto e práticas
coercitivas ainda atravessam as instituições responsáveis por materializar a
socioeducação.
Nesse sentido, o processo investigativo que sustenta o presente Trabalho de
Conclusão de Curso teve como objetivo debater e analisar a efetividade da medida
socioeducativa a partir dos profissionais inseridos no âmbito do Centro Educacional
Pitimbú (CEDUC Pitimbú), órgão que tem como função a realização do cumprimento
da medida socioeducativa de internação, à adolescentes do sexo masculino, em Natal
– Rio Grande do Norte.
A escolha por tal temática encontra-se vinculada, primariamente, às
inquietações e reflexões após ler o livro “Laranja Mecânica” de Anthony Burgess
(1962), um romance sobre a institucionalização de adolescentes “infratores” e práticas
desenvolvidas nesse percurso. Posteriormente, o convívio, na minha adolescência,
com jovens da periferia, acesso aos “bailes funks” das favelas da Mangueira e
Providência (Rio de Janeiro), me proporcionaram um contato para mais perto daquela
realidade, descortinando uma realidade diferente da que era passada na mídia. O
interesse foi se aprimorando ao longo faculdade e teve seu ápice quando fiz
mobilidade para a Escola de Serviço Social da UFRJ. Este fato possibilitou visitas ao
Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro e entrevista com
Tânia Dahmer – que na época era Assistente Social e da Secretaria do Estado do Rio
de Janeiro e diretora do Hospital de Custódia e Tratamente Psiquiátrico Heitor
Carrilho. Estes elementos aumentaram a minha vontade de desmistificar o cenário
sócio-jurídico que se caracteriza como espaço sócio-ocupacional para a profissão,
bem como, analisar os limites e possibilidades na concretização de políticas sociais.
Diante desse cenário, no que se refere à investigação, o marco teórico
norteador escolhido foi o crítico-dialético numa perspectiva histórica. A metodologia
escolhida, por sua vez, consistiu em análise documental e entrevistas semiestruturadas de natureza simples.
A presente monografia está dividida em três capítulos, no primeiro momento é
recuperado o movimento dinâmico da construção da identidade infanto-juvenil,
retomando as mudanças históricas das políticas sociais voltadas para a criança e o
13 adolescente, bem como, suas normativas legais. Este capítulo constrói a porta de
entrada para a compreensão da medida socioeducativa na contemporaneidade. No
item posterior, em “A (não)Efetivação da medida Socioeducativa no Ceduc Pitimbú, se
problematiza a eficácia da medida, bem como sua causa, através das respostas dos
entrevistados, identificando
elementos
cruciais
do
perfil dos
profissionais
e
caracterização da medida. Por fim, tem-se o capítulo O Lugar do Serviço Social no
cumprimento da Medida de Privação de Liberdade, no qual situa a profissão, sua
prática e identidade, na dimensãoo da instituiçãoo enfocada, analisando-a de acordo
com os pressupostos ético-políticos.
Nesse sentido, partindo do pressuposto que a medida socioeducativa não
funciona no campo do CEDUC Pitimbú, se ressalta a importância deste estudo na
contribuição para o debate, elucidando questões transversais ao cumprimento da
medida em Natal, cooperando assim, para indicar subsídios para a problematização
da inserção do Serviço Social no espaço de medida de internação. Ademais, promove
maior aproximação com a realidade da instituição, possibilitando a reflexão sobre as
condições em que se encontram os adolescentes autores de ato infracional
atualmente.
14 2 OS DIREITOS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE BRASILEIRA A PARTIR DE UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA.
O presente capítulo se dispõe ao resgate histórico das políticas voltadas para a
infância e juventude, permeando os diversos lugares ocupados pelo segmento infantojuvenil ao longo do desenvolvimento da sociedade. Este capítulo está composto por
dois subpontos: o 2.1, que se refere ao trajeto da concepção de criança e adolescente
e as normativas legais que refletiam esta visão no período antecedente à ditadura do
Brasil, e o 2.2, que faz alusão às inflexões no processo de mudanças nas ações
destinadas à criança e ao adolescente a partir da autocracia, situando num cenário de
complexos fenômenos sociais determinantes nas transformações do percurso histórico
infantil e juvenil.
2.1 A TRAJETÓRIA INFANTO-JUVENIL PRÉ-AUTOCRÁTICA.
O percurso histórico de formação da consciência de necessidade de direitos
humanos, no que tange à população infanto-juvenil, passou por vários percalços até
atingir o aparato legal de proteção que temos na atualidade. Apesar de só ter
adquirido a concepção de sujeito portador de direitos recentemente, as legislações
antigas já faziam referências às crianças. O juízo europeu de infância, definido no
século XVI, perdurou durante muito tempo: a criança era vista como adulto em
miniatura e se encontrava totalmente submetida ao poder de seus pais. A
compreensão absolutista de propriedade parental do Direito Romano caminhava na
seguinte direção:
Pater familiae poderia castigar corporalmente seus filhos sem
qualquer limitação, modificar seu status social, dar uma esposa
ao filho, dar sua filha em casamento, divorciar seus filhos,
transferi-los a outra família, dá-los em adoção, e até mesmo
vendê-los. As crianças eram menos que pessoas e se
aproximavam muito da categoria de objetos, de coisas (MAINE,
1930, p. 153).
No que diz respeito às infrações cometidas por crianças, a idade de
responsabilização por seus atos já era mencionada e as crianças diferenciadas nas
legislações antigas. A Lei das XII Tábuas (Roma), já diferenciava os menores púberes
e impúberes. Estes eram os que estavam na faixa etária menor que sete anos e
estavam livres de qualquer castigo penal; já os púberes se encontravam na faixa etária
de sete a catorze anos, e sofreriam sanções penais por suas infrações. Dentre essas
sanções – que por sua vez, consistiam em castigos rigorosos e severos – se
encontravam penas corporais como mutilações e pena capital. A partir do século XVIII,
15 o mundo assiste a um cenário de mudanças radicais: com a mecanização dos
sistemas de produção, tinha-se o primórdio da Revolução Industrial, encerrando
elementos feudais existentes e abrindo o caminho para o futuro sistema capitalista.
Junto com a mesma, começam a crepitar lutas por independência e proclamação de
repúblicas. E assim, a partir da secunda metade do século XVIII, o palco mundial teve
em sua composição a independência dos Estados Unidos, Revolução Francesa e a
Revolta escrava no Haiti. É nessa conjuntura que há uma transformação no significado
de criança que, apesar de ainda considerada propriedade de seus pais, ganha o valor
de ser humano. Sobre isso,
Tanto a Revolução Americana quanto a Francesa tiveram a
preocupação de explicitar um documento formalizador de defesa de
direitos. Na perspectiva da Revolução Francesa, a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, teve por
finalidade proteger os direitos e instruir os indivíduos contra os atos
do governo (ODALIA, 2003 apud BIDARRA, OLIVEIRA, 2008, p.
156).
No que diz respeito ao atendimento, assim como os pobres e idosos, as
crianças - principalmente as tidas como carentes e os órfãos - se encontravam à
mercê da Igreja Católica e sua caridade. O Estado se responsabilizava quando se
tratava de “delinquência” infanto-juvenil e repressão aos mesmos. No século XIX a
reflexão acerca da necessidade de proteção especial à criança e ao adolescente
passa a ser latente, e esse segmento da população ganha o reconhecimento como
“pessoa”. A história, em exemplo, de Mary Ellen1 gerou grande repercussão nos
Estados Unidos e após o ocorrido, mais de 300 casos de abuso e maus-tratos foram
investigados. Entretanto, apesar de já ter ensaiado um movimento revolucionário para
a independência do país e emancipação civil, a dignidade e até mesmo a cidadania,
eram privilégios concedidos apenas para os adultos. Num quadro de expansão
mundial da Revolução Industrial, o capitalismo – com suas contradições fruto do
movimento capital versus trabalho – se concretiza como o sistema econômico vigente
aparado pelas ideias liberais pulsantes. O modo de vida urbano passa a se
desenvolver e as cidades começavam a formigar com suas sociedades modernas,
num panorama de intenso desenvolvimento. No Brasil-Império, este período demarcou
1
Filha de imigrantes irlandeses, com a morte de seu pai e pauperização de sua mãe viúva, foi entregue a
um casal que, de forma fraudulenta, conseguiu a guarda da menina. Mary Ellen foi vítima de maus tratos
durante anos. Apesar da preocupação dos vizinhos, não havia aparato jurídico-estatal que protegesse a
menina de seus “pais”. Foi com ajuda da Igreja Metodista, baseado na Lei de Proteção aos Animais, que a
intervenção jurídica pôde ser realizada com sucesso, sendo sua mãe condenada pela violência e Mary
Ellen acolhida. 16 a inserção de crianças e adolescentes no âmbito legal, no sentido de que foram
estipulados início e fim da inimputabilidade penal e maioridade civil. Sobre isso, Rosa
(2001) dispõe que:
Começou [a integração de crianças e adolescentes na perspectiva
legal] no Império, com o Código Criminal de 1830, que considerava
inimputáveis apenas os menores de 7 anos de idade. Esse Código
estabelecia a faixa etária entre os 7 e os 14 anos para definir os que
eram penalmente irresponsáveis, caso não houvesse prova de seu
discernimento feita pela demonstração da capacidade de
entendimento do ato infracional. Contudo, estabelecendo-se que os
menores de 14 anos atuavam com discernimento, o Código admitia
que fossem recolhidos a casas de correção, por tempo indeterminado
pelo juiz, desde que não viessem a ultrapassar a idade de 17 anos.
Aos maiores de 14 e menores de 17 anos de idade, era dispensado
tratamento peculiar, estando sujeitos a uma pena equivalente a 2/3
daquela que coubesse ao adulto, além de ficarem em prisão comum,
já que só no fim do século surgem as casas de correção para
menores (ROSA, 2001, p. 188).
No novo cenário brasileiro, as cidades inchavam cada vez mais, crescia o
número de doenças, criminalidade e desordem. Entre o caos da modernidade, um
contingente significativo de crianças e adolescentes abandonados residiam nas ruas
dos centros urbanos. Numa fissura de se modelar ao estereótipo das cidades
europeias e de seu modo de civilização, as crianças e adolescentes abandonados,
material e moralmente, passam a perturbar a paisagem urbana. Nesse momento,
passa a circular entre a elite brasileira a ideia de “salvar a criança para salvar o país”:
a lógica, que parte do projeto nacionalista, era a de “tratar” as crianças para que estas,
no futuro, não se constituíssem ameaça à ordem social e aderissem, de forma a
contribuir, ao projeto nacional. Com os novos padrões de convivências e relações
sociais, perante a modernidade e suas imposições, atravessados pela urbanização,
industrialização e explanação do crescimento da pobreza em progressão geométrica
das camadas populares; a necessidade de preparar a criança e o adolescente para
serem inseridos nesse novo cotidiano da cidade e vida moderna. Assim,
O movimento que se constituiu com o objetivo de salvar a criança tem
sua origem a partir da crença de que, herança e meios deletérios
transformavam em monstros crianças já marcadas por certas
inclinações inatas, acarretando consequências funestas para a
sociedade como um todo. Salvar essa criança era uma questão que
ultrapassava os limites da religião e da família e assumia a dimensão
política de controle, sob a justificativa de que havia que se defender a
sociedade em nome da ordem e da paz social (RIZZINI, 1993, p.76).
Esse movimento pressionou o Estado a assumir responsabilidade sobre as crianças
por meio de políticas que fossem voltadas para elas. Entretanto, o objetivo desta
estava longe de ser voltado para a proteção infantil, visava, assim, manter o controle
social e defender interesses burgueses. O pensamento era simples: visto que as
17 crianças constituiriam a sociedade num tempo posterior, e eram de fácil adequação,
era necessário podá-las para prevenção da delinquência e torná-las útil ao
desenvolvimento do país, desta maneira estaria lapidando-se a civilização do futuro.
No final do século, tardiamente, o Brasil aboliu a escravatura e proclama a
República. É importante ressaltar aqui, que esse movimento exposto até agora dos
signos que crianças e adolescentes receberam ao longo da história, bem como o
processo das políticas voltadas para a infância e adolescência, não se refere às
crianças escravas até sua libertação, pois, por se encontrarem nesse determinado
grupo, possuíam valor de coisa sendo deslocada para o valor de pessoa com as
normativas legais infanto-juvenis válidas, apenas após a abolição. No Código Penal do
final do século XIX, crianças menores de 9 anos seriam inimputáveis, enquanto que de
9 a 14 anos seriam submetidas a avaliação do magistrado - nesse período deu-se o
início do uso palavra menor. É importante compreender que no Brasil a Justiça de
Menores,
assim
como
em
outros
campos,
era
alicerçada
nas
discussões
internacionais do final do século XIX, que debatiam sobre meios de conter a
criminalidade infantil. A infância pobre passou a ser definida como menor, visto que,
diante de balizas morais em vigor, a família que não conseguisse educar seus filhos
moralmente e provê-los materialmente, não conseguiria controlá-los e precisariam de
intervenção judiciária. No quesito política de assistência, criou-se o Instituto de
Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro, em 1889, numa perspectiva
assistencialista, rompe com o atendimento caridoso da Igreja e direciona o
atendimento para a filantropia. Na mesma linha de domínio e não proteção, o Instituto
“tinha a proposta de intervir diretamente no campo social, através do controle do
comportamento da criança pobre e de sua família” (ROSA, 2001, p.189). Nesse
sentido, a ideia de que as crianças pobres são elementos cruciais nas mudanças
sociais passa a legitimar as práticas coercitivas. No âmbito internacional, em 1891, o
código penal da França define a isenção às infrações cometidas por menores e a
separação destes com a lei penal (desde o século XIX a Europa já possuía casas
correcionais). É importante destacar que a passagem do século XIX para o século XX
é permeada por uma visão ambivalente da criança e do adolescente: cuidar da criança
na perspectiva de moldá-la, pois era o futuro da nação e por outro lado, era um perigo
a manutenção da ordem. No palco dos organismos que proporcionavam ações na
área de assistência infantil, atuavam o privado e o público lado a lado: o público
responsável por regular a preservação de crianças e adolescentes, e da sociedade,
18 munido de mecanismos educacionais e punitivos; já o privado se quedava com os
cuidados à população pauperizada. Sobre isso,
Em nome da manutenção da paz social e do futuro da nação,
diversas instâncias de intervenção e controle serão firmadas. Será da
medicina (do corpo e da alma) o papel diagnosticar na infância
possibilidades de recuperação e formas de tratamento. Caberá à
Justiça regulamentar a proteção (da criança e da sociedade), fazendo
prevalecer a educação sobre a punição. À filantropia – substituta da
antiga caridade – estava reservada a missão de prestar assistência
aos pobres e desvalidos, em associação às ações públicas. A
composição desses movimentos resultou na organização da Justiça e
da Assistência (pública e privada) nas três primeiras décadas do
século XX (RIZZINI, 1993, p.80).
No início do século XX eclode a Primeira Guerra Mundial e enquanto de um
lado da Europa ideais comunistas passam a circular intensamente terminando na
criação do primeiro país socialista do mundo (União Soviética); por outro lado, nos
Estados Unidos, o fordismo e sua produção em massa ditam a cultura do
consumismo, que por sua vez, se enraízam cada vez mais na sociedade americana.
Ao término da Guerra, a preocupação consistia em reorganizar as relações
internacionais e uma legislação trabalhista no campo internacional, derivado de
reflexões éticas e econômicas sobre o custo humano da Revolução Industrial.
Em nível nacional, o país encontrava-se com um número excessivo de negros
libertos pela abolição da escravatura, sem nenhum alicerce estatal que assegurasse
condições dignas de sobrevivência (além da cultura do preconceito que permeava de
maneira energética), e um volume exacerbado de imigrantes que se juntavam ao
contingente abundante de mãos-de-obra disponíveis para o trabalho. Tratava-se de
uma época de efervescência da indústria e movimentação da economia brasileira,
divisão bem definida social e técnica do trabalho e dinamização das cidades. O
desenvolvimento da urbanização é acompanhado por crises sociais: a falta de
estrutura e políticas sociais que atendam as necessidades da população pobre em
todos os elementos vitais para a cidadania, acaba por gerar perturbações na corrente
societária. Dentre essas perturbações localizava-se a criminalidade, que por sua vez,
se torna o rosto referencial do cotidiano ao tomar espaço em demasia do dia a dia
social atingindo as pessoas, em diferentes amplitudes, seja por internalizar a
insegurança ou por vivenciar fatos materiais. O afloramento de crimes é escoltado pelo
aumento e especialização de meios repressivos avolumando conflitos urbanos
refletidos pelas tensões sociais assaz intensas.
De acordo com registros da época, percebe-se que os crimes infantis estavam,
em sua maioria, ligados ao que se chamava de “vadiagem” e previsto no Código Penal
19 do período, nos artigos 399 e 400. Na diretriz da “ordem e do progresso”, a doutrina
era educar o menor com a pedagogia do trabalho, para que este não “vagabundeasse”
pelas ruas da cidade moderna. Em 1902, instituições de abrigamento para “menores”
abandonados e julgados criminosos passaram a ser construídos, com escopo de
prevenir a delinquência. O que estava presente era o binômio que permanece até hoje
de crescimento econômico juntamente com a exclusão social, consequência do capital
industrial que se instaurava no Brasil. De acordo com Octávio Ianni (1992),
A economia e a sociedade, a produção e as condições de produção,
o capital e o trabalho, a mercadoria e o lucro, o pauperismo e a
propriedade privada capitalista reproduzem-se reciprocamente. O
pauperismo não se produz do nada, mas da pauperização. O
desemprego e o subemprego são manifestações dos fluxos e refluxos
dos ciclos de negócios (IANNI, 1992, p. 99).
Desse modo, a partir da década de 1920, o ideário não girava em torno apenas
da repressão, mas de medidas preventivas e corretivas. Em relação às leis, houveram
alguns avanços: em 1919, na Conferência Internacional do Trabalho, foi fixado a idade
mínima de 14 anos para a inserção no mercado de trabalho da Indústria. “Dessa
forma, todas as atividades laborativas ligadas à mineração, construção de edifícios,
estradas, ferrovias, transporte de cargas e nas fábricas, em geral, estavam proibidas
às crianças menores de catorze anos.” (BIDARRA, OLIVEIRA, 2008, p. 158); em 1921
a Lei nº 4.242 criou o Serviço de Assistência e Proteção à Infância Abandonada e aos
Delinquentes, além de excluir o menor de 14 anos de qualquer processo penal. Em
1924, tivemos o primeiro marco legal de característica universal, aprovada pela
Assembleia Geral da Liga das Nações, a Declaração de Genebra “trouxe avanços ao
reconhecer que a humanidade deve à criança o melhor que tem a dar, [...], acima e
além de quaisquer considerações de raça, nacionalidade ou crença” (DOLINGER,
2003, p. 84 apud BIDARRA, OLIVEIRA, 2008, p.159).
Em 1927 no Brasil, através do Decreto n° 17943, é materializado o primeiro
Código de Menores desenvolvido pelo jurista Mello Mattos. Foi utilizado como
instrumento de vigilância infanto-juvenil do menor abandonado ou delinquente - que foi
produto da falta de domínio e transgressão de suas famílias -, e tendo sido construído
sobre base de uma visão estigmatizante da infância pobre, pois eram classificados
“menores” apenas aqueles que se encontravam em situação irregular, naturalizando a
relação entre pobreza e criminalidade, e culpando as famílias por se encontrarem
nessa situação. Entretanto, a presente legislação é um importante passo do
reconhecimento do Estado de sua responsabilidade para com as crianças e os
adolescentes, subsidiando suas respostas em ações que propuseram “aplicar
20 corretivos necessários para suprimir o comportamento deliquencial. A concepção
política-social era simples: a normativa legal era instrumento de assistência e
vigilância infanto-juvenil, que por sua vez era vítima da omissão e transgressão da
família. Baseava-se ainda, numa infância e adolescência visualizada como
abandonada ou delinquente, passível de autoridade jurídica. Os abandonados agora
estavam na mira do Estado” (PASSETTI, 2006, p. 35). A lei continuou com a
inimputabilidade dos menores de 14 anos, e agregou o processo especial aos maiores
de 14 anos e menores de 18. Ainda que estejam dispostos lugares específicos
voltados para o cumprimento das medidas corretivas do menor, era comum colocá-los
juntos com os adultos criminosos nas Casas de Detenção e nas Cadeias. Destarte,
Incorporando tanto a visão higienista de proteção do meio e do
indivíduo quanto à visão jurídica repressiva e moralista, este Código
considerava a família responsável pelo desvio de seus filhos,
classificava os menores quanto à sua inserção no trabalho e na
conduta anti-social através de graus de periculosidade, além de
explicitar institucionalmente as diferentes formas de conceber a
criança pela legalização das Varas de Família para crianças e
adolescentes, e pelo Juizado de Menores para as crianças pobres. É
a partir desse primeiro código que a palavra menor se consolida
como classificatória da infância pobre e, contraditoriamente, é
também a partir dele que começam a ser formuladas estratégias
relativas à intervenção junto a esse menor (TORRES, SOUZA FILHO,
MORGADO, 2006, p.102).
Pode-se atestar, portanto, que no percurso da história, as crianças e os
adolescentes obtiveram a representação social de objetos. Quando objeto de proteção
social, tinham em sua direção práticas baseadas em valores cristãos e ações de
caridade, voltadas para alimentação e saúde de forma assistencialista. O público
desse quesito são crianças e adolescentes considerados carentes e que passavam
por seus primeiros anos de vida. Já quando se integram no objeto de controle e
disciplina, as práticas visam integração social, de forma a tornar a linha infanto-juvenil
produtiva para o desenvolvimento econômico do país, objetivam ainda prevenir a
delinquência, nesse sentido, foram aplicadas ações de escolarização básica e
iniciações laborais - em lugares subalternos - voltada para o público, que nesse caso,
eram crianças e adolescentes pobres perigosos à sociedade, que poderiam ameaçar a
ordem social estabelecida. Ambas as representações tiveram como atores de sua
prática a Igreja, a Sociedade e o Estado (variando de acordo com o momento e o
escopo das ações). Por fim, há o objeto de repressão social, que por sua vez,
representava socialmente os denominados “menores infratores” que se encontravam
em “Situação Irregular”, ainda considerados um perigo à sociedade e à ordem, sendo
sua família culpabilizada por seus filhos se encontrarem em tal situação. A chamada
21 “Doutrina da Situação Irregular” exprimia a visão fragmentada e superficial da
realidade social, bem como a perspectiva jurídica repressiva e moralista sobre as
crianças e os adolescentes, que se encontravam “privados de condições essenciais à
sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, vítimas de maus tratos em perigo
moral, com desvio de conduta e autores de ato infracional” (TORRES, SOUZA FILHO,
MORGADO, 2006, p. 102). As ações desse momento, de confinamento, maus tratos e
opressão; deixaram uma herança de práticas coercitivas que perdurará por muito
tempo. O ator responsável por garantir o trato dos menores nesses casos era o
Estado.
Em 1929 o mundo se vê encenando a primeira grande crise econômica com a
quebra da bolsa de valores de Nova York. A crise promoveu mudanças decisivas em
países como o Brasil, de capitalismo tardio e dependente e Estado oligárquico. Como
reflexo do “crush” , a cafeicultura (principal produto exportado e terreno da economia
do país) cai, balançando a estrutura política e econômica do Estado brasileiro,
trazendo à tona problemas no modo de conduzir o Brasil. Na Revolução de 1930,
Getúlio Vargas assume a presidência, “desconecta-se” de forma superficial com a
estrutura oligárquica estatal, e nesse momento, a inovação na arena da política
econômica-financeira e mudanças nos órgão pertencentes ao governo, foram iniciados
pelos grupos políticos no poder e as deficiências político-admnistrativas passam a
incitar reformulações dos organismos públicos.
No âmbito internacional, o presidente Roosevelt dá início ao “New Deal” na
tentativa de recuperar o estado econômico dos Estados Unidos. Com resquícios do
sistema escravocrata, “o liberalismo brasileiro era exclusivamente urbano, superficial,
de conotação ideológica (antes que prática) e voltado para as relações externas do
País” (PRADO JUNIOR, 1981, p.34). A política governamental concentrava todas as
forças
em
possibilitar
a
infra-estrutura
necessária
para
emancipação
e
desenvolvimento econômico do Brasil. Assim, visando reorganizar a estrutura
dependente que assinalava o subsistema econômico brasileiro nesse período, a
maioria das políticas econômicas do governo, nos anos 1930-45, reverberava os
interesses dos grupos econômicos e políticos dominantes e integrantes do governo.
No contexto da Segunda Guerra Mundial, os trabalhadores passam a se unir e
reivindicar. O governo, por sua vez, percebe os benefícios de ter a classe trabalhadora
legitimando-o e nesse sentido, as Legislação Trabalhista, significam um grande passo
na história brasileira, visto que incorporou algumas reivindicações da classe laboral;
visava conter os trabalhadores, harmonizando as relações de trabalho. Na realidade,
22 seu objetivo era a pacificação das relações de trabalho, ou seja, teve o propósito de
doutrinar de forma legal a ligação entre as classes sociais urbana, com o escopo de
apaziguar sua relação. A ideia do governo corporativista era a de criar uma identidade
nacional que os trabalhadores aderissem, controlando assim as relações políticas e
atividades organizacionais dos trabalhadores, o sindicalismo, dessa maneira, passa a
fazer parte da área administrativa do Estado. Ademais, se presenciara a força
proveniente do discurso do Nacionalismo Hitleriano e a capacidade que o mesmo tinha
para com sua juventude. O nacionalismo passou a ser a diretriz determinante no que
se refere à economia, sociedade e política. Com o chamado “Estado Novo” (1937), o
pulso autoritário do governo começava a mostrar limitações do sistema de
administração estatal, enquanto classes passavam a tomar consciência de sua
realidade. O regime foi se esgotando quanto mais subordinado se quedava o Brasil,
comprometido em demasia com o capitalismo mundial, submetendo-se às condições e
consequências da aliança com os Estados Unidos ao ingressar na guerra. Em 1945,
tanto a Guerra quanto a Era Vargas, acabaram.
Sobre a infância e juventude nesse período, em sua fase autocrática, é criado o
Serviço de Assistência ao menor (SAM), “trata-se de um órgão do Ministério da Justiça
e que funcionava como um equivalente do Sistema Penitenciário para a população
menor de idade” (COSTA, 1993, p.14). O SAM possuía uma finalidade correcionalrepressiva e era responsável por internar os “menores infratores”. Assim, em 1940, o
Código Penal avançou ao definir a inimputabilidade penal até os 18 anos de idade.
Outras entidades foram criadas durante esse período, em sua maioria ligada à
promoção de qualificação para inserção laboral, produzindo trabalho/geração de
renda, exemplificando que o cerne da questão do governo de Getúlio Vargas era a
classe trabalhadora, sua legitimidade perante ela e a dinamização do mercado
nacional, potencializado pela ideologia de que o trabalho era a solução para que os
“menores” não se desvirtuassem para a delinquência ou se tornassem vagabundos.
A Segunda Guerra Mundial se tornou uma barreira para a construção dos
Direitos Humanos, a população inteira do mundo assistia à Europa sediar um dos
maiores massacres da história: Hitler, sob efeito de sua ideologia racista arbitrária,
executou o genocídio de milhares de crianças, mulheres e homens. Além disso, a
guerra veda a materialização dos Direitos Humanos, ainda mais na proporção mundial,
na medida em que pressupõe a morte do outro justificada pelas diferenças socio-ideopolíticas e econômicas, e, em que sua essência, consiste em seres humanos
sobrepujando o direito de outros seres humanos. Em contrapartida, é em momentos
23 de crises sociais extremas que há um maior movimento dirigido a avanços éticos
societários e construção de direitos sócio-políticos. Assim, após o término da Segunda
Guerra, a população do mundo estava devastada pela barbaridade do regime nazifascista, países precisariam ser reconstruídos e as reflexões sobre os Direitos
Humanos e sua necessidade passaram a permear as sociedades ao redor do mundo.
Nasceu assim a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1946 foi
instaurado o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e em 1948 a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, carregando um artigo com elementos de
proteção aos direitos das crianças.
Isso demonstrou que a preocupação em relação ao segmento infanto-juvenil,
no sentido de sua proteção, começava a dar os primeiros grandes passos. Na década
de 1950, Kubitscheck subiu ao poder e pôs a todo vapor a sua política de
modernização conservadora e ampliação do conjunto de trabalho urbano-industrial; a
legislação nacional (Código Mello Mattos) começava a se exaurir, sobretudo após a
Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, promulgada pela ONU, que reconheceu
nas crianças sujeitos de direitos, o que não sintonizava com o que estava vigente no
Brasil. Todavia, quando reflexões e discussões sobre as crianças e os adolescentes
começaram a ser fomentados, o golpe militar de 1964 minou qualquer debate
democrático sobre a temática, trazendo uma nova conjuntura para a tentativa de
construção de uma política protetiva infanto-juvenil.
2.2 PERSPECTIVAS SOBRE A INFÂNCIA E JUVENTUDE A PARTIR DA DITADURA
MILITAR E O ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE (ECA).
O regime militar se impõe num contexto de expansão da ideologia comunista
no âmbito internacional e intenção de assegurar a concentração de poder, segurança
econômica e política da elite brasileira. Esse governo estava sitiado de ações
truculentas, ideologia de Segurança Nacional como princípio governamental e total
submissão do social ao econômico, no sentido que as políticas sociais passam a ser
apenas condutores de outras finalidades: “Nesta nova concepção, o gasto público
passa a atender a uma dupla finalidade: fortalecer a determinados segmentos do setor
empresarial e atender às necessidades básicas dos segmentos mais vulneráveis da
população” (COSTA, 1993, p.17), garantindo o mínimo para subsistência da oferta de
mão-de-obra.
Foi nesse contexto que nasceu a Política Nacional de Bem-Estar do Menor
(PNBEM), cujo órgão nacional era a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor
(FUNABEM), e órgão executores estaduais as famosas FEBEM(s) – Fundações
24 Estaduais do Bem-Estar do Menor. Apesar do intento de superar o SAM, o novo
organismo voltado para “menores infratores” cometia os mesmo vícios. Dividiu-se,
então, os menores em três categorias absolutas: abandonados (os órfãos, crianças e
adolescentes que ficavam vagando pelas ruas das cidades), carentes (crianças e
adolescentes que se encontravam em situação de pobreza) e infratores (aqueles que
eram considerados inadaptados, que se quedavam fora da escola e precisavam esta
sob o domínio institucional para regularizar o menor). A FUNABEM possuía enquanto
referência, o sentido de infância infratora como marginal e disfuncional, dando
continuidade à ideia de culpabilização da família pelo menor que se encontra fora da
lei e dos bons costumes. É importante salientar que quando se fala em crianças e
adolescentes referentes a esse cenário, correspondem apenas aos que se
encontravam
na
chamada
“situação
irregular”,
que
consistia
em
associar
automaticamente a pobreza à criminalidade, de modo que os abandonados e
delinquentes, sem distinção, eram alvos da intervenção do Estado e privação de
liberdade, além de tornar o conjunto infanto-juvenil pobre facilmente passível de
sofrerem ação estatal. Pois,
A doutrina da situação irregular partia do princípio de que a origem
dos “problemas dos menores” estava no abandono moral, afetivo e
material por parte dos responsáveis. A família e a escola eram
consideradas responsáveis pelo controle e socialização das crianças
e adolescentes (ROSA, 2001, p.194).
A década de 1970 começa com a desestabilização da economia mundial
provocada pela Crise do Petróleo, que juntamente com a Revolução Tecnológica,
desencadeia a Reestruturação Produtiva; o neoliberalismo em voga diante da
desestabilidade social com o enfraquecimento do Welfare State, desemprego
estrutural e Estado mínimo. Por volta de 1975, o sistema autocrático militar começa a
se esgotar, a falta de liberdade e a repressão energética sobre a população faz com
que esta comece a responder às barbaridades e restrições de direitos perpetrados
pelo Governo. Na medida em que aumentava as contestações, ampliavam também as
respostas repressivas a estas.
Em 1979 um novo Código de Menores foi estabelecido. Estendendo a filosofia
menorista do código anterior (assim como ocorreu com a PNBEM em relação ao
SAM), o “novo” código estava ligado com a ideologia militar, que por sua vez, estava
carregando uma série de conflitos de legitimidade perante a falta de atendimento das
necessidades da população. Além disso, a organização de movimentos sociais e
sociedade civil, denúncias de abuso, maus tratos e violência, dentro das FEBEM(s)
passaram a repercutir internacionalmente. A única saída para a Ditadura Militar diante
25 da pressão popular e desfalecimento da política econômica era abrir as portas para a
democracia. Nesse movimento, a década de 1980 foi marcada por dois elementos
contraditórios: de um lado a economia brasileira decaída com uma dívida externa
abrupta e de outro, a riqueza de organização social e política da população. Havia
sido restaurada a democracia, os movimentos sociais caminhavam vigorosamente,
principalmente os movimentos ligados à infância, as universidades iniciaram pesquisas
sobre a problemática da infância desvalida, promovendo a desmistificação dessa área,
a quebra do senso comum e construindo o terreno para as futuras formulações de
proteção as crianças e adolescentes.
Em 1985 um marco político começava a engatinhar: O Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) foi fundado e no ano seguinte ocorreu o I
Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua. O nível de maturidade, organização
e consciência política dos integrantes do movimento pasmou a sociedade. Entre as
reflexões promovidas pelo movimento, os meninos que participaram debateram sobre
saúde, sexualidade, família e outros assuntos, porém, o tema que mais eclodia era a
violência. Dava-se assim, a corrida pelos direitos infanto-juvenis: a Frente Nacional de
Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes, a Pastoral do Menor, Associação
dos Ex-Alunos da FEBEM (ASSEAF), ONG(s) internacionais, ONU e UNICEF, Fórum
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e outros órgãos passaram a se
articular e realizar um processo diuturno de mobilização e conscientização da opinião
pública e dos constituintes. Nessa direção, em 1988 a nova Constituição Brasileira é
promulgada, traçando um salto rumo a transformação no modo de pensar no quesito
infância e juventude ao estabelecer este segmento como sujeitos de direitos e
prioridade no atendimento, como resulta o Artigo 227:
Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão (BRASIL, 1988).
Conquistada a vitória na Carta Magna, era necessário aproveitar a
oportunidade do momento para construir um aparato jurídico-legal que tratasse
especificamente da infância e juventude, num direcionamento contrário a legislação
policialesca e repressiva até então presenciada. Milhares de encontros, manifestações
e debates foram forjados, e em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
nasceu com a definição de criança e adolescente em condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento. O ECA trouxe grandes avanços legais no âmbito das políticas
26 públicas, dos organismos de proteção e sistematização da garantia de direitos. Com o
panorama de democracia participativa, ele garante não só a participação da sociedade
civil na gestão dos mecanismos de defesa dos direitos, mas traz a tona a
responsabilidade da família, Estado e Sociedade Civil de resguardar o segmento
infanto-juvenil.
Apesar desses avanços, ele não traz nenhuma ruptura com o projeto de
sociedade capitalista, o grande responsável pela desproteção e abandono das
crianças e dos adolescentes. Substituiu a categoria “delinquente” pela a de “infrator”, e
ainda, no campo de abertura para a participação da sociedade, se tornando
instrumento de pressão e luta, acabou sendo um mecanismo ambivalente, pois, é um
espaço que possui a possibilidade de ser cooptado pelo poder público. Por isso não se
constituiu como um documento revolucionário, mas que acompanhou as mudanças
sociais que se encaminhavam. Somado a isso, no âmbito da prática, tem sido difícil
materializar os artigos dispostos no ECA. A luta pelo rompimento do estigma do
“menor” e senso comum, por desnaturalizar a pobreza e a criminalidade ainda
persiste, a mídia e a ideologia dominante se constituem como grandes barreiras a
serem atravessadas.
Os meios de comunicação, em sua maioria, deveriam ser compreendidos como
instrumentos de controle social, entretanto, são utilizados de forma sensacionalista e
manipuladora, de postura política bem definida. Munem-se de análises fragmentadas
para defender posturas reacionárias como a redução da maioridade penal e a
conservação da ideia de que os adolescentes – negros e pobres- são responsáveis
pelo alto índice de criminalidade, ainda que eles sejam responsáveis somente por 10%
dos crimes praticados no Brasil, de acordo com o Ministério Público (2005). Um fato
relevante é que apenas 8% dessa percentagem corresponde a crimes que atentaram
contra a vida, a maioria (78%) são infrações cometidas contra o patrimônio. A
massificação das informações superficiais que estimulam o senso comum, baseiam a
reprodução dos valores éticos da classe dominante, tornando difícil a permeabilidade
dos princípios do ECA na sociedade.
Os meios mediáticos tendem a repassar as notícias sobre violência a partir do
ato violento em si e desconsideram as causas e o contexto do fenômeno, não
identificam os motivos e consequências dos crimes possuírem classe e raça. Ademais,
o pensamento de que a única via para obter segurança é através de isolamento dos
“desajustados sociais”, para que estes possam ser recuperados, debilita a junção de
segurança e cidadania, nessa perspectiva, a sociedade não reconhece o agressor
27 como cidadão. Além disso, o pífio recurso financeiro público e a falta de preparo
teórico-prático dos profissionais direcionados aos órgãos cujo escopo é o trabalho com
crianças e adolescente, bem como a apatia política das organizações e movimentos
sociais na década de 1990, também se constituíram em grandes abismos para
efetivação na prática o que já está posto legalmente:
E neste contexto novelesco, ou de filme policial, e,m que o ponto
fundamental é a inversão dos fatos e da realidade, o ECA tem sido
apontado por vários setores da opinião pública como um dos
responsáveis pela situação. Ele teria descriminalizado os menores.
No momento em que se processa a revisão constitucional, esses fator
são perigosos porque, se não avançarmos muito na prática, ao
menos temos de defender as conquistas da lei para lutarmos para
sua adoção e vigência (GOHN, 1994, p.111).
No âmbito do estado do Rio Grande do Norte (RN), em 1994, por meio da Lei
6.682, foi criada a Fundação Estadual da Criança e do Adolescente (FUNDAC), para
substituir a FEBEM após a promulgação do ECA. A FUNDAC é um órgão vinculado à
Secretaria de Estado do Trabalho, da Habitação e da Assistência Social
(SETHAS/RN), e se constitui como órgão responsável por formular e executar, em
todo o Estado, a política infanto-juvenil de forma horizontal e uniforme. Deve possuir
como base legal para a prática, as diretrizes e princípios do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8.069 de 13/07/1990), a Política Estadual para a Criança e o
Adolescente, aprovada pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONSEC/RN) e o SINASE. Possui como missão, asseverar as
condições necessárias para a efetivação da cidadania e desenvolvimento pleno e
sadio, de crianças e adolescentes que se encontram em vulnerabilidade psicossocial e
em especial, adolescentes autores de ato infracional.
Em relação ao cumprimento de medida socioeducativa, existem dez unidades
de atendimento: socioeducativas de privação e restrição de liberdade, são elas: Centro
Integrado de Atendimento aos Adolescentes (CIAD); Centro Educacional Nazaré
(CEDUC Nazaré); Centro Educacional Santa Catarina (CEDUC Santa Catarina);
Centro Educacional Esperança (CEDUC Esperança); Centro Educacional Santa
Delmira (CEDUC Santa Delmira); Centro Educacional Pe. João Maria (CEDUC Pe.
João Maria); Centro Educacional Pitimbu (CEDUC Pitimbú); Centro Educacional Caicó
(CEDUC Caicó) e o Centro Educacional Mossoró (CEDUC Mossoró). O CEDUC
Pitimbú, que será o palco da nossa pesquisa e reflexões nos próximos capítulos, é a
entidade de atendimento à jovens do sexo masculino, entre 12 e 18 anos –
excepcionalmente até 21 anos- que cumprirão a medida socioeducativa em regime de
internação. Localizado na divisa entre Natal e Parnamirim (RN), o Centro Educacional
28 Pitimbú deve garantir a integridade física, psicológica e moral, promovendo ações
socioeducativas destinadas aos adolescentes.
Entretanto, apesar da existência do ECA desde 1990 e de normativas
internacionais desde a década de 1940, na madrugada do dia 23 de julho de 1993, o
Brasil foi palco da Chacina da Candelária, em que seis adolescentes e dois adultos,
todos moradores de rua, foram assassinados por tiros à queima roupa disparados por
policiais militares (que por sua vez, atiraram contra mais de setenta crianças e
adolescentes, tendo como consequência as oito mortes), enquanto dormiam próximo à
Candelária, Igreja que se queda no centro do Rio de Janeiro. Não obstante, em 1999
os Estados Unidos presenciou “Columbine”, no qual dois estudantes do Instituto
Columbine atiraram em vários estudantes da instituição e professores.
Em 2011, um adolescente de 17 anos, internado no CEDUC Pitimbu, matou
outro adolescente de 13 anos que estava no mesmo núcleo de convivência, sendo sua
orelha e garganta cortadas, mesmo quando em legislação é proibido colocar
adolescentes de idades diversas no mesmo núcleo, como expressa o Art. 123. “A
internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local
distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de
idade, compleição física e gravidade da infração” (BRASIL, 1990).
Em 2012, Natal (RN) teve em suas páginas de jornal, a notícia de que o
CEDUC Pitimbu estava sendo parcialmente interditado por abrigar os adolescentes em
condições desumanas e degradantes, com suas estruturas condenadas pelo Corpo de
Bombeiros e Subcoordenadoria de Vigilância Sanitária. No começo do mesmo ano, é
aprovado o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), Lei nº
12.594, responsável por nortear e regulamentar as execuções da medida
socioeducativa, dando atenção às particularidades desse atendimento peculiar e
tentando estrangular as brechas que ainda insistem em atravessar o processo
socioeducativo. Portanto, apesar dos avanços legais é preciso transportá-los pra
realidade social, na materialidade do cotidiano das práticas institucionais e para
consciência da sociedade.
29 3 A (NÃO) EFETIVAÇÃO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA NO CEDUC
PITIMBÚ E O PAPEL DO SERVIÇO SOCIAL NO CUMPRIMENTO DA MEDIDA DE
INTERNAÇÃO
A presente pesquisa se realizou dentro do Centro Educacional Pitimbu
(CEDUC Pitimbu), unidade de Proteção Jurídico Social da FUNDAC, voltada para o
cumprimento da medida socioeducativa de internação para adolescentes do sexo
masculino, entre 12 e 18 anos, excepcionalmente até 21 anos de acordo com o
Parágrafo único expresso no Título I do ECA que versa: Parágrafo único. Nos casos
expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito
e vinte e um anos de idade (BRASIL, 1990). Foram entrevistados 11 profissionais: 2
policiais militares, 1 pedagoga, 1 assistente social, 1 psicóloga, 1 auxiliar
administrativo, 1 auxiliar odontológico, 1 auxiliar de enfermagem, 2 educadores e o
diretor da instituição.
O estudo se baseou na tentativa de compreender o significado de medida
socioeducativa, na ótica dos trabalhadores inseridos nesse campo quanto ao que ela
se propõe, bem como identificar as variáveis determinantes na sua efetividade. Este
capítulo está dividido em duas partes: a primeira, apresentada em 3.1, consiste em
perfilar de maneira descritiva os entrevistados e a segunda parte, localizada em 3.2,
traz à tona a discussão sobre a medida socioeducativa de privação de liberdade, e sua
implementação em Natal –RN.
3.1 O PERFIL DOS PROFISSIONAIS DO CEDUC PITIMBU
A pesquisa foi realizada com 11 profissionais, tendo como participantes das
entrevistas 80% do total de integrantes que compõem atualmente a equipe técnica do
CEDUC Pitimbu, que por sua vez, é constituída por duas assistentes sociais, uma
pedagoga, uma psicóloga e um apoio técnico. O perfil profissional que será
apresentado neste Trabalho de Conclusão de Curso encontra-se calcado nos
seguintes aspectos: nível de escolaridade, experiência anterior ao CEDUC Pitimbu na
área infanto-juvenil, idade, raça, religião, se possuem filhos e a forma de ingresso ao
campo de trabalho. Encontrei dificuldades de saber quantos profissionais existiam em
sua totalidade no Centro Educacional Pitimbu, a pedagoga não soube responder
quantos professores atualmente existiam na escola, falando que “deve existir mais ou
menos de 9 a 15 professores” (pedagoga). O que pude constar é que durante o dia,
estão presentes a equipe técnica completa, as duas profissionais ligadas à saúde,
apenas 4 educadores e 5 policiais militares (devido a diminuição do número de
30 adolescentes, existiam na faixa de 30 internos). Ao todo, observaram-se as seguintes
características no que se refere ao grau de escolaridade:
Gráfico 01: Grau de Escolaridade
Fonte: Coleta Direta/ 2012
O número 1 corresponde à quantidade de profissionais que possuem ensino
superior e são fixos da instituição, já que profissionais da área do Direito e da Saúde
(dentista e médico) visitam esporadicamente o CEDUC. O número 2 corresponde
àqueles profissionais que não possuem Ensino Superior, tendo o Diretor como parte
integrante dessa porcentagem, pois ainda estava cursando sua primeira graduação,
faculdade de Administração, ferindo diretamente o inciso I do artigo 17 do SINASE que
dispõe:
Art. 17. Para o exercício da função de dirigente de programa de
atendimento em regime de semiliberdade ou de internação, além dos
requisitos específicos previstos no respectivo programa de
atendimento, é necessário:
I - formação de nível superior compatível com a natureza da função;
(BRASIL, 2012).
No que tange ao aspecto de experiência na área da infância e juventude, antes
de serem inseridos num contexto de privação de liberdade juvenil, foi verificado que a
maioria já havia tido contato com essa área como pode ser observado no gráfico a
seguir:
31 Gráfico 02: Experiência Profissional
Fonte: Coleta Direta/ 2012
O número 1 corresponde ao percentual de entrevistados que já haviam
trabalhado na área de crianças e adolescentes; nesse grupo, concentram-se as duas
técnicas da saúde, a auxiliar de odontologia (formada também em curso técnico de
enfermagem) e a auxiliar de enfermagem. Estas duas últimas, apesar de estarem há 3
e 9 anos respectivamente no CEDUC, até o momento da pesquisa se encontravam
sem registro no Conselho Regional de Enfermagem. Tal percentual também
compreende a pedagoga que pelo caráter da profissão já havia tido proximidade com
a área. Contudo, ao ser indagada sobre a experiência, ela relacionou sua participação
no passado na Escola Penal com a sua prática profissional no CEDUC. O número 2,
em contrapartida, nos leva aos profissionais que tinham no Centro Educacional sua
primeira experiência: neste grupo, quedam os dois policiais militares, que, em virtude
da natureza de sua profissão, têm como compreensível a falta de experiência. O
Diretor da instituição que da mesma maneira como foi afirmado na análise do
elemento anterior, desrespeita o inciso II do artigo 17 do SINASE ao ocupar o cargo há
menos de um ano e nunca ter tido contato com a temática previamente:
Art. 17. Para o exercício da função de dirigente de programa de
atendimento em regime de semiliberdade ou de internação, além dos
requisitos específicos previstos no respectivo programa de
atendimento, é necessário:
II - comprovada experiência no trabalho com adolescentes de, no
mínimo, 2 (dois) anos; (BRASIL, 2012).
No que se refere a cor, pode-se constatar que 5 entrevistados afirmaram ser da
cor morena, 3 da cor parda e 3 da cor branca. Houve também uma predominância na
religião evangélica: 1 entrevistado disse não possuir religião, 4 são católicos (sendo
um não praticante) e 5 evangélicos. Apenas uma entrevistada não possuía filhos e um
educador entrou no CEDUC por via de concurso público, considerando que os dois
32 policiais militares são concursados e cedidos, assim como a pedagoga que pertence à
secretaria de educação e também foi cedida; o diretor não explicou qual foi o caminho
percorrido para ocupar o cargo, mesmo tendo sido questionado acerca disso. Apenas
afirmou que “antes de chegar a FUNDAC eu trabalhei em gabinete... de político”
(Diretor). A faixa etária dos trabalhadores não obteve variações significativas,
predominando pessoas com idade acima de 40 anos. Sobre isso, um dos policiais
afirmou certa preocupação:
“se você olhar bem, tem educadores aí já, não aguenta nem
em pé direito, pessoas já de idade, eu acho que pra trabalhar
com adolescente, eu acho que não é adequado... porque Deus
me livre de acontecer de um interno desse puxar a faca ou
ferro pra um educador desse, eles não têm preparação
nenhuma pra lidar com isso, eu digo física mesmo.” (Policial
Militar)
De acordo com o gráfico abaixo, pode-se constatar que 7 dos entrevistados se
encontravam na faixa etária entre 40 e 54 anos (n° 1) ; 2 entre 30 e 40 anos (n°2) e 2
possuíam 27 anos exatamente (n°3), estando a maioria acima da faixa dos 40 anos.
Sem a constante capacitação e reciclagem teórico-metodológica, este fator acaba por
repercutir de maneira improfícua no atendimento aos adolescentes, visto que muitas
vezes o fazer profissional acaba por se manter em posturas antiquadas e limitar-se em
ações rotineiras. Essa postura que estigmatiza os adolescentes autores de ato
infracional, alicerçadas em pensamentos antigos, não acompanha o movimento social
histórico dinâmico e veda a possibilidade de visualizar respostas e ações
emancipatórias, na perspectiva do horizonte da problemática.
Gráfico 03: Faixa Etária
Fonte: Coleta Direta/ 2012
33 Tecidas as considerações iniciais e traçado o perfil dos profissionais
entrevistados, debruçar-nos-emos no próximo ponto sobre a medida socioeducativa e
sua efetivação na ótica dos profissionais entrevistados, construindo um debate sobre a
concepção da medida e nós fundamentais que determinam sua concretização.
3.2
A
EFETIVIDADE
DA
MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA
NA
ÓTICA
DOS
PROFISSIONAIS NO CEDUC PITIMBU
A medida socioeducativa, proposta no ECA, é
uma medida de proteção
destinada aos adolescentes que praticaram o ato infracional, devendo ser
operacionalizada de acordo com as diretrizes do SINASE. Entende-se por ato
infracional, a conduta descrita como crime ou contravenção penal (BRASIL, 1990). A
medida socioeducativa, proposta no ECA, é uma medida de proteção destinada aos
adolescentes que praticaram o ato infracional, devendo ser operacionalizada de
acordo com as diretrizes do SINASE. Entende-se por ato infracional, a conduta
descrita como crime ou contravenção penal (BRASIL, 1990). A medida socioeducativa,
atualmente, ainda consiste no processo de tomada de posse das mazelas sociais por
parte do Estado, que através de práticas coercitivas, de forma superficial, tenta
esconder as manifestações do problema na obrigação de combater a criminalidade, na
finalidade de promover o sentimento de segurança e paz social. No entanto, medida
socioeducativa
deve
ser
compreendida
como
um
processo
peculiar,
cuja
intencionalidade é desenvolver a responsabilização dos atos pelo adolescente autor
do ato infracional, visando a reintegração da liberdade de forma responsável e
reeducando para o convívio social. Além disso, ela materializa-se através de meios
pedagógicos-educativos, assegurando atendimentos psicossociais, médico, jurídico,
odontológico, educativo, profissionalizante e executando ações culturais, esportivas e
de lazer ao adolescente privado de liberdade. É preciso entender, portanto, que a
privação de liberdade já é a dimensão sancionatório-punitiva e não consiste na perda
dos outros direitos inerentes aos adolescentes, expressos no Estatuto da Criança e
Adolescente.
Nesse contexto, foi questionado aos entrevistados o que era a medida
socioeducativa, as respostas variaram bastante de uma para a outra, como podem ser
vista no gráfico a seguir:
34 Gráfico 04: Medida Sócioeducativa
Fonte: Coleta Direta/ 2012
O número 1 corresponde a respostas que caracterizaram a medida por ações
que eram ou deveriam ser desenvolvidas durante o período de internamento, tal como
artesanato. O número 2 equivale a respostas vazias e amplas sobre o significado da
medida, “É um modo assim né, da gente saber lidar com eles, educar eles né, arrumar
uma maneira de ensinar pra ele né, no meu entender...” (auxiliar de odontologia). O
número 3 compreende o conjunto das respostas do diretor e da pedagoga que não
souberam responder a pergunta, se atendo apenas ao fato de que ela não cumpria o
seu papel:
“A medida socioeducativa, eu vejo como, que não é o caso
aqui né, entre aspas, que a gente vê né, que o adolescente ele
vem pra aqui, pra cumprir e receber medida socioeducativa,
mas não é a realidade... que a gente vê. Por que eu acho que
no momento que ele está aqui, ele está sob nossa
responsabilidade mas mesmo assim fica a desejar...”
(Pedagoga)
O número 4 contém o percentual ligado às respostas dos dois educadores que,
de forma abstrata e pouco clara, disseram que a medida é consequência do que os
adolescentes conseguiram, socializá-los e fornecer condições básicas de saúde e
educação. Os números 5 e 6 abrigam as respostas da psicóloga e da assistente
social, respectivamente. A psicóloga afirmou que a medida era “uma forma de reinserir
35 e trabalhar pedagogicamente”, contudo, não explicou de que maneira isso ocorreria e
nem que fatores deveriam ser trabalhados. A assistente social afirmou que era “um
momento de reflexão sobre a gravidade do ato cometido e de ter encaminhamento”
(Assistente Social). Um fator muito preocupante esteve presente em quase todas as
respostas: ao serem indagados sobre o significado de medida socioeducativa, 82%
dos profissionais entrevistados responderam que ela não funcionava (quando não só
respondiam isso, como é o caso do diretor e da pedagoga supracitados). Esse fato
aponta para um elemento chave na compreensão de medida socioeducativa - ela
carrega na sua constituição, o rosto da ineficácia, que não é novo e possui sua
herança no exórdio da política voltada para população infanto-juvenil, como pode ser
notado ao longo do capítulo 1.
A medida socioeducativa, atualmente, é uma resposta coercitiva estatal ao
fenômeno da criminalidade juvenil, que por sua vez tem sua acepção manipulada pela
mídia, senso comum e teorias profícuas ao sistema produtivo hegemônico baseadas
em argumentos frágeis, de modo a “invisibilizar” os adolescentes autores de ato
infracional que viveram a maior parte de sua vida na subcidadania, com participação
social marginalizada, em sintonia com as normas societárias burguesas.
Nesse sentido, a característica principal da medida não é a de proteção, mas a
de punição, sua essência é castigar os adolescentes que não conseguiram se ajustar
à ordem social e tentaram transgredi-la – ou seria mantê-la, já que a cultura do medo
faz as empresas privadas de segurança lucrarem e legitima de um modo geral as
práticas violentas e de coação do Estado e Sociedade. Nesse sentido,
[...] cidade punitiva ou instituição coercitiva? De um lado,
funcionamento do poder penal repartido em todo o espaço social;
presente em toda parte como cena, espetáculo, sinal, discurso;
legível como um livro aberto; que opera por uma recodificação
permanente do espírito dos cidadãos; que realiza a repressão do
crime por esses obstáculos colocados à ideia do crime; que age de
maneira invisível e inútil sobre as "fibras moles do cérebro", como
dizia Servan. Um poder de punir que correria ao longo de toda a rede
social, agiria em cada um de seus pontos, e terminaria não sendo
mais percebido como poder de alguns sobre alguns, mas como
reação imediata de todos em relação a cada um. De outro, um
funcionamento compacto do poder de punir: ocupação meticulosa do
corpo e do tempo do culpado, enquadramento de seus gestos, de
suas condutas por um sistema de autoridade e de saber; uma
ortopedia concertada que é aplicada aos culpados a fim de corrigi-los
individualmente; gestão autônoma desse poder que se isola tanto do
corpo social quanto do poder judiciário propriamente dito. O que se
engaja no aparecimento da prisão é a institucionalização do poder de
punir (FOUCAULT, 2004, p. 107).
36 Ainda em harmonia com o pensamento foucaultiano, o castigo que antes era
aplicado sobre o corpo, na modernidade se direciona para a subjetividade do
indivíduo, coabitando com ranços de punições arcaicas ferindo o corpo quando há
oportunidade, quando em caso de rebeliões, por exemplo. Esse pensamento é
facilmente encontrado nos discursos profissionais: “Mas num é punição de espancar e
bater de nada não, [...] é evitar uma visita, evitar ir prum futebol, tá entendendo?!”
(Policial Militar); “Infelizmente não podemos é... agir com mais rigor, porque o estatuto
não permite” (Policial Militar);
“O que tem sido o cumprimento das medidas
socioeducativas? Tem sido um local onde você vai ser
castigado, vai ser humilhado, você vai sofrer, você vai sair pior
do que você entrou, esse tem sido os fatos os fatos do
cumprimento da medida socioeducativa” (Assistente Social)
Destarte, é através da transgressão das leis e da ordem que o adolescente
acusado de cometer um crime ou contravenção penal traça seu primeiro contato com
a justiça, e não pela via do direito, demarcando um processo contraditório do sistema
de justiça, acessado pelo canal da infração, criando a identidade repressiva e
antidemocrática do significado de direito e principalmente, da medida socioeducativa,
que, por sua vez, não passa de um castigo, vestido com a roupagem de presídio na
maior parte do tempo, por refletir as propagações das contradições produzidas pelo
sistema capitalista2.
Elementos diversos e complexos, introduzidos pelo modo de produção burguês
acabam por atravessar de maneira incisiva a vida dos adolescentes pertencentes às
classes subalternas, patamar no qual se localiza a maioria – se não todos em algumas
instituições – da população jovem em cumprimento de medida de internação. Dentre
esses elementos está a ausência da realização do papel protetivo da família, escola e
comunidade; valendo ressaltar que essa família, inserida num contexto de desafios
cotidianos pela sobrevivência, passe a identificar as alternativas agressoras ao
desenvolvimento sadio das crianças e adolescentes, como o trabalho infantil e
exploração sexual, como o único meio possível de manutenção de suas vidas. Há
também a reprodução das relações sociais na perspectiva de carência à integração
social de forma plena, reafirmando uma identidade de juventude à imagem de como
2
Para maior aprofundamento acerca da temática, ver artigo de Costa, “Adolescência, violência e
sociedade punitiva”, em Serviço Social e Sociedade número 83; e (IN)Visibilidade perversa:
Adolescentes infratores como metáfora da violência, de Apolinario Sales.
37 são vistos e julgados pela sociedade, numa cidadania subalterna, com forte traço da
criminalização da pobreza.
O tráfico de drogas é o elemento que mais possui ramificações: o uso de
drogas proporciona o lazer, que, apesar de assegurado por lei, inexiste na realidade
das classes populares; enquanto atividade econômica, se constitui também como
oportunidade de emprego e meio de aquisição de bens materiais antes não
acessíveis, além de ser sinal de status e autoestima para os seus integrantes, coisa
que dificilmente esses adolescentes encontrarão em outros espaços, associado com a
visibilidade a esses jovens que os meios de comunicação proporcionam através da
violência, quando tornam conhecido seus nomes e rostos ao praticarem algum crime,
reafirma a questão do status. A cultura da violência é a espinha dorsal do contexto
social do cotidiano dos adolescentes, extrapolado pela apatia da Sociedade Civil e
falta do Estado no provimento de cristalizações das políticas sociais, garante a
inserção do crime na biografia da juventude pobre. Essa ideia, por sua vez, é
confirmada ao longo das entrevistas como a característica mais estridente na não
efetivação da medida: “A maior dificuldade enfrentada é a questão da alienação por
parte do Estado como também da sociedade, [...] isso aqui passa um pouco invisível”
(Psicóloga).
Articulando essa realidade com o que se encontra preconizado no ECA,
observa-se:
Art 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são
aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem
ameaçados ou violados:
I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III – em razão de sua conduta.
Nessa perspectiva, a medida socioeducativa deve ser compreendida como um
direito inalienável dos adolescentes, assegurada por lei, que se canaliza pela via da
medida protetiva, visto que as três dimensões do artigo 98, em sua maioria, foram
responsáveis pela violação dos direitos juvenis. A primeira – I por ação ou omissão da
sociedade ou do Estado – se concretiza na falta de estrutura das escolas públicas, da
saúde, de habitação digna para as famílias pauperizadas, na ausência de provimento
de esporte, cultura, lazer e emprego para os adolescentes das camadas populares
aliada à apatia da sociedade ou sua ação no ato de marginalizar as crianças e
adolescentes de baixo ou nenhum poder econômico. A segunda – II por falta, omissão
ou abuso dos pais ou responsável –, no entender do cenário de precariedade e
complexidade no qual a família se encontra inserida atualmente, é um fato muito
38 comum nas áreas onde as classes subalternas se localizam. A terceira – III em razão
de sua conduta – é a referência considerada quando se fala em medida
socioeducativa, quando, na verdade, todas os três caracteres do artigo 98 deveriam
ser ponderados, o que torna a situação ainda mais inquietante. Ora, é preciso começar
a perceber e questionar o tipo de sociabilidade e Estado que se omite, quando não
promove, todas as três vias de violação de direitos de crianças e adolescentes de sua
nação. Não sendo suficiente o desrespeito aos direitos infanto-juvenis precedente à
entrada do adolescente no CEDUC Pitimbu, no momento em que deveria ser efetuada
a medida protetiva, aclarar e fomentar a realização da real concepção de direito e
cidadania, acaba por se tornar mais um espaço de
degeneração dos direitos
humanos, democracia e qualquer possibilidade de restituição da cidadania integral:
“Nós temos uma estrutura deficitária, temos um sistema
deficitário, que na realidade a gente pouco tá podendo fazer
por ele. Temos poucas oficinas, hoje praticamente eles (os
adolescentes) vivem o tempo todo reclusos, tá faltando
atividades, além da condição, falta também é... a questão de
olhar isso aqui como ele realmente deveria ser olhado”.
(Diretor)
“Deixa a desejar (a medida no CEDUC), [...] ele (adolescente)
tá sob nossa responsabilidade, mas aí entra um órgão e aí
vem, procura e bate [...] como eu soube, e dá choque como
houve no dia da rebelião e tal, e teve meninos aqui que
apanharam entendeu?!”. (Pedagoga)
Com relação à configuração da medida no CEDUC, as respostas dos sujeitos
da investigação foram pouco diversificadas e estão demonstradas no gráfico a seguir:
Gráfico 05: Configuração da Medida Sócioeducativa
Fonte: Coleta Direta/ 2012
39 O número 1 equivale ao grupo de respostas que afirmou a materialização da
medida por meio de recursos oferecidos: oficinas, aula e atendimentos. O número 2
refere-se às respostas que caracterizaram a medida pelas orientações fornecidas e
oferta da educação escolar, e o número 3 não responderam sobre a formatação da
medida, apenas citaram sua debilidade: “Sinceramente... as condições daqui não tem
como trabalhar em cima disso aí não sabe, estrutura, em geral, em tudo, não tem
como ninguém trabalhar aqui, é precária a situação” (Auxiliar administrativa).
Mais de 90% dos entrevistados afirmaram haver dificuldades e inexistência de
condições e estrutura para a implementação da medida socioeducativa de forma
eficaz: “Hoje o que é que vai fazer aqui uma assistente social, uma psicóloga, uma
pedagoga? Nada. A gente vai apenas manter a dificuldade que estamos” (Assistente
Social).
Desse modo, faz-se imprescindível uma indagação circunspecta sobre o raio
de efeito que as mobilizações, desde a redemocratização do país, em prol da infância
e juventude conseguiram atingir na contemporaneidade, quando depois de mais de 20
anos da instituição do ECA, ainda é possível se deparar com o estado de calamidade
no qual se encontra atualmente o CEDUC: considerando a primeira parte deste
capítulo, sabe-se que apesar da maioria dos profissionais já possuírem contato prévio
com a temática de criança e adolescente; foi constatado, portanto, que ninguém soube
dar o significado de medida socioeducativa, que as transgressões das normas legais
principiam na localização do espaço físico, passando pela porta de entrada através da
presença dos policiais militares – em vista de uma profissionalização mais
humanitária, policiais civis seria uma alternativa mais coerente -, visitam a sala da
diretoria com o atual gestor e deságua nos profissionais e modo de lidar com os
adolescentes. Compreendendo, todavia, que a sociabilidade burguesa fomenta
práticas tecnicistas e posturas fatalistas, imprime dificuldades colossais e escassa
condição de trabalho para ações profissionais transgressoras da ordem produtora e
emancipatórias.
O prédio do CEDUC Pitimbu é localizada fora da capital, no município vizinho
em Parnamirim, com um acesso difícil e chão de barro, sendo necessário que um
carro pertencente à instituição busque os familiares no ponto de ônibus nos dias de
visita; remete-se, portanto, à falta de vontade de tornar esses adolescentes visíveis,
trilhando um caminho rumo à tentativa de ocultá-los e desenhando a indesejabilidade
social em suas identidades, circunscrevendo a justiça brasileira analogicamente a uma
sociedade autoritária, severamente hierarquizada e excludente. O Centro Educacional
40 se localiza entre um presídio, rio e complexo militar pertencente à Marinha do Brasil,
pondo na leviandade o parágrafo 1º do artigo 16 da seção III do SINASE, que proíbe
unidades socioeducacionais próximas ou ligadas a espaços penais. A única diferença
visível na entrada da estrutura do CEDUC e da estrutura de um presídio é o muro
baixo. Assim:
As crianças e adolescentes, mesmo depois do ECA, continuam ainda
presas da manipulação ideológica e da aposta na lógica da
fragmentação, e suas condições de vida e necessidades não
recebem o suporte em termos de política pública (Sales, 1998). Os
governos federal, estaduais e municipais revelam-se pouco
determinados a ser criativos e eficazes na lida com esta expressão da
questão social, de tão grave monta em seus aspectos visíveis e
invisíveis, em face do que submetem o seu foro à política de
segurança pública e de justiça, reatualizando os vínculos
naturalizadores das teses acerca da criminalidade e pobreza.
(SALES, 2007, p. 94)
No período em que a pesquisa foi realizada, os adolescentes estavam há mais
de uma semana sem sair de seus núcleos, fosse para alimentação, receber visitas ou
atendimento individual. Portanto, se existia algum recurso que remetesse ao direito, no
âmbito da socioeducação, nesse momento passou a não existir mais, reinscrevendo o
CEDUC como um local de despejo de adolescentes não aceitos aos olhos da
população. Por estar parcialmente interditado, o CEDUC não aceita mais a entrada de
novos adolescentes e movimentou boa parte de seus socioeducandos para Mossoró
(Cidade no Interior do Rio Grande do Norte), a 278 km da capital, provendo o
fornecimento de veículo para as visitas dos familiares da capital apenas uma vez ao
mês.
Além disso, não há mais nutricionista na instituição, reclamações sobre o pobre
gênero alimentício foram registradas durante o desenvolvimento das entrevistas: “A
questão da fiscalização da alimentação, que muitas vezes a alimentação não é muito
boa, nós tínhamos uma nutricionista, mas agora nós não temos mais” (Assistente
Social).
“às vezes até alimentação falta, questão de alimentação sabe...
geralmente eles (adolescentes) só se alimentam melhor
quando os familiares vêm pra visita, traz uma coisa, traz outra,
às vezes eles até dispensam o almoço, as coisas assim da
casa, porque uma nutricionista, uma pessoa que coloca
aqueeeelaaa alimentação sabe?!” (Educador).
Apesar de realização de visitas domiciliares em algumas ocasiões, não há
acompanhamento ou ações no âmbito familiar, que promova o fortalecimento dos
41 vínculos, aspecto crucial num desenvolvimento produtivo pessoal e social, além de
estar destoante do artigo 100 do ECA e inciso IX do artigo 35 do SINASE, sobre o
princípio de fortalecimento dos vínculos familiares
na execução da medida, que
expressa respectivamente: Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta
as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos
vínculos familiares e comunitários. (BRASIL, 1990); e Art. 35. A execução das
medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: [...] IX - fortalecimento
dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo. (BRASIL, 2012).
Diante desse palco de contradições bizarras e lutuosa escassez de recursos
concretos para o engessamento das políticas públicas e direitos básicos do ser
humano, há a possibilidade de se apropriar das mazelas político-sociais como ponto
de partida parametrizável na construção da ideia axiológica e teleológica do que é a
medida socioeducativa. Se a medida socioeducativa é um direito político-social
destinado à população adolescente, é preciso começar a edificação de sua ideia
descortinando o sentido de direito e política que aqui se faz manifestado. O direito,
assim como a história, teve seus signos em constante mutação, e se transforma de
acordo com as mudanças sociotécnicas, interesses da classe que sedia o poder e luta
pela hegemonia, desenvolvimento social, tecnológico e econômico. O grupo dos
direitos pertencentes ao homem é além de variante e não linear, diversificado, numa
conjuntura em que o individualismo impede a ideia coletiva de humanidade, vai negar
também a ideia de direito universal, tratar de maneira arbitrária o merecimento dos
direitos fundamentais e inalienáveis, construindo a incoerência contemporânea que os
direitos humanos atravessam.
A participação no poder, determinado pelo poder econômico e manipulado pela
ideologia dominante, acaba por rogar um poder político que diante de uma
democracia, exige um direito a sua submissão. É preciso ter em mente que vivemos
numa sociedade marcada pela herança de concepção de direito de ser cidadão de
acordo com as posses econômicas, em que só é cidadão quem tem propriedade
privada, que, por sua vez, está concentrada nas mãos de uma minoria. Todavia, essa
democracia pode ser instrumento da classe trabalhadora no momento em que esta se
torna uma demanda com o surgimento e agravamento das questões sociais, forma
novas exigências e se realiza como autor de sua história.
Entretanto, para além da necessidade de lutar pelos direitos do homem –
sociais, civis e políticos –, e exigir execuções efetivas na realidade social, o direito
possui, em sua essência, o papel primitivo de suprimir e restringir, e não o de explanar
42 a liberdade, a função “de corrigir a árvore torta, e não a de deixá-la crescer
naturalmente” (BOBBIO, 2004, p. 53) e asilado no modo de produção capitalista, isso
se radicaliza. Não obstante, é preciso apossar-se dessa função primária da lei e
transformá-la em proveitosa para a maioria, é nessa hora que a democracia passa a
se concretizar, restringindo e oprimindo a desigualdade nas relações sociais, os
benefícios da classe burguesa e a concentração da riqueza socialmente produzida.
Logo,
Uma visão dialética e contra hegemônica, em que os direitos
humanos são vistos como mediações para a construção de um
projeto alternativo de sociedade: inclusiva, sustentável e plural.
Enfatiza uma cidadania coletiva, que favorece a organização da
sociedade civil, privilegia os atores sociais comprometidos com a
transformação social e promove o empoderamento dos grupos
sociais e culturais marginalizados. Afirma que os direitos políticos não
podem ser reduzidos aos rituais eleitorais, muitas vezes fortemente
mediatizados pela grande mídia e pelas estratégias de marketing.
Coloca [...] na perspectiva da construção de uma quarta geração de
direitos que incorpora questões derivadas do avanço tecnológico, da
globalização e do multiculturalismo. Acentua a importância dos
direitos sociais e econômicos para a própria viabilização dos direitos
civis e políticos. Privilegia temas como: desemprego, violência
estrutural, saúde, educação, distribuição de terra, concentração de
renda, dívida externa e dívida social, pluralidade cultural, segurança
social, ecológica. Do ponto de vista pedagógico, admite a
transversalidade mas privilegia a interdisciplinaridade e enfatiza
“temas geradores”. Trabalha as dimensões sociocultural, afetiva,
experiencial e estrutural do processo educativo na perspectiva da
pedagogia crítica e assume do ponto de vista psicopedagógico um
construtivismo sociocultural (CANDAU, SACAVINO, 2003, p. 96).
A política é um espaço de conflito de classes antagônicas, às vezes
usado como área de burocratização e pragmatismo, que serve como via para a
problematização da democracia, desmistificação de consensos, retrocessos
e/ou avanços na conquista de direitos. Sendo assim, a medida socioeducativa
deve ser entendida como um direito conquistado politicamente para os
adolescentes
–
por
possuírem
a
condição
peculiar
de
pessoa
em
desenvolvimento, acabam por serem inimputáveis – que se operacionaliza por
meios pedagógicos educativos, cuja finalidade é a responsabilização não só
pelos seus atos, mas por suas vidas, na tentativa de transformá-los em atores
protagonistas de sua história, de acordo com uma liberdade responsável,
delineando uma nova relação com a comunidade e convívio coletivo,
metamorfoseando sua inserção excludente na subcidadania em uma cidadania
efetivamente plena e desenvolvendo mecanismos que possam explorar suas
43 potencialidades e seus limites numa perspectiva de integração social,
democrática e dignamente humana. Nesse âmbito,
A contenção não é em si a medida socioeducativa, é a condição para
que ela seja aplicada. De outro modo ainda: a restrição da liberdade
deve significar apenas limitação do exercício pleno do direito de ir e
vir e não de outros direitos constitucionais, condição para sua
inclusão na perspectiva cidadã. (VOLPI, 2011, p. 28)
Em vista disso, foram listadas pelo profissionais distintas dificuldades na
implementação da medida no CEDUC: com 21,49% das respostas, a liderança se
queda com a falta de profissionais, seguido de ausência de recursos monetários e
estruturantes, oferta de oficinas, “destutelamento” do Estado e Sociedade, falta de
punição a manutenção da disciplina. Como ações para sanar essas dificuldades foram
assinaladas o investimento, maior número de profissionais, capacitação dos que já
existem, tutela do Estado e a concretização da política que já existe, maior integração
entre os profissionais das múltiplas áreas, alimentação adequada e acompanhamento
do jovem mesmo após sua saída do CEDUC.
A realidade latente da falta de interdisciplinaridade, do conhecimento da
dimensão política de cada área e principalmente a negligência do juízo do que é ser
Educador, seu papel e sua importância, visto que é o profissional mais próximo do
adolescente, é um dos componentes cruciais que merecem ser considerados quando
se pensa medida socioeducativa em Natal, como se identifica nas falas a seguir: “Ele
abre pavilhão? Então ele é educador” (Assistente Social); “Eles simplesmente largam
os meninos aqui e pronto, só falta falar agora pega e se vira com ele” (Educador).
Nenhum dos dois educadores tinha ensino superior ou tinha tido qualquer
capacitação sobre a temática durante os anos de trabalho no Centro Educacional, bem
como, demonstraram a total falta de conhecimento sobre quaisquer normativas legais
basilares da medida socioeducativa, como se percebe nas respostas: “A gente segue
o regimento interno da casa mesmo... tudo certinho.” (Policial Militar 1); e “O que a
gente tem que fazer aqui no caso é... não pode atirar, não pode bater, é... o máximo
que a gente pode fazer é agir quando realmente tá uma coisa mais séria.... mas fora
isso é eles lá e a gente aqui na da gente. E evitar fugas.” (Policial Militar 2)
Ademais, apenas dois profissionais – a assistente social e o diretor – falaram
parcialmente sobre as legislações que direcionavam os princípios da prática do
atendimento socioeducacional. De toda maneira, a falta de reflexões e elaborações de
propostas criativas alternativas à situação precária do CEDUC, associada a falta de
ocupação dos espaços de reivindicação, demonstram, além do pouco interesse da
maioria dos profissionais, uma das maiores dificuldades em busca da mudança e
44 quebra de paradigmas: empenho no campo laboral. Lembrando que o espaço sócio
ocupacional é minado diariamente pela falta de valorização, pelas frustrações que a
burocratização da prática profissional e correlações de forças podem proporcionar, é
preciso sempre buscar identificar na realidade as opções postas para o fazer laboral
crítico reflexivo, de modo coletivo, visto que
“O trabalho educacional abrange conjuntos de pessoas que
coletivamente “se dão conta” do efeito multiplicador e do poder que a
tomada de consciência coletiva adquire, bem como da solidariedade
transindividual dos direitos humanos.” (CANDAU, SACAVINO, 2003,
p. 138)
Uma justiça acessada em seu primeiro plano pela infração, um direito
circundado por policiais militares, firmado na falta de perspectiva de futuro, de
alimentação e ausência da educação, devem ser condenados. Diante desse contexto,
a profissão de Serviço Social é chamada para atuar dentro desse cenário e possui,
portanto, um papel no cumprimento da medida de privação de liberdade. Essa
discussão será o foco do próximo capítulo.
45 4. O LUGAR DO SERVIÇO SOCIAL NO CUMPRIMENTO DA MEDIDA DE
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
O presente capítulo trata sobre as particularidades do Serviço Social inserido
no CEDUC-PITIMBU. No quesito 4.1 são apresentadas reflexões acerca da prática e
identidade do Serviço Social enquanto profissão assalariada liberal, inserida no modo
de produção capitalista, de especificidade integrada à divisão social e técnica do
trabalho, subsidiada por aportes legais. Na segunda parte, 4.2, serão perscrutadas as
atuações da profissão considerando seus recursos técnicos e base ético-política.
Como ferramenta deste capítulo, foram utilizadas as onze entrevistas com os
profissionais do CEDUC como citado no capítulo anterior, esmiuçando em especial, a
entrevista da Assistente Social.
4.1 O SERVIÇO SOCIAL ENQUANTO PROFISSÃO INSERIDA NA DIVISÃO SÓCIOTÉCNICA DO TRABALHO.
O capitalismo contemporâneo sofreu diversas influências ao longo do seu
desenvolvimento, que, por sua vez, constituíram-se como decisivas na transformação
da estrutura da organização do trabalho na sociedade. Nesse sentido, serão
retomados alguns processos históricos que incidiram diretamente nas condições de
trabalho da classe laboral, visando um melhor entendimento das configurações atuais
em que o Serviço Social se estabelece e se desenvolve. A complexificação do mundo
do trabalho se dá a partir da década de 1970, cujas causas se dividem entre a crise
estrutural do capitalismo, fim do Leste europeu – tornando alguns grupos de esquerda
em social-democratas – e a expansão do projeto neoliberal.
No que diz respeito ao processo produtivo, as formas de acumulação baseada
no taylorismo/fordismo – produção em massa, divisão de funções, controles amostrais
entre outros – foram esgotadas e superadas pela então mais nova tecnologia baseada
no modelo toyotista, fundamentado na produção flexível, multifuncionalização da mãode-obra, controle de qualidade total e a perspectiva do “just in time”3.
Nesse sentido, a realidade se divide em duas veias contraditórias que passam
a compor o espaço do trabalho: diminuição da classe operária industrial versus a
expansão do trabalho assalariado. Esse fenômeno traz como consequência uma série
de fatores tais como: des e subproletarização, expansão do desemprego industrial (já
que cada vez mais o homem é substituído pela máquina), heterogeneização da classe
trabalhadora visto que mulheres passam a serem incorporadas e jovens e idosos são
3
“Just in time” é um sistema administrativo japonês de produção cuja flexibilidade da
quantidade de acordo com a demanda, garante, entre outros aspectos, a diminuição do
estoque, maior qualidade e lucratividade.
46 excluídos, retrocesso de direitos e intelectualização do trabalho. A crise do petróleo
nos anos 1970 faz prosperar as desigualdades sociais junto à instabilidade sócioeconômica que multifaceta a questão social. Como enfrentamento, o modelo de
produção flexível, acompanhado de novas tecnologias, pode se moldar de acordo com
a demanda do mercado tornando a reestruturação produtiva em uma resposta
lucrativa para a classe burguesa. Essa nova fase exigiu mudanças na administração
da força de trabalho, na qual o trabalhador passa a ter diversas funções e necessita
suprir as exigências de qualificações com múltiplas competências. Ao mesmo tempo, a
automação, robótica e microeletrônica tomam o lugar do homem, criando o que
chamamos de desemprego estrutural, e intelectualiza o trabalho: o trabalhador já não
transforma de forma direta os produtos, operacionaliza o processo produtivo através
de recursos mecânicos computadorizados. Não obstante, essa flexibilização se dá nas
relações trabalhistas, tornando as condições de trabalho precárias e criando ofícios
temporários e parciais, com terceirização da mão de obra e subcontratações que,
associadas à economia informal, desestabilizam a garantia dos requisitos básicos para
a sobrevivência e reprodução social da classe trabalhadora. Assim,
Essas diversas categorias de trabalhadores têm em comum a
precariedade do emprego e da remuneração; a desregulamentação
das condições de trabalho em relação às normas legais vigentes ou
acordadas e a consequente regressão dos direitos sociais, bem como
a ausência de proteção e expressão sindicais, configurando uma
tendência à individualização extrema da relação salarial. (BIHR, 1992,
p.89 apud ANTUNES, 1995, p. 52)
O neoliberalismo encena o papel da salvação, se constituindo como
pensamento político-social vigente e ideologia legitimadora do Estado mínimo nas
políticas sociais – edificando políticas compensatórias –, Estado máximo no que se
refere a salvar a economia e o mercado em seus períodos críticos. A ideia é a defesa
da liberdade individual, a defesa do privado (propriedade), por isso o Estado deve se
manter apático, tendo sua função restrita à garantia da ordem, da lei e deve promover
o mercado, pois ele fomentará, por si mesmo, uma distribuição apropriada dos
recursos e, por conseguinte, desenvolverá o bem comum geral da sociedade. Por isso,
Ainda que o Estado continue sendo um agente importante na indução
do desenvolvimento, seu papel essencial consiste em receber e
processar os sinais do sistema global interconectado e adequá-lo às
possibilidades do país, deixando que sejam as empresas privadas
que assumam o risco, invistam e criem riqueza ou miséria conforme
sua capacidade e competência. (CASTELLS, 1999, p.153)
Nesta perspectiva, a noção neoliberal de liberdade ganha corpo no
individualismo na forma de racionalizar e agir no mundo, a participação no mercado é
parâmetro na qualificação dos sujeitos, fazendo com que os integrantes da classe
47 subalterna sejam compreendidos como inválidos, interferindo diretamente na
subjetividade dos indivíduos, preservando a reprodução de posições desiguais
ocupadas pela classe trabalhadora versus burguesa nas relações sociais. O mundo
laboral assiste a um novo fenômeno na contemporaneidade: a desproletarização do
trabalho industrial, o crescimento do terceiro setor, o chamado setor de serviços, e a
financeirização do capital.
O setor terciário além de depender da acumulação industrial, não lida com a
produção dos objetos materiais e, portanto, não produz de forma direta a mais-valia.
Contudo, para a manutenção do sistema de produção capitalista são necessários
recursos legitimadores da hegemonia da classe burguesa, por isso, o setor terciário
está intrinsecamente ligado à extração da mais-valia ao conservar a engrenagem de
exploração da força de trabalho, gerando condições indispensáveis para a reprodução
da vida dos trabalhadores. É nesse âmbito que o Serviço Social se insere através do
trabalho assalariado, sendo uma profissão regulamentada e detentora de normas ético
legais norteadoras do fazer profissional, necessitando assim de formação universitária
especializada e compreensão de uma prática tensionada pelos interesses polivalentes
de classes opostas. Destarte,
O processo de produção e reprodução capitalista requer uma gama
de atividades que, não sendo diretamente produtivas, é necessária ao
movimento do capital, seja porque reduz o limite negativo à
valorização do capital (como, por exemplo, atividades do comércio),
seja porque se dedica à criação de base para o exercício do poder de
classe – que tem no Estado sua maior expressão. (IAMAMOTO,
2008, p.256)
Vale ressaltar que, apesar da ligação duradoura com as ações caridosas, Igreja
e práticas moralizadoras, doutrinárias, de culpabilização dos sujeitos, cuja perspectiva
referencial era “ahistórica”, é no período da década de 1970 que o Serviço Social se
laiciza, passa a se envolver com os interesses da classe trabalhadora, experimenta
em seus operadores o militantismo político, passando a coexistir, assim como classes
sociais na realidade, projetos profissionais distintos. Assim, de forma coletiva, a
profissão passa a debater e imprimir mudanças em suas normativas legais e atuações,
na direção do direito e proteção social, construção de um projeto ético-político que
prioriza os interesses da classe trabalhadora e nega qualquer tipo de exploração. Em
vista disso, é preciso compreender o significado sociopolítico da profissão e as
implicações que contornam as condições da prática profissional, localizando-a como
especialização do trabalho inserido na divisão social e técnica na sociedade
capitalista. Nesse sentido, o Serviço Social possui utilidade social na participação da
reprodução das relações de dominação de classe e de suas contradições. A
48 necessidade social da profissão, principal responsável pela sua existência e
permanência, se deve à radicalização da questão social4 criando novas expressões
que passam a necessitar de intervenções para a sua sutura. Desse modo, o
significado da profissão se movimenta mediante as relações mercantis de trabalho e
direção política do exercício profissional.
Situada entre duas classes antagônicas, a profissão é liberal e mediada pela
compra e venda da capacidade de trabalho por seus empregadores, possui a condição
de trabalhador assalariado e precisa responder ao empregador e à demanda
institucional. Constrói assim, uma teia complexa de ações dirigidas ao fornecimento de
condições materiais objetivas de sobrevivência da classe subalterna e manuseio das
demandas do capital. Nesse momento é preciso perceber o caráter e a função política
do Serviço Social, que situado numa realidade histórica, encontra possibilidades
concretas de reproduzir as condições de exploração da classe trabalhadora, mas
também, o terreno profícuo para propulsar a materialização dos indivíduos como
transformadores da sociedade e sujeitos da história. Logo,
O exercício profissional não foge a essas determinações sociais. O
assistente social, ao ingressar no mercado de trabalho – condição
para que possa exercer a sua profissão como trabalhador assalariado
– vende a sua força de trabalho: uma mercadoria que tem um valor
de uso, porque responde a uma necessidade social e um valor de
troca expresso no salário. O dinheiro que ele recebe expressa a
equivalência do valor de sua força de trabalho com todas as outras
mercadorias necessárias à sua sobrevivência material e espiritual,
que podem ser adquiridas no mercado até o limite quantitativo de seu
equivalente – o salário ou proventos -, que corresponde a um trabalho
complexo que requer formação universitária. É por meio dessa
relação mercantil que se dá a objetivação do valor de uso dessa força
de trabalho, expresso no trabalho concreto exercido pelo assistente,
dotado de uma qualidade determinada, fruto de sua especialização
no concerto da divisão do trabalho. (IAMAMOTO, 2008, p.217-218)
Em frente à dinâmica social fremida por forças políticas opostas, exigências
mercantis e a tentativa de construção da identidade profissional, o Projeto ÉticoPolítico da profissão é alicerce sobre o qual a prática carece ser cristalizada, que de
modo dialético, defende o projeto ao executar ações no cotidiano laboral que o
reafirme. Nesse sentido, cabe explicitar que se o projeto é ético e político, ele é dotado
de concepções de valores e acepções políticas de cunho ideológico, que se encontra
com um determinado projeto de sociedade. Ao enfarpelar-se de defesa da justiça
4
Lembrando que “a questão social não é senão as expressões do processo de formação e
desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade,
exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado”.
(IAMAMOTO, 2007, p. 77)
49 social, da cidadania plena, dos direitos humanos e democracia, o projeto se enfrenta
com a sociabilidade capitalista que possui em sua essência as desigualdades sociais e
miséria cidadã como razão de existir. Portanto, resguardar o projeto profissional e o
conjunto ético de valores nele incluídos é necessariamente compreender a
imprescindibilidade da construção de um novo tipo de sociabilidade, no qual a riqueza
socialmente produzida seja também coletivamente divida e a história rume à
emancipação humana. Então, se uma profissão possui um determinado projeto
profissional, ela subscreve os valores ético-políticos que alumiarão o labor de tal
profissão.
Sendo assim, se faz indispensável à reflexão que a inexistência de um projeto
profissional também anuncia os princípios éticos que edificam a identidade de tal
profissão e sua prática. A falta da defesa de valores contra-hegemônicos é, senão, a
sustentação da moralidade burguesa, a conservação da ética-política e direção social
vigentes que legitimam uma sociedade pautada na diferença de classes e
contradições sociais. A edificação de um projeto ético-político profissional, que
reconhece o âmbito contraditório das demandas profissionais, que desenha as
condições e requisitos para o alcance dos objetivos e funções do Serviço Social,
balizados pela finalidade da conquista emancipatória dos seres humanos, é fruto de
uma consciência política maturada de seus agentes e avanços teórico-metodológicos.
Além disso, reflete de forma positiva nas três dimensões constituintes da
prática profissional: ético-política, teórico-metodológica e técnico-operativa5, todas
igualmente importantes e intrinsecamente conectadas, produzindo efeitos retroativos
quando negligenciadas. Esse amadurecimento ético, filosófico e técnico é normatizado
pelo Código de Ética (Resolução CFESS nº 273-1993) e a Lei de Regulamentação da
Profissão (Lei nº 8.662/93) que imprime nos espaços sócio ocupacionais as
instruções e os resguardos para uma atuação ética e crítica, capaz de encenar
ações propositivas que legitimem fatores como a liberdade humana
emancipatória, recusa do autoritarismo e enraizamento da democracia,
consolidação da cidadania, equidade e justiça social, respeito à pluralidade e
5
Para saber mais sobre o assunto, ler SANTOS, Cláudia Mônica dos. As dimensões da prática
profissional do Serviço Social. IN: LIBERTAS. Juíz de Fora: UFJF, Revista do Serviço Social, v.
2, n.2, jul/dez 2002, v. 3, n.1 e n.2, jan/dez 2003 e GUERRA, Yolanda. As dimensões da prática
profissional e a possibilidade de reconstrução crítica das demandas contemporâneas. IN:
LIBERTAS. Juíz de Fora: UFJF, Revista do Serviço Social, v. 2, n.2, jul/dez 2002, v. 3, n.1 e
n.2, jan/dez 2003.
.
50 negação de qualquer forma de preconceito; elementos que estão dispostos como
princípios na legislação profissional. Destarte,
Nosso projeto profissional está nitidamente vinculado a um projeto de
transformação da ordem social, sem se confundir e/ou se diluir nele.
Suas acepções e valores o vinculam a projeções sócio-históricas que
vislumbram a ruptura com a ordem social vigente. A partir daí, seu
desenvolvimento se dá em sintonia com os movimentos que
pretendem mudanças sociais na sociedade com vistas a transformála. Não é a toa que o Código de Ética temos, em seus “Princípios
fundamentais”, uma ideia que expressa plenamente o projeto éticopolítico do qual falamos. (BRAZ, 2004, p. 57)
Portanto, diante do estrangulamento da oferta de empregos, degradação dos
serviços públicos - aviltando tanto as condições de sobrevivência dos Assistentes
Sociais enquanto sujeitos como as condições de trabalho enquanto profissionais
inseridos nesse âmbito-, competitividade cada vez mais exacerbada, que, com a falta
de organização política, pode acarretar em retrocessos de direitos trabalhistas e a
precariedade do trabalho, combinado com as exigências do mercado de qualificação,
trazem à tona fenômenos improfícuos para a luta histórica da categoria de promoção
do projeto ético-político e identidade profissional, tal como a busca por unidades de
ensino de baixa qualidade cuja formação pífia será responsável pela falta de
esclarecimentos e escassez de uma prática politicamente ética.
Ademais, é nesse movimento que são produzidos os falsos dilemas6 da
profissão, pois a inferioridade da formação é a principal responsável pela dicotomia
entre a teoria e prática, que, na realidade, não existe, visto que o não aprofundamento
teórico-metodológico-filosófico gera dificuldades de conceber o fenômeno social
presente nas demandas numa perspectiva de totalidade, se traduzindo em ações
burocráticas e rotineiras. Por isso, vale ressalvar a importância das normativas legais
tais como o Código de Ética, Lei de Regulamentação da Profissão, Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS) e Lei Orgânica da Saúde (LOS); os parâmetros para a
atuação, a Norma de Operação Básica do Sistema Único de Saúde (NOB-SUS) e do
Sistema Único de Assistência Social (NOB-SUAS).
As legislações sociais tais como os estatutos articulados com o Projeto Ético
Político, bem como a participação nos espaços políticos e do interesse de estar por
dentro das informações e atividades dos conselhos, além da contínua renovação visto
que a realidade é mutável modificando os fenômenos sociais no decorrer do
desenvolvimento da sociedade. Estes elementos são essenciais para a afirmação de
6
Para maior aprofundamento, ler IAMAMOTO, Marilda Villela. Dilemas e falsos dilemas no
serviço social. IN: Renovação e Conservadorismo no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1995.
51 um projeto que almeja a emancipação da classe trabalhadora, e para que a categoria,
politicamente articulada, de forma coletiva e democrática, obtenha êxito na edificação
com afinco da identidade do Serviço Social e garantia dos direitos dos Assistentes
Sociais , de sua autonomia nas ações laborais e condições de trabalho.
4.2 O FAZER PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO CEDUC-PITIMBU
De acordo com o que foi discutido na primeira parte deste capítulo, é através
das ações do cotidiano que o perfil do Serviço Social na instituição de trabalho
é perfilado. Assim, é preciso reconhecer que o campo socio-ocupacional nas
instituições é movimentado pelas correlações de forças, interesses coletivos que se
chocam, novas demandas e constante renovação de exigências de eficiência. O
CEDUC Pitimbu, assim como as outras instituições que empregam assistentes sociais,
é um espaço político transversal à sociedade e, portanto, está atravessado pelos
múltiplos e complexos determinantes produzidos pela sociedade capitalista.
Por um lado, a classe dominante necessita do consenso, permissão e
tolerância
da
classe
dominada
para
manter
a
hegemonia
e
direcionar
o
desenvolvimento social, portanto, a instituição é uma via compensatória – assim como
as políticas sociais utilizadas por ela – das crises do processo produtivo do capital, se
constituindo como órgão de manutenção do desenvolvimento capitalista. Por outro
lado, a instituição oferece serviços que, teoricamente, objetivam validar os direitos da
população, visando seu bem-estar. É nesse sentido que são criadas condições para
aceitação das sequelas do modo de produção burguês, se munindo de mecanismos
ideológicos e profissionais para mediar as expressões da questão social.
No que tange ao CEDUC Pitimbú, a ideia é remediar, de forma debilitada, a
falta de condensação de políticas públicas para a juventude, de educação de
qualidade, o desemprego e subcidadania em demasia que a maioria dos adolescentes
do país experimenta. Quando a reprodução da força de trabalho ou a paz social são
postas em risco, a dominação da classe burguesa é ameaçada, uma vez que ambos
são requisitos condicionantes para a acumulação do capital e lucratividade dos
proprietários do meio de produção, acabando por introduzir no Estado instituições que
enfraqueçam qualquer ponto precursor das ameaças.
As instituições responsáveis pela medida socioeducativa se circunscrevem em
locais de controle social, com respostas superficiais, focalizadas e parciais que
mascaram as expressões do problema e não o tratam pela raiz, numa visão nebulosa
de solução da perturbação da paz social – lê-se ordem burguesa de sociabilidade –, a
52 ideia é esconder os sujeitos de seu meio em instituições totais. No entanto, assim
como a realidade social, as instituições são dinâmicas, influenciadas pelos processos
externos e internos, mutável de acordo com a participação política de seus agentes.
O arrefecimento de atuação profissional burocrática e anti-consuetudinária
pode promover a labuta numa perspectiva de transformação estrutural, ampliando a
autonomia profissional e alternativas de ação. A instituição deve ser vista como
espaço onde numerosos acordos profissionais tácitos ou explícitos podem ser feitos,
necessários para a caminhada institucional. Esse espaço sofre pressão e intervenção
de seus agentes, fazendo com que as regras que auxiliam na continuidade e
desenvolvimento das ações sejam negociadas. Faz-se imprescindível, portanto, estar
ciente de suas competências e atribuições, do código de ética, para refletir sobre
ações criativas e impregnar-se do projeto profissional na tentativa de apropriar-se das
possibilidades tão presentes na realidade social quanto as dificuldades.
Contrapondo a isto, observa-se: “Hoje o que é que vai fazer aqui uma
assistente social, psicóloga, pedagoga?! Nada. A gente vai apenas manter a
dificuldade que estamos” (Assistente Social). Ao afirmar que “nada” é a única
alternativa prática diante das dificuldades estruturais do CEDUC Pitimbu, a Assistente
Social sentencia à morte o protagonismo profissional, negando sua autonomia relativa
e qualquer possibilidade de mobilizar um conjunto mínimo de condições para a
realização de suas ações, o que materializaria, através do encaminhamento das suas
atividades, o projeto ético-político do Serviço Social. Assim,
A consideração unilateral das imposições do mercado de trabalho
conduz a uma mera adequação do trabalho profissional às exigências
alheias, subordinando a profissão ao mercado e sujeitando o
assistente social ao trabalho alienado. Resguardar a relativa
autonomia na condução do exercício profissional supõe potenciá-lo
mediante um projeto profissional coletivo impregnado de história e
embasado em princípios e valores radicalmente humanistas, com
sustentação em forças sociais reais que partilham de um projeto
comum para a sociedade. (IAMAMOTO, 2008, p. 219)
Logo, fica claro que o fator interdisciplinaridade é uma via facilitadora do fazer
profissional, na medida em que estabelece o debate horizontal multidisciplinar,
considerando as especificações de cada área laboral, respeitando a pluralidade, com
objetivos de ações que tomem como referência a tentativa de compreender a
demanda de forma generalista. Além disso, a interdisciplinaridade pode ser um
momento útil na afirmação da identidade profissional uma vez que há a possibilidade,
através das discussões e atividades desenvolvidas, de esclarecer o papel do Serviço
Social e sua importância no âmbito da instituição. É ainda, o espaço no qual as
alianças, alicerçadas no respeito entre profissionais e valorização do trabalho alheio,
53 podem ser realizadas trazendo uma nova configuração para as correlações de forças
internas.
Ademais, sobre a relação com outros profissionais, o código de ética dispõe:
Art. 10 São deveres do/a Assistente Social: [...] d- incentivar, sempre que possível, a
prática profissional interdisciplinar. (BRASIL, 1993, p.32). Contudo, 71,4% dos
profissionais
entrevistados
afirmaram
não
haver
interdisciplinaridade,
alguns
afirmaram até a dificuldade em se comunicar, tornando contraditória a afirmação da
Assistente Social, quando indagada sobre o assunto: “Existe um trabalho de todos,
unidos mesmo.” (Assistente Social) Nesse momento, é relevante frisar que as pessoas
estavam cientes que as perguntas eram base para o desenvolvimento de um trabalho
científico, e por isso é importante considerar o fato de que as pessoas que afirmaram
haver interdisciplinaridade faziam parte da equipe técnica e possuíam ensino superior
(com exceção da auxiliar administrativa), deixando a indagação: quando afirmaram
que a interdisciplinaridade era presente no cotidiano, os profissionais não sabiam do
significado da palavra ou justamente por saberem, compreenderem a importância,
tanto da falta quanto da presença dela, resolveram fazer tal afirmativa? Na direção de
aprofundar a reflexão, segue algumas respostas de outros profissionais sobre o
questionamento: “Contato a gente tem, mas cada um faz o seu sabe?! Ás vezes que
eles querem se meter aqui, mas é complicado porque eles ficam na salinha deles.”
(Educador).
“O contato é muito pouco com outros profissionais, tem pouco assim,
porque cada um tá no seu aconchego, aí o contato é pouco, que a
gente tem com eles (a equipe técnica), mas ela vem, dá os nomes, os
meninos, tanto o serviço social quanto a psicóloga, ela traz o nome
pra eu colocar pro tratamento.” (Auxiliar de odontologia)
“A gente não tem muito contato, como falei agora a pouco, assim, a
gente tem muito contato na maioria das vezes a gente tem mais
contato é com os educadores que ficam com a gente 24 horas direto
aqui, até mermo porque eles são os que mais precisam do nosso
serviço. E no geral, a relação é harmônica, mas em relação a
coordenação o contato é zero.” (Policial Militar)
Assim, é crucial a compreensão da função pedagógica do Serviço Social, que
por sua vez, se realiza conforme os assistentes sociais inserem o projeto ético-político
como guia de atuação, compreendendo seu papel de natureza socio-educativa na
medida em que trabalha para subverter ou conservar a hegemonia dominante da
ordem intelectual e moral. Desse modo, as ações profissionais produzem reflexos no
modo de pensar e agir dos usuários, influenciando na subjetividade dos sujeitos
envolvidos, portanto, estratégias emancipatórias precisam ser consideradas nos
procedimentos profissionais. Portanto,
54 Desenvolve-se, por meio das relações que se estabelecem entre
assistentes sociais e usuários, um processo educativo que possibilita
aos usuários, a partir de suas individualidades, apreender a realidade
de maneira crítica e consciente, construir caminhos para o acesso e
usufruto de seus direitos (civis, políticos e sociais) e interferir no rumo
da história de sua sociedade. (MIOTO, 2009, p. 4)
Ao que se refere à função do Serviço Social no CEDUC, é evidente, no
decorrer da entrevista com a assistente social, a redução do papel profissional às
ações encaminhadas pela Assistente Social, tratando de maneira negligente o caráter
socioeducativo
e
pedagógico
da
profissão.
Ademais,
visualiza
de
forma
megalomaníaca a profissão, afirmando que ela exerce, comparada aos outros ofícios,
o papel fundamental no cumprimento da medida – mais um recurso para a reflexão
sobre a existência da interdisciplinaridade visto que esta necessita, inerentemente, de
uma visão democrática e horizontal das profissões. Fica claro ainda, que a identidade
profissional sediada na instituição é a de comporta, lugar último para onde são
transferidos os problemas e deficiências estruturais, que tenta calafetar de maneira
aparente, técnica e burocrática, as dificuldades complexas. Quando entrevistada sobre
sua função, a Assistente Social respondeu:
“A função do serviço social é o atendimento individual. Ela que toma o
conhecimento de tudo, do que tá acontecendo, como é que tá a
mente dele, se é necessário um contato maior com a família, ela que
vai verificar, observar, todas as necessidades dele. Ele vai contar
todo o histórico familiar dele, desde quando nasceu, tudo. O segundo
passo é fazer os encaminhamentos, se ele ta precisando de dentista,
de oftalmologista, de médico, se ele toma algum remédio controlado
ou não, se ele tem curso profissionalizante ou não, qual a
escolaridade dele, então a gente já identifica tudo isso nos
atendimentos individuais. Depois a gente encaminha ele pra,
conforme a sua necessidade, é encaminhado para a psicóloga. [...] (o
serviço social) É o principal setor do meu ponto de vista. Porque a
assistente social tem uma visão e um trabalho a mais que a
pedagoga e a psicóloga não faz certo, a psicóloga não se dispõe
muito a trabalhar essa aproximação familiar, em tá encaminhando ele
para os cursos, ela trabalha só a parte psíquica do adolescente,
também acompanha a visita domiciliar, mas é um negócio raro. Toda
essa função é jogada pro Serviço Social, tudo que você tenta alisar e
que não dá certo, a última porta que você bate é o Serviço Social, e a
gente não tem pra quem jogar, a gente tem que resolver. As visitas
domiciliares são realizadas pela assistente social. [...] Meu papel aqui
fundamental é a construção das avaliações sociais.” (Assistente
Social)
Tal afirmativa demonstra a falta de debate multiprofissional, a deficiência de
planejamento de ações, desenhando os objetivos, tornando clara a intencionalidade
ético-política dos processos e projeção dos meios para atingir o fim. Faz ainda com
que haja um sobrecarregamento de algumas profissões e carência da percepção dos
limites, atribuições e competências pertencente à cada setor constituintes do
cumprimento da medida socioeducativa.
55 Nesse cenário, cabe ressaltar a importância da pesquisa e estudos sobre o
perfil da demanda. Criar instrumentais que monitorem aspectos importantes, tais como
raça, etnia, classe social, escolaridade entre outros fatores dos adolescentes que
entram, bem como as causas pelo cumprimento da medida de internação e número de
reincidências, se constitui como importante recurso para a produção de conhecimento
científico que se contraponha ao senso comum da opinião sobre a juventude autora de
ato infracional. Tais elementos são essenciais para inscrever cada vez mais a
profissão na agenda socio-jurídica e principalmente, é o meio mais rico de promoção
da apreensão da demanda e construção de respostas efetivas a ela, visto que
proporciona uma aproximação da realidade social dos sujeitos destinados à ação.
Dessa maneira, conforme a Lei nº 8662/93 Art. 4º Constituem competências do
Assistente Social: [...] VII- planejar, executar e avaliar pesquisas que possam contribuir
para a análise da realidade social e para subsidiar ações profissionais (BRASIL, 1993,
p.2). Malgrado a necessidade da pesquisa social e estudo socioeconômico, estes
instrumentos não estão presentes no cotidiano da instituição. De acordo com a
entrevista, as únicas ações que são desenvolvidas pelo Serviço Social se restringe
aos atendimentos e encaminhamentos:
“Nós não temos condições, pelo número do quadro, de fazer nenhum
trabalho com as famílias não... agora são duas vezes por semana
que as famílias vêm visitar. Nós fazemos atendimentos individuais,
encaminhamentos e também fazemos atendimentos grupais, só que
há algum tempo eles estão parados.” (Assistente Social).
Todavia, os vínculos intersetoriais da rede de atendimento da assistência social
precisam ser utilizados e fortalecidos. Os Centros de Referência de Assistência Social
(CRAS) e Centros de Referências Especializados de Assistência Social (CREAS), por
exemplo, são áreas estratégicas de proteção integral que devem ser mobilizados no
sentido de trabalhar as famílias dos adolescentes internados; o trabalho em conjunto
entre os serviços sociais destinado às famílias do adolescente, pode promover
consequências vantajosas no desenvolvimento sadio do adolescente, durante sua
estadia nas instituições de cumprimento da media socioeducativa, mas principalmente,
na sua saída da instituição. Por isso é fundamental estar dotado do projeto éticopolítico, normativas legais e quedar-se constantemente em reciclagem teóricometodológica.
Esses elementos proporcionam reflexões críticas que permitem visualizar as
possibilidades para além do cenário institucional. Destarte, um arsenal de
instrumentos é ativado para operacionalizar as ações interventivas, de modo a dirigirse às demandas levando em consideração suas especificidades na configuração de
56 uma atuação profissional propositiva que potencialize os meios de alcançar os
resultados desejados. Na identificação da profissão é importante perscrutar o
instrumental técnico-operativo do Serviço Social em sua articulação com as
especificidades do espaço sócio-ocupacional e os projetos profissionais estabelecidos.
Na dimensão técnico-operativa, tem-se o foco no uso das técnicas, tendo em
mente os fundamentos e princípios éticos políticos, explicitados no Código de Ética
(Lei 8.662/93) que dispõe: Art. 5º Constituem atribuições privativas do Assistente
Social: [...]IV - realizar vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e
pareceres sobre a matéria de Serviço Social (BRASIL, 1993). Articulado com o projeto
ético-político norteia as ações do Assistente Social, contrariando a concepção técnicainstrumental de um “fazer” fragmentado, burocratizado e rotineiro. A atuação
profissional deve impulsionar a reflexão sobre a razão instrumental, combinando meios
e fins, identificando no âmbito da realidade social as alternativas e estratégias para
atingir as finalidades profissionais, questionando diuturnamente as implicações éticas
das ações e unindo com a direção política. Logo,
Na definição das finalidades e na escolha dos meios e instrumentos,
na decisão entre as alternativas mais adequadas ao alcance das
mesmas, os sujeitos estão exercendo sua liberdade (concebida
historicamente como escolha racional por alternativas concreta dentro
dos limites possíveis). Tais escolhas implicam projetar tanto os
resultados e meios de realização quanto as conseqüências, para o
que há que se ter conhecimento dos objetos, dos meios/instrumentos
e dos resultados possíveis, adquiridos pelo conhecimento teórico.
(GUERRA, 2003, p.19)
Sobre os instrumentos, a profissional afirmou que eram utilizados uma
entrevista – feita quando o adolescente chega à instituição -, ficha de inscrição,
relatório avaliativo que é mandado para a Vara da Infância e Juventude e “se nós
conseguirmos, fazemos a visita também” (Assistente Social). Visto que os
instrumentos acabam por sofrer influência da falta de pressupostos éticos e políticos
condizentes com a transformação social, há a falta de compreensão que seus
instrumentos e técnicas são diferentes do modo de produção, pois, lida com
fenômenos sociais mutáveis e não com coisas e, por isso, não podem ser desenhados
por uma regra ou modelo. O que se percebe é que, como a prática, o instrumental não
possui a intenção de descortinar os elementos que compõem o palco da expressão da
questão social, fazendo com que a utilização dos instrumentos seja um fim em si, e
não um meio para o alcance de uma finalidade, traçando a “rotineirização” da
utilização dos aparatos técnicos-operativos.
Portanto, na medida em que não concebe a dimensão socioeducativa e o
caráter pedagógico da profissão, que não compreende o papel político do Serviço
57 Social, as consequências ético-políticas no modo como instrumentaliza a prática são
sobremaneira preocupantes, pois, o Assistente Social que se encontra no âmbito
socio-jurídico é responsável, muitas vezes, por decidir os caminhos futuros a serem
percorridos pelo usuário. Se a instrumentalidade não é dotada de mecanismos
democráticos e politicamente direcionada, reposiciona a profissão numa postura
contrária ao Código de Ética, ao projeto profissional e localiza-a como engrenagem
conservadora da ordem social hegemônica. Por ser um profissional generalista, que
permeia várias áreas da política social, o Assistente Social precisa estar em
consonância com as normativas legais que se referem à cada área socio-ocupacional.
Sobre esse aspecto, a profissional demonstrou pouco conhecimento das normativas
que baseiam a prática, respondendo apenas que possuía
“O direito, no meu código, ao sigilo profissional. Nós trabalhamos com
o SINASE, a gente procura colocar em prática todas as informações
do SINASE mas é impossível certo, porque o Estado não dá um
amparo correto para que ele seja colocado em prática corretamente”
(Assistente Social).
A profissional não citou o ECA, elemento chave nas políticas voltadas para
infância e adolescência, que encontra cada vez mais dificuldade de ter seus princípios
concretizados após tantos anos. O fato de não conseguir trabalhar com o SINASE é
um ponto de dificuldade a ser enfrentados no âmbito do CEDUC, no entanto, ao falar
sobre a superação das limitações da prática profissional, a assistente social respondeu
que “Um orçamento resolveria todos esses problemas” (Assistente Social). Uma visão
que ignora acionar o Ministério Público, os Conselhos Municipais, participar dos fóruns
de debate e discussão e ocupar outros espaços dispostos na sociedade, como
ferramenta de mobilização para a luta de melhorias macroestruturais, é o espelho de
um Serviço Social pragmático e pouco propositivo.
Esse espelho, por sua vez, reflete duplamente de modo danoso na sociedade
e categoria profissional: reincide a negligência familiar, social e estatal no momento
em que deveria materializar a política social, e retrocede a luta da classe de
Assistentes Sociais que possuem o compromisso de uma prática de qualidade
condizente com o projeto profissional e societário que possuem, disseminando uma
imagem não delimitada do que é o Serviço Social e de sua importância no âmbito das
instituições, além de não interromper a ideia antiquada do Serviço Social como ajuda
ou benesse. De acordo com o apêndice A, é possível perceber tal fato através da fala
do Educador:
“É porque é muito difícil a gente ter ouvido. O Serviço Social, em
termo de adolescente, como é que trabalha assim?! Porque eu nunca
tive, aqui infelizmente a gente não tem acesso ao Serviço Social. [...]
58 Existe uma barreira muito grande da gente trabalhar aqui,
antigamente era feito um questionário com o adolescente e o
educador, ultimamente a gente foi excluído dessa função. Porque
assim, a gente (educador) trabalha diretamente com eles, a gente
tem essa realidade, a realidade desses adolescentes é totalmente
diferente, porque o que o serviço social vê aqui é mais a questão de
avaliações, de procedimentos de comportamento, porque eles acha
que a pessoa tá boa, tá tranquila, pode ser liberada, mas eu já não
vejo esse lado. Eu vejo que tem que ser trabalhado mais
profundamente, agora a quantidade (de adolescentes) tá pouca, tá
com 33, se podia trabalhar melhor, com eles diretamente, e eu não
vejo resultado” (Educador).
Nesse sentido, é entendível a carência de identidade profissional bem
desenhada e calcada no projeto ético-político, bem como, a visualização do exercício
profissional no cotidiano. A importância do Serviço Social na medida socioeducativa
reside na competência fundamental de identificação das necessidades pessoais dos
adolescentes que entram no CEDUC Pitimbu, cujo escopo será a construção do Plano
Individual de Atendimento (PIA), disposto no SINASE, na perspectiva de desenvolver
intervenções profissionais que atinjam os objetivos traçados e esperados. Portanto, a
profissão está situada no horizonte da garantia de direitos, acompanhando a
efetividade do fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Deve sistematizar os
atendimentos individuais e grupais, numa perspectiva coletiva e democrática, trazendo
ações que permitam a reflexão, potencializem a tomada de consciência e participação
social. Necessita assegurar o acesso aos direitos no que tange à alimentação, saúde e
educação, bem como, de fazer com que os adolescentes estejam cientes da sua
situação processual. É preciso reafirmar que o Serviço Social possui compromisso
primordial com os usuários, que nesse caso, são os adolescentes em medida de
internação. Por isso, é necessário pensar a prática para além da instituição,
compreender a medida como algo provisório, colocando como norte a saída dos
adolescentes, o âmbito familiar no qual ele será reinserido e acionar os recursos para
que esse ambiente também seja trabalhado, sempre, na perspectiva do direito e de
transformação da sociedade numa humanidade emancipada. Portanto, a presença do
Assistente Social se faz imprescindível para uma medida efetivamente socioeducativa,
e em seu cumprimento de modo a preservar o desenvolvimento psíquico e social sadio
do adolescente autor de ato infracional.
59 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das reflexões expostas ao longo dessa monografia, é imprescindível
ressaltar que o presente trabalho não se propôs a esgotar o debate, visto que os
determinantes que atravessam a temática além de serem diversos, são complexos,
necessitando de mais recursos, tais como tempo, e precisando abranger a uma área
geográfica muito maior. Desse modo, a análise dos dados investigados permitiu a
elucidação de alguns resultados relevantes.
Destarte, o despreparo teórico-metodológico por parte dos profissionais, bem
como a carência de apropriação das normativas legais norteadoras, do cumprimento
da medida socioeducativa de internamento, criam lacunas que vedam a visualização
das possibilidades de atuação. Consequentemente, cristaliza o abismo para a
materialização do caráter pedagógico da medida.
A herança histórica, da visualização dos adolescentes autores de ato
infracional como delinquentes, transporta para a medida socioeducativa a função
punitiva e coercitiva que, apesar de repudiada juridicamente, ainda permeia na
consciência da sociedade, cada vez mais referenciada pela mídia e senso comum, e
principalmente, dos profissionais que se inserem nas instituições responsáveis por
responder às ações infracionais.
Ademais, associados a um estrutura física precária, com infiltrações e falta de
condições mínimas de dignidade e cidadania, tais como alimentação e educação, os
adolescentes internados no CEDUC Pitimbú se deparam com a falência da
organização civil comprometida com a transformação de suas condições de
subcidadania. A omissão dos profissionais em ocupar os lugares reivindicatórios,
dispostos pelo Estado e sociedade, mostra o desentendimento da dimensão éticopolítico que engloba tais âmbitos sócio-ocupacionais.
Nessa perspectiva, o Serviço Social que possui um papel fundamental na
medida socioeducativa, mediando os meios para viabilizar os direitos dos usuários,
passa a ter uma função meramente burocrática e rotineira.
Portanto, a medida socioeducativa no que cerne ao cumprimento de internação
em Natal, de responsabilidade do CEDUC Pitimbú, não só é capenga, negando sua
efetividade, como violenta quaisquer princípios éticos de Direitos Humanos, renega a
luta histórica pela construção e validações das atuais legislações protetivas, e
condena cada vez mais os adolescentes natalenses que já praticaram ato infracional à
uma identidade e vivência estigmatizante.
60 Nesse sentido, varrer os resquícios do tratamento discriminatório e coercitivo
destinado à infância e juventude há mais de séculos não é apenas necessário para o
desenvolvimento sociopolítico dos direitos sociais, é dar o próximo passo de avanço
na história da humanidade.
Assim, é essencial a constante capacitação e atualização dos profissionais, a
fiscalização por parte da sociedade civil e Ministério Público, se apoiando nos
Conselhos de Direito e entidades de controle social, bem como criar mecanismos mais
complexos para a análise de entrada de profissionais dispostos a trabalhar nesta área.
Atuar numa perspectiva política comprometida com a transformação e justiça social,
equidade, plena cidadania, negação dos preconceitos e qualquer elemento arbitrário, é
a única saída para a prática socioeducativa, diante de um parâmetro alicerçado nos
Direitos e emancipação humana.
Por isso, há que se reafirmar o Projeto Ético Político da profissão, introduzir as
diretrizes do Código de Ética (Lei 8662/93) no cotidiano e construir a identidade do
Serviço Social, cada vez mais, na área sócio-jurídica; circunscrevendo assim, mais um
espaço estratégico de ocupação pelo Assistente Social.
É necessário que o povo heroico, chamado sociedade civil– quando
organizada –, encontre seu brado retumbante. Só assim os raios fugidos brilharão
sobre os que se encontram provados do sol da liberdade. O Brasil, quando as crianças
e os adolescentes pobres e negros passarem a substituir a clava forte pela justiça,
será de fato, um sonho intenso; para além do Hino Nacional.
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65 APÊNDICES
66 APÊNDICE A – FORMULÁRIO DE ENTREVISTA
(EDUCADORES/PROFISSIONAIS DA EQUIPE TÉCNICA E DA SAÚDE)
Perfil e Medida Socioeducativa na visão profissional
I. Identificação
a) Nome:
b) Tem filhos? Quantos?
c) Idade:
d) Há quanto tempo trabalha na instituição
e) Qual foi o processo pelo qual o profissional passou para ingressar no campo
laboral?
f) Trajetória profissional: experiência com criança e adolescente antes de
chegar no ceduc.
g) Possui alguma religião?
h) Cor que se considera:
i) Ensino Superior/qual?
II. Específico
1) Na sua concepção, que é medida socioeducativa?
2) Como a medida socio-educativa se apresenta no CEDUC?
3) Há limitações para sua efetivação? Se sim, quais?
4) Quais as formas de enfretamento dessas limitações
5) Como o adolescente é apresentado à instituição?
III. Fazer profissional
6) Como se encontra configurado as relações entre os profissionais?
7) Qual o papel/função do Educador no cumprimento da medida socioeducativa
dentro do ceduc? E qual a sua importância(significado)?
8) Quais ações/instrumentos são desenvolvidas pelo Educador?
9) Há limitações para efetivar a prática profissional? Se sim, quais? Quais formas de
enfrentamento?
10) Quais os aparatos jurídico-legais que baseiam a prática profissional
67 APÊNDICE B – FORMULÁRIO DE ENTREVISTA (EDUCADORES)
Perfil e Medida Socioeducativa na visão profissional
Policial Militar
I. Identificação
a) Nome:
b) Tem filhos? Quantos?
c) Idade:
d) Há quanto tempo trabalha na instituição
e) Qual foi o processo pelo qual o profissional passou para ingressar no campo
laboral?
f) Trajetória profissional: experiência com criança e adolescente antes de
chegar no ceduc.
g) Possui alguma religião?
h) Cor que se considera:
i) Ensino Superior/qual?
II. Específico
1) Na sua concepção, que é medida socioeducativa?
2) Como a medida socio-educativa se apresenta no CEDUC?
3) Há limitações para sua efetivação? Se sim, quais?
4) Quais as formas de enfretamento dessas limitações?
5) Como o adolescente é apresentado à instituição?
III. Fazer profissional
6) Como se encontra configurado as relações entre os profissionais?
7) Qual o papel/função do policial no cumprimento da medida socioeducativa dentro do
ceduc? E qual a sua importância (significado)?
8) Como vocês lidam com a evasão/invasão?
9) Há limitações para efetivar a prática profissional? Se sim, quais? Quais formas de
enfrentamento?
10) Quais os aparatos jurídico-legais que baseiam a prática profissional?
68 APÊNDICE C – FORMULÁRIO DE ENTREVISTA (ASSISTENTE
SOCIAL)
Perfil e Medida Socioeducativa na visão profissional
Assistente Social
I. Identificação
a. Nome:
b. Tem filhos? Quantos?
c. Idade:
d. Há quanto tempo trabalha na instituição
e. Qual foi o processo pelo qual o profissional passou para ingressar no campo
laboral?
f. Trajetória profissional: experiência com criança e adolescente antes de
chegar no ceduc.
g. Possui alguma religião?
h. Cor que se considera:
i. Ensino Superior/qual?
II. Específico
1. Na sua concepção, que é medida socioeducativa?
2. Como a medida socio-educativa se apresenta no CEDUC?
3. Há limitações para sua efetivação? Se sim, quais?
4. Quais as formas de enfretamento dessas limitações?
5. Como o adolescente é apresentado à instituição?
III. Fazer profissional
1. Como se encontra configurado as relações entre os profissionais?
2. Qual o papel/função do Serviço Social no cumprimento da medida
socioeducativa dentro do ceduc? E qual a sua importância (significado)?
3. Quais ações/instrumentos são desenvolvidas pelo Serviço Social?
4. Há limitações para efetivar a prática profissional? Se sim, quais? Quais formas
de enfrentamento?
5. Quais os aparatos jurídico-legais que baseiam a prática profissional?
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