O SABER DA MUSICOTERAPIA E O MUSICOTERAPEUTA *
Clarice Moura Costa
PALAVRAS-CHAVE: significação,ação sobre organismo, conceito de música, prazer, formação do musicoterapeuta.
A especificidade ou singularidade de uma ciência depende da conjunção de três fatores: um corpo
de teorias e ou princípios que compõem seu saber, métodos e técnicas que constituem sua prática e a
necessidade de profissionais capacitados para exercê-la. A musicoterapia não é uma ciência pura, mas
aplicada, como se torna óbvio pelo próprio nome – música utilizada para ajudar pessoas que necessitam
tratamento – e no momento atual já responde a estes três quesitos: possui seu próprio saber, sua própria
prática e conta com profissionais qualificados. O saber musicoterápico está em construção e atualmente é
encontrado um grande número de artigos teóricos. Ainda há muito a fazer para aperfeiçoá-la e
desenvolvê-la, mas isto é necessidade de qualquer ciência, que deve constantemente ser atualizada, uma
vez que surgem sempre novos conhecimentos para enriquecê-la e modificá-la.
Algumas perguntas e dúvidas sobre a música merecem ser levantadas. Sentimentos e emoções
são sempre provocados pela mensagem musical, enquanto sentido ou significação, ou também pela
sonoridade em si? Segundo Lia Rejane Barcellos e Marco Antonio Santos (1996), o método GIM (Guided
Imagery and Music) “considera a possibilidade de identificar algumas direções de atribuição de sentido a
partir da análise das estruturas musicais”(p.17). Ao procurar sentido, a tentativa não é demonstrar os
efeitos do som sobre a mente e o corpo humano, mas de encontrar na própria música, sua significação e a
específicidade desta linguagem.
A música em si atua sobre o organismo? O ritmo influi na tonicidade? Quais são os mecanismos
pelos quais a música induz ao movimento e à ação? O timbre, o ritmo, as harmonias, as melodias, as
intensidades, as tonalidades etc... poderiam provocar emoções, agindo diretamente sobre a estrutura
cerebral, independentemente do sentido ou significado da linguagem musical? A ação de elementos
sonoro-musicais sobre o cérebro provocariam reações, sem ligação com o sentido da música? Estes
aspectos são investigados pela neurociência que vem desenvolvendo pesquisas sobre a música e o
cérebro, mas seria muito importante que os musicoterapeutas se debruçassem sobre este assunto,
produzindo mais estudos, por ser um conhecimento de grande interesse, principalmente quando se trata
de sua aplicação na área de reabilitação motora.
Os campos de aplicação da musicoterapia são bastante diversificados, e o suporte teórico para
cada um destes campos é necessariamente diferente. Como diz Bruscia (2000), a musicoterapia “é uma
combinação dinâmica de muitas disciplinas em torno de duas áreas: música e terapia"(p. 8). Cita, entre
outras, a psicomusicologia, a etnomusicologia, a educação musical, a psicoacústica e a biologia da música
como disciplinas integrantes da área musical. Na área de terapia cita entre outras, a psicologia, as
tradições de cura, a fonoaudiologia e as especialidades médicas (sem especificá-las).
Embora a musicoterapia seja aplicada a um vasto espectro de situações, aí incluidos problemas de
ordem motora e sensorial, os aspectos psicológicos, emocionais e relacionais são privilegiados em grande
parte dos escritos. E não por acaso. Frequentemente, em hospitais, pessoas que sofrem doenças orgânicas
de diversas naturezas são encaminhadas pelos médicos ou outros terapeutas para a musicoterapia com o
objetivo de melhorar seu estado de espírito e/ou os relacionamentos com as pessoas do meio em que
estão inseridos. Acreditam que a maior aceitação de suas dificuldades pessoais, os levaria a colaborar com
os demais tratamentos que, estes sim, atuariam diretamente sobre seus sintomas ou sua doença. A
musicoterapia desempenharia o papel de terapia de apoio.
*
Este artigo aborda principalmente a área de saúde mental, na qual sempre trabalhei, mas indica alguns pontos comuns a
qualquer especialidade.
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Cristiane Ferraz (2007) fala sobre sobre estes aspectos afirmando que no hospital geral são
reconhecidas a musicoterapia médica e a musicopsicoterapia – além do que denomina “música
medicinal”. A musicoterapia médica visa ajudar a alcançar os objetivos médicos porque oferece novos
meios de enfrentar a doença, reduz o impacto da internação, e favorece a expressão de sentimentos
relativos à situação que estão sofrendo (p. 44). A musicopsicoterapia é bastante próxima por oferecer
meios de fortalecer o ego e lidar melhor manejo com a situação existente da doença. Ambas parecem ser
vistas como terapias de apoio e os objetivos musicoterápicos são basicamente psicológicos. Bem diferente
é a música medicinal, que utiliza a música e as propriedades do som para com objetivos fisiológicos
(favorecer a saturação de oxigênio e a estabilizar os parâmetros cardíacos) para promover o bem estar dos
bebês. Nesta intervenção a própria música alcança os objetivos propostos, agindo sobre o organismo e
não sobre aspectos psicológicos.
Ana Maria Delabary (2007) cita, num trabalho desenvolvido em UTI, a “saturação de pulso do
oxigênio – verificada através da oximetria de pulso”, “diminuição ou aumento do tonus muscular,
constatados e registrados diretamente pelo fisioterapeuta” e algumas “reações do paciente comatoso,
quando faz algum movimento, abre os olhos(...) (p.63) afirmando portanto a capacidade da música de
promover mudanças fisiológicas. A autora, porém, frisa os aspectos psicológicos, em que a música surge
como um “estímulo à busca da saúde”(p.65). Nas conclusões afirma que a música, no caso de pacientes
terminais “auxilia na busca da tranquilidade e pode favorecer a diminuição das tensões (..) “ao mesmo
tempo em que desperta esperança diante do desconhecido (...)”(p.67).
Há mais de vinte anos atrás, por ter trabalhado sempre com psicóticos, com uma orientação
psicodinâmica, acreditava que a musicoterapia atuava apenas sobre o estado psicológico de pacientes
detentores de qualquer tipo de problema, motor, sensorial, etc .... Ao trabalhar em Portugal, com
pacientes institucionalizadas deficientes mentais e de terceira idade demenciadas, repensei a música em si
como capaz de ter efeitos sobre o paciente. Como exemplo, o grupo de deficientes era capaz de correr ou
andar, de acordo com o andamento da música, ou de pisar forte ou leve, de acordo com a intensidade. A
movimentação destas pacientes era estimulada pela música em si e não por aspectos psicológicos.
Senhoras em processos demenciais, absolutamente inativas, começavam a cantar, tocar instrumentos, até
mesmo dançar, enfim participavam ativamente da sessão, talvez não pelo sentido/significado da música,
mas pelo fato de ser música. No entanto, suas escolhas musicais recaíam sobre músicas que fizeram parte
de sua juventude e maturidade, o que aponta para a importância da linguagem musical, que expressava e
recordava vivências importantes do passado.
As experiências de Cristiane Ferraz, Ana Maria Delabary e a minha própria, indicam que a música
atua sempre de duas maneiras: sobre o psiquismo, enquanto linguagem, e sobre o físico, pelos efeitos
psicoacústicos do som, porque existe uma interrelação entre o sentido musical e a sua forma, que nada
mais é do que a combinação de seus diversos elementos (altura, intensidade, timbre, ritmo, etc...).
É importante que os musicoterapeutas procurem estudar e analisar as estruturas musicais, para
fundamentar a hipótese de que a música é uma linguagem cujo sentido pode ser melhor compreendido e
previsto, não apenas suspeitado. É importante, também, desenvolver pesquisas sobre a influência dos
parâmetros do som e da música em si sobre o organismo humano. A musicoterapia, enquanto campo de
conhecimento, não pode apoiar-se em um sistema de crenças, mas sim de investigação. Diz Lia Rejane
Barcellos (2008) que a maior dificuldade dos musicoterapeutas é desenvolver pesquisas, por fatores
diversos que envolvem a falta de recursos e de apoio financeiro. No entanto, já existem encontros com o
objetivo de estimular, desenvolver e apresentar algumas pesquisas em andamento ou já concluídas.
A teoria da musicoterapia é formada por uma combinação de diversas outras ciências, como
aponta Bruscia. Isto não é apanágio e nem desmerece a musicoterapia. A maioria das ciências aplicadas se
constitui a partir de disciplinas diversas. Tomando como exemplo a medicina, entram em seu corpo
teórico por exemplo, a química e a física, que também fazem parte da engenharia, que é absolutamente
distinta da medicina.
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Marly Chagas (2008), citando vários autores, distingue multidisciplinaridade(Vasconcelos), “uma
justaposição de disciplinas sem relação e sem cooperação”; pluridisciplinaridade(D’Amaral, Japiassu e
Vasconcelos), em que as diversas disciplinas conservam seus “valores particulares” mas contribuem para o
“enriquecimento da descrição do objeto” por agregar “valores das diferentes disciplinas” , mantendo-se
em um mesmo nível hierárquico (p.33); interdisciplinaridade (Japiassu) que “exige uma interação entre as
disciplinas” para uma integração dos conceitos e possibilitar tanto a modificação dos campos teóricos
quanto a transferência das metodologias (p.34). Cita ainda a transdisciplinaridade (Fauré, Somerville) em
que há a “integração total dos sistemas disciplinares”(p.35).
De acordo com Leila Bergold(2008), “estudos ou práticas transdisciplinares promovem a troca de
conhecimento, evitando a hierarquização de um saber sobre outro e sem a redução ou separação
características do paradigma cartesiano (...)” (p.199)
Creio que podemos distinguir dois diferentes aspectos nas trocas entre disciplinas. Um refere-se à
prática, aos trabalhos de equipe sobre um mesmo objeto. Por exemplo: em hospitais pode existir
multidisciplinaridade, em que diferentes profissionais trabalham com um mesmo paciente de forma
isolada; pluridiscilinaridade em que há uma troca entre os profissionais da equipe que contribui para o
aumento do conhecimento sobre o paciente, mas cada disciplina continua com seus objetivos próprios;
interdisciplinaridade esta troca de conhecimentos pode introduzir objetivos comuns e levar a
modificações na forma de ver e tratar o paciente. A transdisciplinaridade, em que há a “construção de um
sistema conceitual unificado”, me parece raro, se não inexistente. Em toda a minha prática clínica, nos
diversos hospitais psiquiátricos em que trabalhei, jamais ocorreu este tipo de integração entre os
membros da equipe hospitalar, sendo o psiquiatra sempre a autoridade máxima.
O segundo aspecto refere-se à construção do saber. A musicoterapia, a meu ver, tem um saber
transdisciplinar, com a integração de conceitos de outras disciplinas a alguns conceitos próprios,
formando assim algo novo e distinto das outras ciências. Um dos fatos que ajudou esta integração de
disciplinas, apontado por Lia Rejane Barcellos(2008), foi a “inexistência de cursos de mestrado no país
(...) (que) tem levado musicoterapeutas a se dirigirem às mais diversas áreas para continuarem seus
estudos (...) resultando também num enriquecimento pelas críticas e colaborações.”(p.15)
Em relação ao saber musicoterápico, é preciso nunca perder de vista que a música é o núcleo da
musicoterapia. Tal assertiva parece óbvia, mas num encontro ocorrido há poucos anos atrás foi afirmado
que não existiria a obrigatoriedade de haver música nas sessões musicoterápicas. Isto representa uma
completa descaracterização da musicoterapia. Sem música, não há musicoterapia.
Um dos aspectos específicos do saber musicoterápico, a meu ver, é a existência de um conceito
próprio de música. O conceito de música, do ponto de vista da musicoterapia, difere da visão habitual dos
músicos e do público em geral. É considerada como qualquer organização rítmico-sonora, sem seguir
necessariamente regras de construção musical, existentes mesmo na música contemporânea, que
reformulou o conceito tradicional de música. Na musicoterapia, como diz Elisabeth Petersen (2007), “não
há música boa ou ruim”(P.76). A música é aquela feita pelo paciente, ou que desperta seu interesse, seja
ela qual for, sem levar em conta a estética.
Além do conceito próprio de música, outro aspecto específico da musicoterapia é o papel que a
música desempenha, que difere fundamentalmente de outras formas de terapia. No processo
musicoterápico o uso da música não é contingente mas essencial como tratamento, e não uma ferramenta
auxiliar, como ocorre em fisioterapia, psicoterapias e outras. Como diz Brandalise (2001), a música não é
uma ferramenta, mas “parceira do musicoterapeuta nos processos de des-cobrimento de outros” (p.27).
O primeiro impacto da música é sensorial, por suas propriedades físicas ou acústicas. Este primeiro
impacto pode provocar imediatamente reações motoras ou emocionais. Esta característica sensóriomotor-emocional, que dispensa a linguagem verbal, define a importância da sua utilização quando se trata
de saúde mental. Nesta área é necessária uma forma de expressão adequada às pessoas com dificuldades
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de se comunicar verbalmente, como psicóticos ou deficientes mentais, por exemplo, e a música cumpre
este papel.
A música se dirige diretamente ao processo primário e, só posteriormente, chega ao processo
secundário, usando a terminologia freudiana. Por não ter significados definidos, sendo apenas agradável
ou desagradável, dirige-se ao processo primário, que busca a satisfação e só adquire a noção do mau, do
desagradável quando não encontra o bom, o agradável. A música, em seu primeiro momento, só possui
dois sentidos/significados** – boa/agradável ou má/desagradável – significações primárias. No entanto,
admite a projeção de outros significados/sentidos atribuídos pela racionalidade – processo secundário.
A música traz em si possibilidades expressivas ou significantes, mas seu sentido/significado é dado
de certo modo do exterior, pelo ouvinte, executante ou criador, no momento mesmo da produção ou da
escuta musical. Existem sempre um afeto, uma emoção, uma evocação provocada pela música, que não
correspondem a nenhuma propriedade do som. Embora as emoções e sensações provocadas muitas vezes
dificilmente possam ser expressas em palavras, é possível verbalizar aproximadamente os efeitos
emocionais que a música provoca e aquilo que evoca (atmosfera, paisagem, etc.). Estudar as verbalizações
provocadas por uma sequência musical, ajuda a conhecer a significação atribuída pelo ouvinte. Este
sentido/significado independe do título da obra ou mesmo, muitas vezes, da letra cantada.
Outro aspecto específico da musicoterapia é o foco na promoção da saúde, evidentemente não
esquecendo os sintomas da doença. A resolução dos aspectos doentes vai se dar, não pelo foco nos
sintomas, mas pela promoção dos aspectos sadios e, ainda, pelas vivências de prazer. Sidnei Dantas(2008)
refere-se a isto, dizendo que “(...) o fazer no prazer dá voz ao ser. Aqui não se trata de um mero prazer
pelo prazer num hedonismo tão tipicamente humano, (...) as atividades sonoro-musicais estão centradas
na experiência do sujeito e é isso que possibilita uma re-significação constante dos sintomas que deixam
de ser o foco” (grifos meus) (p.172).
Em relação ao psicótico, encarado do ponto de vista psicodinâmico, a música oferece a
oportunidade de revivenciar fases muito arcaicas de formação do Ego, trazendo à tona a musicalidade
primeva, o que vai possibilitar a ressignificação de seus problemas e conflitos. Nestas fases arcaicas, a
música da fala, e não o significado das palavras, vai permitir o estabelecimento da relação entre a mãe e o
bebê. Se esta música é preponderantemente desprazerosa para o bebê, ele não vai investir no mundo
exterior, o que pode levar ao desenvolvimento de psicoses. Na área de saúde mental cria-se, no setting
musicoterápico, a possibilidade de uma nova vivência da sonoridade, dotada do prazer necessário ao
investimento no real pelo psicótico. Propiciando uma experiência prazerosa da sonoridade, a
musicoterapia possibilita a (re)inserção no discurso cultural, e contribui para a (re)construção da
identidade ou (re)constituição do sujeito psicótico. Uma solução para o sofrimento que procure aliviar
apenas o sintoma sem se dirigir às causas do conflito provavelmente não vai ter eficácia a longo prazo,
porque não chega ao âmago da doença.
A música, enquanto atividade lúdica, proporciona uma satisfação imediata (necessidade do
primário, de acordo com as teorias psicoanalíticas), o que vai contribuir para que aspectos saudáveis do
paciente possam vir à superfície, propiciando que sua relação com o mundo que o rodeia, com o
terapeuta, o grupo (se for o caso) e consigo mesmo seja substancialmente melhorada.
A vivência do prazer, oferecida nas sessões de musicoterapia, vai modificar a visão do mundo,
concebido como um universo de sofrimento. Embora esteja me referindo primordialmente à área de
saúde mental, esta vivência de prazer é também importante em outras áreas, por encorajar o paciente a
aceitar as dificuldades e lutar para minorar seus problemas. Na musicoterapia, como em qualquer
**
Sentido, significado e significação são conceitos controversos. O Vocabulário de Filosofia (Lalande) aponta para
acepções muito diversas da palavra sentido. Define significação como “sentido de uma palavra, de uma frase, etc...”
Como esta discussão não está nos propósitos deste texto, prefiro colocar sentido/significado.
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processo terapêutico, os núcleos de sofrimento que precisam ser cuidados virão necessariamente à tona,
mas expressos através da música, portanto abrandados pelo prazer da atividade musical. Delabary (2007)
aponta este fato, dizendo que a música pode melhorar a qualidade de vida, e beneficiar os pacientes que
vencerão a doença, bem como dar alento àqueles que terão que conviver com uma doença incurável. No
caso de pacientes terminais, fala sobre o que chama “qualidade de morte”, por auxiliar a busca da
tranquilidade e favorecer a diminuição das tensões, ajudando a “aceitação e preparação para a
morte”(p.67).
A importância do prazer é claramente expressa nos poemas escritos por por Zenite Miranda (2008)
em tratamento de reabilitação motora, dos quais reproduzo partes.
Mesmo nas cadeiras com a música, nos transformam em cantores e dançarinos (...)
Além de nos trazer momentos de prazer e alegria” p.96
Dor que pode ser curada
Através da musicoterapia, aumentando assim a imunidade através da alegria
E com a música encontrar motivo para lutar e viver, tal realidade de cada dia.
Pessoas que na musicoterapia
Chora (sic), sorri (sic) e se reabilita (sic) através da emoção.” p.83
A musicoterapia, além do desenvolvimento de teorias próprias, que a justificam enquanto saber,
possui seus métodos, procedimentos e técnicas particulares, bastante distintos dos métodos e técnicas de
profissões como medicina, psicologia, fisioterapia ou qualquer outra.
Os conceitos de método, técnica e procedimento, têm, às vezes, uma diferença sutil, ou mesmo
se confundem. Bruscia (2000) define método como “um tipo particular de experiência musical utilizada
para a avaliação diagnóstica, o tratamento e/ou avaliação” (p.122). Como, de acordo com ele, as
experiências musicais são quatro – recriar, improvisar, compor e ouvir – considera que a recriação, a
improvisação, a composição e a audição musical são os quatro métodos possíveis em musicoterapia.
Método, segundo o Vocabulário de Filosofia (1967), etimologicamente, significa perseguição e,
consequentemente esforço para alcançar um fim, e traz como definição “caminho pelo qual se chega a
um determinado resultado, ainda que este caminho não tenha sido fixado de antemão de modo
deliberado e refletido”. Conforme o mesmo Vocabulário de Filosofia, experiência pode significar o fato de
experimentar alguma coisa que “amplia e enriquece o pensamento”; “ (...)todos os progressos mentais
que resultam da vida”; ou “exercício das faculdades intelectuais considerado enquanto fornece ao espírito
conhecimentos válidos”. O Wikipedia define experiência, em epistemologia, como o “contato epistêmico,
geralmente perceptual, direto e característico com aquilo que se apresenta a uma fonte cognitiva de
informações (faculdades mentais como a percepção, a memória, a imaginação e a introspecção)”.
Prefiro adotar a definição de método, como caminho para alcançar um resultado porque, embora
haja várias definições para “experiência”, nenhuma aponta para o significado de método.
A meta, o resultado que se deseja, vai ser determinante na escolha do método. Lécourt (1980),
desde os anos 80 do século passado, afirma que os métodos são escolhidos em função dos objetivos e do
tempo previsto para o processo musicoterápico, e ainda do desejo* do terapeuta. Aponta, para
tratamentos curtos, os métodos couvrantes (de proteção ou apoio), que visam dar um sentimento de
segurança e promover uma readaptação, e os de ativação, que visam entre outras metas a ativação, e a
reestruturação comportamental; para tratamentos longos, os catárticos ou interpretativos, que visam a
reestruturação da personalidade e a retomada do desenvolvimento afetivo e relacional. (p.91)
*
Acho mal colocada a palavra desejo, porque parece ser uma escolha ao acaso, dependendo apenas da vontade do
terapeuta. Acho mais adequado usar formação.
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Podemos encontrar na musicoterapia métodos receptivos, baseados na experiência da audição
musical, e métodos ativos/interativos, que podem usar as experiências de recriação, improvisação,
composição, e mesmo audição musical, indepéndentemente ou combinadas.
Diz Bruscia que a recriação “inclui executar, reproduzir, transformar e interpretar qualquer parte
ou o todo de um modelo musical existente (...)”(P.126). Na improvisação “o cliente faz música tocando ou
cantando, criando uma melodia, um ritmo, uma canção ou uma peça musical de improviso”(p.124). Na
composição, “o terapeuta ajuda o cliente a escrever canções, letras ou peças instrumentais, ou a criar
qualquer tipo de produto musical (...)” (p.127, grifo meu). É possível notar que a maior diferença entre
composição, improvisação, e algumas formas de recriação reside no fato de que na primeira há notação
ou registro do que foi feito, enquanto a improvisação e a recriação ocorrem somente no tempo.
O GIM é um dos métodos mais conhecidos que utiliza o recurso de audição musical. Podemos citar
também o método Jost (apud Lecourt,1980), de associação de obras com caráter mais rítmico ou mais
melódico, em que os pacientes fazem escolhas sucessivas das obras, ou ainda de Guiraud-Caladou (1983),
de tres associações de dois extratos musicais, após os quais os pacientes falam sobre o que vivenciaram.
Vandré Vidal utiliza a experiência musical de composição nos Cancioneiros do IPUB, um grupo
criado por ele. As reuniões do grupo para um observador ingênuo podem parecer como promovidas para
compor e ensaiar as apresentações, mas na realidade visam o aspecto terapêutico e não a produção, de
acordo com Marcello Azevedo (2000), um psicólogo que trabalhou com Vandré. O objetivo é propiciar ao
psicótico a busca do retorno à realidade, compreendendo como “realidade” aquela minimamente
compartilhada por todos para possibilitar, em algum nível, a compreensão dos códigos sociais e culturais,
e assim o convívio social.
Seu método de trabalho consiste em elaborar tanto a parte sonoro-musical quanto os assuntos
que mobilizam o grupo. Inicialmente isto era feito em uma sessão de 90 minutos. Com o decorrer do
tempo foi observado que seria mais eficaz fazer três tipos de sessões diferentes: uma para apresentar
músicas novas, em que os demais participantes podem complementar a idéia musical inicial, fortalecendo
assim a noção de grupo; a segunda para a reflexão sobre os problemas individuais e as relações
interpessoais; o terceiro é o ensaio musical, no qual são retomados os objetivos anteriores, vivenciados
por meio “da necessidade de uma maior participação dos integrantes”, porque “é fundamental a
contribuição de cada um para que a performance musical seja completa”. Afirma ainda que “com isto
temos acesso aos aspectos mais ‘saudáveis’ dos pacientes que muitas vezes nos surpreendem”(p.129), o
que reforça a idéia expressa por mim anteriormente de que o foco da musicoterapia é a promoção da
saúde. As apresentações públicas são uma vivência no real e têm um aspecto de empoderamento e de
inclusão social por apresentar músicos, e não pacientes, e por aumentar as oportunidades destes para
uma nova vida.
Martha Negreiros (1984) e eu mesma desenvolvemos um método que podemos denominar de
Ação/Relação/Comunicação e empregar ARC como sigla. Tínhamos como objetivo a abertura de canais de
comunicação com pacientes esquizofrênicos, isolados em seu mundo particular, para, a partir daí, poder
tentar modificar seu modo de ser e estar no mundo. Trata-se de um método não-diretivo, baseado no
fazer musical, que é interativo por natureza e envolve o paciente ou grupo, o musicoterapeuta e a música.
São utilizadas as experiências musicais de recriação e improvisação. Os membros do grupo têm a
liberdade de escolha, tanto dos instrumentos quanto das atividades. Esta possibilidade de escolher, ao
invés de acolher a direção dos musicoterapeutas, é importante por aumentar o poder de decisão de
pessoas que vivem uma grande limitaçao no seu dia-a-dia. Mais do que isso, “a experiência da escolha é
também importante porque expressa e define identidade”. Esta afirmação de Noone (2009) mostra, que
no método por nós utilizado, a liberdade de escolha se une à experiência prazerosa da sonoridade, e
contribui assim para a (re)construção da identidade do sujeito psicótico.
De modo muito simplificado, podemos dizer que o caminho a percorrer começa com o estímulo
para a ação de fazer música, embora esta música possa não ser relacionada a nada mais do que a própria
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pessoa. A partir do fazer musical, procura-se despertar o paciente para o fazer com, em que a música
deixa de ser uma ação individual e inclui a presença do outro. O relacionamento interpessoal, tanto com o
grupo quanto com os musicoterapeutas, começa a ocorrer por meio da música. É importante fazer o
sujeito ter consciência de que está se relacionando com o outro, e tornar explícita essa relação que às
vezes não é percebida claramente. Como foi teoricamente afirmado, a música expressa emoções/afetos.
O passo seguinte é ajudar o sujeito a tornar-se tornar-se consciente dos afetos, emoções, conflitos
expressos musicalmente, e procurar ajudá-lo a comunicar-se também verbalmente. Para percorrer este
caminho são usadas basicamente experiências de improvisação, principalmente rítmica, e de recriação,
principalmente de canções populares, na maior parte das vezes com modificações nos acompanhamentos,
em menor número nas letras e raramente na melodia.
Embora tanto no caso de Vandré Vidal, quanto no de Martha Negreiros e eu mesma “este
caminho não tenha sido fixado de antemão de modo deliberado e refletido”, foi possível perceber, na
releitura posterior, que houve o desenvolvimento de métodos que podem ser transmitidos, e não apenas
procedimentos sem organização ou casuais. O método de Vandré aplica-se a pessoas com maior
capacidade musical, enquanto o nosso dirige-se para pessoas com mais dificuldade de relacionamento.
Bruscia define procedimento como “sequência organizada de operações e interações que o
terapeuta usa para levar o cliente através de uma experiência musical completa”. Técnica, para o autor é
“uma operação ou interação que o terapeuta utiliza para provocar uma reação imediata do cliente ou para
modelar a experiência imediata do cliente”. (p.122)
No método por nós utilizado, as sessões são divididas em duas partes distintas: a primeira de
expressão sonoro-musical e a segunda de comentários para avaliar a primeira. Podemos exemplificar os
procedimentos e técnicas utilizadas na primeira parte da sessão:
1. cada pessoa escolhe os instrumentos
2. o grupo experimenta os instrumentos livremente
3. o grupo tende a se organizar espontaneamente.Caso isto não ocorra, o
musicoterapeuta intervém, usando técnicas diversas – marcando uma pulsação,
propondo uma atividade rítmica, iniciando uma canção, e inúmeras outras, conforme
perceba a necessidade e a adequação no momento.
4. novas atividades vão sendo iniciadas livremente pelos sujeitos, e podem levar a novas
intervenções do musicoterapeuta.
Para atuar e interferir nesta parte da sessão, o musicoterapeuta deve fazer a leitura e ter uma
compreensão, mesmo que parcial, do que está sendo expresso pela produção musical. A música, por ser
um produto cultural, é uma linguagem comum ao paciente e ao musicoterapeuta, o que dá pistas sobre o
sentido do acontecer sonoro-musical. O papel do musicoterapeuta é escutar e interpretar para si próprio
não só a produção musical, mas o modo pela qual se dá: se o paciente utiliza criativamente ou não os
instrumentos musicais, a voz e o corpo, se mostra inibições, muitas vezes ao ponto de ficar paralisado, se
é espontâneo ou estereotipado, enfim todas as suas atitudes passíveis de serem observadas. O
musicoterapeuta precisa vibrar em comum com seu paciente, compreender aquilo que deseja expressar,
ir ao seu encontro para ajudá-lo musicalmente a dar forma a esta expressão. Precisa aceitar a “música do
paciente”, e tentar perceber as reações que provoca no grupo e no próprio musicoterapeuta.
A intervenção do musicoterapeuta vai se dar para compartilhar o que percebeu com o paciente ou
grupo, quando julgue adequado intervir. A possibilidade de entender o que a música comunica é ampliada
por haver uma interação musical entre o paciente ou grupo e o musicoterapeuta. Quem está fazendo
música em comum percebe melhor o que está sendo expresso do que um simples ouvinte, não envolvido
no fazer. A interferência musical do musicoterapeuta é aceita ou não pelo paciente ou grupo, conforme
corresponda ou não aos seus anseios no momento.
Na segunda parte da sessão:
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1. o musicoterapeuta assinala o fim da expressão sonoro-musical e espera que os
pacientes comecem espontaneamente a falar
2. se isto não ocorre, o musicoterapeuta intervém, iniciando com a pergunta – “O que
acharam da sessão?” ou “do nosso encontro?”
3. os sujeitos dão livremente suas opiniões
4. o musicoterapeuta procura clarificar o que é dito
5. se alguém não fala o musicoterapeuta procura estimulá-lo
6. o musicoterapeuta dá suas opiniões e conclusões, finalizando a sessão.
Para a clarificação desta parte da sessão, o musicoterapeuta deve procurar a motivação da
verbalização do paciente e as influências que levaram ao sentido atribuído por eles à produção musical,
por meio das próprias palavras e opiniões dos mesmos.
A IDENTIDADE DO MUSICOTERAPEUTA
Os musicoterapeutas devem ser profissionais detentores do saber musicoterápico e capacitados
para sua prática. Desde os primeiros tempos isto já era, se não sabido, pelo menos intuído. Como afirmou
Benenzon (1985), o musicoterapeuta não é “nem um médico, nem um músico, nem um psicólogo”. Eu
acrescentaria nem fisioterapeuta, nem educador musical, pensando apenas nas três grandes áreas da
musicoterapia – saúde mental, reabilitação motora e deficiência mental.
Como existe uma especificidade do saber e da prática clínica musicoterápica, a formação do
musicoterapeuta é necessariamente diversa da formação de qualquer outro terapeuta. Com o objetivo de
oferecer uma formação especializada, foi fundado o Curso de Musicoterapia no Conservatório Brasileiro
de Música. Foi organizado em três áreas – científica, musical e sensibilização, incluindo campos de
conhecimento médicos, psicológicos, musicais, artísticos e outros.
A área musical compreendia noções de teoria musical, harmonia, harmonia prática, e folclore, e a
prática musical que incluía execução de instrumentos, canto coral, desenvolvimento do senso rítmico
pelos métodos Dalcroze e Orff.
A área científica, além de conhecimentos sobre a própria musicoterapia, incluia psicologia,
filosofia, disciplinas médicas, técnicas psicoterápicas, ética profissional, entre outras.
A área que difere fundamentalmente a formação dos musicoterapeutas de todas as outras
especialidades no campo terapêutico é a chamada sensibilização. Esta área, incluia as Atividades Criativas
de Apoio à Musicoterapia, a Improvisação de Som, Corpo e Objeto Sonoro, e Dinâmica de Grupo.
Elementos da cultura brasileira, como música, mitos, fábulas e contos folclóricos são empregados para
mobilizar a imaginação, emoções e sentimentos. O objetivo da sensibilização é desenvolver todos os
sentidos para possibilitar a compreensão do não verbal, no trato com os futuros pacientes.
Embora a proposta inicial perdure até hoje, o curso é dinâmico, sendo atualizado constantemente,
à medida que surgem novos conhecimentos e são introduzidsas novos campos de aplicação.
Na prática clínica, também existem aspectos peculiares à musicoterapia: a escuta musical e a
atuação do musicoterapeuta.
Escutar é um ato consciente de absorver informação. O objetivo da escuta é, além de ouvir,
entender, decifrar, catalogar a informação que selecionamos entre todas as sonoridades ouvidas
concomitantemente, o que requer atenção e concentração.
A escuta terapêutica exige escutar o dito e o não dito, o que se expressa por trás do dito, o que
vai além das palavras e suas significações, envolvendo também as entonações da voz, o tônus, os
movimentos corporais, as expressões faciais. É necessário ainda relacionar tudo que se apresenta à
observação para formar um quadro que permita uma compreensão ampliada do que é trazido pelo
paciente. Esta escuta é própria de qualquer intervenção terapêutica, mesmo as que se dirigem à área
orgânica, como se vê nas recomendações da anamnese médica.
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A musicoterapia, enquanto escuta, se distingue de qualquer outra por dirigir-se, além dos
aspectos citados, à produção musical,. No setting musicoterápico há mais de uma escuta e possibilidade
de atribuição de sentido/significado ao acontecer musical: 1) a do musicoterapeuta sobre a produção
musical do cliente e do grupo, 2) a do paciente sobre esta produção e sobre a interferência do
musicoterapeuta na mesma.
A escuta do paciente dirige-se fundamentalmente ao produto musical, (atividade lúdica, qualidade
boa ou má da execução) e ao que a música expressa (vivência de prazer, sentimentos positivos ou
negativos).
A escuta do musicoterapeuta não se dirige apenas à música enquanto produto acabado, mas a três
aspectos: a maneira de produção do paciente (o modo pelo qual o paciente usa ou não o material
disponível – instrumentos musicais, voz e corpo, se ele se mantém em silêncio, se é criativo ou
estereotipado, se é espontâneo ou inibido), a música produzida e o efeito que esta música provoca sobre
o paciente ou o grupo, se for o caso, e sobre o próprio musicoterapeuta. É preciso aceitar a produção
musical do paciente, por mais que a consideremos de má qualidade.
Nosso treinamento nos faz escutar música, onde outros profissionais só ouvem cacofonia.
Pudemos perceber isto muito claramente quando apresentamos, no Centro de Estudos do IPUB, uma fita
cassete com a gravação de uma sessão. Podíamos observar do palco as expressões perplexas da platéia.
No final, o então diretor nos disse que os musicoterapeutas precisavam ir a muitos concertos, para
preservar sua saúde auditiva.
Esta escuta do musicoterapeuta me parece peculiar, distinguindo-se tanto da escuta de músicos
quanto de terapeutas de outras áreas. É uma escuta própria do que estamos tentando configurar como a
especificidade musicoterápica.
Quanto à prática clínica, a atuação do musicoterapeuta difere dos demais terapeutas por basearse na linguagem musical. O musicoterapeuta não se limita a “ler” e interpretar o que ouviu durante a
sessão, mas interage musicalmente com o paciente. Diz Cecília Conde1 que “o musicoterapeuta aprende
como usar a música, a que horas deve parar, quando deve ir mais fundo, quando se conecta, se comunica,
tem acesso ao ser humano (...)” o que também parece ser específico da musicoterapia. Em relação à
peculiaridade deste aspecto, podemos citar dois comentários, feitos em diferentes locais, sobre a
apresentação de um audiovisual de sessão. Um médico residente, no Centro de Estudos do IPUB,
comentou nunca ter visto nada igual em hospitais psiquiátricos, pacientes e terapeutas cantando e
dançando juntos. Num encontro de Assistentes Sociais foi dito por um participante que a musicoterapia
era um processo democrático, em que pacientes e terapeutas atuavam conjuntamente, sendo difícil
discriminar quem era quem.
Como exposto anteriormente, é preciso escutar o dito e o não dito, o sonoro e o silêncio, o que
existe além e por trás da música e/ou das palavras. Quando se compartilhou da produção musical, os
significados atribuídos podem ser aproximadamente os mesmos.
O musicoterapeuta é um profissional com uma formação e uma identidade próprias, não podendo
ser substituído por nenhum outro. Posso citar duas experiências pessoais. A primeira no IPUB, quando um
psicólogo de outro hospital procurou Martha Negreiros e eu mesma, dizendo que tocava violão e queria
fazer musicoterapia com seus paciente, mas não conseguia fazê-los participar. Depois de explicarmos o
que era musicoterapia, concluiu que era necessário ter uma formação adequada. Em Portugal, num
Hospital em que trabalhei, resolvi deixar com dois enfermeiros a condução da sessão nos dias em que não
poderia estar presente. Total fracasso. Nenhum dos dois foi capaz de assumir a função, embora sempre
participassem comigo das sessões.
1
CONDE e FERRARI, 2008
9
CONCLUSÕES
Como afirmado, uma ciência aplicada específica depende da existência de um saber e de uma
prática próprias, além de profissionais qualificados para exercê-la. A musicoterapia atende aos três
requisitos. Podemos afirmar, portanto, que a musicoterapia existe como uma ciência aplicada específica,
e uma forma de tratamento singular e autônoma. Mesmo quando utilizada na área de saúde mental, não
se confunde com uma psicoterapia musical.
O saber e os procedimentos musicoterápicos são próprios e específicos. A atuação do
musicoterapeuta é diversa da atuação de outros terapeutas, como psicólogos, fisioterapeutas, etc, porque
envolve necessariamente uma interação musical com o paciente ou grupo. A música, muito além de ser
uma linguagem partilhada, é o centro de todo o processo, e ao seu redor vão se desenvolver a relação
interpessoal e a comunicação com o outro. A música, núcleo do processo musicoterápico, é interativa por
natureza, envolvendo o paciente, o terapeuta e a música, enquanto fazer e enquanto escutar. Este
fazer/escutar perdura durante todo o processo. No campo da Saúde Mental, mesmo quando a relação
com o terapeuta e/ou grupo está estabelecida e a comunicação já se dá utilizando a palavra, a música
continua a ser o meio de expressão por excelência.
Tratando-se de saúde mental, os trunfos da musicoterapia, no meu entender, são a linguagem
musical e o prazer. A música é uma forma de linguagem sem significados definidos, o que permite ao
psicótico expressar seus sentimentos sem contradição, mesmo se contraditórios. Em seu primeiro
impacto mostra-se apenas boa/agradável ou má/desagradável, mas admite a projeção de outros
significados atribuídos pela emoção ou pela racionalidade. Além disto, o contato direto com o outro é
fonte de muita tensão para o psicótico e a música intermedia este contato. Estes dois aspectos – contato
indireto com o outro e linguagem sem significado preciso – levam a um alívio de tensão, que pode ser
sentido como prazeroso.
O prazer usufruído na atividade musical tem um papel importante por possibilitar ao paciente
investir na realidade externa, abandonada por ser apenas fonte de sofrimento, no caso das psicoses, ou
para suportar sofrimentos e situações difíceis da realidade, no caso de outros problemas, como constatam
musicoterapeutas que trabalham em hospitais gerais. A poetisa Zenite, anteriormente citada, confirma
esta experiência do prazer como suporte para enfrentar a realidade dizendo:
Que a musicoterapia é na ABBR
O lugar, onde nós voltamos a sorrir e a crer
Que mesmo limitados podemos ter prazer em viver.”p. 69
O corpo teórico que sustenta a prática clínica também é específico. Embora elaborado a partir de
outros saberes, estes conhecimentos foram amalgamados como algo novo. Como diz Marly Chagas,
(2008) a musicoterapia é um “híbrido interdisciplinar”, cuja síntese de outras disciplinas construiu um
novo conhecimento. O hibridismo pode também ser qualificado como transdisciplinaridade, porque nesta
síntese há uma integração de outras disciplinas sem que haja uma hierarquização de um saber sobre
outro, como afirma Leila Bergold. (2008). No campo da saúde mental, disciplinas como psicologia,
psicologia da música, linguística, estética e outras, são integradas de forma original no corpo de
conhecimentos musicoterápicos, fundamentando sua prática.
A meu ver, a musicoterapia, na área de saúde mental à qual me dediquei por 25 anos, não
dispensa, pelo menos por enquanto, a adoção de alguma teoria psicológica para a leitura das vivências
saudáveis ou conflituosas da pessoa. Adoto, como referencial, as concepções teóricas psicodinâmicas, não
no sentido psicanalítico ortodoxo, mas na visão de que o psiquismo humano está sempre em movimento,
tem aspectos inconscientes, que perduram desde o início da vida e influenciam toda a existência. Isto não
significa considerar a musicoterapia uma psicoterapia combinada com música, cujo papel seria apenas
permitir o acesso a núcleos inconscientes para serem posteriormente trabalhados. A leitura e devolução
do que é expresso musicalmente é musicoterápica e não se confundindo com interpretações
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psicanalíticas. A música desempenha um papel bem mais relevante no processo terapêutico do que servir
apenas de intermediadora do relacionamento terapeuta/paciente e possibilitadora do acesso a núcleos
inconscientes do paciente.
A musicoterapia pelas características próprias de seu saber, sua prática e sua formação
profissional, não se confunde e é distinta e independente de outras formas de terapia. Não canso de
repetir que um dos seus grandes trunfos é propiciar, por meio do prazer, a promoção da saúde de
pessoas fechadas em universos de isolamento e sofrimento.
Não posso deixar de expressar meus agradecimentos às musicoterapeutas Vera Wrobel e Martha
Negreiros, pela generosidade em ler e fazer sugestões para este artigo.
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