ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 1 LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA: DISCUSSÕES E PRÁTICA Jairton Mendonça de Jesus (UFS/IFS) Quando se quer discutir a respeito da formação de leitores, mesmo que teoricamente, nada melhor que começar com um texto. Por isso nos reportamos à crônica de Carlos Eduardo Novais “A regreção da redação”. Isso mesmo. “Regreção” com “ç” e “redassão” com “ss”. A partir do título da crônica já se estabelece uma reflexão que só será percebida por quem, no mínimo, sabe escrever as duas palavras de acordo com as normas da língua portuguesa. O texto traz um diálogo em que uma mãe, desesperada por seu filho com 17 anos não saber escrever, procura um escritor, o narrador, para que ele a ajude em tal empreitada. O narrador tenta de todas as formas se sair dessa, ora dizendo que a culpa não é do menino, mas do ensino, ora alegando que não sabe pontuar nem acentuar as palavras, que dá muito trabalho ao revisor. Diante de tal situação, o narrador comentou o fato com um professor, amigo seu, que lhe respondeu que não devia se assustar, pois “o estudante brasileiro não sabe escrever" (NOVAES, 2004, p. 10). Ouviu a mesma resposta de educadores e leu declarações de um diretor de faculdade em um jornal no qual dizia que "o estudante brasileiro não sabe escrever". Comentando o assunto com um amigo, revela sua satisfação em saber que “os brasileiros não sabem escrever” (NOVAES, 2004, p. 10), pois assim seu emprego de escritor estaria garantido por pelo menos dez anos, ao que o amigo retruca: “Engano seu – disse ele. – A continuar assim, dentro de cinco anos você terá que mudar de profissão” (NOVAES, 2004, p. 11). Sem perceber a gravidade do que dizia, o narrador questiona e descobre que se não se sabe escrever é porque não se lê. E se não há quem leia, para quem escrever, já que escrever e ler são atos que se complementam? É impossível um existir na ausência do outro. De acordo com Silva (2005), “o ato de ler envolve uma direção da consciência para a expressão referencial escrita, capaz de gerar pensamento e doação de significado” (p. 64). Nesse sentido, ainda de acordo com Silva (2005), a leitura, ao permitir a entrada e a participação no mundo da escrita, torna-se um meio de ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 2 participação do ser humano nas sociedades letradas; a experiência dos produtos culturais manifestados por meio da escrita só é possível pela existência da leitura e, portanto, de leitores. Daí sua importância na escola, já que essa é, ou pelo menos deve ser, o ambiente de desenvolvimento e transmissão do saber. E aqui chegamos a nossa principal temática. Talvez pudéssemos ter começado diretamente o assunto, mas tal estratégia faz parte de um método sem o qual não conseguimos enxergar a formação de leitores: o uso do texto literário. Para que se leia na escola é preciso que os alunos entrem em contato com o texto, com a leitura. Não discordamos que a leitura deve ser de diferentes gêneros e tipos textuais, mas, como nossa pretensão é estimular a leitura de textos literários, debatemos aqui a respeito do objeto “a formação de leitores”, do instrumento “o texto literário” e do método “como ler o texto literário”. Para refletir a respeito da problemática da (falta de) leitura na educação básica, trazemos algumas informações a respeito de pesquisas que avaliam o desempenho dos estudantes brasileiros nesse aspecto. Os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) refletem a ineficiência do ensino de leitura. De acordo com os resultados de 2006, os estudantes brasileiros têm um nível de entendimento textual dos piores do mundo. Em 2009, o resultado mostrou uma leve melhoria, embora distante do desejável. Tal desempenho passa inevitavelmente pela forma como se dá o ensino. O papel da educação básica parece não ser bem desempenhado. E isso não deve ser preocupação apenas do Estado, mas também de educadores e profissionais da educação em geral. Atualmente, saiu um dado ainda mais estarrecedor: segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional – Inaf1 –, em 2011, de cada quatro brasileiros apenas um domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática. Esse seria o pior resultado se não fossem os 38% de graduados classificados como analfabetos funcionais. Somente 62% das pessoas com ensino superior e 35% com ensino médio completo são classificadas como plenamente alfabetizadas. Isso significa que, apesar de terem passado 1 O Inaf é um indicador que mede os níveis de alfabetismo funcional da população brasileira adulta. Seus resultados informam a sociedade brasileira a respeito das habilidades e práticas de leitura, escrita e matemática dos brasileiros entre 15 e 64 anos de idade. ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 3 tantos anos estudando, essas pessoas não conseguiram o mínimo exigível, que é aprender a ler e escrever em seu sentido mais óbvio: entender o está sendo lido e escrever textos adequadamente. Não seria querer demais, então, quando defendemos a formação de um leitor crítico, quando a situação de leitura incipiente é visível entre os alunos da educação básica? Como desejar formar um leitor literário já nesse nível de ensino quando não temos ainda o básico: decodificadores que entendam o que leem. Contudo, uma das questões que podem ser colocadas é que já foi demonstrado por vários especialistas que o texto literário, mesmo no ensino médio, no qual a literatura aparece como componente curricular obrigatório, não tem sido objeto de leitura e de estudo. Em suas pesquisas e discussões, Cereja (2005), Chiappini (2005), Cosson (2006), Todorov (2009), entre outros, apontam nessa mesma direção: o texto literário não está sendo lido. Nossa inquietação, nesse sentido, não é o meio de acesso à leitura – que hoje pode ser digital ou impresso –, mas o próprio acesso. A grande preocupação do ensino de leitura, então, deve se pautar no fazer pedagógico, no trato didático que se dá nas aulas de língua portuguesa e, especificamente, nas de literatura, uma vez que, considerando os dados apresentados dos programas de avaliação em leitura, podemos concluir que a educação básica está sendo ineficiente nesse aspecto. A escola, portanto, não tem sido um ambiente de formação de leitores, e muito menos de leitores de textos literários. De acordo com Todorov (2009), a literatura está em perigo, pois, na escola, ensina-se muito mais sobre o que a teoria e a crítica falam a respeito dos textos literários do que sobre os próprios textos (cf. TODOROV, 2009, p. 27). Por uma visão similar, Zilberman (2008) argumenta que a crise do ensino de literatura pode ser vista a partir de uma gradação de fatores que, de forma ampla, pode ser resumida em falta de leitura: de um lado, “recriminam-se os alunos por não gostarem de ler, preferirem outras formas de expressão ou satisfazerem-se com seu estágio de ignorância” (p. 50); de outro, os professores são o alvo das críticas por sua falta de eficiência. Vejamos que leitura e ensino são postos em questão quando se fala em crise da literatura. ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 4 E como formar um leitor literário crítico, se não se usa o texto literário? O primeiro passo, portanto, é fazer com que o aluno entre em contato com o texto. Não adianta querer que, de início, por si só, ele faça uma possível leitura adequada de um texto literário se não é iniciado em leitura e análise textual. O professor tem um papel de orientador que é imprescindível. Em pesquisa realizada em escolas públicas e particulares da cidade de Itabaiana/Se, Jesus (2011) detectou nas respostas dos alunos entrevistados (alunos de 1ª e 2ª séries do ensino médio) que uma de suas dificuldades com o texto literário é linguagem empregada nos mesmos. Por aí percebemos que o contato com o texto literário tem sido muito pouco, se pensarmos em termos quantitativos e qualitativos, já que não estão acostumados ainda com uma linguagem mais elaborada. A falta de contato com o texto foi detectada também quando se perguntou a respeito de suas leituras. As leituras literárias, para a maior parte dos alunos, se limitavam a obras indicadas pelo Vestibular da Universidade Federal de Sergipe, que eram no máximo quatro para cada série do ensino médio. Para que essa dificuldade seja vencida, o professor, repita-se, tem um papel imprescindível. Fazer com que o aluno leia, entenda o que lê e perceba criticamente as nuances que um texto literário traz, não só em sua estrutura, mas também em sua concepção ideológica, pode ser um dos caminhos seguidos na escola. Nesse caso, estaríamos concebendo um leitor apto a assimilar as informações que um texto, implícita ou explicitamente, passa para seu receptor. Vale dizer que esse já seria um excelente trabalho desempenhado no seio da escola, se consideramos o nível de aptidão leitora que comumente são verificados nos testes que avaliam os estudantes brasileiros, conforme já foi colocado. Contudo, é preciso ir além. Na leitura literária, não se almeja apenas a uma leitura passiva. É necessário que o aluno desenvolva meios para ampliar e articular conhecimentos e competências que possam ser utilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com que se depara na família, entre amigos, na escola, no mundo do trabalho etc. Entretanto, formar um leitor ativo se incompatibiliza com um ensino voltado para a memorização mecânica de regras gramaticais ou de características de determinado movimento literário. E essa tem sido uma prática constante nas escolas, conforme ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 5 demonstra pesquisa realizada por William Roberto Cereja analisada no livro Ensino de Literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com Literatura (2005). Nessa pesquisa, além de apontar essa prática de ensino, Cereja também propõe uma metodologia que toma o texto literário como força motriz inicial do ensino de literatura. Influenciado pelo dialogismo de Mikhail Bakhtin, ele sugere que o texto literário seja trabalhado levando em conta a intertextualidade que lhe é própria. Em sua metodologia, a concepção de que “toda literatura é ‘intertextual’” (EAGLETON, 1997, p. 190) é considerada pelo viés estético. Assim, como forma exemplificativa, Cereja toma os textos “As meninas da gare”, de Oswald de Andrade, e um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha, procurando mostrar as relações dialógicas existentes entre um e outro. Vejamos que são textos de épocas diferentes, mas ele procura buscar as relações que os aproximam e prossegue por caminhos apontados pelos próprios textos em suas relações intertextuais com outros textos (cf. CEREJA, 2005). Nesse sentido, o propósito é mostrar a contradição de como a literatura pode ser paródica e ao mesmo tempo original. O texto literário pode ser lido de variadas formas, por variados métodos. Para finalizar este trabalho, com o objetivo de também mostrar as diversas possibilidades de como o texto literário pode ser lido, propomos uma prática fazendo uma leitura do poema de Jorge de Lima “Retreta do Vinte”, de forma a exemplificar como a leitura literária, além de poder ser feita pelo viés estético, pode ser analisada pelo viés crítico-cultural. Tal proposta vem sendo construída por Carlos Magno Santos Gomes, professor da Universidade Federal de Sergipe, e toma como base de análise do texto literário os Estudos Culturais, daí o tipo de leitor ser denominado leitor cultural. A leitura cultural valoriza, assim, as abordagens sociais e culturais para a formação crítica do leitor a partir de uma recepção crítica do texto literário. No texto “Retreta do Vinte”, cuja temática – o negro – foi negligenciada pela história da literatura brasileira, verificamos como a estética pode estar relacionada a estigmas atribuídos à cultura afro-brasileira, a exemplo da visão reducionista de sua cultura, comumente associada ao ritmo, musicalidade e linguagem peculiares; ainda assim, pode-se, da abordagem que fazemos, inferir noções não apenas de intertextualidade estética, mas também de interculturalidade, pois exige reflexões sociais de como os negros são ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 6 representados no texto literário. Nesse sentido, ao se formar o leitor crítico por um ponto de vista cultural, opta-se por desenvolver a criticidade que se caracteriza pela participação ativa do leitor no processo de construção do sentido da obra literária. O leitor cultural não se prende, portanto, à compreensão do significado pretendido pelo autor (emissor), mas vai além, pois reage, questiona, problematiza, aprecia com criticidade. Sendo assim, partindo da concepção de que a literatura – pautada num ensino que priorize a leitura do texto – é um dos caminhos mais viáveis para se despertar no aluno uma consciência crítica do mundo em que vive, e, portanto, para formar um leitor apto a interagir com o outro e com outras leituras, a proposta de leitura que apresentamos parte da concepção de que a leitura não deve se limitar aos níveis da compreensão e da assimilação textuais tão somente, mas ir além, colocando o leitor como partícipe da construção do sentido do texto literário. Nesse sentido, ao assumirmos tal postura, não pretendemos colocá-la como solução inquestionável para os problemas que atingem a escola no que se refere ao ensino de leitura e de literatura. Ao contrário, entendemo-la como apenas um dos possíveis caminhos para atingir o objetivo de formar leitores críticos e participativos. É com esse propósito que partimos para a análise do poema “Retreta do Vinte”, de Jorge de Lima. Contudo, antes mesmo que falemos do poema, é interessante situar seu autor. O poeta alagoano Jorge de Lima, além de ter notoriedade por sua poesia religiosa, é conhecido também pela produção poética cuja temática nos remete ao negro. Quem não se lembra do poema “Essa negra Fulô”? Embora seja uma produção inovadora – pois no percurso da história da literatura não se deu atenção ao negro, nem enquanto tema para o texto literário, nem tampouco pela sua importância na construção da cultura e identidade nacionais – sua poesia traz uma visão ambígua: ao mesmo tempo em que mostra o negro submisso ao branco e como objeto de exploração, valoriza o negro enquanto personagem importante na formação da cultura brasileira. A característica de formador da cultura brasileira pode ser vista no poema que passamos a analisar como forma exemplificativa da proposta de leitura baseada numa relação estético-cultural. Vamos ao texto: Retreta do Vinte O cabo mulato balança a batuta, ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 7 meneia a cabeça, acorda com a vista os bombos, as caixas, os baixos e as trompas. (No centro da Praça o busto de D. Pedro escuta.) Batuta pra esquerda: relincham clarins, requintas, tintins e as vozes meninas da banda do 20. Batuta à direita: de novo os trombones e as trompas soluçam. E os bombos e as caixas: ban-ban! Vêm logo operários, meninas, cafuzas, mulatos, portugas, vem tudo pra ali. Vem tudo, parecem formigas de asas Rodando, rodando em torno da luz. Nos bancos da Praça conversas acesas, apertos, beijocas, talvezes. D. Pedro II espia do alto. (As barbas tão alvas tão alvas nem sei!) E os pares passeiam, parece que dançam, que dançam ciranda, em torno do Rei. (LIMA, 1997, p. 299-300). Não defendemos que o sentido de um texto literário possa vir de apenas de um dos elementos relacionados à leitura. Ao ler, o leitor parte sempre do elemento “texto” produzido por um autor. Portanto, o processo de leitura deve envolver autor, texto e leitor. Nesse sentido, ao ler o poema em análise, o leitor pode fazer o seguinte questionamento: Qual análise deve ser feita primeiro, a estética ou a cultural? Não defendemos uma ordem prioritária, portanto a escolha fica a critério do leitor. Fazemos aqui primeiro a estética por termos o objetivo de exemplificar como a estrutura do poema diz muito em relação ao conteúdo cultural abordado nele, mas, se invertêssemos a ordem, não teríamos nenhum prejuízo para a proposta de leitura. Elas podem ser feitas também concomitantemente. Como ponto de partida, podemos tomar o título do poema. O termo “retreta” está relacionado ao concerto popular de uma banda em praça pública. Associando à musicalidade, que já é própria do poema, podemos investigar o ritmo que o mesmo apresenta. Verificando a sequência de silabas fortes, percebemos que recaem, na maior parte dos versos, na 2ª, 5ª, 8ª e 11ª sílabas de cada verso. Embora, em alguns versos, essa sequência seja diferenciada, o ritmo se sobrepõe à métrica e permanece o mesmo em todo o poema. Musicalmente, pode ser representado da seguinte forma: ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 8 Utilizando onomatopeias, temos: tá-taá-tá-tá-taá-tá-tá-taá-tá. Tradicionalmente, essa sequência rítmica (um tempo dividido em três notas musicais em compasso binário2: semicolcheia, colcheia, semicolcheia) é classificada como modinha, um ritmo musical de caráter popular. Vejamos que o poeta se utilizou de conhecimentos musicais, demonstrados pelo ritmo, para representar o assunto em questão. Sendo assim, o poema diz não apenas por meio de sua estrutura, mas também pelo conteúdo abordado. A começar pelo título do poema, a comunicação vai além quando o leitor se depara com uma situação muito frequente e tradicional da cultura brasileira: o poema descreve a apresentação de uma retreta em praça pública na qual estão reunidas várias pessoas da comunidade para apreciar a música popular, enquanto outras passeiam na praça em pares, mas seguindo o mesmo ritmo da música. Já no primeiro verso, a imagem formada nos lembra um maestro pronto para começar a execução musical. Utiliza apenas o olhar para convocar os músicos para o início da peça. A cada movimento da batuta, os instrumentos começam a tocar. Assim, no movimento da batuta para a esquerda, tocam clarins, requintas, tintins e as vozes meninas da banda do 20 (versos 5 e 6). Batuta para direita e outros instrumentos entram com sua sonoridade (versos 7 e 8). Cada instrumento, assim, entra em seu devido tempo, conforme lhe pede a partitura e avisam os movimentos da batuta. Um dado que interessa também é a composição étnica da comunidade que frequenta a praça. As diversidades étnica e social se apresentam como diferenças que se unem em prol de um mesmo objetivo: ouvir a banda tocar. Seria essa comunidade apresentada pelo poema uma metáfora dada pelo poeta para representar a composição 2 A modinha pode aparecer em compasso binário ou quaternário. Fazemos referência ao binário por se tratar do ritmo do poema. ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 9 étnica e social brasileira, ou essa interpretação seria apenas uma projeção de leitura possível permitida pelo texto e feita pelo leitor? Talvez as duas respostas sejam possíveis, mas, para a leitura que pretendemos, o fato de essa comunidade ser formada por diferenças dá a oportunidade de análise numa perspectiva questionadora em relação aos preconceitos e discriminações que se estabelecem socialmente. Se a população brasileira é composta de várias etnias, havendo nela uma miscigenação, como “justificar” a sobreposição de uma etnia sobre as outras? Vejamos que para haver uma explicação razoável, temos que nos reportar à ideia de Derrida segundo a qual um dos termos das oposições binárias (nesse caso a dicotomia branco/negro) sempre se sobrepõe ao outro (cf. DERRIDA, 2001). Tal sobreposição, entretanto, não pode ser entendida nem aceita como uma simples naturalização, mas como resultado de uma construção social. Ao fazermos uma leitura questionadora dessa construção social, podemos trazer à discussão ideias que refletem a respeito da desconstrução do que é naturalizado socialmente. Desse modo, embora possamos usar os mesmos termos do sistema, é preciso rompê-los de forma a serem colocados sob “rasura” (cf. HALL, 2000). Para tanto, inicialmente, deve ser feita a inversão da hierarquia dicotômica (cf. DERRIDA, 2001). Tradicionalmente, o papel de quem está no poder é representado pelo branco. No poema, contudo, podemos dizer que isso é invertido, já que o símbolo de representação do poder, a batuta, está nas mãos de um mulato que rege a orquestra. A partir disso, a leitura que pode ser feita não pretende inverter a ordem de valores socialmente estabelecidos, mas colocar em discussão uma problemática imanente à vida social: a construção de valores. Nesse caso, a distinção entre as diferenças feitas pelo poeta não deixa margem para a sobreposição de uma das etnias sobre as outras. O poeta representa poeticamente uma comunidade de diferenças, mas o faz de modo que todos ali se insiram numa situação de igualdade: “Vêm logo operários, meninas, cafuzas,/ mulatos, portugas, vem tudo pra ali / Vem tudo, parecem formigas de asas / Rodando, rodando em torno da luz” (Versos 9 a 12). Tal leitura pode, entretanto, ser direcionada para outro rumo. Seria tal representação poética uma forma de camuflagem do que realmente acontece socialmente? Ou seria a defesa de um sonho de igualdade entre as pessoas independentemente de suas ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 10 situações de diferenças? Ou ainda uma possibilidade de interação social por parte do poeta a fim de que sua atuação tenha influência na vida social com o objetivo de mudança? Vejamos que o texto literário pode deixar margem para diversas leituras. Aqui fizemos apenas pequenos levantamentos semânticos a fim de exemplificar a leitura por uma abordagem tanto estética quanto cultural. Ao analisarmos o ritmo do poema, verificamos que a estrutura do mesmo deixa a possibilidade de uma leitura que direciona para o assunto tratado. Nessa análise, mostramos como esse processo de leitura se efetiva. O texto escolhido, como se vê, facilita a percepção apresentada, contudo a leitura pode ser guiada por outras direções. Mostramos no poema como um grupo de diferenças pode se unir em prol de um mesmo objetivo. Como pudemos perceber, por essa proposta de leitura, se explorássemos apenas os aspectos estruturais do poema, já poderíamos ter uma análise do texto de forma que seu significado fosse construído a partir de tais aspectos. Contudo, é sua pretensão ir além e chegar ao aspecto ideológico-cultural, conforme propõe Gomes (2010). Dessa forma, a leitura do texto literário, além de se debruçar sobre os aspectos estéticos, pretende analisar o texto pelo viés cultural. Isso significa que a leitura do texto segue uma perspectiva que remete para a carga ideológica apresentada pelo texto. Sendo assim, a própria escolha do poema já nos coloca numa posição ideológica. O fato de termos escolhido um texto não canônico já nos direciona para a desconstrução de valores. A pretensão não é inverter a ordem valorativa dos termos canônico/não canônico, mas colocar o binarismo sob “rasura”. Foi nessa perspectiva, portanto, que tentamos fazer a leitura do poema. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CEREJA, William Roberto. Ensino de Literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com Literatura. São Paulo: Atual, 2005. CHIAPPINI, Lígia. Reinvenção da catedral: língua, literatura, comunicação: novas tecnologias e políticas de ensino. São Paulo: Cortez, 2005. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. DERRIDA, Jacques. Posições. Belo horizonte: Autêntica, 2001. ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908 11 EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. 3. ed. São Paulo. Martins Fontes, 1997. GOMES, Carlos Magno. Leitura e crítica cultural. In: Anais do III ENPOLE, 2010. São Cristóvão, Deslocamentos Culturais (anais), p. 329-340. HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In. SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. JESUS, Jairton Mendonça de. Leitura cultural no ensino de literatura. 2011. 112f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Núcleo de Pós-Graduação em Letras, Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2011. LIMA, Jorge de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. NOVAES, Carlos Eduardo. A regreção da redassão. 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