RESSONÂNCIAS DECADENTISTAS
NO MODERNISMO PORTUGUÊS
Rafael Santana Gomes
RESUMO
É sabido que o movimento decadentista influenciou profundamente a modernidade
inaugural do século XX português, apresentando uma série de temas de sua predileção
no próprio seio da literatura desse período. Este trabalho tem por objetivo percorrer os
diversos caminhos do Decadentismo deixados por Charles Baudelaire e por alguns
artistas finisseculares, no intuito de mostrar as ressonâncias dessa escola literária em
alguns escritos de Mário de Sá-Carneiro e de Fernando Pessoa.
Palavras-chave: decadentismo, modernismo, Baudelaire, Sá-Carneiro, Fernando Pessoa
ABSTRACT
It is known that the decadent movement profoundly influenced the opening modernity
of the Portuguese 20th century, showing a series of its favorite topics in the very
literature of that period. The aim of this paper is to follow the several ways of
Decadentism outlined by Charles Baudelaire and some other artists of the late 1800s,
with the intention of revealing the resonances of that literary school in some writings of
Mário de Sá-Carneiro and Fernando Pessoa.
Keywords: decadentism, modernism, Baudelaire, Sá-Carneiro, Fernando Pessoa
O artista não tem que se importar com o
fim social da arte, ou, antes, com o papel
da arte adentro da vida social.
Preocupação é essa que compete ao
sociólogo e não ao artista.
(PESSOA, 2005, p.225)
É um lugar comum dos estudos críticos sobre o Decadentismo o fato de
considerá-lo um movimento literário que subvertera, de forma radical, os postulados do
projeto realista-naturalista, e que instaurara, por conta disso, o trâmite para a
modernidade1. O que talvez não se nos afigure tão claro sejam os traços que, para além
dos pólos antagônicos denúncia social (Realismo) e culto à beleza da arte
(Decadentismo), caracterizariam essa modernidade como tal. Como se sabe, embora o
1
Os estudos do professor Latuf Isaias Mucci, por exemplo, compreendem “a estética do Decadentismo
enquanto subversão do projeto realista-naturalista e enquanto instauração do trâmite para a Modernidade”
(1994, p.16).
1
Realismo se comprometesse a retratar, de um modo extremamente irônico, os
descaminhos da sociedade de seu tempo, em diversas esferas, tais como a pública, a
privada e a literária, teriam sido, ainda assim, os valores dessa mesma sociedade que
esse movimento teria pretendido reafirmar. De fato, posto o Realismo traga para o
centro da cena romanesca personagens de cujo interior despontam, não raro,
características tão negativas como, dentre outras, egoísmo, cinismo e hipocrisia – já que
o foco de sua preocupação reside, essencialmente, na humanidade falhada, como bem
assinala Monica Figueiredo (2006, p.283) a propósito de Eça de Queirós –, teria sido,
ainda assim, a pauta de valores da sociedade burguesa que esse escritor, de certo modo,
teria pretendido revigorar. Ao desconstruir, em alguns aspectos, o paradigma da
narrativa romântica, tomada, grosso modo, como a expressão máxima dos ideais da
burguesia, o autores realistas estariam, de certa maneira, reafirmando os principais
valores dessa sociedade, por meio de um processo de denegação. Se, geralmente, as
personagens românticas apresentam, numa diegese, sentimentos puros e elevados,
honra, honestidade, um agudo senso moral, uma consciência reta etc., e as personagens
realistas o oposto de tudo isso, essa distinção entre ambas não poderia ser considerada
um fator suficiente para conceber a literatura realista enquanto expressão estética
contrária aos valores da burguesia. A esse respeito, escreve José Carlos Barcellos:
[...] isso não nos deve levar à falsa conclusão de que o Realismo rompe com os
valores burgueses enquanto tais. De maneira nenhuma! Os romances e contos
realistas reafirmam toda a pauta daqueles valores: importância da família
nuclear, ética do trabalho, nacionalismo, individualismo, liberdade, honradez,
respeitabilidade etc. O Realismo é, na verdade, uma denúncia e um protesto
contra a corrupção desses valores, numa sociedade que finge aceitá-los, mas
que os reduz, na prática, a um mero jogo de aparências e de interesses. O
grande propósito do Realismo é, em certo sentido, a denúncia da hipocrisia,
que consiste em apresentar os interesses mais egoístas e mesquinhos sob a
capa de valores nobres e respeitáveis.
Com esse propósito, os autores realistas visavam a contribuir para a reforma
e o aprimoramento da sociedade burguesa. A literatura que produziram
queria ser um instrumento de esclarecimento das consciências, com a
finalidade de transformar e melhorar diversos aspectos da vida social, política
e econômica, que eles julgavam deficientes. Desse modo, encontram-se nos
romances e contos realistas, de maneira direta ou indireta, apelos à reforma da
educação, à promoção da mulher, à justiça social, ao aperfeiçoamento das leis
e das instituições etc.
(BARCELLOS, 2007, p.83-84. Grifos nossos)
Ora, seria exatamente no ponto destacado na citação acima que radicaria a
diferença básica entre o Realismo e o Decadentismo. Se o primeiro almejaria lograr uma
espécie de recentramento do homem a partir da denúncia das mazelas sociais – dado
2
que, a seu modo, apostava na utopia burguesa da busca da unidade e da integridade do
sujeito –, o segundo começaria a manifestar uma certa consciência da fragmentação do
“eu”, porque se dava conta da multiplicidade identitária como sendo um fenômeno
inerente à condição humana2. Além disso, vale reiterar o fato de a modernidade
decadentista estar vinculada, dentre outros aspectos, à idéia de uma arte centrada em si,
e que, por isso mesmo, romperia com a concepção burguesa de um fazer artístico
obrigatoriamente voltado para o social. Frente a esse esfacelamento das certezas
humanistas, o esteta finissecular vai-se dedicar à produção de obras extremamente
refinadas, porque somente essas seriam capazes de dar algum sentido à sua vida.
Repare-se que tanto a idéia da fragmentação do sujeito quanto a de uma arte centrada
essencialmente na linguagem, ambas propagadas pelo Decadentismo, constituiriam, nas
primeiras décadas do século XX europeu, a chancela-mor do Modernismo. Contudo, a
modernidade, no âmbito da literatura, já havia começado a ser preparada antes mesmo
do surgimento do Decadentismo, movimento que muito deve aos postulados de alguns
artistas que, por suas obras iconoclastas, seriam, reconhecidamente, os tutores de uma
nova escritura, em cujo eixo temático se encontrariam as bases do Modernismo.
Baudelaire, Gautier, Huysmans e Wilde: tutores da modernidade
A fonte mais copiosa do Decadentismo foi
certamente a época histórica em que
surgiu, um momento de encruzilhada, uma
fase crucial da história da humanidade,
quando pulularam tendências, revoltas,
revoluções, filosofias, estéticas. A obra
literária decadentista – única e frágil –
brotou no miasma, no canteiro podre
secular: flor do mal, flor explicando o
estrume.
(MUCCI, 1994, p.48)
2
Essa questão pode ser percebida no livro paradigmático do Decadentismo inglês, O Retrato de Dorian
Gray, no qual Oscar Wilde trabalha, dentre outros assuntos, a temática do duplo. Segundo um verbete do
E- Dicionário de Termos Literários da Universidade Nova de Lisboa, escrito por Carla Cunha, e revisado
por Carlos Ceia, “O conceito mais comum relativamente ao duplo é que este é algo que, tendo sido
originário a partir de um indivíduo, adquire qualidade de projecção e posteriormente se vem a
consubstanciar numa entidade autónoma que sobrevive ao sujeito no qual fundamentou a sua génese,
partilhando com ele uma certa identificação. Nesta perspectiva, o DUPLO é uma entidade que duplica o
“eu”, destacando-se dele e autonomizando-se a partir desse desdobramento. [...] O DUPLO estabelece
ainda um compromisso entre a interioridade e a exterioridade do sujeito, do “eu”, reflectindo o seu
interior e assumindo-se-lhe exterior, porque autónomo, ele próprio diferente já do “eu” original”.
3
Charles Baudelaire (1821-1867), conhecido também pelo epíteto de o artista
maldito, é, como se sabe, apontado e celebrado, na literatura ocidental, como a grande
figura da modernidade. Devido ao seu tom profanador e à sua postura iconoclasta no
que se refere aos campos tanto da arte quanto da vida, o poeta seria tomado como
patrono e titular de algumas estéticas ulteriores: o Parnasianismo, o Decadentismo, o
Simbolismo e o Modernismo. Por conta da retomada de seus postulados tanto éticos
quanto estéticos por outros artistas, assim como pelo que sua poesia apresenta de
inovador em relação à lírica tradicional, Baudelaire viria a ser considerado
hegemonicamente, pela crítica, o primeiro escritor a prefaciar a modernidade. A esse
respeito, assinala Fernando Monteiro de Barros:
Baudelaire, figura tutelar dos desdobramentos pós-românticos da poesia
ocidental, tem efetivamente, em sua complexa produção poética, germes que
irão mais tarde vicejar nas escolas literárias a ele posteriores, a saber,
Parnasianismo, Decadentismo, Simbolismo e Modernismo.
(BARROS, 2008, p.3)
Propagando em sua obra conceitos avessos aos instituídos pela sociedade de seu
tempo, Baudelaire fizera de sua arte uma espécie de instrumento cortante, porque ligada
ao prazer hedonista de desrespeitar a pauta dos valores mais sagrados, tais como a
bondade, a honestidade, a moral, a importância da família, a ética do trabalho, o papel
da mulher enquanto progenitora, mãe e esposa, o louvor a Deus etc. Dandy por
excelência, e defensor heráldico de uma postura aristocratizante tanto na arte quanto na
arte da vida, esse poeta encarnara uma atitude defensiva para com a cultura
massificadora, atrelada por demais à ideologia burguesa, pela qual manifestava um
profundo desdém. Com efeito, percebe-se em Baudelaire uma relação ambígua – a um
só tempo de atração e repulsa – com a civilização e com o progresso, além de uma
resistência declarada à opinião pública, ao senso comum, aos partidos parlamentares e
ao puritanismo da classe burguesa. Nesse desejo intenso e intencional de desagradar,
encontramos no seu famoso livro – As flores do mal (1957), representante máximo de
suas idéias singulares – alusões constantes a diversos conceitos e temas ímpares, tais
como o satanismo, a revolta, o repúdio à natureza e a concepção da poesia não como
produto da inspiração, mas como uma formulação do pensamento3.
3
Podemos perceber essas alusões em alguns poemas, tais como o Hino à beleza (BAUDELAIRE, 2004,
p.34); o poema “Porias o universo inteiro em teu bordel/ Mulher impura! [...]” (Idem, p.38), no qual o
sujeito lírico relata sua perplexidade perante uma mulher despótica; o poema Sed non satiata – Cansada,
mas não saciada – (Ibidem, p.39), em que o eu lírico se declara impotente para cessar a sede sexual de
4
Claro está que muitas das concepções artístico-literárias de Baudelaire seriam
opostas às manifestadas pelo Romantismo. Como se sabe, não obstante a crítica também
o situe nas sendas dessa escola literária, devido ao seu espírito de revolta e ao culto
satânico que assinala em sua poesia, a poética baudelairiana, para além da idéia da
inspiração como critério máximo do fazer artístico, postularia também o conceito de
uma arte que é produto do intelecto, de um trabalho técnico, cujo eixo basilar residiria
prioritariamente no culto ao artifício. Se a escritura romântica se quis essencialmente
um produto da explosão sentimental de um “eu” interior, e, nesse sentido, não se fixara
tanto no cuidado com a forma, a obra poética baudelairiana, ao contrário, a apresentaria
como uma condição sine qua non, ao exacerbar a consciência de que a forma engendra
necessariamente o sentido, e que o sentido está muitas vezes no próprio trabalho formal.
A esse respeito, diz Fernando Monteiro de Barros, com grande acuidade:
Na concepção da poesia como produto do cálculo e da imaginação,
contrapondo-se ao primado romântico concedido à inspiração, Baudelaire dá o
tom da produção poética que lhe é posterior, centrada no rigor técnico e no
apuro formal [...].
(Idem)
Na esteira baudelairiana da cisão entre a arte e a representação da realidade,
Théophile Gautier (1811-1872), seu amigo e mestre, reivindicaria igualmente uma
ruptura entre o fazer artístico e o compromisso com o social. Para ele, a arte deveria,
pois, estar assentada essencialmente no primado da forma, visto que só poderia ser
considerada bela se não servisse para nada. Em outras palavras, se escapasse ao
utilitarismo da linguagem em prol da autorreferencialidade. Segundo o próprio Gautier,
tudo aquilo que fosse útil deveria ser considerado veementemente feio e, portanto,
desprezível. Essa idéia da inutilidade da arte estaria expressa, de forma patente, no
bombástico prefácio a seu romance Mademoiselle de Maupin, a partir do qual estaria
decretado o divórcio entre a literatura e a sociedade. A esse respeito, assinala Latuf
Isaias Mucci:
Alheio às preocupações político-sociais e corifeu desse movimento polêmico
da arte como um fim em si mesma, Théophile Gautier [...] centrou sua atenção
mais nas formas da beleza do que nas idéias, tema de seu contundente prefácio
uma femme fatale, ao mesmo tempo que se lamenta do fato de não se poder tornar uma mulher
(Proserpina) para lograr tal fim, referindo-se metaforicamente aos atos lésbicos de sua amante. Além
disso, nos Escritos íntimos baudelairianos, se pode perceber igualmente essa “repulsa pelas mulheres que
se adequam ao padrão familiar burguês do casamento e da maternidade” (BARROS, 2006, p.103), assim
como uma negação de alguns valores cristãos como a bondade, a honestidade e a retidão.
5
a seu famoso romance Mademoiselle de Maupin [...]. No “Prefácio”, Gautier
prega que o escritor deve se desinteressar dos problemas políticos, sociais e
morais, bastando-lhe que ame, imagine e crie o belo. Essa teoria escandalizou
os grandes românticos franceses – Lamartine [...], Victor Hugo [...] e Georges
Sand [...] –, que se tinham voltado para a literatura social.
(MUCCI, 1994, p.39)
Embora primeiramente influenciado e interessado pela obra de Victor Hugo,
Théophile Gautier, que, quando jovem, desejara dedicar-se à pintura, afastava-se cada
vez mais do modelo romântico, no qual se iniciara, ao realizar em sua poesia descrições
precisas de objetos e paisagens, motivo que somado à premissa da arte pela arte
postulada a partir do célebre prefácio de que falamos, lhe viria a conferir, futuramente, o
título de escritor parnasiano. Além disso, foi Gautier quem, no romance apontado,
retomara o mito do andrógino, tema que se tornaria uma das obsessões dos estetas
finisseculares. Lembre-se que tanto essa concepção da arte como teatralização e
simulacro quanto como daquela que deveria tratar de temas deixados à margem, única e
exclusivamente pelo mero prazer aristocrático de desagradar a sociedade vitoriana,
seriam um dos leitmotive propagados pelos estetas decadentistas.
Retomando alguns dos conceitos artísticos propagados por Baudelaire e Gautier,
Joris Karl Huysmans (1848-1907), escritor paradigmático do Decadentismo, legaria ao
mundo, em seu célebre livro, Às Avessas (1884), as principais bases desse movimento
literário. Tais bases seriam, no dizer de Latuf Isaias Mucci, "uma trindade não
santíssima, mas artificialíssima: o dandismo, a androginia e a artificialidade como
simulacro” (Idem, p.48). Repare-se que esses três traços se encontrariam, tanto na vida
quanto na obra do poeta Charles Baudelaire, assim como na do escritor Théophile
Gautier4. Com efeito, o esteta finissecular trabalhara a partir de um verdadeiro sistema
de parcerias textuais, no qual textos dialogaram constantemente com outros textos.
Nesse palimpsesto, nesse “mosaico através do qual passam luz e sombra” (Ibidem,
p.17), os postulados baudelairianos seriam permanentemente evocados, porque
ressoariam como os mais importantes. Segundo Noel Richard, “o perfeito decadente
reivindica filiação a Baudelaire, fundador da nova ordem estética, e lhe imita pelo
4
Théophile Gautier, por exemplo, assim como Baudelaire, também apresentava um certo dandismo em
sua vestimenta. Trajando sempre um colete vermelho e calças verdes, o artista em questão tornara-se
personagem conhecida antes mesmo de alcançar a fama como escritor. Além disso, Gautier, no prefácio a
Mademoiselle de Maupin, manifesta um verdadeiro desdém pela moral, ao sustentar a tese de que não há
absolutamente nada em comum entre a arte e esta, postura que o aproxima, mais uma vez, de Charles
Baudelaire.
6
menos o dandismo exterior” (1968, p.225). Ou ainda, como diz Fernando Monteiro de
Barros:
Os postulados poéticos de Baudelaire serão a chancela-mor do Decadentismo
do final do século XIX. Assim como o poeta de As flores do mal, os
decadentistas terão igual aversão à natureza e ao natural, serão dândis e
postularão uma concepção de arte enquanto pura poiesis, puro simulacro,
consagrando, deste modo, a pose e o artifício do signo.
(BARROS, 2007, p.77)
Primeiramente discípulo de Émile Zola (1840-1902), um dos maiores expoentes
do naturalismo, Huysmans romperia com os postulados de seu mestre, ao escrever o
livro, Às Avessas, texto tutelar do Decadentismo. Nesse romance insólito, no qual não
ocorre praticamente nenhuma ação, a apresentação da filosofia de vida da personagem
principal, des Esseintes, pareceria ser, pois, o grande objetivo da diegese. O enredo do
livro é, em si, bastante simples: por ser um aristocrata, e por manifestar aversão à
massa, à chusma, des Esseintes, um dandy parisiense, decide retirar-se da grande
capital. Feito isso, o protagonista de Às Avessas, instala-se numa mansão afastada da
corte, local onde se cerca de objetos artísticos ligados à estética e à beleza, no intuito de
apurar sua percepção sensorial. Significativamente, o romance de Huysmans,
considerado pela crítica como a “bíblia” do Decadentismo, poderia ser lido, também,
como um conjunto de monografias acerca de conceitos artísticos. Ora, tanto esse
posicionar-se a favor da “arte pela arte”, quanto essa ostentação de "um desdém
aristocrático pelos homens comuns e virtuosos de seu tempo" (BARROS, 2008, p.5),
são marcas indeléveis, que podem ser encontradas tanto em Théophile Gautier como em
Charles Baudelaire. De fato, o artista maldito se lhe afiguraria uma figura tutelar a des
Esseintes, protagonista do romance Às Avessas:
E quanto mais des Esseintes relia Baudelaire, mais reconhecia um indizível
encanto nesse escritor que, num tempo em que o verso servia apenas para
pintar o aspecto exterior dos seres e das coisas, alcançara exprimir o
inexprimível, graças a uma linguagem musculosa e carnuda que, mais do que
qualquer outra, possuía o maravilhoso poder de fixar, com uma estranha saúde
de expressão, os estados mórbidos mais fugazes, mais tremidos dos espíritos
esgotados e das almas tristes.
(ASA, p.175)
É, pois, a Charles Baudelaire que os artistas finisseculares rendem culto, porque
nele enxergavam o mais profundo teórico da decadência. Como se sabe, foi a partir da
reprodução dos conceitos de seu mestre a respeito do dandismo, da perversão e da
7
aversão à natureza, que J. K. Huysmans pôde lançar, de forma significativa, as bases
principais do Decadentismo. Como afirma Fernando Monteiro de Barros, é de
Baudelaire que "o Decadentismo tomará [...] a noção de dandismo como atitude de
oposição à padronização burguesa na adoção de um aristocratismo amoral, cultuando o
belo pelo viés da transgressão" (2008, p.4). Ao cultivar, acima de tudo, “o raro, o
requinte, o anti-natural, como conseqüência imediata de sua filiação a Baudelaire, para
quem a estranheza – ou extravagância – faz parte do belo” (MUCCI, 1994, p.57), o
texto tutelar de Huysmans, Às Avessas, “declara, pois, ódio à natureza, que o artista
deve desprezar e ultrapassar em sua produção (Idem, p.58), substituindo-a, “tanto
quanto possível, pelo artifício” (ASA, p.54).
Ora, parecem ter sido exatamente essas lições que Oscar Wilde absorvera do
romance apontado acima. Flanando pelas ruas da Londres e da Paris fin-de-siècle, o
escritor irlandês deparara-se, na capital francesa, com um volume do livro de
Huysmans, o qual havia sido publicado no ano de 1884. Segundo James Laver, a bíblia
huysmaniana “deve ter tido para Wilde uma atração imediata. O singular caráter do
protagonista, des Esseintes [...] deve ter parecido, ao jovem inglês, encarnação das suas
próprias idéias” (1986, p.22). Tal como o protagonista de Às Avessas, que manifestava
aversão à opinião pública, o escritor Oscar Wilde pode ser considerado também uma
espécie de reformador da estética, um mestre do paradoxo, visto que esteve
constantemente em busca de desvirtuar a doxa, isto é, de combater o senso comum.
Essas idéias se deixariam ver claramente em diversos escritos do autor em questão,
dentre eles – e muito especialmente – no seu único romance, O Retrato de Dorian Gray,
do qual analisaremos alguns fragmentos.
Considerado pela crítica como “o texto clássico do decadentismo inglês”
(FORTICHIARI, 1987, p.46) o romance apontado, além de, implicitamente, fazer
alusão ao texto paradigmático de Huysmans, Às Avessas, discorre também sobre uma
série de temas caros a essa estética, tais como o dandismo, o artificialismo, o simulacro,
a aversão às massas, o pavor à velhice, o desprezo pela bondade, pela honra, pela ética
do trabalho etc. Ademais, esse texto sui generis de Wilde, ao trabalhar a temática do
duplo, exploraria uma questão que viria a tornar-se central nas primeiras décadas do
século XX: a da fragmentação da identidade. Influenciado pela filosofia decadentista da
personagem Lorde Henry, o belo jovem Dorian Gray toma conhecimento de um lado
desconhecido de si mesmo, tornando-se, podemos dizer, um ser outro. E é justamente
para isso que o próprio Lorde Henry chama a atenção do protagonista do romance,
8
quando interrogado por ele a respeito de seu poder de persuadir negativamente as
pessoas:
– O senhor é mesmo uma influência negativa, lorde Henry? Tão negativa
quanto o diz Basil?
– Influências positivas não existem, Sr. Gray. Toda influência é imoral...
imoral, do ponto de vista científico.
– Por quê?
– Porque influenciar uma pessoa é dar a ela a própria alma. Ela passa a não
pensar com seus pensamentos naturais. As virtudes que possui deixam de ser,
para ela, reais. Os pecados que comete, se é que existem pecados, são todos
tomados por empréstimo. Ela se torna um eco da musica de outrem, ator de um
papel não escrito para ela. O objetivo da vida é o autodesenvolvimento; é
perceber, com perfeição, nossa natureza... é para isto que estamos aqui, cada
um de nós.
(RDG, p.24)
Como se vê, a partir dos ensinamentos do dandy Lorde Henry, Dorian Gray viria
a descobrir um outro de si: “Por que coubera a um estranho revelá-lo a si mesmo?”,
pergunta-se a figura central do romance de Wilde. Personagem típica da literatura
decadente, o dandy wildiano é uma figura que funciona como uma espécie de
“confidente que presta assistência ao herói ou heroína da história” (FARIA, 1988,
p.186), é um ser cuja funcionalidade residiria essencialmente no papel dialógico, isto é,
no exercício da fruição da situação conversacional. Ora, seria exatamente esse o lugar
da personagem Lorde Henry na narrativa de que tratamos. Como vimos, foi ele quem,
com seus aforismos, com sua sedução discursiva, e com sua postura iconoclasta, teve o
poder de transformar, indelevelmente, a vida do protagonista:
E por quase dez minutos ali permaneceu, imóvel, lábios entreabertos, os olhos
vívidos, estranhos. Nele, a consciência longínqua de que influências
inteiramente novas estavam a trabalhar dentro dele, e que pareciam originar-se
no próprio interior. As poucas palavras que dissera o amigo de Basil... palavras
fadadas ao acaso, sem dúvida, carregadas de um paradoxo obstinado... tocaram
alguma corda secreta que, antes jamais tocada, agora, porém, ele sentia,
vibrava e latejava em pulsações singulares.
A música já o fizera estremecer, tanto assim. A música já o confundira muitas
vezes. Mas a música não era articulada. Não um novo mundo, e sim mais um
caos, ela criava em nós. Palavras! Meras palavras! Quão terríveis eram! Quão
claras, vívidas e cruéis! Delas, ninguém consegue escapar. Mas, que mágica
sutil contêm! Parecem capazes de dar uma forma plástica às coisas amorfas, e
de conter uma música própria, doce como a da viola, do alaúde. Meras
palavras! Existiria algo tão real quanto as palavras?
Sim, ouve, na infância, coisas que não compreendera, e que agora
compreendia. A vida, para ele, tomara, de repente, a cor do fogo. Ele, parecia,
estivera a caminhar sobre o fogo. Por que não percebera?
(RDG, p.26)
9
A citação acima tem a funcionalidade de nos permitir discutir acerca da força
criadora da linguagem e, conseqüentemente, do poder inebriante da palavra. Seduzido
pelo texto falado e vivido por Lorde Henry, Dorian Gray passa a experimentar as
delícias e as dores de uma nova existência, a seguir os caminhos apontados por seu
mestre, por essa figura por quem manifestava tanta admiração, e com quem tanto
aprendera. Texto tutelar do Decadentismo inglês, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar
Wilde, além de explorar diversas questões paradigmáticas dessa estética que prefacia a
modernidade, trabalha também com a temática do duplo, apontando para a idéia da
fragmentação do sujeito, idéia que, nas primeiras décadas do século XX, viria a tornarse uma das questões mais exploradas pelo Modernismo europeu.
Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa: nas sendas do Decadentismo
Só A Arte É Útil. Crenças, exércitos,
impérios, atitudes – tudo isso passa. Só a
arte fica, por isso só a arte vê-se, porque
dura.
(PESSOA, 2005, p.218)
A respeito da relação entre literatura e sociedade, escreve Fernando Pessoa:
“Todo o artista que dá à sua arte um fim extra-artístico é um infame” (Idem. p.435). De
postura esteticista e não compromissada com a realidade, a Pessoa e, de um modo geral,
à geração de Orpheu, o fazer artístico se lhes afigurava a única atividade dotada de
algum sentido para a vida. Rejeitando veementemente as concepções artístico-literárias
do mundo burguês, os escritores desse período se opuseram, de forma patente, à idéia de
democratização da arte e de seu possível engajamento social5. Em relação a isso,
assinala José Carlos Barcellos:
Significativamente, os anos 10 e 20 conhecem uma grande efervescência
cultural, em que diversas correntes estéticas e filosóficas – às vezes, muito
diferentes entre si – têm como denominador comum a rejeição da sociedade
burguesa e de seu sistema de valores, tais como o essencialismo no plano
5
Ao fazer tal afirmação, não estamos a dizer que a geração de Orpheu propunha, aos seus artistas, uma
postura alienante para com a sociedade, mas apenas que não houvesse uma relação intrínseca entre a sua
arte e os meios sociais. Porque “O artista deve escrever, pintar, esculpir, sem olhar a outra cousa que ao
que escreve, pinta ou esculpe. Deve escrever sem olhar para fora de si. Por isso a arte não deve ser,
propositadamente, moral nem imoral. É tão vergonhoso fazer arte moral como imoral” (PESSOA, 2005,
p.434).
10
ontológico, o racionalismo no plano epistemológico, a respeitabilidade no
plano ético ou a integridade e unidade do sujeito no plano psicológico. Daí o
caráter iconoclasta da arte e da literatura européias do séc. XX. Num mundo
em escombros, em que tudo parecia vacilar e os valores mais sólidos
mostravam-se tão inconsistentes [...] as vanguardas artísticas vão-se dedicar à
produção de obras extremamente refinadas e difíceis, em que a ruptura com a
visão de mundo burguesa é o eixo dominante.
(BARCELLOS, 2004, p.12).
Imbuídos de um profundo tédio, cansados e descrentes das promessas progressistas
da civilização burguesa, já por volta do último quartel do século XIX, os artistas
encontravam-se mergulhados numa atmosfera de pessimismo e decadência6. Para se
contraporem aos valores dessa sociedade, os intelectuais elevaram a arte ao seu mais
alto patamar possível, porque eleita como forma de exílio cultural e de deleite estético,
em um mundo sempre com vistas ao utilitarismo e cujo sistema de valores já mostrara
imensas rachaduras em seu edifício ético7.
Como se vê, recuperava-se uma concepção aristocrática do fazer artístico8, na qual
uma série de valores que a burguesia retratara em suas obras seriam desprezados, tais
como o relato da vida cotidiana, a valorização de personagens comuns, a concepção da
literatura como sendo um instrumento pedagógico democrático etc. Herdeiras da
estética decadentista e também das vanguardas européias – as quais, segundo José
Carlos Barcellos, têm como denominador comum a ruptura com as convenções da
sociedade burguesa – as obras de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro podem
ser consideradas paradigmáticas desse contexto. Em um dos seus apontamentos
6
Latuf Isaias Mucci ressalta que “A ascensão da burguesia capitalista e os conseqüentes benefícios de
uma nova civilização, construída sobre a ciência e a tecnologia, não conseguiram, no entanto, abafar
totalmente o cheiro podre de algo na Europa e, em particular, na França finissecular. Como em outras
sociedades anteriores, o progresso beneficiava uma casta de privilegiados, ficando a massa, mais
informada, ao largo das benesses [...]. As fortes estruturas da sociedade vitoriana começaram a tremer
[...], uma vez que, colocados em dúvida todos os valores morais, não surgiram substitutos na sociedade
esgarçada. Face à falência do mundo progressista, antes prometido pelo racionalismo das luzes, reeditado
pela sociedade burguesa, ocorreu uma crise aguda das instituições e do pensamento, ampliada pela revolta
contra a concepção positivista que se implantava orgulhosamente” (MUCCI, 1994, p.27-28).
7
A esse respeito, escreve Edmundo Bouças: “Designado como Estética da Encruzilhada, o Decadentismo
desencadeou sintomas que buscaram revitalizar um estado de fabulações, cujo endereçamento estava
denegado pelas doutrinas de ordenação da verdade. Dessa forma, além de descondicionar a literatura de
uma relação servil com a ciência, afirmou-se como ‘luta instintiva pela libertação da vida interior
longamente amordaçada por dogmas racionalistas e convenções vitorianas’” (BOUÇAS, 1997, p.219).
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Essa postura aristocratizante em relação à arte não significava uma ruptura total com sociedade, em prol
de um furor passadista. Pelo contrário, o Decadentismo, como diz Edmundo Bouças, elencara uma série
de parâmetros que puseram a literatura em trâmite para a modernidade, “estiolando o inventário de
categorias da Ordem Clássica [...]” (Idem. p.220).
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literários, intitulado A Arte Moderna É Aristocrática, escreve o próprio Fernando
Pessoa:
Que Essa Arte não é feita para o povo? Naturalmente que o não é – nem ela
nem nenhuma arte verdadeira. Toda a arte que fica é feita para as aristocracias,
para os escóis, que é o que fica na história das sociedades, porque o povo
passa, e o seu mister é passar.
A nossa arte é supremamente aristocrática, ainda porque uma arte aristocrática
se torna necessária neste outono da civilização européia, em que a democracia
avança a tal ponto que, para de qualquer maneira reagir, nos incumbe, a nós
artistas, pormos entre a elite e o povo aquela barreira que ele, o povo, nunca
poderá transpor – a barreira do requinte emotivo e da ideação transcendental,
da sensação apurada até à sutileza [...]... É pela arte que, supremamente, essa
aristocratização pode ser feita.
(PESSOA, 2005, p.299).
Como se pode perceber, nas primeiras décadas do século XX – e,
principalmente, nas da Europa novecentista – o sujeito experimentava, talvez de uma
forma ainda mais aguda do que a de antes, uma sensação de fim do mundo, de fim dos
tempos, sensação que havia sido anunciada por Baudelaire9, reforçada pelos estetas
decadentistas e levada até ao extremo pelos artistas modernistas. Segundo Teresa
Cristina Cerdeira, o indivíduo do século XX se via em meio a mundo que se esboroava,
a um universo que se desfazia em ruínas, dado que o tripé humanista, representado por
“uma concepção político-social em que o primado do indivíduo estava garantido pela
subjetividade da arte, pela existência de Deus e pela ascensão vitoriosa da burguesia”
(2000, p.69) fora abalado, na viragem do século, “pelas inquietações marxistas, pela
análise do eu como entidade psíquica não una e pela consciência de uma sociedade
definitivamente desinstalada pela morte de Deus” (Idem). E é exatamente com tal
consciência que, por exemplo, a poesia pessoana jogaria, uma vez que seu tecido
deixaria transparecer a agonia de um sujeito perdido, ou seja, o desespero de um alguém
que não mais pode crer na possibilidade do centramento e da inteireza do eu. Sobre o
tema de que tratamos, discorre o historiador e ensaísta Eduardo Lourenço:
Sempre a lírica se alimentou da nossa temporalidade, das folhas mortas e dos
amores mais mortos do que elas. Mas na lírica clássica e ainda na romântica, o
eu, o poeta e quem o lia, iam na barca do Tempo para alguma espécie de porto.
Deus, ou alguém por ele, esperavam-nos no fim para conferir sentido à
viagem. A viagem de Pessoa, a nossa viagem em Pessoa é, desde o começo, a
de alguém definitivamente perdido. Nem o princípio nem o fim nos são
9
Segundo Antoine Compagnon, “os grandes escritores (os visionários) viram, antes dos demais,
particularmente antes dos filósofos, para onde caminhava o mundo: “o mundo vai acabar” – anunciava
Baudelaire em Fusées [Lampejos], no início da idade do progresso – e, realmente, o mundo não cessou de
acabar” (2006, p.37).
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conhecidos mais que nos símbolos que de princípio e fim podemos conceber.
Não estamos no Tempo, somos Tempo. Mas se o Tempo é, nós não somos ou
somos como Pessoa se esforçou por imaginar que seria, se fosse Caeiro, Reis
ou Campos. Nenhum poeta da Modernidade exprimiu como Pessoa esta
absoluta perdição do sentido do nosso destino enquanto mundo moderno e isto
bastaria para que o autor da Tabacaria se tivesse convertido não apenas no
mito que é para nós, mas numa das referências-chave da Cultura
contemporânea. De uma maneira ou de outra, o homem moderno comparticipa
desse sentimento de radical solidão e de absurdo que pouco a pouco emergiu
com o processo de isolamento e de inumanidade da civilização actual.
(LOURENÇO, 2008, p.14. Grifos do autor)
Vítima da inquietude e do desassossego, sujeito plural e descentrado, Fernando
Pessoa exprimira em sua poesia, no dizer de Teresa Cristina Cerdeira, a “terrível tensão
entre a agonia de um eu finissecular dilacerado e a superexistência de um eu que em
máscaras se multiplica” (2000, p.68). Frente a esse desalento, a essa “recusa de
assentar-se no tapete das certezas” (Idem), Pessoa fizera de sua arte o critério máximo
de sua vida, ou seja, o lugar no qual pudera praticar, de formas consideravelmente
distintas, um exercício constante de despersonalização, ao exacerbar em linguagem a
sua dolorosa sensação do vazio do ser, e o seu profundo desespero diante do absurdo da
existência. Repare-se que essas questões exploradas pela poesia pessoana radicariam
justamente naquilo que para esse artista seria um dos pontos representativos do
aristocratismo arte moderna, a qual deveria preocupar-se, segundo ele, tão-somente com
o “requinte emotivo”, com a “ideação transcendental” e com a apuração da sensação
“até à sutileza”.
Claro está que essa tessitura, que esse discurso urdido com vistas a um trabalho
prioritário em si, a um cuidado minucioso com a linguagem, iria completamente de
encontro – de forma intencional ou não – a muitos dos conceitos artísticos propagados
pela burguesia. Como se sabe, diante da falência desse mundo e, conseqüentemente, de
sua pauta de valores, o artista moderno, assim como o da decadência, rompera com
todas as amarras representadas por dogmas e convenções impostos por essa sociedade,
ao esgarçar o paradigma do romance realista-naturalista, ao readquirir o lirismo pessoal,
e ao apelar para a “libertação do sujeito, que abominava o real circundante” (MUCCI,
1994, p.30).
Ora, parece-nos que as reflexões de Fernando Pessoa que vimos explorando ao
longo deste tópico – e muito especialmente as que o poeta tece acerca da
aristocratização da arte moderna – poderiam funcionar, de forma efetiva, como um dos
caminhos para a nossa leitura do universo ficcional da escrita d’A Confissão de Lúcio,
13
obra de seu amigo Mário de Sá-Carneiro, uma vez que esta narrativa, tal qual os
conceitos postulados por Pessoa em relação à escrita artística, não se compatibilizaria,
de forma alguma, com uma concepção burguesa e utilitária da arte, na qual, por meio da
literatura e do romance, se buscasse, numa postura engajada, reformar os costumes
sociais, tal como o fizera a literatura realista. Com efeito, A Confissão de Lúcio –
romance antiburguês –, ao trilhar as sendas do Decadentismo, movimento que, segundo
Latuf Isaias Mucci, “desconhece qualquer ética que possa sobrepor-se à estética”,
postularia igualmente uma espécie de arte aristocrática, em que ambos os conceitos (a
ética e a estética) estariam relacionados à construção de um discurso cujos significantes
se rebelariam contra “um significado ou conceito fixo, esclerosado, anquilosado” (2004,
p.16) [...], isto é, “a uma ideologia burguesa, mercantil, capitalista em seu nascedouro,
sob o signo do total e avassalador utilitarismo, que os estetas todos combatem até a
morte (Idem, p.15). Significativamente, percebemos nesse magistral romance de SáCarneiro uma série de traços que o vinculariam, sem sombra de dúvida, à estética
decadentista, como, por exemplo, a concepção da arte enquanto simulacro, a exploração
de temas paradigmáticos desse movimento literário, tais como o dandismo e a
androginia, além de uma escritura cujo gozo residiria, sobretudo, no preciosismo da
linguagem. Sobre esse assunto, buscaremos discorrer, de forma mais abrangente e
satisfatória, nos capítulos posteriores deste trabalho.
Referências Bibliográficas
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Fontes, 1ª ed., 1976.
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brasileira do fim do século XIX e da Belle Époque. In: Anais do V CLUERJ. Rio
de Janeiro: Botelho, 2008, p. 1-29.
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Paulo: Martin Claret, 2002.
5. BOUÇAS, Edmundo. Manobras do Truque Decadentista em Sá-Carneiro. In:
Convergência Lusíada, N°14. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de
Leitura, 1997, p. 219-227.
6. COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum.
Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão & Consuelo Fortes Santiago. Belo
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nas Narrativas de Eça de Queirós. In: Metamorfoses 7. Lisboa: Caminho, 2006,
p. 281-291.
8. HUYSMANS, Joris Karl. Às Avessas. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
9. MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e Simulacro Decadentista: Uma Leitura de Il
Piciare, de D’Annunzio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
10. PESSOA, Fernando. Obras em Prosa, Organização, Introdução e Notas de
Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.
11. WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Porto Alegre: L&PM, 2001.
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ressonâncias decadentistas no modernismo português