CLARIDADE E CERTEZA EM HORA DI BAI Terena Thomassim Guimarães* Professora Orientadora Jane Fraga Tutikian RESUMO: Trata o trabalho da obra de Manuel Ferreira, notadamente Hora di Bai, que mostra o contexto social caboverdeano antes da sua independência de Portugal. O objetivo é estudar as questões da identidade caboverdeana em relação aos dois maiores movimentos literários de 30 e 40. Como pressupostos teóricos serão utilizados os conceitos dos Estudos Culturais, mais fortemente aqueles evidenciados por Edward Said e Homi Bhabha. Como metodologia, pretende-se analisar a identidade caboverdeana, a partir do fenômeno da evasão, percebendo a diferença entre a) os nativos que são obrigados a sair das ilhas de Cabo Verde ou a se locomover entre elas por sofrerem diversas dificuldades e b) os habitantes que ficam nas ilhas e tentam lutar contra a opressão que os aflige. Serão levantados os elementos de caboverdeanidade, relacionados à Claridade e à Certeza. É possível concluir que o movimento Claridade se aproxima da idéia de abandono das ilhas para a tentativa de obter uma melhor condição de vida, ao passo que o movimento Certeza apresenta uma ligação com aqueles que decidem ficar na sua terra para lutar por melhores condições sociais. PALAVRAS-CHAVE: Hora di Bai, identidade, movimentos literários. RESUMEN: Trata el trabajo acerca de la obra de Manuel Ferreira, con énfasis en la novela Hora di Bai, que muestra el contexto social caboverdeano antes de su independencia de Portugal. El objetivo es estudiar las cuestiones de la identidad caboverdeana en relación con los dos mayores movimientos literarios de 30 y 40. Como presupuesto teórico serán utilizados los conceptos de los Estudios Culturales, más fuertemente Edward Said y Homi Bhabha. Como metodología, se pretende analizar la identidad caboverdeana, a partir del fenómeno de la evasión, percibiendo la diferencia entre a) los nativos que son obligados a salir de las islas de Cabo Verde o a andar entre ellas por sufrir diversas dificultades y b) los habitantes que se quedan en las islas y intentan luchar contra la opresión que los aflige. Serán levantados los elementos de la caboverdeanidad, relacionados a la Claridade y a la Certeza. Es posible concluir que el movimiento Claridade se aproxima de la idea de abandono de las islas para la tentativa de obtener una mejor condición de vida, ya el movimiento Certeza presenta una ligación con aquellos que deciden quedarse en su tierra para luchar por mejores condiciones sociales. PALABRAS-CLAVE: Hora di Bai, identidad, movimientos literarios. Amanhã é sempre de esperança. Por que não tê-la depois de tanto sofrermos? Manuel Ferreira Este trabalho pretende estudar as questões da identidade caboverdeana em relação aos dois maiores movimentos literários de Cabo Verde: Claridade de 1936 e Certeza de 1944, usando como ponto de partida o livro Hora di Bai, de Manuel Ferreira. O livro Hora di Bai foi publicado em 1962. Manuel Ferreira nasceu em Portugal e chegou a Cabo Verde como expedicionário do exército português em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial. Foi profundo conhecedor da cultura caboverdeana, conhecia muito * Graduanda, UFRGS, [email protected] o país e a vida do povo. Foi casado com a escritora caboverdeana Orlanda Amarílis. Teve muitos livros publicados. Morreu em 1994. Falando de sua obra, no livro Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, relata que Na 1ª edição destas Literaturas... o signatário não fez aqui o registro destes livros, em virtude de não ter nascido em Cabo Verde. No entanto, por estar plenamente convencido de que aquelas obras são cabo-verdianas, do ponto de vista das formas quer de expressão quer de conteúdo, resolveu aqui registrá-las como informação geral para os leitores menos prevenidos. (FERREIRA, 1987, p. 89). Ou seja, mesmo o autor sendo português de nascimento, seu romance Hora bi Bai, foco de estudo desse trabalho, é caboverdeano pela temática e estrutura da narrativa. Hora di Bai é considerado um romance neo-realista, com a denúncia do que o povo caboverdeano está passando. Segundo Jorge Valentim (2010), há dois fortes motivos: o autor ter participado da revista Certeza, que seguia o ideário neo-realista; e os questionamentos presentes na obra sobre o regime totalitário de Salazar. Se as narrativas africanas de língua portuguesa são “uma tentativa de fortalecimento ou de resgate das identidades locais, até porque a literatura é fonte de cultura e cultura é fonte de identidade.” (tutikian, 2006, p. 15), pode-se dizer que este livro, tratando de elementos importantes para o povo caboverdeano, acaba fortalecendo essa identidade caboverdeana. Este trabalho pretende discutir a identidade nacional caboverdeana para mostrar como ela se relaciona com os diferentes momentos da literatura desse país e com o comportamento de seu povo. 1 Hora di bai: enredo Hora di Bai trata da realidade caboverdeana antes da independência de Portugal, relatando a vida difícil que o povo sofre devido à irregularidade de chuva, o que leva a grandes períodos de seca. Com isso os caboverdeanos são obrigados a buscar uma vida melhor em outra ilha do arquipélago ou em outro país. É dessa maneira, com um grupo de pessoas fazendo uma viagem da ilha de São Nicolau até a ilha de São Vicente (ambas no arquipélago de Cabo Verde), que se inicia o livro. Essas pessoas esperam que nesse novo local não passem fome e consigam ter uma vida melhor, mas não é que isso ocorre com todos os personagens, uns acabam morrendo, outros se prostituindo, outros, ainda, tendo que ir para São Tomé onde terão de se submeter a um trabalho escravo, ou seja, trabalharão por comida. No livro, depois de muito sofrimento causado pela fome, seca, pobreza, as classes mais pobres se revoltam e invadem um armazém onde havia grande quantidade de alimento estocado para pegar comida. Há ainda uma senhora, chamada Nhã Venância, que, depois de pensar em ir para Portugal para fugir desta terra que expulsa, resolve ficar e lutar por melhoras em seu país. 2 Conhecendo Cabo verde Cabo Verde é um arquipélago situado a mais de 500 quilômetros da costa africana, possui 10 ilhas, sendo Praia sua capital (situada na Ilha de Santiago). A grande característica climática deste país é a irregularidade de chuvas, o que leva a grandes períodos de seca. Com isso a população é dizimada, levando os sobreviventes a emigrarem para fugir da fome e da seca, mostrando grande semelhança ao nordeste brasileiro. O arquipélago tem uma peculiaridade, não era habitado quando, em 1456, os portugueses chegaram. Portugal, quando realizava o tráfico de escravos, deixava nas ilhas os escravos revoltosos ou doentes, já que as ilhas ficavam no caminho entre Portugal e as colônias, gerando, então, uma comunidade formada por várias tribos, uma grande variedade étnica. A partir disso surge a noção de “terra trazida” definida por Manuel Ferreira (1972). A partir da necessidade de se comunicar, surge o crioulo, língua nacional dos caboverdeanos, apesar de a língua oficial ser o português. Cabo Verde, assim como os demais países africanos de língua portuguesa, só teve sua independência em 5 de julho 1975. Ou seja, foram séculos de dominação, que repercutiram e repercutem na forma de viver e ser do africano. A identidade caboverdeana se constitui de um temperamento morabe, ou seja, os caboverdeanos possuem uma política de “boa vizinhança”. Possuem um temperamento amorável, pacífico e solidário. Com isso, aos poucos a administração colonial foi sendo passada para suas mãos, até porque Portugal não tinha muito interesse econômico nas ilhas, já que não havia como fazer grandes plantações e nem explorar diamantes, como em Angola, por causa do clima e do solo da região. Esse processo Manuel Ferreira explica em seu livro Literaturas africanas de expressão portuguesa “A colônia, a partir da segunda metade do século XIX, havia já adquirido feição própria: a posse da terra e os postos da Administração, a pouco e pouco transferiam-se para as mãos de uma burguesia cabo-verdiana” (FERREIRA, 1987, p. 26). Faz parte também dessa identidade nacional o dilema do caboverdeano: ter de partir querendo ficar e o querer partir tendo de ficar. A população caboverdeana enfrenta grandes períodos de seca, gerando muita fome e desgraças. Para muitos a única solução é sair de sua região natal em busca de melhorias, por isso a necessidade de ‘ter de partir mesmo querendo ficar’. Alguns não têm como buscar um local melhor para viver e acabam permanecendo onde moram, sofrendo muito e até levando alguns a morte. Nesse caso o que move as pessoas é o ‘querer partir tendo de ficar’. Isso se deve a dificuldade de sobrevivência nas ilhas, fazendo com que se perceba a viagem, o mar, como a única forma de melhorar de vida. A literatura propriamente caboverdeana surge na década de 30, antes a literatura era baseada em uma “cópia” do que vinha de Portugal. Cabo Verde foi o primeiro país em que floresceu uma literatura que rompia com os padrões portugueses. Sobre este período, Benjamin Abdala Junior relata que Ocorrem a partir da década de 30 circunstâncias políticas, sociais, históricas e literárias que levaram a literatura caboverdiana a se preocupar com sua identidade, uma identidade regional, que viria a evoluir, a partir da Segunda Guerra Mundial, para a identidade nacional. Nesse momento, a intelectualidade caboverdiana passou a olhar para a literatura brasileira. Ela via em nossa literatura um imaginário muito próximo da maneira de ser dos caboverdianos. (JUNIOR, 1994, p. 112) A partir dessa preocupação com a sua identidade, o que é o caboverdeano, que surge a moderna literatura caboverdeana. Para isso usou-se como inspiração a literatura brasileira, já que se identificavam com a forma de ser dos brasileiros e com a seca que o nordeste enfrentava. Autores como José Lins do Rego, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Erico Verissimo foram muito lidos pelos intelectuais caboverdeanos. Em 1936 surge uma importante revista, a Claridade, que trouxe uma enorme renovação na escrita e na temática da literatura caboverdeana. Com isso surgiu um movimento chamado Claridoso. Considera-se que só depois dessa época que surge a verdadeira literatura caboverdeana. Seu ideário era de conhecer e falar sobre a realidade caboverdeana, com a seca, fome, o mar como um caminho mítico, pois além dele existe uma vida melhor, mas também como prisão, a insularidade do arquipélago, o que leva a um sentimento de solidão, o dilema do caboverdeano. Nesse sentido, a Claridade representou, então, um clarão de consciência, recusando a tradição portuguesa e centrando-se em motivações de raiz caboverdeana. Mas, segundo Manuel Ferreira, “Não é ainda, globalmente, uma política posição anticolonial. Não é ainda algo que pressuponha a idéia de independência política ou nacional.” (FERREIRA, 1987, p. 43). Então, apesar de se discutir e relatar nas obras a vida do caboverdeano sofrendo com a fome, a seca, e a falta de iniciativas de melhora, não se relaciona isso com o fato de Cabo Verde ser uma colônia de Portugal. Naquela época era mais importante reafirmar a identidade do que uma possível luta de independência. Segundo José Carlos Gomes dos Anjos, em seu livro Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde, “O princípio de afirmação de identidade era apenas regionalista, em nenhum momento sendo questionado o fato de Cabo Verde ser parte de Portugal.” (ANJOS, 2006, P. 83). Os escritores desta época acabavam se aproximando muito da idéia representada no poema Vou-me embora para pasárgada, de Manuel Bandeira. Pois nesse local distante é onde eles teriam melhores condições, não teriam que passar fome nem sede, teriam trabalho e uma vida digna. Isso levou a uma política evasionista, muitas vezes por obrigação, necessidade e não por quererem realmente. Mostrando as peculiaridades do arquipélago, do que os diferenciava do resto de África, os escritores queriam salientar o regional. Para José Carlos Gomes dos Anjos, “O principal princípio de oposição inscrito no pensamento intelectual cabo-verdiano pelo movimento literário, conhecido como Claridade, é o de contraste entre Cabo Verde e a África.” (ANJOS, 2006, p. 76), ou seja, Cabo Verde geograficamente pertence à África, mas do ponto de vista cultural teria uma oposição, seria como um estrangeiro para o resto do continente. Claridade foi um movimento de tanta importância em Cabo Verde, graças à renovação que propõe, que até hoje algumas idéias defendidas por esse grupo de intelectuais continua vigente. O fato de falar da realidade vivida no arquipélago, de tudo aquilo que era importante ou oprimia o caboverdeano, fez com que se construísse aos princípios da identidade desta nação. À Claridade sucede a geração de Certeza. Com a Segunda Guerra Mundial fica mais evidente a necessidade de uma demarcação ideológica, não só literária. Para Manuel Ferreira, “Nem sempre o conceito de geração corresponde a uma demarcação estética ou ideológica, como neste caso. O grupo de Certeza vem perfilhar o ponto de vista neo-realista. São, portanto, marxistas.” (FERREIRA, 1987, p. 51). Este novo movimento propõe, portanto, uma forma diferente de perceber a realidade, a partir da visão marxista. A literatura passa a estar fortemente vinculada ao neo-realismo. O movimento Certeza surge vinculado à outra revista, Certeza de 1944, e não rompe com as idéias da Claridade, é uma continuidade com algumas mudanças. Liga-se ao neorealismo português e a ideologia marxista. Eles defendiam que o destino do caboverdeano deveria estar ligado ao do continente africano, acusando a Claridade de pensar apenas no regional. Indo contra a idéia evasionista da Claridade, pregam que é necessário ficar na sua terra, aliar-se e lutar por melhorias, valorizando também a língua crioula. O anti-evasionismo seria uma forma de solução para o dilema do caboverdeano. Então o caboverdeano deve ficar nas ilhas e recusar pasárgada. O poeta Ovídio Martins expressa muito bem o pensamento do movimento Certeza em seu poema Anti-evasão: Pedirei Suplicarei Chorarei Não vou para Pasárgada Atirar-me-ei ao chão e prenderei nas mãos convulsas ervas e pedras de sangue Não vou para Pasárgada Gritarei Berrarei Matarei Não vou para Pasárgada. É neste contexto que o livro Hora di Bai foi escrito, ligando-se a estética Neo-realista. Manuel Ferreira foi um dos autores que mais se destacou dentro do posicionamento defendido pela Certeza. Se na prosa ele foi o nome de maior importância, na poesia foi Ovídio Martins, autor do poema Anti-evasão, que recusa pasárgada. 3 Claridade e Certeza no livro No livro Hora di Bai se percebe claramente dois momentos. No primeiro o caboverdeano é considerado pacífico, calmo, aceita sua realidade e tenta conviver com ela, e quando isso não é mais possível ele parte. São relatadas viagens de barco, pessoas morrendo de fome, meninas se prostituindo por não terem mais como sobreviver. Isso perdura por quase toda a narrativa, demonstrando o sofrimento do povo. Apesar de tudo que o aflige, o caboverdeano não se revolta. Já no segundo momento o caboverdeano se revolta, arromba um armazém para conseguir comida, resolve ficar na sua terra, mesmo que sofrendo algumas coisas, e combater aquilo que os oprime. Há a mudança do caboverdeano pacífico para o lutador. Então, ocorre, segundo Jane Tutikian, um “alargamento da visão caboverdiana e a posição de resignação, apesar da “amorabilidade”, substituída pela posição de luta, de transformação da realidade” (TUTIKIAN, 1999, p. 60). Essa luta para conseguir algo melhor pode se dar de diferentes maneiras: de forma mais violenta, como a invasão da casa de Sebastião Cunha, ou de maneira mais simbólica, ficando em Cabo Verde para ajudar o país a enfrentar a seca. Cada um desses momentos se relaciona com a idéia defendida por um dos movimentos literários. Na primeira parte, quando se relata o sofrimento dos caboverdeanos que são obrigados a ir para São Vicente, Portugal, São Tomé, aproxima-se muito do ideário da Claridade, com sua denúncia das mazelas e a necessidade da evasão. A partir do momento em que o povo se revolta, invade o armazém, resolve lutar para melhorar de vida e ficar na sua terra, há a passagem para o movimento Certeza. Agora o caboverdeano não é mais pacífico, que aceita sua realidade, mas sim um povo que se revolta e busca melhoras. Para Maria Aparecida Santilli, se o primeiro momento da narrativa centra-se na viagem, no trânsito para procurar algo melhor, na individualização de pessoas, que o que as une é a fome, mostrando um caboverdeano pacífico que renuncia, o segundo momento relata a vida na ilha, mostrando uma coletividade que luta a favor dos flagelados, mostrando um caboverdeano revoltado, que resiste. Então “o caminho da história vai, assim, desviando-se da mentalidade de renúncia que caracteriza o primeiro movimento, para a de resistência que descreverá o segundo” (SANTILLI, 1980, p.15). Terminar o romance Hora di Bai com um caboverdeano que se revolta, luta, não evade para tentar melhorar de vida não deve ter sido apenas uma forma de encerrar a narrativa, mas pode ser o que o próprio autor, pertencente à Certeza, acreditava e defendia. Sendo, portanto, o que ele mesmo espera que ocorra com seu país. 4 Elementos da Identidade Caboverdeana Conforme Jane Tutikian, “Resta perguntar que elementos compõem a identidade dessa nação que, então, se tem consciência, entendendo-se por identidade o “estar sendo”. Fundamentalmente um território, uma cultura, um temperamento.” (TUTIKIAN, 2006, p. 41). São considerados, portanto, elementos que compõem a identidade caboverdeana a língua crioula, a morna, o temperamento morabe, o dilema. Estes elementos estão presentes nos dois momentos do livro, mostrando que mesmo com algumas mudanças a identidade caboverdeana permanece a mesma. A língua crioula é bem presente durante o romance, através de palavras e expressões. Ela caracteriza-se por apresentar grande quantidade de palavras do português. No transcorrer da narrativa, os personagens falam português, mas incluindo uma ou outra palavra em crioulo, tanto que é necessário um glossário (presente no final do livro) para compreender algumas partes. Isso ocorre no seguinte trecho, quando D. Venância está falando com Juca, um poeta, e tem que explicar o significado de uma palavra em crioulo “Terra nanhida a nossa, senhor!” “Na-nhi-da, D. Venância, disse?” “Sim, meu amigo. Nanhida. Infeliz, desgraçada. Ninguém olha por ela.” (FERREIRA, 1980, p. 48) Em alguns momentos a língua crioula fica mais evidente, como é o caso em “Eh bocê, dzê’me um ôsa. Q’zê quil?” (FERREIRA, 1980, p.61), que significa ‘Ei você, me diz uma coisa. O que é aquilo?’, em que Conchinha, recém chegada na ilha de São Vicente, estranha ver pessoas abandonadas na praia. O narrador do romance relata que nha Venância falava em português, usando apenas uma ou outra expressão em crioulo. Mas se ela se dirigia a pessoas cultas, letradas falava apenas em português, o que depois de um tempo a deixava muito cansada. No final da narrativa, quando Nha Venância resolve ficar em Cabo Verde, assumindo a idéia da Certeza, ela acaba ficando a vontade e conversando em crioulo com um amigo. Essa atitude representa a valorização do crioulo, defendida pelo movimento de 44. Benjamin Abdala Junior relata que “Estigmatizado pelo poder colonial, o crioulo será ponto de referência do regionalismo caboverdiano. Será incorporado ao português padrão, matizando-o de caboverdianidade.” (JUNIOR, 1994, p. 116), ou seja, como o crioulo não era bem aceito por Portugal, usá-lo seria também uma forma de se assumir como caboverdeano e não como português. Se a língua crioula é presente durante toda a narrativa, já que pertence à identidade caboverdeana, ela é assumida conscientemente como uma forma de expressão, em contraposição ao português, no final quando nha Venância resolve usá-lo para se comunicar, um pouco antes de decidir que não irá embora de sua terra, ficará em Cabo Verde, falando em crioulo com os amigos e lutando, o que a Certeza defendia. A morna, cantiga popular cantada em crioulo, é muito importante na vida do caboverdeano, por isso sempre o acompanha, seja nos momentos em que está pacífico como nos que está revoltado. Segundo Gabriel Mariano, “A morna comemora a sua vida de existência emocional, castigada pelo défice econômico que o leva a emigrar partindo para as terras longe, “sem partir” ou partindo para poder regressar.” (MARIANO, 1991 apud TUTIKIAN, 2006, p. 42). Logo no início, na viagem de barco de São Nicolau até São Vicente, os passageiros pedem para um tripulante, chamado Chico Afonso, cantar a morna Hora di Bai, que fala da dor de ter de partir, mostrando como a música se identificava com o que os caboverdeanos estavam passando. Quando os caboverdeanos estavam se revoltando, a morna assume outro papel, “A malta escutando-o dava conta de que a morna era também canção de sonhos e anseios. Dela vinha uma força estranha, um desejo de viver e lutar.” (FERREIRA, 1980, p.114). Se antes ela mostrava seus sofrimentos, a necessidade de ter de partir, agora ela representa um estímulo para que eles lutem por melhoras em suas vidas, aquilo que a Certeza pregava. Manuel Ferreira se utiliza da morna para mostrar que sempre é necessário lutar, que não se deve apenas escutar as músicas e aceitar o destino cruel apresentado, mas também usar elas como forma de revolta, de mudar a tristeza presente nas mornas e nas vidas deste povo. O título do livro, Hora di Bai, faz referência a uma morna de mesmo nome de Eugénio Tavares, que trata da dor da despedida (hora di bai significa hora da despedida) daqueles que são obrigados a sair do local que tem raízes para tentar uma nova vida em outro lugar. Segundo Jorge Valentim, “Ao longo de seus 53 capítulos, entre referências, alusões e citações explícitas, podemos constatar dezessete ocorrências de mornas” (VALENTIM, 2010, p. 130), demonstrando como esse elemento da identidade caboverdeana é de vital importância na vida dessa população. Chico Afonso, personagem que é tripulante do navio e que canta mornas, é importante quando se trata dessa mudança ocorrida na forma de perceber a morna, pois no primeiro momento é ele que canta mornas no barco, falando do sofrimento, e depois na revolta ele a usa como forma de mostrar que a música também deve servir como estímulo para eles se revoltarem. Usando, portanto, a morna como maneira de expressar as idéias da Certeza. Na primeira parte do livro é normal as pessoas falarem que os caboverdeanos não se revoltam, como em “Revoltar, nosso povo? Cabo-verdiano é pacífico.” (FERREIRA, 1980, p. 49), mostrando o temperamento calmo, pacífico. Com isso um personagem é até chamado de indigno quando tenta falar que algo estava errado, pois não seria digno de um caboverdeano se revoltar. Há ainda o culto da vizinhança, onde todos são amigos e se ajudam. No trecho do livro “Nosso povo é mole. Mole e bom, fique certo. (...) Nossa gente é dada à paz e ao sossego.” (FERREIRA, 1980, p. 42) fica claro o temperamento calmo, sossegado. Depois de eles perceberem quanta injustiça ocorre, com a ajuda internacional para salvar um alferes enquanto milhares de caboverdeanos morrem de fome e com uma casa com muito alimento estocado com muitas pessoas necessitadas, eles dão-se conta que “Povo não pode agüentar esta vida. Cabo Verde tem de lutar.” (FERREIRA, 1980, p.112). No momento em que eles se revoltam, há uma mudança no comportamento, “Gente, nós não temos nem trabalho nem comida! Temos fome! Vamos buscar comida onde há!” (FERREIRA, 1980, p. 139), agora eles lutam por aquilo que eles querem, invadiram um armazém para conseguir alimento. Essa revolta também ocorre, de maneira simbólica, quando nha Venância resolve ficar em São Vicente, para assim lutar pelo seu país. Depois dos caboverdeanos enxergarem tudo o que estavam sofrendo e terem o desejo de mudar, a população começa a se envolver em outras lutas, agora não mais violentas, mas sim simbólicas como demonstrado em À medida que o dia do julgamento se aproximava, Jacinto Moreno mais se convencia de que a população se preparava, em peso, para estar presente, unida como rocha, junto do Tribunal, disposta a tudo. E o gesto de libertar o Dr. França Gil do degredo para as terras do Sul envolvia todos em anseios e esperanças comuns. (FERREIRA, 1980, p. 147) onde fica claro o envolvimento do povo em defender Dr. França, que foi preso por falar a verdade sobre a realidade caboverdeana e por pedir ajuda aos patrícios da América. O dilema caboverdeano (ter de partir querendo ficar) é algo que o acompanha sempre, pois a necessidade de sobreviver muitas vezes o obriga a sair de seu país. No primeiro momento do livro fica mais evidente, “A condenação do cabo-verdiano não tinha apelo: procurar na emigração ou no mar o que a terra lhe negava.” (FERREIRA, 1980, p. 35). Mas no segundo momento ele também aparece quando Nha Venância pensa em ir para Portugal, em que, segundo Jorge Valentim, “Comovida pela situação social degradante do país e desesperançosa de mudanças drásticas e definitivas, Nha Venância, num primeiro momento, parece encarnar o destino cabo-verdiano da evasão.” (VALENTIM, 2010, p. 136). O que ocorre é que a resposta a este dilema é permanecer em seu país, “Cabo-verdiano deve agarrar-se à sua terra. Encontrar aqui, nas horas de infortúnio, a sua razão de ser.” (FERREIRA, 1980, p. 149). Nha Venância decide ficar em São Vicente, ir ao julgamento de Dr. França e testemunhar a seu favor, enfim, ficar e lutar para que todos possam ter uma vida decente em seu país. Então, bem como pregava a Certeza, os caboverdeanos devem ficar em Cabo Verde e resistir, lutando por melhores condições de vida. Desta maneira, encerrando o livro com a fala de nha Venância “Desfaçam as malas. Já não embarcamos para Lisboa.” (FERREIRA, 1980, p. 153), Manuel Ferreira claramente demonstra sua opinião sobre o destino dos caboverdeanos. Para Jorge Valentim, Encerrar o romance com a palavra final demarcadora de uma permanência e não de uma despedida sugere uma atitude paradigmática de seu autor, ao apostar na possibilidade de que, mesmo diante de um afastamento derradeiro iminente, o sonho e a esperança do ficar são realidades plausíveis e contextualizadas com o cotidiano cabo-verdiano. Partir não parece ser, portanto, a única via de solução, posto que maior do que a dor dos que se vão é aquela dos que ficam sem poder contar com a força dos que se ausentam. (VALENTIM, 2010, p. 137) O autor, como intelectual importante da Certeza, termina seu livro com um não a evasão e um sim a perceber os problemas do povo caboverdeano como pertencentes a algo maior, a todo continente africano, em que para melhorar isso só lutando (simbolicamente ou não) por melhorias. É importante salientar que o que ocorre é uma mudança no comportamento do caboverdeano, não uma mudança em sua identidade. Tanto os que evadem quanto aqueles que ficam e lutam permanecem com a identidade caboverdeana morabe. Mesmo quando invadem, por exemplo, não é por maldade, porque são bandidos, e sim porque tem fome, por necessidade. 5 Considerações finais Todos os elementos que compõem a identidade caboverdeana, a língua crioula, a morna, o temperamento morabe e dilema caboverdeana, estão presentes em todo o livro. Ocorrem, sim, algumas mudanças em como eles aparecem. O crioulo é assumido no final por nha Venância, junto com a decisão de ficar em Cabo Verde, assumindo as idéias da Certeza. A morna aparece no segundo momento como incentivo a revolta do povo, onde eles assumem um temperamento diferente, agora lutam para tentar melhorar de vida. É possível concluir, portanto, que o movimento Claridade se aproxima da idéia de abandono das ilhas para a tentativa de obter uma melhor condição de vida, condição representada na primeira parte do livro Hora di Bai, ao passo que o movimento Certeza apresenta uma ligação com aqueles que decidem ficar na sua terra para lutar por melhores condições sociais, representado no final da narrativa. REFERÊNCIAS ANJOS, José Carlos Gomes dos. Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde: lutas de definição da identidade nacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006. FERREIRA, Manuel. Hora di Bai. São Paulo: Ática, 1980. (Coleção de autores africanos, 6). ______________. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São Paulo: Ática, 1987. JUNIOR, Benjamin Abdala. Imagens da identidade e a diferença: Manuel Lopes e o despertar da caboverdianidade. In: Anais do XIV Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994. SANTILLI, Maria Aparecida. Manuel Ferreira: A História de um Novelista e suas Histórias da “Terra Trazida”. In: FERREIRA, Manuel. Hora di Bai. 1ª Ed. São Paulo: Ática, 1980. (Coleção de autores africanos, 6). p. 3-15. TUTIKIAN, Jane Fraga. Inquietos Olhares: A construção do processo de identidade nacional nas obras de Lídia Jorge e Orlanda Amarílis. São Paulo: Arte & Ciência, 1999. ________________. Velhas identidades novas: O pós-colonialismo e a emergência das nações de língua portuguesa. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2006. VALENTIM, Jorge. Mornas e música: ressonâncias culturais cabo-verdianas na escrita ficcional e ensaística de Manuel Ferreira. In: África, Escritas Literárias: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/UEA, 2010.