Copyright: Goethe-Institut, Humboldt 2008 Humboldt 149/97 Maria Paula Nascimento Araujo Construindo a autodeterminação. Sobre a revolta brasileira, a luta armada contra a ditadura e seus frutos tardios. Assim como no mundo todo, o ano de 1968 no Brasil foi marcado por manifestações e revoltas estudantis. Estes movimentos tinham alguns aspectos em comum com o que acontecia na Europa, mas também algumas diferenças importantes. No Brasil, a ditadura militar implantada em 1964 fechara os partidos políticos e as associações civis de oposição – inclusive as entidades estudantis. O movimento estudantil que eclodiu em 1968 era, essencialmente, um movimento de luta contra a ditadura. Apesar desta distinção bastante significativa, algumas posturas políticas aproximavam as manifestações estudantis que ocorriam no Brasil das revoltas que eclodiam em várias partes do mundo: um sentido radical de liberdade, o culto à ação, o desprezo pelas formas tradicionais de fazer política. O movimento estudantil que se gestou entre 1966 e 1968, no Brasil, também trazia em seu bojo uma crítica ao Partido Comunista Brasileiro, acusado de reformismo e de imobilismo frente ao regime. O ponto de maior tensão deste movimento ocorreu após o assassinato do estudante Edson Luís, numa manifestação em frente ao restaurante estudantil do Calabouço, no Rio de Janeiro. Os estudantes carregaram seu corpo em passeata até a Assembléia Legislativa, onde entraram à força. Até a chegada do caixão, o corpo ficou sobre uma mesa, velado e protegido por um grupo de estudantes. A morte de Edson Luís marcou o início de um processo de radicalização política e de confrontos violentos entre a polícia e os estudantes. Este processo de radicalização culminou num gigantesco ato público que ficou conhecido como a Passeata dos Cem Mil. Em contraposição aos violentos conflitos da semana anterior, a passeata foi pacífica e não encontrou repressão policial em seu caminho. Até hoje ela se constitui como um dos marcos mais importantes da “geração 68” no Brasil, assim chamada pelo compartilhamento de alguns eventos marcantes e definidores de uma dada época. Mas esta manifestação foi o ponto máximo da mobilização estudantil. A partir daí o movimento estudantil entrou em refluxo. No Rio de Janeiro as manifestações estudantis passaram a ser reprimidas a bala. O ano se encerrou com a promulgação do Ato Institucional Nº 5. O AI-5 fechou o Congresso Nacional por tempo indeterminado; cassou mandatos de deputados, senadores, prefeitos e governadores; decretou o estado de sítio; suspendeu o habeas corpus para crimes políticos; cassou direitos políticos dos opositores do regime; proibiu a realização de qualquer tipo de reunião; criou a censura prévia. Ele significou, para muitos, um “golpe dentro do golpe”, um endurecimento do regime que estabeleceu leis especiais para o exercício do poder fora dos marcos do Estado de direito. Copyright: Goethe-Institut, Humboldt 2008 1968 também pode ser considerado como o ano que detonou a opção pela luta armada por boa parte da esquerda brasileira. Entre 1966 e 1969 inúmeras organizações armadas surgiram, multiplicaram-se, fundiram-se: Ação Libertadora Nacional (ALN), Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), Comandos de Libertação Nacional (colina) foram algumas delas. A opção pela luta armada representava exatamente o culto à ação, também mencionado nas análises de Hannah Arendt (Sobre a violência, 1994) como o denominador comum dos movimentos juvenis da década de 1960 no mundo todo. Este culto trazia consigo a valorização da ação direta, da coragem e do enfrentamento. Urgência, pressa, voluntarismo, imediatismo. Em sua “Carta ao Comitê Executivo do PCB” em 1966, Carlos Marighela rompeu com o Partido Comunista Brasileiro para criar a organização armada ALN: “Escrevo-lhes para pedir demissão da atual Executiva. O contraste de nossas posições políticas e ideológicas é demasiado grande e existe entre nós uma situação insustentável. [...] O centro da gravidade do trabalho executivo [do PCB] repousa em fazer reuniões, redigir notas políticas e elaborar informes. [...] Solicitando demissão da atual Executiva – como o faço aqui – desejo tornar público que minha disposição é lutar revolucionariamente, junto com as massas, e jamais ficar à espera das regras do jogo político burocrático e convencional que impera na liderança”. Como bem salientou Hannah Arendt, o desprezo pelo jogo parlamentar e pelas formas tradicionais de fazer política foi um dos elementos mais fortes e comuns às revoltas estudantis do final dos anos 60: “O traço crucial das rebeliões estudantis em todo o mundo é que elas são dirigidas, em todo lugar, contra a burocracia dominante”. Entre os anos de 1960 e 1970, este desejo de ação política imediata, que se expressou na luta armada, se espalhou por diversos países da América Latina. Em muitos deles foram formadas organizações armadas, a maioria compostas, em grande medida, por jovens universitários que abandonavam as salas de aula para pegar em armas. Os exemplos que inspiravam a luta armada eram as guerrilhas do Vietnã, de Cuba e a guerra popular prolongada da revolução chinesa. Mais do que tudo, a revolução cubana e a figura de Che Guevara foram os principais elementos que incentivaram a opção da luta armada na América Latina. Tupamaros no Uruguai, Montoneros na Argentina, o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) chileno e o MIR boliviano; o Partido da Revolução Venezuelana, criado por Douglas Bravo; o Ejército de Libertación Nacional colombiano, onde lutou e morreu o padre Camilo Torres. São alguns exemplos da onda que varreu a América Latina, produzindo um grande número de organizações que apostavam na luta armada como caminho para a revolução socialista no continente. No Brasil, a opção pela luta armada, conjugada com o endurecimento do regime após o AI-5, foi trágica. Em poucos anos as organizações foram destruídas, deixando um saldo de inúmero mortos, desaparecidos, exilados e banidos. Copyright: Goethe-Institut, Humboldt 2008 O ano de 1968, portanto, no Brasil e na América Latina, não representou, exatamente, o momento da “autodeterminação política” que se manifestou, na mesma época, nos países da Europa ocidental. Representou, sim, um grande caudal de emoções, de radicalização, de valorização da ação direta, do enfrentamento, do voluntarismo. As organizações políticas que lideraram os movimentos de esquerda no Brasil e em vários países da América Latina eram organizações marxistas-leninistas, clandestinas, com rígida estrutura hierárquica, com estratégias e táticas definidas a partir de um modus operandi tipicamente leninista. Após a derrota da luta armada, no entanto, as esquerdas brasileiras iniciaram uma reflexão com o objetivo de retomar o contato com as massas, através de uma nova tática política que permitisse a adesão de grandes parcelas da população. A etapa seguinte foi a de uma luta democrática contra a ditadura militar. Entre 1974 e 1985 a sociedade civil e amplos setores da esquerda brasileira levaram a cabo uma luta pelas liberdades democráticas. Neste momento podemos começar a falar em autodeterminação. De certa forma, os aspectos mais culturais do movimento de 68 europeu chegaram no Brasil na década de 70. Movimentos de novo tipo começaram a surgir (ou, em alguns casos, a ressurgir) e se integraram na luta contra a ditadura: movimentos de mulheres, de negros, de homossexuais, movimentos em defesa da causa indígena. Estes movimentos organizaram-se em torno de jornais cujas redações funcionavam como o lócus onde se criava e produzia um discurso próprio, ligado à especificidade e identidade dos movimentos em questão. No caso do movimento de mulheres os principais jornais foram Brasil Mulher, criado em 1975, e Nós Mulheres, lançado em 1976. Estes jornais buscavam construir um discurso e um ponto de vista específico sobre a realidade das mulheres, mas, também, procuravam articular a luta feminista com a luta contra a ditadura militar. A maior parte das militantes feministas era egressa de organizações de esquerda, muitas delas tinham vivido o exílio na Europa, principalmente em Paris, e traziam a influência do feminismo francês. Já o movimento negro tinha uma origem diversa: suas lideranças tinham se formado de forma quase totalmente desvinculada de partidos e organizações de esquerda. Seguindo um caminho paralelo, esta liderança se constituiu em torno de jornais como o SINBA, Tição, Nego [nome que é uma brincadeira irônica: “nêgo” é uma corruptela de “negro”, uma forma pejorativa de se referir aos negros]. As salas de redação destes jornais eram o principal espaço para a formulação das posições políticas do nascente movimento negro. Até hoje, esta geração de militantes que criou os principais jornais dos anos 70 é uma referência política importante para o movimento negro contemporâneo. Estes movimentos de autodeterminação que se incorporaram à luta contra a ditadura obtiveram uma importante vitória política na Constituição de 1988. Esta constituição foi elaborada por uma Assembléia Nacional Constituinte eleita após o fim do regime militar. Como apontou o historiador Boris Fausto,“a Constituição de 1988 refletiu o avanço ocorrido no país especialmente na área da extensão de direitos sociais e políticos aos cidadãos em geral e às chamadas minorias”. Copyright: Goethe-Institut, Humboldt 2008 A nova constituição assegurava os direitos das mulheres, dos negros, dos índios e abria espaço para outras leis que regulamentaram e consolidaram estes direitos. Assim, por exemplo, o direito de descendentes de escravos obterem o título de propriedade de antigos quilombos – as comunidades fortificadas que abrigavam escravos fugidos, muitas dos quais perduram no tempo – e o direito à remarcação de terras indígenas. Podemos dizer que o Brasil de hoje vivencia a questão da autodeterminação, amparada pela Constituição de 1988. Seus principais protagonistas são as mulheres, os negros, os “quilombolas” e os indígenas. Maria Paula Nascimento Araújo é doutora em Ciência Política e professora de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atua no programa de pós-graduação em História Social e no Laboratório de Estudos do Tempo Presente. Desenvolve pesquisas no campo da história política, história oral e memória, enfocando sobretudo os movimentos sociais e as esquerdas no Brasil e na América Latina. É autora dos livros A Utopia Fragmentada. Novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970 (2000) e Memórias Estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias (2007). Copyright: Goethe-Institut, Online-Redaktion Alle Rechte vorbehalten www.goethe.de/humboldt