Recurso Criminal n. 2014.037706-9, de São Bento do Sul
Relator: Des. Moacyr de Moraes Lima Filho
RECURSO CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO PELA
SURPRESA. PRETENDIDA A ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA EM
RAZÃO DE EXCLUDENTE DE ANTIJURIDICIDADE. PLEITO
INACOLHIDO. LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA NÃO ESTREME
DE DÚVIDAS. RECURSO NÃO PROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Criminal n.
2014.037706-9, da comarca de São Bento do Sul (3ª Vara), em que é recorrente
Daniel João Silvano, e recorrido Ministério Público do Estado de Santa Catarina:
A Terceira Câmara Criminal decidiu, por votação unânime, negar
provimento ao recurso. Custas legais.
O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Excelentíssimo Sr.
Des. Rui Fortes, e dele participaram os Excelentíssimos Srs. Des. Ernani Guetten de
Almeida e Des. Leopoldo Augusto Brüggemann. Lavrou parecer, pela douta
Procuradoria-Geral de Justiça, o Excelentíssimo Dr. Ivens José Thives de Carvalho.
Florianópolis, 22 de julho de 2014.
Moacyr de Moraes Lima Filho
RELATOR
RELATÓRIO
Na comarca de São Bento do Sul, o órgão do Ministério Público
ofereceu denúncia contra Daniel João Silvano, imputando-lhe a prática do crime
previsto no art. 121, § 2º, IV, do Código Penal, pelos fatos assim descritos na exordial
acusatória:
No dia 26 de maio de 2013, em horário a ser definido, na frente da residência
da vítima, localizada na Estrada Santana, Município de Campo Alegre/SC, o
denunciado Daniel João Silvano desferiu um disparo de arma de fogo (Espingarda
calibre 36, com numeração B115751 – apreendida na folha 27) que atingiu a vítima
Mario de Oliveira, pelas costas, causando neste as lesões descritas no laudo de
exame cadavérico nº 336/2013 anexo, que foram a causa suficiente de sua morte.
O crime contra a vida foi praticado por meio que dificultou a defesa da vítima,
uma vez que essa foi alvejada por Daniel João Silvano pelas costas subitamente
enquanto estava ligando sua motocicleta, o que impediu qualquer reação em sua
defesa. (fls. II/III)
Finda a instrução criminal, o Magistrado a quo admitiu a denúncia para
pronunciar o réu como incurso nas sanções do art. 121, § 2º, IV, do Código Penal,
determinando que seja submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri Popular daquela
comarca (fls. 141/149).
Irresignada com a prestação jurisdicional, a defesa interpõe recurso em
sentindo estrito (fl. 175), e em seu arrazoado requer a absolvição sumária do réu, ao
argumento de ter agido sob o manto da excludente de ilicitude da legítima defesa
putativa (fls. 182/185).
Contrarrazões ofertadas (fls. 189/194), foi exarado despacho de
manutenção da decisão pelo Juiz singular (fl. 195).
Os autos ascenderam a esta Corte, perante a qual a douta
Procuradoria-Geral de Justiça, por intermédio do Dr. Ivens José Thives de Carvalho,
manifesta-se pelo não provimento do reclamo (fls. 200/205).
VOTO
Trata-se de recurso em sentido estrito interposto por Daniel João Silvano
contra decisão que acolheu a denúncia contra si formulada e o pronunciou como
incurso nas sanções do art. 121, § 2º, IV, do Código Penal, para fins de submissão a
julgamento pelo Júri Popular.
Primeiramente, deve-se levar em consideração que a pronúncia é um
mero juízo de admissibilidade da acusação, de modo que o feito deve ser remetido a
julgamento pelo Conselho de Sentença quando estiver comprovada a materialidade
do crime e houver indícios suficientes da autoria.
Acresça-se, ainda, que o cotejo aprofundado da prova não é pertinente
nesta oportunidade, em que se procura um juízo de admissibilidade da acusação
formulada na denúncia, sendo competência exclusiva e soberana do Conselho
Popular, durante o julgamento em plenário, fazer a análise valorativa do contexto
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probatório, convencendo-se pela tese que lhe parecer mais adequada.
Na hipótese, o Magistrado de acordo com seu livre convencimento, em
decisão motivada (art. 93, IX, da Constituição Federal), pronunciou o recorrente,
restringindo-se comedidamente a indicar a prova e motivar a pronúncia. Assim é que,
examinando os elementos constantes do processo, fundamentadamente rejeitou as
teses da defesa para pronunciar o acusado.
No caso, a materialidade dos delitos está demonstrada pelos boletins de
ocorrência (fls. 3/4 e 12/22), pelo auto de exibição e apreensão (fls. 27/30), laudo de
exame cadavérico (fl. 52/56), bem como pelos laudos periciais (fls. 70/73).
Da mesma forma, há indícios suficientes da autoria delitiva, mormente
pela confissão do réu em ambas as fases procedimentais (fls. 25/26 e mídia eletrônica
à fl. 103), ainda que as alegue frente a exculpante de antijuricidade da legítima
defesa.
Na Delegacia de Polícia, Daniel assim relatou:
QUE conhecia a vítima do Bar do Eliseu, no interior de Campo Alegre, pelo fato
de frequentarem o mesmo; Que não tinha nenhum tipo de relação de amizade com a
vítima, somente conversando às vezes com a citada pessoa; Que a vítima começou
a espalhar boatos na localidade de que o autor estaria dizendo que a vítima estava
"... Mexendo com a mulher dos outros no local ..."; Que em razão da vítima acreditar
em tais fatos, a mesma falou para o interrogado/autor no bar que frequentavam que
iria matá-lo; Que nessa ocasião o interrogando "... Virou as costas e saiu ..." não
dando maior atenção às ameaças; Que por morar em lugar isolado, distante da
cidade e sem meio de comunicação começou a temer por sua segurança em razão
da ameaça que a vítima lhe teria feito e "... Peguei minha espingarda com três
munição [sic] e fiquei com ela ..."; Que no domingo, dia 26 de maio do ano corrente,
estava indo caçar, de posse de sua arma de fogo, a espingarda calibre .36 e
passando nas proximidades da casa da vítima, em local isolado, foi chamado por
esta e atendeu o chamado; Que a vítima viu o interrogando armado, no entanto,
segundo o interrogando, esta sabia que ele iria caçar; Que começou a conversar
com a vítima e esta teria lhe convidado para ir ao bar comprar pão; Que a vítima
subiu na motocicleta e tentou ligá-la sem ter conseguido de imediato; Que de posse
de sua arma viu a vítima de costas e pensando nas ameaças que a mesma teria lhe
proferido efetuou um disparo com sua arma de fogo, vendo que a vítima foi alvejada
com a arma de fogo, caindo sobre a moto que foi ao chão e "... Arregalando os olhos
..." para o interrogado que se evadiu do local correndo; Que foi para a sua casa e
escondeu a arma no mato, sendo que à noite se encontrou com uma pessoa
chamada Orivaldo, dizendo-lhe o que tinha feito, pedindo inclusive uma lanterna para
a citada pessoa para que voltasse ao local do crime para colocar o corpo da vítima
na cama, tirando-a da frente da casa; Que Orivaldo se negou a emprestar a lanterna
e independente disso o interrogado foi na casa da vítima e retirou o corpo desta da
frente da casa, colocando-a na cama; Que após isso, o interrogado foi embora do
local tomando o ritmo normal da sua vida. [...] (fls. 25/26)
Extrai-se do seu interrogatório judicial (mídia eletrônica à fl. 103):
[disse] ter efetuado o disparo contra a vítima, com a espingarda apreendida e
constante na f. 30, a qual tinha comprado há dois meses e a jogado no mato
posteriormente [1'49'']; alegou contudo, que conversou com a vítima no bar e este o
ameaçou, disse que a vítima foi até sua casa e deu um tiro [2'19''], no mesmo dia
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"peguei a espingarda, cheguei lá ele estava na casa dele, mas ele estava armado já"
[2'31''], questionado, disse que foi atrás dele "para eliminar mesmo" [3'21''], atirou
quando ele foi puxar a arma, "ele caiu no rancho, eu fiquei olhando um pouco e saí"
[3'29''], ele foi se arrastando até a cama e morreu lá [3'53'']; confirma sua assinatura
nas f. 25-26, mas disse que a história que falou na delegacia "é tudo falsa", que
inventou [7'10'' e 8'39'']. (transcrição extraída da sentença, fl. 144 - com inserção do
tempo em que o trecho ocorreu, conforme § 7º do art. 297 do Código de Normas da
Corregedoria-Geral da Justiça de Santa Catarina - CNCGJSC)
Verifica-se, pois, contradições nos relatos do apelante.
A testemunha Orivaldo Sales Franco, na fase do contraditório (mídia
eletrônica à fl. 125), confirmou seus relatos iniciais (fl. 6):
que conhecia o acusado na época pelo nome de Adenilson, "ele trabalhava
comigo" [1'08''] e na ocasião "ele chegou meio assustado" [1'16''] e "daí ele
confessou que tinha matado o cara lá" [1'28''], conhecia a vítima, trabalhavam todos
juntos [1'49'']; o acusado contou ainda que a vítima tinha o ameaçado anteriormente,
mostrando uma pistola [1'57'']; não presenciou esse fato, contou isso no momento
que contou sobre o crime, "ele já foi pronto" [3'01'' e 4'20'']; ficou com medo inclusive
que o acusado "fizesse alguma coisa pra mim" [3'14''], incentivou o acusado a ir
embora mas ele disse "não dá nada, passa vinte e quatro horas aí e não dá nada"
[5'52''], ficou com medo e conversou com o Mário [Euclides da Cunha] que chamou a
polícia [6'15''], não foi até o local [7'03'']. (transcrição extraída da sentença, fl. 144 com inserção do tempo em que o trecho ocorreu, conforme § 7º do art. 297 do
CNCGJSC)
A testemunha Mário Euclides da Cunha, embora não tenha sido ouvido
em Juízo, confirmou os relatos de Orivaldo na fase inicial e disse que foi até o local,
verificou que a vítima estava morta sobre a cama, quando saiu sem mexer em nada e
chamou a polícia (fls. 8/9).
O policial militar que encontrou a vítima, assim relatou ao MM. Juiz
(mídia eletrônica à fl. 103):
que foram até o local por solicitação da pessoa que encontrou o corpo [1'07''],
avistaram a vítima em uma cama, era um galpão, um paiol, já estava morto, estava
deitado de barriga para cima [1'44'']; colheram informações na localidade de que o
acusado tinha comentado em um bar que havia matado a vítima [2'57''], "disseram
que era o cidadão que morava em uma serraria", que o autor estava na casa,
confirmou que é o acusado presente na audiência, ele já tinha mandado de prisão
[3'13''], ele negou em um primeiro momento mas depois, após ir ao local onde estava
o corpo "lá ele assumiu que foi ele que tinha feito" [4'11']. (transcrição extraída da
sentença, fl. 146 - com inserção do tempo em que o trecho ocorreu, conforme § 7º do
art. 297 do CNCGJSC)
O pedido do recorrente pela absolvição sumária, ao argumento de que
agiu apenas para defender-se da agressão sofrida pela vítima Mário de Oliveira, ante
uma análise perfunctória dos autos - como exige o momento processual -, não
subsiste.
Isso porque a absolvição sumária somente deve ser decretada quando
restar cabalmente comprovada excludente da ilicitude ou da culpabilidade, clara e
incontroversa, que demonstre a inocência do réu, conforme disposto no art. 415 do
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Código de Processo Penal, o que, no presente caso, não se vislumbra.
Acerca da matéria, leciona a doutrina:
A absolvição sumária, por importar em exceção ao princípio geral que impõe ao
Júri o julgamento de crimes dolosos contra a vida, deve ser reservada para os casos
em que as excludentes de ilicitude (justificativas) ou culpabilidade (dirimentes) ou da
punibilidade (causas de inimputabilidade) restarem absolutamente demonstradas [...]
Remanescendo alguma dúvida (razoável), em relação a qualquer um dos
motivos ensejadores da absolvição sumária, ela deve ser resolvida em favor da
competência do Júri [...]. (GOMES, Luiz Flávio et al. Comentários às Reformas do
Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito: novo procedimento do Júri. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 73/74)
Nesse passo, para a caracterização da legítima defesa, exige-se o
preenchimento dos pressupostos elencados no art. 25 do Código Penal, quais sejam,
uso moderado de meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente.
No caso, a tese defendida nas razões recursais diz respeito à legítima
defesa putativa, que é aquela em que o agente atua julgando estar em situação de
defesa diante dos gestos praticados pela vítima, levando-o a supor que ela estaria
sacando uma arma ou algo do gênero.
Entretanto, consoante bem anotou o Magistrado singular, não obstante
os elementos constantes nos autos indicar que a vítima poderia ter discutido com o
réu, a tese sustentada pela defesa não reluz clara e suficientemente cristalina a ponto
de extrair, com a certeza necessária, que o réu, para defender sua pessoa, repeliu,
usando moderadamente os meios necessários, agressão injusta e atual, até porque
não foi encontrada qualquer arma na residência da vítima e não há testemunhas
presenciais no dia do evento fatídico.
De mais a mais, verifica-se que o ofendido foi alvejado pelas costas,
segundo se extrai do laudo cadavérico (fls. 52/56).
Com efeito, consoante bem pontuado pelo d. Parecerista:
Como se vê, existem nos autos duas versões e uma delas ampara a versão
apresentada pela acusação e elide a legação de que o recorrente agiu sob o pálio da
excludente da legítima defesa putativa, mormente porque a despeito dos argumentos
lançados pelo recorrente, verifica-se que os elementos de convicção coligidos até o
presente momento não revelam, de forma cristalina e inquestionável, haver um erro
plenamente justificável a respaldar sua crença de que estaria na iminência de injusta
agressão por parte da vítima, inviabilizando, pois, o reconhecimento da tese
defensiva e, consequentemente, a absolvição sumária requerida pela defesa. Aliás,
importa frisar que não consta tenha a vítima agredido o Recorrente no momento dos
fatos. [...]. (Dr. Ivens José Thives de Carvalho, fl. 204)
A propósito:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA.
HOMICÍDIO QUALIFICADO MEDIANTE RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU A
DEFESA DA VÍTIMA (ART. 121, § 2°, INCISO IV, DO CÓDIGO PENAL). RECURSO
DA DEFESA. PRETENDIDA A ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE.
MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA DO CRIME CONTRA A VIDA
DEVIDAMENTE CONSTATADOS. PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 413
DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. VERSÃO DEFENSIVA NO SENTIDO DE
Gabinete Des. Moacyr de Moraes Lima Filho
QUE O AGENTE AGIU EM LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA. CIRCUNSTÂNCIA NÃO
VISUALIZADA DE PLANO. PEDIDO DE AFASTAMENTO DA QUALIFICADORA
PREVISTA NO INCISO IV DO § 2° DO ART. 121 DO CÓDIGO PENAL.
IMPOSSIBILIDADE. INDÍCIOS QUE DÃO MARGEM À INCIDÊNCIA DA REFERIDA
QUALIFICADORA. EVENTUAIS DÚVIDAS QUE DEVERÃO SER DIRIMIDAS PELA
CORTE POPULAR. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE.
MANUTENÇÃO DA PRONÚNCIA QUE SE IMPÕE. RECURSO CONHECIDO E
DESPROVIDO.
1. Comprovada a materialidade do crime doloso contra a vida e presentes
indícios suficientes da autoria, deve a matéria ser remetida ao Conselho de Sentença
para, soberanamente, apreciar e dirimir as dúvidas acerca da participação do
acusado no crime.
2. A tese defensiva de legítima defesa, real ou putativa, só enseja a absolvição
sumária do acusado quando os elementos de convicção até então produzidos a
demonstram de forma cabal, inarredável, induvidosa. [...].. (Recurso Criminal n.
2011.091072-9, de Palhoça, rel. Des. Paulo Roberto Sartorato, j. em 17/6/2014)
Assim, nesse momento, não se reconhece a excludente de
antijuridicidade capaz de absolver o recorrente sumariamente, cabendo ao Tribunal
do Júri avaliar o fato, o contexto e os elementos dos autos, optando pela vertente que
lhe parecer crível para proferir o julgamento de mérito.
No que se refere à admissão da qualificadora da circunstância que
reduziu a possibilidade de defesa da vítima, embora não haja irresignação, há
elementos de prova que indicam que ela estava de costas no momento em que foi
alvejada.
Essas razões são bastantes para manter a decisão objurgada, conforme
entendimento deste Sodalício: "'Na sentença de pronúncia, as qualificadoras só
podem ser afastadas quando forem manifestamente improcedentes (RT 785/567)'"
(Recurso Criminal n. 2007.006027-2, de Tijucas, rel. Des. Sérgio Paladino, j. em
10/7/2007).
Ante o exposto, o voto é no sentido de negar provimento ao recurso.
Gabinete Des. Moacyr de Moraes Lima Filho
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Recurso Criminal n. 2014.037706-9, de São Bento do