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O trabalho infantil livre em Mariana na primeira metade do século XIX
André Soares da Cunha
Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP
A hipótese desta pesquisa é de que o trabalho infantil livre, em Mariana, na primeira
metade do século XIX, consistia em uma alternativa ao trabalho escravo - principalmente
quando esse último implicava em algum nível de qualificação, como era o caso das
atividades dos artesãos. As crianças de ambos os sexos e independentemente das condições
sociais eram, no século XIX, introduzidas precocemente na rotina árdua em diferentes
atividades econômicas, como agricultura, comércio e artesanato. Douglas Cole Libby
confirma a existência da utilização da mão-de-obra das crianças nas Minas do século XIX,
principalmente na produção de tecidos, uma vez que estes trabalhadores, devido à da
destreza e disciplina, mostravam-se adequados às necessidades deste tipo de produção.
Em nossa pesquisa, além de sublinharmos essas características do trabalho infantil,
ressaltamos que as crianças eram procuradas, como mão-de-obra, devido ao fato de o setor
artesanal necessitar de um trabalhador com alguma qualificação; portanto, de um
trabalhador que havia passado por algum tipo de aprendizado que ocorria na fase infantil e
juvenil.
O nosso objeto está inserido no campo da História Demográfica. Maria Luiza
Marcílio, na obra Demografia Histórica, destaca que o embasamento demográfico é de
extrema importância para o progresso em qualquer estudo histórico de natureza social,
econômico ou cultural; no sentido de cercar de dados trabalhados empiricamente as
pesquisas, e com isso aumentar a veracidade dos resultados dos estudos.
Até o momento, os dados da lista nominativa de Sumidouro (1819) - distrito de
Mariana -, foram usados como fontes primárias na presente pesquisa. Como lembra
Thomas H. Hollingsworth, no artigo “Uma conceituação de Demografia Histórica e as
diferentes fontes utilizadas em seu estudo”, as listas nominativas serviam como listas de
taxação de impostos de capitação ou impostos territoriais, sendo o primeiro o tipo de tributo
mais comum, o qual era pago por cabeça e, em princípio, se aplicaria a todos os adultos embora a delimitação de adulto, jovem ou criança, seja de difícil determinação na época.
Via de regra, a documentação de Sumidouro não apresenta a ocupação da maioria das
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crianças; o que dificulta a comprovação de nossa hipótese. De modo geral, Horácio
Gutiérrez e Ida Lewkowicz constataram que a documentação acerca desse tema é difícil de
ser apreendida e a legislação quase nunca dispunha informações sobre a normatização do
trabalho infantil. Além disso, os estudos sobre a mão-de-obra infantil ainda são poucos. O
que, aliás, justifica o interesse pelo tema.
O recorte temporal desta pesquisa é a primeira metade do século XIX. Segundo
Vera Cardoso e Silva, neste período o crescimento da população livre foi maior do que o da
escrava, o que pode ser explicado pelo aumento da população forra, fenômeno que
acompanhou a decadência da mineração e a constituição do setor agropecuário mineiro.
Os viajantes que visitaram a província em tal período, como Jonhn Mawe (1809) e
Augusto de Saint-Hilaire (1818-1821), foram unânimes em observar o caráter primitivo da
economia das Minas: a pouca circulação de dinheiro; a produção em pequena escala de
gêneros de primeira necessidade (como arroz e feijão); o descaso dos trabalhadores em
relação às propostas de serviço contínuo e remunerado, bem como às inovações técnicas de
produção. Os viajantes perceberam um grande número de proprietários de poucos escravos,
ligados principalmente a atividades domésticas, no artesanato e na agricultura de
subsistência.
A atividade mineradora estimulou o rápido desenvolvimento da agricultura e da
pecuária, além da atividade metalúrgica, graças à grande concentração de mão-de-obra
exigida pela mineração e pelos implementos para a execução dessa atividade. A pecuária e
a agricultura se impuseram, de forma gradual, como as atividades econômicas principais
nas Minas no XIX – principalmente nas regiões Sul e Mata. A autora citada afirma que a
dispersão populacional pelo vasto território mineiro - que aconteceu entre 1800 e 1850 – se
deu graças ao retorno das formas de economia de subsistência, como tentativa de superar os
problemas econômicos sofridos por essa sociedade.
Em meados do século XIX, a província possuía basicamente dois principais pólos
econômicos: o Sul e a Mata com a produção voltada para a exportação e as antigas regiões
de mineração, com uma economia de subsistência e a produção voltada para mercados
locais, no máximo regionais. Em relação à utilização da mão-de-obra escrava, nas duas
primeiras regiões desenvolveram-se as grandes propriedades que concentravam a maior
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parte dos escravos. Na região Metalúrgica, ao contrário, era raro a concentração de muitos
escravos nas mãos de poucos proprietários. A maioria dos “fogos” tinha poucos escravos.
Para tratarmos do trabalho infantil, é necessário que façamos uma discussão sobre a
definição de criança ou jovem nesta época. Miriam Moreira Leite destaca que no século
XVIII o conceito de criança era inexistente. A autora observou que a infância se tornou
visível quando o trabalho deixara de ser domiciliar. De acordo com Horácio Gutiérrez e Ida
Lewkowicz, as Ordenações Filipinas quase não se referem ao trabalho infantil. O que
entendemos por criança, hoje, tinha existência jurídica como menor, órfão ou enjeitado. No
código Filipino, os menores eram os de idade inferior a 25 anos. Em 1831 a maioridade foi
reduzida para 21 anos.
Tarcísio Botelho considera que até os 7 anos, a criança não se envolvia em nenhuma
atividade econômica, porém o trabalho infantil era utilizado em pequenas tarefas no
domicílio onde as crianças viviam. A partir dos desta idade, segundo o autor “já se podia
exigir do pequeno trabalhador um maior envolvimento com atividades sistemáticas no
mundo do trabalho, as quais inclusive faziam parte do seu processo de formação
profissional. Com 14 anos, admitia-se que o jovem era um trabalhador completo”1. Tarcísio
Botelho considera como crianças, os indivíduos que tinham, na data das listas nominativas
por ele estudadas, de 7 a 13 anos, e jovens de 14 a 21.
Não havia um consenso em torno da conceituação de menor, criança, jovem e adulto
na sociedade oitocentista brasileira. Por isso, consideraremos como crianças - no que
concerne ao estudo da composição da força de trabalho - os indivíduos com idade igual ou
inferior a 14 anos, como os demógrafos e economistas atuais fazem.
Um outro conceito a ser discutido é o de “domicílio”. Segundo Ida Lewkowicz, o
domicílio está intimamente relacionado com a noção de “família” e “fogo”, ou seja, esses
conceitos referem-se a grupos domésticos, com ou sem a presença de relações de
parentesco e que estão sob a autoridade de um mesmo chefe. A principal atividade
econômica exercida em cada domicílio e a profissão na qual as crianças estão envolvidas,
correspondia, provavelmente, à mesma ocupação do chefe.
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BOTELHO,
Tarcísio.
O
Trabalho
de
http://www.race.nuca.ie.ufrj.br/abet/nac/19tarcisio.pdt, p.2.
crianças
e
jovens
do
Brasil
Imperial.
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Esta pesquisa, na atual fase, procura demonstrar em quais atividades econômicas as
crianças livres estão presentes em Mariana no século XIX. Trabalhamos com a lista
nominativa de Sumidouro (distrito de Mariana, hoje conhecido como Padre Viegas) do ano
de 1819. Dividimos os domicílios de acordo com a ocupação do chefe: 1) Comércio:
compreende, dentre outros, profissões como tropas e negócios2; 2) Artesanato: costureira,
fiadeira, paneleiro, carpinteiro e outros; 3) Mineração: inclui os faiscadores e mineiros e 4)
Sem classificação específica: são os arrieiro, os matapaos e os feitores.
Existem também os domicílios que não constam a ocupação do chefe ou que a parte
do documento onde se localiza esta informação está danificada, sendo impossível a leitura
da mesma. Estes correspondem a apenas 15.2% do total dos domicílios e era onde viviam
7% das crianças livres.
Sumidouro contava, em 1819, com 285 pessoas. As crianças livres somavam 58 e
existiam apenas 10 crianças escravas. Ao todo, existiam 66 domicílios, sendo que em 37
destes não vivia nenhuma criança e 29 contavam com pelo menos uma criança. Os
domicílios cujo chefe estava envolvido com atividades de mineração eram os principais
dentre aqueles onde não vivia criança alguma – traço que pode ser um indicador da crise
mineradora enfrentada na época. É importante observar também que quase 29% dos chefes
de domicílios moravam sozinhos.
Tabela 1. Distribuição dos domicílios em relação às atividades econômicas praticadas
pelos chefes.
Mineração
Não consta a
Comércio
ocupação do
Sem
Atividade
Artesanato
chefe do
classificação
domicílio
N. Abs.
26
16
10
8
6
%
39.4%
24.2%
15.2%
12.1%
9.1%
Fonte: Lista nominativa de Sunidouro do ano de 1819, encontrada no Arquivo Público Municipal de
Mariana, no códice 663.
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Esses termos são os mesmos encontrados na lista nominativa de Sumidouro.
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A principal atividade econômica praticada em Sumidouro na época era o artesanato.
Os chefes dos domicílios, que tinham este tipo de atividade econômica como a base
econômica, representavam 39.4% do total de fogos. A segunda principal ocupação do
distrito era a mineração, com 24.2% do total dos domicílios - tratava-se, portanto, de uma
região ainda em fase de transição econômica aurífera.
É importante observar a relação das crianças de Sumidouro com o chefe do
domicílio onde elas viviam: 69% das crianças eram filhos, 15% eram escravas e 12% eram
agregadas. Os fogos, que na listagem não apresenta a relação de crianças, correspondem a
4% do total dos domicílios. Os netos dos chefes foram classificados como agregados, uma
vez que, de acordo com o conceito de Ida Lewkowicz, os agregados são parentes, pobres,
forros, às vezes mães viúvas, que na maioria das vezes não tinham recursos para morar em
domicílios independentes.
Tabela 2. Relação das crianças com os chefes de domicílios.
Não consta a
Tipo de relação
Filhos
Escravos
Agregados
N. Abs.
47
10
8
3
%
69%
15%
12%
4%
relação
Fonte: Lista nominativa de Sumidouro, do ano de 1819, encontrada no Arquivo Público de Mariana, no
códice 663.
As crianças livres estavam majoritariamente presentes no artesanato (57%),
seguidas daquelas vinculadas às atividades sem classificação específica (arrieiros,
matapaos e feitores): correspondendo a 15% do total da população infantil. Existiam
apenas 10 crianças escravas no distrito. Uma morava em um domicílio cujo chefe fiava
algodões. As outras 9 crianças estavam distribuídas em domicílios onde os chefes
praticavam a mineração.
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Tabela 3. Distribuição das crianças livres em relação às
atividades econômicas dos chefes dos domicílios.
Atividade
Artesanato
Mineração
Sem
classificação
Comércio
Não constam a
ocupação do
chefe do
domicílio
N. Abs.
33
8
9
4
4
%
57%
14%
15%
7%
7%
Fonte: Lista nominativa de Sumidouro, do ano de 1819, encontrada no Arquivo Público de Mariana, no
códice 663.
A presença de crianças livres é majoritária nos domicílios onde a mão-de-obra
escrava não era utilizada. Mais ainda: o trabalho infantil estava vinculado, em sua maioria,
ao artesanato. Nossa pesquisa, na atual fase, pretende analisar o papel do trabalho infantil,
não como substituto do trabalho escravo em geral, mas daquele que exigia certo grau de
qualificação. Afinal, as ocupações de tecelão ou de fiandeira exigiam anos de aprendizado.
Como era realizada a transmissão desse saber? De acordo com nossa hipótese atual, ela
dependia do ensino doméstico, ou seja, de uma estrutura familiar. Portanto, é bastante
provável que, por trás da discussão do trabalho infantil do século XIX, esteja a questão da
maior ou menor estabilidade familiar da população livre e escrava.
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Bibliografia
BOTELHO, Tarcísio. O Trabalho de crianças e jovens do Brasil Imperial.
http://www.race.nuca.ie.ufrj.br/abet/nac/19tarcisio.pdt
GUTIÉRREZ, Horácio, LEWKOWICZ, Ida. Trabalho infantil em Minas Gerais na
primeira metade do século XIX. Locus: Revista de História. 5 (2): 9-21, 1999, p.9.
LEITE, Miriam Moreira. “A Infância no século XIX segundo memórias e livros de
viagem”. FREITAS, Marcos Cezar (org.). História Social da Infância no Brasil. São
Paulo: Cortez, 1997.
LEWKOWICZ, Ida. Espaço urbano, família e domicílio (Mariana no início do século XIX).
Termo de Mariana: história e Documentação. Ouro Preto: UFOP, 1998.
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista – Minas
Gerais no século XIX.. São Paulo: Brasiliense, 1988.
MARCÍLIO, Maria Luiza. (org.) Demografia Histórica. Novos Umbrais. São Paulo: 1997.
SILVA, Vera Alice Cardoso. Da Batéia à enxada: aspectos do sistema servil e da economia
mineira em perspectiva, 1800-1870. Revista do Departamento de História.
FAFICH/UFMG. Junho de 1988. N.º 6.
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