UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Thiago Corrêa Ramos A LITERATURA BRASILEIRA NA INTERNET: IMPLICAÇÕES DO DIGITAL NA NARRATIVA Recife, 2013 0 Thiago Corrêa Ramos A LITERATURA BRASILEIRA NA INTERNET: IMPLICAÇÕES DO DIGITAL NA NARRATIVA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito para obtenção do título de Mestre em Teoria da Literatura. Orientadora: Prof. Dra. Ermelinda Ferreira Recife, 2013 1 Catalogação na fonte Andréa Marinho, CRB4-1667 R175l Ramos, Thiago Corrêa A literatura brasileira na internet: implicações do digital na narrativa / Thiago Corrêa Ramos. – Recife: O Autor, 2013. 119p.: Il.: fig.; 30 cm. Orientador: Ermelinda Maria Araújo Ferreira. . Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, CAC. Letras, 2013. Inclui bibliografia. 1. Teoria da Literatura. 2. Narrativas (retórica). 3. Literatura eletrônica. 4. Internet. I. Ferreira, Ermelinda Maria Araújo (Orientador). II. Titulo. 809 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2013-35) 2 3 Esta dissertação é de Raizinho 4 AGRADECIMENTOS À Ermelinda, por ter acreditado neste projeto antes mesmo dele sequer ser um pré-projeto À Ale, pela tranquilidade contida no olhar À mainha, não só pelo apoio de sempre, como também por ter sido ela a estimular meu interesse pelo tema, presenteando-me com o livro Os anjos de Badaró Aos professores Anco, Lourival, Maria do Carmo, Anthony e Roland Walter pelas implosões causadas no meu cérebro durante as aulas Aos colegas do mestrado e do doutorado, que tornaram essa jornada acadêmica mais interessante À Diva e Jozaías, pela paciência e ajuda Ao amigo Cristhiano Aguiar, pela ajuda e incentivo no processo seleção À Fabiana e Pollyana, por terem aberto o caminho na UFPE para a pesquisa da literatura eletrônica Ao escritor Mario Prata e aos Anjos de Prata (em especial Maria Cremasco e Flavia Penedo), pela paciência em me ajudar a reconstruir a experiência de Os anjos de Badaró 5 "Não há exercício intelectual que não seja afinal inútil. Uma doutrina filosófica é no início uma descrição verossímil do universo; passam os anos e é um mero capítulo - quando não um parágrafo ou um nome - da história da filosofia", Jorge Luis Borges, no conto Pierre Menard, autor do Quixote 6 RESUMO Como os gêneros textuais, a criação literária também tende a se ajustar às especificidades de permanência e transmissão apresentadas pelos suportes, sejam eles a voz, a parede de uma caverna, o livro ou a tela de computador. Seguindo pela perspectiva de analisar as relações entre a mensagem e o seu meio, esta dissertação se propõe a estudar os efeitos da internet nas narrativas literárias criadas e veiculadas no ambiente digital, com foco específico na produção brasileira. A partir de um panorama que envolve o fenômeno dos e-mails apócrifos, dos blogs, da formação de coletivos literários e do Twitter; faz-se o contraponto entre as influências que essas narrativas receberam da cultura impressa e as suas estratégias para se adaptar ao meio digital. O trabalho ainda contempla dois estudos de caso: o do romance policial Os anjos de Badaró e a da narrativa hipertextual Tristessa. Escrito ao vivo pelo escritor Mario Prata em 2000, numa experiência que foi acompanhada on-line por mais de 400 mil internautas, Os anjos de Badaró problematiza questões inerentes à arte literária no ambiente virtual, a exemplo da noção de obra como processo, da possibilidade de interação, das implicações à figura do autor, da transformação da escrita como evento e da capacidade de mobilização social da internet. Já na análise de Tristessa, escrita por Marco Antonio Pajola, discute-se os efeitos do hipertexto na narrativa, como a autoria, a participação do leitor nos rumos da história e a noção de obra acabada. PALAVRAS-CHAVE: Narrativa digital. Literatura eletrônica. Internet. Os anjos de Badaró. Tristessa. 7 ABSTRACT Resembling textual genres, literary creation tends to correspond to the particularities of durability and transmission presented by media, be it their voice, a cave wall, book or a computer screen. Following the perspective of analyzing the relationship between the message and its media, this paper aims to study the effects of the Internet on literary narratives created and distributed in the digital environment, with specific focus on Brazilian production. From a panorama that involves the phenomenon of apocryphal e-mails, blogs, junction of literary groups and Twitter, a contrast is made between the influences that these narratives received from printed culture and their strategies to adapt to digital medium. This work also includes two case studies: the detective novel Os anjos de Badaró and the hypertext narrative Tristessa. Written live by Mario Prata in 2000, an experience which was followed online by over 400,000 internet users, Os anjos de Badaró discusses issues related to the literary arts in the virtual environment, such as the idea of work as a process, the possibility of interaction, the implications to the figure of the author, the changes in writing as an event and the ability of social mobilization on the web. In the analysis of Tristessa, written by Marco Antonio Pajola the effects of hypertext narrative are discussed, such as the author, reader participation in the course of history and the notion of the finished work. KEYWORDS: Digital narrative. Eletronic literature. Internet. Os anjos de Badaró. Tristessa. 8 SUMÁRIO Introdução.............................................................................................................................. 9 Os percursos da palavras.................................................................................................... 9 A literatura na internet....................................................................................................... 19 No Brasil............................................................................................................................ 24 1 Reminiscências do papel: estratégias de governança diante do caos........................... 28 1.1 Delimitação das obras................................................................................................. 1.2 Formação de coletivos................................................................................................. 1.3 Escritas de si................................................................................................................ 1.4 Breve e informal.......................................................................................................... 1.5 Busca pela sobrevivência no papel.............................................................................. 33 39 45 50 54 2 Literatura ao vivo: o caso de Os anjos de Badaró........................................................... 57 2.1 Metalinguagem: a informática como tema.................................................................. 2.1.1 Um olhar sobre o contexto histórico.................................................................... 2.1.2 Um olhar sobre a volatilidade digital.................................................................. 2.1.3 Um olhar sobre a identidade virtual.................................................................... 2.2 Aspectos de procedimento: interatividade.................................................................. 2.2.1 A literatura como espaço social........................................................................... 2.3 Aspectos de procedimento: evento.............................................................................. 58 60 63 65 67 71 75 3 Narrativa hipertextual: o caso de Tristessa..................................................................... 81 3.1 Tristessa....................................................................................................................... 86 3.2.1 O digital na narrativa........................................................................................... 91 3.2.2 A narrativa no digital........................................................................................... 96 3.2.2.1 Desorientações no labirinto do hipertexto................................................... 97 3.2.2.2 Variações de perspectiva pelo hipertexto................................................... 105 Conclusão............................................................................................................................. 108 Referências........................................................................................................................... 111 9 Introdução Os percursos da palavra Uma das maneiras para se observar as transformações ocorridas na história é através do desenvolvimento tecnológico. Criadas para suprir necessidades surgidas em determinados contextos históricos, as ferramentas abrem campos de conhecimento e estimulam mudanças no âmbito social. Cada descoberta é acompanhada pelo aprendizado de novas técnicas e o incremento de aptidões físicas, motoras e mentais no corpo humano. O mundo tem se ajustado sucessivamente às possibilidades trazidas por essas invenções, sejam elas a manipulação do fogo, o domínio da agricultura, a invenção da roda, a criação da linguagem e o desenvolvimento contínuo de suportes destinados ao armazenamento e transmissão de informações. É preciso, contudo, endossar a ressalva para não cair no determinismo, observando que essas transformações não são decretadas pelos avanços tecnológicos, mas possibilitadas por tais invenções. A reserva se mostra necessária para não deslocar a máquina para o papel central no desenvolvimento das mudanças, até então ocupado pelo homem, que cria os inventos e faz uso deles para desempenhar algo que outrora era impossível (XAVIER, 2009, p. 28-34). Neste estudo, seguiremos os caminhos que envolvem diretamente ou indiretamente a palavra. Desde o surgimento da escrita, do papiro, do papel, do códice, da imprensa, da fotografia, do cinema, do rádio, da televisão, da máquina de escrever... até o domínio dos computadores, com a internet e os frequentes lançamentos de softwares e serviços. Todos esses passos dados pelo homem trazem consequências, remexem as configurações de comunicação e de preservação da memória. Se por um lado eles facilitam a execução de alguma atividade, colaborando no registro e na difusão das informações; também provoca mudanças no status quo, gerando novos códigos e maneiras do homem se relacionar com o mundo, criando outras problemáticas para o conhecimento, para a organização social vigente e, consequentemente, influenciando mudanças de ordem estética e temática. Quando o homem ainda não conhecia a escrita e o registro se dava pela voz, a saída encontrada para o armazenamento de dados era a repetição, que – aliada à dramatização dos rituais, ao recurso da narrativa, às rimas e métricas – ajudava no processo de marcar fatos importantes para a comunidade, alimentando lembranças, transmitindo notícias e reativando feitos heroicos do passado, eventos relevantes para a sobrevivência e justificativas para a 9 organização da sociedade. Um bom exemplo para ilustrar o papel funcional da arte nesse contexto oral é o personagem Francisco, o Homem. O ancião, criado pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez no romance Cem anos de solidão, de quando em quando aparecia em Macondo relatando fatos dos povoados vizinhos através de suas canções. Caso alguém quisesse enviar um recado ou divulgar um acontecimento, ele inseria a mensagem na canção ao custo de dois centavos. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 54). Dramatização, personalização e artifícios narrativos diversos não visam apenas dar prazer ao espectador. Eles são também condições sine qua non da perenidade de um conjunto de proposições em uma cultura oral. Pode-se melhorar ainda mais a lembrança recorrendo às memórias musicais e sensório motoras como auxiliares da memória semântica. As rimas e os ritmos dos poemas e dos cantos, as danças e os rituais têm, como as narrativas, uma função mnemotécnica. (LÉVY, 1993, pp.82-83) Não por acaso, nesse momento oral da história humana as respostas para os fenômenos da vida se davam através dos mitos1, formas simples de explicação do mundo organizadas em narrativas para melhorar a organização dos fatos na memória e facilitar a sua compreensão pelos ouvintes. Uma razão para a preferência pela estrutura narrativa do mito era o fato da oralidade atrelar a mensagem ao contexto social. Para ela existir, era necessária a presença tanto do locutor quanto do interlocutor, o que implicava na sincronia de tempo e espaço. Até então, a mensagem estava atrelada ao seu determinado contexto e contava com o auxílio da expressividade e do tom de voz do seu emissor para uma melhor transmissão das informações. Com os avanços da linguagem escrita, o homem se vê diante da possibilidade de se desprender da mensagem, seu pensamento passava a existir mesmo com o silêncio da voz. O homem já não precisava estar no mesmo local que seu interlocutor para transmitir conhecimento, não precisava nem conviver com o interlocutor no mesmo período histórico, a morte deixava de implicar silêncio, não era mais impedimento para que a mensagem continuasse a existir mesmo após o ponto final da vida. Inaugurava-se então uma nova lógica para o homem lidar com o espaço e o tempo. A mudança resulta no distanciamento entre os dois elos da comunicação, na ruptura espacial e temporal entre o emissor e o receptor, que passavam a não coexistir no mesmo contexto. Com isso, a mensagem se desvinculava do contexto original, perdia a ênfase da entonação, da dramaticidade facial e da expressão corporal do locutor. Sem a presença desse 1 No livro Formas Simples, o teórico André Jolles diferencia pela grafia o Mito (em caixa alta) dos mitos (em minúscula). Segundo ele, o Mito é uma forma simples que implica na disposição mental da sociedade em entender a mensagem como verdade, dada a inexistência do conceito de representação ficcional; enquanto os mitos são atualizações, já não se propõem a fundar o mundo, trazendo a diferenciação entre o verídico e o ficcional (JOLLES, 1976, p. 90). 10 guia, que preenchia lacunas do discurso com gestos e podia tirar eventuais dúvidas do receptor, a compreensão da mensagem escrita fica ameaçada. “Além disso, ao falar, tendemos a reagir a cada situação, seguindo o tom e o gesto até de nosso próprio ato de falar, já o escrever tende a ser uma espécie de ação separada e especializada, sem muita oportunidade e apelo para a reação.” (MCLUHAN, 2007, p. 97). Segundo McLuhan, a mudança do plano auditivo para o visual ocasionada pela escrita traz como consequência hábitos de individualismo e de intimidade. Em outra passagem do seu livro Os meios de comunicação como extensões do homem, Marshall McLuhan afirma na página 105 que as culturas fonéticas permitem, através da escrita, a repressão de sentimentos e emoções que emergem durante a ação. O teórico Pierre Lévy, por sua vez, enxerga na escrita a razão para a aparição de textos com maior profundidade, capazes de provocar reflexões e se desprenderem do recurso narrativo para tratar de temas mais abstratos, que não necessariamente correspondessem aos fenômenos naturais. No livro As tecnologias da inteligência, ele relaciona a escrita com a agricultura, desde a origem do termo página, que vem de pagus em latim e significa o campo do agricultor. Para ele, a caça (tal como o discurso oral) obtinha resultados imediatos, com seus respectivos fracassos ou sucessos na hora; enquanto que a agricultura (tal como a escrita) demanda tempo, organização e a espera de um intervalo de tempo para a colheita: “com todos os riscos de mal-entendidos, de perdas e erros que isto implica.” (LÉVY, 1993, p. 88). Isso explica o fato de como os mitos são lidos. Aquilo que um dia já foi visto com o peso de uma verdade responsável por fundar o mundo, hoje contrasta com o conhecimento científico e terminam por serem lidos como literatura. É justo em cima dessa ideia de desprendimento do tempo que o escritor argentino Jorge Luis Borges trabalha no conto ensaístico Pierre Menard, autor do Quixote, presente no volume Ficções. Na história, Pierre Menard é um romancista que dedicou parte da vida a um projeto literário ambicioso, o de escrever o Quixote. Não se tratava de fazer uma cópia, mas de escrever “palavra por palavra e linha por linha” idênticas às de Miguel de Cervantes. Menard acreditava que o esforço resultaria numa obra original, que – lida no século XX, sob a consciência de se tratar de uma obra atual, assinada por Pierre Menard – ganharia outro significado, porque o contexto histórico seria outro e, por consequência, as motivações e questionamentos da época seriam outros. (BORGES, 2007, p. 34-45) Mais uma vez, a linguagem se adapta às novas condições tecnológicas de armazenamento da mensagem. Para suprir as deficiências da distância, a saída encontrada foi a inclusão de comentários para explicar passagens mais dúbias, indicar caminhos para o 11 entendimento e ajudar no processo de recontextualização da obra. Lévy afirma que a escrita e o acúmulo de informações proporcionou o rompimento do círculo vicioso da oralidade exigido para a manutenção da memória e organizou o tempo numa lógica linear, dentro de uma sequência de fatos, o que permitiu o desprendimento da mensagem do seu contexto e confronto do receptor com outras realidades espaço-temporais. A descontextualização das informações, por consequência, gerou sutilezas interpretativas, desenvolveu uma tradição de se repensar o texto para tentar entendê-lo, provocou o surgimento das teorias, suscitando a pretensão de se atingir à universalidade: Este tipo de memória objetiva, morta, impessoal, favorece uma preocupação que, decerto, não é totalmente nova, mas a partir de agora irá tomar os especialistas do saber com uma acuidade peculiar: a de uma verdade independente dos sujeitos que a comunicam. A objetivação da memória separa o conhecimento da identidade pessoal ou coletiva. O saber deixa de ser apenas aquilo que me é útil no dia a dia, o que me nutre e me constitui enquanto ser humano membro desta comunidade. Torna-se um objeto suscetível de análise e exame. A exigência da verdade, no sentido moderno e crítico da palavra, seria um efeito da necrose parcial da memória social quando ela se vê capturada pela rede de signos tecida pela escrita. (LÉVY, 1993, p. 95) Amparado no trabalho do filólogo inglês Eric Havelock, que se dedicou ao estudo da introdução da escrita na cultura grega, Pierre Lévy compartilha a ideia de que as novas condições postas pelo alfabeto e a capacidade de registro dos pergaminhos foram fundamentais para o surgimento da filosofia, das ciências, da história, do direito. Tanto que esses campos do conhecimento não preexistiam à escrita. Segundo eles, embora não deixem de considerar Sócrates um oralista, o filósofo grego quebrou a tradição épica e lírica, adotando uma sintaxe e um vocabulário que não explorava a memória poética comum à oralidade primária2 (LÉVY, 1993, p. 94). Paralelamente, a transição da cultura oral para a letrada é recheada por uma série de outras inovações tecnológicas que também condicionaram mudanças sociais e de linguagem. A trajetória da escrita está ligada ao desenvolvimento dos materiais de registro, sendo acompanhada por transformações na elaboração dos textos, no método de organização das informações, na forma de leitura, na abrangência do conhecimento e na estrutura social, política e financeira. Do papiro na Antiguidade ao pergaminho na Idade Média e ao papel de origem chinesa no século II (mas que só chega ao Ocidente através dos árabes após a invasão da Península Ibérica no século VIII), a escassez dos suportes de armazenamento sempre foi um 2 Lévy diferencia a oralidade primária de acordo com a sua finalidade principal. Para ele, o objetivo da primária é gestão da memória social, deixando a expressão pessoal em segundo plano. 12 fator de concentração das informações nas mãos de certos grupos, não por acaso os mais próximos ao poder. McLuhan, por exemplo, chega a atribuir ao alfabeto fonético a transferência do poder dos sacerdotes para os militares e à tipografia a unidade da sociedade francesa no século XVIII, com seus princípios de uniformidade, continuidade e linearidade que ajudaram a vencer o modelo feudal (2007, p. 29, 102). No estudo A aventura do livro experimental, a pesquisadora de comunicação e semiótica Ana Paula Mathias de Paiva conta que, dada a escassez de livros, as leituras eram realizadas coletivamente, em voz alta, para ampliar o acesso à obra. Um quadro que só viria a se alterar com o aumento da demanda por livros no século XIV, alimentada pela implantação das instituições de ensino. Com um mercado de leitores a ser explorado, investidores se dispuseram a financiar pesquisas para o emprego da xilografia e para o desenvolvimento dos tipos móveis de Gutenberg, como uma maneira de aumentar a produção de cópias, até então feitas manualmente. Devido ao crescimento das tiragens, acrescido dos avanços que baratearam e facilitaram a portabilidade dos livros; as leituras se individualizam, o acesso ao livro se libera das sessões públicas de leitura em voz alta e as pessoas passam a criar o hábito de ler isoladas, em silêncio. O ato da leitura ainda passaria por outra modificação com a invenção do códex a partir do século II a. C. O formato, que se aproveitava da maior resistência do pergaminho para dobrar as folhas e costurá-las, criava a pausa na leitura, dando a dimensão da página por inteiro e a continuação pelo ato de folhear. Com o Cristianismo, entre os séculos II e IV, o livro se aproxima ao formato que hoje conhecemos, com a separação de palavras, divisão em capítulos, títulos e paginação para organizar as informações, facilitar a leitura e permitir o acesso direto a elas, sem necessariamente recorrer a entrada inicial dos livros. Por sua vez, os incrementos também modificam o processo de criação das obras. As letras, além de informar, ganham a função de adornar e criar um vínculo especial nos livros medievais. No século II, os romanos já empregavam estilos de fontes diferentes para atividades específicas – a Quadrata para documentos de valor, a Rústica em documentos informais, avisos e sinalizações, e a Cursiva para uso cotidiano (PAIVA, 2010, pp. 17-29). De maneira semelhante, a impressão mecânica provocou uma nova reflexão sobre as letras nos séculos XV e XVI: A escrita – verbal e não verbal –, ao longo das impressões, sente também a necessidade latente de recriação, reforma, adaptação. A decoração dos manuscritos fundamenta um panorama das artes visuais à época – como a poesia em forma de caligrama do livro Sylvae, de 1592. Acentua um interesse leitor. As novidades todas trazem perplexidade e eventuais desvios do padrão. Os ritmos novos inspiram a arte 13 e o pioneirismo. Uma sociedade parece prestes a desaparecer para o surgimento de uma outra, letrada. O livro revaloriza a imagem como narração [...]. Imagens tradutoras do texto. Complementares ao conteúdo. Formadoras de atenção e informação. Estruturantes junto ao texto, ornamentais e essenciais, não mais supérfluas, extras. Imagensenunciados. (PAIVA, 2010, pp. 45-46) E mais uma vez recorremos a McLuhan para lembrar suas observações sobre o efeito da máquina de escrever na literatura, permitindo aos escritores uma visão mais aproximada de como ficariam suas obras depois de impressas. Ele chega a sugerir, inclusive, que a prática do verso livre é consequência da margem direita não justificada da página na máquina de escrever. Segundo ele, a fusão entre a composição da página com a impressão, modifica a relação dos autores com o texto. Se por um lado a máquina de escrever suprime a emoção dos manuscritos com a sua padronização tipográfica (que a indústria editorial tem se empenhado a resgatar com publicações luxuosas de versões fac-símiles de manuscritos de obras célebres); por outro ela oferece um controle maior dos autores sobre suas obras, fazendo com que eles passem a explorar os artifícios da tipografia como recursos de expressividade: O poeta antigo, separado da forma impressa pelos diversos estágios, não dispunha desta liberdade de acentos orais propiciada pela máquina de escrever, o poeta pode dar saltos como Nijinsky e meneios e passinhos de dança chaplinianos. Justamente porque ele é o público para suas próprias audácias mecânicas, nunca deixa de reagir ao seu próprio desempenho. (MCLUHAN, 2007, p. 294) Em síntese, o que McLuhan diz, a exemplo de Pierre Lévy e Antonio Carlos Xavier, é que os novos meios surgem para responder a certas necessidades do homem, em determinado contexto. As invenções de técnicas e suportes da escrita trazem características específicas de funcionamento, abrem caminhos para a comunicação e o conhecimento humano, modificam as configurações sociais, colocam-se como novos filtros para a relação do indivíduo com o mundo e terminam por preparar o terreno para alterações de linguagem, seja na adoção de símbolos, na maneira de capturar o real, de se comunicar com o interlocutor ou mesmo de reagir a um contexto hegemônico, opressor, estagnado. Ao mesmo tempo, além de todas essas transformações ocorridas que abordamos na trajetória da palavra, ela ainda se revela suscetível a inovações de outras áreas. Embora até o momento tenhamos nos centrado no percurso da palavra através de suportes voltados para a escrita, é preciso fazer a ressalva de que a literatura integra um contexto maior, que foge ao domínio da arte e da indústria editorial. Da mesma maneira que aconteceu com o desenvolvimento dos suportes, o aperfeiçoamento da estruturação da informação e do aumento da produção de livro; transformações na linguagem e na estética também ocorreram 14 por influência de outros fatores que aparentemente estão além do círculo literário. São mudanças técnicas que acabam atingindo a arte literária, motivando os artistas a repensarem o papel dos seus instrumentos de trabalho e os dotarem de significado. A exemplo do surgimento do discurso filosófico condicionado pela escrita, outros pensadores observam que o desenvolvimento tecnológico na capacidade de registro e armazenamento de dados se reflete tanto na busca por uma apreensão mais próxima do real, como pela reação inversa, abrindo novos caminhos em direção ao abstrato. No famoso artigo A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin exemplifica isso através da fotografia, cujo surgimento influenciou no processo de ressignificação da pintura: “ela reagiu ao perigo iminente com a doutrina de arte pela arte, que é no fundo uma teologia da arte. Dela resultou uma teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura, que não rejeita apenas toda função social, mas também qualquer determinação objetiva” (BENJAMIN, 2010, p. 171). Uma mudança que na literatura, para Benjamin, primeiro foi alcançada por Mallarmé. Por essa mesma trilha, outro teórico da Escola de Frankfurt, no caso Theodor Adorno, explica como a reportagem e os novos veículos da indústria cultural (em especial o cinema) levaram a literatura a se diferenciar, buscando outro percurso estético. Segundo ele, a resposta vem com James Joyce e sua proposta estética de “vincular a rebelião do romance contra o realismo a uma revolta contra a linguagem discursiva.” (ADORNO, 2003, p. 56). Uma boa maneira de entender esse processo de apropriação e reconfiguração dos meios é através do desenvolvimento dos chamados gêneros textuais. Para um melhor uso do potencial do veículo, a tendência é que convenções sejam elaboradas. À medida que o homem se adapta a novas situações, certas atitudes vão se tornando hábitos, até virarem regras. Falamos “alô?” ao atender ao telefone, iniciamos uma carta formal com um “Prezado Senhor” e o narrador esportivo grita “gol” quando um dos times de futebol muda o placar. Tais convenções geram os gêneros textuais, recursos linguísticos que se desenvolvem feito estruturas de organização das informações para facilitar a comunicação, como explica a pesquisadora Carolyn Miller: Podemos compreender o gênero, especificamente, como este aspecto da comunicação situada que é capaz de reprodução, que pode manifestar-se em mais de uma situação, em mais de um espaço-tempo concreto. As regras e os recursos de um gênero fornecem papéis reproduzíveis de falante e de ouvinte, tipificações sociais de necessidades sociais e exigências recorrentes, estruturas tópicas (ou “movimentos” e “passos”) e modos de relacionar um evento a condições materiais, transformando-as em restrições ou recursos. Em suas representações de espaço-tempo e na intervenção espaço-tempo, o gênero se torna um determinante do kairos retórico – um meio pelo qual definimos uma situação no espaço-tempo e compreendemos as oportunidades que ela oferece. (2009, p. 52) 15 Cada atividade humana possui objetivos específicos, características particulares e, justamente por isso, precisam de ferramentas próprias, que incluem gêneros e vocabulários diferenciados. Na atividade jornalística, por exemplo, existem diversos gêneros, como o editorial, a crônica, a matéria, a reportagem e o resumo da novela, cada qual regido por normas próprias e atendendo a uma necessidade particular. Este estudo, por exemplo, tem sido construído conforme o gênero da dissertação, escrito de acordo com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que estabelecem desde o tamanho da letra, a fonte Times New Roman e o espaçamento de 1,5 entrelinhas; ao modo como destacar as citações com mais de três linhas, referenciar as teorias usadas e organizar o trabalho dividindo-o em introdução, capítulos, conclusão e bibliografia. No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação. Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis. O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos da relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. (BAKHTIN, 2003, p. 266) E se existe a classificação de gêneros textuais, então é porque algo se diferencia. Os gêneros são construídos em cima de regras para facilitar a sua produção, identificação e leitura. Eles servem para organizar a comunicação, estabelecem limites do código para permitir o entendimento entre as partes, da mesma maneira como uma luta de boxe só é possível por conta do regulamento. É uma espécie de contrato entre o emissor e o receptor. Isso, contudo, não quer dizer que as regras sejam rígidas a ponto de se tornarem estáticas. Como são ligados às atividades sociais e estas se modificam com o avançar da história, os gêneros também sofrem com as ações do tempo. mesmo apresentando alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa. Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio-culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita. (MARCUSCHI, 2002, p. 19). 16 Com a popularização dos computadores e o advento da internet não tem sido diferente. Um vasto campo se abre para a comunicação, modificando as estruturas convencionais da sociedade e a maneira dos indivíduos se comportarem. Pensada originalmente como um projeto militar do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, durante os tempos de Guerra Fria, a internet surgiu em setembro de 1969 como a solução para que os canais de comunicação entre órgãos estratégicos não pudessem ser interrompidos por bombardeios. O projeto de montar uma rede de computadores foi desenvolvido pela Advanced Research Projects Agency (Arpa), órgão incumbido de pesquisas científicas e tecnológicas para usos militares dos Estados Unidos, o que levou a rede ficar conhecida como Arpanet. A estreia da rede se deu menos de três anos depois, em janeiro de 1972, quando computadores de quatro centros de pesquisas da costa leste americana foram interligados. Em 1974, a rede já interligava cem computadores através de cabos subterrâneos da infraestrutura das telecomunicações americanas. Mas foi com o desenvolvimento do protocolo TCP/IP (Transfer Control Protocol/Internet Protocol), pelo matemático Vinton Cerf e o engenheiro Robert Kahn, que as diversas conexões Arpanet puderam se integrar e formar uma grande rede internacional, daí o termo internet. Entre 1975 e 1982, avanços como a invenção do FTP (File Transfer Protocol) e o e-mail para a troca de arquivos e de mensagens eletrônicas foram fundamentais para se chegar à funcionalidade que a internet tem hoje. Mas até então a rede funcionava basicamente no ambiente acadêmico, com o envio de boletins informativos, troca de mensagens e compartilhamento de arquivos (VIEIRA, 2003, p. 3-7). Essa situação só foi alterada a partir de 25 de dezembro de 1990, quando o físico inglês Tim Berners-Lee realizou a primeira demonstração de acesso a arquivos de hipertexto na internet. “Cada documento então recebeu um endereço, denominado Uniform Resource Locator ou URL, composto por um identificador de hipertextos – o famoso http, de Hypertext Transfer Protocol – e um sinal de que ele estava disponível na Web (o célebre www).” (VIEIRA, 2003, p. 7). Com a estrutura de acesso já resolvida, o passo seguinte foi facilitar o manuseio dessas ferramentas. Uma missão que coube ao estudante Marc Anderson, da National Center for Supercomputing Applications (NCSA). Em 1993 ele apresenta o software Mosaic, o primeiro navegador da história, responsável pela popularização da internet. Isso porque, com o Mosaic, a internet trocava o visual repleto de letras, típico do ambiente MSDOS, para entrar no sistema operacional Windows, transformando-se numa interface gráfica. “Essa nova ‘cara’ fez com que as pessoas pudessem não apenas compartilhar textos e 17 arquivos, como ocorria até então, mas também imagens, sons e gráficos em locais de atualização dinâmica, denominados sites.” (VIEIRA, 2003, p. 8) A partir de então, a internet deixava de ser algo restrito aos programadores para se tornar acessível a um público potencialmente mais amplo. Valendo-se das subsequentes melhorias na infraestrutura de navegação, de um visual cada vez mais amistoso aos analfabetos em programação e dos sucessivos aumentos no desempenho e na capacidade de armazenamento dos computadores; a internet não só conquistou mais e mais usuários, como fez com que eles trabalhassem em seu benefício, ampliando as ramificações de sua teia de conteúdo. Através da oferta de serviços cada vez mais velozes, fáceis de manusear e baratos; a web logo adquiria uma das suas características mais marcantes, que é o seu cunho enciclopédico com tendências para o caos, capaz de abrigar informações das mais diversas, das mais variadas fontes, descentralizando (ou melhor, pulverizando) a emissão das mensagens ao permitir que cada usuário pudesse se expressar e publicar na rede. Tais características impõem desafios à gestão de informações, reconfiguram a maneira de transmissão e armazenamento de dados que há séculos era ditada pelo meio impresso. A diretora do Instituto de Estudos em Novas Mídias da Universidade de Minessota, Nora Paul, que vem pesquisando a narrativa na área de comunicação, acredita que os princípios de linguagem da internet já foram estabelecidos, elencando quatro propriedades próprias do suporte digital: enciclopédica, espacial, processual e participativa. Apesar disso, ela observa que um dos problemas para se empreender uma análise do conteúdo digital é a deficiência nos critérios de avaliação, ainda impreciso e baseado em modelos da mídia tradicional. Algo que pode ser considerado uma contradição, afinal as especificidades do meio digital põem em discussão valores fundamentais do meio impresso, como a autoria, o papel do leitor, a noção de obra acabada, de fechamento físico que fixa uma temporalidade, no intuito de elevar a durabilidade e manter sua permanência na posteridade. Aos poucos, à medida que a infraestrutura da rede vai se formando, novos gêneros procuram responder às especificidades da imaterialidade digital, da vastidão enciclopédica da web e da velocidade da internet. Embora a rede mundial de computadores já tenha se consolidado como um importante veículo de comunicação, ela ainda se encontra em processo de amadurecimento, reacomodando-se a cada avanço tecnológico e a cada novidade que surge nas ondas do ciberespaço, num processo de mutações constantes que levou o linguista Luiz Antônio Marcuschi chamar a internet como “um imenso laboratório de experimentações de todos os formatos.” (2009, p. 31). Em menos de duas décadas, o ambiente virtual já acumula uma série de transformações causadas pelas ferramentas de busca, a difusão dos sites, das 18 salas de bate-papo, dos programas de compartilhamento de arquivos P2P (abreviação do termo peer to peer, que em português significa pessoa a pessoa; sendo o Napster, de 1999, o mais famoso deles), o surgimentos dos blogs, do microblog Twitter, das redes sociais. Cada etapa envolve mutações de linguagem, estabelecimento de convenções e ajustes feitos para os usuários se adequarem às características e potencialidades das ferramentas. O mesmo ocorre com a literatura, que a exemplo de outras áreas artísticas vem se readaptando ao novo cenário. Tanto no plano mercadológico, como no plano estético. Tanto no meio físico, quanto no virtual. Nesse processo de reacomodações, acreditamos que literatura se revela uma trilha interessante a ser percorrida na busca por respostas. Afinal, o discurso literário tem como característica intrínseca a reflexão do suporte, de transcender a forma, utilizando-a não apenas para transmitir o conteúdo, mas também para incorporar esse próprio conteúdo. A literatura na internet Considerando a atual penetração da informática nas diversas atividades humanas, constata-se que já há algum tempo, e sem muito alarde, a literatura aderiu às facilidades do meio digital. Por mais que o mercado editorial ainda se desenvolva primordialmente através do consumo de toneladas de papel, da impressão de páginas e páginas que são despejadas na forma de livros em estantes das livrarias e bibliotecas; o processo de composição das obras literárias é praticamente todo feito com o auxílio do computador. Agora mesmo – apesar de vocês estarem lendo estas palavras em cópias impressas, devidamente encadernadas como manda o regimento da Pós-graduação em Letras da UFPE – a produção desta dissertação está acontecendo na versão 2010 do processador de texto Microsoft Word. Além de receber estas palavras, o software também facilita a revisão ortográfica do texto, sugere sinônimos quando preciso evitar a repetição de termos, indica erros sublinhando expressões e concordâncias incorretas, exibe (num menu próprio à esquerda) a estrutura de tópicos adotada neste estudo para ajudar na navegação do texto, permite que se acrescente e se faça uma constante troca na ordem de parágrafos inteiros através dos comandos copiar (CTRL C) e colar (CTRL V), além de simplificar a tarefa de inserir imagens. 19 Figura 1: Versão 2010 do Microsoft Word, programa usado na escrita desta dissertação. Processadores de texto têm sido uma ferramenta cada vez mais comum na elaboração de textos, conferindo uma parcela digital à produção editorial brasileira, ainda que ela seja majoritariamente direcionada ao meio impresso. Tudo é feito digitalmente, desde a criação escrita à diagramação da obra e da elaboração da capa. Inclusive as vendas, cada vez mais populares com o desenvolvimento dos mecanismos de segurança do comércio eletrônico. Ao mesmo tempo, boa parte dessas obras e ainda outras tantas, que foram publicadas quando nem se imaginava a existência dos computadores, tem marcado presença no ambiente digital e terminam por incentivar a leitura nos próprios dispositivos computacionais, numa escala que tende a se elevar mediante o aperfeiçoamento dos e-readers (aparelhos voltados para a leituras de arquivos digitais que simulam as propriedades dos livros, como o tamanho, espaço para anotações, possibilidade de grifos e necessidade de iluminação externa) e tablets, dispositivos que suportam uma variedade maior de formatos, sendo capazes de executar arquivos de áudio, imagem, texto e vídeo. Mas seja o livro impresso que foi escrito e originado no computador ou o livro escrito à mão, publicado em papel pelo processo tradicional de tipografia móvel e que depois foi escaneado e transformado num arquivo de PDF, nem um nem outro podem ser considerados exemplos de literatura eletrônica. O termo – utilizado por Katherine Hayles, que é uma das principais pesquisadoras do tema no mundo – procura distinguir a literatura impressa que tenha sido digitalizada daquela que ela chama de literatura eletrônica pelo critério da condição essencial do computador na constituição da obra. “A computação não é periférica nem incidental à literatura eletrônica, mas central para seu desempenho, execução e interpretação.” (HAYLES, 2009, p. 62) 20 De acordo com a Eletronic Literature Organization (ELO)3, o termo literatura eletrônica se refere, em tradução livre do inglês, às “obras com aspectos literários importantes que tiram proveito das capacidades e dos contextos oferecidos pelo computador, conectado à rede ou não.” (tradução nossa)4. Ainda que o conceito da ELO se revele impreciso, Hayles enfatiza no livro Literatura eletrônica: novos horizontes para o literário que a tecnologia deve ser um aspecto sine qua non para a existência das obras em literatura eletrônica: “Mais do que ser marcada pela digitalidade, a literatura eletrônica é de modo ativo formada pela mesma.” (2009, p. 61). Segundo a pesquisadora, esse tipo de obra não migra para o digital, ela já nasce nesse ambiente, é pensada e concebida nos paradigmas do meio digital, apresentando uma espécie de DNA eletrônico que é baseado no código de programação dos computadores, a tal ponto de inviabilizar a existência fora do ambiente digital, numa dependência pelos softwares que faz com que certas obras fiquem menos conhecidas por seus títulos do que pelo nome dos programas que as criaram. Devido a essa dependência, Hayles observa que a história da literatura eletrônica se entrelaça com a evolução dos equipamentos tecnológicos, fazendo com que ela acompanhe cada passo dos avanços da informática. Se levarmos em consideração todas as transformações ligadas à tecnologia que envolveram mudanças em maior ou menor grau em nossas vidas nas últimas duas décadas – como a difusão da internet, melhoria na rede de conexões, aumento da velocidade, barateamento do acesso e dos computadores, ascensão dos chats, programas de compartilhamento de arquivos, portabilidade dos dispositivos, blogs e redes sociais – podemos explicar a abrangência e a diversidade que a literatura eletrônica alcançou nesse cenário em constante mutação. Citando a pesquisadora em poéticas digitais Adalaide Morris, Hayles justifica esse entrelaçamento da literatura eletrônica com o desenvolvimento tecnológico por meio da necessidade de termos que compor o discurso como uma tentativa de organizar aquilo que já sabemos do mundo: A isso eu acrescentaria que ele também cria as práticas que nos ajudam a saber mais sobre as implicações de nossa situação contemporânea. Tanto quanto o romance, ambos ajudaram a criar e deram voz ao sujeito liberal humanista nos séculos XVII e XVIII, assim a literatura eletrônica contemporânea é tanto reflexão quanto representação de um novo tipo de subjetividade caracterizada pela cognição distribuída, uma ação em rede que inclui atores humanos e não humanos e limites flexíveis dispersos por espaços reais e virtuais. (HAYLES, 2009, p. 48) 3 Organização sem fins lucrativos, fundada em 1999, que reúne escritores, artistas, professores, pesquisadores e programadores com o objetivo de “incentivar e promover a leitura, escrita, ensino e compreensão da literatura como ela se desenvolve e persiste em um ambiente digital mutável.” 4 http://eliterature.org/about/ 21 Assim, Hayles observa que a literatura eletrônica está inserida num contexto histórico e, por isso, precisa dialogar com uma rede de meios de comunicação digital, como o universo dos jogos eletrônicos, do cinema e da cultura digital. Isso confere à literatura eletrônica um caráter híbrido, onde “ela inclui uma ‘zona de comércio’ em que diferentes vocabulários, especialidades e expectativas se reúnem para ver o que poderá resultar dessa ligação.” (HAYLES, 2009, p. 21). Como vimos anteriormente, esse processo de negociação acaba se refletindo na quantidade de gêneros que são desenvolvidos no âmbito digital. Para amenizar a instabilidade, Nora Paul propõe no artigo Elementos das narrativas digitais cinco eixos genéricos que devem ser observados na tentativa de enquadrar o conteúdo analisado. Em linhas gerais, o primeiro elemento se refere à mídia, cuja classificação deve ser feita a partir da combinação de mídias (individual ou múltipla); o segundo aborda a ação, tanto em relação ao movimento do conteúdo quanto à necessidade de participação do internauta para que haja a movimentação. Outro elemento diz respeito ao relacionamento entre o conteúdo e o usuário, podendo variar entre linear e não-linear, padrão ou customizável, calculável ou não, manipulável ou fixo, expansível ou não. A classificação ainda pode ser realizada através do uso dos links e da estrutura de comunicação, se a mensagem é ao vivo, se há moderações ou pelo interesse e número de pessoas envolvidas. Já o site da ELO aposta em critérios mais empíricos, listando alguns dos principais gêneros que são praticados na literatura eletrônica, como a poesia e ficção hipertextual (tanto on-line, quanto off-line); poesia cinética apresentada em Flash e outras plataformas; instalações de arte computadorizadas que pedem aos visitantes para serem lidas ou que evidenciem outros aspectos literários; chatterbots, espécie de programas que simulam o batepapo do leitor com um personagem fictício via chat; ficções interativas; histórias que se apropriam das formas de e-mails, mensagens de celular ou blogs; poema e histórias geradas por computador em cima do processo de interatividade; projetos de escrita colaborativa onde os leitores também podem contribuir na elaboração do texto; e performances literárias on-line que desenvolvem novas maneiras de escrita (ELO). Hayles, por sua vez, ainda lista outras categorias como as narrativas locativas (que se valem dos dispositivos móveis e dos aparelhos de GPS para compor histórias através da presença geográfica do leitor) e os codeworks, trabalhos que se propõem a evidenciar para os leitores a matéria dos códigos de programação que atuam nos bastidores das obras digitais. No momento, o que nos interessa observar é a dimensão multimídia que a grande maioria desses gêneros abraça. Pierre Lévy, contudo, prefere diminuir o aspecto multimídia das obras digitais para ressaltar a importância do recurso do hiperlink (como veremos melhor 22 no capítulo 3). No entanto, os pesquisadores concordam que a apreciação das obras digitais exige novas aptidões dos leitores. Hayles, inclusive, defende que a subvocalização característica da leitura impressa deixa de ser a única intenção das obras na tela do computador e, portanto, já não deve servir de parâmetro essencial para a análise da literatura eletrônica. Nesse sentido, os estudiosos no assunto também falam da necessidade em incorporar outros critérios para a avaliação crítica, alertando que as noções da literatura impressa fariam com que boa parte das características da literatura eletrônica passassem despercebidas na análise. Segundo Hayles, ignorar isso traz implicações para a observação da cultura contemporânea em geral, incluindo a literatura impressa contemporânea e a crítica literária, repleta de intermediações com o componente tecnológico: Elas incluem o intercâmbio das cognições humana e de máquina; a reimaginação do trabalho literário como um instrumento para ser jogado, em que as dinâmicas textuais guiam o jogador em direção a crescentes habilidades interpretativas e funcionais; a desconstrução da relação entre som e grafia e sua rearticulação dentro de ambientes nos quais a linguagem e o código estão em interação ativa; a ruptura da narrativa e a consequente reimaginação e representação de consciência não como um fluxo contínuo, mas como o resultado emergente de interações locais entre processos neurais progressivos e agentes subcognitivos, biológicos e mecânicos; a desconstrução da temporalidade e sua reconstrução como fenômenos emergentes surgindo de interações entre multiagentes; e o desempenho de uma coevolução adaptativa cíclica entre os seres humanos e as máquinas inteligentes previstas como cognoscentes corporizadas em diferentes mídias em diferentes níveis de complexidade. (HAYLES, 2009, p. 95) Devido a essa profusão de experiências e novas perspectivas de análise, a teórica defende que se amplie o termo literatura para atender as diversas experiências artísticas do meio digital, ainda que se deseje manter o critério de “arte verbal” da literatura. No site da ELO essa relação com o verbal aparece de forma mais clara: Literatura eletrônica muitas vezes se cruza com artes conceituais e sonoras, mas a leitura e a escrita continuam centrais nas artes literárias. Essas atividades, não ligadas às páginas e ao livro impresso, agora se move livremente por galerias, espaços de performance e museus. Mas a literatura eletrônica não reside em qualquer meio ou instituição. (ELO, tradução nossa) Já Hayles propõe o uso do termo literário, “definindo-o como trabalhos artísticos criativos que interrogam os contextos, as histórias e as produções de literatura, incluindo também a arte verbal da literatura propriamente dita.” (2009, p. 22). Em outra passagem do livro Literatura eletrônica, ela aponta dificuldades de se estabelecer limites da literatura eletrônica entre artes digitais, bem como os jogos de computador. Apesar disso e da sua proposta de distinção de termos, a pesquisadora ainda sustenta o estudo das obras digitais no 23 campo da literatura ao observar que os próprios cursos de Letras também ampliaram seus critérios de literário, citando como exemplo a adoção das teorias dos estudos culturais, póscoloniais e da cultura popular. No Brasil No Brasil, contudo, a produção e a reflexão sobre obras eletrônicas no campo da literatura ainda se revela incipiente, refletindo o atraso tecnológico que ocorreu no país. Para se ter uma ideia, a internet chegou com 16 anos de atraso contados desde a sua estreia. De acordo com o livro Os bastidores da internet no Brasil de Eduardo Vieira, o primeiro registro de conexão à internet no Brasil é de 1988, por meio do contato estabelecido entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o laboratório americano Fermi National Accelerator Laboratory. Mas o desenvolvimento da web no Brasil só ganharia uma dimensão maior em 1992, com a criação da Rede Nacional de Pesquisa, responsável por implantar a infraestrutura de cabos necessária e espalhar pontos de conexão entre universidades, instituições de pesquisa e órgãos públicos pelo país. A exploração da internet, até então era estatal, restrita a Embratel (que viria a ser privatizada em 1998). Com a eleição do presidente Fernando Henrique Cardoso e sua política de privatização das telecomunicações, a missão de oferecer acesso à internet passava para as mãos da iniciativa privada, dando início em 1995 a exploração comercial da rede no Brasil. Embora seja a partir da inauguração da internet e do aperfeiçoamento das linhas de conexão no país que a computação tenha entrado de vez no campo da literatura brasileira, com a web começando a ser descoberta pelos interessados em literatura; essa relação é mais antiga. Já na década de 1970, autores ligados à poesia concreta realizaram experimentos com a poesia digital (através dos incentivos do engenheiro Giorgio Moscati, que à época dirigia o Centro de Arteônica da Unicamp), dando início a uma trajetória de inovações que teria continuidade com os holopoemas nos anos 1980 (SANTAELLA, 2005, p. 264, 272). O poeta e pesquisador de literatura digital Alckmar Luiz dos Santos, inclusive, afirma que essa relação é ainda anterior à própria incorporação da tecnologia no universo literário, já sendo iniciada através de conceitos nos anos 1950. Segundo ele, não seria possível falar de poesia digital no Brasil sem falar na poesia concreta, devido às problematizações colocadas por ela sobre as dificuldades na criação, a participação do leitor, o relacionamento com outras linguagens. Ele, contudo, ressalta que talvez até mais importante que as lições do concretismo para o 24 desenvolvimento da poesia digital, tenham sido as implicações do poema-processo, através das suas contraposições entre o verbal e o imagético. (SANTOS, 2010). No que diz respeito à experiência em prosa, ela só viria a se infiltrar na tecnologia com a popularização da informática e da internet na década de 1990. Afinal, foi com a liberação do veículo para usuários comuns no país que uma geração de pretensos escritores aderiu à tecnologia, enxergando na rede a possibilidade de tirar suas produções da gaveta para levá-los ao encontro dos leitores através de sites e blogs, que se revelaram uma maneira fácil, barata e eficiente de se publicar. Entre o fim dos anos 1990 e início do século XXI, o mercado editorial brasileiro precisou acelerar o passo para acompanhar o que estava acontecendo além dos livros. Não demorou muito para elas perceberem o potencial desses autores que já vinham aproveitando a popularização da rede para cultivar leitores através das páginas da internet. Assim, como veremos no próximo capítulo, nomes badalados na tela do computador migraram para as lombadas de livros, com o lançamento de títulos individuais e coletâneas de grupos como a do Wunderblogs.com, que reunia pequenos textos de onze autores publicados originalmente no blog coletivo. Mas, salvo poucas exceções, o assunto ficou restrito à mudança de papel dos autores, que deixavam o isolamento característico do ato da escrita para assumir as funções de assessor de imprensa e produtor, num processo de aproximação do escritor com os leitores por meio das redes sociais. Como consequência, assistimos a uma transformação do autor em personagem, onde a vida real se mistura com a ficção, dentro da tendência de celebrizar a atividade de escritor. A questão artística tem passado pela tangente na discussão. Quando muito, ela aparece embutida em perguntas ingênuas como: blog é literatura? Ou a sua versão mais recente: é possível fazer literatura nos 140 toques do Twitter? Questionamentos que refletem não apenas o desconhecimento típico causado pela proximidade histórica, mas também as indefinições normais que envolvem o desenvolvimento de uma nova forma de expressão artística e a falta de estrutura que a viabilize financeiramente. Somado a isso, a literatura eletrônica ainda sofre com os obstáculos da dificuldade de leitura na tela do computador, do caráter experimental das criações e da rapidez do processo de defasagem dos programas utilizados para a elaboração das obras, o que muitas vezes desvirtua o acesso dos leitores a elas. Devido a todas essas barreiras, não é por acaso que os autores que hoje identificamos como originários da internet no Brasil representam a continuidade das narrativas tradicionais, versões de histórias pensadas para a página impressa, mas que acabaram aparecendo estampadas antes em algum site. Em termos de estrutura narrativa e elementos estéticos, 25 porém, a análise da obra desses autores não nos permite enxergar uma quebra de paradigma. Talvez o exemplo mais significativo disso seja a antologia digital ENTER5, organizada pela professora da UFRJ e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda. Publicada apenas no meio virtual, em agosto de 2009, a antologia reuniu trabalhos de 37 autores nacionais com o objetivo de “explorar nesse trabalho as possibilidades que a web oferece como a animação de textos, o uso de som, vídeo, remixagens”. O resultado, no entanto, como a própria organizadora reconhece na introdução, é que esses recursos tenham ficado acomodados cada um em seus devidos compartimentos, desarticulados demais para resultar numa “literatura de internet”. As obras selecionadas nem ao menos parecem ter sido pensadas para atender as especificidades do meio digital, elas surgem aglomeradas, como se fossem textos acompanhados de extras como a versão em áudio e o registro em vídeo da sua leitura. O curioso é que as produções da ENTER são posteriores às experiências de linguagem ocorridas quando a conexão no país ainda era discada, não se falava em redes sociais, nem existia YouTube (2005) ou MySpace (2003). Mais do que suporte de veiculação, nesse primeiro momento, o ambiente digital no Brasil também chegou a ser explorado como nova linguagem, dotada de características próprias. É dessa época que começam a surgir as primeiras narrativas não apenas publicadas na rede, mas desenvolvidas especificamente para esse novo meio. Já em 1995, aparece Tristessa6, uma narrativa em hiperlink criada por Marco Antonio Pajola, que analisaremos no capítulo 3. Divida em cinco partes, os leitores decidem a ordem de leitura que vão seguir. Além de ter a estrutura formatada para a rede, a obra conta com um narrador que faz uma série de reflexões metalinguísticas sobre o ciberespaço. Outro exemplo ocorreu em 2000, quando um novo capítulo foi inaugurado na literatura brasileira com a experiência Os anjos de Badaró, romance policial do autor veterano Mario Prata que foi escrito ao vivo pelo portal Terra e será objeto de análise do capítulo 2 desta dissertação. Para escrever o livro, que posteriormente foi publicado em papel pela Objetiva, desenvolveu-se um software específico para os leitores poderem acompanhar na tela o processo de criação, palavra a palavra, corte a corte na construção do livro. Além disso, os leitores podiam observar as feições do autor durante a escrita através de uma webcam, comentar e sugerir rumos da narrativa por meio de um chat. Resultado: em seis meses, mais de 400 mil pessoas fizeram uma visita ao site do escritor, garantindo ao projeto mídia espontânea em jornais do Brasil, da Espanha, da França e da Espanha. 5 6 Números http://www.oinstituto.org.br/enter/ http://www.quattro.com.br/tristessa/index.htm 26 impressionantes que podem ser explicados pelas ideias de Pierre Lévy presentes no livro Cibercultura. Segundo ele, como o fluxo de informações na internet é contínuo e praticamente infinito, as obras veiculadas na rede precisam assumir o caráter de evento para chamar atenção no aqui e agora, porque logo elas vão dar espaço a novas criações. Apesar desse impulso inicial, a prosa em literatura eletrônica no Brasil parece ter assumido uma postura conservadora se levarmos em conta o que está sendo produzido no terreno da poesia e em experiências narrativas no mundo, como demonstram os trabalhos que compõem os dois volumes da Eletronic Literature Collection 7, publicados em outubro de 2006 e fevereiro de 2011 pela ELO. Não por acaso, as coletâneas incluíram a presença de dois trabalhos brasileiros, ambos mais ligados à área da poesia visual, recorrendo às animações gráficas para dar vida às letras, fazendo uso simultâneo de recursos sonoros e visuais na intenção de se construir uma poética que não fica restrita à imobilidade. Se no primeiro volume aparece a artista visual e professora da PUC-SP Giselle Beiguelman com a obra Code Movie 1 (2004) para investigar a relação da arte digital com o código de computador, o número mais recente da coletânea traz o trabalho Palavrador (2006) do professor da UFMG Chico Marinho, cujo interesse está na participação efetiva dos leitores e na possibilidade colaborativa do projeto. Em comum com as outras obras selecionadas está o fato delas terem sido desenvolvidas dentro de uma perspectiva digital e, dificilmente, existiriam em outro suporte. Por mais variados que sejam esses trabalhos, eles mantêm a preocupação de se pensarem como linguagem, a partir da utilização do jogo de palavras e dos recursos da programação computacional para explorar a capacidade multimídia da criação, bem como alargar os limites da interatividade com o público. Como já adiantamos, ao longo da dissertação vamos contar a trajetória das relações entre literatura e a internet no Brasil, buscando problematizar esse diálogo a partir das obras narrativas produzidas por artistas e escritores no ambiente digital. Dessa forma, seguiremos a trilha de características que envolvem a literatura eletrônica a partir dos elementos trabalhados pelas obras que serão analisadas no decorrer deste estudo, optando por tensionar as características do meio eletrônico com os pressupostos da cultura impressa, na intenção de evidenciar o processo de transformações ocorridas na arte e no mercado literário no ambiente on-line. 7 http://collection.eliterature.org/ 27 1. Reminiscências do papel: estratégias de governança diante do caos O processo de desenvolvimento de uma linguagem própria para um novo meio é lento. Demanda tempo e uma série de experimentações que, por um lado ajuda a expandir a linguagem e alargar as funções para as quais as ferramentas foram originalmente inventadas, e por outro causam estranhamento por romperem com os códigos já estabelecidos para o contato com o leitor, por vezes frustrando suas expectativas em encontrar uma obra dentro dos mesmos moldes que ele já conhece. Diante das dificuldades impostas pelo estranho, como a resistência dos leitores e o natural desconhecimento de um terreno recém-descoberto; uma das características que se impõe nos primeiros usos de um meio é a absorção da linguagem de outro veículo. Os textos do início da era escrita ainda carregam a retórica oral, são colocados no papel como se fosse uma conversa, com as marcações para chamar atenção do interlocutor e as constantes fugas ao tema, causadas pelas interrupções ocorridas no ato da escrita que terminavam por ser absorvidas no texto. Nos primórdios da televisão, os apresentadores de telejornal não olhavam para as câmeras, apenas apareciam lendo as notícias, tal qual acontecia na dinâmica dos programas de rádio. O cinema, por sua vez, importou a dinâmica do teatro, apenas registrava as ações ocorridas no palco e os fatos do cotidiano, sem se valer da técnica da edição, do corte, da fusão de imagens, da montagem (PAUL, 2010, p. 121-122). Mesmo hoje – após a popularização das câmeras portáteis de Super-8, das câmeras de videocassete, das digitais, webcams e da multifuncionalidade dos telefones celulares – continua comum a cena de pessoas posarem para fotos quando na verdade estão sendo filmadas, ficando estáticas diante de uma máquina própria para o registro de movimentos. A influência de outros meios ainda pode ser observada em obras que foram adaptadas para outra linguagem, a exemplo do uso recorrente da narração em off nos casos de filmes baseados em obras literárias, numa demonstração que o recurso do verbo muitas vezes se sobrepõe ao apelo visual do cinema. Isso acontece pelo desconhecimento das especificidades das novas formas, o que leva a reprodução de experiências anteriores. Demora até que se descubram as potencialidades de cada meio e que se desenvolvam técnicas apropriadas para explorá-las. Com a internet não tem sido diferente. Desde o início, ela se vale da sua constituição digital, característica multimídia e da sua alta capacidade de armazenamento de dados para absorver conteúdos de outros meios, convertendo “qualquer linguagem – texto, som, imagem, 28 vídeo, etc. – em dado digital, isto é, em bits de 0-1, e compressão desses dados que permite compactar a informação com economia de meios.” (SANTAELLA, 2005, p. 272). Assim, passadas quase duas décadas da liberação comercial da internet no Brasil, não é difícil perceber que a web praticamente continua sendo usada como um mero veículo de distribuição e estocagem, transpondo o conteúdo do meio material para o ambiente virtual. Nesse sentido, algumas instituições têm se esforçado para alimentar a rede com conteúdo impresso, valendo citar os exemplos do Brasilianas8 da Universidade de São Paulo (USP), do Domínio Público9 do Ministério da Educação e do Machado de Assis10 da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); projetos que procuram digitalizar acervos importantes para que obras raras fiquem disponíveis e possam ser acessadas pela internet. Além disso, mesmo criações com gênese no ambiente digital carregam essa herança do meio impresso. Um dos indicadores disso está nos softwares de processadores de texto, que oferecem visualizações de páginas de papel simuladas e ícones quem remetem a materiais de escritório, como pincéis, tesouras, colas e pastas de arquivamento. Outra pista está na própria maneira de organização da informação na rede, que se dá em cima do modelo do livro impresso, conforme observa a pesquisadora e artista multimídia Giselle Beiguelman em O livro depois do livro: As telas de qualquer site dispõem páginas, critérios biblioteconômicos de organização do conteúdo regem os diretórios, como Yahoo, e a armazenagem de dados é feita de acordo com padrões arquivísticos de documentos impressos, seguindo à risca o modelo de “pastas e gavetas”. (BEIGUELMAN, 2003, p. 11) Ela explica que essa adoção de práticas e termos já utilizados em mídias mais familiares funciona como uma maneira de amenizar o impacto das novas tecnologias. Nessa mesma linha, Pierre Lévy diz que o novo meio pega carona na lógica de outras ferramentas como uma estratégia de se mostrar amigável aos usuários, relacionando seus comandos e operações com práticas previamente assimiladas, já absorvidas devido ao manuseio de outros equipamentos (1993, p. 53). No entanto, Beiguelman observa que o fato da referência da leitura em ambiente digital permanecer no impresso implica no comedimento do uso das possibilidades computacionais. Assim, ao mesmo tempo que procura refletir sobre as inovações tecnológicas, a literatura eletrônica também precisa enfrentar a necessidade de responder às expectativas do 8 http://www.brasiliana.usp.br/ http://www.dominiopublico.gov.br/ 10 http://www.machadodeassis.ufsc.br/ 9 29 público leitor, formado ao longo de cinco séculos pela cultura impressa. Esse processo se revela um ponto delicado, já que as obras encaram o desafio de atender aos dogmas instituídos pelos livros de papel na medida em que também precisam alterá-los. Para o pesquisador Jorge Luiz Antonio, que se dedicou ao estudo da poesia eletrônica no doutorado, o processo de absorção tecnológica se dá em quatro fases: 1. 2. 3. 4. por não conhecê-la suficientemente, o poeta faz da tecnologia uma ferramenta e age como usuário: é o momento das trocas e partilhas; o conhecimento da existência de uma determinada tecnologia, o contato com ela, a assimilação do conceito (por curiosidade, necessidade, imposição profissional etc.) leva o poeta a uma interação com ela como ser humano participante da vida contemporânea; o conhecimento de uma tecnologia, da sua denominação e do seu conceito, poderá se transformar numa referência consciente na poesia no sentido real e/ou metafórico, ou seja, uma negociação como interação e diálogo: a tecnologia passa a ser tema da poesia; a assimilação e uso conscientes e voluntários dessa tecnologia para fins poéticos: o poeta a assimila, porque vê condições de realizar seu projeto poético, tendo em vista a atualidade desse aparato tecnológico e a riqueza expressiva que ele contém; o resultado dessa mediação (verbal, sonora, visual, cinética, que pode ocorrer nos meios impressos e/ou eletrônicos) é o que pode ser denominado de tecnopoesia. (ANTONIO, 2008, p. 29) De acordo com Antonio, cada momento desse gera reações diferentes na produção poética, que podemos ampliá-la para o contexto da literatura em geral. Mas, por não ser uma missão das mais simples, esse período de transição muitas vezes resulta em obras que, ou descambam para o estranhamento do público leitor, ou caem na comodidade de se valer apenas das facilidades da difusão de internet, presa nos moldes da tradição impressa. Portanto, chega a ser natural que os primeiros engatinhados da literatura brasileira na internet também espelhem essa lógica, mantendo o apego ao suporte impresso. Não por acaso, um dos primeiros pontos explorados pelos literatos desbravadores da internet foi justamente a sua capacidade de distribuição. Ao invés dos novos recursos de linguagem que interessavam ao poetas concretos na década de 1970, a possibilidade de publicação (no sentido de tornar público) foi o que brilhou aos olhos dos escritores. Naquele momento, a chegada da internet significava a liberdade, um caminho acessível e barato para a autopublicação, uma rota de fuga para os rabiscos acumulados na gaveta, uma chance de driblar o regime da máquina editorial e seus filtros econômicos. Dado o exemplo revolucionário que vinha da música, com a popularização dos programas de compartilhamento de arquivos P2P e o enfraquecimento gradativo da então poderosa indústria fonográfica; a internet foi envolvida por um fascínio que a fez ser procurada por uma gama de artistas que se viam esquecidos pelos moldes tradicionais da 30 indústria cultural, considerados investimentos de risco pelas planilhas de custos do mercado editorial brasileiro. Com esse atrativo, a internet atraiu um grande número de pretensos autores e escritos de gaveta viram na rede a possibilidade de aparecer para o mundo. Mas logo a facilidade de publicação e potencial de difusão da internet virou desafio, inflacionando o número de autores, elevando a concorrência, dispersando o público leitor e transformando a tão sonhada visibilidade em fator de ocultamento. Como efeito, a descentralização promovida pela rede também trouxe implicações na credibilidade do conteúdo. O atalho rumo ao público significava enfraquecimento dos filtros, rebaixamento dos critérios de qualidade e diluição das responsabilidades. Sem a intermediação de elos formais como a figura dos editores, que por bem ou por mal garantiam um mínimo de confiabilidade, a internet se tornava uma terra ninguém, terreno fértil para a propagação de boatos, lendas urbanas e trollagens ocultadas pelo anonimato de falsas identidades. Um dos reflexos mais significativos disso foi a onda de textos apócrifos que circularam por e-mail nos primórdios da internet no Brasil. Valendo-se da velocidade da rede e do seu alto poder de distribuição, esses e-mails viraram prática recorrente entre o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. O fenômeno ainda pode ser explicado através da maleabilidade do conteúdo digital, tornando o recurso do sampling e da remixagem técnicas comuns da arte produzida em computadores. A oferta de conteúdo na web é tamanha que a criação já não precisa partir do zero, pode surgir na recombinação de signos, na fusão de elementos e na recontextualização de mensagens. “Na cibercultura, qualquer imagem é potencialmente matéria-prima de uma outra imagem” (LÉVY, 1999, p. 153). No seu blog, o jornalista e escritor Homero Fonseca listou – numa série de posts chamados Falsas autorias na internet, publicada em novembro de 2007 – casos de textos apócrifos ocorridos no Brasil, que envolveram atribuições a autores como Gabriel García Márquez, Carlos Drummond de Andrade, Vladimir Maikóvski, Bertolt Brecht e Jorge Luís Borges (FONSECA, 2010, p. 24-28). Para ter uma dimensão do fenômeno, recorremos ao artigo Textos apócrifos na internet, publicado no Jornal de Poesia e assinado pela poeta e jornalista Betty Vidigal, onde ela busca a verdadeira autoria do texto Instantes e revela que o fenômeno era mundial: “há 505 sites em português atribuindo-o a Borges. Em espanhol, 697. Em inglês, 512. Em italiano, 97. Em alemão, 33.” (VIDIGAL) Outro caso que ganhou repercussão aqui no Brasil envolve o escritor Luis Fernando Verissimo, alvo de diversas paternidades falsas. Na crônica ‘Presque’, publicada no dia 24 de março de 2005, Verissimo conta uma história curiosa sobre um desses textos apócrifos que lhe foi atribuído. Trata-se de Quase, escrito pela estudante Sarah Westphal, mas que circulou 31 sob a autoria de Verissimo pela internet, rendendo ao escritor elogios e a inclusão numa coletânea francesa de literatura brasileira, ao lado de autores como Clarice Lispector, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Esse caso e muitos outros, inclusive, foram reunidos na coletânea de textos apócrifos Caiu na rede: os textos falsos da internet que se tornaram ‘clássicos’ de Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor, João Ubaldo Ribeiro, Caetano Veloso, Jorge Luis Borges, Carlos Drummond de Andrade, Gabriel García Márquez e muitos outros; organizado pela jornalista Cora Rónai e publicado pela editora Agir, em 2006. A disseminação dessas mensagens era tamanha que não poucas vezes elas se impunham no imaginário dos leitores, atingindo diretamente a noção de autoria – um dos pilares que sustentam o sistema literário impresso; provocando a reação dos escritores. Num dos posts, Fonseca condena a prática: “Afinal, por preguiça ou ignorância, muita gente fica reproduzindo na internet bobagens como se fossem de grandes autores”. Na edição 261 do ezine Cardosonline, o tema também é alvo do colunista André Czardonai (mais conhecido como Cardoso), citando textos atribuídos a Ziraldo, Verissimo, Zuenir Ventura e João Moreira Salles. O artigo termina com um recado aos leitores: “tirem disso uma lição e não saiam por aí acreditando em tudo que vocês lêem.” (CARDOSO, 2001) Paradoxalmente, na medida em que o fenômeno dos e-mails apócrifos coloca em risco a credibilidade conferida à autoria, ele também contribui para o reforço da importância do autor na difusão das ideias. Afinal, a prática de recorrer a escritores reconhecidos evidencia a estratégia de conferir legitimidade a textos anônimos ou de desconhecidos, conforme se comprova na experiência de Quase, que dificilmente conseguiria a mesma projeção se viesse atribuído a Sarah Westphal. A assinatura de um Verissimo ou de um Maikóvski dava chancela ao texto, que passava a ser lido com outros olhos, sob o peso de um autor com visão de mundo diferenciada, o que demandava mais atenção, tolerância e a mudança de uma série de conjecturas no processo de interpretação que nos remete outra vez ao conto Pierre Menard, autor do Quixote. Considerando o caráter coletivo e caótico da internet, chega a ser surpreendente que a autoria renasça na rede quase como um refugo, por meio do fenômeno dos textos apócrifos. Tal qual a figura do autor, a ausência de confiabilidade na rede tem feito com que os sites e projetos, cada vez mais, busquem estratégias de organização para credenciar o valor da informação. E as soluções encontradas no meio impresso tem sido recorrentes, como veremos nos tópicos seguintes através do papel das editoras, da delimitação das obras, da formação de coletivos e das escritas pessoais. 32 1.1 Delimitação das obras No livro Cibercultura, Pierre Lévy classifica a internet como um veículo universal sem totalidade, por estar aberta a interferências e mudanças passíveis de serem realizadas por todos os usuários conectados. Se num primeiro momento, a característica leva a democratização de acesso e a quantidade de publicações a níveis nunca antes atingidos, possibilitando uma lógica colaborativa na construção coletiva dos mais diversos saberes; ela também implementa um estado de caos, desestabiliza os referenciais de credibilidade que foram construídos durante séculos, atingindo em cheio pilares da tradição escrita: “O autor e a gravação garantem a totalização das obras, asseguram as condições de uma compreensão globalizante e de uma estabilidade do sentido.” (LÉVY, 1999, p. 153). Diante das possibilidades de arquivamento em larga escala dos computadores, a pesquisadora Lúcia Leão observa que a cibercultura se apropriou dessa característica para desenvolver um outro tipo de poética: “O computador introduz uma outra forma de expressão: o banco de dados. A maioria dos objetos em novas mídias não nos conta nenhuma história, não tem começo nem fim e não se desenvolve tematicamente como seqüência.” (2005, p. 545). Enquanto a obra on-line tende a ser aberta, permitindo a construção coletiva, num ritmo contínuo de atualizações e alterações no conteúdo mesmo após a sua publicação; a tradicional trabalha na dimensão do fechamento físico, da fixação temporal, numa ideia de obra acabada, criada sob a expectativa de se constituir uma ilha de originalidade, de expressão individual. Dessa forma, seja pela inércia de cinco séculos movidos pela tradição escrita ou como resposta às condições caóticas do universo virtual, a opção de reafirmar o papel dos fiadores da literatura se apresenta de forma contundente nos primórdios da web. É preciso lembrar ainda que até meados de 2000, como toda novidade, a internet vivia um momento de euforia, era vista como o futuro, sinônimo de boas oportunidades de negócios, de dinheiro fácil, com diversos exemplos de empreendedores que se tornaram milionários da noite para o dia. Isso significa dizer que a lei do mercado editorial – que lá no início do negócio livro, com a ascensão da impressão, havia instituído a figura do autor por razões jurídicas e econômicas – ainda tinha sua parcela de poder de influência na web. De olho na experiência do escritor americano Stephen King – que em abril de 2000 disponibilizara para venda exclusiva na internet a novela Riding the bullet, ao preço de 2,50 dólares, atingindo a impressionante marca de 400 mil downloads nas primeiras 24 horas –, a Nova Fronteira resolveu apostar num nome de peso da literatura nacional para testar o potencial do mercado de livros na internet. 33 Para tanto, escalou João Ubaldo Ribeiro, que nessa altura já era imortal da Academia Brasileira de Letras desde 1993 e dono de um currículo com mais de 800 mil exemplares já vendidos, livros premiados como Sargento Getúlio (com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de 1972 na categoria autor revelação), Viva o povo brasileiro (vencedor do Jabuti na categoria romance, em 1984) e que na época figurava há 25 semanas na lista dos mais vendidos da revista Veja com o romance A casa dos budas ditosos. Fruto dessa encomenda, em junho de 2000, foi publicado como e-book o romance Miséria e grandeza do amor de Benedita, disponibilizado para download na internet. Segundo matérias publicadas na época, a expectativa da Nova Fronteira era alcançar a marca de 100 mil downloads, realizados ao custo de R$ 3,80 nas páginas da editora e da loja eletrônica Submarino. O resultado, porém, ficou aquém do esperado. Como em dezembro a contagem estava em apenas 7 mil arquivos baixados, a editora resolveu antecipar a sua publicação no meio impresso, que só estava prevista após intervalo de um ano da disponibilização do romance na internet. Na repercussão da mídia – através da pesquisa nos sites de jornais como O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e das revistas semanais Veja e Época – o que basicamente se consta são referências ao fato do livro ter sido publicado pela internet. Nas matérias, o romance chega a ser atribuído como, senão a primeira, ao menos a primeira obra de autor relevante do país a ser publicada na internet. Essa inversão de valores, da literatura para a tecnologia, chega a ser mencionada em matéria do Estado de São Paulo, em razão do lançamento impresso de Miséria e grandeza do amor de Benedita: “Acumulou mais espaço nos cadernos de informática do que nos culturais.” (JOÃO .., 2000b). Uma razão para isso talvez seja o fato do componente tecnológico do livro ter sido inovador na maneira como ele foi publicado, utilizando apenas o potencial de distribuição da rede, sem nenhuma experimentação de linguagem ou reflexão acerca do suporte digital: “a Internet funciona apenas como um novo modo de entrega – tem tanta importância quanto o motoqueiro que carrega a pizza: quem realmente interessa é o pizzaiolo e a execução da receita. Portanto, cabe muito pouco falar da tecnologia.” (JOÃO ..., 2000a). A obra se resume a uma simples transposição do meio impresso para o virtual, tanto que a versão em papel não se diferencia da que foi vendida para a internet. O fato dele ter saído na rede está mais para um acaso, uma oportunidade de mercado do que para a descoberta estética de um novo meio, como atesta matéria assinada pelo jornalista Marcelo Marthe para a revista Veja: A história que se verá na tela não tem nada de cibernética. Tendo como cenário o litoral baiano, focaliza a vida resignada de Benedita, mulher de um sujeito que todo mundo sabe ser o maior saltador de cercas da paróquia – um insaciável dom-juan de 34 Itaparica. A editora ofereceu a Ubaldo, seu autor de maior vendagem, recursos para complementar a edição com hipertextos explicativos, ilustrações e fotos. Purista, ele não quis saber de nada disso. “Acho que ia descaracterizar”, justifica-se o romancista, que trocou a máquina de escrever pelo computador há quase quinze anos. “O melhor da literatura é aquele espaço vago que o leitor preenche com a imaginação.” (MARTHE, 2000). O caso de João Ubaldo Ribeiro não pode ser considerado uma exceção no Brasil. Mesmo entre os escritores iniciantes, que ainda não possuíam um nome de referência, a internet apareceu mais como um atalho para se alcançar um lugar ao sol, vista como uma oportunidade de escoamento para uma demanda reprimida. Jovens autores recorreram à rede mundial de computadores mais pela facilidade oferecida pela rede para divulgação de seus escritos do que pelo fascínio de desbravar um novo território artístico. Um caso que ilustra bem esse comportamento é o da escritora carioca Ana Paula Maia, que se valeu da internet para chegar diretamente aos leitores, sem o intermédio das editoras. Seu projeto continuava ancorado nos moldes tradicionais, publicando em 2006 um folhetim de 12 capítulos pela rede. A estratégia deu certo, o fato repercutiu na imprensa, deu à autora projeção nacional e fez com que a história fosse publicada pela maior editora do país, a Record. Três anos depois, a narrativa foi impressa em livro, sob o título Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. O volume reúne ainda a novela O trabalho sujo dos outros, que na rede tinha o título Barbudos cretinos e suas histórias canalhas. Contudo, mais uma vez, a web serviu apenas como gancho jornalístico para dourar a pílula, embalando Ana Paula Maia nos ventos da novidade para pegar carona na onda do interesse da mídia sobre a possível renovação da internet na literatura. Tanto que o material de divulgação do livro ressalta o suposto ineditismo da experiência, dizendo se tratar de “uma ação pioneira” e dele ser “o primeiro livro publicado originalmente na Internet a ser lançado por uma grande editora”. Mas a obra em si também não traz qualquer distinção de linguagem em relação a outras narrativas próprias do papel, nem faz nenhuma reflexão sobre as especificidades da literatura no meio eletrônico. Apesar da nossa opinião sobre a qualidade do trabalho de Ana Paula Maia não justificar a menção nesta dissertação, sua presença serve como exemplo para demonstrar uma das características mais intrigantes da internet, que é o seu potencial de criar fenômenos de popularidade sem a exigência de mérito (esse tema será aprofundado mais adiante, no próximo capítulo). Ainda que a amplitude do campo da literatura seja minguada em relação ao alcance de músicas e vídeos, o caso de Ana Paula Maia revela que o universo das letras não saiu isento aos modismos da rede mundial de computadores. 35 Outro bom exemplo das reminiscências do papel na internet é o da editora virtual Mojo Books. Criada em 2007 por Danilo Corci, formado em produção editorial; a Mojo vem produzindo conteúdo e publicando e-books, no formato PDF (Portable Document Format)11, de histórias ficcionais inspiradas em discos e músicas. Por prudência jurídica, para evitar processos de plágio, a editora exige que: “A referência ao disco deve ser mantida no campo da inspiração, ou seja, não são permitidas referências diretas às letras das músicas, traduções ou versões” (MOJO BOOKS). Os arquivos são diagramados no tamanho de uma caixa de CD, com ilustrações de capa, referências ao disco inspirador e à obra de ficção. Os textos são selecionados de acordo com critérios de qualidade (originalidade) e de tamanho (entre 10 mil a 30 mil caracteres). Esses cuidados já indicam a percepção da Mojo Books de que a leitura na tela de computador é algo desconfortável, direcionando as obras para a impressão, através da diagramação e da exigência por textos curtos para serem lidos mais rapidamente. Com um lançamento por semana, o catálogo da Mojo conta até o momento com 138 ebooks, 311 singles e 6 histórias em quadrinhos, fora as coleções Specials (relacionadas a festivais) e Mojo+, que foca mais nos escritores. Ao todo, mais de 300 autores já contribuíram para a Mojo. A lista inclui nomes que figuram no mercado editorial como o do pernambucano Marcelino Freire, cujo trabalho na Mojo foi inspirado no disco Getz/Gilberto (importante álbum da Bossa Nova, fruto da parceria entre o saxofonista americano Stan Getz e do baiano João Gilberto), da carioca Simone Campos (que escreveu inspirada no disco Exit Planet Dust, do grupo de música eletrônica Chemical Brothers), da paulista Andréa Del Fuego (em cima da trilha sonora do filme Blade Runner, composta por Vangelis) e do gaúcho André Xerxensky (que escolheu o álbum Come on die young da banda instrumental Mogwai). O acesso aos livros é gratuito, sendo necessário apenas o cadastro no site para a realização do download. Ainda que o critério de seleção não seja assim tão rigoroso, deixando passar obras sofríveis como O palhaço do circo sem futuro de Eduardo Costa Madeira, a importância da Mojo Books está no fato dela ser uma tentativa de estimular o diálogo intersemiótico entre linguagens (no caso, música e literatura) e, por outro lado, na sua tentativa de formalização da literatura veiculada na internet. A constituição de um selo, baseado numa linha editorial definida para a web, ajudou no desenvolvimento de uma imagem, definindo um formato próprio para a Mojo. Por consequência, os leitores que fossem buscar títulos da editora já iam com certa expectativa e a certeza de que encontrariam narrativas ficcionais curtas, acabadas e 11 Formato de arquivo desenvolvido em 1993 pela empresa Adobe Systems. De padrão aberto, o arquivo com extensão em PDF foi desenvolvido para comportar documentos (com texto, fontes, gráficos, etc.) e ser lido independentemente do sistema operacional, do computador e do programa utilizado. 36 minimamente elaboradas. Desse modo, a estratégia conferia peso a uma produção de autores desconhecidos, um diferencial para lá de relevante no universo de escritores estreantes da rede. Nessa linha de buscar a legitimação no espaço virtual, o projeto ENTER: antologia digital recorre a outras figuras importantes das práticas editoriais. Sob o respaldo da credibilidade da crítica e professora universitária Heloísa Buarque de Hollanda (responsável pela organização do site e seleção dos artistas) e o peso de ser um projeto patrocinado pela Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); a antologia é um exemplo simbólico para a literatura eletrônica do Brasil, destacando-se por ser uma das primeiras iniciativas formais de registrar e problematizar as práticas da escrita sob a influência da informática e da internet no Brasil. Com esse intuito, a organizadora afirma que, para analisar a literatura que circula na internet, é necessário que “se aceite o rito de passagem que é entrar em outra lógica de percepção, experimentar novas relações com a palavra, com a comunidade de autores, com a idéia de literatura e de crítica literária, com as idiossincrasias e paixões da vida literária na web.” Nesse mesmo texto de introdução (acessado por um link disposto na barra horizontal, disposta na parte superior da página, junto com outros links indicando os créditos do projeto e um caminho para entrar em contato com os responsáveis pela página), Heloísa faz um resumo da literatura na internet utilizando como fio condutor a ascensão dos blogs no Brasil, ferramenta que inicialmente foi usada no país para a publicação de práticas literárias. No texto, ela explica os critérios que lhe guiaram na organização da antologia: resolvemos explorar nesse trabalho as possibilidades que a web oferece como a animação de textos, o uso do som, vídeo, remixagens. Propusemos aos autores que não apenas criassem textos, mas que também retrabalhassem seus textos e grafismos, podcasts, videocasts. Procuramos, juntos, criar um ambiente que permita ao leitor navegar nas letras e no talento dos novos criadores em base digital. Procuramos, juntos, criar um ambiente que permita ao leitor navegar nas letras e no talento dos novos criadores em base digital. Procuramos, sobretudo, oferecer uma oportunidade de descoberta do prazer da palavra no ambiente www. (HOLLANDA, 2009) Esse posicionamento se reflete tanto no visual da antologia quanto na escolha dos 40 autores, onde se misturam escritores, poetas, músicos, rappers, cartunistas, ilustradores, quadrinistas. Os trabalhos deles podem ser acessados através de uma lista com 37 links (entre os quais, estão a dupla Fábio Moon e Gabriel Bá e o trio Os Sete Novos, ambos agrupados 37 num mesmo link) estruturada como um sumário. Logo acima dos nomes, quatro cores indicam o tipo de conteúdo disposto no link – laranja para texto, rosa para áudio, verde para vídeo e azul para imagem, que em todos os casos se revelam histórias em quadrinhos. Em função disso, não há coincidência entre arquivos de texto e de imagem numa mesma autoria. Figura 2: Espaço reservado ao escritor Marcelino Freire na ENTER: antologia digital, organizada pela crítica Heloísa Buarque de Hollanda. As janelas são divididas em três colunas, onde se encontram um breve perfil do autor (na esquerda), os textos (no centro) e os links para os arquivos de áudio e vídeo (na direita). Ao clicar no nome de algum autor, abre-se uma espécie de janela dividida numa seção principal e duas barras verticais. A barra do lado esquerdo traz um pequeno perfil do autor, com links que remetem ao seu trabalho e uma indicação que ele faz ao trabalho de outro criador; a do lado direito dá acesso aos arquivos de áudio e vídeo. No centro, já aparecem abertas as obras em texto ou em imagem, com links na parte de baixo que servem para mudar o conteúdo (conto, poesia) ou para passar a página de quadrinho. O texto é a linguagem que mais aparece, explorado por 31 dos 37 links autorais – seguido do vídeo (30), áudio (25) e imagem (6) – num reflexo direto à proposta da organizadora: Considerei então como matéria de exame, todas as formas de literatura praticada na web, muitas vezes excessiva, com a velocidade dos posts e com a expansão das fronteiras da palavra. Considerei a palavra escrita, a palavra contemplada, a palavra de ouvido, a palavra cantada. (HOLLANDA, 2009) Embora sejam apenas três casos de autores que só exploram uma única linguagem, percebe-se que o caráter multimídia proposto pela antologia é restrito. Explorando o conteúdo do site, observa-se que em vários casos os arquivos de áudio se resumem a leituras e os vídeos 38 ou são adaptações audiovisuais dos textos feitos por outros realizadores (casos de Ana Paula Maia, Alice Sant’anna, Marcelino Freire), gravações de apresentações musicais (Lirinha, Dudu de Morro Agudo), registros de turnê (Fábio Moon/Gabriel Bá) ou imagens de bastidores (Rafael Grampá). Outra constatação nesse sentido é que nenhuma obra interage com outra linguagem, o máximo que acontece é a aparição do conto ou poema em texto e essa mesma obra ser lida no arquivo de áudio, narrada ou adaptada para o vídeo. As linguagens aparecem isoladas, não dependem da outra para desenvolver um sentido, o que confere à ENTER mais um aspecto de portfólio de criadores do que uma antologia digital. Afinal, a antologia foi construída com obras não inéditas, produzidas para projetos físicos, como o conto Homo erectus de Marcelino Freire, que integra o livro BaléRalé (2003) e o primeiro texto de Ana Paula Maia, que se trata de um trecho do livro Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Isso já mostra que o uso do hiperlink como elemento estético é ignorado por todas as obras, ficando os atributos digitais restritos ao site, com sua clara proposta de montar uma rede, nos moldes do que acontece com os blogs. Talvez por isso, a própria organizadora reconheça no fim da sua introdução: “Assumo também a certeza de que não existe tal coisa como uma literatura de internet. Mas que existe sim, um novo ambiente, com um horizonte de possibilidades de expressão inéditas” (HOLLANDA, 2009). Apesar do apelo ao digital nos materiais de divulgação de todos esses exemplos, a análise deles revela que a lógica do papel continua prevalecendo. Ao optar por projetos com limites definidos, todos eles acabaram por reafirmar funções tradicionais do meio impresso, como a importância do autor, da identidade editorial e da figura do organizador, que respalda e expõe uma perspectiva de estruturação do conteúdo selecionado; o que também indica uma rejeição pelas características interativas, processual e multimidiática da internet. 1.2 Formação de coletivos Um procedimento que também logo se estabeleceu nas experiências de literatura na internet – até pelo fato da legislação brasileira permitir a aquisição do domínio de extensão “.com.br” somente a pessoas jurídicas, através do número de CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) – foi o agrupamento de autores num mesmo site. Além da questão restritiva para obtenção de um endereço nos primórdios da internet, a formação de coletivos literários se mostrou pertinente como estratégia para amenizar os efeitos da democratização da rede. A 39 essa altura, com a disponibilização de serviços como GeoCities12 e o surgimento dos blogs; cada pessoa podia abrir uma página para expor seus textos, o que significava a pulverização da emissão de informações e, consequentemente, o rebaixamento do critério de qualidade na publicação. Nesse cenário, demonstrar rigor na seleção significava ganhar credibilidade, agindo assim, os sites coletivos se tornavam referenciais de uma linha editorial específica e, de quebra, atestavam qualidade ao material divulgado, fortalecendo com a imagem do grupo a produção de autores até então desconhecidos. Entre os mais conhecidos podemos citar as páginas Escritoras Suicidas e o Paralelos.org. O primeiro começou sua jornada na internet em outubro de 2005, seguindo a lógica do meio impresso, com a publicação de edições periódicas sobre temas específicos (como fúria, solidão, traição, tempo, cinema), que podiam ser trabalhados na forma de contos, crônicas e poemas. O site se manteve atualizado até dezembro de 2010, após 43 edições, reunindo textos de 55 escritoras regulares e algumas dezenas de convidadas. Já o Paralelos.org entrou no ar em 2003 como uma resposta da cena literária do Rio de Janeiro à baixa representação carioca na antologia Geração 90 – manuscritos de computador, organizada pelo escritor Nelson de Oliveira, composta predominantemente por autores paulistas. A página surgiu com o intuito de veicular e divulgar o trabalho de novos escritores, funcionando como uma revista eletrônica, com a publicação de textos ficcionais, notícias, resenhas, entrevistas e agenda de eventos literários. Se no início a ideia era focada na cena carioca, após seis anos de atuação o site contabilizava colaborações de mais de 250 de autores de diversas partes do país e cerca de mil textos publicados, quando – em 7 de agosto de 2009 – todo esse material se perdeu devido a um problema técnico do provedor que hospedava a página. Mas talvez, até por conta do seu pioneirismo, o mais famoso desses grupos tenha sido o Cardosonline (COL), e-zine gaúcho editado pelo estudante de jornalismo André Czardonai (o Cardoso) inicialmente como longos e-mails pessoais. Com a greve que atingiu às universidades federais em 1998, o e-zine ganhou corpo, agregando estudantes ociosos como colunistas fixos. Nessa sua segunda fase, o COL passou a ser estruturado por um editorial acompanhado de colunas. A periodicidade do e-zine era de duas edições semanais, sempre enviadas por e-mail às segundas e quintas-feiras. As colunas eram compostas geralmente de textos mais longos, mas algumas vinham acompanhadas de pequenas notas. 12 Serviço de hospedagem que chegou a ser o terceiro site mais visitado da internet em 1999 e foi comprado pelo Yahoo! por US$ 4 bilhões. O serviço foi desativado em 2009, quando abrigava cerca de 38 milhões sites. 40 Na 11ª edição, o e-zine ganhava uma página na internet13, mas sua veiculação continuava a ser por e-mail: “(a página) É mais um outdoor, com informações gerais sobre o COL e seus COLunistas, um breve histórico e fotos bem malucas, tudo compilado e estilizado pelo mestre (Daniel) Galera.”, informava Cardoso, no editorial. O COL se manteve em circulação por três anos, quando encerrou as atividades no dia 12 de setembro de 2001, somando 10 edições especiais e 278 edições regulares (o que, nas contas do Cardoso, significaria quase 10 mil páginas impressas preenchidas com texto). No auge, a publicação chegou a ter oito colunistas fixos e 5,5 mil leitores assinantes, funcionando como um importante meio de difusão para autores estreantes, num processo de aprimoramento literário e de formação de público. Em geral, os textos tratavam de temas banais, num misto de crônicas do cotidiano porto-alegrense, comentários sobre a cultura pop, opiniões sobre notícias veiculadas na imprensa, relatos de festas, exercícios de retórica e eventuais textos ficcionais. Mas, ainda que o COL, o Paralelos.org e o Escritoras Suicidas só tenham se tornado possíveis graças à mobilidade da internet, nenhum deles procurou se adaptar às especificidades do novo meio. O próprio visual simples do COL é uma prova disso: “Sem imagens, sem formatação, sem html: texto puro.” (CARDOSO, 2008). Uma análise dos textos mostra que o diferencial tecnológico do COL se restringe à utilização do potencial difusor da internet, cuja digitalização de dados possibilitava a eliminação quase que total dos custos referentes à impressão, diagramação e publicação do material. Em termos de linguagem, isso se reflete na predominância de um estilo mais despojado, com maior liberdade para o uso de gírias, citações em inglês e menor incidência de formalismos nos textos, o que se explica pela diluição da barreira da edição, da baixa idade dos seus autores e do público alvo do e-zine, basicamente formado por jovens universitários. O referencial do COL e seus semelhantes continuava a ser o meio impresso, tanto que o Escritoras Suicidas e o Paralelos.org organizaram antologias com uma seleção dos seus melhores textos e as publicaram em papel – Dedo de moça: uma antologia das escritoras suicidas (2009) e Paralelos: 17 contos da nova literatura brasileira (2004), sem a necessidade de adaptações de linguagem. A internet, mais uma vez, era usada na literatura como canal de distribuição, conforme explica os organizadores da coletânea do Paralelos: “revista eletrônica focada na literatura contemporânea com o objetivo claro de promover e 13 O endereço na época era o http://galera.simplenet.com/col/index.html. Hoje, a página se encontra no endereço http://www.qualquer.org/col/ 41 difundir ainda mais a idéia da importância da articulação dos escritores da novíssima safra” (SALES; FILHO, 2003, p. 10). Outro indício, de que a lógica do impresso ainda prevalecia sobre o digital, é observado no grande acolhimento de talentos desses grupos pelo mercado editorial tradicional, possibilitando a migração de autores para as páginas dos livros impressos. Afinal, se hoje o mercado de literatura na internet ainda é uma incógnita (mesmo com o sucesso de ereaders como o Kindle e o iPad que facilitam e devolvem a portabilidade ao ato da leitura), no fim dos anos 1990 e início dos 2000 ele era praticamente inexistente. E, como defende a professora e crítica Walnice Nogueira Galvão no livro As musas sob assédio, o fator mercado é o principal determinante para entender a literatura brasileira contemporânea: “Um balanço atual da cultura e da literatura brasileira só terá sentido se partir do dado decisivo que é seu açambarcamento pelo mercado.” (GALVÃO, 2005, p. 15). Nessa perspectiva, é possível entender porque o papel da internet no Brasil praticamente tenha se restringido à renovação do elenco de autores no mercado editorial, sem que isso significasse ganhos na experimentação de uma nova ferramenta para a escrita. Com a popularização da internet no fim dos anos 1990, uma nova geração de autores passou a se formar nas páginas da rede através de sites, e-zines e blogs. O apelo midiático de ver novos autores (escrevendo sobre assuntos contemporâneos e numa linguagem jovem) associados à possibilidade do surgimento de outros paradigmas para a literatura se mostrou atraente. Eventos literários e cadernos culturais do país dedicaram espaço à tarefa de investigar se existia e quais eram as características dessa tal “literatura de internet”. Com toda essa abertura na mídia e já vislumbrando o público de leitores cativado por esses escritores na web, as editoras logo promoveram a migração de autores do ciberespaço para o papel. Apenas com base nesses três exemplos de coletividade citados neste tópico, um verdadeiro time de escritores foi recrutado para compor o elenco das principais editoras do país. Do COL vieram Daniel Galera – autor dos romances Dentes guardados (Livros do Mal, 2001), Até o dia em que o cão morreu (Livros do Mal, 2003; Companhia das Letras, 2007), Mãos de cavalo (Companhia das Letras, 2006), Cordilheira (Companhia das Letras, 2008, vencedor do Prêmio Machado de Assis de romance, da Fundação Biblioteca Nacional) e da graphic novel Cachalote (Companhia das Letras, 2010); Daniel Pellizzari – autor de Ovelhas que voam se perdem no céu (Livros do Mal, 2001), O livro das cousas que acontecem (Livros do Mal, 2002), Dedo negro com unha (DBA, 2005); e Clarah Averbuck – Máquina de pinball (Conrad, 2002), Das coisas esquecidas atrás da estante (7 Letras, 2003), Vida de gato (Planeta, 2004). 42 No Paralelos.org foram apresentados em primeira mão Tatiana Salem Levy – A chave da casa (Record, 2007, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura – autor revelação), Dois rios (Record, 2011); Vanessa Bárbara – O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, vencedor do Prêmio Jabuti de reportagem), O verão de Chibo (Alfaguara, 2008), Ana Paula Maia – O habitante das falhas subterrâneas (7 Letras, 2003), A guerra dos bastardos (Língua Geral, 2007), Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (Record, 2009), Carvão animal (Record, 2011); Cecilia Giannetti – Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi (Agir, 2007), Bruna Beber – A fila sem fim dos demônios descontentes (7 Letras, 2006), Balés (Língua Geral, 2009), Rapapés & apupos (7 Letras, 2012); Carol Bensimon – Pó de parede (Não Editora, 2008), Sinuca embaixo d’água (Companhia das Letras, 2009); André Laurentino – A paixão de Amâncio Amaro (Agir, 2005); além de outros já publicados em livro como João Paulo Cuenca – Corpo presente (Planeta, 2003), O dia Mastroianni (Agir, 2007), O único final feliz para uma história de amor é um acidente (Companhia das Letras, 2010); Verônica Stigger – O trágico e outras comédias (Angelus Novus, 2003; 7 Letras, 2004), Os anões (Cosac Naify, 2010), Gran Cabaret Demenzial (Cosac Naify, 2007) e Paulo Scott – Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar o sofrimentos dos monstros (Sulina, 2001), Ainda orangotangos (Livros do Mal, 2003; Bertrand, 2007), Voláteis (Objetiva, 2005), Senhor escuridão (Record, 2006), A timidez do monstro (Objetiva, 2006), Habitante irreal (Alfaguara, 2011). Do Escritoras Suicidas participaram Andréa del Fuego – Minto enquanto posso (O Nome da Rosa, 2004), Engano seu (O Nome da Rosa, 2007), Os Malaquias (Língua Geral, 2010, vencedor do Prêmio Saramago); Carola Saavedra – Do lado de fora (7 Letras, 2005, Toda terça (Companhia das Letras, 2007), Flores azuis (Companhia das Letras, 2008, ganhador do Prêmio APCA de melhor romance), Paisagem com dromedário (Companhia das Letras, 2010) e a já citada poetisa Bruna Beber. Não por acaso, a estratégia do agrupamento continuou a ser utilizada mesmo com o surgimento dos blogs. A ferramenta apareceu em 1999 nos Estados Unidos com a criação do site Blogger e logo se disseminou pela rede, chegando a um total de 40 milhões de blogs no mundo em 2006, com uma média de criação de 75 mil novos blogs por dia. Essa mesma pesquisa, realizada pela página americana Technorati, apontava que 43% dos internautas brasileiros liam blogs regularmente. Em 2010, segundo a empresa sueca de monitoramento Pingdom, estima-se que o número de blogs na internet atingira a marca dos 152 milhões14. 14 http://royal.pingdom.com/2011/01/12/internet-2010-in-numbers/ 43 O rápido crescimento dos blogs se deve ao seu atrativo de facilitar o processo de publicação de conteúdo, mediante o simples preenchimento dos campos disponíveis, usualmente o título e o texto, numa interface amigável. Isso, sem exigir conhecimento de programação em html. Ao serem publicados, os textos (ou os posts, na linguagem dos blogueiros) já eram organizados na página indicando a hora e a data em que foram divulgados. Na estrutura de um blog, os posts eram dispostos em ordem cronológica inversa, sempre do mais novo para o mais antigo. Com o decorrer do tempo, automaticamente links (indicando intervalos de meses e anos) eram criados na seção “Arquivo”, em geral apresentados em barras laterais, agrupando os textos publicados no período. Nos dias atuais, contudo, os programas se desenvolveram e ferramentas gratuitas como o Wordpress já disponibilizam temas que dão o visual de sites aos blogs, com páginas principais recheadas de links dando destaque às atualizações mais relevantes, rompendo com a lógica da ordem cronológica. A facilidade, a rapidez e a diluição das barreiras para a autopublicação, que já eram brandas na internet, fizeram com que a nova ferramenta logo fosse adotada por uma geração de autores como alternativa para uma demanda reprimida pelos poucos canais de veiculação de conteúdo autoral. “Neste contexto de saturação, a blogosfera constitui-se em espaço aberto, um viável ‘faça-você-mesmo’, desde que o interessado tenha acesso a computador com conexão à Internet”, (MATOS, 2009, p. 271). A popularização dos blogs, com a elevação da oferta de conteúdo como consequência, impôs aos textos de internet a necessidade de prender a atenção do leitor em pouco tempo. Segundo a pesquisadora Cristina Costa, em referência à obra The second media age de Mark Poster, uma das formas disso acontecer é através do desenvolvimento de um estilo próprio para facilitar no processo de identificação do leitor: A disputa por tempo e atenção de um público imerso em um universo de informações transforma radicalmente as maneiras de dizer e contar as coisas, tendo especial importância a sociabilidade que a linguagem instaura. Poster diz que as pessoas buscam identificar-se com grupos e com eles interagir, e que o uso de um jargão é parte importante de aceitação nas relações virtuais, o elemento visível das identidades. Idioma, estilo, vocabulário e assunto identificam as comunidades virtuais. (COSTA apud MATOS, 2009, p. 276) Comunidades estas constituídas entre os próprios blogueiros, formando redes através de citações, dos comentários dos leitores e dos chamados blogrolls, listas de links recomendados dispostos na barra lateral dos blogs. Em alguns casos, essa rede chegava a se formalizar com a criação de blogs coletivos ou portais que agrupassem uma seleção de blogs. Nesse sentido, um caso brasileiro relevante é o do Wunderblogs.com, portal criado em 2002 44 que chegou a hospedar 23 blogs pessoais (entre os quais, o de Daniel Pellizzari, revelado no COL) quando encerrou as atividades em 2008. Hoje fora do ar, o que resta desse material está reunido na seleta que o portal teve publicada em livro pela editora Barracuda, em 2004, edição que foi divulgada como a primeira do país a materializar a produção dos blogs. 1.3 Escritas de si Seja no coletivo ou no individual, o que parece ter marcado de fato a linguagem dos blogs foi o recurso de atrelar o conteúdo à figura do autor. No Brasil, até hoje se vincula o termo blog aos diários pessoais, espaços reservados para a escrita confessional. O mais notório exemplar desse movimento com conotações literárias é a gaúcha Clarah Averbuck, que após temporada como colunista do COL abriu seu próprio blog: o brazileira!preta. Ainda hoje disponível no endereço http://brazileirapreta.blogspot.com.br, o blog se manteve regularmente atualizado até outubro de 2004, com alguns espasmos de sobrevida em 2005 e outros em 2007. A estreia ocorreu precisamente às 4 horas e 7 minutos da madrugada do domingo 16 de setembro de 2001 com o seguinte post, que já serve como demonstração para o estilo informal, despretensioso, íntimo e banal que marcaria o blog: É, resolvi me render aos weblogs. É por uma boa causa, acredite. Milhares de cartas, pedidos de fãs desesperados e vontade de falar umas merdas que ninguém quer ler me fizeram acreditar que sim, era chegado o momento de ter um weblog. Eu ainda sou favorável à frase "bons tempos em que os diários tinham cadeados", mas tudo depende do diário, certo? Não responda. Então é isso. Bem vindo ao meu weblog estúpido. Prazer, Clarah, vulgarmente conhecida como brazileira!preta. Note a grafia: brazileira!preta. Tem que ser assim. Logo você saberá o motivo. Note que me recuso a escrever apenas "blog". Me lembra aqueles bichos melequentos que eu tinha na infância, os bogs. Meu professor de história que fugiu pra Santa Cruz de Cabrália roubou meu bog. Ok. Você não quer saber. Mas é disso que weblogs são feitos: coisas que ninguém quer saber. Cheers! (AVERBUCK, 2001) A audiência dos seus posts permitiram o acesso de Clarah Averbuck ao mercado editorial, rendendo os livros Máquina de pinball e Vida de gato, que foram usados como fonte de inspiração para o filme Nome próprio, estrelado pela atriz Leandra Leal e dirigido por Murilo Salles. Tanto o blog como os livros e o filme trazem em comum uma protagonista gaúcha, que se mudou para São Paulo e usa a internet para dar vazão a necessidade de se expressar, numa tentativa quase terapêutica de organizar os pensamentos que termina por ameaçar a noção do público e do privado. No entanto, por mais semelhantes que sejam e por mais cruzamentos que as histórias apresentem, a diferença entre eles está na relação das 45 narrativas com a verdade. Nesse caso, apenas o blog pode ser enquadrado como escrita autobiográfica, deixando os livros e o filme no terreno da ficção. Máquina de pinball chega a explorar essa ambiguidade com citações ao escritor John Fante e seu personagem Arturo Bandini (notoriamente apontado como alter-ego do seu criador), pontos em comum com a biografia da autora (ambas são jovens gaúchas que moram em São Paulo, atuam como freelancer, seus textos circulam na internet, trabalharam como vendedoras na loja de discos Bizarre e nutrem gosto pela banda Strokes) e informações dúbias nos espaços reservados à verdade na edição impressa. No prefácio, o ator e dramaturgo Antonio Abujamra enfatiza a presença da autora na narrativa, confundindo-a como personagem, atribuindo a Clarah às ações da protagonista Camila Chirivino (2002, p. 7-8). E, na nota final do livro, a autora fecha com o enigma: “É mentira, mas é tudo verdade. Qualquer semelhança com a realidade não terá sido mera coincidência.” (AVERBUCK, 2002, p. 79). Todavia, essa distinção se revela com facilidade quando posts do blog remetem ao livro Máquina pinball, mostrando com clareza a escala que existe entre o plano ficcional e o verídico. Através de um trecho copiado do livro e colado no brazileira!preta, percebemos que, no blog, a voz da narrativa em primeira pessoa se refere à autora Clarah Averbuck e, no livro, a voz pertence à personagem Camila. A própria variação de linguagem é um indício de que há diferença nos tratamentos. Na internet, os posts são fragmentados, geralmente curtos, com partes enxertadas de outros contextos (letras de música, e-mails, ofertas de emprego...). No romance, os relatos assumem a forma de uma narrativa contínua, com capítulos de quatro a cinco páginas, onde várias ideias são articuladas num mesmo texto, que seguem rumo a um mesmo objetivo. No blog, os posts geralmente são motivados pelos acasos da vida, independentes, desvinculados dos outros textos e se encerram em si próprios, funcionam mais como fatos isolados de uma situação ou pensamento passageiro. É como se o livro fosse a consequência do blog, um produto dele, o resultado da organização e elaboração dos posts escritos no calor da hora, o fruto de um esforço de montagem. “A linguagem não só ajuda a organizar o tumultuado fluir da própria experiência e a dar sentido ao mundo, mas também estabiliza o espaço e ordena o tempo, em diálogo constante com a multidão de outras vozes que também nos modelam, coloreiam e recheiam.” (SIBILIA, 2008, p. 31). Assim, os posts deixam de ser meros relatos do cotidiano para compor uma narrativa maior, num processo semelhante à transformação de uma vivência de Clarah Averbuck em literatura, o que envolve tratamentos na linguagem, reflexões, desenvolvimento de personagem e o uso da imaginação. Essa diferenciação pode ser feita através das ideias desenvolvidas por Philippe Lejeune, cujo estudo Le pacte autobiographique, publicado em 1975, tornou-se referência nas 46 pesquisas sobre a escrita do eu. Segundo ele, a autobiografia é caracterizada por quatro fatores que vão desde a forma de linguagem ao assunto tratado, mas sendo determinante apenas a situação do autor (que deve remeter a uma pessoa real e coincidir com a figura do narrador) e a posição do narrador (cuja identidade precisa ser igual a do protagonista). “Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem.” (LEJEUNE, 2008, p. 15). De acordo com o teórico, para estabelecer essa relação é preciso que as obras tragam essas informações, seja através do título (ex: minhas confissões, minha vida, autobiografia...), de uma seção inicial (nota, prefácio, apresentação e espaços como o About ou Sobre o blog) em que o autor esclarece a situação e firma compromisso com o leitor ou pelo fato do narrador coincidir com a figura do personagem principal, compartilhando o mesmo nome que aparece na capa do livro. Quando isso acontece, institui-se o chamado pacto autobiográfico, que vai ditar a postura do leitor com o texto: “se a identidade não for afirmada (caso da ficção), o leitor procurará estabelecer semelhanças, apesar do que diz o autor; se for afirmada (caso da autobiografia), a tendência será tentar buscar as diferenças (erros, deformações etc.)” (LEJEUNE, 2008, p. 26). Salvo poucas exceções, o que prevalece no uso da ferramenta blog é o rumo trabalhado por Clarah Averbuck, pautado na ideia da verdade, independentemente do gênero textual escolhido para dar forma ao conteúdo. No geral, a leitura sempre ocorre sob o referencial da autoria, lemos aquilo que o autor diz e não aquilo que ele inventa. Os posts, por mais irônicos e fabulosos que sejam, funcionam como posicionamentos do autor, é ele e não um personagem quem está se colocando. O ponto de vista do narrador coincide com o do autor, é a sua opinião que aparece nos comentários sobre um disco, numa resenha de livro, numa crítica aos políticos, numa piada. Se por ventura o gênero for de ordem ficcional, passível de gerar dúvidas, essa informação aparece explicitada na introdução, como no exemplo de Clarah Averbuck, que indica com clareza se tratar de um trecho do livro: “Ok então. O tédio é tanto que resolvi botar aqui um pedacinho do meu livro. Livro? É, livro. Máquina de Pinball.” Agora, claro, existem os pontos fora da curva. E eles surgem de maneira mais contundente, a ambiguidade já faz parte da proposta original do blog, escapando do rótulo blog pessoal para incorporar o viés de obra. A ficcionalidade já aparece entranhada na concepção da página, não é esporádica, não se insere no meio de relatos pessoais. Para exemplificar, recorremos à página Livros que você precisa ler, mantida desde agosto de 2008 pelo pernambucano Bernardo Brayner. Como o título já diz, o blog indica livros, com 47 informações objetivas (editora, número de páginas, tradutor, ano da edição e da publicação), um texto corrido (misto de comentário, biografia do autor e sinopse), a imagem da capa do livro e trechos da obra, devidamente acompanhados com a indicação da página em que se encontram. A semelhança com a formatação de outros blogs e espaços dedicados a resenhas, contudo, é um artifício narrativo para dar veracidade a um conteúdo inventado (autores e obras), bem ao estilo de Jorge Luis Borges. A ficcionalidade da página só aparece de maneira sutil na seção Sobre o blog, com a irônica explicação: “este blog apresenta alguns dos livros que todo mundo deve ler depois de morrer.”15 (grifo nosso). Seguindo o tripé de Lejeune, até observamos que a figura do autor remete a uma pessoa real (sim, Bernardo Brayner existe) e sua voz coincide com a do narrador, mas uma simples pesquisa no Google revela que o assunto tratado foge à vida individual do autor (a única informação que o blog oferece sobre ele é o nome e seu e-mail) e escapole ao real, caracterizando-se uma invenção. A padronização dos textos é um indício disso, revela uma preocupação estética, uma linha editorial que é mantida desde o primeiro post para não desvirtuar a identidade ficcional da página, que passa a ganhar o tratamento de obra. Já no contexto de um blog pessoal, quando os relatos não são constatados como verdade, eles serão encarados como mentiras ao invés de ficções. E isso se verifica mesmo em blogs assinados por um pseudônimo, que funciona mais como um avatar, uma máscara de ocultamento da identidade, para poder expressar algo condenável na sociedade; do que como um recurso ficcional, um personagem independente do autor. Assim, uma das maneiras de compreender a ligação dos blogs com o plano da realidade (sem confundir com realismo) é enxergá-lo como um sinal em resposta à falta de credibilidade da rede. De acordo com a pesquisadora Paula Sibilia, a escrita confessional ajuda a dar credibilidade a uma mídia intangível e, por natureza, suscetível de desconfianças. A pesquisadora inclusive recorre aos pensamentos de Walter Benjamin, sobre a tese a respeito da morte do narrador, elaborada em cima das consequências da imprensa na figura do narrador, rompendo com o critério da tradição, da experiência. Com a ascensão das notícias, os relatos passam a ser carregados de explicações para dotá-las de um conteúdo passível de serem verificadas, fazendo com que elas perdessem o valor da literatura que se encontrava justamente nas sugestões do implícito e no uso das entrelinhas a seu favor. Além da verificabilidade, Sibilia observa que as escritas de si funcionam como uma tentativa de recuperação daquilo que Walter Benjamin chama de aura. No ensaio A obra de 15 http://livrosquevoceprecisaler.wordpress.com/about/ 48 arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o teórico alemão defende que o ganho na capacidade de reprodução da arte tem implicado na perda da aura de uma obra, com as cópias a destacando da tradição, da sua origem e testemunho histórico, dos elementos espaciais e temporais que envolvem a criação da obra. Aquele objeto, por ser único, agregava valor de legitimidade, sua originalidade estava relacionada ao material. “Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial.” (BENJAMIN, 1994, p. 168). No grau de intangibilidade e de fluidez do conteúdo na internet, segundo Sibilia, a presença do autor no texto assume esse papel de tentar restaurar a autenticidade: Com a irrupção das tecnologias digitais e sua insólita capacidade reprodutiva, extingue-se de vez todo vestígio de aura que poderia remanescer em seus ancestrais analógicos. Contudo, as escritas de si ainda parecem exalar uma potência aurática sempre latente, embora essa qualidade não resida nos objetos criados mas em sua referência autoral. Os acontecimentos neles relatados são tidos como autênticos e verdadeiros porque supõe-se que são experiências íntimas de um indivíduo real: o autor, narrador e personagem principal da história. Um ser sempre único e original, por mais diminuto que ele possa ser – eu, você, qualquer um de nós. Pois os fatos relatados nos gêneros autobiográficos são considerados verídicos e, inclusive, verificáveis. Por isso, às vezes, nos escritos éxtimos que circulam pela internet ainda parece assomar algum vestígio longínquo da velha aura. Ou, quem sabe, uma vontade sempre frustrada de recuperar essa originalidade perdida. Talvez isso aconteça porque esses relatos estão envolvidos em um halo autoral que remete, por definição, a uma certa autenticidade – algo que se hospeda no próprio coração do “pacto da leitura” antes mencionado – e implica uma referência a alguma verdade, um vínculo com uma vida real e com um eu que assina, narra e vive o que se conta. (SIBILIA, 2008, p. 37) A pesquisadora, contudo, alerta que a escrita pessoal no ambiente virtual se diferencia daquela dos diários íntimos, prática que se tornou comum no século XIX. Enquanto a narrativa autobiográfica do passado surgiu em consequência da evolução arquitetônica urbana que deu origem aos quartos, erguendo paredes para a distinção entre o público e o privado, numa busca pelo secreto como maneira de autodescoberta, de desenvolvimento da subjetividade; os escritos dos blogs e redes sociais, por sua vez, seguem o sentido oposto, diluem as fronteiras que separam o público e o privado, expõem a intimidade na tentativa de criarem uma audiência e assim conseguirem se encaixar nas engrenagens do mercado editorial. 49 1.4 Breve e informal Apesar de estarmos ressaltando os valores do impresso que persistem no universo digital, é preciso observar que o deslocamento de práticas de um meio para o outro implica em modificações no conteúdo, altera a relação do tempo e, com isso, no diálogo entre emissor e receptor. É verdade que em alguns casos a internet amplia a duração do acesso à informação, facilitando o acesso instantâneo do conteúdo em outros tempos que fogem ao meio original. Na internet, o usuário já não fica refém do tempo imposto pelos programadores de televisão, da efemeridade das notícias dos jornais diários, das emissoras de rádio, das agendas das salas de cinema. A mensagem está disponível para ser acessada de acordo com a conveniência do internauta. Outro indicativo de mudança – nesse ambiente de concorrência extrema, somado ao caráter sincrônico de boa parte do material produzido para a web e ao incômodo da tela do computador no ato da leitura –, reflete-se na brevidade dos textos e, como já tratamos, na informalidade e na busca por originalidade através do experimentalismo. Nesse cenário, a crônica – por ser um gênero de narrativa curta, ligado ao humor, à leveza e à fluidez – encontrou na dinâmica da internet um terreno fértil, sendo adotada como modelo pelo Blônicas, mais um exemplo a buscar legitimidade na ação coletiva. O nome da página vem de um neologismo criado a partir da junção dos termos blog e crônica. A página estreou em janeiro de 2005, publicou duas coletâneas em livro (Blônicas, em 2005; Blônicas 2, em 2009) e se manteve em funcionamento até fevereiro de 2011. Ao contrário do Wunderblogs.com, o Blônicas contava com um regime mais rígido de atualizações, definindo um gênero específico (a crônica) e a periodicidade (diária), onde cada colunista ficava responsável pela atualização da sua crônica em um dia específico. Um das razões para isso talvez fosse o fato do Blônicas ser composto por um elenco de colunistas já reconhecidos como o cronista Xico Sá e o cantor Leo Jaime, além de colaboradores feito Antonio Prata e Marcelino Freire. As regras existiam para por ordem num espaço coletivo, mais com o objetivo de preencher espaços e manter as atualizações regulares para segurar os leitores do que por desenvolvimento individual e necessidade de expressão. Tanto que o mesmo formato do Blônicas pode ser visto no Vida Breve, site de crônicas vinculado ao jornal literário Rascunho, como em páginas institucionais como o blog da editora Companhia das Letras. 50 Já no Wunderblogs, por não carregar o peso de carreiras estabelecidas e empresas, os textos se apresentavam mais informais, fruto em parte da idade dos seus participantes (em 2004, a faixa etária do grupo era de 25 a 37 anos), em parte pela despretensão do meio explicitada na relação dos blogueiros com os leitores: “A relação dos blogueiros com seu público não parece com a do crítico distante e severo, mas com o de um grupo de amigos, compadres.” (MATOS, 2009, p. 281). Essa tendência ao informalismo não parece ser ocasional, mas uma busca para se diferenciar, um olhar crítico ao estado da literatura, da crítica, da educação formal, do jornalismo cultural; conforme apontam os posts O que a literatura não é: séria, de Alexandre Soares Silva: “O que os escritores não querem dizer, sobretudo os mais pomposos, é que o que fazem é uma variante de moleques brincando com bonequinhos” (SILVA, 2004, p. 21) e “O learn to read what silente love hath writ: to hear with eyes belongs to loves fine wit”, de Mozart: “Assim como sucede aos trocadilhos, sutileza tem limites. Trocadilhos demais cansam rapidamente; sutileza excessiva faz com que eu me desinteresse do assunto. Há autores que parecem se comprazer em tornar a leitura um ato doloroso e enfadonho.” (SILVA, 2004, p. 88-89). Se hoje os blogs se consolidaram como ferramenta adotada pelos meios tradicionais de comunicação pela sua agilidade de veicular a notícia, matérias e comentários; logo que surgiram, os blogs se mostravam como um espaço mais livre de amarras, individualizado e suscetível à espontaneidade, dominado por um público jovem em busca tanto de uma linguagem própria como na descoberta de um novo canal de expressão: “os blogs podem ser vistos tanto como ‘cadernos de exercício’ quanto como plataformas editoriais para escritores, que muito provavelmente não teriam onde mostrar o que estão produzindo” (MATOS, 2009, p. 268). Embora houvesse a preocupação de construir uma identidade para formar público, através da seleção de temas, do tom sarcástico, do recurso ao humor e à ironia; ainda havia espaço para a inovação, para a experimentação de gêneros textuais. Na coletânea Wunderblogs.com, por exemplo, são encontrados gêneros que vão do haikai (p. 131) aos ditados populares (p. 189), da letra de música (p. 192-193) à crônica do cotidiano (p. 24-26), da receita culinária (p. 114-116, 179-181) à bula de remédio (p. 153), do verbete de dicionário (p. 44) à resenha (p. 53), do chat (p. 151-152) ao diálogo (p.155), dos testes (p. 214) aos verbetes de enciclopédia (p. 240, 241), das listas (p. 162-163) às reuniões de grupos de apoio (p. 171), dos palíndromos (p. 183, 184) e versos (p. 209) aos aforismos (p. 198). Tal qual o papel, o blog se revelava não como gênero, mas sim como um suporte propício para desempenhar funções variadas, abrigando diversas formas de texto e, com o avanço da informática, arquivos de imagem, sonoros e de vídeo. 51 Porém, apesar da diversidade, a grande maioria do conteúdo vinha formatado em gêneros preexistentes ao mundo digital. Em 2009, a jornalista e pesquisadora Adriana Dória Matos já observava no artigo Escritores de blogs que o uso da internet era limitado entre os autores virtuais: para escritores, a web tem se restringido quase exclusivamente a um meio de comunicação e publicação, um suporte alternativo às revistas e livros, quando em outras vertentes artísticas, como no caso da web art, os artistas se apropriam dos recursos tecnológicos, criando obras que não fariam sentido, ou sequer existiriam, fora do ambiente virtual. Percebemos que os blogueiros literários, até o momento da feitura deste trabalho, pouco se apropriavam das possibilidades tecnológicas do meio, mostrando-se mais adaptados à nova mídia que proponentes de linguagens textuais específicas para ela. Usar recursos como fotografia, áudio e vídeo em blogs – prática hoje recorrente – não significa uma renovação ao campo literário, mas a aplicação de recurso comum, por exemplo, ao jornalismo eletrônico. (MATOS, 2009, p. 274) Nesse ponto, talvez a exceção tenha sido as vídeos-crônicas criadas pela jornalista, radialista, roteirista e redatora Rosana Hermann para o Blônicas. Em 2006 ela aproveitou a linguagem mais amigável dos softwares de edição de imagem junto com o aumento na capacidade de armazenamento dos provedores e a elevação da banda de conexão, para experimentar novos recursos e dar voz e movimento às suas crônicas. Ao invés da coluna escrita, sua participação no Blônicas passou a aparecer na forma de vídeo. Infelizmente, boa parte desse material se perdeu na rede, restando dois vídeos hospedados no site YouTube. Num deles, intitulado Lutar de 22 de novembro de 2006, a autora recorre à metalinguagem para explicar em 1 minuto e 30 segundos sua opção pela vídeo-crônica: Existem duas maneiras básicas de criar alguma coisa. Ou você usa os elementos que você já tem e cria alguma coisa a partir deles, ou você cria uma ideia original e sai a procura de elementos para viabilizá-lo. É assim com uma receita de bolo, é assim com um trabalho de escola e é assim com a vídeo-crônica. Já usei ambos os métodos, quando eu estou com pressa, pego imagens que tenho em arquivo e invento uma história pra ligar os pontos. Quando tenho mais tempo, penso num texto e depois saio em busca de ilustrações. Depois que tudo está a mão, tem ainda o processo de edição, que é sempre um longo e demorado caminho, praticamente uma batalha contra o Windows. Mas a sensação final é de que sempre alguma coisa ficou faltando, porque é uma plataforma nova, uma outra linguagem. O texto tem sido meu companheiro de trabalho há muitos, muitos anos e sou totalmente analfabeta em imagens. Em termos de desenhos, eu parei naquela casinha ao lado da árvore, lembra? Com a chegada da rede, aprendi a lidar um pouco melhor com vídeo, mas sou praticamente uma pré-escolar nessa área também. As vídeo-crônicas semanais têm sido um exercício doloroso de tentativa e erros, de perda de leitores e uma ou outra queixa. Aceito tudo de bom grado porque sei que estou no primeiro estágio de aprendizado, mas apesar do toque de vergonha por usar o método da tentativa e erro assim em público, continuo insistindo. Aprender, renovar, descobrir é sempre um caminho estimulante, que revigora a nossa alma, como diz aquele adesivo de carro “lutar sempre, vencer às vezes, desistir jamais”. (LUTAR, 2006) 52 Ainda que o resultado se apresente tosco aos olhos calejados do ano 2012, construído com narração em off sobre imagens capturadas na internet e música de fundo; as vídeocrônicas de Rosana Hermann esboçam uma tentativa de se apropriar dos recursos multimídia e do vasto conteúdo já disponível da rede em prol da criação, do desenvolvimento de uma linguagem, da investigação de um novo veículo. Por fim, observamos que os posts – sejam eles crônicas, resenhas, vídeo-crônicas ou receitas de culinária – assemelhavam-se na característica de serem pequenos, de fôlego curto, em razão da consciência dos autores sobre a efemeridade da internet, conforme é explicitado nos posts do Wunderblogs.com (SILVA, 2004, p. 56-58, 88) e na duração do vídeo de Rosana Hermann. O interessante é que a busca pela brevidade e o uso que se faz da rede parece estar diretamente ligado às condições de conexão tanto em termos de infraestrutura quanto no tipo de regime político em relação às comunicações. À medida que o acesso à internet é facilitado, mais banal e fragmentado é o discurso. Pegando como comparativo o caso da famosa blogueira cubana Yoani Sánchez, observa-se que seus textos possuem outro grau de elaboração, com seus argumentos mais bem fundamentados justamente porque a conexão em Cuba é clandestina para os cubanos, lenta e cara. Isso fazia com que Yoani primeiro escrevesse seus textos em casa e, só depois de prontos, fosse à lan house para postá-lo no blog. Enquanto isso, em países com melhor infraestrutura e democracia mais definida, a busca pela brevidade chegou ao ponto de render canais como o Twitter, misto de rede social com microblog que limita seus posts (ou melhor, tweets) a apenas 140 caracteres. Lançado no dia 21 de março de 2006 pela empresa americana Obvius, o Twitter reunia em maio de 2012 cerca de 140 milhões de usuários ativos, segundo dados do próprio site16, e ocupando a oitava colocação no ranking global (no Brasil, ele fica em décimo lugar) do Alexa, ferramenta de estatística desenvolvida pela Amazon. A rápida disseminação do Twitter, agregando diversos perfis numa mesma página, tornou a plataforma atrativa e, assim como ocorreu com o blog, também foi assimilada como meio de divulgação e exercício literário entre autores jovens e consagrados, assumindo o desafio da síntese em escrever poemas e contos com até 140 toques. A prática chamou tanta atenção que a tal twitteratura virou tema de matérias do jornalismo cultural, motivo de mesas em eventos e combustível para concursos, como o TOC140 de poesia promovido pela Fliporto e o de microcontos da Academia Brasileira de Letras. A maior parte dessa produção 16 http://advertising.twitter.com/2012/05/twitter4brands-event-in-nyc.html 53 vem de escritores amadores, pessoas que tentam se inserir no mercado através da visibilidade desses prêmios, porém, a plataforma também reserva frutos semeados por autores profissionais, a exemplo dos escritores Sérgio Rodrigues, Marcelino Freire, Xico Sá e do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar. 1.5 Busca pela sobrevivência no papel Na lógica de efemeridade da internet, melhor exemplificada pelo Twitter (que se propõe a ser o veículo da notícia em tempo real), essa produção acaba soterrada ante o imenso fluxo de informações publicadas por minuto. Segundo levantamento feito pela Pingdom, em outubro de 2011 o Twitter alcançou a marca de 250 milhões de tweets postados por dia e, em agosto desse mesmo ano, registrou-se 8.868 tweets por segundo durante a cerimônia de premiação do MTV Video Music Awards17. Diante desse fluxo de mensagens, por mais que um post se dissemine através de retweets (comando para repassar mensagens de outros usuários), o que permanece, na prática, são os textos que fazem o caminho em direção ao papel, às editoras e à estante das livrarias; um ciclo que ainda detém o poder de legitimação na literatura. A exemplo dos blogs, a produção literária do Twitter também tem procurado uma sobrevida no impresso, alimentando páginas de livros como o de poesia www.twitter.com/carpinejar de Fabrício Carpinejar e dos 15 títulos publicados em livretos pela coleção Clássicos da Twitteratura Brasileira, lançada em janeiro de 2011 pela Suzano Papel e Celulose, que reúne desde autores marcadamente literários como Xico Sá e Fabrício Carpinejar ao empresário Eike Batista, o psiquiatra Flávio Gikovate e a cantora Pitty. A força do Twitter tem se mostrado tão influente que até livros não originados na plataforma tem seguido a restrição dos 140 toques. Um dos casos mais relevantes é o livro Estórias mínimas de José Rezende Jr. (vencedor do Prêmio Jabuti na categoria de contos, em 2010, com o título Eu perguntei pro velho se ele queria morrer), composto por uma seleção de 170 microcontos publicados inicialmente na revista eletrônica Terra Magazine. Se Júlio Cortázar comparava o romance a uma luta vencida por pontos e o conto a uma por nocaute, os microcontos de Rezende Jr. derrubam seus leitores logo no primeiro golpe. Com pleno domínio do formato, o autor usa a seu favor a restrição de espaço, tornando as entrelinhas parte essencial da narrativa, exigindo a participação do leitor para que ele complete com sua imaginação às indicações oferecidas pelas palavras. 17 http://royal.pingdom.com/2012/01/17/internet-2011-in-numbers/ 54 Tematicamente, porém, apenas dois tweets remetem às singularidades do universo digital. Em O microconto do século, Rezende Jr. brinca com a brevidade do formato e ironiza as pretensões grandiosas que envolvem os desejos dos que o praticam: “Queria escrever o romance do século. Mas quando o avião começou a cair, só teve tempo para o microconto.” (2010, p. 18). E em Mentiras virtuais, ele explora a possibilidade de desprendimento do corpo, do anonimato da internet, onde o uso de nicknames foi prática recorrente na web anterior às redes sociais: “Ok, não tenho cabelos loiros nem olhos verdes. E também não sou mulher. Mas se eu tivesse contado a verdade, você me amaria como agora?” (2010, p. 27). Além da qualidade do trabalho e esforço de autores como o de José Rezende Jr., Clarah Averbuck e do ineditismo de tantas obras comentadas neste capítulo, é preciso reconhecer que elas só estejam merecendo a nossa atenção aqui porque foram realocadas em livro. A questão da sobrevivência dessas obras não se resume à simples efemeridade de dados digitais, mas a toda uma estrutura que envolve a literatura, ou aquilo que o crítico Antonio Candido chama de sistema literário. Esse esquema, que é baseado no modelo do livro impresso, aponta para a dificuldade das obras digitais se inserirem nos meandros das resenhas jornalísticas e para os obstáculos de se obter remuneração na internet, onde o acesso ao conteúdo já se estabeleceu como gratuito, com a livre troca de arquivos. Outra questão se confunde com a própria característica dos blogs, fruto da sua rapidez de atualização, fragmentação e convenções para a organização de dados, como compara o jornalista e escritor Homero Fonseca no prefácio do livro Blogosfera: “Se a blogosfera permite uma recepção quantitativamente sem comparação com o universo criado por Guttemberg, o formato livro – seja de papel ou eletrônico – ainda tem a capacidade de sistematizar as ideias com mais clareza e senso histórico.” (FONSECA, 2010, p. 12). A lógica dos blogs é semelhante a das colunas de crônicas dos jornais, que – mesmo já sendo consideradas locais de prestígio na literatura – geralmente só ganham relevância e ficam passíveis de análise quando reunidas em livro. Até em obras acabadas, como Miséria e grandeza do amor de Benedita, vemos que os espaços legitimadores da literatura ainda apresentam resistência em se dedicar à análise de obras digitais. Numa das reportagens sobre o lançamento da versão impressa da obra, João Ubaldo Ribeiro sugere que o fraco desempenho comercial do e-book talvez tenha sido culpa da ausência de exemplares para serem enviados aos resenhistas dos jornais e revistas (JOÃO ..., 2000b). Mesmo nos espaços de crítica literária existentes na própria internet não há a preocupação de se analisar a produção virtual, as páginas virtuais de crítica se constituem como meras alternativas à redução dos espaços nos suplementos e cadernos culturais – o site 55 Copa de Literatura (possivelmente a mais famosa vitrine de crítica na internet) só aborda obras impressas e as redes sociais centradas no livro (casos do Skoob e O Livreiro) ignoram as vertentes digitais da literatura. Dessa forma, para uma melhor repercussão, as obras e autores publicados em sites e blogs continuam dependentes da materialização em livro. Guardadas as devidas proporções, essa migração para o suporte impresso ainda padece do mesmo princípio usado por Marcel Duchamp para elevar objetos do cotidiano à condição de arte. Quando, em 1917, a Society for Indenpendet Artists recusou a obra A Fonte (assinada sob o pseudônimo R. Mutt), Duchamp, ainda disfarçado, publicou sua defesa na revista The Blind Man e alçou o mictório ao status de arte, dando prosseguimento à técnica do ready-made (HOWARTH, 2000). A arte, contudo, não estava no mictório em si, mictórios não são obras de arte e dificilmente alguém se predisporia a problematizar um mictório além da sua funcionalidade no banheiro. Mas, exposto num museu, o mictório revelava a importante relação que existe entre a obra de arte e o local onde ela aparece ou é divulgada. Ninguém diria que o mictório seria uma obra de arte se ele não estivesse sendo discutido e tratado como tal. Longe das prateleiras, as obras digitais sofrem do mesmo mal. 56 2. Literatura ao vivo: o caso de Os anjos de Badaró Enfileirado na estante, a lombada com o título Os anjos de Badaró e o nome do autor Mario Prata não se diferencia em nada às outras brochuras ao seu lado. Aberto, o interior da obra também não denuncia qualquer distinção dos outros volumes, apresenta o mesmo odor da mistura de cola, celulose e tinta offset que se convencionou chamar como “cheiro de livro”, páginas com folhas de papel branco impressas com fileiras de palavras na cor preta e os prolongamentos da capa que, dobradas para dentro, assumem a função de orelhas. Figura 3: Capas das duas edições do romance Os anjos de Badaró, publicadas pela editora Objetiva em 2000 e pela Planeta em 2012, respectivamente. Nenhuma delas remete à experiência inovadora de escrita on-line realizada por Mario Prata. A exemplo de quase tudo na vida, é pelas orelhas, essas antenas de captação sonora, que penetram a discórdia e a curiosidade. Naquele cantinho estreito e escondido, a sedução começa, nas ditas e lambidas preliminares. Como não há quem resista a um cochicho, um fungado ou a um beijo na orelha, é por ali que a primeira edição da obra sussurra, em apenas 78 palavras, que Os anjos de Badaró representa um significativo ponto de transição na história do suporte livro, acrescentando à literatura brasileira um capítulo que mexe em questionamentos teóricos essenciais para a arte literária e provoca reflexões sobre o futuro nesses tempos incertos de premonições sobre o fim do livro impresso: “Ávido e original, esse livro foi escrito ao longo de seis meses, pela Internet – através do site www.marioprataonline.com.br, conectado ao portal Terra. A cada dia, nosso autor 57 escrevia um capítulo – e lia sugestões on-line de leitores ávidos e virtuais.” (PRATA, 2000a, orelha). A partir do dia 24 de maio de 2000 em diante, ao longo de seis meses, foi possível acessar o site e encontrar Mario Prata, lá da sua casa, escrevendo, fazendo com que milhares de leitores, de diversas partes do mundo, acompanhassem ao vivo a gênese – “letra a letra, palavra a palavra, corte a corte, morte a morte” (PRATA, 2000a, orelha) – de Os anjos de Badaró. O romance se desenvolve através da investigação empreendida pelo jornalista Alcides Capella18 sobre o misterioso suicídio do amigo de infância Ozanan Badaró, um milionário dono de uma rede de prostituição de luxo que envolvia até consórcio para programas com jovens universitárias. A história conta com um ponto de partida antigo, já usado de maneira tímida pelo autor na primeira versão de James Lins, 51: o playboy que não deu certo (PRATA, 1994, p. 90). Esse mesmo mote reaparece numa das crônicas de Minhas mulheres e meus homens (PRATA, 1999, pp. 34-35), onde Prata revela a origem da sua inspiração, escrevendo sobre um amigo de infância chamado Badaró, que se torna degustador de puta. Aquilo que seria mais um romance tradicional, com publicação já acertada pela editora Objetiva, ganhou outro rumo quando a cunhada de Prata lhe fez um pedido: “Ela perguntou se podia passar um dia lá em casa para me ver escrever, porque ela tinha a curiosidade de ver como é um dia na vida de um escritor. Então eu tive a ideia: pô, será que dá pra eu escrever e todo mundo ver através da internet?” (informação verbal)19. A curiosidade – somada ao interesse de outros leitores por seu processo criativo, às possibilidades de um novo veículo de comunicação e às promessas de grandes negócios das empresas pontocom (PRATA, 2000b, p. 7) – logo empurrou o projeto Os anjos de Badaró para o ambiente on-line. 2.1 Metalinguagem: a informática como tema Por coincidência, antes mesmo da migração de Os anjos de Badaró para o ambiente on-line, o argumento de Mario Prata já previa que a investigação de Alcides Capella se desenvolveria através de textos salvos em disquetes por Badaró, micros e sites (PRATA, 2000b, p. 7). Mesmo que a ideia original não fosse pensada especificamente para a web, ao deslocar a narrativa para o meio virtual, essas informações sugerem novos significados, transformam-se em metalinguagem, ganham o peso de uma autorreflexão de alguém que 18 O nome Alcides Capella já fora utilizado pelo autor para batizar um advogado na primeira edição de James Lins, 51: o playboy que não deu certo (1994). Na segunda edição de James Lins (2003), talvez pela proximidade com o lançamento de Os anjos de Badaró (2000), o advogado foi rebatizado como Jorge Varela. 19 Entrevista gravada por este autor com Mario Prata no dia 5 de dezembro de 2010 no Recife, em decorrência da sua participação no evento Freeporto. 58 procura se conhecer, ambientar-se e chamar atenção para o terreno em que pisa. “A ficção que chama atenção sobre a sua própria condição ficcional mobiliza os mesmos labirintos e termina por levantar questões relevantes sobre a realidade mesma – ou melhor, sobre os nossos conhecimentos e desconhecimentos da realidade” (BERNARDO, 2010, p. 46). A metalinguagem ganha ainda mais peso quando se trata da obra de Mario Prata. Escritor experiente com mais de 20 títulos publicados (dos quais onze são anteriores a Os anjos de Badaró), Prata tem como característica a inquietação e o gosto pelo desafio. Por mais que seu nome tenha alcançado um lugar no primeiro time de cronistas do Brasil como colunista do jornal O Estado de São Paulo e da revista IstoÉ, ele não se acomoda na zona de conforto e se impõe uma interessante pesquisa atrás de novas maneiras para dar vazão às histórias que brotam na sua cabeça. Atento às mudanças que vem ocorrendo em nosso cotidiano, o autor mineiro procura experimentar a cada livro, promovendo um processo de reflexão da literatura sobre a relação entre gêneros textuais e suportes. Em Schifaizfavoire (1993), por exemplo, Prata adota a estrutura dos dicionários para desfiar crônicas bem humoradas na forma de verbetes sobre as diferenças de significados entre o português falado em Portugal e no Brasil. Em Diário de um magro (1997), ele se apropria da forma dos diários para contar sua experiência de 15 dias num spa médico. Em Minhas mulheres e meus homens (1999) o autor se vale das possibilidades da sua agenda eletrônica para organizar o livro de crônicas. Em James Lins (1994) e Purgatório (2007) ele explora as possibilidades da narrativa seriada, publicada originalmente como folhetim no jornal O Estado de São Paulo. Em Buscando o seu Mindinho (2002) ele se aventura na diversidade de gêneros contidos num almanaque, reunindo desde relatos pessoais do personagem a poemas, sinopse e roteiro de telenovelas, notícias científicas, dicas de higiene, verbete sobre instrumento musical, matérias de jornal e toda sorte de cultura inútil encontrada na internet (posts de blogs, e-mails de amigos, traduções do termo mindinho em 12 idiomas, lista de nomes estranhos, de apelidos e dos significados de gestos em diferentes sociedades). E cabe ressaltar que quase toda migração de gênero é acompanhada do recurso da metalinguagem, onde o autor abre parênteses para explicar a escolha do formato e o seu processo criativo. Em Minhas mulheres e meus homens a explicação vem logo no prefácio assinado pela escritora Marta Góes, seguido de uma bula onde Mario Prata explica as maneiras como o livro pode ser lido. A própria diagramação do volume, com imagens simulando as barras de rolagem verticais típicas de dispositivos eletrônicos de leitura, também já evidencia a organização diferenciada da obra. Em Minhas tudo (2001), o título começa e termina com a crônica Minhas livro, cuja epígrafe diz: “Reunião de folhas ou cadernos, 59 cosidos ou por qualquer outra forma presos por um dos lados, e enfeixados ou montados em capa flexível ou rígida” (PRATA, 2001, p. 11 e 175). Em Buscando o seu Mindinho a explicação para o formato de almanaque aparece nas duas primeiras seções, junto com informações sobre o processo criativo de composição da obra. Em James Lins, a narrativa seriada e sua exposição num jornal de grande circulação fazem parte da estratégia do protagonista para causar comoção pública. Em Minhas vidas passadas (a limpo), de 1998, a explicação sobre as supostas regressões, realizadas através do hipnotismo, surge no prefácio e é reiterada diversas vezes ao longo da obra nos diálogos entre o paciente (o próprio Mario Prata) e o psiquiatra Leonardo Ramos. Em Purgatório o doutor Júnior se propõe a escrever a autobiografia autorizada de Dante (PRATA, 2007, p. 51) e em Sete de paus, o agente da Polícia Federal Ugo Fioravanti convida o escritor (mais uma vez o próprio Mario Prata) para acompanhá-lo numa investigação e, assim, poder vivenciar uma experiência capaz de lhe render um livro (PRATA, 2008, pp. 149-150). Nessas seis últimas obras citadas, e mais em Os anjos de Badaró, a metalinguagem também serve para evidenciar a relação da literatura com o mercado, fazendo os personagens escreverem suas histórias impulsionados pelo sonho de reconhecimento profissional, promessa de ganhar dinheiro e chance de alcançarem a fama. Dado o histórico de Mario Prata no uso de recursos metalinguísticos em sua obra, é natural que o autor se colocasse no papel de refletir sobre as peculiaridades do ambiente digital ao resolver se expor na internet, sob a vigilância dos leitores, para escrever Os anjos de Badaró. Ao longo da narrativa, isso acontece nos aspectos da volatilidade dos arquivos digitais, nas implicações de identidade geradas pela virtualização do indivíduo e no estranhamento do público sempre causado no processo de implementação de uma nova tecnologia. 2.1.1 Um olhar sobre o contexto histórico Mesmo com a migração para a internet, o projeto de Os anjos de Badaró continuou ligado ao meio impresso, com a publicação da história já acertada pela Objetiva, que saiu em papel apenas uma semana após Mario Prata ter digitado o ponto final da narrativa. “A editora foi fazendo o livro enquanto eu escrevia. Demorei uma semana escrevendo o capítulo final para dar tempo do livro ficar pronto. Tinha até tamanho definido para encaixar direitinho” (PRATA, informação verbal). Isso talvez explique uma certa timidez tanto do volume quanto do texto em divulgar e explorar as especificidades do meio digital. 60 O acanhamento da edição da Objetiva se mostra em relação ao caráter inovador da experiência. Além das 78 palavras da orelha que tratam da experiência digital, o volume se refere vagamente ao processo de criação da narrativa com a afirmativa: “Este livro foi escrito pela Internet graças a uma ferramenta criada pela TV1.com” (PRATA, 2000a), impressa na página da ficha catalográfica, na fonte de menor tamanho usada em todo o livro. A partir dessas informações, a dedicatória do autor – apresentada com a mensagem “para os meus anjos da guarda”, seguida de uma lista de 56 nomes e seus respectivos apelidos entre parênteses que ocupam duas páginas – nos faz presumir que os anjos se tratem de leitores que acompanharam a escritura do romance. Como havia uma cláusula contratual para evitar a concorrência de downloads pela rede, exigindo a retirada da história do ar logo após a edição física ser publicada; a carência de dados sobre a experiência não pode ser atribuída a uma questão de medo da concorrência da aquisição gratuita do livro pela web. Também não parece ser efeito da falta de distanciamento histórico para avaliar a originalidade da experiência, já que o projeto alcançou bons níveis de audiência e foi justamente seu aspecto inovador que deu projeção à obra na mídia, atingindo mais de 400 mil leitores e matérias na imprensa nacional, francesa, italiana e espanhola. A explicação talvez esteja no fato da edição ter nascido num período onde a internet se mostrava ainda mais incerta do que nos dias de hoje. Afinal, passados 12 anos da primeira versão, a segunda edição de Os anjos de Badaró, publicada pela Planeta, é mais enfática em relação a peculiaridade do modus operandi da obra, estampando o feito digital em toda a contracapa e dedicando a orelha esquerda inteira do volume ao caráter inovador da experiência. Como vimos no capítulo passado, através de Pierre Lévy e Giselle Beiguelman, o estranhamento gerado por uma nova tecnologia é suavizado pelo emprego de práticas e termos de mídias anteriores, já absorvidas pelo público; o que justifica a timidez na divulgação e no uso dos novos recursos num primeiro momento. Ao observarmos a estrutura narrativa de Os anjos de Badaró, vemos que, em termos de formato, a história não se diferencia em nada quando a comparamos com outros textos impressos. Embora naquela altura o escritor já tivesse utilizado o recurso dos hiperlinks para romper a linearidade da escrita, oferecendo três caminhos para a leitura de Minhas mulheres e meus homens (PRATA, 1999, p. 9); Os anjos de Badaró se apoia na estrutura da narrativa policial tradicional, com cenas de sexo e mortes misteriosas, para contar a história do suicídio de Badaró e a cobiça entorno do futuro do seu negócio milionário de prostituição. 61 Mas, se na forma narrativa Mario Prata não apresentou grandes mudanças, ao menos o texto se revelou uma boa fonte histórica ao registrar algumas transformações importantes ocorridas por conta da popularização da internet. Um papel de “historiador de instantes” que há muito o autor já exercia como cronista e volta a executar em Os anjos de Badaró, em sintonia com a proposta do projeto em localizar o escritor no tempo e espaço através de uma webcam. O artista é visto em seu ambiente de trabalho, em seu esforço de fazer visível aquilo que está por existir: um trabalho sensível e intelectual executado por um artesão. Um processo de representação que dá a conhecer uma nova realidade, com carcaterísticas que o artista vai lhe oferecendo. A arte está sendo abordada sob o ponto de vista do fazer, dentro de um contexto histórico, social e artístico. Um movimento feito de sensações, ações e pensamentos, sofrendo intervenções do consciente e do inconsciente. (SALLES, 1998, p. 26-27) Em algumas cenas, o autor aponta para as praticidades permitidas pela rede, que terminaram por possibilitar mudanças comportamentais da sociedade. Entre os exemplos, citamos a passagem em que o resultado de um exame de sangue é obtido sem sair de casa (PRATA, 2000a, p. 156) e a abordagem sobre a rapidez dos sistemas de busca e o volume de informações contidas na rede (PRATA, 2000a, p. 98). Seguindo o esquema elaborado pelo professor Jorge Luiz Antonio, mencionado no capítulo anterior, vemos que nesse ponto Os anjos de Badaró alcança a terceira fase do relacionamento entre o artista e o componente tecnológico, transformando-o em tema da obra (2008, p. 29). O livro então apresenta seu valor documental ao relatar as reações geradas durante o período de transição de uma cultura analógica/material para a eletrônica/virtual, pontuando alterações e possibilidades permitidas pela web. Para tanto, o autor se vale do personagem Alcides Capella, um jornalista policial com 63 anos de idade e 40 de profissão, alheio à informatização do mundo. Na redação, ele resiste com sua velha máquina de escrever Remington, nega-se a ter aulas de informática e vê seu salário desvalorizado em comparação com o do Gatão, profissional responsável pelos computadores do jornal. Mas quando o amigo Ozanan Badaró morre, deixando pistas espalhadas em disquetes; Capella se vê obrigado a comprar um computador para desvendar o mistério que envolve o suicídio e finalmente escrever uma reportagem relevante capaz de lhe render o tão desejado Prêmio Esso. A reação da sua esposa Cláudia é sintomática para mostrar a ruptura provocada pela informatização: “Computador? Computador! E você acha, Alcides, que, com a sua idade, você vai conseguir aprender a mexer naquele negócio? Nessa idade?” (PRATA, 2000a, p. 27). 62 O estranhamento causado pela informática se estende à linguagem que a cerca, com seus termos específicos e estrangeirismos, virando motivo de piada no livro quando os personagens se deparam com as palavras delete, inicializar, power, ícone, megas e arroba: “É mega pra caralho, Gatão. E no que consiste um mega? Quantas arrobas tem um mega?” (PRATA, 2000a, pp. 68-69). O espanto dos personagens é reflexo de um período de mudança, em que a informática começava a se popularizar no Brasil e a internet só fora liberada no país há cinco anos, com os infortúnios da conexão discada (PRATA, 2000, p. 183) e a ilusão de sucesso fácil, com a supervalorização especulativa das empresas pontocom. Esse boom é representado na obra através da expansão para a internet da rede de prostituição de Badaró, através do site Os Anjos de Badaró (www.geocities.com/anjosdebada), que após sua morte estava avaliado em 2 milhões de dólares (PRATA, 2000, p. 92). Nessa época, a internet vivia sua bolha, com ações supervalorizadas nas bolsas de valores e grupos de investidores ansiosos para entrar nesse mercado, tornando jovens empreendedores milionários em tempo recorde. Nesse clima de euforia, profissionais foram contratados a peso de ouro. Estima-se, por exemplo, que o iG chegou a pagar salários de R$ 40 mil mensais para o jornalista Anselmo Góis e mais 50 mil dólares mensais para o jornalista Matinas Suzuki Jr. assumir o posto de diretor de conteúdo do portal. Em dois meses (janeiro e fevereiro de 2000), de acordo com o Ibope, as empresas pontocom investiram mais de 65 milhões de dólares na divulgação das suas marcas e serviços nas mídias tradicionais (VIEIRA, 2003, p. 237). Segundo o depoimento de Suzuki Jr. para o livro Os bastidores da internet no Brasil, os investimentos dos sites nacionais em conteúdo no ano 2000 foram de 19 milhões de dólares (VIEIRA, 2003, p. 240). Considerando o contexto histórico, a própria experiência de Os anjos de Badaró é uma aposta desse momento de otimismo. Para implementar a ideia – que abarcava os custos para o desenvolvimento de um software específico, a montagem de uma parafernália tecnológica na casa de Mario Prata e o envolvimento de uma equipe com outras oito pessoas (três para auxiliar o autor, três da produtora TV1.com e outros dois do portal Terra) –, foi necessário a participação de uma produtora (no caso a TV1.com) e a venda de cotas de patrocínio, adquiridas pelo portal Terra. 2.1.2 Um olhar sobre a volatilidade do digital Uma das características do meio digital abordada em Os anjos de Badaró é em relação à facilidade de edição nos arquivos digitais, que, ao contrário de um palimpsesto ou do papel, 63 não deixa marcas na reescrita. Pierre Lévy aponta que a gravação digital implica na desmaterialização dos objetos, transformando imagens e textos em sequências de 0 e 1 do código binário, o que torna essas informações mais fluídas e voláteis (LÉVY, 2010, p. 56). O mesmo se aplica às mensagens de correio eletrônico, que perdem parte da sua credibilidade ao deixarem de serem objetos únicos, físicos e verificáveis pela grafia, assinatura manual, remetente e carimbo dos serviços postais para se tornarem suscetíveis à manipulação do CTRL C + CTRL V20, como observa Lévy: “as mensagens recebidas em uma caixa postal eletrônica são obtidas em formato digital. Podem, portanto, ser facilmente apagadas, modificadas e classificadas na memória do computador do receptor, sem passar pelo papel.” (2010, p. 97). Na trama, Mario Prata utiliza isso quando as personagens dona Blanche e Cláudia (sogra e esposa de Capella, respectivamente) observam pela função propriedades que os documentos dos disquetes foram manipulados após a morte do Badaró (PRATA, 2000, p. 164, 167, 174, 182, 197). Se no livro impresso isso funciona como recurso narrativo para desmascarar as atitudes suspeitas de Naretta (viúva de Badaró), no ambiente digital essas passagens ganham o significado de uma reflexão do autor sobre seu próprio processo de criação, que envolveu revisões e modificações diárias dos textos escritos on-line, como mostra o depoimento do escritor: “No dia seguinte, a primeira coisa que eu fazia era trabalhar no capítulo anterior. Mexia ali, revisava na própria internet e, quando estivesse pronto, passava para uma seção dos capítulos prontos, que dava para abrir direto” (PRATA, informação verbal). Nesse sentido, a experiência de Os anjos de Badaró foi de suma importância por romper com a noção da criação literária como presente das musas, com as obras surgindo prontas, de um só sopro. De certa forma, o projeto significou uma atualização dos diários mantidos pelos artistas durante a composição de uma obra, expondo dúvidas, insatisfações e ideias ainda não materializadas. A diferença é que Mario Prata fez isso na prática, transformando a obra a olhos vistos, de maneira natural, sem teorizar sobre a necessidade de mudança até por conta da própria maleabilidade da mídia digital (SALLES, 2006, 162). Segundo a coordenadora do Centro de Estudos de Crítica Genética da PUC-SP, Cecilia Almeida Salles, esse processo de ajuste é importante para que o artista desvende a materialidade da sua obra, adaptando-a ao conteúdo e vice-versa, o que explicaria o avanço gradativo das reflexões do autor sobre a informática e as especificidades da internet: 20 Comando de atalho que significa copiar (CTRL C) e colar (CTRL V) nos gerenciadores de texto. 64 Todo esse processo envolve manipulação, que implica um movimento dinâmico de transformação em que a matéria recebe novas feições, pela ação artística. Na medida em que vai sendo manipulada, sua potencialidade é explorada, vai, necessariamente, sendo reinventada e seu significado amplia-se. (SALLES, 1998, p. 72) Ao revelar os bastidores da escrita via internet, com suas várias tentativas de erros e acertos, Mario Prata contribuía para desmistificar o ato de escrever, permitindo que os leitores vivenciassem a obra como processo, comparando diferentes versões do mesmo texto, percebendo que a construção de uma obra é fruto do esforço contínuo de escrita, somado de seguidas revisões, exercício crítico e, muitas vezes, da própria eliminação de trechos já escritos, num exercício lúdico do que prega a vertente da crítica genética. Como consequência, Salles diz que o acesso a várias versões de um mesmo texto expõe uma gama de obras possíveis, revelando intervenções do acaso e colocando sob suspeição a “idéia da obra entregue ao público como a sacralização da perfeição.” (1998, p. 26). 2.1.3 Um olhar sobre a identidade virtual Quando o personagem Alcides Capella estranha a desenvoltura da sogra na informática, Mario Prata coloca em discussão outra característica trazida pela internet: a possibilidade de anonimato da web, do desprendimento que se dá entre a mensagem e o emissor. De maneira bem humorada, o autor expõe o problema da identidade causado pelas salas de bate-papo virtuais, que se tornaram um fenômeno de audiência no início da internet no Brasil: “Me disseram que tem lá um troço chamado chat que é pra isso mesmo. Para uma velhinha, como este exemplar que tenho aqui na minha frente, mentir que tem 20 anos, o peito da Feiticeira e a bundinha da Tiazinha” (PRATA, 2000a, p. 84). Por essa passagem, mais uma vez vemos que o autor registrou na obra um hábito que fez parte do seu cotidiano durante os seis meses de escrita, fazendo alusões aos bate-papos abertos pelos internautas que acompanhavam Os anjos de Badaró e aparecem listados na dedicatória do livro impresso com seus nomes e respectivos nicknames. “Eles (leitores) começaram a bater-papo todo dia num chat. Aí entrei e vi que eles estavam falando de mim, claro, tudo fã. Achei ótimo aquilo, entrei com meu nome e falei ‘oi, pessoal, tô aqui’. Só que ninguém se manifestou, nada, silêncio. Aí chamei uma menina pro reservado e ela disse que eu era o quinto Mario Prata que entrava ali” (PRATA, informação verbal). Segundo o autor, ele precisou passar por uma bateria de testes para comprovar que ele realmente era o escritor Mario Prata. 65 Por se tratar de uma ferramenta de comunicação instantânea centrada exclusivamente no texto, o chat permitia a desvinculação do corpo em relação ao indivíduo, da aparência em relação às ideias e do mundo físico em relação ao virtual. “As duas características distintivas do mundo virtual em sentido mais amplo, são a imersão e a navegação por proximidade. Os indivíduos ou grupos participantes são imersos em um mundo virtual, ou seja, eles possuem uma imagem de si mesmos e de sua situação.” (LÉVY, 2010, p. 75, grifo do autor). Com esse desprendimento, as salas de bate-papo possibilitavam, através do texto, o encontro de pessoas desconhecidas ou não, distantes geograficamente ou não. Por meio de letras impessoais na tela, elas podiam se conhecer, descreverem-se ou até projetarem-se em caracteres como pessoas totalmente diferentes; remontando preocupações sobre a autoria surgidas nos primórdios da escrita21. O fenômeno virtual de poder assumir outra personalidade através da interface gráfica dos computadores recebeu o nome de avatar, cuja etimologia está ligada ao Avatarã da religião hindu, que se refere a encarnação das divindades no plano terreno. Segundo a pesquisadora Poliana Barbosa de Oliveira, foi a partir do romance Snow crash de Neal Stephenson que o termo se difundiu no meio digital, sendo utilizado para atribuir a presença do indivíduo no ambiente virtual: “Não sendo exatamente o usuário, o avatar é, contudo, uma manifestação do usuário; ou talvez, melhor dizendo, uma virtualização do usuário. Desse modo, o usuário pode assumir uma representação completamente diferente de sua forma física (o que pode ser desde transformações simples, como modificar o corte de cabelo, passando por uma mudança de etnia, por uma “cartunização”, até chegar em mudanças mais drásticas, como a representação por meio de uma criatura mitológica ou mesmo como uma pintura abstrata), e mesmo assim manifestar uma parte significativa do seu “eu” através da forma assumida.” (OLIVEIRA, 2011, pp. 83-84) É preciso lembrar também que no início do século XXI o recurso da webcam ainda era restrito, os softwares de bate-papo (mIRC e ICQ) não traziam a opção de inserir fotos no perfil, as redes sociais ainda não existiam, a propagação de imagens pela rede não atingira as proporções atuais com a popularização das câmeras digitais e as conexões à internet eram bem mais lentas, nos primórdios do serviço de banda larga no Brasil, o que inviabilizava a transferência de arquivos mais pesados. Com a inversão desse cenário, os avatares deixam de ser imposições e as novas ferramentas virtuais incentivam a queda das máscaras, facilitando a postagem de fotografias e a criação de perfis com teor verídico. 21 Ao mesmo tempo, como a dinâmica dos chats exigia uma agilidade que mais se aproximava da comunicação oral do que da escrita, logo os usuários passaram a transformar as signos escritos, estabelecendo convenções como a abreviação de expressões (vc ao invés de você), substituições gráficas sem alterações na sonoridade (do k em vez do qu) e o recurso que ficou conhecido como emotions, adoção de símbolos para expressar sentimentos e movimentos faciais como alegria =) , amor <3 ou piscadelas ;) . 66 Essas mudanças, segundo a pesquisadora de cultura contemporânea Paula Sibilia, trazem como consequência o desvio no interesse pela vida de figuras ilustres para o cotidiano de pessoas comuns. Outra alteração é em relação ao eixo do público e privado, com o alargamento da faixa para o acesso à intimidade (SIBILIA, 2008, p. 34). Aos poucos, usuários criativos e estranhos da rede começaram a se destacar, logo sendo alçados a celebridades do ambiente digital, conferindo aos perfis das redes sociais (como Twitter e Facebook) valor de capital social, medido pelo número de seguidores e sua capacidade de influenciar comportamentos e o consumo de bens culturais. Em 2000, contudo, a situação era diferente e o uso de nicknames era uma prática recorrente, um fenômeno que abria novas experiências para a comunicação interpessoal. Tanto que, um ano depois, Mario Prata retorna ao tema na crônica Minhas letras, presente no livro Minhas tudo, obra posterior a Os anjos de Badaró: “Apaixona-se, hoje em dia, pelo texto. Via internet. Via cabo, literalmente. [...] Sim, pela primeira vez nesta nossa humanidade já tão velhinha, as pessoas estão se conhecendo primeiramente pela palavra escrita. E lida, é claro. [...] A relação, o namoro, começa ali no monitor. Você pode passar algumas horas, dias e até semanas sem saber nada da outra pessoa. Só conhece o texto dela. E é com o texto que vai se fazendo o charme. Você ainda não sabe se a pessoa é bonita ou feia, gorda ou magra, jovem ou velha. E, se não for esperto, nem se é homem ou mulher. (PRATA, 2001, p. 14-15) O conceito é retomado como estratégia narrativa pelo autor em pelo menos outras duas obras. A possibilidade de anonimato vira a fonte de mistério que move a investigação policial do romance Os Viúvos (2010), quando o detetive Ugo Fioravanti passa a receber e-mails assinados pelas iniciais E. R. N. E em Purgatório, o protagonista Dante encara como uma brincadeira de mau gosto as mensagens recebidas por correio eletrônico e via chat da sua paixão Beatriz, que havia falecido num desastre de avião. 2.2 Aspectos de procedimento: interatividade Embora dê conta da narrativa, a versão impressa de Os anjos de Badaró serve apenas como um souvenir daquilo que foi a experiência on-line, a exemplo de como funcionam os catálogos para as exposições. Ao contrário de João Ubaldo Ribeiro, autor já renomado que também se aventurou pela rede com Miséria e grandeza do amor de Benedita, como vimos no Capítulo 1; o mérito de Mario Prata foi pensar a web como suporte diferenciado do papel, explorando suas características interativas e não apenas como meio de distribuição do livro, passando o projeto para a quarta etapa do esquema de fases elaborado por Jorge Luiz Antonio 67 (2008, p. 29). O site construído para abrigar o projeto possuía seções extra que possibilitavam entretenimento aos internautas, como enquete, horóscopo feito pelo próprio Mario Prata e fichas das garotas de programa que trabalhavam para o Badaró, criadas, sob orientação do autor, por seu filho, o também escritor Antonio Prata. Apenas duas dessas fichas, de um universo de cerca de vinte, foram preservadas no livro impresso. Ao longo da elaboração da obra, também foi criada a rádio on-line Os anjos de Prata, onde, a exemplo das novelas, cada personagem tinha sua música. Para dar conta de tantos recursos, Mario Prata precisou acoplar seu computador a quatro telas. Na primeira ele escrevia, a segunda reproduzia a visão que os leitores tinham do site e a terceira exibia o medidor de audiência, que era atualizado a cada três minutos. Ali, Prata podia acompanhar a variação de público de acordo com os rumos da trama e saber de que país as pessoas estavam lhe acompanhando. Uma experiência já conhecida para um escritor com seis telenovelas no currículo (Estúpido Cupido de 1976; Sem lenço, sem documento de 1977; Dinheiro vivo de 1979; Um sonho a mais de 1986; Helena de 1987 e Os treze tesouros de 1991), cinco minisséries e mais o romance James Lins, escrito como folhetim. Segundo o autor, a ferramenta funcionava de maneira semelhante ao equipamento do IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) que instalavam em sua casa nos períodos em que ele escrevia novelas para a televisão. Esses dados se cruzavam com as informações da última tela, aberta na seção Palpite do site, onde os leitores podiam escrever, opinar e interagir com o autor, como explica Flávia Penedo, leitora que, sob o apelido “flavinha”, acompanhou a criação da narrativa e está entre os internautas citados na dedicatória de Os anjos de Badaró: “Era tipo um mural, um fórum, sei lá, pra que nós pudéssemos discutir sobre a história, dar palpites, tentar descobrir o que viria em seguida.” (informação verbal)22. Ao término da empreitada, mais de 800 mil palpites foram contabilizados (PRATA, 2000b, p. 8). Apesar do número, o autor afirma que a influência dos leitores na história foi pequena. Mario Prata, contudo, reconhece que a história ficou mais romântica por conta do público feminino e que a trama ficou mais leve devido ao acesso de crianças: A história eu já tinha na cabeça, não esperava que tivesse interferência. Como não teve. A interferência que teve no texto é que eu maneirei nesse negócio de droga, ia ter um negócio de cocaína e eu tirei. E a história ficou mais romântica por causa das meninas. [...] Como sempre acontece, as meninas eram muito românticas e elas começaram a torcer para determinados personagens. [...] Se eu fosse escrever o livro 22 Entrevista realizada por este autor através do recurso de mensagens do Facebook com Flavia Penedo, no dia 19 de junho de 2012. 68 sozinho, ia ser muito mais barra-pesada, ia ter um negócio de cocaína, ia ter mais sexo. Mas de repente tinha criança acompanhando, uma mãe disse pra não falar em cocaína porque o filho estava acompanhando. Então fui maneirando. (PRATA, informação verbal). Além das restrições de audiência, o dedo do público também aparece em detalhes pontuais. Sugestões sobre vinho, queijo e música apreciados pelos personagens foram acatadas pelo autor: “Lembro que um dia uma (leitora) estava na França e sugeriu o vinho que eles (personagens) iam tomar, a música de B.B. King, o tipo de queijo. Entraram coisas assim, mas na (estrutura) da história não.” (PRATA, informação verbal). Na lista de leitores que aparecem na dedicatória, é possível encontrar apelidos semelhantes aos nomes dos personagens como o de Daniel Motta Mello (badaró), Elaine Bruanialti (miss triosa), Flávia Cintra Evangelista (frau) e Miriam Lessa Junqueira (miriam). Segundo Maria Olinda Cremasco Beraldo, outra leitora que acompanhou o desenvolvimento da narrativa on-line e também aparece na dedicatória sob a alcunha little mary, o autor acabou se utilizando dos apelidos dos leitores para batizar os personagens: todos já tinham seus nick names prontos, não me lembro de ninguém ter mudado o nick por conta do rumo do livro. Acho que isso não aconteceu. A Frau já era Frau, a Bee Scoth já era Bee, eu já era Littlemary, e por aí vai. Frau existia e o Prata usou o 23 nome dela pra um personagem, simples assim. (informação verbal) . Interferências desse tipo, no entanto, não são de exclusividade do meio digital, afinal elas também se apresentam em outras narrativas seriadas do autor. No romance James Lins, por exemplo, o autor abre um capítulo inteiro para inserir as cartas do público enviadas no decorrer da publicação do folhetim, incluindo aí algumas brincadeiras implantadas, sob pseudônimo, pelo também escritor Ignácio de Loyola Brandão. Em Purgatório, também publicado como folhetim, um leitor chamou a atenção do autor sobre a variação da altura da personagem Gemma. Para não admitir o erro, Prata incorporou o desafio à trama, procurando na medicina uma doença que justificasse o crescimento. A personagem foi diagnosticada com a Síndrome de Pantagruel e abriu um caminho não previsto para a narrativa (informação verbal)24. O pesquisador de comunicação Alex Primo, que vem se dedicando ao estudo da cibercultura, aponta no artigo Quão interativo é o hipertexto? que as formas de interação 23 Entrevista realizada por este autor através do recurso de mensagens do Facebook com Mariazinha Cremasco, no dia 28 de junho de 2012. 24 Participação de Mario Prata na mesa Capítulo sem sexo, realizada no dia 5 de dezembro de 2010 no Espaço Corpos Percussivos, no Bairro do Recife, como parte integrante da segunda edição do evento Freeporto. 69 ocorridas em Os anjos de Badaró restringiram os leitores ao papel de testemunhas. “Mesmo que no site existissem fórum, enquetes e chat25, Mario Prata, em uma entrevista que antecedeu o início da redação, avisava: ‘Não se trata de um livro interativo. Claro que todo mundo poderá dar palpites, mas a intenção não é guiar o romance pela opinião do público’” (PRIMO, 2003, p. 136, grifo do autor). Por outro lado, Pierre Lévy defende que a interatividade pode se apresentar em diferentes níveis, variando de acordo com os dispositivos de comunicação e da relação com a mensagem (LÉVY, 2010, pp. 81-85). Com base nesse modelo, observa-se que o projeto Os anjos de Badaró comportava diversos graus de interatividade. Enquanto a Enquete (a exemplo dos games de um só jogador) pode ser encaixada no campo Difusão unilateral X Implicação do participante na mensagem; a seção Palpites ocupa o vértice Diálogo entre vários participantes X Implicação do participante na mensagem proposto por Lévy como o de grau mais elevado de interatividade, onde cada usuário tem o poder da criação, modificando o material diretamente. Para o teórico: “Ao interagir com o mundo virtual, os usuários o exploram e o atualizam simultaneamente. Quando as interações podem enriquecer ou modificar o modelo, o mundo virtual torna-se um vetor de inteligência e criação coletiva” (LÉVY, 2010, p. 78). No que diz respeito à narrativa propriamente dita, o desenvolvimento de Os anjos de Badaró se assemelharia aos demais textos literários, encaixando-se no vértice Difusão unilateral X mensagem linear sem a possibilidade de interferência direta na obra. A interação do leitor se daria dentro dos preceitos da Teoria da Recepção, ou seja, contribuindo com a narrativa através das suas subjetividades pessoais, sem alteração no conteúdo textual da obra e sim no seu sentido e na sua interpretação. A pesquisadora Janet Murray, que vem se dedicando ao estudo de narrativas em diferentes mídias, reconhece que o grau de participação do público em ambientes narrativos é limitado. Segundo Murray, em análise das peças encenadas em cafés-teatro, mesmo quando a quarta parede era ultrapassada e a plateia era convidada a subir no palco, o público assumia um papel de acessório para a história. Na intenção de deixar mais claro esse aspecto participativo na mídia digital, a pesquisadora opta por substituir o termo interatividade por agência, que para ela seria: “a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas.” (MURRAY, 2003, p. 127). 25 A atribuição do chat ao site parece se tratar de um equívoco de Primo, já que tanto Mario Prata quanto os leitores consultado (Flavia Penedo e Maria Cremasco) disseram que o site não possuía tal ferramenta. Os usuários, no entanto, aproveitavam o mural da página para marcar encontros em salas de bate-papo externas ao site. 70 Assim, como Os anjos de Badaró foi escrito em tempo real e as ferramentas da web permitiam o contato com o autor durante o processo criativo, fosse através dos chats externos ou do mural; verificamos que havia poder de agência dos leitores, não simplesmente exercendo uma função já prevista no roteiro da narrativa, mas podendo de fato provocar alterações no conteúdo da história, ainda que de forma indireta. Numa perspectiva de comparação com o livro impresso, percebemos também que o nível de interatividade da obra oscila, abrindo mais espaço para a interferência dos leitores que acompanharam a escritura na rede do que os que só leram a versão impressa do romance, como comprova esse trecho da matéria escrita pelo jornalista Christian Dutilleux do periódico francês Libération: Seu correio eletrônico explodiu: mais de 500 e-mails por dia. Um amigo cuida da classificação, enquanto um empregado da produtora TV1 analisa os "Palpites", espaço do site para acomodar as sugestões dos usuários. Estas, por vezes, são correções ou sugestões de mudança no texto. Assim, um psicanalista revelou um erro na cor da forma de prescrição de um remédio. E, sob pressão dos leitores, a personagem Cláudia, inicialmente descrita como ‘uma dona de casa com a bunda grande’, foi emancipada e se tornou uma detetive particular. (2000) Dessa maneira, é preciso reconhecer que por mais que a construção da narrativa não chegue ao nível da participação ativa que Lévy enxerga na possibilidade de cada computador funcionar como um nó (dotado da capacidade de centro do mundo virtual, sendo capaz de alterações diretas no conteúdo); os leitores de Os anjos de Badaró tinha lá sua parcela de agência, podendo opinar e sugerir mudanças, algumas das quais, inclusive, foram aceitas pelo autor como vimos ao longo deste tópico. 2.2.1 A literatura como espaço social De todo jeito, qualquer que seja a participação dos leitores na composição da obra, a experiência de Os anjos de Badaró conseguiu construir um espaço de convivência através do diálogo entre literatura e tecnologia. Ao redor da narrativa, pessoas desconhecidas, que compartilhavam o mesmo interesse pela literatura e pela obra de Mario Prata, passaram a circular, interagir entre si, trocar informações, como recorda o autor: “Eles nunca tiveram pretensão de dar palpites, eles queriam conversar entre eles, virou uma farra, um motivo para eles se encontrarem durante seis meses.” (informação verbal). Aos poucos, na medida em que o recurso do mural deixava de corresponder aos interesses dos leitores, essas relações foram se expandindo para os chats. 71 Com o tempo, acabamos formando uma turma mesmo por ali, nos tornamos também personagens, para além do livro que estava sendo escrito. Desse mural nos estendemos para salas de bate-papo, onde marcávamos encontros engraçadíssimos, quando muitas vezes o ponto alto da noite era tentar descobrir se o Mario estava por lá ‘disfarçado’, já que volta e meia ele dava pistas de que andava acompanhando nossas peripécias por aí. (PENEDO, informação verbal) Pelo relato, percebe-se que o projeto agregava mais uma característica do mundo virtual. Através da seção Palpite, a página ganhava a função de ponto de encontro, como um espaço social, um canal de comunicação para relacionamentos. Pierre Lévy atenta para o fenômeno das conferências eletrônicas e fóruns, observando que o contato entre pessoas na rede traz uma diferença substancial para a comunicação, que deixava de se restringir apenas a condições geográficas para passar a ocorrer por meio dos interesses em comum: “É como se as pessoas que participam das conferências eletrônicas adquirissem um endereço no espaço móvel dos temas de debates e dos objetos de conhecimento.” (LÉVY, 2010, p. 103). O que hoje nos parece banal – por conta da absorção dos recursos comunicativos da rede (como o Skype, o MSN Messenger, o Google Talk e as redes sociais) e da telefonia móvel que nos permitem superar as distâncias através de chamadas com vídeos por um baixo custo –, no ano 2000 isso ainda causava estranhamento. Tanto que, num dos textos em que Mario Prata escreve sobre o projeto, ele ressalta a abrangência geográfica da origem dos acessos: “Internautas de mais de 50 países. Só do Japão, 98. Estados Unidos, mais de quatrocentos.” (PRATA, 2000b, p. 8). Outro relato que mostra o espanto causado pela experiência ocorreu na conversa realizada com o autor, quando ele se referiu a uma entrevista que deu a um repórter espanhol, que havia lhe enviado as perguntas por e-mail. Prata então disse que o responderia on-line, no horário agendado para a escrita do livro: “Ele (o repórter) tava na redação, foi juntando gente e todo mundo vendo. Fizeram uma foto lá que virou a foto da matéria.” (informação verbal). Assim, atraídos pelo interesse em comum, a afinidade dos leitores cresceu e não demorou para eles deixarem o plano virtual, promovendo encontros que ganharam o nome de ENAP – Encontro Nacional dos Anjos de Prata. O texto e os nicknames ganhavam, enfim, carne e osso, voz, aparências. “Virou um programa, eles se reuniam, se encontraram numa fazenda, iam à churrascaria”, explica Prata (informação verbal). 72 Figura 4: Foto que registra o lançamento de Os anjos de Badaró exclusivo para os integrantes do ENAP, realizado no bar Balcão, em São Paulo. Da esquerda para a direita: Maria Cremasco (little mary), Ana Mary Fernández (ana mary), o escritor Mario Prata e Rosimeire Luna (liliquinha). E o que era um motivo de socialização, logo ganhou um aspecto lúdico, transformando-se numa experiência criativa. Por estarem reunidos em torno de um site literário – com a possibilidade de exercerem o papel de críticos ao discutir os rumos da narrativa e com acesso aos bastidores da criação de um escritor famoso, no momento em que ele exercia sua luta com as palavras, expondo suas incertezas e métodos –, era natural que esses leitores se aventurassem no campo da escrita. “Daí para as pessoas começarem a se sentir estimuladas também a escrever, foi um pulo”, relata a leitora Flávia Penedo (informação verbal). Como conta a leitora Maria Cremasco, a faísca ganhou mais combustível para queimar quando o próprio Mario Prata propôs aos internautas um concurso de crônicas: Enquanto Mario Prata ainda estava escrevendo o livro on line, ele sugeriu que nós escrevêssemos, pois nos achava inteligentes e criativos. Fez um concurso e pediu pra que a gente escrevesse crônicas do dia a dia. E nós escrevíamos. E cada semana ele escolhia os vencedores da semana. [...] O prêmio? um livro editado pela TV1, totalmente patrocinado, com prefácio de Mario Prata. (CREMASCO, informação verbal) Nesse prefácio, Mario Prata escreve sobre esse processo de transformação de leitores em autores: “Pouco a pouco, foram vendo que o deus era com letra bem minúscula, que o Guru cortava o cabelo a cada dois meses e que o Homi era igualzinho a eles. E foi aí que a mágica se deu. Se esse cara pode escrever, eu também posso.” (PRATA, 2000b, p. 8). No texto, o autor também revela que o concurso atingiu o impressionante número de 2.357 crônicas inscritas. Para se ter uma ideia, a seleção da revista Granta 26 – com o atrativo de ser uma publicação internacionalmente conhecida e a edição contar com traduções já previstas 26 Realizada para escolher os 20 melhores escritores jovens brasileiros para a edição que foi lançada no dia 5 de julho de 2012, na Flip – Festa Literária Internacional de Paraty. 73 para o idioma inglês, espanhol e chinês – obteve 247 contos inscritos. Ainda que se leve em consideração as restrições da Granta (apenas para autores nascidos depois de 1972 e com algum texto ficcional publicado em meio impresso), a diferença de 2.110 textos continua enorme. Do montante, foram selecionadas as trinta melhores crônicas e publicadas em livro. Após o lançamento, os anjos continuaram se encontrando pelos chats e o autor mais uma vez botou lenha na fogueira, sugerindo que eles escrevessem sobre temas específicos. “No início ele dava os temas, depois falou que continuássemos sós, que tínhamos potencial pra tanto. E assim continuamos até bem pouco tempo atrás. Alguém dava o tema e nós fazíamos as crônicas” (CREMASCO, informação verbal). O grupo criou um site próprio intitulado Os anjos de Prata27, aderiu às redes sociais abrindo uma comunidade no Orkut28 e publicou outras oito antologias de crônicas e contos por conta própria, dividindo os custos da edição entre eles. O desdobramento de Os anjos de Badaró é representativo sobre o poder de congregação da internet. Reações desse tipo ganharam força no ambiente virtual, com a web se mostrando um ambiente propício para a formação de comunidades voltadas à discussão literária e à ramificação das obras através da criatividade dos internautas. Apesar do site não permitir a interferência direta na história, a leitura no ciberespaço não se revelou tão passiva assim, impulsionando os leitores a escrevem suas próprias histórias. A passividade diante do texto não é mais admitida. A leitura individual e silenciosa, que em certo momento da história foi considerada, inclusive, um avanço e uma conquista, cede paulatinamente espaço a práticas mais coletivas, que parecem comungar com as dos antigos contadores de histórias. Partilhando em tempo real, apesar de virtual, suas percepções sobre a leitura, os integrantes do fandom transformam o ato de ler numa espécie de jogo, onde a principal regra é a interatividade. Ao ingressar num fandom, o novo leitor busca um modo de ler através do qual também possa atuar. O texto precisa se converter numa provocação argumentativa, num manancial de idéias a ser continuamente revisitado, desconstruído e recriado. Neste sentido, a interpretação deixa de ser entendida como a “busca de um sentido” para se converter numa “produção de sentidos” (MIRANDA, 2009, pp. 1-2). É bem verdade que o fenômeno não nasceu com o advento da internet, sendo uma prática já difundida através de fanzines e convenções de fãs. No entanto, com a rede, o alcance da atividade ganha novas proporções, a difusão aumenta, as experiências se proliferam e as novas ferramentas digitais implicam numa série de gêneros como as fanfictions, fanvideos, fanhits e fanarts – narrativas, vídeos, músicas e ilustrações criadas por 27 28 www.anjosdeprata.com.br, hoje desativado www.orkut.com 74 fãs inspirados por determinado universo ficcional. A pesquisadora Fabiana Móes Miranda, que se dedicou ao universo do fandom (domínio dos fãs) durante o mestrado em Letras, defende que a prática modifica a visão do leitor como mero receptor, possibilitando-lhes ocupar o papel de criador, desenvolvendo sistemas literários próprios, com espaço para a crítica e para a invenção, seja desfiando em texto novas ramificações de algum livro famoso, ou criando uma trilha sonora para certo personagem. 2.3 Aspectos de procedimento: evento Outro diferencial importante de Os anjos de Badaró está na estratégia de usar o potencial da internet para dar à literatura um viés de evento, explorando as características de gravação particulares ao mundo virtual. Como cada suporte – seja ele oral, físico ou virtual –, a rede também possui suas peculiaridades e isso termina por influenciar o conteúdo e a forma de apresentação das obras. Como vimos na introdução, na época da oralidade foi desenvolvido o recurso da rima e da musicalidade como uma maneira de facilitar a memorização das mensagens, que ainda contava com a presença do poeta e sua expressividade corporal no processo de transmissão. Com a chegada do papel, todavia, os poemas puderam se tornar mais complexos, mais subjetivos e visuais, por vezes adotando trava-línguas para enfatizar sua ligação com o suporte escrito. Pegando o exemplo da música, Pierre Lévy mostra como o surgimento das técnicas de gravação influenciou o sistema musical. Se antes a noção de autoria era nebulosa, delegando o papel principal aos intérpretes; com o desenvolvimento das partituras se institui a figura do compositor. As variações, que eram praticamente invisíveis na tradição oral, passam a ser perseguidas pelos autores para atingirem o status de originalidade. A situação muda outra vez a partir da década de 1960. Com a evolução dos estúdios fonográficos, ocorre uma integração entre a tradição oral e a escrita, permitindo o registro da técnica com a originalidade do autor. Somando-se a isso a difusão dos suportes midiáticos (discos em vinil, fitas cassete e CDs) e as condições oferecidas pelos estúdios na edição e criação de efeitos sonoros, as gravações se tornam os referenciais das obras, que de tão complexas não conseguem ser repetidas em apresentações ao vivo, a exemplo do que ocorreu com o álbum Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles. Já no ambiente digital, com a facilidade de edição que permite o reprocessamento constante das informações, a novidade e as transformações se tornam normais e a presença corporal, junto com as performances ao vivo, é que voltam a dar a singularidade no meio da música (LÉVY, 2010, pp. 142-144). 75 Da mesma forma, a migração da literatura do suporte impresso para o digital implica em adaptações ao discurso literário. O que antes se fixava numa folha de papel e permanecia imutável, ganha maleabilidade no ambiente digital. O que se apresentava de uma vez só, como uma obra fechada e já concluída no livro; ganha movimento na biosfera virtual, cujo contexto onde flutua se transforma a cada instante. Lévy lembra que, diante do gigantesco fluxo de informações que renova a rede a cada momento, as artes virtuais se veem impelidas a adotar a lógica de evento. Ou seja, chamar atenção e marcar território antes de serem engolidas por outras novidades e manias da rede. Quando os depósitos são raros, ou podem ao menos ser circunscritos, deixar traços significa entrar na memória de longo termo dos homens. Mas se a memória é praticamente infinita, em fluxo, transbordante, alimentada a cada segundo por uma miríade de captadores e milhões de pessoas, entrar nos arquivos da cultura não basta mais para diferenciar. Então, o ato de criação por excelência consiste em criar um acontecimento, aqui e agora, para uma comunidade, até mesmo constituir um coletivo para o qual o acontecimento advirá, ou seja, reorganizar parcialmente o metamundo virtual, a instável paisagem de sentido que abriga os humanos e suas obras. (LÉVY, 2010, p. 50) Diante desse cenário, o site de Os anjos de Badaró resolveu apostar numa grande festa de lançamento, que contou com show de ninguém menos que a cantora Ivete Sangalo (PRATA, informação verbal). Uma abertura simbólica para o projeto que viria a se destacar justamente pela mudança na postura dos escritores, trabalhando a escrita como uma forma de performance, quebrando a imagem da criação como algo divino para reforçar a noção de processo, de alcance progressivo do resultado ao invés da ilusão de que as ideias já nascem prontas, como presentes oferecidos pelas musas. Afinal, até onde pudemos constatar, Os anjos de Badaró foi o primeiro romance a ser criado ao vivo sob os olhos do público e, após mais de uma década, continua sendo uma rara experiência na literatura mundial. De casos semelhantes, sabemos apenas que, em maio de 2005, três escritores (Laurie Stone, Ranbir Sidhu e Grant Bailie) foram enjaulados em cubículos translúcidos durante trinta dias para que escrevessem um romance sob os olhares do público, numa instalação chamada Novel: a living installation do grupo Flux Factory, de Nova Iorque. Em março de 2009, a escritora Paula Parisot se isolou por uma semana numa caixa de acrílico, montada na Livraria da Vila em São Paulo, para viver uma cena do seu romance Gonzos e Parafusos (2010), quando a personagem Isabela se interna numa clínica; mas a performance servia mais para a divulgação do livro do que à criação, já que a narrativa estava concluída. O registro, contudo, ainda é válido porque havia o plano (não concretizado até o momento) de se publicar os escritos e desenhos da autora produzidos durante a 76 performance sob o título Parafusos sobressalentes. Outra experiência aconteceu em outubro de 2010, quando o projeto The Novel: Live! exibiu pela internet29, em streaming (transmissão de em fluxo de mídia, sem armazenamento do arquivo), a maratona de 36 escritores na construção de um romance de 35 capítulos em apenas seis dias. Além do mérito pelo pioneirismo, o caso de Os anjos de Badaró tem o diferencial de ter sido estrelado por um escritor já renomado, colunista de um dos principais periódicos do país, que se encontrava no auge da sua carreira, figurando com seus títulos nas listas de mais vendidos do país. A presença diária no site de um escritor desse porte, possibilitando o contato direto do público com o autor, contribuiu para o sucesso da empreitada, fazendo com que a página recebesse um público médio de 4 mil pessoas por dia 30 e, ao fim do projeto, ultrapassasse a marca de 400 mil visitantes espalhados geograficamente em mais de 50 países (PRATA, 2000b, p. 8). Números que ficam ainda mais imponentes se recordarmos que a experiência foi escrita na língua portuguesa e ocorreu lá no ano 2000, quando o acesso à banda larga no Brasil chegava a apenas 121 mil usuários (TELEFONICA, 2002, pp. 98-101) e pesquisas indicam que em maio de 200131, o número de internautas no país era de 10,4 milhões (IBOPE/eRatings apud VIEIRA, 2003, p. 258). A título de comparação, em junho de 2012 o número de usuários de banda larga chegava a 16,8 milhões (IBOPE/Nielsen Online)32 e a quantidade de internautas chegou a casa dos 83,4 milhões de pessoas no segundo trimestre de 2012 no Brasil (IBOPE/Nielsen Online)33. Apesar de ser pouco lembrado nos dias de hoje, o projeto despertou grande curiosidade na época. O ineditismo do projeto atraiu a atenção da mídia, rendendo ao autor repercussões na imprensa nacional, francesa, italiana e espanhola. De maneira geral, já naquela época, as matérias traziam em comum a curiosidade sobre o projeto (relatando o modus operandi da empreitada), a possibilidade de troca de informação com os leitores e para a mudança do perfil do escritor, que até então era retratado no imaginário como uma pessoa reclusa no seu ato de criação e, de repente, colocava-se como o centro das atenções, estrelando um reality show próprio durante seu processo de criação. Por exigência do portal Terra, que patrocinou e hospedou o site, uma webcam foi instalada para que os internautas, além de acompanhar o texto, também pudessem ver o autor 29 www.thenovellive.org www.marioprataonline.com.br 31 Não há pesquisas referentes ao ano 2000, por isso optamos em citar a pesquisa de maio de 2001 pela proximidade. 32 http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/07/numero-de-usuarios-de-banda-larga-mais-que-dobra-em-umano.html 33 http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/08/acesso-internet-no-brasil-chega-834-milhoes-de-pessoas-dizpesquisa.html 30 77 durante o ato de escrita. Isso, vale lembrar, antes do fenômeno dos blogs e do programa No Limite, considerado o primeiro reality show da televisão brasileira, cuja estreia se deu em 23 de julho de 2000. O Casa dos Artistas, reality show de grande audiência exibido pelo SBT, só iria ao ar em 2001 e o Big Brother, cujo formato foi criado em 1999 pelo holandês John de Mol, só estrearia sua versão brasileira em 2002. O fato repercutiu no exterior e parece ter sido o que mais chamou a atenção dos jornalistas que escreveram sobre o projeto. Uma postura que se revelava já pelos títulos dos artigos – “O espetáculo da escrita ao vivo” do jornal francês Libération e “Um escritor se exibe ao vivo na web” do portal espanhol PuntoNet –, mostrando a perspectiva adotada nas matérias sobre a transformação do imaginário do escritor, que saía do seu calabouço introspectivo rumo à espetacularização típica da cultura de massa. Baseada na experiência de Os anjos de badaró, o repórter Christian Dutilleux do Libération afirma: “Com a internet, o ato de escrever pode se tornar um espetáculo.” (2000); enquanto a matéria do PuntoNet tacha o rótulo de “escritor exibicionista” em Mario Prata (UN ESCRITOR, 2000) e o jornalista italiano Salvatore Romagnolo, do Website Apogeonline, ressaltava: “Mario Prata está realmente fazendo um espetáculo na web com seu novo romance policial” (2000). Essa repercussão não era para menos. Afinal, escrever aparecendo para o público implicava certos cuidados, exigia uma postura apresentável, cuidados estéticos e comportamentais que fugiam à tradição literária, até então considerada a mais solitária das artes. “Eu não podia fumar porque as mães reclamavam dizendo que as crianças estavam vendo, cortei o cabelo e as pessoas começaram a dizer que tinha ficado horroroso. A coisa foi crescendo, eu quase comecei a usar batom, porque escurecia e o povo não via mais minha boca.” (PRATA, informação verbal). A experiência pode ser encarada como mais um fruto dos ventos soprados por Andy Warhol, servindo de prenúncio para os rumos que a literatura iria tomar neste início de século XXI. Como já argumentamos anteriormente, a professora Paula Sibilia aponta no livro O show do eu (2008) que uma das características do mundo contemporâneo é o estreitamento do foro íntimo com a abertura de costumes privados para o público. Esse deslocamento de limites chegou a pôr em risco o site, que precisou ser tirado do ar quando os internautas descobriram que uma das leitoras era virgem. “Porra, aí eu entro lá e eles estavam rifando a virgem. O Terra tirou o site do ar, foi uma cagada” (informação verbal). Outro problema se deu quando a agenda telefônica do autor vazou pela internet: 78 De repente esse processo todo se misturou com minha vida. Foi um erro que eu cometi, era pra ter um computador só pra fazer isso, mas eu fiz no meu computador. Então um dia aconteceu uma coisa muito louca quando eu estava no ar. Precisei dar um telefonema e eu abri minha lista de telefone, que era no computador. [...] Minha lista telefônica estava no ar. E todo mundo copiou, tinha nome pra caralho lá, gente como Chico Buarque, sabe? (PRATA, informação verbal) Por outro lado, talvez por já aparecer tão acintosamente no site, Mario Prata tenha amenizado sua presença na obra, que se concretiza como uma das marcas da sua escrita. Ao contrário de outros dos seus títulos – em que ele conta fatos pessoais da sua vida, posicionando-se em primeira pessoa (como em boa parte de suas crônicas e nos livros Minhas mulheres e meus homens e Minhas tudo), e se colocar como personagem ficcional nas obras James Lins, Minhas vidas passadas (a limpo), Buscando seu Mindinho e Sete de paus –; em Os anjos de Badaró não há vestígios do autor, o papel que ele geralmente desempenha dessa vez é ocupado pelo jornalista Alcides Capella. De qualquer forma, poucas vezes na literatura a figura do escritor assumiu uma posição tão evidente. De acordo com Sibilia, a ênfase na figura do escritor tem como consequência a inversão do grau de importância entre a obra e o autor no mundo contemporâneo. É o que podemos ver nas passagens da entrevista concedida pelo autor já citadas neste capítulo sobre o desvio dos leitores, que primeiro convergiram os interesses pela experiência de Os anjos de Badaró e depois passaram a ser motivados pelo desejo por encontros e confraternizações sociais. A isso, acrescente-se esse depoimento de Mario Prata, onde ele fala da origem do livro Minhas tudo: Eu tinha que ficar no ar por conta do contrato. Um dia, quando não estava com saco para escrever, disse que ia mostrar minha carteira e comecei a dizer o que tinha nela. Descobri coisas inacreditáveis que eu guardava ali e daí surgiu a ideia do Minhas tudo34. Tinha dias em que eu perguntava, vocês querem o livro ou Minhas tudo? (PRATA, informação verbal). Nesse início de século XXI, a obra passa para o segundo plano, enquanto o autor sobe ao palco para receber os flashes e falar da sua vida, transformando livros em ornamentos e suas personalidades em “obra”. “Sob essas novas regras do jogo, será a fulgurante personalidade do artista que emprestará seu sentido à obra, e não o contrário.” (SIBILIA, 2008, p. 170). Um cenário que tem se confirmado com a profusão de eventos no modelo da Festa Literária Internacional de Paraty – Flip (criada em 2004), com o interesse das editoras e produtoras em pegar carona na fama de artistas de massa (Adriana Calcanhoto, Lirinha, padre 34 Livro que reúne crônicas sobre objetos pessoais do autor publicado em 2001. 79 Marcelo Rossi, Gabriel, o pensador) e subcelebridades (a ex-prostituta Bruna Surfistinha, o ex-Big Brother Jean Willys) para vender livros, com a relevância no mercado de escritores bons de palco como Marcelino Freire e Fabrício Carpinejar e com o aparecimento de casos curiosos como Barbú, escritor argentino que, acompanhado de uma fotógrafa, fantasia-se de macaco para divulgar seus livros pelas ruas de Buenos Aires sob o slogan: o primeiro gorila escritor. Como jornalista que durante quase três anos se dedicou a cobertura em cadernos culturais em veículos impressos, posso testemunhar que um dos fatores para isso ocorrer é o processo de reestruturação na imprensa. Se por um lado as redações e os espaços nos cadernos culturais tem sofrido sucessivos enxugamentos; por outro a demanda de eventos, lançamentos de livros, filmes, exposições e discos tem crescido. E no setor de literatura a situação se complica ainda mais, até pelas características da leitura, que exige tempo e dedicação, e, por isso mesmo, acaba sendo considerada uma atividade extra, não passível de remuneração; ao contrário dos profissionais de outras áreas que se encontram em horário de trabalho quando participam de cabines (sessões de cinema reservadas à imprensa, geralmente ocorridas antes da estreia) e vão fazer coberturas de shows musicais, espetáculos teatrais e montagens de exposições. A visão dos jornais, de que a leitura é dispensável para a escrita de resenhas, termina, assim, por implicar em textos superficiais e em entrevistas repetitivas. Sem o conhecimento da obra, as perguntas tendem a tangenciar suas questões e o campo pessoal do autor vira válvula de escape para se preencher linhas e linhas nas páginas dos jornais. 80 3 Narrativas em hipertexto: uma análise de Tristessa De acordo com os conceitos da Eletronic Literature Organization (ELO) e da pesquisadora Katherine Hayles, como vimos ainda na introdução desta dissertação; para enquadrar uma obra no termo literatura eletrônica é necessário que haja uma dependência do ambiente digital em tal grau, com sua constituição tão arraigada às possibilidades do digital, que a existência dessa obra no meio impresso se tornaria inviável. Dada essa ênfase no elemento tecnológico, é até compreensível perceber que um dos gêneros mais explorados da chamada literatura eletrônica seja o da ficção hipertextual, narrativas que se valem do recurso do hiperlink para o desenvolvimento de uma história a partir de uma estrutura fragmentada, onde os leitores encontram a possibilidade de escolher os rumos da leitura, libertando-os de uma sequência única de leitura. Tido por Pierre Lévy como o grande diferencial da linguagem no meio digital, o hipertexto tem sua origem ligada ao projeto Memex, desenvolvido em 1945 pelo matemático Vannevar Bush. Embora o projeto ainda não fosse ligado diretamente aos computadores, mas a um sistema que interligava microfilmes; o Memex foi importante por colocar em prática o conceito de associação de dados. Enxergando o acúmulo de informações, Bush propôs uma nova maneira de organizar o conhecimento a partir da indexação associativa, recurso que funcionava como se fosse uma linha que orienta o caminho do raciocínio no labirinto de informações, interligando diversas fontes sobre um mesmo tema. Ideia esta que foi retomada na década de 1960 por Ted Nelson, responsável por cunhar o termo hipertexto. Com o projeto Xanadu, Nelson pretendia conectar toda a escrita humana através dos computadores (MURRAY, 2003, p. 94). Essa lógica de organização associativa ganhou outra dimensão quando, em 1990, o físico inglês Tim Berners-Lee ligou o conceito do hipertexto aos protocolos da internet, dotando cada documento de um endereço através dos hiperlinks, pelos quais os internautas podiam pular de um canto a outro, escolhendo seus próprios caminhos através de um simples click no mouse. É bem verdade que essa não chega a ser uma característica exclusiva da literatura praticada no meio digital, podendo ser encontrada na dinâmica de leitura da Bíblia (com suas divisões de livros, capítulos e versículos), da invenção do sumário, do sistema de notas de rodapé ou das separações entre verbetes dos dicionários e enciclopédias que liberam a leitura da linearidade, oferecendo outras entradas diretas rumo ao texto desejado. No universo 81 literário, como bem lembra o pesquisador Arlindo Machado no livro Máquina e imaginário, o uso de recursos para quebrar a linearidade do texto já se faz presente em experimentações desde o século XV, a exemplo do caso das Litanias de la Vierge, atribuídas a Jean Meschinot, que num jogo combinatório permite engendrar 36.864 litanias; do soneto Vencido está de amor, do escritor português Luís de Camões, publicado em 1595; e do 41º beijo de amor de Quirinus Kühlman, de 1660, cuja estrutura permite a troca de palavras de cada verso, gerando mais de 6 bilhões de poemas (1996, p. 166-167). Nesse viés, faz-se necessário citar também os trabalhos do grupo francês Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle), que se dedicou a estabelecer relações entre a literatura e a matemática, propondo desafios para a escrita, produzindo obras como o livro de poesia exponencial Cent mille milliards de poèmes (1961) e o conto Um conto à sua maneira (1967), ambos de Raymond Queneau. Todos dois são construídos de maneira que o leitor possa interferir no conteúdo, escolhendo os versos que serão combinados para compor o soneto (através de um engenhoso projeto gráfico que desmembra a página em 14 partes, permitindo a combinação dos versos com outros versos de outras páginas); e pela simples escolha dos rumos da narrativa, organizada em fragmentos numerados, com indicações de perguntas objetivas para que o leitor escolha por qual caminho seguir. No campo da prosa que procura quebrar a linearidade narrativa ainda se destacam os romances Composition n. 1 de Max Saporta (que vinha com suas páginas soltas para que o leitor ficasse incumbido de definir uma ordem de leitura) e O Jogo da Amarelinha (1964) do escritor argentino Julio Cortázar, que oferece uma embaralhada lista de números a ser seguida pelo leitor (começando no capítulo 73, voltando para o capítulo 1, indo para o 2, saltando para o 116 e assim por diante, até chegar ao 131) ou a simples leitura linear até o capítulo 56. Outra referência sempre lembrada é o conto O jardim de veredas que se bifurcam (1941), do também argentino Jorge Luis Borges, embora sua referência seja mais por uma questão temática do que por sua forma, já que a leitura se dá de maneira tradicionalmente linear, enquanto a história remete a um livro tido como confuso e incoerente que optar por trabalhar com diferentes dimensões do tempo ao invés da ideia de tempo uniforme e absoluto: “Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades.” (BORGES, 2007, p. 92). No entanto, mesmo admitindo todo esse histórico, Pierre Lévy defende que o recurso do hiperlink traz mudanças significativas ao ponto de justificar uma distinção. Segundo ele, no computador o hipertexto ganha em velocidade e passa a suportar diferentes linguagens além da escrita (áudio, vídeo) num mesmo dispositivo: 82 A passagem de um nó a outro são feitos, no computador, com grande rapidez, da ordem de alguns segundos. Por outro lado, a digitalização permite associação na mesma mídia e a mixagem precisa de sons, imagens e textos. De acordo com esta primeira abordagem, o hipertexto digital seria definido como informação multimodal disposta em uma rede de navegação rápida e “intuitiva”. Em relação às técnicas anteriores de ajuda à leitura, a digitalização introduz uma pequena revolução copernicana: não é mais o navegador que segue os instrumentos de leitura e se desloca fisicamente no hipertexto, virando as páginas, deslocando volumes pesados, percorrendo a biblioteca. Agora é um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à vontade frente ao leitor. (LÉVY, 1999, p. 58-59) Por conta dessas transformações, Lévy afirma que as formas de edição e de documentação tendem a explorar, cada vez mais, as características de velocidade de navegação, bem como do volume de informações disponibilizado nos dispositivos digitais. Considerando-se o acúmulo de dados permitido pelo aumento exponencial da capacidade de memória dos computadores; a estrutura de organização do hipertexto ganha um caráter enciclopédico, dado o volume de informações interligadas, permitindo que o internauta fosse de Platão à salsicha em apenas cinco passos, como repete Santaella em referência à descrição de Umberto Eco (NAVEGANDO, 2001). Assim, esse sistema implica numa aproximação entre a leitura e a escrita, delegando aos leitores a função de traçar seus próprios caminhos, correlacionar diferentes informações e gravar essas trilhas percorridas, influenciando sistemas de buscas no encadeamento de dados ao dar preferência a certos links ao invés de outros, fazendo com que os hábitos dos usuários terminem dando mais visibilidade aos sites escolhidos. Dessa maneira, com o incremento do hiperlink, o que era exceção no meio impresso, perdeu o teor de raridade e entrou para o universo da regra com a chegada da internet. Essa forma de organização, claro, também chegou à literatura, tornando o gênero das narrativas hipertextuais um dos mais explorados, tanto via web ou antes mesmo do ambiente on-line virar uma realidade. Ainda na década 1980, o gênero ganhou certa popularidade nos Estados Unidos, disseminando-se através dos disquetes e CD-ROMs. Nessa fase pré-web, as narrativas eram construídas a partir de programas desenvolvidos especificamente para isso, como o Hypercard da Macintosh e o Storyspace, que se tornaram os softwares preferidos dos principais autores da literatura eletrônica entre o fim da década de 1980 e início do anos 1990 (HAYLES, 2009, p. 23). O Storyspace, por exemplo, deu origem a narrativas como Victory garden (1991) de Stuart Moulthrop, Patchwork girl (1993) de Shelley Jackson e a pioneira afternoon, a story de 1987, escrita por Michael Joyce, também responsável pela criação do software em parceria com Jay Davi Bolter e John B. Smith. 83 Segundo Hayles, as limitações desses softwares fizeram com que as primeiras obras narrativas em literatura eletrônica fossem mais voltadas ao texto e à sua estruturação em lexias (blocos de texto) interligadas por links. Devido a isso, a pesquisadora americana observa uma ruptura na produção das obras com o surgimento da internet e, sem desmerecer a qualidade das obras precursoras, propõe que as narrativas de hipertexto pré-web sejam chamadas como clássicos, a exemplo da nomenclatura adotada pelo cinema para se referir às suas primeiras produções. A diferenciação se justifica porque, com a internet e o acréscimo de recursos computacionais, os trabalhos desenvolvidos na web passaram a se notabilizar mais pelo aspecto multimídia, de relacionar elementos sonoros, textuais e visuais. Afinal, mesmo entre as narrativas em hipertexto, as novidades advindas do suporte provocaram transformações, germinando obras como a coletânea de armazenamento de dados (caso de Califia de M. D. Coverley), o hipertexto picaresco (The unknown de Dirk Stratton, Scott Rettberg e William Gillespie), o multimídia (These waves of girls de Caitlin Fisher) e a narrativa mutante The Jew’s daughter de Judd Morrissey, desenvolvida com colaboração de Lori Talley (HAYLES, 2009, p. 24-25). Para Hayles, a transição entre as duas fases da literatura eletrônica se torna simbólica na comparação entre as obras de Michael Joyce, a já citada afternoon, a story e Twelve blue (1996). Se a primeira concentra seu visual no texto, onde todas as palavras da narrativa funcionam como hiperlinks e sua relação se estreita com o universo dos games no objetivo de resolver um mistério; Twelve blue já apresenta um visual mais trabalhado, usando imagens como parte fundamental da narrativa, e um objetivo mais ambíguo, mais aberto, voltado para a vivência processual da leitura. No que diz respeito ao Brasil, como já tratamos na introdução, a produção literária em computador se limitou ao campo da poesia na era pré-internet. Ao contrário do ocorrido nos Estados Unidos, apenas com a liberação da internet no Brasil é que experiências em prosa passaram a se utilizar do recurso do hipertexto no desenvolvimento de narrativas. Nessa onda de empolgação pelo surgimento de um novo veículo, apareceram obras tanto da possibilidade de autopublicação de autores curiosos para explorar a ferramenta, como projetos criados mediante o suporte financeiro de grandes grupos de comunicação. Mas antes, vale lembrar que essas experiências de envolvimento do público nos rumos da narrativa não devem ser totalmente creditadas ao aparecimento da internet. Afinal, nessa mesma época a TV Globo já transmitia o programa Você decide, que foi ao ar entre 1992 e 2000 apresentando histórias cujos finais eram escolhidos pelo público, mediante votação realizada por telefone. 84 Principal provedor de acesso do país na época, logo no ano da sua fundação em 1996, o Universo On-Line (Uol) criou o projeto das Netnovelas, que integrava uma estratégia de marketing em parceria com empresas do porte de uma Compaq e de uma Fiat, chegando a atrelar às Netnovelas sorteios entre os leitores de um computador e de um automóvel modelo Palio Weekend. Ao todo, foram lançadas cinco narrativas seriadas, entre as quais a pioneira O moscovita do escritor Reinaldo Moraes (que traz no currículo obras como Abacaxi de 1985 e Pornopopéia de 2009), a ficção científica Dossiê Greenwar (1997) escrita pelo roteirista Bráulio Mantovani (Cidade de Deus, Tropa de elite e Linha de passe) em parceria com Eduardo Duó e A morta viva do quadrinista Angeli, cuja história ressuscita a famosa personagem Rê Bordosa, tornando-se um sucesso de público com a impressionante marca de mais de 5 milhões de páginas vistas, de janeiro a março de 2000. Por mais que essas histórias se filiem a diferentes tradições narrativas (policial, ficção científica, humor, erótica); na forma elas têm em comum a recorrente combinação do recurso de texto, com imagens, vídeos, animações, sons e hiperlinks, misturando elementos de fotonovelas e quadrinhos. Ainda que os links estejam abrigados em detalhes das imagens, eles basicamente assumem a função limitada de substituir por cliques do mouse a ação de virar a página, dando sequência aos blocos de texto. A participação do leitor, no caso, além da leitura ficava na possibilidade de trocar e-mails com os personagens. Nesse mesmo período, a produção, digamos, amadora35 da internet também apresentou trabalhos criados em cima da ferramenta hiperlink. Além de Tristessa, que será objeto de análise no próximo tópico; um dos exemplos mais lembrados é A dama de espadas, criada em 1998 pelo pesquisador de cibercultura Marcos Silva Palácios. Dos poucos fragmentos que hoje se encontram disponíveis na web, percebe-se que a narrativa era mais centrada no texto, mas fazia uso de fotografias, gráficos, ilustrações e elementos sonoros. Infelizmente, dada a perda de grande parte da história, torna-se inviável uma análise da obra, prevista no préprojeto desta dissertação, para compreender a dimensão do uso do hiperlink e em como a narrativa problematizava esse novo recurso na literatura. No rastro de Tristessa e A dama de espadas, curiosamente, o desenvolvimento da infraestrutura da web no país (elevando a velocidade de conexão e facilitando o uso de recursos mais sofisticados) não se traduziu em transformações da literatura praticada em ambiente virtual, nem mesmo na popularização desses gêneros digitais. Na trilha das 35 O termo ‘amador’ está empregado aqui não no sentido de julgamento de valor, mas pelo fato de serem produzidas de maneira independente, sem o aporte de editoras ou provedores de conteúdo da internet, por autores até então estreantes na literatura brasileira. 85 narrativas hipertextuais em meio digital, uma das poucas obras que surgiram na última década foi o projeto Owned: um novo jogador, escrito por Simone Campos e publicado em 2011, tanto em versão impressa quanto pela internet, em arquivo PDF. A obra, que conta a história do técnico em informática e viciado em games André, configura-se uma espécie de livro-jogo e se assemelha à estratégia de O jogo da amarelinha, mas oferece uma trama repleta de bifurcações em que o leitor precisa escolher que rumos o personagem deve tomar, permitindo 17 desfechos diferentes (COSTA, 2011, p. 45). 3.1 Tristessa Por sorte, uma das poucas narrativas hipertextuais para internet que sobreviveram é justamente Tristessa, uma das mais relevantes e, até onde sabemos, a mais antiga produzida no Brasil. Publicada a partir de 199536 no site www.quattro.com.br/tristessa/, a obra foi criada por Marco Antonio Pajola (formado em Direito pela Universidade Católica de Santos e fotógrafo profissional) e produzida pelo Grupo Quattro Digital Media. Apesar da sua atividade ligada ao visual e da sua condição de estreante no meio literário, Pajola desenvolveu Tristessa usando o texto como pilar da narrativa, apresentando não só reflexões interessantes sobre o meio digital e o período histórico no qual foi produzido, mas um elaborado trabalho com a palavra, com personagens, cenas e tensões dramáticas bem construídas. Figura 5: Capa de Tristessa, obra publicada a partir de 1995 por Marco Antonio Pajola, configurando-se uma das principais narrativas em hipertexto produzidas no Brasil. 36 A data de publicação de Tristessa é incerta. Existem referências que a atribuem ao ano de 1994, outras a 1996 e 1998. Na entrevista de Pajola à revista Internet World, de setembro de 1995, ele diz que se trata de “uma novela seriada, uma espécie de work-in-progress, com atualizações sem periodicidade definida no momento.”. Atualmente, a obra traz como data de publicação o intervalo entre 1995 e 2011. 86 A obra é uma espécie de autobiografia disfarçada do fotógrafo Thomas G. Marasco, pretenso escritor com um currículo cheio de projetos abortados de roteiros de cinema, livros de poesia e livro de contos. Sua única realização nesse campo foi o romance Solidão dos Sobreviventes, cuja forma logo se revelou defasada com o surgimento da mídia digital e suas narrativas hipertextuais. Diante dessa frustração, Thomas mergulha no projeto de adaptar o livro para o ambiente digital, algo que ele vai fazendo aos poucos, liberando o acesso aos amigos que aparecem na trama. A história que vai sendo publicada na web é a mesma que os leitores têm acesso, fazendo com que a leitura avance na medida em que os fatos da vida de Thomas acontecem. Assim, observamos sua angústia em ter que criar sua história numa linguagem ainda incipiente, ao mesmo tempo em que ele se aventura após o fim do casamento com Joana, mergulhando em relacionamentos esporádicos com as personagens Roberta, Fernanda e Marcela. Apesar do tom biográfico, partes da história são narradas em terceira pessoa, pelo personagem The Passenger. Segundo ele conta37, a narrativa lhe foi entregue em um CDROM por Thomas para que a colocasse na internet: “Esqueça a minha sintaxe de hipertexto e sugestão de links. Faça da forma que você quiser. Altere à vontade. Se não gostar de algum personagem, delete-o. Se não entender alguma coisa, reescreva-a à sua maneira”. A liberdade conferida por Thomas parece ter sido tão aproveitada pelo amigo que Tristessa acaba sendo assinada apenas por The Passenger. A história é estruturada em blocos de texto, abrigados em 67 endereços diferentes (incluindo aí a capa e as instruções de procedimento da leitura) do mesmo site, que são interligados por hiperlinks. Na narrativa ainda são encontrados 20 links que levam a páginas externas (dos quais 17 hoje se encontram quebrados) e outros que levam à revista virtual Passage, espécie de anexo com 41 páginas integrado ao site. Para manter uma unidade e delimitar o que faz parte ou não da obra, um padrão visual foi adotado em praticamente todas as páginas, apresentando um mesmo estilo de ilustrações, disposição de textos, fonte tipográfica, fundo negro e as palavras em cor branca. Ainda que a diferença de tempo nos confronte com uma estética ultrapassada em relação aos padrões atuais, carregando as limitações e características próprias dos primórdios da web; é perceptível o cuidado que há na elaboração visual do site, projetando uma imagem diferenciada e arrojada da obra, além de 37 http://quattro.com.br/tristessa/thomas.htm 87 passar credibilidade e confiança aos leitores, revelando-se uma estratégia essencial para um meio tão permeado de desconfiança como a internet. Em 2010, após 15 anos da publicação de Tristessa, a obra ganhou uma nova versão digital que passou a ser disponibilizada no endereço www.tristessa.com.br, mas manteve a versão original on-line. A segunda edição da narrativa recebeu outra roupagem, onde a obra se aproxima do layout dos sites da chamada web 2.0, construído em cima de um template já elaborado, com barra de links horizontal, área de destaque na página principal (que alterna em pequenos intervalos de tempo a exibição de quatro links para posts diferentes). Outra mudança foi a inversão de cores do fundo (que passou a ser claro) com a das palavras (que ficaram escuras), dando um visual mais leve, dinâmico e atual ao site. Figura 6: Página principal da nova versão de Tristessa, colocada no ar em 2010, apresentando um visual mais moderno e menos pesado, para facilitar a leitura na tela. A diferença no visual é acompanhada do texto Sobre Tristessa, onde Pajola faz uma revisão histórica comparando as transformações ocorridas ao longo dos 15 anos de internet no Brasil com a época em que a obra foi publicada, ressaltando o sentimento de descoberta de explorar a rede naqueles momentos iniciais: “A webvida daquela época não tinha quase nada a ver com a que vivemos hoje. O Google ainda não existia e as redes sociais não podiam sequer ser imaginadas. Banda larga? Apenas uma imagem distante.” (PAJOLA, 2010). Mudança esta que, na prática, aparece nos recursos explorados pelo novo site, adotando a estratégia de divulgação de atrelar o seu conteúdo às redes sociais (Twitter, Facebook e Orkut). Ainda que no post o autor afirme que o novo site registra o “texto original”, algumas mudanças importantes podem ser percebidas em comparação com a narrativa apresentada na 88 primeira versão, tanto no que diz respeito à escrita, como à estrutura da obra. Embora eles não cheguem a provocar rupturas expressivas nos rumos da narrativa, alguns trechos da história foram suprimidos, reescritos e posts inteiros acrescentados. Já em relação à forma, houve a exclusão dos links internos (que possibilitavam caminhos alternativos de leitura) e externos que apareciam no meio da narrativa, restando apenas os que remetem aos perfis dos personagens no post Verão de 1995, mas com a significativa mudança de agora eles direcionarem o acesso a sete páginas da rede social Facebook, sendo uma para cada personagem – Thomas G. Marasco38, Fernanda Damiani39, Passenger40, Marcela Lanson41 e Alexandre Nabuco42, mais Joana F. Marasco43 e Paula Davis44, que não possuíam páginas na versão original. Apesar da existência do link na obra para a página de Roberta Ferrari, ele não leva à página da personagem. Outra mudança substancial diz respeito à organização de Tristessa, à ordem de leitura e à navegação pela obra. Se a leitura na primeira versão era orientada por um mapa de links apresentado logo na página subsequente à capa45 (que, ao serem acessados, tinham sua cor modificada de azul para laranja, indicando aquilo que já fora ou não lido) e podia ser guiada pelas setas indicativas do navegador disposto na parte inferior de cada página; a segunda edição mantém a ordem anterior no post Plano de vôo46, como também oferece outro caminho através da barra horizontal de links, onde é possível seguir a linearidade proposta na categoria Livro47 ou acompanhar separadamente o conteúdo agrupado nas cinco partes que compõem a obra – Matéria48, Insight49, Ensaio50, Vultos51 e Vida52. No post Sobre Tristessa, Pajola ainda promove um balanço da trajetória da sua narrativa, ressaltando a importância dela por meio da repercussão causada pela obra na época. Apesar do desconhecimento atual da obra, ela chegou a ser tema de matérias jornalísticas de revistas como a Internet World, Internet BR e vem sendo objeto de estudo em projetos de pós- 38 https://www.facebook.com/pages/Thomas-G-Marasco/191343870909775?ref=stream https://www.facebook.com/pages/Fernanda-Damiani/199741133400136?ref=stream 40 https://www.facebook.com/pages/Passenger/179553988758893?ref=stream 41 https://www.facebook.com/pages/Marcela-Lanson/191208010923114?ref=stream 42 https://www.facebook.com/pages/Alexandre-Nabuco/106829002734219?ref=stream 43 https://www.facebook.com/pages/Joana-F-Marasco/166578990063503?ref=stream 44 https://www.facebook.com/pages/Paula-Davis/123266867749658?ref=stream 45 http://www.quattro.com.br/tristessa/nave_main.htm 46 http://www.tristessa.com.br/?page_id=801 47 http://www.tristessa.com.br/?cat=98 48 http://www.tristessa.com.br/?cat=54 49 http://www.tristessa.com.br/?cat=53 50 http://www.tristessa.com.br/?cat=52 51 http://www.tristessa.com.br/?cat=51 52 http://www.tristessa.com.br/?cat=50 39 89 graduação, o que de fato se comprova através de pesquisas realizadas no sistema de busca da SciELO (Scientific Electronic Library Online), do CNPq e no Google. Contudo, averiguamos que a maioria dos documentos faz referência à Tristessa mais com o objetivo de mapear a produção literária da internet do que para analisá-la, além de nem sempre se configurarem como fontes de informações confiáveis, caindo em contradições e equívocos como o de creditar a criação da obra ao personagem Thomas Marasco. Nesse universo, a exceção é a tese O jogo das construções hipertextuais defendida por Adair de Aguiar Neitzel, visando o título de doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2002, que dedica um capítulo inteiro à obra de Marco Antonio Pajola. Em julho de 2012, Tristessa ganhou uma versão impressa, sendo comercializada pelos sites Bookess53 e Clube dos Autores54. Ambos trabalham com a venda do livro em duas frentes: na entrega em papel, no sistema de impressão por demanda; e no download digital, com um arquivo PDF que preserva a diagramação impressa. Até por conta da sua migração para o papel, a obra se torna linear, perdendo os caminhos alternativos oferecidos pela teia de hiperlinks permitido pela web. Figura 7: Capa da versão impressa de Tristessa, comercializada tanto em arquivo PDF para download, como em papel, no sistema de impressão por demanda. Para esta pesquisa, focaremos no texto da versão original de Tristessa tanto por entender que ela preserva melhor o espírito da época em que foi construída (em questões visuais e em relação ao texto e ao uso dos recursos da internet), como devido ao fator 53 54 http://www.bookess.com/read/13136-tristessa/readers/ https://clubedeautores.com.br/book/132242--Tristessa 90 mutacional da segunda versão, mantendo duas propostas distintas de leitura, com novos e diferentes textos. As referências à versão mais recente e ao livro impresso serão pontuais, apenas para efeito de comparação na intenção de evidenciar as transformações ocorridas na web ao longo dos anos ou a título de complementar certas informações com o devido efeito do olhar revisionista natural da distância histórica. 3.1.1 O digital na narrativa Passados 12 anos da virada do milênio, o que nos resta daquele fim da década de 1990 é apenas uma mudança rotineira de números do calendário e lembranças bem humoradas sobre a superstição apocalíptica que antecedia a data. Ainda que hoje percebamos que o clima de incerteza fora alimentado pelos apelos da mídia para conquistar audiência, na época existia de fato um receio em torno da chegada do ano 2000, um tanto por conta do simbolismo de uma data redonda, de passagem de milênio, como por causa de eventos pontuais (a exemplo do Bug do Milênio55) e de inovações que já anunciavam revoluções no status quo, como a disseminação da informática e os avanços na área das telecomunicações, com a expansão da telefonia móvel e da internet. Criada nesse contexto, chega a ser natural que Tristessa abrace o clima de incertezas, propondo reflexões sobre os acontecimentos da sua época. Até porque na sua gênese já havia a ideia de veiculação num novo e ainda desconhecido suporte, criado com ferramentas incomuns para a literatura; e uma estruturação feita a partir da lógica hipertextual, que presumia uma ruptura à organização linear das obras impressas. Assim, de acordo com a esquematização das fases proposta pelo pesquisador Jorge Luiz Antonio, a relação com a tecnologia acaba transparecendo primeiro como tema. Logo no prefácio da obra, o contexto já é tematizado nas instruções para o leitor localizar historicamente a narrativa: Todo processo de transformação social tem um epicentro, que é o momento em que a revolução efetivamente acontece. Os personagens desta história vivem no epicentro da transição entre a era industrial e a era digital, em uma sociedade em permanente processo de descontinuação. Eles vivem um momento em que a pobreza, a Aids, as guerras religiosas e o desemprego contrastam cada vez mais com o desenvolvimento da tecnologia da informação e com o crescimento do indivíduo no ciberespaço. (PAJOLA, 1995b, Praefatio)56 55 Preocupação alardeada pela mídia por conta da limitação de alguns sistemas de informática apenas interpretarem datas com dois dígitos para o ano, o que faria com que os sistemas reconhecessem o ano 2000 como um retorno a 1900. 56 http://www.quattro.com.br/tristessa/prefacio.htm 91 Numa suposta entrevista à revista Internet BR, publicada em janeiro de 1997 e disponibilizada na revista eletrônica Passage, Pajola explica que, para escrever Tristessa, ele optou por uma perspectiva de futuro, posicionando os narradores no ano de 2004 para que eles relatassem fatos ocorridos no passado, isto é, em dezembro de 199957. Em outro texto da mesma Passage, o artigo Porto Piano58, assinado pelo protagonista Thomas G. Marasco, desenvolve melhor essa ideia de deslocamento temporal: Faça uma viagem comigo, caro leitor, uma experiência como a que nós estamos fazendo. Imagine-se na cidade de Porto Piano, em junho de 2.016. Olhe para trás, para os anos que estamos vivendo hoje e escreva tudo que você está enxergando, com o verbo no passado. Às vezes precisamos nos projetar no futuro e olhar para o passado para saber o que efetivamente está acontecendo no presente. É assim que fazem os visionários, mas não conte este segredo para ninguém. (PAJOLA, 1995a) O interessante é que esse artigo, apesar de ser supostamente datado no ainda inexistente dia 17 de maio de 2016, relata detalhes que preocupavam a sociedade dos anos 1990 e que hoje, de tão superados, já nos parecem irrelevantes como a disputa entre os fabricantes de browsers Netscape e Internet Explorer. No entanto, esse exercício proposto pelo personagem também revela algumas previsões equivocadas. Embora ainda nos faltem alguns anos para alcançarmos 2016, dificilmente chegaremos ao ponto de dizermos que “a vida, de tão fácil, acabou ficando até chata e monótona” pelo fato de todos os problemas sociais como as guerras, a AIDS e a fome terem se resolvidos. Contudo, quando essa previsão de futuro dominado pela apatia aparece em Tristessa, ela é justificada como consequência da descarga excessiva de informações, a exemplo desse diagnóstico apresentado na lexia Liturgia59: Após um período de procura obsessiva por informações, a disponibilidade em massa de textos e imagens através de gigantescas redes digitais acabou por levar as pessoas a uma total apatia. Essa perda já havia começado a se manifestar nos dias do livro e da imagem convencionais, e acabou se perpetuando com a consolidação da mídia eletrônica. Uma espécie de peste se instalou definitivamente na linguagem, e a comunicação deixou de ser uma energia em constante movimento para se aglomerar em gigantescos hosts com complexos bancos de dados, que pela imensa quantidade de informações ficava cada vez mais impossível serem penetrados de forma inteligente pela maioria das pessoas. (PAJOLA, 1995b) 57 http://www.quattro.com.br/passage/entrevis.htm http://www.quattro.com.br/passage/poesia.htm 59 http://www.quattro.com.br/tristessa/liturgia.htm 58 92 A tal apatia seria, na verdade, um reflexo da incapacidade das pessoas em conseguir filtrar a avalanche de dados, gerando uma falsa impressão sobre a importância do consumo cada vez maior de informações ao ponto de torná-lo uma necessidade de sobrevivência, como fica evidente no diálogo entre as personagens Natasha e Fernanda Damiani, ocorrido no capítulo Nathasha’s smartdrugs internet café60: “Esse excesso de energia que trafega impunemente sobre as nossas cabeças, transportando zeros e uns, me parece algo que não se conseguirá filtrar porque as pessoas acreditarão sempre estar precisando dele.”. Ainda que não haja qualquer referência direta, o diagnóstico de Pajola se assemelha ao do conto Funes, o memorioso de Jorge Luis Borges, onde o narrador conclui sobre o personagem Ireneo Funes e seu projeto de abarcar a realidade na sua totalidade: “Suspeito, contudo, que não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.” (2007, p. 108) Como efeito, a apatia faz com que as pessoas se desinteressem pelo mundo, gerando uma certa desvinculação com a época em que vivem. O que termina por refletir numa onda de egocentrismo, antecipando o atual estado de comportamento instaurado pelas redes sociais, como fica claro nesse trecho do Praefatio: “E dentro desse processo todo eles vivem o presente, olham para o passado, sonham e deliram, dando prioridade ao eu. Passam a maior parte do tempo olhando para dentro de si mesmos, às vezes sem perceber a revolução da qual estão fazendo parte”. Nesse contexto, o personagem principal de Tristessa, Thomas, mostrase incomodado com a passividade das pessoas em aderir aos novos hábitos e desenvolve um projeto para reeducar a população na intenção de prepará-las para encarar essas transformações. No entanto, ele mesmo é vítima desse cenário, caindo na onda de egocentrismo desencadeada pela época. Thomas – que assim como o autor Marco Antonio Pajola também é um fotógrafo dedicado a trabalhos envolvidos com mídia digital e que se encontra às voltas com o projeto de adaptar um livro para a internet, utilizando o recurso do hipertexto – é descrito como uma pessoa ambiciosa e, por algumas vezes, essa face do personagem é exposta por seus amigos. “Sempre houve nele o fascínio pela grande catarse, pelo grande orgasmo coletivo em torno de uma história que ele acreditava um dia haver existido dentro dele. E nessa história ele ocupava sempre o personagem principal, não aceitava o de coadjuvante”, diz o narrador The Passenger sobre Thomas61. 60 61 http://www.quattro.com.br/tristessa/natasha.htm http://quattro.com.br/tristessa/thomas.htm 93 Nesse sentido, a sócia de Thomas, Roberta Ferrari, é a mais implacável. Ao ler a versão do livro on-line, ela acusa Thomas de estar desvirtuando o projeto para escrever sua autobiografia62, reclama que ele está expondo não apenas a sua intimidade, como também a dos amigos que o cercam63. Na versão mais recente de Tristessa, a vaidade de Thomas é ressaltada através do texto enxertado Verão de 199564, onde o outro narrador, o The Passenger (que na versão ganha o nome de Frederico Bergamasco) revela sua impressão sobre o protagonista: “Thomas tinha um ego realmente enorme e seus textos não continham nada mais do que a sua própria história, e não com os nomes dos personagens trocados, como havia me dito há pouco.” Thomas, por sua vez, não nega o entrelaçamento da narrativa com a sua vida, defendendo-a como verdade e, inclusive, chega a justificar sua (des)organização linear com o projeto de abraçar na totalidade a sua existência: Eu não sei se você percebeu, Roberta, mas eu não estou falando de dois ou três anos, estou falando de mais de três décadas, estou falando de todo o meu tempo, de todo o tempo que tive para viver até agora. Não parece, mas esta porra toda abrange mais de três décadas, e tudo aflorando desorganizadamente, sem critério, sem prioridade, sem piedade - sem que eu consiga sequer descobrir o começo disto tudo e no final desembocando nesta rede inesperada. (PAJOLA, 1995b, Os olhos em chamas) A ambiguidade de Thomas, que ora acredita ser o guia para a construção de um senso crítico e ora reconhece a sua incapacidade de seleção, também se reflete no seu projeto de livro, representando o confronto entre as duas estruturas de escrita – a linear e contínua do impresso e a em rede e fragmentária do hipertexto. Contraditório, Thomas chega a ser criticado por Roberta pela linearidade cronológica com que ele organizou sua exposição em realidade virtual65, mas se mostra suscetível aos tempos de informações fragmentadas e cruzadas do hipertexto, constatando que não consegue escrever em linha reta 66. Nesse sentido, a metalinguagem de um personagem escritor que está escrevendo o livro no qual está inserido nos faz enxergar que é a partir de Thomas que Pajola compartilha as angústias sobre a própria criação de Tristessa, revelando as incertezas dos novos tempos. Para tanto, o autor traça um cenário de transição, localiza a trama num limiar que vai sendo rompido lentamente. A própria escolha de um fotógrafo como protagonista é simbólica, afinal, como explica o personagem, ela é vista como uma profissão em extinção e isso potencializa o olhar 62 http://www.quattro.com.br/tristessa/chance.htm http://www.quattro.com.br/tristessa/aprobert.htm 64 http://www.tristessa.com.br/?p=984 65 http://www.quattro.com.br/tristessa/show.htm 66 http://www.quattro.com.br/tristessa/michelle.htm 63 94 nostálgico sobre as transformações ocorridas67. Essa passagem fica particularmente clara quando Pajola compara os procedimentos de um ensaio fotográfico feito por Thomas com Fernanda na era analógica, em que eles levaram mais de uma hora para queimar negativos e depois os projetarem em projetores de slides68, e sua reedição na era digital com o uso de data shows para a projeção do filme Pulp Fiction e de fotografias que ganharam retoques do fogo a partir de efeitos de computador69. A mudança de tempo também fica evidente pelos termos referentes aos equipamentos usados nas duas ocasiões, mostrando como a arte de cada período histórico se contamina com a tecnologia da época: na primeira – slides, cromos, tocadiscos e filmes Ektachrome de ASA 400; na segunda – câmera digital da Sony, cartão de memória de 1 gigabyte, CD e efeitos de computador. O recurso de confrontar o método produtivo de duas épocas também serve para ilustrar a fronteira que o autor enxergava a literatura naquele fim dos anos 1990. Ainda que trechos revelem que Thomas ainda se ancorava em suportes tradicionais e permanecia ligado à lógica linear de narração70, ele era pretencioso o bastante para nutrir a expectativa de revolucionar os rumos da literatura com seu livro, inaugurando uma nova forma de escrita. Em dado momento da conversa com Roberta71, ele diz: “A rede tem que encontrar o seu caminho literário. Nós estamos saindo do papel. É a forma e a época que vai agir sobre o leitor, transformando-o num sujeito passivo, objeto, ou num ser humano vivo, interagindo com a história de seu tempo.”. Influenciado pelas ideias do Teatro da Crueldade desenvolvido pelo francês Antonin Artaud, que propunha a interação entre o público e os atores com o fim da separação do palco e da plateia; Thomas acredita que o uso da mídia digital para a literatura está vinculada à possibilidade de dar ao leitor um papel ativo no enredo. Ele, inclusive, chega a propor anúncios de divulgação do livro como “Oferece-se ingressos para a grande cena da praia. Você não terá que pagar nada, a não ser participar com o seu sangue e as suas lágrimas” e “Você está convidado para sentir a vertigem de viver, está convidado para entrar nesta história e participar da cena da praia.” (PAJOLA, 1995, Os olhos em chamas). Isso se confirma no plano real, mostrando que a ideia de interatividade é perseguida por Pajola, chegando a 67 http://www.quattro.com.br/tristessa/chance.htm http://www.quattro.com.br/tristessa/ensaio.htm 69 http://www.quattro.com.br/tristessa/studio1.htm 70 http://www.quattro.com.br/tristessa/greatba3.htm 71 http://www.quattro.com.br/tristessa/chance.htm 68 95 classificar Tristessa como uma ficção interativa na entrevista concedida à revista Internet BR72. Ao mesmo tempo, Thomas reconhece que o público ainda não estaria preparado para entender uma obra que superasse a estrutura linear de narrativa 73. Ele se mostra bastante receoso com o material já escrito, apresentando não só indecisões sobre o texto como sobre o uso do recurso do hipertexto na estruturação da obra. Segundo ele, a migração para um novo modelo de narrativa significaria a perda de uma convenção já estabelecida com o leitor74: “não estou conseguindo encontrar soluções para os problemas de leitura, sem sacrificar a interatividade. Se deixo a navegação fluir fácil, limito a interatividade do leitor. Se crio condições de interatividade ele se perde nos links.” Num momento posterior da história, aparentemente situado no futuro, Thomas descobre que, enquanto esteve em coma, a indústria editorial absorveu o mercado digital adotando o modelo dos chamados living books, com recursos de som, imagem e participação do leitor75. 3.1.2 A narrativa no digital Na medida em que o autor Marco Antonio Pajola transfere algumas das suas angústias reais para o plano ficcional através Thomas, que repetidas vezes expõe suas incertezas sobre a criação de um livro voltado para a internet; ele também chama atenção para o seu trabalho, para o seu processo de escolha na construção de Tristessa. Através da metalinguagem, Pajola propõe uma quebra da imersão provocada pela leitura e nos conduz a uma comparação entre o discurso e a forma, entre o enredo e a sua estrutura narrativa, entre as ideias de Thomas para o seu livro fictício e o uso de recursos da rede na obra, entre as observações sobre o peso da tradição impressa e as escolhas do autor para diferenciar seu projeto. Nesse sentido, de acordo com a pesquisadora Adair de Aguiar Neitzel, a própria inversão de cores da obra on-line (do texto branco e do fundo negro) já é um indício de posicionamento contrário ao meio impresso, comumente disposto com letras pretas sobre fundo branco (2002, p. 214). Ao inverter as cores, Tristessa absorve na sua forma estética o discurso de Thomas sobre a necessidade de ruptura para desenvolver um novo gênero, gestado sob as características da rede, já anunciando a contraposição que a obra digital faz às convenções da tradição impressa, no que diz respeito à organização das informações, aos 72 http://www.quattro.com.br/passage/entrevis.htm http://www.quattro.com.br/tristessa/show.htm 74 http://www.quattro.com.br/tristessa/greatba2.htm 75 http://www.quattro.com.br/tristessa/coma.htm 73 96 caminhos de entrada na narrativa, ao papel dos leitores, à fixação dos dados e à relação entre o tempo de duração da leitura com os limites físicos de cada suporte. 3.1.2.1 Desorientações no labirinto do hipertexto Em maior ou menor grau, todos os contrapontos entre o digital e o impresso acabam se relacionando com o uso do hipertexto. Logo na abertura de Tristessa, o autor explica que a narrativa foi organizada em três atos lineares (Corpo, Fragmento, Todo) e cinco planos aleatórios. A distinção entre atos e planos se dá em relação ao tempo, que corre no eixo dos atos, e às dimensões do pensamento, que varia no eixo dos planos76. Na prática, contudo, o leitor não percebe a separação da história em atos, já que eles são omitidos sob a justificativa do descarte da referência temporal. Ainda que o encadeamento dos fatos acabe se encaixando numa ordem temporal de passado e futuro pelo esforço do leitor; a omissão dos atos aponta para uma das principais características da narrativa hipertextual. Aproveitando-se da facilidade de atualização e do atributo da imaterialidade do suporte digital, Tristessa não apresenta uma extensão definida, deixando o leitor com poucos referenciais sobre o que já foi lido e o que ainda se falta ler. Ao contrário da leitura no suporte impresso, onde a expectativa pelo fim da história aumenta com diminuição do volume de páginas no lado direito do livro aberto; no meio digital não há essa correlação entre o material e o andamento da leitura. Por mais que o mapa inicial indique a existência de 60 links e quais os que já foram acessados pelo leitor, o dispositivo não dá uma dimensão do tamanho dos textos, dando acesso tanto a fragmentos de apenas nove linhas, a apenas imagens77 ou a textos de quase duas mil palavras. Outro problema está na mistura de páginas informativas externas ao plano ficcional, como Praefatio e Be patient, com a narrativa propriamente dita. Além disso, também existem páginas não listadas no mapa, que só se revelam durante a leitura da obra, e os links direcionados a endereços extras, indo da revista Passage (que serve como um anexo à narrativa ficcional) a um universo completamente alheio à Tristessa (caso dos links externos), gerando uma instabilidade em torno dos limites da obra, levando o leitor ao risco de sair da história e perder o caminho de volta. Considerando-se o estado atual da obra, ainda que não seja atributo da ideia primeira do autor, a defasagem dos links externos também desperta desconfianças sobre a incompletude da obra. 76 77 http://www.quattro.com.br/tristessa/nave_main.htm http://www.quattro.com.br/tristessa/marcela2.htm e http://www.quattro.com.br/tristessa/marcela3.htm 97 Figura 8: Mapa de navegação apresentado na introdução de Tristessa. Os links em laranja já foram acessados e os azuis ainda não foram lidos pelo leitor. A única indicação oferecida aos leitores é a dos planos, devidamente informados no cabeçalho de cada página e pela disposição do mapa de navegação, onde se vê as subdivisões dos planos em capítulos – Vida composto por 21, Vultos por sete, Ensaio por seis, Matéria por catorze e Insight por doze. No entanto, ao mergulhar na leitura, o mapa inicial não é reproduzido nas outras páginas, apenas podendo ser acessado através do navegador, num movimento que se assemelha a um retorno ao índice. O mais natural, portanto, acaba sendo o avanço da leitura pelas indicações das setas do navegador ou através dos links dispostos no corpo do texto. Em ambas as opções, o leitor fica sem qualquer noção de onde se encontra e quanto ainda resta para se concluir a leitura. Quando a opção de leitura se dá pelo navegador, a desorientação do leitor ainda é acrescida com a confusão acerca dos limites da obra causada por sua estrutura circular, onde o eixo principal se conclui no capítulo Coma, mas cuja sequência promove o retorno ao primeiro capítulo ficcional da narrativa (Liturgia), num convite contínuo a outra leitura. Esse clima de insegurança, despertado pela estrutura narrativa, dialoga com o plano temático, potencializa-se com os enigmas apresentados na história como a citação de textos que ainda estão por vir (no caso de se seguir o caminho proposto pelo navegador)78, mas que Thomas diz e confere ainda não terem sido escritos muito menos colocados no ar79. A cena 78 79 http://www.quattro.com.br/tristessa/liturgia.htm http://www.quattro.com.br/tristessa/marc_ap.htm 98 alimenta uma confusão temporal que remete à multilinearidade de Tristessa, à liberdade do leitor em escolher seu caminho de leitura e às possibilidades variadas de entrada na obra, permitindo o acesso a textos em ordem variada, podendo alterar as relações de causa e efeito pensadas pelo autor. Segundo o linguista Antonio Carlos Xavier, a própria liberdade de escolha é fonte de mal-estar para os que estão acostumados com o tradicional. (2009, p. 39). Como já vimos antes, Pajola classifica Tristessa como uma “ficção interativa”, algo que aparece melhor explicado na definição do personagem Passenger, apresentada no artigo Ficção interativa e hipertexto datado de 25 de agosto de 1995 e publicado na revista eletrônica Passage80: ficção interativa escrita em hipertexto é uma forma de narrativa não linear, em que existe não apenas uma única sequência de leitura, mas algumas. O que caracteriza essa forma de literatura é a interatividade, a alternativa de escolha de um determinado caminho, em um determinado momento, entre vários caminhos disponíveis. Alguma coisa parecida com a vida – portanto nada muito novo enquanto conceito. Aparentemente, na visão de Pajola, a interatividade ocorre como o resultado da escolha de uma sequência narrativa. De acordo com Neitzel, porém, a participação do leitor é limitada porque o sistema adotado em Tristessa é semelhante ao de Um conto à sua maneira de Raymond Queneau, “o qual se restringe à simples combinação de textos previamente combinados. O incerto e o imprevisto em Tristessa fazem parte desse jogo de navegar apenas quando se adentra um de seus links externos.” (2002, p. 236). Para a pesquisadora, a obra de Pajola adota “um sistema hierárquico do tipo seqüencial e arborescente, com um tronco que sustenta ramificações, os ramos obedecendo uma hierarquia, pois fixam um ponto, uma ordem, um sistema que se fecha sobre si mesmo” (2002, p. 243). No caso, esse eixo central é composto pelos 26 capítulos ficcionais costurados pelo navegador. Figura 9: Ferramenta de navegação oferecida na versão original de Tristessa para facilitar o andamento da leitura. A imagem conta com três áreas clicáveis, a seta da esquerda retorna para o texto anterior, a da direita dá sequência à história e o clique no centro do navegador leva à primeira página da obra, onde fica o mapa de navegação com os links para os textos que compõem a narrativa. 80 http://www.quattro.com.br/passage/ficinth.htm 99 Mesmo quando o leitor recorre aos links incorporados no texto e sai da rota, o navegador se faz presente e muitas vezes acaba sendo a única opção do leitor para avançar na leitura, funcionando como um caminho de volta, ou seja, ao ponto abandonado do tronco principal da narrativa. Nesses momentos, as duas setas do navegador – tanto a da ida quanto a da volta – direcionam o leitor para a mesma página. Figura 10: Sequência circular de leitura proposta pelo navegador. Os campos em azul indica o conjunto de capítulos do plano Vida, o lilás se refere ao plano Insight e os em cinza ao plano Matéria. Os textos em negrito indicam os fragmentos não-ficcionais da narrativa. A exceção fica por conta dos sete links não listados no mapa de navegação, os únicos que não possuem o navegador. Em dois deles (Sonho de Marcela81 e Pensando no melhor ângulo de Marcela82) a ramificação da narrativa se encerra e o leitor fica trancafiado na página com apenas uma imagem já descrita em palavras no capítulo que lhe deu acesso. Para sair, o leitor precisa recorrer ao browser, seja clicando em suas setas ou digitando o endereço da obra novamente. Nas outras cinco páginas, que remetem às home pages supostamente escritas por cada um dos personagens, há uma ramificação de links, onde a exploração do leitor pode lhe levar 81 82 http://www.quattro.com.br/tristessa/marcela2.htm http://www.quattro.com.br/tristessa/marcela3.htm 100 de volta à capa de Tristessa ou a outros dois pontos do tronco principal (Imagem e Máscaras), pulando cinco ou onze etapas, respectivamente, do eixo central. Figura 11: Mapa da leitura realizada via os hiperlinks incorporados no texto. As cores das caixas de texto correspondem aos cinco planos da história. Os capítulos que integram o plano Vultos estão em laranja, os de Vida em azul, Matéria em cinza, Insight em vermelho, Ensaio em amarelo. Os dois retângulos em verde se referem ao espaço não ficcional da obra. 101 Ao mesmo tempo, a resistência de Thomas aos efeitos do hipertexto na leitura prevalece na estrutura de Tristessa. Mesmo com seu potencial de caos despertado pelo convite de embaralhamento da sequência narrativa, a obra conserva sua unidade, mantém o seu sentido ao longo da leitura, independentemente da trilha escolhida pelo leitor. Já no texto de abertura, o autor ressalta o caráter mutável da narrativa, mas descarta alterações no enredo, negando desvirtuamentos da história: “Tristessa não é um jogo onde você brinca de mudar a história e descobre múltiplos e infinitos finais. A história é uma só, os diferentes caminhos apenas os levarão a enxergar diferentes camadas dessa história e montá-la em sua cabeça.”83 Pela citação vemos que o investimento no hipertexto incide sobre o aspecto volátil da mídia digital, que proporciona uma multiplicidade na sequência de leitura, mas de uma maneira limitada, sem colocar em risco a noção autoral nem a unidade do sentido da obra. Numa analogia à diferenciação entre o double coding e a ironia intertextual feita por Umberto Eco – onde a primeira acrescenta informações aos leitores mais perspicazes e a outra desvirtua a história, subverte o sentido, transforma a mensagem e incita silenciosamente um olhar crítico através das entrelinhas (ECO, 2003, p. 200-206) –, podemos afirmar que as partes que compõem Tristessa apenas somam fatos à narrativa principal, não bifurcam as vidas dos personagens nem ressignificam o discurso. A alteração da ordem de leitura não altera o significado, exige apenas um esforço maior de montagem por parte do leitor. Da mesma forma, a supressão dos capítulos que fogem aos 26 passos ficcionais do eixo traçado pelo navegador se torna uma possibilidade plausível, oferecendo versões resumidas ou mais completas de uma mesma obra. Os trechos, digamos, secundários detalham certas passagens, explicam reações, revelam fatos do passado ou pensamentos dos personagens; mas nada que ameace o entendimento da obra. O efeito é semelhante ao de assistir aos extras de um filme em DVD, com cenas excluídas. Elas acrescentam informações, revelam métodos de trabalho, descortinam escolhas feitas pelo diretor e proporcionam comparações com a obra final; mas não chegam a desvirtuar o sentido da obra. Não queremos, contudo, afirmar que elas são descartáveis, desnecessárias. Como uma obra literária, cada parte é dotada de significado, elas veiculam ideias, carregam reflexões, possuem valor simbólico e contribuem para o entendimento de Tristessa, reforçando temas abordados ao longo da narrativa, aprofundando questões e deixando mais evidente as posições do autor. No entanto, a própria estrutura maleável da obra permite que a leitura seja realizada de maneiras diferentes sem que haja alterações no seu significado geral. 83 http://www.quattro.com.br/tristessa/nave_main.htm 102 Figura 12: Comparativo entre as três sequências de Tristessa 1ª versão on-line (navegador) Liturgia Caminho Show Great Balls Dimensão do sonho Quase imagem Imagem Corpo de Marcela Em linha reta Natasha's smart drugs Expozicione Fotográfica (...) Tristessa Máscaras Puto, traído e corneado Procissão de anjos e demônios Idéia de morte Communiqueé. Comunicatio. (...) Invadindo nosso tempo Massa decomposta(...) Olhos em chamas Incorpóreo Vultos na contra-luz Nigger Bay O corpóreo e o virtual Apenas vultos Coma 2ª versão on-line Verão de 1995 Liturgia Caminho A mesa Show Zen, tranquila e coerente Great Balls Fernanda Augusta Uma oficina de dança em Praga Dimensão do sonho Olhos de Marcela Marcela Ensaio Realidade e fantasia Em linha reta Promessa cumprida Sem mistério algum Manhã fresca, úmida, recém nascida Devil or angel? Joana Momento Ponteiros Teu corpo prometido ao meu Com os bolsos vazios Nua e orgulhosa (...) Corpos perplexos Brincando em praias distantes Paula Determinismo do desencontro Despedida Todo o vômito do mundo O Bolero de Ravel Janelas Roberta Quase imagem Imagem Resposta Corpo de Marcela Marcela Natasha's Smartdrugs Internet Café Exposicione Fotografica (...) Uma advertência e um aviso de morte Porto Piano, verão de 2012 (work) Tristessa Máscaras Plasmado no eco dos seus passos Puto, traído e corneado Procissão de anjos e demônios Imagens quase vivas Idéia de morte Communiquée, Communicatio (...) Invadindo o nosso tempo Massa decomposta (...) Os olhos em chamas A última manhã da vida Vultos na contra-luz Nigger Bay O corpóreo e o virtual Apenas vultos Coma Coloco os óculos escuros (...) Adolescência Versão impressa Porto Piano, verão de 1995 Liturgia Thomas Caminho Show Great Balls Fernanda Augusta Ensaio Realidade e fantasia O determinismo do desencontro Despedida Adolescência Dimensão do sonho Alex Quase imagem Roberta Imagem Resposta Corpo de Marcela Marcela Olhos de Marcela Promessa cumprida Sem mistério algum Manhã fresca, recém-nascida Devil or Angel? Paula Em linha reta Joana Momento Ponteiros Teu corpo prometido ao meu Com os bolsos vazios Nua e orgulhosa (...) Corpos perplexos Brincando em praias distantes O Bolero de Ravel Janela Todo o vômito do mundo Natasha's Smartdrugs Internet Café Exposicione Fotografica (...) Uma advertência e um aviso de morte Tristessa Máscaras Plasmado no eco dos seus passos Puto, traído e corneado Procissão de anjos e demônios Imagens quase vivas Idéia de morte Communiquée. Communicatio (...) Invadindo o tempo Olhos em chamas Incorpóreo Vultos na contra-luz Nigger Bay O corpóreo e o virtual Apenas vultos Na boca um gosto de estrelas mortas Coma 103 O futuro O mesmo princípio vale para as outras versões de Tristessa. Tal como ocorre com as diversas possibilidades de leitura da versão original, as sequências apresentadas pela segunda edição eletrônica e pela versão impressa – com suas próprias ordens e acréscimos de partes que não existiam antes – não corrompem a essência da história em si. Pelo contrário, a comparação entre o encadeamento de capítulos das três versões mostra que a segunda edição on-line e a impressa reforçam o projeto do autor, mantendo praticamente idêntico o tronco principal da narrativa. Como se observa na tabela da página anterior, as 26 partes do original foram mantidas nas outras duas versões da obra. Na impressa, a obra possui a mesma sequência cronológica da original, afinal, a aparente supressão do capítulo Massa decomposta, matéria sedimentada se revela falsa na prática, já que ele foi absorvido pelo capítulo anterior Invadindo o tempo. Na segunda edição, o que há é a mudança do título original Incorpóreo para A última manhã da vida e a antecipação do capítulo Em linha reta da nona para a quinta posição, em relação ao original. Além disso, ao estabelecer uma ordem mais bem definida de leitura, sem a dispersão dos links externos e das idas e vindas da exploração no terreno desconhecido do hipertexto, as relações de causa e efeito pensadas por Pajola se potencializam com a fixação de uma linearidade. Mas, ao mesmo tempo, se a mudança não compromete a narrativa, a costura que havia entre o plano temático e a forma estética de Tristessa se afrouxa pelo enfraquecimento da experiência de leitura, que perde todas as referências sensoriais de explorar o terreno instável e labiríntico do digital para fluir na naturalidade do ato de virar a página, descontextualizando o discurso da prática, desvinculando as reflexões do personagem da própria experiência de leitura na web. Se pegarmos a edição impressa e a segunda versão da obra on-line, vemos que o dilema de Thomas parece ter sido resolvido em prejuízo da interatividade, com a extinção dos links para conteúdo interno e externo, bem como a adoção de uma sequência narrativa mais linear. Apesar das previsões lançadas na obra de que uma nova maneira de contar histórias pela escrita seria aceita e absorvida pelo mercado, a realidade mostra que o mundo ainda não encontrou um formato ideal para a literatura em prosa no meio eletrônico, como confirma o próprio Pajola, 15 anos depois da publicação da obra, no texto Sobre Tristessa84. Levando em consideração o artigo Storytelling 2.0: When new narratives meet old brains, publicado na revista New Scientist e assinado pelo professor de neurociência da Universidade de Cincinnati John Bickle e o pesquisador Sean Keating, podemos encarar o 84 http://www.tristessa.com.br/?page_id=724 104 retorno de Tristessa aos moldes tradicionais da narrativa como parte de uma tendência da prosa em literatura eletrônica. No artigo, eles se baseiam em estudos sobre o funcionamento do cérebro humano para defender que existe uma relação fisiológica entre o corpo e a estrutura narrativa tradicional, revelando-se um artifício importante para o desenvolvimento do eu, de uma noção pessoal e autobiográfica do eu. Segundo Bickle e Keating, os recursos de interatividade usados para construir as narrativas digitais implicam no rompimento dessa relação com o funcionamento do cérebro. Ao se valerem de múltiplos pontos de entrada para a leitura e apresentarem um desenvolvimento contínuo, sem estabelecer um limite definido, até por conta da sua natureza colaborativa, fruto do esforço de vários autores, leitores e mesmo dos programas de computador; as narrativas digitais se tornam inviáveis para suportar o efeito psicológico de fazer com que o leitor se comunique com ele próprio. Numa perspectiva literária, a ruptura apresentada pelas narrativas digitais com a tradição será tão radical que elas já não serão reconhecidas como narrativa – e assim já não serão capazes de gerar eus narrativos –, ou então vão incorporar uma estrutura narrativa básica, talvez atenuada, para continuar a produzir narrativas do eu. (BICKLE, KEATING, 2010, tradução nossa) Assim, a dupla de autores acredita que, por mais que as obras digitais imponham inovações na estrutura narrativa, elas não conseguirão alterar a maneira como nossos cérebros constroem nossas narrativas pessoais. Uma conclusão que acabaria fazendo com que as obras retornassem ao formato tradicional. 3.1.2.2 Variações de perspectiva pelo hipertexto Ainda que o poder de agência do leitor se limite à montagem da narrativa, definindo uma ordem já pré-estabelecida pelo autor, o recurso do hipertexto guarda um importante significado para a compreensão de Tristessa. Segundo o linguista Antonio Carlos Xavier, as escolhas de um internauta no universo do hipertexto se relacionam com o pensamento pósmoderno, que se propõe confrontar diversos pontos de vista e observar as diferenças que existem entre essas interpretações (XAVIER, 2009, p. 36). Com a cisão do centro, pulverizado pelo avanço das mídias tecnológicas, em especial a internet: A dissolução da centralidade do discurso vivida no hipertexto, inserido na PósModernidade, pode provocar uma leitura dispersiva, até porque a falta de completude, de eixo organizador e de fio-condutor do discurso tornam o hipertexto um objeto virtual estranho diante daqueles pouco acostumados com as parafernálias 105 digitais. Essas características estimulam a ocorrência de várias interpretações e versões interpretativas para um mesmo hipertexto, obrigando o leitor moderno a manter uma atenção redobrada e a reavaliar, constantemente, seu projeto de leitura frente à tela. (XAVIER, 2009, p. 43-44) Assim, a dispersão e a fragmentação dos textos exigem uma mudança de postura do leitor, que deixa sua atitude passiva diante da obra e passa a se aventurar no universo do hipertexto, explorando caminhos, comparando versões diferentes e relacionando significados potenciais que aparecem em rede, desarticulados em páginas distintas. Por permitir a variação da sequência de leitura e a quebra do efeito imersivo da narrativa, o hipertexto em Tristessa impõe que o leitor se posicione no rumo da narrativa, observando o funcionamento da criação literária e fazendo suas escolhas no universo de engrenagens discursivas, que passam a ser encaradas como construções humanas. Isso fica ainda mais evidente quando o leitor chega nas páginas ocultas com os perfis dos personagens Thomas85, Alex86, Roberta87, Fernanda88 e Marcela89. Nelas, o discurso de Tristessa ganha sentido de filtro, remodelando o mundo real através de palavras, selecionando fatos e excluindo outros na tentativa de organizar um argumento. Essa ruptura entre o real e o ficcional é apresentada logo no aspecto visual das páginas, que quebram com o padrão de fundo negro adotado para dar unidade à obra. As páginas funcionam como home pages pessoais dos personagens, o que se faz sentir já pela mudança da voz narrativa, trocando o discurso em terceira pessoa do narrador Passenger pela primeira pessoa do singular: “Escrevo o que quiser neste espaço, inclusive contra o livro e seu autor.”, diz a personagem Fernanda. Nesses espaços, os personagens compartilham informações pessoais, trocam ofensas, posicionam-se em relação à obra, dão suas opiniões, oferecem mais informações sobre a narrativa da qual fazem parte, mostram-se incomodados em terem suas vidas expostas publicamente pelo projeto de Thomas e revelam as camadas de ficcionalidade de Tristessa sobre o real, como fica claro no comentário de Roberta: “Eu, por exemplo, tenho apenas uma pequena editora que herdei de meu pai, e eles me transformaram em proprietária de uma das maiores redes de comunicação do planeta, uma das maiores formadoras de comportamento neste final fim (sic) do milênio.”. Até como uma forma de comparação para melhor evidenciar o funcionamento dessas home pages pessoais, lembramos novamente que, na versão on-line mais recente, elas foram 85 http://www.quattro.com.br/tristessa/paginas/thomas/ http://www.quattro.com.br/tristessa/paginas/alex/ 87 http://www.quattro.com.br/tristessa/paginas/roberta/ 88 http://www.quattro.com.br/tristessa/paginas/fernanda/ 89 http://www.quattro.com.br/tristessa/paginas/marcela/ 86 106 transformadas em páginas na rede social Facebook. Criadas em abril de 2011, as páginas são identificadas com a descrição “personagem fictício”, mas trazem fotos deles, um perfil escrito revelando quem são eles e suas relações com a obra Tristessa. Apesar do conteúdo esparso, as páginas foram alimentadas com comentários, links para músicas em outras plataformas como o YouTube e para artigos, supostamente escritos por eles, da revista eletrônica Passage (disposta apenas na primeira versão da obra, com layout semelhante ao da narrativa). Figura 13. Comparativo das páginas reservadas ao perfil do personagem Thomas G. Marasco. À esquerda, a primeira versão criada no próprio site de Tristessa. À direita, a versão no Facebook, onde o personagem compartilha links para vídeos no YouTube e para artigos da revista eletrônica Passage. Tal qual o Facebook, as páginas da versão original ainda se colocavam como um recurso interativo, convidando os leitores a enviarem mensagens para cada personagem, através de seus respectivos e-mails. Infelizmente, hoje o site não disponibiliza essas mensagens, inviabilizando uma análise da interação. 107 Conclusão Em 1989, o filme De volta para o futuro 2 estreou nos cinemas apresentando uma previsão do que estaria por acontecer no século XXI. Numa de suas viagens pelo tempo, o protagonista Marty McFly sai de 1985 e chega ao ano de 2015, encontrando um mundo com roupas que se ajustam ao tamanho do corpo, carros e skates voadores. Apesar disso, ele compra um almanaque de resultados esportivos encadernado num formato que há séculos identificamos como livro. Ainda que estivesse exposto numa loja de antiguidades, a obsolescência do livro apresentado pela vendedora dizia respeito apenas ao fato dele ainda não contar com a tecnologia do papel anti-poeira. A dependência do papel, como suporte para registro e transmissão de mensagens, continuava o mesmo, tanto que ele reaparece em outras cenas com os personagens manuseando faxes e jornais impressos. Embora ainda nos faltem dois anos para chegar em 2015, dificilmente chegaremos ao mundo de carros voadores previsto pelo diretor Robert Zemeckis em De volta para o futuro 2. Ao mesmo tempo, a visão de futuro de Zemeckis tem se revelado bastante retrógrada ao cenário de e-mails, internet, tablets, e-readers e smartphones que já estamos vivendo em 2013. Por mais que esse exemplo mostre o quão é complicada a tarefa de concluir algo sobre um tema que envolve as incertezas da tecnologia, o cenário atual tem apontado para a entrada definitiva da indústria editorial no meio eletrônico devido à penetração no mercado e o desenvolvimento dos novos dispositivos, que primam pela portabilidade e o manuseio intuitivo. Além disso, os altos investimentos das editoras e plataformas de e-commerce direcionados ao livro sugerem que o negócio de e-books deve se consolidar de fato. Em termos de linguagem, a exemplo do que aconteceu com a popularização dos computadores e o surgimento da internet, a produção literária para os tablets e e-readers continuam se baseando nas características e procedimentos da leitura em papel, reproduzindo na plataforma digital a mesma funcionalidade dos livros impressos, como o ato de virar páginas, grifar certas passagens ou fazer anotações sobre determinados trechos. Mesmo que os novos aparelhos permitam o incremento de animações, sons e vídeos; esses recursos têm sido evitados para não distrair, não tirar a atenção do leitor, visto que a concentração é algo indispensável à leitura de narrativas. No Brasil, os chamados enhanced books (ou livros turbinados, como traduz a pesquisadora Cristiane Costa) começaram a aparecer mais no segmento infantil, onde recursos sonoros, de animação e de compartilhamento em redes 108 sociais dão ao livro um aspecto de brinquedo (COSTA, 2011, p. 43-44). Já em obras destinadas ao público adulto, quando aparecem, essas ferramentas geralmente surgem como material extra, um bônus que acrescenta informações, mas não fazem parte diretamente da narrativa. Ou seja, fazem parte do produto livro, são incrementos da edição e não necessariamente da obra criada pelo autor. Contudo, essa nova etapa parece se diferenciar dos primórdios da internet, que surgiu sob o discurso da liberdade, da descentralização dos emissores de conteúdo, do livre compartilhamento de arquivos e da expectativa da criação de uma nova linguagem, tornando o ambiente on-line convidativo ao experimentalismo e à inovação. Por sua vez, ao que parece neste início, a fase dos tablets se inaugura já com as lições do passado, amadurecida pela tendência anárquica da web, surgindo sob os interesses gerados pelas oportunidades de negócio, sob o controle do mercado editorial (que tem usado o potencial das redes sociais a seu favor na obtenção de informações sobre o público leitor) e sob a sombra de uma experiência que não vingou, comercialmente e artisticamente, na internet. Partindo desse ponto de vista, podemos observar o quadro que se desenha como uma resposta ao que aconteceu no passado. Antes mesmo das soluções apresentadas pelos tablets, vozes como a do americano Andrew Keen já se erguiam contra o discurso descentralizador que norteou os princípios colaborativos da internet. Em seu livro O culto do amador, Keen relata uma série de exemplos que revelam os efeitos da pulverização dos emissores de informações, pondo em risco instituições confiáveis como a bicentenária Encyclopaedia Britannica – que tem no currículo a colaboração de 100 vencedores do Prêmio Nobel, em prol de plataformas como a Wikipédia – enciclopédia on-line cujo lema é “a enciclopédia livre que todos podem editar”90 (2009, p. 45). Nessa linha, percebemos que começa a surgir uma espécie de crise de consciência, um ceticismo que vem se contrapondo à falta de governança da internet, numa tentativa de desenvolver mecanismos e revalorizar a figura do autor, do especialista, da credibilidade, da originalidade. Além disso, também é preciso considerar os altos custos no desenvolvimento de aplicativos, gráficos e animações para o desenvolvimento dos enhanced books (COSTA, 2011, p. 45). Diante desse cenário favorável, as editoras têm aproveitado para manter as rédeas do mercado de livros no ambiente digital, reagindo ao movimento de pirataria que primeiro devastou a indústria fonográfica e hoje, com o incremento da velocidade de conexão, ameaça os estúdios de cinema com o compartilhamento de filmes via arquivos torrent. 90 http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia:P%C3%A1gina_principal 109 Ao que parece, assumindo aqui o risco da proximidade histórica do meu olhar em relação ao objeto de análise, as narrativas brasileiras produzidas e veiculadas na internet parecem não terem deixado um legado de continuação, tornaram-se documentos históricos de uma expectativa de transformação de linguagem que não aconteceu de fato. Pegando carona no artigo O fim do estilo na cultura pós-humana de Lucia Santaella e nas suas referências ao ABC da literatura de Ezra Pound, vemos essas primeiras experiências ocorridas na narrativa em meio eletrônico no Brasil – em especial a de Mario Prata com Os anjos de Badaró e a de Marco Antonio Pajola com Tristessa – na categoria dos inventores. Ainda que de maneira comedida, buscando uma conciliação com a tradição impressa; ambos assumiram a missão de expandir a linguagem, de experimentar os novos recursos e procuraram ressaltar as possibilidades do universo digital. Afinal, segundo Santaella: “Os inventores são aqueles que criam. São capazes de extrair possibilidades novas, ainda não exploradas do processo de signos no qual estão imersos.” (SANTAELLA, 2009, p. 104). Pelo desconhecimento que encontramos em torno dessas experiências, o descaso na preservação das informações sobre Os anjos de Badaró, Tristessa e outras narrativas que se perderam e os rumos da produção narrativa ainda na era pré-tablet; a aventura da literatura brasileira na internet parece que ainda demorará para render seus mestres, capazes de tornar mais naturais e aceitos os avanços de linguagem proferidos pelos inventores, atingindo o estágio em que o meio se torna transparente, adquire um grau de invisibilidade e faz com que a história passe a importar mais do que a forma (MURRAY, 2003, p. 282). Por enquanto, a tendência é que se permaneça na etapa da reminiscência do papel, a exemplo da produção dos blogs, dos coletivos literários e do Twitter, que no fim das contas não representaram mudanças de linguagem, configurando-se apenas como vitrines rentáveis para os autores no processo de retroalimentar a indústria editorial. Até porque o cenário que se configura hoje com os tablets volta a ser controlado pelas editoras, dificultando inserções experimentais e independentes como a de Pajola. Contudo, resta saber se a natural adaptação das próximas gerações aos novos dispositivos resultará em outras maneiras de absorção de leitura, permitindo, assim, avanços mais profundos nas experiências de linguagem. 110 Referências ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas de literatura I. Tradução de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas cidades e Ed. 34, 2003, p. 55-64. ANTONIO, Jorge Luiz. Poesia eletrônica: negociações com os processos digitais. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008. ARANTES, Priscila. Panorama da ciberarte no Brasil. In: LEÃO, Lucia (Org.). O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Senac, 2005, p. 295-310. AVERBUCK, Clarah. Máquina de pinball. São Paulo: Conrad, 2002. ______. brazileira!preta. 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