CRIAÇÃO DE CONCEITOS, TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA NO CAMPO
EDUCACIONAL
Wladimir Garcia - UFSC
RESUMO - O presente trabalho desenvolve o processo de criação de conceitos, a crítica às instâncias de
Transcendência e a afirmação do Plano de Imanência na obra filosófica de Gilles Deleuze e Felix Guattari,
apontando para o desdobramento deste pensamento no Campo Educacional. A partir do primeiro termo desta rede,
vale pensar a criação de conceitos desde a afirmação de uma singularidade elaborada a partir de uma relação com o
dado, como resistência às máquinas de produção de universais, representadas pela contemplação, reflexão ou
comunicação. Neste sentido, a partir da sua endoconsistência e desde uma heterogênese, os conceitos constituem o
Plano de Imanência. Contudo, eles não reduzem os termos ou reconstituem qualquer nível de transcendência, mas
relacionam-se com os problemas que assumimos, com o nosso devir. Quanto à relação, ela se dá não com uma base
prévia, mas com uma não-original presença, na medida em que nenhum princípio é reestabelecido – o pensamento
emerge por bifurcações, sem que haja uma recondução ao mesmo. O impacto de tais formulações no campo
educacional (visto como campo intercultural), vai favorecer, considerando a outra concepção de tempo dali
decorrente, a desconstrução dos modelos estruturais da educação escolar, a crítica às elaborações em torno de
totalidades, a redefinição dos aparatos ideológicos e a retomada da idéia de infinito fomentada por esta forma
distributiva de pensar.
Interessa-nos a obra de Gilles Deleuze/ Felix Guattari, ou a obra que emerge entre
os dois, da negociação entre as heterogeidades que eles formulam (num caso absolutamente
singular em Filosofia). Sobretudo, interessa-nos a visão distintiva que eles apresentam entre
Filosofia, Ciências e Artes , e de como o entendimento destes planos reconfigura o campo
educacional. Dificílimo seria categorizar o ‘vitalismo conceitual’ de ambos, sem que isto se torne
uma categoria. O que é posto é a formação de um conjunto de relações, num espaço flexível,
uma haecceity, termo que se esforça para nomear um movimento entre multiplicidades que se
instala no aqui. O que resulta, na escrita, é uma quasi-poética criação de conceitos que tenta
abordar este fluxo da matéria.
Assim como em Derrida, a pergunta acerca do que é Filosofia é posta por
Deleuze/Guattari como uma questão que não pára de ser feita e tende a se tornar menos estilística
ao longo da sua transformação. Desde uma resposta já inscrita, a Filosofia é uma arte de fabricar
conceitos. Tais conceitos envolvem personae conceituais, que jogam com eles. Este ‘amigo’,
inscrito no termo Filosofia, vai exigir uma categoria viva, intrínseca ao pensamento. Desde a
tradição platônica, entretanto, o que se constrói e afirma-se é uma entidade transcendental que
esforça por um objeto do desejo e repulsa o rival. Apesar de uma transcendental determinação,
para Deleuze/ Guattari, tais personae (amigo, amante, rival) não perdem a intensidade de sua
relação com uma existência animada, o que abre a possibilidade para a emergência de novas
personae. O filósofo, enquanto amigo da sabedoria, não possui os conceitos formalmente, por
isso luta por criá-los, o que exige mais do que invenção: é necessária uma sensibilia, compósito
de sensações, a qual a Filosofia compartilha com as Artes. A radicalidade de Deleuze passa aqui
por uma perspectiva da emergência de uma substância nova no conceito e de sua consistência,
de seu convencimento. A necessidade de criar conceitos, neste caso, acompanha a necessidade
do filósofo em duvidar do conceito dado, não criado por si mesmo. A Filosofia, neste sentido,
não é contemplação (a despeito do platonismo), reflexão ou comunicação: estes são antes
máquinas de criação de universais, já que a contemplação implica nas coisas desde a perspectiva
dos seus conceitos; a reflexão não é privilégio da Filosofia já que cada criação admite ser
refletida; quanto à comunicação, ela estaria ligada antes à produção de consenso do que de
conceitos. A noção de criação de conceitos parece, por outro lado, menos ligada ao diálogo de
amigos do que ao solilóquio irônico do que sobrevive ao debate.
Quando a Filosofia domina outras disciplinas, como num idealismo objetivista ou
subjetivo, ela operacionaliza universais de contemplação como fomento daquele sonho, da ilusão
do ser e de sua pedagogia. O conceito, na sua singularidade, contradiz tais universais os quais
nada explicam, mas são passíveis de serem explicados. Vale dizer, que o conceito acessa a um
conhecimento desde a sua criação e da intuição específica (Campo ou Plano) nela envolvida. O
que resulta daí não é uma utilidade, mas uma existência autônoma. A dificuldade da feitura ou
construção do conceito dá margem ao exercício etmológico, ao seus deslocamentos, ainda que
‘barbáricos’. Trata-se do que Deleuze chama ‘o batismo do conceito’ 3 , ato que envolve uma
violência e a instauração de uma linguagem filosófica dentro da linguagem. A ‘vida’ de um
conceito é estendida e entendida pela sua renovação, o que lembra a idéia de ‘contra-assinatura’
em Derrida, ou seja, a emergência do novo, novamente. Esta ‘mutação’ (o vocabulário em
Deleuze deve muito a uma associação com as ciências naturais, especialmente à Biologia, à
Física e à Geografia Física) vai dar à Filosofia uma ‘turbulenta geografia’, tanto pela
instabilidade de ser preservada no tempo, como por passar para fora do tempo.
O que resulta deste entendimento do fazer criativo na Filosofia é a problematização
de qualquer unidade filosófica frente a esta constante mudança, além da relação entre conceito e
idéias que atravessam não só o campo filosófico, mas também a relação deste com as Artes, as
Ciências e o Campo Educacional. O que Deleuze/ Guattari apontam aqui é a possibilidade de
uma idéia não conceitual que desierarquiza a relação, por exemplo, entre Filosofia e Artes e
indaga a pertinência desta na atividade de criar conceitos. A despeito da chamada ‘morte da
metafísica’, a possibilidade criativa na Filosofia permanece, seja chamada filosófica ou não. O
problema em torno de tal atividade, entretanto, estaria mais ligado aos amigos do conceito, que
promovem Idéias ao status de conceitos e criam um teatro baseado na rivalidade, em quem
estaria a responsabilidade de guardar a velha sabedoria, onde os atores constituem ‘personae
conceituais’. Tal rivalidade só teria aumentado em tempos recentes pela própria proeminência
das Ciências Humanas (História, Sociologia, Psicanálise), que assumem uma criatividade e, por
extensão, a ‘amizade’ do conceito. O conceito confunde-se, especialmente em Ciências da
Comunicação, com o produto e a troca de idéias (o conceito é posto à venda). Vale dizer, o
conceito torna-se simulacro, e a filosofia ganha novos rivais.
Para Deleuze/ Guattari a possibilidade da filosofia, sua ‘questão’, envolve
relacionar conceito e criação. Esta problemática novamente envolveria uma relação com o dado,
já que o conceito deveria ser criado desde os monumentos ou ruínas do saber. A criação do
conceito, entretanto, implica, ao mesmo tempo, o seu auto-posicionamento, ou seja, a
apresentação, ainda que provisória, de uma idéia. O auto-posicionamento de si, enquanto forma
de autonomia, resulta numa característica auto-poética que permite o seu reconhecimento. A
realidade filosófica do conceito envolve um complexo movimento de auto-posicionamento de si
em si, onde o mais subjetivo aspecto será objetivo. O uso mesmo da imagem - questão
desconstruída por Derrida ao abordar o vínculo das metáforas com um Próprio ou com uma
propriedade - torna-se, desde Hegel, aspecto operacionalizador do conceito. O risco seria
estender o domínio da Filosofia, ao reconstituir universais dentro de seus próprios momentos. Tal
movimento, numa perspectiva pós-kantiana, conduziria o conceito a uma pura subjetividade, a
despeito dos momentos singulares da criação. Para Deleuze/ Guattari, esta caracterização do
conceito desde a enciclopédia ao funcionalismo comercial, só poderia ser preservada da
apropriação pelo ‘capitalismo universal’, mediante certa pedagogia que considerasse criação e
singularidade.
A percepção do conceito em Deleuze/ Guattari aponta para uma multiplicidade,
eles possuem vários componentes. Trata-se de uma questão de articulação, de cruzar e ser
cruzado. A totalização de seus componentes, ainda que se trate de uma fragmentária totalização,
responde à ameaça do caos mental que tenta absorver o conceito, o qual se move entre tais
forças. Eles se apresentam desde uma relação com os problemas, o que indica uma pluralidade
de objetos e sua apresentação recíproca. O que se abstém daí é uma exterioridade do conceito,
como algo necessário para o outro derivar o seu outro, seu objeto especial, e uma pedagogia do
conceito, como função do problema. Desde Leibniz, o conceito de outra pessoa apresenta-se
como um mundo possível, com sua face e linguagem. Por outro lado, tal exemplo denuncia uma
história do conceito que carrega componentes de outros conceitos e seus problemas. Um conceito
segue um tornar-se (becoming) e pode articular-se com outros do mesmo plano, favorecendo uma
co-criação. O conceito de Outra Pessoa como expressão de um mundo possível vai, além disto,
não sendo o sujeito nem o objeto do campo de percepção, ser a condição de percepção dos
componentes do campo (sujeito, objeto, margem, centro, largura, profundidade), bem como da
passagem de conceito para conceito neste novo espaço perceptivo. Entende-se daí que conceitos
são criados de outros conceitos: sua consistência é definida pela sua endoconsistência, o que
equivale a dizer que eles são heterogêneos, mas inseparáveis. Eles pulam sobre uma indiscernível
fronteira entre ambos. Além disto eles possuem uma relação eminentemente externa com os
outros conceitos, onde é possível pensar numa zona ou pontes entre eles.
Esta estrutura movente que existe no conceito vai indicar um modo de percepção
que o configura como um ponto de coincidência, de condensação de seus componentes, vistos
como pura singularidade que se intensifica no conceito. Os componentes definem-se pela sua
variação - em cada zona de vizinhança - ordenada pelo conceito, entendido aqui como uma
heterogênese. O conceito, desta forma, possui somente intensidades, não energia. Ele não pode
ser definido a partir de coordenadas no espaço e no tempo. Além disto, o conceito fala sempre de
um evento, não de uma essência ou coisa. O conceito é definido por ‘the inseparability of a finite
number of heterogeneous components traversed by a point of absolute survey at infinite speed’
(Deleuze, Guattari, 1994: 21) . Ou seja, um ato de pensamento operando numa velocidade
infinita. O conceito possui uma dupla marca: é relativo aos seus componentes, mas é absoluto em
relação ao espaço que ocupa no Plano. Em outros termos, o conceito possui um finito movimento
numa infinita velocidade.
O conceito, além disto é alterável, o que corresponde a uma modificação na
condensação dos componentes. Sendo definido pela sua consistência, o conceito não tem,
entretanto, referente: ele é real sem ser factual, ideal sem ser abstrato. Para Deleuze/ Guattari, a
Filosofia não é discursiva, assim como o conceito não é discursivo: este não visa ligar
proposições, frustrando, desta forma, certa lógica. Ao contrário do que cadeias de proposições
exigem, os conceitos não possuem um corpo definido pelas suas coordenadas espaciais, um
referente. Os conceitos aqui, por serem intensivos, diferem da extensividade que define sistemas
discursivos. De uma certa forma, isto aponta uma outra possibilidade de cartografia em Deleuze/
Guattari, composta por linhas abertas e intensivas, formada por uma contínua variação, talvez
uma das maiores contribuições de suas obras para o pensamento contemporâneo, uma vez que
isto implica numa outra formalização para o pensar. Por situarem-se fora de coordenadas, os
conceitos são apresentados como ‘centers of vibrations, each in itself and every one in relation to
all the others’. Enquanto ‘totalidades fragmentárias’ eles não remontam a um todo, mesmo as
suas pontes interconceituais são móveis. A difícil configuração mental da idéia de conceito em
Deleuze/ Guattari converge com a apresentação da filosofia como ‘estando num estado perpétuo
de digressão’.
A digressão estabelece uma linha de diferenciação entre enunciação científica de
proposições parciais, onde as proposições são externas, e enunciação filosófica de conceitos
fragmentários, onde a enunciação é imanente ao conceito que atravessa a inseparabilidade dos
componentes que constituem sua inconsitência. Ambas enunciações são, entretanto, criativas. A
questão do nome próprio, analogamente, forma-se como uma máscara das proposições, ao passo
que nos conceitos eles são as personae conceituais de que falávamos. Em relação às sentenças
que vão constituir os textos da cultura, reside uma diferenciação importante em Deleuze/
Guattari em relação às formas de pensamento, ou seja, a Filosofia, que extrai conceitos
(concepts), diferentes de idéias em geral, a Ciência, que extrai prospecções (prospects),
diferentes de julgamentos, e as Artes, que extraem perceptos (percepts) e afetos (affects),
diferentes de simples percepções ou sentimentos. Uma diferenciação aqui não pode ser
compreendida sem a possibilidade de uma alimentação mútua no plano da linguagem.
Eventualmente um componente de um conceito pode assumir fases de variação que se definem
como científica ou perceptiva.
De qualquer forma, os conceitos estão em movimento, eles não são eternos, mas se
relacionam com os tipos de problemas que assumimos, com o nosso próprio devir (becoming). A
questão da permanência de um determinado filosófo vincula-se a esta reativação desde os nossos
problemas e a necessidade de inspiração para os conceitos que precisam ser criados. Não poderia
haver entendimento ou discussão a não ser no mesmo Plano, caso contrário, o conceito do outro
derrete no plano para o qual ele violentamente é trazido e que precisa ser afirmado (falar de si
mesmo). A isto Deleuze/ Guattari chamam ‘ressentimento’. A única possibilidade deste diálogo
seria pela construção de um novo conceito, como Kant fez em relação a Platão, ao acrescentar
uma interioridade no conceito de tempo, evidenciando o ato de um conceito tornar-se outro. O
conceito de conceito mostra esta multiplicidade de inseparáveis e intensivas variações numa zona
de proximidade atravessada por um ponto de observação. O conceito anuncia uma constelação
por vir desde a singularidade do evento que constitui, extraído de seres e coisas. Neste sentido
ele contém um conhecimento de si, de seu espaço, tempo e matéria.
A possibilidade de um conceito científico, relacionaria, neste caso, somente
proposições ou funções voltadas para um estado de coisas e suas condições, ao passo que o
conceito filosófico, pela sua aparição, escaneia o todo vivente, dando forma aos eventos que
anuncia desde uma disciplina criativa.
A ressonância dos conceitos enquanto ‘todos fragmentários’ se dá naquilo que
Deleuze/ Guattari chamam de ‘Plano de Imanência dos Conceitos’ , como um plateau ou um
milieu que, embora abertos, não são fragmentários, remetendo à idéia de Cosmos. O
construtivismo da filosofia envolve a criação de conceitos e o desenho de um plano: ‘the plane
envelops infinite movements that pass back and forth through it, but concepts are the infinite
speeds of finite movements that, in each case, pass only through their own components’
(Deleuze, Guattari, 1994: 35). Para incluir velocidade infinita em si, o pensamento necessita de
um plano infinito em si. Conceitos, desta forma, possuem elasticidade e milieus, fluidez. Eles
‘fazem’ a lentidão dos seres. Conceitos configuram-se como ‘assemblages’ concretos, mas o
Plano é uma ‘máquina abstrata’ no qual os ‘assemblages’ trabalham. O Plano se apresenta como
o horizonte absoluto, independente de quem observa, o qual não é um limite para o evento do
conceito, mas é justamente o horizonte dos eventos. Em outras palavras, os conceitos habitam,
como tribos, o deserto do plano. Ainda que os conceitos não se encaixem uns nos outros, pela
própria ausência de forma, eles são seguros juntos no Plano.
O Plano forma a imagem do pensamento (image of thought), na medida em que
ele corresponde àquilo que o pensamento seleciona, ou seja, o movimento infinito ou movimento
do infinito.Aqui, novamente, Deleuze/ Guattari chamam a atenção para a noção de que a
imagem do pensamento não pode ser definida em termos de coordenadas espaço-temporais, já
que o próprio Plano, enquanto horizonte, não é fixo, mas movente, indo e vindo de acordo com o
movimento do sujeito. Por ser pura variação, este Plano de Imanência, ainda que único,
desdobra-se em outros, de acordo com os movimentos infinitos que são selecionados e retidos.
Ainda assim, o Plano de Imanência é considerado pré-filosófico, ou não-filosófico, como a
base não-conceitual a que os conceitos se referem. Isto não significa que o Plano é pré-existente,
mas que ele não existe fora da Filosofia.
A Filosofia, desta forma, é constituída tanto pela criação de conceitos como pela
institucionalização do Plano. Este último é visto como ‘the absolute ground if philosophy, it´s
earth’ (Deleuze, Guattari, 1994: 41). Além disto, o Plano é um espaço de experimentação, muitas
vezes, não racional. A poesia, poderíamos pensar, atravessa-o desde um não-filosófico ponto-devista. O Plano admite movimentos selvagens e velocidades. Por isso, pensar leva-nos a tornar-se
esta alguma ‘outra’ coisa - molécula ou partícula - e isto revive pensamentos. Fatias de caos, o
qual contém infinitas velocidades, cruzam o plano, desfazendo consistência no infinito. O que se
formula aí é um problema da Filosofia, ou seja, ter consistência sem perder o infinito. Ao
contrário da Ciência, a Filosofia provê caos ao renunciar o infinito da velocidade.
Esta imanência do plano contrasta com a transcendência e a realidade do Ser, no
caso da Religião. Desde o mundo grego antigo, os filósofos substituem genealogia por geologia,
estabelecendo o chão do Plano. O risco, entretanto, como no caso da concepção platônica, é a
Imanência ser relacionada a uma Mente e, ao invés de constituir um Todo em um, torna-se
imanente em relação a um transcendente Um, ou a um Além do Um. No plano religioso, a
Imanência é tolerada de forma mais controlada ainda, refazendo localmente o percurso de uma
fonte superior a uma inferior. Para Deleuze/ Guattari, Imanência deveria ser imanente só a si.
Quando ela torna-se imanente a alguma outra coisa, ela resulta em Transcendência (ou o
transcendental em Kant), na medida em que transcende a um Eu-mesmo, abarcando o interno e o
externo. Em Husserl, entretanto, Transcendência é relacionada a um outro em ‘carne’,
distinguindo-se uma comunidade humana, ou seja, transcendência aqui passa a ser relacionada a
um fluxo vivido por uma subjetividade. Neste último caso, conceitualmente mais contemporâneo
, e com o qual Deleuze/ Guattari se relacionam, a Transcendência é pensada dentro da Imanência
e a ruptura é esperada desde a Imanência. A contribuição de Sartre a esta questão foi no sentido
de pressupor um transcendente campo pessoal. Para os pensadores em questão, só seria possível
falar de um Plano de Imanência quando a Imanência não é outra coisa se não ela mesma. O Outro
(uma outra pessoa) faria retornar, neste contexto, a imanência ao Campo de Imanência que é
escrutinado. Eu, aqui, é o ‘hábito’ de dizer ‘Eu’ dentro de um Campo de Imanência, o que se
apresenta como uma forma particular de empirismo.
Espinosa, neste trajeto filosófico, é considerado o príncipe dos filósofos: ele soube
que um Plano é atravessado por movimentos de infinitude, preenchido por ordenadas intensivas ,
e descobriu, aí, que a liberdade só existe dentro da Imanência. Ele entendeu a pressuposição préfilosófica de que modos e substâncias indicam um Plano de Imanência. Ele é apresentado por
isso, por Deleuze/ Guattari, como o ‘vertigo’ da Imanência.
Poderíamos pensar em Bergson na criação de um Plano que contém um movimento
infinito que se propaga, e uma imagem do pensamento que se espalha para a consciência. Esta
consciência é imanente à Imanência do Plano. O contrário seria confiar em miragens do Plano e
forçar a parada do movimento, o que nos tornaria prisioneiros do Plano, a exemplo das ‘más
alucinações’ comentadas por Artaud. Entre tais ilusões, também apontadas por Derrida em seu
‘plano’, Deleuze/ Guattari destacam a ilusão do transcendente, dos ‘universais’ (contemplação,
reflexão e comunicação), a ilusão do eterno e a ilusão da própria discursividade (a qual tende a
confundir proposições com conceitos).
Desde que nenhum plano pode abarcar todo o caos sem cair de volta ao caos, é
configurada uma multiplicidade de planos, onde cada um tem seu próprio modo de construir a
Imanência. Além disto, o modo como os planos são distribuídos variam, o que indica o problema
da possibilidade da existência ou não de dois filósofos no mesmo plano, ou de vários planos
num mesmo filósofo. A alternativa neste caso seria pensar que planos são interfoliados e
possuem buracos, caminhos através de si, os quais permitem uma fuga das inevitáveis nebulosas
que se formam em torno do Plano como a ameaça de reintroduzir transcendência. Entretanto,
uma certa interferência é permitida, desde os grandes conceitos empiricistas tais como
associação, relação, hábito, etc. O que resulta deste processo é uma mutação na passagem de um
plano ao outro. Como em Nietzsche, onde há o desejo de criação, não o desejo pela verdade. O
delírio associado a certa imagem do pensamento vai relacionar um pensar que ganha
complexidade desde sua configuração como Imanência.
Pensar a relação entre filosofias, portanto, envolve o estabelecimento de um Plano
diferente, articulado desde uma extensão do anterior, como num tecer de um no outro, ou pela
mudança crítica de uma Plano dado através da introdução de novos conceitos, o que estabelece
um assentamento novo. Entender tais questões, para Deleuze/ Guattari, só é possível se
abandonarmos uma estreita concepção de tempo (com um antes e depois) e considerarmos a idéia
de Tempo como tal, ao invés de um tempo que se confunde com a História da Filosofia. Neste
quadro, sucessividade conta apenas em termos de superposição de camadas, onde o antigo estrato
pode emergir novamente na curvatura da variação. O tempo filosófico revela-se, desta forma,
como o tempo alargado das coexistências, onde antes/ depois relacionam estratos, não
hierarquias. ‘Philosophy is becoming, not history; it is the coexistence of planes, not the
sucession of systems’ (Deleuze, Guattari, 1994: 59). Neste ‘becoming’, planos podem-se separar
e associar, e encerram uma luta entre afirmação de transcendências e ilusões, por um lado, e a
resistência a elas, por outro.
Desta forma, ‘O’ Plano da Imanência, enquanto possibilidade, deve ser pensado,
mas não pode ser pensado. Trata-se de um não-pensamento dentro do pensamento. É a base de
todo o pensamento que não pode ser pensado por este pensamento. É o mais íntimo evento
dentro do pensamento e, ao mesmo tempo, absolutamente externo. Ele não é possível como tal,
mas se encontra lá. Ou, numa outra tentativa de formulação: não-externo fora e não-interno
dentro. Este Plano absoluto é a possibilidade do impossível, através de uma infinita velocidade. É
Nele que se realiza um devir filósofo. Como Espinosa e o seu Plano, o qual não se reduz à
imanência, nem tampouco reestabelece outra transcendência, evitando, desta forma, as ilusões.
Mediante este quadro em que aparece uma análise da emergência de conceitos, uma
crítica aos sistemas de Transcendência e uma constituição de Planos de Imanência, podemos
sugerir os seguintes postulados que se relacionam com o Campo Educacional:
1.
A Educação, enquanto campo teórico é, sobretudo, um campo intercultural. Neste
sentido, estamos diante de uma superfície porosa, aonde se dão contaminações, as trocas
impróprias entre os Planos de Composição da Linguagem, os Planos Referência das Ciências e o
Plano de Imanência dos Conceitos. O que operacionaliza este processo é a idéia de relação com
o que é dado, movimento marcado pelo retorno e distanciamento dos termos sobre si mesmos,
indicando presenças não-originais que proliferam por todos os lados, como em raízes aéreas,
estabelecendo rupturas incessantes. Ou seja: a Educação só é possível enquanto campo teórico,
formalizado como desobediência aos sentidos uívocos das ficções ideológicas. Os agrupamentos
conceituais, metaforizados por linhas, formam fuzzy aggregates , marcando espaços teóricos
habitados por multiplicidades transformacionais, contrárias às multiplicidades numéricas ou de
classes, que não se relacionam segundo séries, mas adquirem consistência própria, não
subordinadas ao Um. Neste sentido, abre-se a perspectivas de um crítica epistêmica à estrutura
educacional desde a sua vertente acadêmico-escolar, desde elementos tais como currículo,
fundamentos, diretrizes, políticas como determinações, etc.
2.
Pensar “todos fragmentários” como crítica aos universais e aos transcendentes absolutos,
só é possível fora do sistema de totalidades que permeiam os conceitos de educação e processos
pedagógicos. O único Todo possível é o não-absoluto. Além disto, há a Necessidade de
desconstruir a idéia de Educação como Religião, implícia tanto nas esferas marxistas como
liberal-progressistas, tributárias de uma ética do bem e da transformação programática do
indivíduo. Neste sentido, não confundamos ideologia e política: aquela é uma ficção de controle,
esta é um processo criativo, marcado pela variabilidade crítica, contrastiva e analítica. A Política,
neste sentido, postula uma heterogeneidade e admite um pensamento estranho à sua própria
coerência, por isso é infinita, caso contrário não seria política. Em geral, ela não tem nada a ver
com a apropriação e vulgarização da expressão “políticas” no campo educacional (“políticas
educacionais”, por exemplo, as quais se inscrevem antes na esfera do controle dos sistemas,
enquanto sobredeterminação pela via da produção de normas diretivas).
3.
Portanto, o que define o Campo Educacional – naquilo que o correlaciona com a Arte, a
Ciência e a Filosofia – é a idéia de Infinito, este objeto sempre adiado, sempre presença ausente
(a própria Democracia, neste sentido, é algo por vir). O campo educacional é também porto de
passagem, ponto de convergência, bólido de cruzamento, evento possível em todas as áreas. Ele
torna-se atual no processo de captura instalado desde a sua imanência retomada: ele captura a
referência científica, a sensibilia artítistica e a consistência dos conceitos. No seu devir, é um
lugar sempre vazio a ser saturado, mas nunca preenchido por nenhuma totalidade ou prisão
diacrítica e dicotômica: é margem adiada. Como espaço de criação conceitual, é criativo e resiste
ao prévio, sem deixar de co-existir com ele. Sua existência enquanto Campo, vincula-se a uma
abertura às interferências possíveis: interferências de método de cada disciplina, interferências
extrínsecas, intrínsecas ou, mesmo, não-localizáveis (quando o campo confronta-se com o caos).
A notável contribuição do pensamento de Deleuze/ Guattari cria vetores de
contemporaneidade nas soluções que apresentam para o mapeamento do pensamento. Esta forma
de mapeamento envolve linhas que constituem uma cartografia que se abre para o Cosmos e está
antes relacionada a uma multiplicidade rizomática do que a um sistema de coordenadas que se
constitui segundo uma lógica binária e dicotômica, a qual domina largamente o campo das
ciências humanas e da informação. Esta outra cartografia, sendo, por princípio, rizomática não é
receptiva a nenhum modelo estrutural ou generativo. A sobrecodificação da estrutura engendra o
traço que vai reproduzir o já-pronto, ao passo que um princípio rizomático é antes um mapa, não
um traçado. O mapa que pode resultar não reproduz um inconsciente fechado, mas cria um
inconsciente: ele é orientado na direção de uma experimentação em contato com o mundo. Ele é
aberto para todas as direções, é destacável, reversível, sujeito a uma modificação constante
decorrente da conexão de diferentes campos. Tal variabilidade é instensificada pelos diferentes
coeficientes de desterritorialização. Reterritorializações complementares, por fim, estendidas
sobre o plano de consistência, ajudam a fazer o mapa. De qualquer forma, uma idéia de fronteira
é sempre rechaçada ou adiada aqui, uma vez que um mapeamento deste tipo emerge de zonas de
indiscernibilidade (como mapas-dialeto, por exemplo). Mapas, a partir daí, podem ser
combinados ou separados, seguindo diferentes ‘assemblages’.
Referências Bibliográficas:
ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. London: Routledge, 1996.
BERGSON, Henri. Memória y Vida. Madrid: Alianza, 1977.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. A Thousand Plateaus – Capitalism and Schizophrenia.
Minneapolis: University of Minesota Press, 1994.
Idem. What is Philosophy? London: Verso, 1996.
DERRIDA, Jacques. A Derrida Reader: Between the Blinds. New York: Columbia University
Press, 1991.
PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Cultrix, s/d.
SPINOZA, Baruch. The Ethics of Spinoza. New York: Citadel Press, 1995.
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dentro do pensamento e, ao mesmo tempo, absolutamente externo