ACEPÇÕES RECENTES DO CONCEITO DE
LUGAR E SUA IMPORTÂNCIA PARA
O MUNDO CONTEMPORÂNEO
Luiz Felipe Ferreira"
Recent uses of the concept of place and their
significance for lhe contemporary world
Place has
lhe
richest
1l0W
conccpts
emerged
in
as one of
Geography.
Encompassing
an objecti ve and a
subjective
dirnension,
lhe conccpt plays
today
an important
role
in both
hurnan ist ic and radical
gcographical
thought
and is considcred
a kcy
o
category
for
contemporary
comprehending
world.
Anel'
the
rcviewiug
t h e phenomenological
and radical
conccptions
of placc, the article discusscs
rcccnt
reunite
theorctical
cfforts
which try to
thesc two apparcrnly
opposed
VICWS.
conceito de lugar, considerado por muito tempo como um dos mais
problemáticos da Geografia, tem se destacado, recentemente, como uma das
chaves para a compreensão das tensões do mundo contemporâneo. Articulando, entre outras, as questões relativas a globalização versus individualismo, às
visões de tendência marxista versus fenomenológica ou à homogeneização do
ambiente versus sua capacidade de singularização, o lugar tem se apresentado
como um conceito capaz de ampliar as possibilidades de entendimento de um
mundo que se fragmenta e se unifica em velocidades cada vez maiores.
Inicialmente associado à idéia de região, o conceito de lugar Ioi utilizado
por La Blache e Sauer sem que eles, entretanto, aprofundassem a discussão
sobre seu significado. A partir da década de 70, no entanto, a chamada Geografia Humanista irá realizar um esforço de recuperação do conceito associando-o à base filosófica da Fenomenologia e do existencialismo e transformando-o em um de seus conceitos-chave (HOLZER, 1992; 1997, 1999, DUNCAN,
1994). Nos anos 80, o interesse com relação ao lugar ultrapassou os limites da
Geografia Humanista e passou a interessar também aos geógrafos econômicos
. Doutorando em Geografia do PPGG da UFRJ
66
Revista Território,
Rio de Janeiro,
ano V, n" 9, pp. 65·83, jul./dez.,
2000
que buscaram entender lugar como uma "especificidade manifestada dentro do
contexto de processos gerais" (DUNCAN, 1994:442).
Por um lado, a corrente da Geografia Humanista irá identificar o lugar
como base da própria existência humana através de uma experiência profunda
e imediata do mundo ocupado com significados (RELPH, ] 980) buscando uma
aproximação com a Fenomenologia e o Existencialismo (HOLZER, 1997) ou
abordando o espaço através do modo como ele é vivenciado pelos seres humanos (HOLZER, 1999) e propondo uma Geografia que dê relevância às
questões referentes às pessoas em vários contextos (BUTIlMER, 1974). Por
sua vez, a visão da chamada Geografia Radical, de base marxista, irá compreender o lugar como uma perspectiva regional sobre o global (JOHNSTON,
1991), uma construção social sobre o pano de fundo da relação entre espaçotempo e ambiente (HARVEY, 1996), um local criado para atender a determinadas funções (SANTOS, 1997) a partir do qual estabelecemos nossa revisão
e interpretação do mundo, onde "o recôndito, o permanente, o real triunfam,
afinal sobre o movimento, o passageiro, o imposto de fora" (SANTOS,1993:20)
A partir destas duas acepções, aparentemente opostas e irreconci I iáveis,
alguns geógrafos têm buscado, em trabalhos recentes, novas concepções de
lugar, visto, desta vez, como expressões das tensões da modernidade
(ENTRIKIN, 1997; MERRIFlELD, 1993; OAKES, 1997).
Buscaremos destacar, neste artigo, estes três caminhos. Iniciaremos
apresentando uma abordagem sobre a concepção de bases fenomenológicas do
lugar, destacando os trabalhos de Relph e Buttimer. A seguir apresentaremos
a idéia de lugar como enfocada pela Geografia Radical, abordando, principalmente, as concepções de Harvey, Santos e Massey. A terceira parte busca
conciliar as divergências apresentadas através de novas visões do lugar, dandose destaque aos trabalhos de Entrikin, Merrifield, Graham e Oakes.
O LUGAR "FENOMENOLÓGICO"
You /ack vision, but I see li place where people get on and of! the freeway.
011
and of!, of! and
0/1
aI! day, aLI night!
SOOIZ,
stood will be a string of gas stations, inexpensive
serve
rapidly
prepared
food.
wonderful. wonderful billboards
God, ir/I! be beautiful!
where Toon Town once
motels, restaurants
Tire salons, automobile
reaching
dealerships
as far as the eye can see!
lha!
and
My
Uma cilada para Roger Rabbit
A relação entre Geografia e Fenomenologia foi estabelecida, inicialmente, por Relph em seu livro Place and placelessness
(1980). Nele, o autor
afirma que o lugar deve ser analisado a partir das experiências diretas do
Acepções Recentes
do Conceito de Lugar e sua importância
...
67
mundo e da consciência que temos do ambiente em que vivemos. Para Relph,
o espaço geográfico não deve ser entendido como uma lacuna aguardando
para ser completada mas sim como "o lugar onde alguém está e, talvez, os
lugares e paisagens de que ele se lembra" ou seja, "uma profunda e imediata
experiência do mundo que é ocupado com significados e, como tal, é a própria
base da existência humana" (RELPH, 1980:5). O conceito de lugar, adquire,
deste modo, para a Geografia Humanista, um papel central visto gue é através
dele gue se articulam as experiências e vivências do espaço. Como ressalta
Holzer (1977), o conceito de lugar é essencial para o que ele denomina de
Geografia Fenomenológica, pois é ele que irá propiciar a este ramo do conhecimento a possibilidade de voltar-se para sua essência que é o estudo do
espaço geográfico. Tuan (1983) acrescenta que os lugares, assim como os
objetos, são núcleos de valor, e só podem ser totalmente apreendidos através
de uma experiência total englobando relações íntimas, próprias do residente
(insider), e relações externas, próprias do turista (outsider). O lugar torna-se
realidade, portanto, a partir da nossa familiaridade com o espaço, não necessitando, entretanto, de ser definido através de uma imagem precisa, limitada.
Lugar se distingue, deste modo, de espaço. Este "transforma-se em lugar à
medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor" (TUAN, 1983:6)
adquirindo definição e significado.
Buttimer (1976), por sua vez, irá buscar na noção de mundo vivido
(lifeworLd) o elo entre os procedimentos geográficos e fenomenológicos. Como
destaca Méo (1999), o conceito de mundo vivido exprime uma relação existencial, portanto subjetiva, que o indivíduo, ou o grupo social, estabelece com os
lugares, refletindo seu pertencimento a um determinado grupo num determinado lugar. Para se conhecer o mundo vivido é necessário o conhecimento de
seus atores, de suas práticas, representações e imaginário espacial. A ligação
com o lugar não poderá prescindir, deste modo, daquilo que Jackson define
como "urna consciência viva do ambiente familiar, uma repetição ritual, um
sentido de companheirismo
baseado numa experiência compartilhada"
(JACKSON, 1994:159). Para a Geografia Humanista, é, portanto, o nosso
sentido de tempo, de ritual, que a longo prazo cria nosso sentido de lugar e de
comunidade. São os horários que estabelecemos para nós mesmos que nos
colocam em contato uns com os outros. Não é a proximidade mas o
compartilhamento de horários que nos aproxima. No ambiente urbano contemporâneo nosso sentido de unidade e continuidade é dado pelo sentido cícl ico do
tempo, pela recorrência regular de eventos e celebrações. A ligação com o
lugar é comparável a ligação da criança com a figura paterna e se dá tanto
no nível material quanto no social e no imaginativo (HA YDEN, 1997). O lugar
dispara a lembrança daqueles que o vivenciaram, que compartilharam um
68
Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, 11" 9, pp. 65-83, jul./dez., 2000
para o outsider
cultural. O con-
passado comum, abrindo a possibilidade
de sua compreensão
através dos passados compartilhados
e inscritos na paisagem
ceito de memória, seja ela pessoal ou coletiva, está, deste modo, intimamente
ligado ao de lugar. Estas memórias se encontram armazenadas
nas paisagens
urbanas
que seriam,
(HAYDEN,
deste modo,
verdadeiros
"armazéns
1997:9), visto que tanto os elementos
pelo homem
freqüentemente
Na década
sobrevivem
de memória
social"
naturais quanto os construídos
a muitas
gerações.
de 1970, Relph (1980) já destacava
a importância
das expe-
riências intersubjetivas
e da aparência do lugar na expressão de sua identidade.
Esta, entretanto, não é fixa e imutável, mas possui componentes
e formas que
variam com li mudança das circunstâncias
e das atitudes.
O processo de desenvolvimento
Relph, uma combinação de observação,
e de expectativas
estabelecidas
seria, deste modo, a expressão
e da socialização
insubstituível
membros
antes deste contato.
da adaptação,
do conhecimento.
para a fundação
de uma comunidade,
de identidade de um lugar seria, para
ou seja, de contato direto com o lugar,
A identidade
de um lugar
da assimilação,
da acomodação
O lugar seria um centro
de significações
de nossa
identidade
associando-se,
como
desta forma,
indivíduos
e como
ao conceito
de lar
placei, Relph ressalta, entretanto, que esta associação com o lar/lugar
pode dar-se em vários níveis, variando da ligação mais completa
à total
(home
entre sujeito e lugar. A importância
desvinculação
de nossa relação
para com
os lugares ultrapassa a da nossa consciência dessa ligação. Como diz o autor,
"uma relação profunda com os lugares é tão necessária, e talvez tão inevitável,
quanto
uma relação
próxima
humana, embora possível,
(RELPH, 1980:41)
com as pessoas;
fica desprovida
sem tais relações,
de grande
a existência
parte de seu significado"
Outros autores buscaram ampliar esta concepção
de lar e sua associação com o lugar. Tuan (1983) considera que o lugar existe em diferentes
escalas, desde
(1990) ressalta
uma poltrona preferida até a totalidade da terra. McGreevy
que, dependendo
do contcx to, tanto a terra nativa quanto um
centro urbano, uma comunidade
sentar um lar. Holzer ressalta,
dificultar
o relacionamento
espacial
são cada vez mais fragmentária
(1980),
direto,
"remetendo-nos
dos lugares"
(HOLZER,
para uma apreen1999:74).
por sua vez, pensa o lugar em termos de dois movimentos
recíprocos:
o lar
respectivamente,
Tais conceitos
descanso
local ou uma habitação familiar podem repreentretanto,
que o aumento da escala tende a
(llOlI1e)
e os horizontes
ao espaço
experienciado
são comparáveis,
e ao movimento;
à construção
da comunidade
de alcance
deste modo,
ao território
(reach)
e às perspectivas
à inspiração
e ao alcance,
e à organização
social.
Buttimer
e conceitos
relacionados,
fora deste espaço.
e à expiração,
ao
à segurança
e à aventura,
De acordo
com a autora,
Acepções Recentes
do Conceito de Lugar e sua importância
níveis diferentes
pessoal,
de lar e alcance
(2) as afiliações
podem
69
...
ser aplicados
sociais e (3) a localização
para (1) a imaginação
física do lar e alcance.
Tais
distinções,
se mapeadas dentro dos horizontes de tempo do espaço vivido,
podem prover chaves para a compreensão
da identidade de lugares.
Entretanto,
longe de se preocupar somente com a formação e com a
experiência
busca
direta dos lugares, a Geografia
questionar
que destroem
balização
as ações
presentes
e desconsideram
a importância
é, deste modo, crucial
mero
de lugares
desta
constatação,
significantes
Relph
iplacelessness),
de base fenomenológica
contemporâneo,
dos lugares.
para tentar-se
entender
e a homogeneização
(1980)
associando
Humanista
no mundo
irá elaborar
ao mundo
A questão
da glo-
a diminuição
do nú-
das paisagens.
o conceito
moderno
globalizado.
a perda
A partir
de deslugaridade
da diversidade
e do
significado deste lugares. De acordo com o autor, na sociedade atual, a diminuição do número de lugares significantes
e paisagens diferenciadas
estaria
apontando
para o surgimento
do que ele chama de uma Geografia
do deslugar.
Como conseqüência
disso, estaríamos
sendo subjugados
pelas forças da
deslugaridade
e pela perda de nosso sentido de lugar. A partir dos conceitos
de autenticidade
e inautenticidade,
lugar de simplesmente
de deslugaridade
condenar
tão caros
à Fenomenologia.
Relph - em
esta que ele chama de uma atitude
- busca compreender
suas características
inautêntica
e reconhecer
que
a deslugaridade
é lima atitude e lima expressão dessa atitude que está se
tornando crescentemente
dominante e, como conseqüência,
torna-se cada vez
menos
possível
profundo
a criação
de lugar.
massa possuem
nicação
de lugares
e a fruição
que as sociedades
um modo de vida dominantemente
de massa,
autoridade
autêntica
O autor conclui
central
a cultura
de massa,
e o próprio
sistema
as grandes
econômico
de um sentido
industrializadas
e de
inautêntico
onde a comu-
empresas,
o processo
são os principais
de
responsá-
veis por todo este processo. Relph afirma, deste modo, que é necessário levarse em conta a profunda necessidade humana de associação com lugares. Para
o autor, a negação
ter importância.
ressurgirá
de tal fato irá levar a um futuro
Entretanto
se decidirmos
como um reflexo
As conclusões
transcender
da variedade
beiras
sociais
adolescentes
vidos
específicos.
de estradas
de
o lugar
ser relativizadas
por Buttimer
ao
de lugar pode ser urna função de quão bem ele provê um
centro para o interesse de vida do indivíduo.
grandes manchas de concreto deslugarizadas
grupos
a deslugaridade
humana.
de Relph irão, entretanto
sugerir que o sentido
onde o lugar deixará
podem
ou motoristas
por ela, a autora
Lanchonetes
ser lugares
de caminhão.
destaca
Deste modo, lugares que parecem
podem possuir significados
para
situadas
plenos
em ruas
de significados
Baseando-se
que pessoas
para
afastadas
em conceitos
as quais
ou em
para grupos
de
desenvol-
o horizonte
de
70
Revista Território,
Rio de Janeiro,
ano V, n" 9, pp, 65-83, jul.ldez., 2000
alcance (reach) é mais importante que o lar (home) podem
exemplo, que lugares constituem
somente pontos localizados
considerar,
por
entre acessos.
Componentes
importantes da paisagem moderna como auto-estradas,
aeroportos e arranha-céus - verdadeiros vilões da deslugaridade - seriam, para Buttimer,
símbolos
afirma
de uma civilização
HAYDEN,
mesmo
que endeusa
o alcance
um shopping-center
local de um campo de flores selvagens,
e despreza
que tenha
o lar. Ou, como
sido construído
merece ser considerado
no
um lugar, "nem
que seja para registrar a importância
de perda e explicar que ele tenha sido
destruído por um desenvolvimento
sem cuidados" (HAYDEN, 1997: 18).
Apesar de apresentar uma visão mais ampla do conceito, Buttimer associa-se a Relph em suas preocupações
quanto a possível extinção do lugar
pelos processos
sabilizar
de globalização
a centralização
capitalista.
Ao contrário,
do mundo contemporâneo,
tância da ação tanto do insider quanto
entretanto,
de respon-
a autora considera
do outsider e propõe
como
a impormediador
o geógrafo "sensibilizado
com a experiência de lugar do insider e do outsider
e atento a suas reciprocidade
de lar e alcance em sua experiência
de vida"
(BUTTIMER,
1980: 184).
O LUGAR
"RADICAL"
of life, anel mos! people just watch it
slowly drip away But if you can summon u ali up in one time, ar one place,
vou can accomplish something glorious.
Highlander; o guerreiro imortal /I
Most people
have a [ull measure
A visão popularizada
por Relph e adotada
pela Geografia
Humanista
de
um mundo globalizado
- onde o lugar, com toda sua carga de significados
simbólicos e afetivos, parece se dissolver e se transformar em deslugares sem
alma, homogeneizados
pelo sistema econômico
que busca a padronização
seria alvo de severas críticas oriundas, principalmente,
da chamada Geografia
Radical.
Harvey
tos-chave
(1996),
desta
relação autêntica
visão
por exemplo,
do lugar.
com o ambiente,
irá colocar
Idéias
como
muitos
dos concei-
a de enraizamento,
em cheque
terra-mãe,
fariam sentido no mundo capitalista
altamen-
te industrializado
em que vivemos? Ou não seriam elas mesmas produtos do
mundo industrializado moderno, na medida em que teriam emergido exatamente
no momento
em que a industrialização
moderna
nos separa
do processo
de
produção e encontramos
o ambiente como um bem terminado.
Não será a
própria busca de autenticidade
que irá gerar uma necessidade
de se inventar
tradições
construção?
e heranças
Deste
culturais,
modo,
num processo
para Harvey,
artificial
de preservação
o lugar, ao contrário
e re-
de estar se tor-
Acepções Recentes
do Conceito de Lugar e sua importância
...
71
nando menos importante, vem adquirindo cada vez mais importância no mundo
contemporâneo. Como afirma o autor, o lugar é uma construção social e deve
ser compreendido tanto como uma localização quanto como uma configuração
de "permanências" relativas internamente heterogênea, dialética e dinâmica
contida na dinâmica geral de espaço-tempo de processos sócio-ecológicos. Ou
seja, processos específicos contidos e expressos dentro do processo global.
Esta forma de se compreender o lugar irá servir de base para diversos
estudos geográficos, políticos e econômicos a partir de então, sofrendo, entretanto, algumas atualizações no decorrer das últimas décadas. Nos anos 1970,
por exemplo, lugar é definido por Santos como uma "porção discreta de espaço
total", ou como "uma porção da face da terra identificada por um nome"
(SANTOS, 1978: 121). O mesmo autor, 20 anos depois, irá perceber, no que ele
chama de esquizofrenia do lugar, sua importância na formação de consciências
e como indicador de modos de intervenção conscientes nos processos de
globalização. É este papel de espaço de resistência ao mesmo tempo singular
e global que está no âmago do conceito adotado por esta Geografia Crítica na
compreensão dos processos sociais e suas espacializações.
De acordo com Harvey, para Marx o lugar se define dentro da geografia
histórica da acumulação de capital como um dos constituintes do mundo espaço-temporal de intrincadas relações sociais e valorações universais. Este mundo espaço-temporal, entretanto, possui uma qualidade universal que precisa ser
pensada em termos de uma estratégia político-econômica global. Isto não implica
na negação do mundo da experiência direta mas aponta a necessidade de se
compreender processos globais de trocas econômicas que interferem em nossa
vida diária. Ou seja, aquilo com o qual interagimos não é suficiente para
explicar a realidade político-econômica do mundo atual. Para Marx, segundo
Harvey, a construção do lugar estaria ligada (direta ou indiretamente) com o
capital e representaria um "momento de consolidação de um regime de relações sociais, instituições e práticas político-econômicas de inspiração capitalista" (HARVEY, 1996:314). Busca-se compreender, deste modo, o local como
uma expressão do global.
Para Santos (1978) o espaço seria um testemunho de um momento de
produção fixado na paisagem, decorrente de processos preexistentes e influenciando novos processos. Estes devem adaptar-se às formas já existentes para
poderem se determinar. Ou seja, "os objetos geográficos aparecem em localizações, correspondendo aos objetivos da produção em um dado momento e,
em seguida, por sua própria presença, eles influenciam os momentos subseqüentes da produção" (SANTOS, 1978: 139). As expressões do global no local
seriam marcadas pelo que Santos define como rugosidades, ou expressões do
tempo histórico incorporadas ao espaço. Esta concepção, onde subjaz uma
72
Revista Território,
Rio de Janeiro,
ano V, n" 9, pp. 65-83, jul./dez., 2000
visão do lugar como imobilidade em contraposição ao global eternamente em
processo, pode ser percebida na definição do lugar como "ponto de articulação
entre a mundialidade em constituição e o local enquanto especificidade
concreta, enquanto momento" [grifo meu] (CARLOS, 1993:303).
A relativa rigidez desta abordagem do lugar será, entretanto, matizada a
partir de necessidade de se compreender as singularidades dos lugares dentro
do contexto global. Os lugares devem ser diferenciados não somente por seu
ambiente físico mas também pelas diferentes respostas humanas às oportunidades e limitações apresentadas pelos ambientes. Tais respostas estariam na
raiz da variedade cultural contemporânea e na concepção das estruturas sociais
como "máquinas para viver" (JOHNSTON, 1991). Deste modo, mesmo tendo
como objetivo uma uniformização cultural, a globalização,
vista como "um
processo de reestruturação do sistema de acumulação e reprodução dos centros capital istas mundiais" (ORTEGA e LOPES, 1993: 172), provocaria processos de fragmentação espaço-temporal e conseqüente hierarquização espacial.
Para Santos (1997) a globalização (ou mundial ização, como prefere o
autor) da produção propicia a afirmação e diferenciação dos lugares em escala
mundial. A tendência das firmas transnacionais a se fixarem mundialmente,
exemplificá
o autor, faz surgir uma busca constante por lugares mais rentáveis.
Estes, atingidos direta ou indiretamente pelas necessidades do processo produtivo, buscam diferenciar-se dos lugares concorrentes reorganizando-se, buscando destacar suas vantagens naturais ou sociais preexistentes ou adquirindo
novas vantagens. Os lugares, afirmam Young e Lever (1977), buscam promover-se a si mesmo com o objetivo de atraírem investidores e consumidores
sendo uma das estratégias dessa promoção a criação de imagens do lugar. Ou
seja, a mundialização
dos lugares os torna cada vez mais específicos e singulares através da especialização dos elementos do espaço, da dissolução dos
processos de acumulação de capital, do aumento das ações que distinguem e
interligam os lugares. Nas palavras de Santos, "quanto mais os lugares se
mundializam, mais se tornam singulares e específicos, isto é, únicos" (SANTOS,
1997:47).
Santos ressalta ainda que, assim como o lugar deve ser compreendido
levando-se em conta a totalidade do processo, a realidade global também
precisa ser entendida através das diferenças regionais. Elementos como
shopping-cenrers, auto-estradas ou aeroportos terão diferentes impactos em
áreas distintas do planeta produzindo resultados distintos e particulares. Embora
aparentemente similares, cada objeto está relacionado a contextos mais amplos,
constituindo-se em um produto histórico singular.
O processo de singularização do lugar se dá, deste modo, como uma
espécie de combinação, num determinado local, das possibilidades oferecidas
Acepções Recentes
do Conceito
de Lugar e sua importância
..
73
0
pela generalização.
Mesmo possuindo uma força de inércia, uma "autonomia
de existência",
presente naquilo que o forma, o lugar incorpora novas funções
a estas
antigas
formas
através
da "autonomia
1978). Ou seja, mesmo permanecendo
de significação"
esquematicamente
(SANTOS,
os mesmos,
res têm suas significações
permanentemente
mudadas.
Ferrara (1993) já havia destacado que, no processo
os luga-
de globalização,
o
que na verdade se globaliza é a percepção
do mundo. É esta idéia de um
espaço que se identifica, que se dá a conhecer, que será desenvol vida por
Santos (2000) através do conceito de fabulação. Para o autor, us fabulações
legitimam a realização dos mitos como o da "aldeia global", o do "encurtamento
das distâncias" e o da "morte do Estado". Elementos importantes na formação
do discurso
objetivo
totalitário,
produzir
preconceitos
e interesses
de "espaço
dos veículos
para a própria
desta mesma
globalização,
o papel
produzidas
de eventos
e tempo contraídos",
determinantes
assumir
as fabulações
interpretações
mediadores.
humores,
visões,
As idéias de "aldeia
global",
do período
entretanto,
prossegue
de resistência.
de hoje têm como
pelos
de "desterritorialização
existência
de espaços
no mundo
marcada
da humanidade"
histórico
Santos,
Estes
que os lugares
ao mesmo
são
É dentro
atual.
tempo
irão
em que
acolhem os vetores da racionalidade
dominante propiciam o surgimento
e o
desenvolvimento
de diferentes processos. Os lugares são o mundo e reproduzem este mundo de modos indi viduais e diversificados.
Eles são formas singulares da totalidade-mundo
dos, a grande
globalização.
nas cidades
e
toei dos pobres, dos excluídos
força produtora
da contra-ordem,
Estes excluídos e marginalizados,
"não se subordinam
de forma
hegemônica
e, por isso, com freqüência
podem
se entregar
(SANTOS,
importância
vivido "que permite,
a reavaliação
ao mesmo
Hudson
histórias
sobre
mobilidade
sibilidade
(1998), entretanto,
a globalização.
do capital,
investimentos
sofrendo
tempo,
e o futuro"
econômicos
pelos
vantajosas
atrair capital
01.1
das heranças
afirmam
associadas
e a indaga-
de produção
que
a contínua
os têm aniquilado.
desvantajosas,
através
a manifestações
2000: 114).
"histórias"
lugares,
da
2000:114).
Estes lugares
ao propiciarem um espaço
alerta para o que ele chama
Estas
e sua inelasticidade,
as influências,
buscariam
(SANTOS,
aos vetores
reunidos em número crescente
permanente
à racionalidade
que são a contraface do pragmatismo"
têm, deste modo, um papel de relevante
ção sobre o presente
e dos marginaliza-
em oposição
demanda
Estes,
da distância
de ambientes
de
a crescente
de
não mais
ou da aces-
regulatórios
cada vez
mais liberais, criando territórios desregulados,
similares entre si, marcando,
deste modo, o chamado fim da Geografia. Na verdade, sustenta Hudson, esta
tese, associando
globalização,
va, deve ser encarada
hipermobilidade
com ceticismo
e desregulamentação
por uma série de razões,
competitientre elas o
74
Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, nU 9, pp. 65-83, jul.ldez., 2000
exagero do impacto da globalização, a desvinculação entre hiperrnobilidade e
globalização do capital e a necessidade do capital de estar fixado em algum
lugar para acumular valor. A globalização não levaria necessariamente à competição entre lugares porque o próprio processo de globalização, ao atuar nos
lugares, muda sua natureza alterando seu alcance, sua posição e seu poder. Os
lugares não são entidades fixas, permanentes e limitadas, mas "temporárias,
dinâmicas e (re)produzidas através de processos sociais que não são contidos
por seus limites crescentemente porosos" (HUDSON, 1998:917). O processo
de globalização ampliaria, portanto, a participação de atores extra-locais na
construção de lugares. Na verdade, a própria dificuldade em se traçar os
limites do lugar põe em cheque a concepção dualista de lugar como lima tensão
entre o local e o global. Deste modo, "lugares são resoluções temporariamente
confiadas na paisagem social dinâmica; eles são o sítio e o produto de processos de barganha regulatória. Portanto, mais do que levar ao fim da Geografia
a globalização envolve o reescalonamento de lugares" (HUDSON, 1998:934)
Massey (1984) irá abordar a questão em termos da relação entre processos gerais e questões particulares. A variedade, destaca a autora, não deve
ser compreendida como um desvio do que deveria necessariamente acontecer
visto que os processos gerais nunca ocorrem de forma pura. Há sempre
circunstâncias específicas, uma história particular ou um lugar ou locação
particulares. Esta própria variedade, este mosaico de especificidades regionais
terá grande importância no modo como a sociedade como um todo se reproduz
e se modifica. Segundo Massey (1997), a idéia, defendida pela Geografia
Humanista, de que houve um tempo onde os lugares eram habitados por comunidades homogêneas não só é falsa mas acabou por gerar o conceito de que
a busca pelo sentido do lugar seria reacionária. A partir desta constatação, a
autora irá buscar um sentido de lugar progressivo, não autocontido, que "olhe
para fora" e seja adequado ao momento atual de compressão espaço-tempo.
A idéia de que o senso de deslocamento que percebemos no mundo
atual não é diferente daquele que outras civilizações sentiram quando, por
exemplo, entraram em contato com o colonizador britânico serve como ponto
inicial pra que Massey questione a própria noção de compressão espaçotempo. A aceleração do mundo atual, mesmo tendo um forte componente
econômico, decorrente da internacionalização do capital, não o teria como
único determinante. Além do mais, nem todas as pessoas experimentam esta
compressão espaço-temporal com a mesma intensidade. Enquanto uns realizam as movimentações e comunicações que "reduzem" o mundo contemporâneo, outros, apesar ele se movimentarem, não estão encarregados do processo.
Outros ainda são símp les receptores da compressão espaço-temporal.
No
extremo desse processo algumas pessoas, como os favelados do Rio de Janei-
Acepções Recentes
do Conceito de Lugar e sua importância
...
75
ro, apesar de contribuírem com o esporte ou a música global, estão como que
aprisionados na compressão espaço-temporal. Deste modo, existem diferenças
não somente em termos de graus de movimento e de comunicação mas também em graus de controle e iniciação.
A idéia de lugares com limites demarcados e identidades únicas,
construídas através de relações profundas e históricas, não se adapta a esta
realidade. O lugar, para Massey, não possuiria um sentido único compartilhado
por todos, do mesmo modo que as pessoas não possuem uma identidade única.
A identidade dos lugares é mais bem explicada no plural pois lugares possuem
diversas identidades e estão repletos de relações com meio mundo. É neste
sentido que a autora fala de um sentido global de lugar.
Deste modo, "o que dá ao lugar sua especificidade não é algum tipo de
história longamente internalizada mas o fato de que ele é construído a partir de
uma constelação particular de relações sociais que se encontram e se enlaçam
num locus particular" (MASSEY, 1997:322). Lugares seriam, portanto, pontos
de encontro de redes de relações sociais, movimentos e comunicações cujas
relações recíprocas tenham sido construídas em escala muito maior do que
aquelas definidas para o lugar naquele momento. Estas relações com o sistema
amplo não são apenas ritualísticas mas relações reais com conteúdos econômicos, políticos e culturais reais.
BUSCA DE INTEGRAÇÃO
Oh, a sleeping drunkard / Up in Central Park, / And a lion-hunter / In
the jungle dark; / And a Chinese dentist, / And a British queen - / AI{ fit
together / In lhe same machine. / Nice, nice, ve/y nice; / Nice, nice, very
nice; / Niee, nice, very nice - / 50 many different people / In the same
de vice.
Kurt vonnegut, jr. (Cat's eradle)
Apropriado, deste modo, tanto pela Geografia Humanista quanto pela
Geografia Radical como um de seus conceitos-chave, o lugar irá osc ilar
ecleticamente entre definições conflitantes. Harmonizar estas expressões que vão de uma relação autêntica com o espaço, por um lado, à materialização
da relação global-local, por outro - passou a ser uma tarefa perseguida por
vários estudiosos. O esforço desenvolvido por alguns deles irá lançar novas
luzes sobre este conceito, ampliando o conhecimento das ciências humanas, e
da Geografia em particular, sobre questões tão atuais quanto a hipermobilidade
de empresas ou a relação entre espaço e novos sistemas da tecnologia de
informação.
As novas concepções de lugar buscam compreendê-lo
como um
76
Revista Território,
Rio de Janeiro,
ano V, n" 9, pp. 65-83, jul./dez., 2000
articulador das questões cruciais para a compreensão da vida humana e sua
relação com um ambiente cada vez mais fragmentado e globalizado. Impõe-se,
deste modo, uma nova realidade onde as recentes tecnologias de informação
potencializam tanto a globalização dos processos quanto a aglutinação de elementos com significados comuns. O conceito de lugar será, deste modo, apropriado por geógrafos em busca de uma compreensão profunda e multifacetada
da realidade atual.
Um dos primeiros estudiosos a tentar elaborar um conceito de lugar que
sintetize todas estas tensões será Entrikin (1991). Este buscará as bases para
o entendimento do lugar através do contraste entre duas visões do mundo: a
centrada, ligada ao ponto de vista subjetivo, e a descentrada, ligada ao ponto
de vista objetivo. Para o autor, ao assumirmos uma abordagem descentrada
(através de um ponto de vista objetivo, teórico-científico, ligado à externidade)
com relação ao lugar deixamos de compreendê-lo como contexto para vê-lo
como locação. A posição contrária, ou seja, abordar o lugar de um ponto de
vista centrado (através de enfoque subjetivo, ligado à internidade) é afirmar
que não existe nenhuma essência universal do lugar para ser descoberta.
Compreender o lugar será, portanto, compreender tanto a realidade subjeti va
quanto a objetiva, será colocar-se em algum lugar no meio do caminho entre
a visão descentrada do cientista, que vê o lugar como um conjunto de relações
genéricas, e aquela centrada do sujeito que o vê em relação às preocupações
do indivíduo. Esta característica própria do lugar, Entrikin denominará de
intermediaridade (betweelll7ess).
Para o autor, a postura científica, que busca conceitos universais reduz
a importância das particularidades dos lugares. Entretanto, como atores individuais, estamos sempre, de um modo ou de outro, localizados no mundo e
ligados a suas particularidades. Questões cruciais para a vida moderna estão
relacionadas a esta "localização". Deste modo, o ponto de vista "afastado",
característico da teorização científica, toma difícil a compreensão de diversos
e importantes aspectos da existência humana. Ao definirmos uma abordagem
descentrada, estamos optando pela generalização das especificidades dos lugares, deixando de vê-los como contextos para compreendê-los como locação.
Por outro lado, "compreender o lugar como contexto é reconhecer que, do
ponto de vista objetivo do teórico, não existe nenhuma essência ou estrutura
universal do lugar para ser revelada ou descoberta" (ENTRlKIN, 1991 :3). A
mediação entre estas duas perspectivas se dá. de acordo com o autor, através
do processo de descrição de lugares em estilo narrativo, característico das
sínteses geográficas. Tal processo acontece no espaço de mediação entre a
perspectiva do insider e a do outsider captando, deste modo, a intermediaridade
característica do lugar. Compreender um lugar é, assim, compreender tanto a
Acepções Recentes
do Conceito de Lugar e sua importância
77
...
realidade objetiva quanto a subjetiva. A narrativa representa, deste modo, um
meio de se descrever o mundo em relação a um sujeito. Ela é um ponto de
vista do sujeito, possuindo
dois componentes:
a história e o narrador. Seu
relativo centramento permite com que ela possa incorporar elementos objetivos
e subjetivos.
Entrikin
destaca
que
"Uma diferença entre a visão do agente da vida cotidiana e a visão do
geógrafo tende a se apresentar através da gradação entre a distinção
destes dois pólos. O geógrafo realiza uma tentativa autoconsciente de
separar estes dois pólos e de ocupar uma posição relativamente objetiva
em algum lugar entre aquela do agente e a do teórico. Deste ponto
privilegiado, o geógrafo ganha uma compreensão do lugar como o contexto das ações e eventos humanos" (ENTRIK/N, /99/:26).
A interpretação
do geógrafo
história
cultural
do significado
moderno.
dos lugares
Segundo
somente
interconectando
objetiva
dos fatos da experiência.
Ao se compreender
Entrikin
um dos objetivos
a função
suas realidades
de traduzir
objetivas
a
e subjetivas.
ável ao mundo externo
do lugar sem perder, entretanto,
o lugar como intermediaridade
(1997)
coloca
a questão
buscando-se
de fora - preservando-se
permitido
cumpriria
Entrikin, ao buscar a perspectiva do narrador, o geógrafo deverá não
descrever as experiências,
mas também avaliá-las,
buscando, deste
modo, uma compreensão
externo,
do lugar é, para Entrikin,
Sua narrativa
entre o interno
e o
sobre até onde se deve ser penne-
um equilíbrio
as características
entrar - evitando-se
a dimensão
entre o que deve ser mantido
da comunidade
a esterilidade
resultante
- e o que deve ser
do isolamento.
O estudo
geográfico do lugar não deve, assim, se limitar ao estudo do específico e do
singular mas buscar compreender
as experiências
indi viduais através das narrativas coletivas e dos discursos públicos. Esta forma de abordagem do lugar
irá equalizar seus diversos aspectos, evitando compreendê-lo
unicamente como
algo socialmente construído.
Em que pese a originalidade
da abordagem de Entrikin
apontados por sua concepção do lugar como intermediaridade,
como
expressão
dessa
situação
esta concepção.
Malpas
uma construção
subjetiva
peculiar,
(1999) destaca
ao mesmo
de narrativa,
reunir os seus aspectos
vez, ressalta
que Entrikin
dagem explicitamente
propõe
dialética
algumas
que Entrikin
críticas
e os caminhos
e da narrativa
se apresentaram
compreende
tempo em que busca, através
subjetivos
compreender
reconciliando
e objetivos.
do conceito
Merrifield,
o lugar através
por sua
de uma abor-
"o modo no qual a experiência
vivida e agida no lugar e o modo como ela se relaciona
a
o lugar como
e se integra em práticas
é
78
Revista Território,
Rio de Janeiro,
ano V, n" 9, pp. 65-83, jul./dez.,
2000
políticas e econômicas que são operativas em escalas mais amplas"
(MERRIFIELD, 1993:517). A preocupação da dialética com as questões da
mudança, do movimento, da interconexão e da interação e a compreensão do
todo através das relações internas entre cada uma das partes em oposição a
"objetificação" da realidade social e a busca de uma ordem lógica do ponto de
vista empiricista irão fazer com que o autor coloque em xeque a tese de
Entrikin. A idéia de interrnediaridade pressupõe, segundo Merrifield, uma base
cartesiana, assumida por Entrikin ao entender o lugar de uma forma dualística:
de um lado o mundo material (externo), e de outro o mundo da consciência
humana (interno). Ao buscar apresentar o lugar como ponte entre as duas
pontas de um continuum, Entrikin irá destacar uma polaridade entre a concepção subjetiva e a objetiva do lugar. Deste modo, a argumentação de Entrikin,
"ao envolver a noção de uma 'intermediaridade',
busca compreender como
dois opostos polares podem ser reunidos em lugar de compreender como o
locus do lugar é uma unidade contendo dentro de si diferentes aspectos"
(ênfase do autor) (MERRIFIELD, 1993:519). Merrifield propõe, então, compreender-se o lugar através do conceito de "fetichismo das mercadorias"
(fetishism of commodities), de Marx. Para Marx, as mercadorias, como qualquer outro fenômeno, são processos que aparecem na forma de coisas. Ou
seja, o mundo material é simultaneamente uma coisa e um processo. É através
desta concepção que Merrifield irá conceituar a construção e a transformação
do lugar. A paisagem material, assim como as práticas da vida diária, apresentam-se, deste modo, incorporadas à totalidade capitalista global. Por outro lado,
o sistema capitalista não ocorre simplesmente num sentido abstrato, mas precisa se vincular a lugares específicos. "O espaço da totalidade extrai seu
significado, portanto, do luga.r, e cada pa.rte (ou seja, cada lugar), através de
sua interconexão com outras partes (lugares), engendra o espaço da totalidade" (MERRIFIELD, 1993:520)
Para Merrifield, deste modo, o lugar é o terreno onde são vividas as
práticas sociais, é onde se situa a vida cotidiana, é o espaço praticado. A
especificidade do lugar age, deste modo, ativamente sobre o espaço social
geral capitalista. No lugar estão presentes processos conflituosos e heterogêneos que, freqüentemente, operam em escalas mais amplas. O lugar seria uma
parada nos fluxos de capital, dinheiro, bens e informações representados pelo
espaço hegemônico. O lugar é mais do que a vida diária vivida. Ele é "o
'momento' quando o concebido, o percebido e o vivido atingem uma certa
'coerência estruturada" (MERRIFIELD, 1993:525).
Graham (1998) irá buscar um novo enfoque da idéia de lugar ao tentar
compreender o sentido deste conceito num mundo contemporâneo profundamente influenciado por novos sistemas de tecnologia da informação. Para isto
Acepções Recentes
do Conceito
de Lugar
e sua importância
...
79
o autor irá recorrer às teorias de ator-rede (actor-network: theories) e sua
visão relacional das ligações entre tecnologia, tempo, espaço e vida social. Esta
perspectiva enfoca o papel das novas tecnologias nas relações complexas e
contingentes entre atores humanos e artefatos técnicos e sua constante
mutabilidade. Tais relações formam o conjunto denominado de ator-rede através
do qual "a vida social e espacial torna-se sutil e continuamente recombinada em
combinações complexas de novos conjuntos de espaços e tempos que são sempre
contingentes e impossíveis de serem generalizados" (GRAHAM, 1998:167).
A teoria ator-rede aborda, deste modo, a relação e o envolvimento dos
indivíduos com as tecnologias, documentos, textos e dinheiro nas chamadas
ator-redes. A atividade é entendida como um processo puramente relacional
onde o espaço e o tempo absolutos não têm sentido. As tecnologias produzem
efeitos variáveis através das ligações com contextos sociais específicos. Tais
ligações seriam intermediadas
pelo conjunto de atividades humanas e
tecnológicas. Homem e máquina tornam-se cada vez mais interligados a ponto
de cada vez menos se poder falar em máquinas ou homens em geral. Para
Graham, os sistemas de comunicação agem, na verdade, como "redes
tecnológicas dentro das quais novos espaços e tempos e novas formas de
organização, controle e interação humanas são continuamente construídas"
(GRAHAM, 1998: 179). O lugar deve ser compreendido, deste modo, a partir
de sua vinculação com os processos espaço-temporais. Bairros, cidades e
regiões não podem, deste modo, ser examinados sem se levar em conta as
diferentes espaço-temporalidades neles contidas.
Para Graham, o principal mérito da perspectiva ator-rede é ressaltar os
múltiplos e contingentes mundos da ação social e sua relação com a complexa
ordem social elaborada à distância através de um conjunto complexo de artefatos tecnológicos. Com essa perspectiva, pode-se compreender que o papel
humano não se restringe a ser impactado pelas novas tecnologias. O homem
existe como algo mais do que um servo da máquina. A teoria ator-rede busca
compreender, deste modo, a crescente concentração urbana através das
recombinações propiciadas pelas recentes redes tecnológicas e mostra que, ao
contrário de se produzir um mundo abstrato e desumano, elas operam dentro
do espaço da cidade recombinando práticas sociais e espaciais. Novos lugares
são produzidos independentemente de imposições tecnológicas ou decisões
político-econômicas, mas, sim, ligados a processos de configuração social específicos de ator-redes. A cidade moderna, portanto, está em constante modificação, não podendo ser apreendida num quadro fixo. Lugares podem ser
compreendidos, deste modo, como combinações sutis e contingentes de proximidades eletrônicas consideradas em paralelo a significações baseadas na
proximidade física.
80
Revista Território,
Rio de Janeiro,
ano V, n" 9, pp. 65-83, jul./dez.,
2000
Será, entretanto, Oakes (1977) quem irá sintetizar com mais consistência
as diferentes acepções do conceito de lugar. A partir de sua análise sobre a
expressão literária da tensão entre o progresso e a perda, o autor irá propor
uma concepção de lugar que incorpora, como uma parte fundamental de sua
experiência, o sentido de deslocamento causado pela reestruturação capitalista
do mundo.
Oakes destaca o pioneirismo de Massey que demonstrou que a identidade baseada no lugar é produto da inter-relação das forças extralocais da
economia política com as camadas históricas das relações sociais. Lugar não
é "comunidade" ou "localidade" mas o sítio de identidades significativas e
atividade imediata. É esta última característica, inclusive, que distingue lugar
de região e de nação. Um dado importante, para Oakes, é o fato do lugar não
ser territorialmente delimitado, mas sim uma conseqüência de ligações através
do espaço e do tempo "que fazem o lugar ser mais uma rede dinâmica do que
um localização ou sítio específico" (OAKES, 1997:510). Para o autor, o lugar
expressa a tensão, característica da modernidade, entre o progresso e a perda;
o lugar seria, deste modo, "um espaço criativo, embora ambivalente, cavado em
algum loca! entre a opressão da nova ordem e o aprisionamento da tradição"
(OAKES, 1997 :511).
O lugar não deve ser compreendido, portanto, como um "contraponto
conceitual a uma vaga modernidade deslugarizada" (OAKES, 1997:520). A
batalha que acontece no lugar não é simplesmente uma resistência às tentativas de hegemonia históricas e espaciais mas uma "luta para nos colocarmos
como sujeitos (em lugar de objetos) da história e da espacialidade" (OAKES,
1997:520).
A construção de idenLidades relacionadas ao lugar está, deste modo,
mais ligada à percepção das tensões entre o progresso e a perda do que a lutas
para resistir a imposições hegemônicas.
À Guisa de Conclusão
A importância do conceito de lugar está diretamente vinculada aos rumos da Geografia Humana e a dois de seus principais ramos, a Geografia
Humanista e a Geografia Radical. Ambas, cada uma a seu modo, buscaram
combater as atitudes positivistas da Geografia Quantitativa. Se a Geografia
Humanista procurou na História e nas humanidades os elementos para atacar
a abordagem positivista e sua depreciação das individualidades, atitudes, valores e sentimentos humanos, a Geografia Radical irá procurar suas respostas
através da crítica a aceitação implícita, por parte da Geografia Quantitativa, do
Acepções Recentes
do Conceito de Lugar e sua importância
81
...
status político global e de sua incapacidade em associar significados a suas
descrições quantitativas. Estes dois caminhos de trilhas e bases teóricas tão
di versas irão, entretanto, encontrar na procura da definição do conceito de
lugar seu ponto de contato. Cada um deles buscará agregar significados a um
conceito até então pouco significante para o estudo geográfico. Esta aparente
divisão do lugar em duas correntes de significados antagônicos será, entretanto,
sua maior riqueza pois está exatamente no desafio de se harmonizar estas
diferenças a resposta a uma série de questões do mundo atual. A busca da
compreensão de conceitos como globalização, singularidade,
identidade,
internidade,
externidade,
simbolismo,
progresso, perda, subjetividade,
interconectividade apresenta-se paralela àquela em direção à compreensão do
lugar. Compreender o lugar é, deste modo, compreender uma relação possível
entre questões políticas e econômicas e teias de significações e vivências
expressas localmente sem perder-se de vista suas relações estruturais globais
ou as novas relações espaciais determinadas por um mundo em constante
mutação. É exatamente esta essência constantemente em movimento, esta
capacidade de responder aos estímulos internos e externos com diferentes
velocidades, esta qualidade da permanência (material, afetiva e simbólica)
associada ti permeabilidade a processos internos e internos influenciadores de
sua modificação (material, afetiva e simbólica) que faz com que o lugar seja
um permanente desafio a sua compreensão e a compreensão do mundo.
Bibliografia
BUlTIMER,
Anne (1974).
Valucs in Gcography.
Washington.
AAG (Rcsourcc
Papel' n"
24), 1974.
BUTTIMER, Anne (1976). Grasping
Lhe dynamism of lifeworld. Annals ofthe Association
of American Geographers. 66(2): 266-76.
BUlTIMER,
Annc (1980). Hornc, reach, and the sense of placc. In: BUlTIMER,
A.,
SEAMON,
D (cds.). Tlie 111II71Clnexperience
of space and place. Ncw York.St.
Martiri's Prcss, 166-87, 1980.
CARLOS,
Ana Fani Alcssandri (1993). O lugar: rnundialização
c fragmentação.
In:
SANTOS,
Milton ct aI. (orgs.). O /laVO mapa do mundo: fim de século e globalização. São Paulo:HUClTEC,
15-22.
DUNCAN,
Jarnes (1994). Place. In: JOHNSTON,
R. J. et al. Tlie dictionary ofhunian
geography, Oxford.Blackwell
Publishcrs.
ENTRIKlN,
1. Nicholas (1991). The betweenuess of place: towards a Geograpliy of
ntodemity, London: Macmillan.
ENTRIK1N,
J. Nicholas (1997). Placc and rcgion 3 Progress in HIII1IOI1 Geograplty
21 (12): 263-8.
FERRARA,
Lucrécia
D' Alessio
(1993).
O mapa da mina. Informação:
espaço
c lugar.
Revista Território,
82
Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 65-83, julJdez.,
2000
In: SANTOS,
Milton et a!. (orgs.). O /laVO mapa do mundo: fim de século e
globalização, São Paulo:HUCITEC,
161-71.
GRAHAM,
Stephen (1998). The end of gcography
OI' the explosion
of place?:
conceptualizing
space, place and information
technology.
Progress in Human
Geography,22(2),
165-85.
HARVEY, David (1996). From space to place and back again. In: Justice, nature and
the geography ofdifference.
Oxford:Blackwell,
291-326.
HAYDEN, Dolores (1997). The power 01' place: urban landscapes
as public history.
Cambridgc,
Mass.:Thc
MIT Prcss,
HOLZER,
Werther (1992). A Geografia humanista:
sua trajetória
de 1950 a 1990.
Orientador: Maurício de Almeida Abreu. Rio de Janeiro UFRJIPPGG.
550p. Dissertação (Mestrado em Geografia).
HOLZER, Werther (1997). Uma discussão fenomenológica
sobre os conceitos de paisagem e lugar, território e meio ambiente. Território, 2(3), 77-85.
HOLZER, Werther (1999). O lugar na geografia humanista.
Território, 4(7), 67-78.
HUDSON,
Alan C. (1998). Placing trust, trusting place: on lhe social construction
of
offshore financiaI centres. Political Geography,
[7(8).915-37.
JACKSON,
John Brinckerhoff (1994). A sense of place, a sense of rime. New Haven/
London : Yale Univcrsity
Prcss.
JOHNSTON,
Ronald John (1991). A question of place: exploring
lhe practice of
IUl/IJaIlgeography. Oxford/Cambridge
: Blackwell Publishers.
MALPAS, J. E. (1999). Place and experience: a philosophical topography: Cambridge
: Cambridge
University Press.
MASSEY, Dorecn (1984). Introduction:
Gecgraphy mattcrs. In: MASSEY,
Dorcen,
ALLEN, John. Geography matterss Cambridge
: Cambridge
Universily
Press, 1-11.
MASSEY, Doreen (1997). A global sense of placc. In.: BARNES, T., GREGORY,
D.
(orgs.). Reading hunian geography. London: Arnold, 315-23.
MCGREEVY
Patrick (1990). Place in lhe Arnerican Christrnas. The Geographical Rreview,
80(1),32-4.
Guy Di (1999). Géographies
tranquillcs
du quotidien:
une analyse
de la
contribuition
des sciences
sociales et de la géographie
à I 'étude des pratiques
spatiales. Cahiers de Géographie du Québec, 43(118)-75-93.
MERRIFIELD,
Andrew (1993). Place and space: a Lefebvrian reconciliation.
Trans. Br.
Inst. Geogr. N.S. 18,516-31.
OAKES, Timothy (1997). Place and the parado x of rnodernity. Annals of the Association
of American Geograplters, 87(3), 509-31.
ORTEGA. Gracicla Uribc, LÓPEZ, Silvana Lcvi de (1993). Globalização e fragmentação:
o papel da cultura c da informação.
In: SANTOS, Milton et al. (orgs.). O novo mapa
do 11I1111do:
fitn de século e globalização. São Paulo:HUCITEC,
172-87.
RELPH, Edward (1980). Place and placelessness. London:Pion.
SANTOS,
Milton (1978). Por uma Geografia /lova: da crítica da Geografia a uma
Geografia Crítica. São Paulo: HUCITEC.
SANTOS, Milton (1993). A aceleração contemporânea:
tempo mundo e espaço mundo.
In: SANTOS,
Milton et al. (orgs.). O novo mapa do mundo: fim de século e
globalização, São Paulo:HUCITEC,
15-22.
MÉO,
Acepções Recentes
do Conceito de Lugar e sua importância
...
83
SANTOS, Milton (1997). Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo.Hucitec,
SANTOS, Milton (2000). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro.Record.
TUAN, Yi-Fu (1983). Espaço e lugar: a perspectiva da experiência; lradução de Lívia
de Oliveira. São Paulo: DIFEL.
YOUNG, Craig, LEVER, Jonathan (1997). Place promotion, economic location and lhe
consumption of city image. Tijdschrift voar Economische em Sociale Geografie,
88(4),332-4.1.
Download

acepções recentes do conceito de lugar esua