A CIÊNCIA DA MOTRICIDADE HUMANA: IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS E EDUCACIONAIS ANA MARIA PEREIRA Universidade Estadual de Londrina - Brasil Laboratório de Pesquisa em Educação Física - LAPEF (UEL) Doutoranda na Universidade da Beira Interior - Portugal (Orientação: Fernando Almada e co-orientação: Manuel Sérgio) INTRODUÇÃO A presente comunicação é fruto de uma experiência teórica1, análises e reflexões acerca dos discursos contidos nos textos e nos contextos, com interpretações que seguem a linha de raciocínio da hermenêutica, buscando reflexões do todo2. O argumento se pauta na defesa da Educação Motora, o ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana, como um dos componentes essenciais na educabilidade do ser humano. Motricidade Humana: eis o objeto de uma ciência do homem que consagra e edifica o sentido da vida. A Motricidade Humana emerge com potencialidades riquíssimas para a vida, pois aglutina com coerência uma atual noção de ciência, uma nova linguagem e a perspectiva de uma autêntica práxis, compreendendo os fenômenos complexos que sociedade hodierna, em constante transformação, exige. Ela reclama e exige autonomia epistemológica, unidade ontológica, complexidade reticular metodológica e práxis transformadora. A Motricidade constitui o aspecto fundamental da vida humana. É sinônimo de intencionalidade motora do corpo-próprio, na conjugação da sensibilidade e da inteligibilidade, formando uma espécie de enovelamento, ou seja, integrando uma plena e sólida unidade complexa. Motricidade Humana, também chamada de intencionalidade operante é a intenção que opera, indelevelmente, o desvelar e o revelar do ser humano, no âmago do movimento e da experiência concreta. O movimento radicado no mundo da vida nada mais é do que a Motricidade. Motricidade essa que leva a efeito a noção de ser humano práxico, constantemente em ação, que age em procura do que não tem, imbuído na busca de ser mais e, também, no encontro e no descobrimento de um espaço de libertação. Ora, só temos que afirmar: o homem da cultura social hodierna necessita, indubitavelmente, para a sua formação e educação de um autêntico Projeto de Educação Motora, tendo em vista a emergência de uma vida com qualidades novas. Nesta dimensão compete à Motricidade Humana se constituir e se fortalecer como unidade científico-pedagógica do conhecimento básico, do saber/teórico e do fazer/prático de toda e qualquer expressão traduzida na cultura corporal de movimento. Por isso, afirmamos que é lícito e lúcido o enquadramento do jogo, do desporto, da dança, da luta, da ginástica, do circo, entre outros, tendo em vista 1 Esse texto é produto de estudos e de pesquisas, decorrente de exigências parciais, do Curso de Doutoramento da Universidade da Beira Interior – Portugal 2 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978. desencadear ações que favoreçam e que contribuem para a vida das pessoas, ou seja, para a formação e educação humana. A Ciência da Motricidade Humana reclama uma pedagogia emergente traduzida e materializada em ações pedagógicas que permitem invocar e projetar utopias. Porque a […] a ciência da motricidade humana se constrói a partir do sentido da crise, a pedagogia que a corporiza precisa consciencializar o sentido do novo, do utópico, do possível3. O sentido do utópico é a esperança comprometida em superar a crise presente e projetar novos desafios a serem atingidos. A Ciência da Motricidade Humana tem como objeto de estudo a ação motora, a saber, o corpo em ato. E se ocupa do movimento que é a parte de um todo, movimento esse do ser humano finito, carente e não-especializado, que busca a transcendência. Com efeito, por ser a Motricidade Humana o sentido desse todo, presente nas dimensões fundamentais do ser humano, é que temos que garantir uma Educação Motora de excelente qualidade. Isto quer dizer que a materialização de um projeto de Educação Motora, independente da população alvo ou do âmbito de intervenção, deve pleitear a mais autêntica autonomia, no qual o processo de formação humana tenha como referência constante à noção de Absoluto4. Esta noção de absoluto é a noção de liberdade e de emancipação, mediadas por um sentido, a procura da transcendência através da Motricidade Humana. MEDIAÇÕES: OPOR E COMPOR COM A EDUCAÇÃO FÍSICA PARA PROPOR A EDUCAÇÃO MOTORA O termo mediação aqui empregado não apresenta o sentido comum de apenas mediar ou intermediar. O termo refere-se à teoria da controvérsia e expressa uma perspectiva integrada de posições opostas. A mediação representa o estado natural dos argumentos opostos e das oposições binárias inerentes à filosofia e à ciência. Essas oposições de natureza conceptual, no âmbito de um dado conhecimento científico, é uma via média e consistente, que supera as aporias reducionistas, os mecanicismos ou, até mesmo, os fatalismos e os determinismos a que certas teorias estão vinculadas5. No âmbito científico, a mediação aborda a epistemologia por meio da controvérsia, no qual o opositor apresenta a negação de uma dada tese, denunciando todas suas fragilidades, sendo que essas podem ser ao nível paradigmático, ontológico, conceptual e metodológico. A filosofia moderna, sobretudo com referência a Hegel (1770/1831), invoca a mediação como o ponto fulcral da dialética dos opostos, em que há um movimento de negação, seguido de uma superação. Assim, temos a antítese, a negação, que constitui um meio de passar da tese à síntese. Tudo isso, nada mais é do que o processo dialético traduzido no, tão famoso, conjunto ternário: tese, antítese e síntese. Por outras palavras, isto significa que uma proposição (tese) ao ser negada acaba por se transformar em oposição (antítese). Desse modo, emerge de forma mais rica e 3 FEITOSA, Anna Maria. Contribuições de Thomas Kuhn para uma epistemologia da motricidade humana. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. (Colecção Epistemologia e Sociedade) p. 148. 4 SÉRGIO, Manuel. A pergunta filosófica e o desporto. Lisboa: Compendium, 1991. (Colecção Educação Física e Desporto) p. 108. 5 GIL, Fernando. Mediações. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001. evoluída uma nova proposição entre as duas precedentes (tese e antítese). Esta ligação conciliadora é a mediação, que resultará conseqüentemente na (síntese)6. Parece plausível utilizar a dialética dos opostos de Hegel para facilitar a compreensão da passagem da Educação Física para a Educação Motora. A Educação Física constitui a tese e tem na Motricidade Humana o seu elemento de interpenetração dos contrários, que é a antítese. Observa-se que instaurou dialeticamente uma contradição interna ou luta dos contrários. Na realidade a Motricidade Humana, num primeiro momento, cumpriu a função de opor e de compor. Não houve exclusão, porque tudo é conexo com tudo, manifesto na ação recíproca e na unidade polar, no qual tudo se relaciona. É a composição destes dois contrários que engendrou essencialmente a mudança e o devir, ou seja, desencadeou o vir-a-ser dialético que podemos chamar de síntese. A Motricidade Humana enquanto estatuto dessa mediação atinge o ponto fulcral da dialética, porque a mediação permite o movimento dinâmico da negação e também da superação, superação que favorece a transformação. E é nesse momento que emerge a nova proposição oferecendo uma síntese, mais rica do que a antiga tese e, por conseguinte, alcançando a mudança qualitativa7. Com efeito, ao considerarmos a Educação Motora, como o ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana, podemos dizer que ela também representa a mediação desse processo de contradições, identificada na síntese proposta, síntese essa que não é fixa e acabada e, por compor uma realidade sempre em mudança e em devir, provavelmente, terá um dia a sua antítese. Edgar Morin explica que o conhecimento na nossa civilização privilegia a separação em detrimento da ligação, a análise em detrimento da síntese. Entretanto, o conhecimento constitui, simultaneamente, uma tradução e uma reconstrução, sendo que sua organização, […] contém operações de religação (conjunção, inclusão, implicação) e de separação (diferenciação, oposição, selecção, exclusão). O processo é circular, passando da separação à ligação, da ligação à separação, e, para além da análise à síntese, da síntese à análise8. Nesta dimensão, no presente, se faz legítimo se opor à Educação Física, compor com a Educação Física e propor a Educação Motora. Há necessidade de consolidar a ruptura, traduzida na separação e na ligação, como também, na análise e na síntese, da Educação Física para a Educação Motora. A Educação Motora há-de transformar-se num momento de ruptura com os vários tipos de alienação. Criar, sendo natureza, não é obra 6 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Propedêutica filosófica. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 115-126 passim. Ainda sobre este assunto foi consultado: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. 6. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. v.II. p. 126-151 passim. 7 Destaca-se os princípios e as categorias da dialéctica materialista: 1-Tudo se relaciona em uma totalidade complexa de processos, nos quais objectos e fenómenos são ligados entre si, ou seja, condicionados reciprocamente; 2-A unidade e a luta dos contrários marcado pelo princípio da contradição. 3-Tudo se transforma inserido num movimento dinâmico e dialéctico; 4-Toda e qualquer mudança implica em uma passagem de quantidade à qualidade ou mudança qualitativa. LAKATOS, Eva Maria & MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos da metodologia científica. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 1991. p. 100. 8 MORIN, Edgar. Reformar o pensamento: a cabeça bem feita. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. (Colecção Epistemologia e Sociedade) p. 26. da natureza, mas da liberdade. E a liberdade define-se pelo risco e pelos possíveis… em corpo e movimento!9 A Educação Física é a pré-ciência que deu origem à Ciência da Motricidade Humana. Nesse passo, como a Educação Motora é a vertente pedagógica dessa ciência fica […] subentendido que a Educação Física tradicional teria sido a sua préciência10 . A Educação Física está inserida, com veemência, na história, na cultura e na tradição dos povos há um século e traz consigo uma enormidade de práticas e de rituais, carregados de significados. Mas, infelizmente, o termo não se adequou às transformações vigentes. Entende-se a dificuldade de romper, definitivamente, com a expressão que é tradicionalmente usada. Entretanto, essa terminologia, reducionista e simplista, não manifesta os reais objetivos e propósitos de uma área do conhecimento, que tem lutado pela sua valorização junto ao âmbito geral das ciências, como também, da sociedade em geral. A denominação Educação Física, fruto do racionalismo antropológico cartesiano, nos remete a tal dicotomia corpo e mente, donde resulta a educação meramente de um físico. A Ciência da Motricidade Humana provocou um corte epistemológico em relação à Educação Física e, especificamente, no seu ramo pedagógico anunciou a ruptura e a evolução, fazendo uma comunicação textual crítica traduzida na expressão Educação Motora. Então, essa nova ciência do homem não pode ser conivente com uma linguagem que retrata um passado excessivamente racionalista à qual refuta. Karl Popper (1902/1994), em sua grande obra Conjecturas e Refutações, publicada pela primeira vez em 1963, explica que o conhecimento quando se desenvolve e evolui provoca alterações e modificações em sua totalidade […] e, nomeadamente, no seu mais importante instrumento, a linguagem em que nossos mitos e teorias são formulados11 . Portanto, entendemos que a insistência e manutenção da mesma identificação podem levar à conclusão de que não se efetivaram mudanças e, ainda, corre-se o risco dos avanços ficarem escondidos nos resquícios do passado tradicional e da velha nomenclatura. Daí a preocupação com o léxico que determina o conhecimento, pois a nominação expressa claramente sob a égide de qual paradigma ocorreu todo o processo de construção do saber teórico e do fazer prático. E no caso da Educação Física revela, nitidamente, o fenômeno cultural do racionalismo. Vários autores propuseram substituir o termo Educação Física, sendo que as preocupações se assentaram em torno da fragmentação dualista que a denominação indica e, também, com a legitimidade desta área de conhecimento enquanto status científico. São eles: o canadense Meynard (1966) propôs Kinantropology; o francês Le Boulch (1971) propôs science du mouvement humain; os ingleses Curl e Renshaw (1973) propuseram human movement studies; o francês Bouchard (1974) propôs physical activity science; o alemão (1974) Willinczk propôs sport science; o francês Parlebas (1981) propôs a science de l`a action motrice e Manuel Sérgio (1986) com a ciência da motricidade humana e a educação motora como ramo pedagógico12 . 9 SÉRGIO, Manuel. Motricidade Humana: contribuições para um paradigma emergente. Lisboa: Instituto Piaget, 1994a. (Colecção Epistemologia e Sociedade) p. 87. 10 TOJAL, João Batista. Da Educação Física à Motricidade Humana: a preparação do profissional. Lisboa: Instituto Piaget, 2004. (Colecção Epistemologia e Sociedade) p. 27. 11 POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e Refutações: o desenvolvimento do conhecimento científico. Coimbra: Editor Livraria Almedina, 2003. p. 181. 12 Cf. TOJAL, 2004, p. 26; SÉRGIO, 1994b, p. 146. Infere-se que apenas a troca de nome não se efetiva a mudança radical, rigorosa e de conjunto. Na filosofia de Manuel Sérgio não se trata de uma simples troca de nome, mas sim de mudança de paradigma, que traz explícito a superação do reducionismo ontológico, do reducionismo epistemológico e do reducionismo metodológico13 . Todavia, a real percepção e compreensão de todo o contexto implicam, necessariamente, em modificação de atitudes e de comportamentos, porque o novo paradigma exige a negação dos pressupostos anteriores e tudo o mais o que desses reducionismos decorre. O entendimento e a consideração de uma nova ontologia e de uma nova epistemologia podem desencadear uma nova forma de ação, podemos dizer uma nova forma de intervenção, expressa em uma nova metodologia, ou seja, uma nova práxis. Trata-se de fato de uma verdadeira extensão processual qualitativa, para essa área de conhecimento. A Educação Motora não emerge apenas para contradizer a Educação Física. Ela é uma espécie de elemento adjunto de transformação, uma espécie de neoeducação física, ou melhor, fazendo uso do raciocínio bachelardiano é uma educação-não-somente-física, que revela com uma luminosa precisão os contornos do novo paradigma, complexo, sistêmico, incerto e global. A Educação Motora é uma nova forma do pensamento pedagógico, que surge a posteriori da Educação Física, projetando uma luz sobre as obscuridades e as deficiências deixadas pelo conhecimento organizado sob o paradigma antigo, nomeadamente, o moderno. Para interditar radicalmente uma teoria e uma prática, que foram construídas sob a égide de um paradigma tradicional é preciso que a experiência concreta exponha e materialize as razões de seu anacronismo e real oposição. Isto significa que de nada adianta somente o discurso inovador, se o curso pedagógico for resistente a mudanças e não assimilar a ruptura e incorporar o novo. Para uma verdadeira dimensão social da formação humana é necessário valorizar a articulação coerente entre o domínio do saber-fazer e do saber-ser-pedagógico, na perspectiva de transformação, de transformar ação, ou seja, transformar a própria práxis. Manuel Sérgio elucida que a Educação Motora como o ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana procura, […] o desenvolvimento das faculdades motoras imanentes no indivíduo, através da experiência, da autodescoberta e autodirecção do educando. Abrindo-o a um dinamismo intencional, criativo e prospectivo, a educação motora (ou Educação Física) propõe-lhe mais do que um saber fazer, um saber ser14 . Nesta dimensão, a Educação Motora tem a responsabilidade de garantir à criança, ao jovem, ao adulto e ao idoso, seja em espaços de intervenção da escola, do treino de alto nível, do lazer e da recreação, da saúde, da prevenção ou reabilitação, dentre outros, uma autêntica […] educação física, desde que neles se construa o espaço onde o homem se forma pessoa, isto é, se reconheça e o 13 SÉRGIO, Manuel. Epistemologia da motricidade humana. Lisboa, Cruz-Quebrada: Edições Faculdade de Motricidade Humana – Universidade Técnica de Lisboa, 1996. p. 99. 14 Cabe esclarecer que a palavra desenvolvimento na obra de Manuel Sérgio não tem o sentido apenas de fazer crescer ou aprimorar habilidades e capacidades do organismo. O uso do termo representa também a […] ascensão do Homem ao mais humano. A motricidade garante o dinamismo revelador e comunicativo da procura e conquista de mais ser. O desenvolvimento vem na linha de o Homem ser um apelo à transcendência, transcendência que nunca tem e sempre almeja. Daí o seu sentimento de carência; daí o radical fundante da motricidade. Idem, Ibidem, p. 162. reconheçam como consciência e liberdade. Conclui-se assim, que […] a Educação Motora é Educação15 . A EDUCAÇÃO MOTORA E A EXIGÊNCIA DE UMA AUTÊNTICA FORMAÇÃO HUMANA A Educação Motora […] é o ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana16 . E o seu grande desafio consiste em […] proporcionar espaço e tempo ao movimento da transcendência a um ser consciente das suas limitações e que, ao superá-las encontra o sentido da vida 17 . A Educação Motora explora e examina em toda a sua extensão o desporto, o jogo, a luta, a dança, a ginástica, a educação especial, a reabilitação e a ergonomia. E é por meio da conjugação do saber (compreensão e conhecimento) e do fazer (vivência de situações concretas) dessas manifestações e expressões da cultura corporal de movimento, que a Educação Motora, enquanto intervenção pedagógica, tem a função primordial de ensinar a pessoa humana a ser mais e a fazer por si próprio. Todavia, a Educação Motora, inserida em um paradigma emergente tem por responsabilidade provocar espaços e possibilidades de humanização, de autonomia e de liberdade. Assim, por meio de um processo pedagógico, articular uma intervenção que dê prioridade ao sentido e ao significado das coisas, ou seja, que leve o ser humano a aprender a aprender fazendo18 , para que este compreenda a vida de forma reticular, que possa pensar de forma sistêmica e decidir com autonomia, frente a situações de uma realidade complexa, diversa e incerta. A Ciência da Motricidade Humana tem a conduta motora (ou acção) como a energia para o movimento centrífugo e centrípeto e intencional da transcendência (ou da superação)19 . Assim, a sua dimensão é por demais abrangente e alargada, porque se ocupa não só com questões de ordem epistemológica, mas também, com preocupação de inserção no novo paradigma cultural emergente, nos quais alia o rigor científico, exigido pela ciência, à consciência social, fator necessário para emancipação20 . Isso significa que a Educação Motora, como vertente pedagógica da Ciência da Motricidade Humana, pode ensinar a criança, o jovem, o homem, a mulher e o idoso, que é através da Motricidade que se aprimora as habilidades e capacidades motoras, mais também é pela Motricidade que se torna sujeito, agente ativo que faz História. Ocupar-se da Educação Motora é mergulhar na totalidade e complexidade do ser humano no mundo, enquanto condição sine qua non de autonomia e de liberdade, porque cada ser humano deve ser o criador de si mesmo. Só assim estaremos em convergência com um autêntico processo de educação e formação integral. A Educação Motora deve fazer parte da educabilidade do ser humano. E todos aqueles profissionais que tratam da conduta motora de pessoas humanas 15 Idem, Ibidem, p. 163. Cf. SÉRGIO, Manuel, 1989, p. 57; 1994a, p. 80; 1994b, p. 155; 1996, pp. 103-162. 17 SÉRGIO, Manuel. Motricidade Humana: contribuições para um paradigma emergente, op. cit., p. 80. 18 SILVA, João Bosco da. Educação física, esporte, lazer: aprender a aprender fazendo. Londrina: Lido Editora, 1995. 19 SÉRGIO, Manuel. Alguns olhares sobre o corpo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. (Colecção Epistemologia e Sociedade) p. 66. 20 Idem, Ibidem. 16 devem ser, necessariamente, educadores. Proclama-se uma Educação Motora radicada na ação educativa transformadora, com responsabilidade e rigorosidade ética, competência científica e amorosidade autêntica. Tudo isso, sob a égide da ação política e libertária visando ensinar os educandos a serem Seres Mais. Estas palavras constituem uma síntese, grosso modo, do pensamento do grande educador Paulo Freire. Em seu livro, Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa, ele fala […] da inconclusão do ser humano, de sua inserção num permanente movimento de procura21 . Neste sentido, justifica a […] sua vocação ontológica para ser mais e, também, a […] sua natureza constituindo-se social e historicamente. Assim, o ser humano não se revela como […] um a priori da História, porque é […] possível reconhecer a própria presença humana no mundo como algo original e singular22 . O pensamento de Paulo Freire converge com o de MerleauPonty e, também, com o de Manuel Sérgio, pois eles consideram a presença no mundo, com o mundo e com os outros. Freire diz ainda, que o ser humano é: Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz, mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe 23 . O educador como presença-consciente-no-mundo tem que assumir a responsabilidade de ensinar outrem, no caso os educandos e as educandas, a ser e a mover-se-no-mundo com autonomia e liberdade. Faz-se necessário sublinhar esta responsabilidade aos profissionais da Educação Motora, porque a Educação Motora, enquanto natureza pedagógica, se materializa no âmbito da intervenção educacional e na real função de educar. Assim, justifica-se a sua inserção no contexto das ciências da educação. É nesse sentido que reinsisto em que formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas24 . E a real função de educar é ajudar pessoas a encontrar o sentido último da vida: a semovência para a transcendência. É nesse sentido que a Educação Motora se distancia da Educação Física tradicional, porque essa traz na sua gênese as marcas do paradigma newtoniano-cartesiano, da concepção de homem dualista e de um corpo como um mero objeto. Assim, a Educação Física acaba por se preocupar mais com o desempenho físico e a eficiência mecânica do movimento, pois se compromete com muita ênfase nos fundamentos técnicos da execução de modelos organizados, na maioria das vezes pautados na cópia, na fragmentação de tempos e de repetições. Portanto, que de ressaltar que em qualquer processo de formação o importante, […] não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser “educado”, vai gerando coragem25 . Isto significa que o processo de educação, tendo em vista a formação do homem, deve organizar o conhecimento de modo que ensine a compreensão da condição humana no mundo. Trata-se, então, de encorajar ações que possam definitivamente: romper com a prática mecânica centrada somente no aspecto 21 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (Coleção Leitura) p. 14. 22 Idem, Ibidem, p. 18. 23 Idem, Ibidem. 24 Idem, Ibidem, p. 14. 25 Idem, Ibidem, p. 45. biologizante, decorrente da teoria da ciência médica; romper com a prática militar de outrora que preconizava disciplina no sentido de docilidade e de subserviência, pautada na argumentação em nome da moral e do caráter e, ainda, romper com o excessivo desportivismo expresso apenas em um conjunto de regras e técnicas, objetivando somente a ostentação de vitórias, sendo as ações conduzidas pela obstinação das medidas e das pontuações ou, até mesmo, pela escravidão às biotecnologias, na tentativa de produzir o supercampeão. Há que resolver os reais problemas existentes no nosso tempo atual, reflexo da nossa construção social, histórica e cultural. A prática sobreposta à teoria não é suficiente em um processo educacional autêntico. Atente-se, a soma do conjunto das partes não efetiva o todo. Faz-se necessário à compreensão da teoria e da prática, bem como a relação entre ambas. Trata-se enfim, da busca da unidade teoria-prática traduzida em uma (práxis), pois estamos sendo confrontados com essa problemática. Tojal explica que […] a educação se refaz constantemente na práxis 26 , porque as teorias só apresentam valores quando afinadas com suas respectivas práticas, proporcionando e favorecendo possibilidades do homem se formar pessoa consciente e liberta. A práxis para a Educação Motora, […] é a teoria que deve traduzir-se em uma conduta motora, conduta essa que pode ser ensinada e deve ensinar a problematizar, sendo, portanto, a teoria que se faz prática, que deva levar a que se adquira uma cultura motora27 . A conduta motora traduz o comportamento motor que é o movimento do homem no espaço e no tempo, movimento intencional portador de significado, expressando vivência e convivência, realizando-se por meio de uma concreta dialética entre o interpessoal e o intrapessoal, regida por um dinamismo integrador e totalizante28 . A Educação Motora, ao se ocupar do movimento tendo como princípio a formação autônoma, pode educar para a liberdade e para a cidadania. E não vamos esquecer que qualquer expressão humana radica, necessariamente no corpo em ato. O contexto da intervenção, da práxis, pode favorecer o espaço do exercício da liberdade com responsabilidade, espaço para falar, andar, observar, correr, decidir, saltar, agir, arremessar, ponderar, jogar… Enfim, espaço pedagógico destinado a aprender a ser mais. 26 TOJAL, João Batista. Da Educação Física à Motricidade Humana: a preparação do profissional, op. cit., p. 28. 27 Idem, Ibidem. 28 Cf. SÉRGIO, Manuel, 1994b, p. 154 seq.; 1996, p. 161; 1999, p.270. BIBLIOGRAFIA FEITOSA, Anna Maria. Contribuições de Thomas Kuhn para uma epistemologia da motricidade humana. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. (Colecção Epistemologia e Sociedade) FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (Coleção Leitura) GIL, Fernando. Mediações. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2001. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Propedêutica filosófica. Lisboa: Edições 70, 1989. ________________. Fenomenologia do espírito. 6. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. v.II. LAKATOS, Eva Maria & MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos da metodologia científica. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 1991. MORIN, Edgar. Reformar o pensamento: a cabeça bem feita. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. (Colecção Epistemologia e Sociedade) POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e Refutações: o desenvolvimento do conhecimento científico. Coimbra: Editor Livraria Almedina, 2003. RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978. SÉRGIO, Manuel. Educação física ou ciência da motricidade humana? Campinas, SP: Papirus, 1989. (Coleção Corpo e Motricidade) ______________. A pergunta filosófica e o desporto. Lisboa: Compendium, 1991. (Colecção Educação Física e Desporto) ______________. Motricidade Humana: contribuições para um paradigma emergente. Lisboa: Instituto Piaget, 1994a. (Colecção Epistemologia e Sociedade) ______________. Para uma epistemologia da motricidade humana: prolegómenos a uma nova ciência do homem. 2. ed. Lisboa: Compendium, 1994b. ______________. Epistemologia da motricidade humana. Lisboa, Cruz-Quebrada: Edições Faculdade de Motricidade Humana - Universidade Técnica de Lisboa, 1996. ______________. Um corte epistemológico: da educação física à motricidade humana. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. (Colecção Epistemologia e Sociedade) ______________. Alguns olhares sobre o corpo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. (Colecção Epistemologia e Sociedade) SILVA, João Bosco da. Educação física, esporte, lazer: aprender a aprender fazendo. Londrina: Lido Editora, 1995. TOJAL, João Batista. Da Educação Física à Motricidade Humana: a preparação do profissional. Lisboa: Instituto Piaget, 2004. (Colecção Epistemologia e Sociedade) Palavras chave: Motricidade Humana, Educação Motora e Educabilidade. Recursos tecnológicos: Retro-projetor tipo Data-Show. Ana Maria Pereira: Professora da Universidade Estadual de Londrina - Brasil. Membro do Laboratório de Pesquisa em Educação Física - LAPEF (CEF\UEL). Doutoranda na Universidade da Beira Interior - Portugal. (e-mail: [email protected]) Fernando Almada: Professor Doutor da Universidade da Beira Interior e orientador desse estudo. Manuel Sérgio: Professor Catedrático reformado da Universidade Técnica de Lisboa (Faculdade de Motricidade Humana), presidente do ISEIT (Instituto Superior de Estudos Interculturais e transdisciplinares - Piaget de Almada) e co-orientador desse estudo.