Versão online: http://www.lneg.pt/iedt/unidades/16/paginas/26/30/185 Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial II, 659-663 IX CNG/2º CoGePLiP, Porto 2014 ISSN: 0873-948X; e-ISSN: 1647-581X Estado químico das massas de água subterrânea nas ilhas de São Miguel e Santa Maria (Açores, Portugal) de acordo com a Directiva-Quadro da Água Chemical status of groundwater bodies in São Miguel and Santa Maria islands (Azores, Portugal) according to the Water Framework Directive J. V. Cruz1*, C. Andrade1, R. Coutinho1 Artigo Curto Short Article . © 2014 LNEG – Laboratório Nacional de Geologia e Energia IP Resumo: A Diretiva-Quadro da Água da União Europeia, transposta para o direito interno nacional pela Lei da Água, obriga, entre outras exigências, a proceder à determinação do estado químico das massas ou grupos de massas de água subterrânea. No presente trabalho procede-se à caracterização do estado químico em massas de água subterrânea nas ilhas do Grupo Oriental do arquipélago dos Açores (Santa Maria e São Miguel), determinado de acordo com os dados obtidos na rede de monitorização. Os resultados obtidos permitem constatar que na generalidade, em ambas as ilhas, as massas de água subterrânea se encontram em Bom Estado químico, não obstante alguns valores elevados em parâmetros indicadores de mistura com água do mar (teor em cloreto e condutividade elétrica) e de poluição agrícola (concentração em nitratos). Palavras-chave: Água subterrânea, Estado químico, Hidrogeoquímica, Açores. Abstract: The Water-Framework Directive (European Union), and the so-called Water Law, implies the determination of the chemical status of the groundwater bodies or groups of groundwater bodies. In the present paper the characterization of the chemical status of groundwater bodies in the islands from the Eastern Group of the Azores archipelago (Santa Maria and São Miguel) is made, according to data collected in the monitoring network. Results show that all groundwater bodies, in both islands, are in Good status, despite some high values regarding parameters that are associated to mixture with seawater (electrical conductivity and chloride content) and agricultural pollution (nitrate content). Keywords: Groundwater, Chemical status, Hydrogeochemistry, Azores. 1 CVARG - Centro de Vulcanologia e Avaliação de Riscos Geológicos, Departamento de Geociências, Universidade dos Açores, Apartado 1422, 9501-801 Ponta Delgada, Portugal. * Autor correspondente/Corresponding author: [email protected] subterrâneas e as águas costeiras adjacentes. Na RH9 foram designadas 71 massas de água de superfície, das quais 15 correspondentes a rios, 26 a lagos, três a águas de transição e 27 a águas costeiras, e 54 massas de água subterrânea. Foram, ainda, identificadas três massas de água artificial, e não se delimitaram quaisquer massas de água fortemente modificadas. A determinação do estado químico das massas ou grupos de massas de água subterrânea é um dos pilares basilares em que se sustenta a gestão dos recursos hídricos numa dada RH, e é traduzida pelo qualificativo Bom ou Medíocre. Deve assentar na análise das medições efetuadas na rede de monitorização respetiva, pelo que esta última deve compreender um número representativo de pontos de água, assim como uma frequência de observação adequada. No presente trabalho caracteriza-se o estado químico das massas de água subterrânea nas ilhas do Grupo Oriental do arquipélago dos Açores, determinado de acordo com os dados obtidos na rede de monitorização operacionalizada nos Açores ao longo da última década. A verificação dos critérios de qualificação de uma massa de água subterrânea como em bom estado químico foi aferida por intermédio da realização em cadeia de uma série de cinco testes, como recomendado internacionalmente (CEC, 2009), nomeadamente os testes da avaliação geral do estado químico, da intrusão salina ou outra, da transferência de poluentes, dos ecossistemas terrestres dependentes e das zonas de proteção de água para consumo humano. No presente trabalho, a análise empreendida refere-se ao primeiro dos testes mencionados. 2. Metodologia 1. Introdução No contexto da divisão do território nacional em 10 Regiões Hidrográficas (RH), os Açores correspondem à RH9, que engloba todas as bacias hidrográficas das nove ilhas que compõe o arquipélago, incluindo as respetivas águas Para proceder à agregação espacial dos dados, i.e. à determinação de valores estatisticamente significativos para toda a massa de água, foi necessário efetuar a regularização da informação hidrogeoquímica obtida em cada ponto de água monitorizado, para o que se recorreu à metodologia proposta por Grath et al. (2001). A 660 regularização dos dados implica o cálculo das médias em cada ponto (MA50), com base nos valores mínimo (MA0) e máximo (MA100) calculados, para cada parâmetro, por intermédio da aplicação das seguintes expressões numéricas: Em que: nijs, número de dados com o valor mijs (no local “s”, no período “j” do ano “i”) pijs, número de dados com o valor abaixo do LD dado por lts O valor médio do parâmetro na massa de água é dada por: Em que: nijs, número de dados com o valor mijs (no local “s”, no período “j” do ano “i”) pijs, número de dados com o valor abaixo do LD dado por lts w, factor de ponderação para os valores abaixo do LD O extremo superior do intervalo de confiança para a média a 95% (α=0,05) é dada por: O valor de CL95 depende do número de pontos monitorizados e da variabilidade das medições entre eles. Genericamente, a diferença entre MA e o valor de CL95 é tanto maior quanto mais acentuada for a heterogeneidade das observações efetuadas nos vários pontos de água monitorizados na massa de água. Grath et al. (2001) propõem que se utilize o valor de CL95 na verificação do Bom Estado químico, considerando um teste em que a hipótese nula pressupõe que este não é atingido (por parâmetro a verificar): H0: a massa de água não está em Bom Estado, i.e. o valor médio ultrapassa o valor regulamentar/limiar H1: a massa de água está em Bom Estado, i.e. o valor médio não ultrapassa a valor regulamentar/limiar A hipótese H1 é considerada como provada a um nível de significância α/2 se o extremo superior do intervalo de confiança 1-α (α=0,05) for inferior ao valor regulamentar/limiar aplicável. A utilização do CL95 pode ser feita a partir de três pontos de água monitorizados, o que se revela vantajoso, na medida que para a utilização do valor MA seja estatisticamente significativa implica pelo menos uma rede de monitorização na massa de água com 10 pontos. 3. Enquadramento hidrogeológico Na ilha de Santa Maria foram delimitadas seis massas de J. V. Cruz et al. / Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial II, 659-663 água (Almagreira – São Pedro, Anjos - Vila do Porto, Conglomerados do Pico Alto, Facho, Pico Alto – Santo Espírito, Touril), nas quais se distribuem 70 nascentes (0,72 nascentes/km2) e 27 furos (0,28 furos/km2). O caudal específico na ilha de Santa Maria varia entre 1,40x10-2 e 2,75 L/sm (mediana=21,99 L/sm). A transmissividade varia entre 2,65x10-6 e 1,24x10-2 m2/s, (mediana=3,42x10-4 m2/s). As estimativas de condutividade hidráulica apresentam valor médio mais elevado na massa de água Anjos – Vila do Porto (4,35x10-4 m/s), superior ao observado na massa Almagreira – São Pedro (1,48x10-5 m/s). As águas subterrâneas em Santa Maria são frias e predominantemente, de fácies cloretada sódica, embora ocorram ainda águas cloretadas sódicas cálcicas, cloretadas sódicas magnesianas, cloretadas magnesianas cálcicas e bicarbonatadas sódicas (Cruz, 2004). O valor máximo de condutividade elétrica é igual a 725 µS/cm, e as águas são predominantemente ácidas, atendendo a que o pH varia entre 4,80 e 8,09, com um valor de mediana igual a 6,05. Por seu turno, em São Miguel foram delimitadas seis massas de água (Achada, Nordeste – Faial da Terra, Ponta Delgada – Fenais da Luz, Água de Pau, Furnas – Povoação, Sete Cidades), e cartografadas 1100 nascentes (1,48 nascentes/km2) e 26 furos (0,03 furos/km2). O caudal específico na ilha de São Miguel varia entre 0,49 e 100 L/sm (mediana=1,11 L/sm) e a transmissividade entre 5,98x10-4 e 1,22x10-1 m2/s (mediana=1,35x10-3 m2/s). As estimativas de condutividade hidráulica apresentam valores médios mais elevados na massa de água Ponta Delgada – Fenais da Luz (3,69x10-3 m/s), enquanto na massa de água Água de Pau é da ordem de magnitude 10-5 m/s a 10-7 m/s. As fácies dominantes são cloretadas sódicas e bicarbonatadas sódicas, embora se observem alguns tipos de água cuja classificação se pode considerar intermédia (Cruz, 2004). A condutividade elétrica varia entre 25,5 e 9670 μS/cm, e as temperaturas observadas correspondem a águas frias a ortotermais, apresentando um valor de mediana igual a 15ºC. A influência do ambiente vulcânico ativo denota-se pela ocorrência de um elevado número de águas minerais, muitas delas termais, em especial nas massas de água Furnas - Povoação, Água de Pau e Sete Cidades. 4. Resultados 4.1. Ilha de Santa Maria As amostras recolhidas no âmbito da rede de vigilância do estado químico apresentam um pH ligeiramente ácido a alcalino, com medianas a variar entre 6,35 e 8,50, e correspondem a águas predominantemente frias a ortotermais (15,8ºC a 20,6ºC). A mineralização das águas é variável, embora os valores de condutividade elétrica sugiram que o conteúdo em sais dissolvidos é relativamente reduzido, com valores de mediana entre 182,5 e 4050 μS/cm. O valor mais elevado é observado no ponto de água STM.91, que corresponde a um furo em que Estado químico das massas de água subterrânea nas ilhas de São Miguel e Santa Maria (Açores, Portugal) a composição química é influenciada pela mistura com sais marinhos. As fácies hidrogeoquímicas predominantes nas várias massas de água monitorizadas são bastante homogéneas, predominando os tipos cloretada bicarbonatada sódica, bicarbonatada cloretada sódica, cloretada sódica e bicarbonatada sódica (Fig. 1A). 4.2. Ilha de São Miguel As amostras recolhidas no âmbito da rede de vigilância do estado químico, correspondentes a uma série temporal com início no ano de 2004, apresentam um pH ligeiramente ácido a alcalino, com medianas a variar entre 6,11 e 7,80, e correspondem a águas predominantemente frias (12,2ºC a 17,6ºC). A mineralização das águas é variável, embora os valores de condutividade elétrica sugiram que o conteúdo em sais dissolvidos é relativamente reduzido (50 – 1695 μS/cm). O valor mais elevado é observado no ponto de água JK3, que corresponde a um furo em que a composição química é influenciada pela mistura com sais marinhos. As fácies hidrogeoquímicas predominantes nas várias massas de água monitorizadas são bastante homogéneas, predominando os tipos cloretada bicarbonatada sódica, bicarbonatada cloretada sódica, cloretada sódica e bicarbonatada sódica (Fig. 1B). 5. Discussão Na ilha de Santa Maria foi possível estimar o valor de CL95 para as massas de água Anjos – Vila do Porto e Pico Alto – Santo Espírito, considerando-se, face ao exposto anteriormente, que ambas se podem designar como em Bom Estado químico, na medida que os valores critério não são ultrapassados (Tabela 1). Os valores critério (VC) referidos na tabela 1 foram estabelecidos com base nos valores regulamentares e limiares, adotados no primeiro caso a partir da legislação em vigor (Decreto-Lei n.º 208/2008, de 28 de Outubro), e no segundo caso segundo a proposta do Instituto da Água (INAG, 2009), considerando uma excedência máxima de 20% (CEC, 2009). Este limite de excedência é calculado sobre 75% do valor regulamentar/limiar de referência, na medida que esta proporção corresponde ao valor a partir do qual uma massa de água está em risco de não atingir os objetivos ambientais (Grath et al., 2001). Aliás, no próprio Decreto-Lei 208/2008, de 28 de Outubro, considera-se que 75% dos valores regulamentares/limiares corresponde ao ponto de partida para a reversão de eventuais tendências. Como resultante, o VC resulta da multiplicação dos valores limiares/regulamentares por 0,9 (i.e. igual a VL x 661 0,75 x 1,2). No caso particular da massa Anjos – Vila do Porto, verifica-se que ocorre a ultrapassagem dos valores critérios relativos ao cloreto e à condutividade elétrica, sendo patente, face aos valores listados na tabela mencionada, que a grande diferença de mineralização da água no ponto STM.91 face aos restantes implica que o valor de CL95 se afasta muito de MA, e provoca as excedências. Na medida que se julga que esta questão resulta essencialmente de dificuldades construtivas e de gestão do furo STM.91, que provocou a captação de água com maior fração de sais marinhos, optou-se por manter a classificação de Bom Estado a esta massa de água, em detrimento de tentar a subdivisão da massa de água, para a qual a informação geológica e hidrogeológica poderia não ser suficiente. Salienta-se, ainda, que a captação de água no sistema aquífero basal coloca exigência técnicas nem sempre alcançáveis nalgumas ilhas, com impactes referenciados sobre a qualidade da água (Cruz & Silva 2000; Cruz et al. 2010, 2011). Face aos dados existentes, na ilha de São Miguel foi possível estimar o valor de CL95 para todas as massas de água designadas, considerando-se, face ao exposto anteriormente, que na generalidade se podem designar como em Bom Estado químico na medida que os valores critério não são ultrapassados, com exceção pontuais relativas aos valores associados aos iões nitrato e cloreto na massa Ponta Delgada – Fenais da Luz (Tabela 1). A aplicação de todos os testes recomendados pela CEC (2009) permitiu constatar que na generalidade as massas de água de ambas as ilhas se encontram em Bom Estado químico, salientando-se a especificidade, atrás discutida, relativa à unidade Anjos – Vila do Porto. 6. Conclusões O estado químico é um dos elementos essenciais da descrição das massas ou grupos de massas de água subterrânea de uma dada Região Hidrográfica, e traduz-se pela atribuição das designações de Bom ou Medíocre. A determinação do estado químico das massas de água subterrânea nas ilhas de Santa Maria e de São Miguel permitiu evidenciar que todas se encontram em Bom Estado químico, não obstante, no caso específico da massa Anjos – Vila do Porto, ocorrerem ultrapassagens dos valores critérios relativamente ao cloreto e à condutividade elétrica num ponto de água, em resultado da salinização da água subterrânea. Na ilha de São Miguel, nomeadamente na massa de água subterrânea Ponta Delgada - Fenais da Luz, também ocorrem pontuais valores elevados em cloreto e em nitrato, no segundo caso indiciador de poluição agrícola. 662 J. V. Cruz et al. / Comunicações Geológicas (2014) 101, Especial II, 659-663 Tabela 1. Avaliação do estado químico em massas de água subterrânea das ilhas de Santa Maria (SMA) e São Miguel (SMG). Table 1. Chemical status assessment in groundwater bodies from Santa Maria (SMA) and São Miguel (SMG) islands. Estado químico das massas de água subterrânea nas ilhas de São Miguel e Santa Maria (Açores, Portugal) 663 Fig. 1. Composição relativa em iões principais da água subterrânea nos pontos da rede de monitorização nas ilhas de Santa Maria (A) e São Miguel (B) representada de acordo com um diagrama de Piper. Fig. 1. Major-ion relative composition represented by means of a Piper-type diagram for the monitored groundwater sampling point in Santa Maria (A) and São Miguel (B) islands. Referências CEC, 2009. Guidance on groundwater status and trend assessment. Guidance Document nº 18, Common Implementation Strategy for the Water Framework Directive (2000/60/CE), European Communities, Luxembourg, 82 p. Cruz, J.V., 2004. Ensaio sobre a água subterrânea nos Açores. História, ocorrência e qualidade. SRA, Ponta Delgada, 288 p. Cruz, J.V., Silva, M.O., 2000. Groundwater salinisation in Pico island (Azores, Portugal): origin and mechanisms. Environmental Geology, 39, 1181-1189. Cruz, J.V., Coutinho, R., Pacheco, D., Cymbron, R., Antunes, P., Freire, P, Mendes, S., Fontiela, J., Anglade, J., 2010. Groundwater salinization in the Azores archipelago (Portugal): an overview. In: T. Condesso de Melo, L. Lebbe, J.V. Cruz, R. Coutinho, C. Langevin, A. Buxo, (Eds). Proceedings SWIM 21 – 21st Salt Water Intrusion Meeting, Ponta Delgada, 109-112. Cruz, J.V., Coutinho, R., Pacheco, D., Cymbron, R., Antunes, P., Freire, P., Mendes, S., 2011. Groundwater salinization in the Azores archipelago (Portugal). Environmental Earth Sciences, 62, 1273-1285. Grath, J., Scheidleder, A., Uhlig, S., Weber, K., Kralik, M., Keimel, T., Gruber D., 2001. The EU Water Framework Directive: Statistical aspects of the identification of groundwater pollution trends, and aggregation of monitoring results. Final Report. Austrian Federal Ministry of Agriculture and Forestry, Environment and Water Management, European Commission, 63 p. INAG, 2009. 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